bernard lewis a crise do islã - guerra santa e terror profano

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Bernard Lewis

A C rise do IslãGuerra santa e terror profano

Tradução:M aria Lúcia de Oliveira

Jorge Zahar EditorRio de Janeiro

Título original:The Crisis o f Islam (Húly War and Unholy Terror)

Tradução autorizada da primeira edição norte-americana publicada em 2003 por M odern Library, imprint de Random House

Publishing Group, urna divisão de Random House Inc.

Copyright © 2003, Bernard Lewis

Copyright da edição brasileira ê 2004: Jorge Zahar Editor Ltda. rúa México 31 sobreloja

20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123

e-mail: [email protected] site: www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados.A reprodução não-autorizada desta publicação, n o todo

ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Capa: Miriam Lerner

Fotos de capa:Térm ino do Ramadã, séc. xm

Mausoléu do mulá Ismail © Corbis

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dós Editores de Livros, RJ.

Lewis, BemardL652c A crise do islã: guerra santa e terror profano /

Bernard Lewis; tradução, M aria Lúcia de Oliveira, - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004

Tradução de: The crisis of islam: holy war and unholy terror

ApêndiceISBN 85-7110-804-8

1. Jihad. 2. Terrorismo - Aspecto.s rtiigioso.s - Islamismo. 3 Guerra - Aspccios religiosos Islamis­mo. 4. Islamismo e política. 5. lim ilam enialism o islâ­mico. I. Título.

r:i)i) .>97,22,04-1751 CUU 297.73

SUMARIO

MoposA Era dos Califas, 1 O Império Otomano, 8 A Era do ¡nipírúdisnia,'}O Oriente Medio Moje, iO

Introdução, 11

1. D e fin in d o o Islã, 25

2. A C asa d a G u erra , 45

3 . D e C ru zad o s a Im p eria lis ta s , 59

4. D esc o b rin d o a A m érica , 72

5. Satã e os Soviéticos, 86

6 . D ois Pesos, D u as M ed idas, 103

7 . U m F racasso d a M o d e rn id a d e , 11 o

8. A A liança e n tre o P o d e r S au d ita e o E n s in a m e n to W a h h a b f 1 16

9 . A A scensão d o T erro rism o , 1 /')

Posfódo, 151

índice Remissivo, r. i

Para Haroid Rhode com amizade

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TURCOlJJNKr ^

Mor Medrterróneo

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'x T l a r j e y s a

O O rien te M edio H

INTRODUÇÃO

o Presidente Bush e o u tros po líticos ocidentais têm feito grandes es­forços para deixar claro que a g u erra na qual estam os engajados é urna guerra con tra o te rro rism o - não co n tra os árabes ou, em te r ­mos m ais gerais, co n tra m u çu lm anos, instados a se ju n ta rem a nós nessa bata lha co n tra o in im igo com um . A m ensagem de O sam a b in haden é o contrário disso. Para ele e seus seguidores, essa é urna guerra religiosa, urna guerra do islã con tra os infiéis e, po rtan to , inevitavel­m ente, contra os Estados U nidos, a m aior potencia do m undo infiel.

Em seus p ronunciam en tos, Bin Laden faz referências freqüentes à historia. U m a das m ais d ram áticas foi em seu vídeo de 7 de ou tu b ro de 2001, q u ando se referiu à “hum ilhação e desgraça” que o islã so ­freu p o r “m ais de o iten ta anos”. A m aio r parte dos observadores n o r ­te-am ericanos e europeus do O rien te M édio com eçou um a busca ansiosa p o r algum a coisa que tivesse acontecido há “m ais de o iten ta anos”, e su rg iram várias respostas. Podem os ter bastan te certeza de que os ouvintes m uçu lm anos de Bin Laden - as pessoas às quais se dirigia - en tenderam a alusão im edia tam ente e valorizaram a sua im portância .

Em 1918, o su ltanato o tom ano , o ú ltim o dos grandes im perios m uçu lm anos, foi finalm ente derro tado - sua capital, U onstaiitino- pla, foi ocupada, seu soberano feito cativo e a m aioria de seu te rr itó ­rio partilhado en tre os lm|H'i ios vitoriosos: o Británico e o francés.

11

As antigas províncias o tom anas de língua árabe do Crescente Fértil fo ram separadas e deram origem a três novas entidades, com novos nom es e fronteiras. D uas delas, Iraque e Palestina, ficaram sob o m an d a to britân ico , e a terceira, com o no m e Síria, foi dada p ara os franceses. M ais ta rde , esses ú ltim os d iv id iram seu m an d a to em duas partes, ch am an d o u m a de Líbano e m an ten d o o nom e Síria p ara a o u tra . Os b ritân icos fizeram algo bem parecido na Palestina, criando um a divisão en tre as duas m argens do Jordão. A parte o rien ta l foi cham ada T ransjo rdân ia e, m ais tarde, sim plesm ente Jordânia; o n o m e Palestina foi m an tid o e reservado para a m argem ocidental, o u seja, a parte p ro p riam en te cisjo rdan iana do país.

C onsiderava-se, naquela época, que não valia a pena assum ir o con tro le da Península A rábica, fo rm ada, em grande parte , p o r deser­tos e m o n tan h as estéreis e inacessíveis, e seus governantes tiveram perm issão de m an ter u m a independência p recária e lim itada. Os tu rcos acabaram conseguindo liberar a A natólia, sua te rra natal, não em nom e do islã, m as através de u m m ov im en to nacionalista secular liderado p o r u m general o to m an o cham ado M ustafa Kemal, m ais conhecido com o Kemal A taturk . M esm o tendo lu tado , com sucesso, para liberta r a T urquia do dom ín io ocidental, foi ele quem deu os prim eiros passos para a adoção de cam inhos ocidentais - ou, com o preferia dizer, cam inhos m odernos. U m de seus prim eiros atos, em novem bro de 1922, foi abolir o su ltanato .

O soberano o to m an o era não apenas u m sultão, o d irigente de um Estado específico; era tam b ém am plam en te reconhecido com o o califa, o chefe de todo o islã sun ita e o ú ltim o em u m a linhagem de governantes cuja origem rem ontava a 632 d.C . - ano da m orte do profeta M aom é e da indicação de u m sucessor para o cu p ar seu lugar, não com o chefe espiritual, m as sim com o chefe religioso e político do Estado m u çu lm an o e de sua com unidade. Após um a breve expe­riência com u m califa d istin to , os tu rcos aboliram lam bém o califa- do, em m arço de 1924.

12 A crise do islã

D uran te seus quase 13 séculos, o califado, em bora passando p o r m uitas vicissitudes, p erm aneceu com o poderoso sím bolo da u n id a ­de m uçu lm ana, até m esm o de sua identidade; seu desaparecim ento , sob o dup lo assalto de im perialistas estrangeiros e m odern istas d o ­m ésticos, foi sen tido em todo o m u n d o m u çu lm ano . V ários m o n a r­cas e líderes m uçu lm anos ensaiaram algum as débeis tentativas de l eclam ar o títu lo vago, m as n e n h u m deles en co n tro u g rande apoio. M uitos m uçu lm anos ainda percebem de fo rm a dolorosa esse vazio, e com enta-se que o p ró p rio O sam a b in Laden tin h a - ou tem - asp ira­ções ao califado.

A palavra califa vem do árabe khalifa, que, com um a am bigü ida­de o p o rtu n a , com bina os sentidos de “sucessor” e “sub stitu to ”. O ri­ginalm ente, o chefe da com un idade islâm ica era “o Khalifa do Profeta de D eus”. A lguns, m ais am biciosos, en cu rta ram o títu lo para "o Khalifa de D eus”. Esta p retensão à au to rid ad e esp iritual foi caloro­sam ente contestada ' e, p o r fim , abandonada, em bora u m títu lo ex­pressando algo sim ilar, de fo rm a m ais b ran d a , “a Som bra de D eus na Ierra,” tenha sido am plam en te usado p o r governantes m uçu lm anos.I )urante a m aio r p arte da h istó ria dessa institu ição , os deten tores do

uilifado contentavam-se com o título mais m odesto de Am ir al-M u’mi- nin, em geral trad u z id o com o “C om an d an te dos Fiéis”.

Introdução 13

Alusões históricas com o as de Bin Laden, que talvez pareçam obscu ­ras para m uitos ocidentais, são com uns en tre os m uçu lm anos, c só podem ser en tend idas adequadam ente levando-se em couta a form a com o os povos do O rien te M édio percebem a queslao da identidade, e con tra o pano de fundo da h istó ria daquela região. M esm o os co n ­ceitos de h istó ria e iden tidade requerem novas di-liniçoes para o oc i­dental que busca en tender o O rien te M edio ro n ten q io rân eo . N o uso corren te no rte -am ericano , a expiarss.io "isto e h istória” é usada, em geral, para desconsiderar algo i o m o siaulo sem im portânc ia ou sem nenhum a relevância paia ,is |ireocupaçoes atuais; apesar de u m

im enso investim ento no ensino da h istó ria e na p ro d u ção de textos sobre o tem a, a sociedade n o rte -am erican a tem u m nível geral de conhecim en to h istórico terrivelm ente lim itado . O s povos m u çu l­m anos, com o todos os o u tros do m u n d o , são m oldados p o r sua h is­tó ria , m as, ao co n trá rio de alguns, são p ro fu n d am en te conscientes disso. Sua consciência data, no en tan to , do advento do islã, com ta l­vez algum as pequenas referências aos tem pos pré-islãm icos, neces­sárias para explicar alusões históricas encon tradas n o A lcorão e nas antigas trad ições e crônicas islâm icas. Para os m uçu lm anos, a h is tó ­ria islâm ica tem im p o rtan te significado religioso e tam bém legal, dado que reflete a elaboração detalhada do p ro pósito de D eus para Sua co m un idade - fo rm ada p o r aqueles que aceitam os en sin am en ­tos do islã e obedecem a suas leis. A h istó ria dos Estados e povos n ão -m u çu lm an o s não transm ite tal m ensagem e não tem , p o rtan to , valor o u interesse. M esm o em países com u m a civilização antiga com o a do O rien te M édio, o conhec im en to da h istó ria pagã - de seus p róp rio s ancestrais, cujos m o n u m en to s e inscrições estão à vo l­ta de todos - era m ín im o . As línguas e os textos antigos fo ram esque­cidos, os registros antigos queim ados, até serem recuperados e decifrados, nos tem pos m odernos, p o r obstinados arqueólogos e fi­lólogos ocidentais. M as, no que se refere ao período iniciado com o advento do islã, os povos m uçu lm anos p ro d u ziram um a rica e varia­da lite ra tu ra h istórica - de fato, em m uitas regiões, até m esm o em países com um a civilização antiga com o a ín d ia , os trabalhos h is tó ri­cos im portan tes com eçam com a chegada do p ró p rio islã.

M as h istó ria de quê? N o m u n d o ocidental, a un idade básica da organização h u m an a é a nação - um conceito que, no uso n o r ­te-am ericano , m as não no europeu , é v irtu a lm en te s inôn im o de país. Essa to talidade é en tão subdiv id ida segundo vários critérios, sendo um deles a religião. Os m uçu lm anos, no en tan to , tendem a ver não um a nação subdiv id ida em grupos religiosos, m as um a religião subdividida em nações. Sem dúvida, isso se deve, parcialm ente, ao fato de a m aior parte dos E stados-nações que com põem o O rien te

14 A crise do islã

M édio m o d ern o ser u m a criação re lativam ente nova, rem anescente dos tem pos de dom inação im perial anglo-francesa que se seguiram à d erro ta do Im pério O tom ano . Esses Estados preservam as dem arca­ções nacionais e as fron teiras estabelecidas p o r seus antigos senhores im periais. A té m esm o seus nom es refletem essa artificialidade. O 1 raque era u m a prov íncia m edieval, com fron teiras m u ito d iferentes daquelas da R epública m o d ern a , excluindo a M esopotâm ia, no n o r ­te, e inc lu indo um a parte do Irã ocidental; Síria, Palestina e Líbia são nom es da A ntigü idade clássica que não haviam sido usados na re ­gião p o r m il anos o u m ais, até serem revividos e im postos - tam bém com fronteiras novas e, m u itas vezes, diferentes - p o r im perialistas europeus n o século XX.* Argélia e T un ísia nem m esm o existem com o nom es árabes - o m esm o nom e serve para a cidade e o país. O mais notável de tu d o é que a língua árabe não tem n en h u m nom e para A rábia, e a a tual A rábia Saudita é cham ada “o reino árabe sau­d ita” ou “a pen ínsu la dos árabes”, d ep en d en d o do contexto . E não porque o árabe seja u m a língua pob re - bem ao con trá rio - m as p o r­que os árabes sim plesm ente não pensam iden tidade em term os da com binação de etn ia e te rritó rio . O califa ‘U m ar é citado com o d i­zendo aos árabes: “A prendam suas genealogias, e não sejam com o os cam poneses locais que, q u an d o lhes p e rg u n tam quem são, re sp o n ­dem ; ‘sou de tal o u qual lugar’.”**

Nos p rim eiro s séculos da era m uçu lm ana, a com unidade islâ­mica era um Estado sob u m governante. M esm o depois de aquela co-

Introdução 15

* O prim eiro desses nom es reapareceu brevem ente no final do período o tom ano , quando a província de Dam asco foi renom eada província da Síria (Suriye). Suas IVonteiras eram significativam ente diferentes daquelas da república pós-guerra. O nom e ro m ano-b izan tino Palestina foi m antido p o r algum tem po pelos conqu ista ­dores árabes, m as já havia sido esquecido quando chegaram os cruzados. Reapare­ceu com o estabelecim ento do M andato Britânico após a P rim eira G uerra M undial. O nom e rom ano Líbia era desconhecido até que foi oficialm ente re in troduzido pe­los italianos.' ' Ibn Khaldun, mAl-Muqaddima, F.. Q uatrem ère (org.) (Paris, 1858), vo l.l, p.237.

m u n id ad e ter sido divid ida em m uito s Estados, persistiu o ideal de u rna ún ica un idade política islám ica. Os Estados eram quase todos d inásticos, com fronteiras cam biantes, e é certam ente significativo que, na riquíssim a historiografia do m u n d o islám ico em árabe, p e r­sa e tu rco , encon trem -se h istorias de d inastias, cidades e, p rinc ipa l­m ente, do Estado e da com un idade islâm ica, m as n en h u m a da Pérsia o u da T urquia . Esses nom es, d iferen tem en te do que ocorre com Síria, Palestina o u Iraque, designam não novas entidades po líti­cas, m as antigas, com séculos de independência e soberania. A inda assim , até os tem pos m odernos, m esm o esses nom es não existiam em árabe, persa ou tu rco . O nom e T urqu ia , designando um país h a ­b itado p o r pessoas cham adas tu rcos e que falam u m id iom a cham a­do tu rco , parece conform ar-se ao pad rão eu ro p eu n o rm al de identificar países p o r nom es étnicos. M as esse nom e, co rren te na E uropa desde a Idade M édia, som ente foi ado tado na T u rq u ia após a proclam ação da república, em 1923. Pérsia é u m a adaptação e u ro ­péia, o rig inalm ente grega, de Pars, po ste rio rm en te Fars, o nom e de u m a prov íncia do Irã ocidental. Após a conqu ista árabe, com o o al­fabeto árabe não tem a letra p, passou a ser conhecida com o Fars. Assim com o o d ialeto castelhano to rn o u -se espanho l e o toscano vi­ro u italiano, assim tam b ém farsi, o d ialeto regional de Fars, acabou sendo língua pad rão do país, m as, no uso persa, o nom e da p ro v ín ­cia n unca foi aplicado ao país com o u m todo .

Tanto árabes q u an to tu rcos p ro d u ziram vasta lite ra tu ra descre­vendo suas lutas contra a Europa crista, desde as prim eiras incursões árabes no século VIII até .1 liilim a relirada turca, no século XX. Mas, até o período m oderno , c|uaiKlo conceitos e categorias europeus to r ­naram -se dom inan tes, os soldados, oficiais e h istoriadores islâmicos quase sem pre se referiam aos seus oponen tes não em term os te rr ito ­riais ou nacionais, mas sim plesm ente com o infiéis {kafir) ou, algu­m as vezes, p o r vagos term os gerais com o trancos ou rom anos. D o m esm o m odo, n u n ca se referiam ao seu p ró p rio lado com o árabes,

16 A crise do Islã

(tersas ou turcos; identificavam todos com o m uçu lm anos. Essa pers- (lectiva ajuda a explicar, en tre o u tras coisas, a p reocupação do Pa- ((uistão com o Talibã e seus sucessores no Afeganistão. O nom e l’aquistão, um a invenção do século XX, designa u m país in te iram en ­te defin ido p o r sua religião e lealdade islâm icas. Em todos os o u tros .ispectos, o país e o povo do Paquistão são - com o haviam sido p o r m ilê n io s -p a r te da índ ia . O A feganistão defin ido p o r sua identidade islâmica seria u m aliado n a tu ra l do Paquistão , o u m esm o u m satélite seu. O A feganistão defin ido pela nacionalidade étnica, ao con trário , poderia ser u m vizinho perigoso, lançando dem andas irredentistas sobre as áreas do noroeste paquistanês que fala o pashtu e, talvez, até m esm o aliando-se à índ ia .

Referências à h istória , e até à h istó ria antiga, são lugar-com um nos discursos públicos. Na década de 1980, d u ran te a G uerra Irã-Iraque, p o r exem plo, os dois lados em penharam -se em cam pa­nhas de p ropaganda m assiva que freqüen tem ente evocavam eventos c personalidades de épocas tão rem otas qu an to o século V II, as b a ta ­lhas de Q adisiyya (637 d.C .) e K arbala (680 d .C .). A batalha de Q adi- siyya foi vencida pelos árabes m uçu lm anos que invadiram o Irã e lu taram con tra o exército defensor do xá da Pérsia, ainda não con­vertido ao islã e, p o rtan to , aos o lhos m uçu lm anos, ainda com posto de pagãos e infiéis. Assim , os dois lados podiam proclam ar com o sua a v itó ria - para Saddam H ussein, dos árabes sohi e os (icrsas, e, para o aiatolá K hom eini, dos m uçu lm anos sobre o.s infiei.s.

As referências a essas batalhas não eram desei içocs nem n a rra ti­vas, m as rápidas, incom pletas alusões. Ainda assim , os dois lados usaram -nas com p lena certeza de cpie sei lam (Ha echidas e iden tifica­das p o r seus respectivos públicos. e ,ile nu 'sm o pela m aior p arte deles que era com posta de analfabelos. f (liln il im aginar agentes de p ro ­paganda de m assa no O cidenie delendendo seus pon to s de vista através de alusões a eras i.ki ,inii;;.is, a hcp tarqu ia anglo-saxônica na Ing laterra os aos m o n .in as i.no líng ios na França. Inflam ado pelo

Introdução 17

m esm o espírito , O sam a b in Laden insu lta o presiden te Bush ao igualá-lo ao Faraó, e acusa o v ice-presidente D ick C heney e o secre­tário de Estado C olin Powell (citados no m esm o contex to) de terem p ro d u z id o m a io r devastação no Iraque d u ra n te e após a G uerra do Golfo de 1991 do que os cãs m ongóis que, em m eados do século XIII, co n q u is ta ram Bagdá e destru íram o califado abássida. Os povos do O rien te M édio têm u m a percepção da h istó ria que é fom entada nos pú lp itos, nas escolas e pela m ídia, e em bora possa ser - e, m uitas ve­zes, é - d isto rcida e pouco acurada, é, a inda assim , vivida, e tem p ro ­funda repercussão.

18 A crise do islã

Em 23 de fevereiro de 1998, o A l-Q uds a l-A rab i, u m jo rn a l árabe p u ­b licado em Londres, trouxe a ín teg ra de u m a “D eclaração da Frente Islâm ica M undial para a Jihad con tra os Judeus e os C ruzados”. De acordo com o jo rnal, o texto lhes foi enviado p o r fax, com as assina­tu ras de O sam a b in Laden e dos líderes dos g rupos da jih a d n o Egito, Paquistão e em Bangladesh. A declaração - u m a m agnífica peça de eloqüente, e p o r vezes poética, p rosa árabe - revela u m a versão da h istó ria que, p ara a m aio r p arte dos ocidentais, soará nada familiar. As queixas feitas p o r Bin Laden naquele do cu m en to não são exata­m ente as que m u ito s p o d eriam esperar. A declaração com eça com a citação das passagens m ais m ilitan tes do A lcorão e dos d itos do p ro ­feta M aom é, e depois continua: “D esde que D eus m o ld o u a P en ínsu ­la A rábica, criou seus desertos e a cercou com seus m ares, jam ais um a calam idade a assolou com o essas hostes de cruzados que se es­p a lharam sobre ela com o gafanhotos, in festando seu solo, com endo seus fru tos e d estru in d o sua vegetação; e isso n u m (em po em que as nações se lançam con tra os m u çu lm an o s com o convivas de u m ja n ­ta r acotovelando-se em volta de u m a travessa de com ida.”

A p a rtir desse pon to , a declaração segue falando sobre a necessi­dade de com preender a situação e agir para corrig i-la . Os latos, diz o

(cxto, são conhecidos p o r todos, e são apresen tados em três tópicos principais.

Primeiro - Há mais de sete anos os Estados U nidos estão ocupando as terras do islã no m ais sagrado de seus territórios, a Arábia, pilhando suas riquezas, esm agando seus governantes, hum ilhando seu povo, am eaçando seus vizinhos e usando suas bases na península com o p on ­ta de lança para lutar contra os povos islâm icos da vizinhança. Embora tenha havido controvérsias no passado sobre a verdadeira na­tureza dessa ocupação, o povo da Arábia, em sua totalidade, agora a reconhece.

N ão há m elhor prova disso que a contínua agressão norte-am eri­cana contra o povo do Iraque, desencadeada da Arábia a despeito de seus governantes, que, m esm o sendo todos eles contrários ao uso de seus territórios para tal propósito, estão subjugados.Segundo - Apesar da im ensa destruição infligida ao povo iraquiano pelas m ãos dos cruzados e judeus em aliança, e apesar do núm ero ch o­cante de m ortes, que ultrapassaram um m ilhão, os norte-am ericanos, ainda assim, a despeito de tudo isso, estão tentando, mais um a vez, re­petir essa pavorosa carnificina. Parece que o longo b loqueio que se se­guiu a um a guerra selvagem, o desm em bram ento e a de.struição não são suficientes para eles. Assim, voltam hoje para destruir o que resta desse povo e hum ilhar seus vizinhos m uçulm anos.Terceiro - Embora os propósitos dos norte-am ericanos nessas guerras sejam religiosos e econôm icos, eles tam bém servem .\o insignificante Estado dos judeus, desviando a atenção de sua oi iipaçao de )erusalém e da m orte de m uçulm anos na cidade.

N ão há m elhor prova de tudo isso i|iie a s.mh.i norle-am ericana de destruir o Iraque, o mais forte dos Estados .ii .ihes v i/inhos, esu a tenta­tiva de desm em brar todos os Estados d.i ic-g.i.io, com o o Iraque, a Ará­bia Saudita, o Egito e o Sudão, (ranslorm .nulo os em Estados m enores cuja divisão e fraqueza garantiriam .1 sohicvivencia de Israel e a con ti­nuação da calam itosa ociipa(,ao d.is lei i.is da Arábia pelos cruzados.

Esses crim es, con tinua a dec lar.içao, eqüivalem a u m a “declara­ção explícita de gueri.i p e lo s noric-am ericanos co n tra D eus, Seu

Introdução 19

Profeta e os m uçu lm anos. Em tal situação, os ulem ás têm op inado u n an im em en te através dos séculos que, q u an d o in im igos atacam as terras m uçu lm anas, a jihad to rna-se u m a obrigação pessoal de todos os m u çu lm an o s” .

Os signatários citam várias au to ridades m uçu lm anas e passam en tão para a p arte final e m ais im p o rtan te da declaração, a fa tw a , es­tabelecendo que “m ata r am ericanos e seus aliados, tan to civis q u a n ­to m ilitares, é u m a obrigação ind iv idual de todos os m uçu lm anos capazes, em qualquer país em que isso seja possível, até que a m es­q u ita de Aqsa [em Jerusalém ] e a m esquita de H aram [em Meca] se­jam libertadas de seu jugo, e até que seus exércitos, despedaçados e capengas, ab an d o n em todas as terras do islã, incapazes de am eaçar qualquer m u çu lm an o ”.

Após citar alguns o u tros versículos relevantes do A lcorão, o d o ­cum ento continua: “C om a perm issão de D eus, convocam os todos os m uçu lm anos que acred itam em D eus e esperam recom pensa p o r obedecer a Seus com andos para m atar os n o rte -am ericanos e sa­quear suas posses onde quer que os enco n trem e q u ando quer que consigam . D a m esm a form a, convocam os os ulem ás, os líderes, os jovens e os so ldados m uçu lm anos para d ar início a ataques co n tra os exércitos dos dem ônios no rte -am ericanos e co n tra aqueles a ju d an ­tes de Satã que são seus aliados.” A declaração e a fa tw a te rm in am com um a série de o u tras citações das escritu ras m uçulm anas.

20 A crise do islã

Segundo a visão ocidental corrente, a C u erra do Colfo de 1991 foi in iciada pelos Estados U nidos, com u m a coalizão de países árabes e ou tros aliados, p ara liberta r o Kuwait da conqu ista e ocupação ira­quianas e p ro teger a A rábia Saudita co n tra u m a agressão do Iraque. Ver essa guerra com o u m a agressão no rte -am ericana ao lr;K|Lic pode parecer u m tan to estranho , m as essa é a pcrspcciiv.i am plam ente aceita no m u n d o islâm ico. N a m edida cm c|uc se dilui ,i m em ória do a taque de Saddam H ussein ao Kuwait, o cpie en tra no loco das aten-

ções são as sanções co n tra o Iraque, os aviões n o rte -am ericanos e britânicos p a tru lh an d o os céus a p a rtir de bases na A rábia, o sofri­m ento do povo iraqu iano e, crescentem ente , o que se percebe com o a tendenciosidade n o rte -am erican a a favor de Israel.

As três áreas de queixas listadas na declaração - Arábia, Iraque, lerusalém - são fam iliares p ara observadores do cenário no O rien te M édio. O que pode ser m enos fam iliar é a seqüência e a ênfase com i|Lie essas áreas são apresentadas. Isso não será n en h u m a surpresa inira qualquer u m versado na h istó ria e lite ra tu ra islâm icas. E m bora iiós, ocidentais, tendam os a esquecer isso algum as vezes, p ara os m u ­çu lm anos a Terra Santa p o r excelência é a A rábia e, especialm ente, a região do H ijaz e suas duas cidades sagradas - M eca, onde nasceu o 1’rofeta, e M edina, o nde se estabeleceu o p rim eiro Estado m u çu lm a­no; o país cujo povo foi o p rim eiro a acorrer à nova fé e to rn o u -se seu baluarte. O p rofeta M aom é viveu e m o rreu na Arábia, bem com o seus sucessores im ediatos, os califas, no com ando da com unidade. I )esde então, exceto p o r breve in tervalo na Síria, o cen tro do m u n d o islâmico e o cenário de suas m aiores realizações foi o Iraque, e Bagdá, sua capital, foi a sede do califado p o r m eio m ilênio. Para os m u çu l­m anos, não se pode jam ais ren u n c ia r a n en h u m pedaço de te rra um a vez que ten h a sido anexado à esfera de d o m ín io do islã, m as n en h u m se com para em significado à A rábia e ao Iraque.

Desses dois, a A rábia é, de longe, o m ais im p o rtan te . II istoriado- res árabes clássicos con tam que, no ano 20 da era m uçu lm ana (co r­respondente ao ano 641 d .C .), o califa ‘U m ar decretou c|ue judeus e cristãos deveriam ser re tirados de to d a a Arábia, com exceção das fai­xas do sul e do leste, em obediência a um com ando tio Ihofeta p ro ­nunciado em seu leito de m orte: “Q ue nao baja duas religiões na Arábia.”

Os povos em questão eram os judeus do oásjs de Khaybar, no norte , e os cristãos de N ajran, no sul. Am bos constitu íam c o m u n id a ­des antigas e bem consoliilatlas, de tala, cu ltu ra e m o d o de v ida á ra ­bes, d iferindo de seus v i/jiihos apenas em sua fé.

Introdução 21

A atribu ição daquela fala ao Profeta foi im p u g n ad a po r algum as au to ridades islâm icas m ais antigas. M as, de m o d o geral, foi aceita e cum prida . A expulsão de m inorias religiosas é ex trem am ente rara na h is tó ria islâm ica - ao co n trá rio da cristandade m edieval, na qual expulsões de judeus e, após a R econquista, de m uçu lm anos eram no rm ais e freqüentes. C om parado com as expulsões européias, o d e ­creto de ‘U m ar era tan to lim itado qu an to com passivo. N ão incluía o sul e o sudeste da Arábia, que não eram vistos com o parte da Terra Santa islâm ica. E, d iferen tem ente dos judeus e m uçu lm anos expul­sos da E spanha e de o u tro s países europeus, obrigados a en co n tra r o refúgio que pudessem em ou tro lugar, os judeus e cristãos da Arábia fo ram reassentados em terras destinadas a eles - os judeus, na Síria e na Palestina e os cristãos, no Iraque. O processo foi gradual, em vez de súbito , e há registros de judeus e cristãos em K haybar e N ajran p o r algum tem po a inda após o decreto.

A expulsão foi concluída a seu tem po e, desde então, a Terra Santa do H ijaz tem sido te rritó rio pro ib ido para não -m uçu lm anos. De acordo com a escola de ju risp rudênc ia islâm ica reconhecida pelo Estado saudita e p o r O sam a b in Laden e seus seguidores, até m esm o o fato de u m n ão -m u çu lm an o p isar o solo sagrado já é u m a grande ofensa. N o resto do reino, os não -m u çu lm an o s, em bora adm itidos com o visitantes tem porário s, não tin h am perm issão para fixar resi­dência ou p ra tica r suas religiões. O p o rto de D jedda, no M ar V erm e­lho, funcionou , d u ran te m u ito tem po, com o u m tip o de área de quaren tena religiosa, na qual represen tan tes d iplom áticos, consula­res e com erciais recebiam perm issão de viver estritam ente n u m cará­ter tem porário .

A p a rtir da década de 1930, a descoberta e exploração do p e tró ­leo e o conseqüente crescim ento de R iad - a capital saudita que, de u m a pequena cidade de oásis, tran sfo rm o u -se num a grande m e tró ­pole - trouxeram m uitas m udanças e considerável inlliixo de e s tran ­geiros, p red o m in an tem en te no rte -am ericanos, o que alclou todos os aspectos da vida árabe. A presença desses estrangeiros, ainda vista

22 A crise do islã

p o r m uitos com o um a profanação , pode a judar a explicar o clim a de crescente ressen tim ento .

A A rábia foi am eaçada pelos cruzados d u ran te algum tem po, no século XII da era cristã. D epois de derro tados e expulsos, a o u tra am eaça infiel à Arábia com eçou no século XVIII, com a consolidação do p o d er eu ropeu no sul da Ásia e o aparecim ento de navios eu ro ­peus - ou seja, cristãos - n o litoral da Arábia. O ressen tim ento daí re ­su ltan te constitu iu pelo m enos u m dos elem entos do revivalism o religioso insp irado na A rábia pelo m o v im en to wahhabi, com andado

pela Casa de Saud { S u u d em árabe), fu n d ad o ra do Estado saudita. D u ran te o p eríodo de influência anglo-francesa e de seu d o m ín io do O rien te M édio nos séculos XIX e XX, os poderes im periais governa­ram o Egito, o Sudão, o Iraque, a Síria e a Palestina. T iraram certo proveito das m argens da A rábia, de Á den e do golfo Pérsico, m as fo­ram suficientem ente sábios para não ter n en h u m envolvim ento m i­litar, e apenas u m m ín im o político, nos negócios da Península.

E nquan to esse envolvim ento estrangeiro era exclusivam ente econôm ico, e en q u an to o re to rn o era m ais que adequado p ara ap la­car todas as queixas, a presença estrangeira pôde ser to lerada. Mas, nos anos recentes, os te rm os de com prom isso m u d aram . C om a qu e­da dos preços do petró leo e o aum en to de população e gastos, o re to rn o deixou de ser adequado e as queixas to rn a ram -se m ais n u ­m erosas e m ais audíveis. Tam pouco está a partic ipação lim itada às atividades econôm icas. A revolução no Irã, as am bições de Saddam Elussein c o conseqüente agravam ento de todos os problem as da re ­gião, especialm ente o eonllito Israel-Palestina, agregaram dim ensões políticas e m ililai es a presença estrangeira, d an d o algum a plausibili- dade aos cada vez mais lieqücntes brados de “im peria lism o”. Q u a n ­do se tra ta r de sua l in .i S.mta, m uitos m uçu lm anos tenderão a caracterizar a luta e, alg.iini.is vezes, tam b ém o inim igo, em term os religiosos e a ver as trop .is norle-am ericanas enviadas p ara liberar o Kuwait e salvar a Ai .ibi.i S.uulila de Saddam H ussein com o invasores

Introdução 23

e ocupan tes infléis. Essa percepção é aguçada pela inquestionável su ­p rem acia no rte -am erican a en tre as au to ridades do m u n d o infiel.

Para a m aio r p arte dos no rte-am ericanos, a declaração de Bin Laden é urna caricatu ra , u rna distorção flagrante da natu reza e do p ropósito da presença no rte -am erican a na Arábia. Tam bém deve­riam estar conscientes de que, para m u ito s m uçu lm anos, talvez a m aio ria deles, a declaração é um a carica tu ra igualm ente grotesca da natu reza do islã, e m esm o de sua d o u trin a de jihad. O Alcorão fala de paz, bem com o de güera. As centenas de m ilhares de trad ições e ditos a tribu idos, com variados graus de confiabilidade, ao Profeta, e algu­m as vezes in te rp re tados de m aneiras m u ito diversas, oferecem a m ­pla gam a de orientações, das quais a in terp re tação m ilitan te e v io lenta da religião é apenas urna den tre m uitas.

E nquan to isso, núm eros significativos de m uçu lm anos estão p ro n to s para aprovar, e uns poucos deles p ara aplicar, essa in te rp re ­tação de sua religião. O te rro rism o requer apenas uns poucos. O b ­v iam ente, o O cidente tem que se defender p o r quaisquer m eios efetivos. M as, ao conceber m eios de com bater os terroristas, ce rta ­m ente seria ú til en tender as forças que os im pelem .

24 A crise do islã

1 Definindo o Islã

É difícil generalizar a respeito do islã. Para com eçar, a p ró p ria pala­vra é u sualm ente em pregada com dois significados relacionados, m as d istin tos, eqüivalendo tan to a cristian ism o q u an to a c ristanda­de. N o p rim eiro sentido, indica um a religião, u m sistem a de crença e culto; no ou tro , a civilização que cresceu e floresceu sob a égide d a ­quela religião. Assim, a palavra “islã” den o ta m ais de 14 séculos de h istória , 1,3 b ilhão de pessoas e u m a trad ição religiosa e cu ltu ral de eno rm e diversidade. C ristian ism o e cristandade represen tam u m período m ais longo e um núm ero m aior - m ais de 20 séculos, m ais de dois bilhões de pessoas c um a diversidade ainda m aior. M esm o assim , são possíveis certas generalizações a respeito do que é ind ife­ren tem en te cham ado cristão, judaico-cristão , pós-cristão e, m ais sim plesm ente, civilização ocidental. E m bora possa ser difícil - e, às vezes, em certo sentido, |)crigoso - generalizar sobre a civilização is­lâm ica, i.sso não c im possível, c pode ter algum as utilidades.

Em Icrm os es|i.K i.iis, o d o m ín io do islã estende-se do M arrocos à Indonésia, do ( ;a/.u |uisl,io ao Senegal. Tem poralm ente, retrocede a m ais de 14 séculos, .lo advento e à m issão do p rofeta M aom é na A rá­bia, no século VII d .(2 , i|ua iu lo criou a com un idade e o Estado islâ­m icos. N o período que hisloi iadores europeus vêem com o u m negro in terlúd io en tre o declínio da eivilização an tiga - Grécia e R om a - e o su rg im ento da m oderna , oii seja, da Europa, o islã era a civilização

25

que liderava o m u n d o , m arcada p o r seus grandes e poderosos re i­nos, pela riqueza e variedade da in d ú stria e do com ércio , p o r suas ciências e artes engenhosas e criativas. M uito m ais que a cristandade, o islã foi o estágio in term ed iário en tre o an tigo O rien te e o m o d ern o O cidente, para o qual co n trib u iu de m o d o significativo. D u ran te os ú ltim os três séculos, con tu d o , o m u n d o islâm ico p erd eu sua dom i- nância e liderança e ficou para trás do m o d ern o O cidente e tam bém do O rien te rap id am en te m odern izado . Esse crescente h ia to ap resen ­ta p rob lem as cada vez m ais agudos, tan to de o rdem prá tica quan to em ocional, para os quais os governantes, pensadores e rebeldes do islã a inda não en co n tra ram respostas convincentes.

C om o religião, o islã é, sob todos os aspectos, m u ito m ais p ró x i­m o da trad ição judaico-cristã que de qualquer u m a das grandes reli­giões da Ásia, com o o h indu ísm o , o b ud ism o ou o confucionism o. O juda ísm o e o islã têm em com um a crença em u m a lei div ina que re ­gula todos os aspectos da atividade hu m an a , inc lu indo até m esm o a com ida e a bebida. C ristãos e m uçu lm anos p a rtilh am u m m esm o triunfalism o. Em contraste com as ou tras religiões, inc lu indo o ju ­daísm o, acred itam que são os ún icos afo rtunados a receber e guardar a m ensagem final de D eus p ara a hum an id ad e , sendo sua obrigação levá-la ao resto do m u n d o . C om paradas com as m ais antigas re li­giões orientais, todas as três religiões do O rien te M édio - judaísm o, cristian ism o e islam ism o - estão in tim am en te relacionadas e ap a re ­cem, de fato, com o variantes da m esm a trad ição religiosa.

A cristandade e o islã são, de m uitas m aneiras, civilizações irm ãs, am bas derivadas de u m a m esm a h erança - a revelação c p ro ­fecia judaicas e a filosofia e ciência gregas - e n u trid as pelas im em o­riais tradições do O rien te M édio antigo. D u ran te a m aioi parte de sua h istó ria con jun ta , têm sido im pelidas a se com bak iem , m as, m esm o no conflito e na polêm ica, revelam seu paren testo essencial e os traços com uns que as un em e as d istinguem das civiliz.içoes asiáti­

cas m ais distantes.

26 A crise do islã

M as, assim com o h á sem elhanças, há tam b ém pro fundas d ispa­ridades en tre as duas, que vão além das óbvias diferenças de dogm a e culto. Em n en h u m o u tro aspecto essas diferenças são m ais p ro fun- rlas - e m ais óbvias - que na a titu d e dessas religiões e de seus expoen­tes legitim ados a respeito das relações en tre governo, religião e sociedade. O fu n d a d o r do cristian ism o o rd en o u a seus seguidores dar “a César o que é de César, e a D eus o que é de D eus” (M at. 22:21)

e, d u ran te séculos, o cristian ism o cresceu e se desenvolveu com o um a religião dos o p rim id o s, até que, com a conversão do im p erad o r ( Àm stantino, o p ró p rio César to rn o u -se cristão e in augurou u m a sé­rie de m udanças através das quais a nova fé g an h o u o Im pério Ro­m ano e tran sfo rm o u sua civilização.

O fu n d ad o r do islã foi seu p ró p rio C o n stan tino , e fu n d o u seu p róprio Estado e im pério . Assim, ele não c rio u - nem necessitou criar - u m a igreja. A d ico tom ía en tre regnum e sacerdotium, tão crucial na h istó ria da cristandade ocidental, n ão tin h a n e n h u m equ i­valente no islã. D u ra n te a v ida de M aom é, os m uçu lm anos to rn a ­ram -se, ao m esm o tem p o , u m a co m u n id ad e política e religiosa, tendo o Profeta com o chefe de Estado. C om o tal, ele governava um lugar e u m povo, p ropiciava justiça, recolhia im postos, com andava exércitos, declarava g u erra e fazia a paz. A p rim e ira geração m u çu l­m ana do p eríodo de fo rm ação do islã, cujas aventuras constituem sua h istó ria sagrada, n ã o foi posta à prova co n tin u am en te p o r perse­guições e nem tin h a u m a trad ição de resistência a um p o d er estatal hostil. Ao co n trá rio , o E stado que os regia era o do islã, e a aprovação de D eus à sua causa m anifestava-se para eles sob a form a de v itó ria e im pério neste m u n d o .

Na R om a pagã. C ésar era Deus. Para o s crislãos, há um a escolha en tre D eus e César, e inum eráveis gerações de cristãos têm -se en re­dado nas teias dessa escolha. No isla, nao havia n en h u m a escolha á r­dua com o essa a fazer. Na o rgan i/açao política universal islâm ica, tal com o concebida pelos m uçu lm anos, náo há César, apenas D eus, que é o ún ico so b eran o e a imie.i (ontc da lei. M aom é foi Seu p ro feta ,

Definindo o islã 27

que d u ran te a vida ensin o u e governou em nom e de Deus. Q uando m o rreu , em 632 d.C ., sua m issão esp iritual e profética de trazer a p a ­lavra de D eus p ara a h u m an id ad e havia sido com pletada. O que p e r­m aneceu foi a tarefa religiosa de espalhar a revelação de D eus até que, finalm ente , o m u n d o to d o a aceitasse. Isso deveria ser a lcança­do am pliando a au to rid ad e e, p o rtan to , tam b ém a partic ipação da co m un idade que abraçava a verdadeira fé e sustentava a lei de Deus. A fim de p rover a adesão e a liderança necessárias para essa tarefa, re ­queria-se u m su b stitu to o u sucessor do Profeta. A palavra árabe kha- lifa foi o títu lo ado tado p o r A bu Bakr, sogro do Profeta e seu sucessor, cuja ascensão à chefia da co m u n id ad e islâm ica m arco u a fundação da g rande institu ição h istó rica do califado.

D u ran te o governo dos califas, a com un idade de M edina, onde havia governado o Profeta, tran sfo rm o u -se n u m vasto im pério em pouco m enos de u m século, e o islam ism o to rn o u -se um a religião universal. N a experiência dos p rim eiros m uçu lm anos, tal com o p re ­servada e reg istrada para as gerações v indouras, a verdade religiosa e o p o d er po lítico eram indissoluvelm ente associados: a p rim eira san- tificava o segundo, e este sustentava aquela. O aiatolá K hom ein i u m a vez observou que “o islã é po lítica o u não é nada”. N em todos os m u ­çu lm anos chegariam a tan to , m as a m a io r p arte deles concordaria que D eus p reocupa-se com a política, e essa crença é confirm ada e susten tada pela sharia, a Lei Sagrada, que lida extensivam ente com a aquisição e o exercício d o poder, a n a tu reza da leg itim idade e da au to ridade , as obrigações dos governantes e súditos; em poucas pala­vras, com aquilo que, no O cidenlc, cham aríam os d ire ito co n stitu ­cional e filosofia política.

A longa in teração en tre o islã e a cristand.ule, c suas m uitas se­m elhanças e influências m ú tuas, algum as vezes lêm levado observa­dores a ignorar certas diferenças significativas, t ) Alcoi ao, di/.-se, é a Bíblia m uçu lm ana; a m esqu ita é a igreja m uçu lm ana; os ulem ás são o clero m uçu lm ano . As três afirm ações são verdadeiras, mas, ainda assim , são perigosam ente enganosas. Tanto o Velho c]uanlo o Novo

28 A crise do islã

T estam ento consistem de coleções de diferentes livros, estenden- do-se p o r longo p eríodo de tem po , e são considerados pelos crentes a m aterialização da revelação divina. Para os m uçu lm anos, o A lco­rão é u m único livro, revelado em u m tem p o d e te rm in ad o p o r um m esm o hom em , o pro fe ta M aom é. Após in tensos debates nos p r i­m eiros séculos do islã, foi ado tada a d o u trin a de que o A lcorão é, ele m esm o, incriado e e terno , div ino e im utável. Isso se to rn o u um princíp io central da fé.

A m esquita é, realm ente, a igreja m uçu lm ana , no sen tido de ser u m lugar de culto com unal. M as não se p ode falar “a M esquita” com o se fala “a Igreja” - o u seja, u m a in stitu ição com sua p ró p ria h ierarqu ia e suas leis, em con traste com o Estado. Os ulem ás (conhe­cidos com o m ulás n o Irã e nos países m u çu lm an o s influenciados pela cu ltu ra persa) p o d em ser descritos com o sacerdotes n o sen tido sociológico, pois são hom ens de religião p o r profissão, reconhecidos com o tal p o r tre in a m e n to e certificado. M as não h á u m clero n o islã - n e n h u m a m ediação clerical en tre D eus e o fiel, n em ordenação , sacram en tos ou ritu a is que apenas u m sacerdo te o rd en ad o possa realizar. N o p assado , te r-se -ia ac rescen tad o que n ão h á concilios o u sínodos, n em b ispos p a ra defin ir a o rto d o x ia e inqu is id o res p ara fazê-la cum prir. Pelo m enos no Irã, isso já não é in te iram en te verdadeiro .

A p rincipal função do ulem á - de um a palavra árabe significan­do “conhecim en to” - é preservar e in terp re tar a Eei Sagrada. No final dos tem pos m edievais, surgiu algo com o um clero local que atendia às necessidades das pessoas com im s em cidades e vilas, m as era u sualm ente separado do ulem a e iiao coiilava com sua confiança, de ­vendo m ais ao isla m islico do c|iie .10 dogm ático . Nas ú ltim as m o n a r­quias islâm icas, na 'liii( |u ia e no Ir.i, apareceu um tip o de h ierarqu ia eclesiástica, m as sem rai/es n.i iiadiç.io m uçu lm ana clássica, e m es­m o essas h ierarquias nniu .1 dem andaram - e, m enos ainda, exerce­ram - os poderes dos piel.idos c 1 istãos. Nos tem pos m odernos, tem havido m uitas m udanças, devidas, p rincipalm ente , a influências oci­

Definindo o islã 29

dentais, e desenvolveram -se institu ições e profissões que guardam sem elhança suspeita com as igrejas e clérigos da cristandade. M as re ­p resen tam u m afastam ento do islã clássico, e n ão u m re to rn o a ele.

Se é possível, no m u n d o islâm ico, falar de u m clero n u m senso sociológico lim itado , não há o m en o r sen tido em se falar de u m a lai- cidade. A p ró p ria noção de algo separado, ou m esm o separável, da au to rid ad e religiosa, expressa na linguagem cristã p o r te rm os com o laico, temporal ou secular, é to ta lm en te estranha ao pensam ento e à prá tica do islã. N ão foi senão a p a rtir de tem pos relativam ente m o ­dernos que passaram a existir equivalentes p a ra esses te rm os na lín ­gua árabe. Foram tom ados em prestados do uso de cristãos de fala árabe, ou recém -inventados.

D esde a época do Profeta, a sociedade islâm ica tin h a u m a n a tu ­reza dupla. De u m lado, era u m a un idade política - u m a capitan ia que, sucessivam ente, to rn o u -se u m Estado e u m im pério . De ou tro lado, e ao m esm o tem po , era um a com un idade religiosa fundada po r u m profeta e d irig ida p o r seus substitu tos, que tam b ém eram seus sucessores. C risto foi crucificado, M oisés m o rreu sem en tra r na terra p rom etida , e as crenças e condu tas de seus seguidores religiosos a in ­da são p ro fu n d am en te influenciados pela m em ó ria desses fatos. M aom é triu n fo u em v ida e m o rreu com o soberano e conquistador. As condu tas m uçu lm anas resultantes não tin h a m com o não serem confirm adas pela h istó ria subseqüente de sua religião. Na Europa ocidental, invasores bárbaros [m as educáveis] en co n tra ram u m Es­tado e um a religião já existindo: o Im pério R om ano e a Igreja cristã. Os invasores reconheceram am bos, e ten taram trab a lh ar p ara seus p róp rio s fins e neccssitiades den lro das eslriitu ras da sociedade ro ­m ana organizada e da religião ci isl.i, qiie em pregavam a língua la ti­na. O s invasores árabes m uçu lm anos i|ue to iiq u is la iam o O rien te M édio e a Á frica do N orte trouxeram sua (uopi i.i le, lo m suas p ró ­prias escrituras em sua p ró p ria língua; criaram sua p io p ria consti­tu ição política, com u m novo co n jun to de leis, um novo id iom a im peria l e u m a nova e s tru tu ra im perial, tendo o calila <,omo chefe

30 A crise do islã

suprem o. Esse Estado e essa organização eram defin idos pelo islã, e a associação plena era concedida exclusivam ente àqueles que p ro fes­savam a fé dom inan te .

A carreira do profeta M aom é - o m odelo que todo b o m m u çu l­m ano busca im itar, não só nisso, com o em tu d o o m ais, - divide-se em duas partes. N a p rim eira , d u ran te os anos em sua cidade natal, M eca (?570-622), era u m opon en te da o ligarquia pagã que então reinava. N a segunda, após sua m u d an ça de M eca para M edina (622-632), era o chefe de u m Estado. Essas duas fases na carreira do Profeta, u m a de resistência, o u tra de com ando, estão refletidas no Alcorão, onde, em diferentes capítu los, os fiéis são instru ídos a o b e­decer ao represen tan te de D eus e desobedecer ao Faraó, o parad igm a do d irigente in justo e tirânico . Tais aspectos da v ida e ob ra do Profeta in sp ira ram duas trad ições no islã, u m a au to ritá ria e quietista , a o u tra radical e ativista. Am bas estão am plam ente refietidas, de u m lado, no desenvolvim ento da tradição, e, de ou tro , no desenro lar dos eventos. N em sem pre foi fácil d e te rm in ar quem era o represen tan te de D eus e quem era o Faraó; m uitos livros foram escritos, e m uitas batalhas travadas, na tentativa do fazê Io. O problem a perm anece, e as duas trad ições podem ser vist.is im iilo claram ente nas polêm icas e nos conflitos de nosso (uo p rio tem po.

E ntre os extrem os de c|iiietism o e radicalism o há u m a atitude dissem inada, am plam enlr' t'xpiessada, de reserva, e m esm o de des­confiança, d ian te ilo j;ovei no. Um exem plo é a m arcan te diferença, nos tem pos mcdiev.iis, d.is atitudes populares relativas ao cádi, um juiz, e o m ufti, um |ui ise(insulto ria Lei Sagrada. O cádi, nom eado pelo governante, c apresenl.ido n.i literatura e no folclore com o um a figura m ercenária e .ite i kIk iiI.i; o m ufti, repu tado no islã m edieval pelo reconhecim ento de seus (.olegas e da população em geral, des­frutava de estim a e res|H iiii. Uin lem a trad ic ional nas biografias de hom ens devotos - as (|uais existem centenas de m ilhares - é que o heró i recebeu a olerl.i de um ta ig o governam ental e recusou. A ofer-

Definindo o Isla il

ta d em o n stra seu conhecim ento e reputação; a recusa, sua in te ­gridade.

Nos tem pos o tom anos, houve urna m u d an ça im portan te . O cádi g anhou m u ito em p o d er e au toridade, e m esm o o m ufti foi in te ­grado à h ierarqu ia pública de au toridade. M as a velha atitude de des­confiança d ian te do governo persistiu e é freqüen tem ente expressada em provérbios, h istorias folclóricas e até na m elho r literatura.

Por m ais de m il anos, o islã forneceu o ún ico con jun to un iver­salm ente aceitável de regras e princ ip ios p a ra a regulação da v ida p ú ­blica e social. M esm o du ran te o período da m áxim a influência européia, nos países governados ou d om inados p o r poderes im p e­riais europeus, bem com o naqueles que perm aneceram in d ep en ­dentes, as noções e a titudes políticas islâm icas co n tin u aram a exercer p ro fu n d a e d issem inada influência. N os anos recentes, tem havido m uitos sinais de que essas noções e a titudes podem estar re to rn an d o ao pad rão an te rio r de dom inância , em b o ra sob form as m odificadas.

32 A crise do islã

É no terreno da política - in terna , regional e in ternacional - que p o ­dem ser vistas as diferenças m ais m arcantes en tre o islã e o resto do m undo . Os chefes de Estado ou m in istros de Relações Exteriores dos países escandinavos e do Reino U nido não se reúnem , de tem pos em tem pos, em conferências de cúpu la p ro testan tes; n em foi jam ais um a prá tica dos governantes da Grécia, Iugoslávia, Bulgária e U nião Soviética, esquecendo tem porariam en te suas diferenças políticas e ideológicas, p rom over encon tros regulares com base em sua adesão prévia o u atual à Igreja O rtodoxa. D o m esm o m odo, os Estados b u ­distas do leste e do sudeste asiático não constituem um liloco budista nas Nações U nidas nem em n en h u m a ou tra de suas atividades po líti­cas. N o m u n d o m oderno , a p róp ria iiléia de lal gi ii|iam ento baseado na religião pode parecer anacrônica e ale absuul.i. M .isem relação ao islã, não é anacrôn ica nem absurda. Ao lougo das tensões da G uerra Fria, e após aquele período , mais de c inqüen ta governos m uçulm a-

nos - inc lu in d o m onarqu ias e repúblicas, conservadores e radicais, adeptos do capitalism o e do socialism o, p artidário s do bloco ocid en ­tal e do bloco o rien tal, e to d a u m a gam a de graus de neu tra lidade - constru íram u m elaborado apara to de consu lta in ternacional e, em m uitos casos, de cooperação.

Em setem bro de 1969, u m a conferência de cúpu la islâm ica reu ­n ida em Rabá, no M arrocos, decid iu criar u m a en tidade cham ada O rganização da C onferência Islâm ica (O C I) , com um a secretaria p erm an en te em D jedda, na Arábia Saudita. A en tidade foi criada e se desenvolveu rap idam en te na década de 1970. Suas preocupações principais eram a ajuda aos países m uçu lm anos pobres, o apoio às m inorias m uçu lm anas em países n ão -m u çu lm an o s e a posição in ­ternacional do islã e dos m uçu lm anos - nas palavras de u m observa­dor, os d ireitos islâm icos do hom em .

Essa organização tem agora 57 Estados m em bros, além de três com status de observadores. Dois desses Estados, A lbânia e Turquia, estão, o u aspiram a estar, na Europa (a Bosnia tem apenas o status de observador); dois, S urinam e (adm itido em 1996) e G uiana (ad m iti­da em 1998), estão no hem isfério ocidental. Os dem ais estão na Ásia e na África, e, com poucas exceções, gantiaram sua independência nos ú ltim os 50 anos dos im périos da fluropa ocidental e, m ais recen­tem ente, do Soviético. A m .iior parle desses Estados tem um a p o p u ­lação quase em siia to talidade iiiuçulm ana, em bora alguns poucos tenham sido adm itidos em lim çao da força de suas significativas m i­norias m uçulm anas. Alem di-ssi-s lisiados, há im p o rtan tes m inorias m uçu lm anas em ou tros países algum as delas sem elhantes à m aio ­ria, com o na liulia, onl r.is, f-inica c religiosam ente distin tas, com o os tchetchenos e os l.n l.iios da federação Russa. A lguns países, com o a C hina, têm m inorias m uçulm anas dos dois tipos. A tualm ente, m u i­tos o u tros estão g.m li.m do m inorias m uçu lm anas em conseqüência de im igrações.

H ouve e há im porlan les lim ites à eficácia da O C I com o u m ato r no cenário polít i co i n u- rn acionai. A invasão soviética do Afeganistão

Definindo o islã 33

em 1979, u m flagrante ato de agressão co n tra urna nação m u çu lm a­na soberana, n ão evocou p ro testos sérios e foi até defendida p o r a l­guns m em bros. M ais recen tem ente , a O rganização tem deixado de se m anifestar a respeito de guerras civis em Estados m em bros com o Sudão e Som alia. Seu desem penho em questões regionais tam bém não foi significativo. E n tre 1980 e 1988, dois países islâm icos, Iraque e Irã, envolveram -se n u m a guerra devastadora, infligindo im ensos danos u m ao o u tro . A OCI nada fez, nem p ara im p ed ir a guerra nem para d ar fim a ela. Em geral, a OCI, d iferen tem ente da O rganização dos Estados A m ericanos e da O rganização da U nidade A fricana, não se ocupa de abusos de d ireitos hu m an o s e o u tro s prob lem as in ternos dos Estados m em bros; suas preocupações com a questão têm -se lim itado à situação de m uçu lm anos vivendo em países n âo -m u - çu lm anos, p rinc ipa lm en te na Palestina. N o en tan to , a OCI não deve ser desconsiderada. Suas atividades cu lturais e sociais são im p o rta n ­tes e crescentes, e o apara to que p rop ic ia p a ra consultas regulares en ­tre Estados m em bros pode ganhar im po rtân c ia à m edida que a G uerra Fria e seus efeitos p e rtu rb ad o res vão ficando para trás.

Passando da po lítica in ternacional pa ra a regional e nacional, as diferenças en tre o islã e o resto do m u n d o , em bora m enos m arcantes, são ainda substanciais. Em alguns dos países com regim es d em o crá ­ticos m u ltip artid ário s existem p artidos políticos com designações religiosas - C ristão n o O cidente, H in d u n a índ ia . Budista n o O rien ­te. M as esses p a rtid o s são relativam ente poucos, e os que desem pe­n h am papel im p o rtan te são ainda em m en o r núm ero . M esm o no caso desses ú ltim os, os tem as religiosos são, em geral, de m en o r im ­po rtân c ia em seus program as e apelos ao eleitorado. E ntretan to , na m aioria dos países islâmicos, a religião con tinua a ser um fator p o lí­tico relevante - m u ito mais no cam po dom estico , de lato, que nas questões in ternacionais ou m esm o regionais. (Ju.il a i a /ao dessa d i­ferença?

U m a resposta é óbvia: a m aior pai te dos países m uçulm anos ainda é p ro fu n d am en te m uçu lm ana, de um a form a e luim sentido

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que a m aio ria dos países cristãos já não é. É certo que, em m uito s desses últim os, as crenças cristãs e o clero que as su sten tam ainda são u m a força poderosa. E m bora seu papel não seja o m esm o que o de séculos passados, não é, de m aneira algum a, insignificante. M as em n en h u m país cristão da a tualidade os líderes religiosos podem c o n ­ta r com u m grau de crença e partic ipação com o o que co n tin u a a ser n o rm alm en te en co n trad o em terras m uçu lm anas. Em poucos países cristãos, se é que em algum , os p rinc íp ios e p ráticas cristãos estão im unes a com entários críticos o u discussões no nível em que é aceito com o n o rm al m esm o em sociedades m u çu lm anas ostensivam ente seculares e dem ocráticas. N a realidade, essa im u n id ad e privilegiada tem sido estendida, de facto, a países ocidentais o nde com unidades m uçu lm anas estão já estabelecidas e o nde crenças e p ráticas m u çu l­m anas têm garan tia de im un id ad e a críticas n u m nível que as m aio ­rias cristãs p e rd eram e as m inorias jud ias n u n ca tiveram . M ais im p o rtan te ainda; com m u ito poucas exceções, o clero cristão não exerce o u nem ao m enos dem anda o tipo de au to rid ad e pública que a inda é no rm al e aceita na m aio r parte dos países m uçulm anos.

O nível m ais elevado de fé c práticas religiosas en tre os m u çu l­m anos, em com paração com seguidores dc ou tras religiões, explica, em parte , a a titude ún ica dos m uçu lm anos frente à política; não é a explicação to tal, já que a titude sem elhante pode ser en co n trad a em ind iv íduos e m esm o em g rupos inteiros cujo com prom isso com a fé e a prá tica religiosas é, iio m .iximo, superficial. O islã é não apenas u m a questão de fé e prát ica; e tam liém um a iden tidade e u m a lealda­de que, para m uitos, trausceudem todas as dem ais.

A parentem ente, a im poi tação de noções ocidentais de pa tr io tis ­m o e nacionalism o m uilou tudo isso e levou à criação de u m a série de E stados-naçocs m odeinos que se estendem p o r to d o o m u n d o is­lâm ico, do M arro io s a Indonésia.

M as nem tudo e com o parece ser. D ois exem plos podem ser su ­ficientes. Em 1923, aiKÍs a ú ltim a guerra greco-turca, os dois gover­nos concordaram em resolver os problem as de suas m ino rias através

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de u m a troca de populações - gregos fo ram m andados da T urqu ia para a Grécia, tu rcos fo ram enviados da Grécia para a T urquia . Pelo m enos, é isso, em geral, o que con tam os livros de h istoria. Os fatos são u m tan to diferentes. O p ro toco lo assinado pelos dois governos em L ausanne em 1923, con ten d o o acordo de trocas, não fala de “gregos” e “tu rco s”. Ele define as pessoas a serem trocadas com o “se­guidores tu rcos da religião o rto d o x a grega resid indo na T u rq u ia” e “seguidores gregos da religião m u çu lm an a resid indo na G récia”. Assim , o p ro to co lo reconhece apenas dois tipos de iden tidade - um a defin ida p o r ser súdito de u m Estado, e o u tra p o r ser seguidor de u m a religião. N ão é feita qualquer referência a nacionalidades é tn i­cas ou lingüísticas. A precisão desse d o cu m en to em expressar as in ­tenções dos signatários foi con firm ada pela troca verdadeiram ente realizada. M uitos dos assim cham ados gregos da p rov íncia de Kara- m an , na A natólia tu rca , tin h am o tu rco com o língua m aterna , m as usavam o alfabeto grego para escrever e freqüen tavam os cultos das igrejas ortodoxas. M uitos dos assim cham ados tu rcos da G récia não sabiam tu rco , o u sabiam m u ito pouco , e usualm ente falavam grego - m as escreviam com o alfabeto tu rco-árabe.

U m observador ocidental, acostum ado a u m sistem a ocidental de classificação, poderia m u ito bem ter conclu ído que o que os go­vernos da G récia e da T urquia conco rdaram em fazer, e fizeram , não foi a troca e a repatriação de m inorias nacionais gregas e turcas, m as sim u m a d up la deportação p ara o exílio - de m uçu lm anos gregos para a Turquia, de tu rcos cristãos p ara a Grécia. Até m u ito recente­m ente, a G récia e a T urquia, am bas dem ocracias ocidentalizadas, a p rim eira , m em b ro efetivo da U nião E uropéia, a segunda, candidata, reservavam u m cam po específico para religião n os d ocum en tos de iden tidade oficiais.

U m segundo exem plo é o Egito. Poucos países, (alvez n en h u m ou tro , têm m elhores elem entos p ara reclam ar seu caráter de nação - u m país claram ente caracterizado tan to pela h istória quan to pela geografia, com u m a h istó ria in in te rru p ta de civili/.açao que se esten-

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de p o r m ais de cinco m il anos. M as os egipcios têm diversas id en ti­dades, e, na m a io r parte dos ú ltim os 14 séculos - isto é, desde a conqu ista árabe-islám ica d o Egito n o século VII e a subseqüen te isla- m ização e arabização do país - ra ram en te a egipcia tem sido a p re d o ­m inante: têm precedência a iden tidade cu ltu ra l e lingüística do arab ism o ou, d u ran te a m aio r p arte de sua h isto ria , a iden tidade reli­giosa do islã. C om o nação, o Egito é urna das m ais antigas do m u n ­do. C om o E stado-nação , é u rna criação m o d e rn a e a inda enfren ta m u ito s desafíos in ternos. A tualm ente , o m ais forte desses desafíos, tam b ém en co n trad o em alguns o u tro s países m uçu lm anos, vem de g rupos islâm icos radicais, do tip o co m u m en te descrito hoje, em bora de fo rm a equivocada, com o “fu ndam en ta lista” .

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Desde q u ando seu F u n d ad o r era vivo e, p o rtan to , conform e suas sa­gradas escrituras, o islã está associado, n o esp irito e na m em o ria dos m uçu lm anos, com o exercício do p o d er político e m ilitar. O islã clás­sico reconhecia a d istinção en tre coisas desse m u n d o e coisas do p ró ­xim o, en tre reflexões pias e m undanas. O que não reconhecia erá um a institu ição separada, com hierarqu ia e leis p róprias, para regu­lar questões religiosas.

Isso significa en tão que o islã é urna teocracia? N o sen tido de que D eus é visto com o o suprem o soberano, a resposta teria que ser u m decisivo sim . No sen tido de governo p o r u m sacerdocio, defin iti­vam ente não. O su rg im ento de urna h ierarqu ia sacerdotal que veio a assum ir a au to ridade mais elevada no Estado é urna inovação m o ­dern a e urna con tribu ição exclusiva do aiatolá K hom eini do Irã ao pensam ento e .i experiência do islã.

A Revolução Islâmica no Irã, com o as revoluções Francesa e Russa às quais se assem elha em m uitos aspectos, teve u m trem endo im pacto não apenas naquele país e en tre seu p ró p rio povo, m as ta m ­b ém em todos os países e povos com os quais tin h a u m universo d is­cursivo em conunn . C om o as revoluções Francesa e Russa em suas

respectivas épocas, despertou trem enda esperança e en o rm e e n tu ­siasm o. C om o aquelas revoluções, sofreu seu T erro r e sua guerra de in tervenção; com o elas, tem seus jacobinos e seus bolcheviques, de­te rm inados a esm agar q u a lquer sinal de p ragm atism o ou m o d era ­ção. E, tal com o aquelas revoluções, m ais p articu la rm en te a Russa, tem tam b ém sua p ró p ria rede de agentes e em issários lu tando , de vá­rias form as, p ara p ro m o v er a causa revolucionária ou , pelo m enos, o regim e visto com o sua m aterialização.

A palavra revolução tem sido m u ito m al usada no m o d ern o O rien te M édio, sendo aplicada a m u ito s eventos - o u dem andada p o r eles - que seriam m ais adequadam ente designados pela expres­são francesa coup d ’état, pela palavra alem ã Putsch o u pela espanhola pronunciam iento. É in teressante que a experiência po lítica dos povos de língua inglesa não ofereça u m te rm o equivalente. O que acon te­ceu n o Irã não foi nada disso, m as tratava-se, em suas origens, de u m au tên tico m ov im en to revolucionário p ró -m u d an ça . C om o seus a n ­tecessores, deu dem asiadam ente errado em m uito s aspectos, levan­do à tiran ia n o país e ao te rro r e à subversão fora. D iferen tem ente da França e da Rússia revolucionárias, o Irã revolucionário carece dos m eios, dos recursos e das com petências para se to rn a r um a autoridade e um a am eaça expressivas em esfera m undial. A am eaça que oferece é, principal e to talm ente, para os m uçulm anos e para o p róp rio islã.

A o n d a revolucionária no islã tem diversos com ponentes. U m deles é u m senso de hum ilhação: o sen tim en to de u m a com unidade de pessoas acostum adas a se verem com o as únicas guardiãs da ver­dade de Deus, que receberam Dele o com ando de levá-la aos infiéis e que, de repente, vêem -se dom inadas c exploradas p o r aqueles m es­m os infiéis. M esm o quan d o já não mais ilom inadas, suas vidas são m udadas e p ro fu n d am en te afetadas, pois se scnlem tiradas do verda­deiro cam inho islâm ico e levadas para o iilios. A lu im ilbação ju n ­tou-se frustração, à m edida que lo tam cxpei im eiilados vários rem édios, a m aio r p arte im p o rtad a do O cidente, e, um após ou tro , todos falharam .

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Em seguida à hum ilhação e à frustração veio u m terceiro co m ­ponen te , necessário para o ressurg im ento - u m a nova confiança e u m senso de p o d er renovado. Isso se m anifestou a p a rtir da crise do petró leo de 1973, quando , em apoio à guerra do Egito co n tra Israel, os países árabes p ro d u to res de petró leo usaram tan to o fo rnec im en­to quan to o preço com o arm as que se p rovaram m u ito eficazes. A r i­queza, o o rgulho e a au toconfiança que resu ltaram do episódio foram reforçados p o r o u tro elem ento tam b ém novo; o desprezo. Em con ta to com a E uropa e a A m érica, os visitantes m uçu lm anos com e­çaram a observar e descrever o que v iram com o a degradação m oral e a conseqüente fragilidade da civilização ocidental.

Em u m tem po de tensões crescentes, ideologias vacilantes, leal- dades exauridas e institu ições decadentes, u m a ideologia expressada em term os islâm icos oferecia diversas vantagens: u m a base em o ­cionalm ente fam iliar para a iden tidade grupai, a so lidariedade e a ex­clusão; u m a base aceitável de leg itim idade e au toridade; um a form ulação im edia tam ente inteligível de p rincíp ios a serem usados tan to n u m a crítica do presen te qu an to n u m p ro g ram a para o fu turo . Através de tu d o isso, o islã pôde prover os sím bolos e slogans m ais efetivos para a m obilização, seja a favor de u m a causa ou u m regim e, seja con tra eles.

Os m ovim entos islâm icos tam bém têm o u tra im ensa vantagem q u an d o com parados com todos os seus com petidores. Nas m esq u i­tas, eles d ispõem de u m a rede de associação e com unicação que m es­m o o m ais d ita to ria l dos governos não pode con tro la r in teiram ente . De fato, d itadu ras b ru ta is os ajudam , m esm o não tendo tal intenção, ao e lim inar oposições com petidoras.

O islam ism o radical, ao qual se to rn o u usual dar o no m e de fun- dam entalism o islâm ico, não é um único m ov im en to hom ogêneo. Elá m uitos tipos de fundam en ta lism o islâm ico em diferentes países e, às vczcs, den tro de um m esm o país. A lguns são patrocinados pelo Estado - prom ulgados, usados e prom ovidos p o r u m o u o u tro go­verno m u çu lm an o para seus p róp rio s propósitos; ou tros são genuí-

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nos m ovim entos populares de base. E ntre os m o v im en tos islâm icos p a troc inados pelo E stado há tam bém vários tipos, tan to radicais q u an to conservadores, tan to subversivos q u an to preventivos. M ovi­m en tos conservadores e preventivos têm sido in iciados p o r gover­nos n o p o d er b u scando p ro teger-se de urna o nda revolucionária. São desse tipo os m ovim entos encorajados, em diferentes épocas, pelos egipcios, paquistaneses e, p rinc ipalm ente , sauditas. O ou tro tipo , m u ito m ais im p o rtan te , vem de baixo, com urna au tén tica base popu lar. O p rim eiro desses a to m ar o p o d er e exercê-lo com m aior sucesso foi o m o v im en to conhecido com o a Revolução Islâm ica no Irã. Regim es islâm icos radicais agora d o m in am n o Sudão e, p o r a l­gum tem po , d o m in aram no Afeganistão, en q u an to m ovim entos is­lâm icos constituem grandes am eaças à já am eaçada o rd em existente em o u tro s países, especialm ente Argélia e Egito.

Os fundam entalistas m uçu lm anos, d iferen tem ente dos g rupos p ro testan tes cujo nom e foi transferido p ara eles, não diferem da co r­ren te do m in an te em questões de teologia e in te rp re tação dos textos sagrados. Sua crítica, em sen tido m ais am plo, é relativa a to d a a so ­ciedade. O m u n d o islâm ico, na op in ião desses fundam entalistas, to ­m o u u m cam inho errado. Seus governantes cham am a si m esm os m uçu lm anos e fingem ser o islã, m as são, de fato, apóstatas que ab o ­liram a Lei Sagrada e ado taram leis e costum es estrangeiros, infiéis. A única solução, segundo eles, é um re to rn o ao au tên tico m o d o de vida m uçu lm ano , c, para isso, <i rem oção dos governos apóstatas é um p rim eiro passo essencial. Os fu iu lam enlalislas são an tiociden tais no sentido de que vêem o O cideiile com o a lonle do mal que está co r­roendo a sociedade m uçu lm ana, m.is scai prim eiro ataque está d ir i­gido con tra seus p róp rio s govr-rnanU's e lideres. Assim foram os m ovim entos que resu ltaram na ilei i ubarla do xá do Irã em 1979 e no assassinato do presidente Sadal, do Lgilo, dois anos depois. A m bos eram vistos com o sin tom as de um mal mais p ro fu n d o a ser rem ed ia­do com u m a lim peza in terna. No Egito, eles m ataram o dirigente.

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m as não conseguiram se ap ro p ria r do Estado; no Irã, destru íram o regim e e criaram o seu p róp rio .

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O islã é um a das grandes religiões do m u n d o . D eu d ignidade e sen ti­do a vidas toscas e em pobrecidas. E nsinou ho m en s de diferentes ra ­ças a viver em irm an d ad e e povos de d iferentes credos a viver lado a lado em sensata tolerância. In sp irou u m a grande civilização na qual ou tros, além dos m uçu lm anos, tiveram vidas criativas e proveitosas e que, p o r suas realizações, en riqueceram o m u n d o inteiro. M as o islã, com o ou tras religiões, tam b ém conheceu períodos nos quais in sp i­rou em alguns de seus seguidores u m esp írito de ód io e violência. É u m in fo rtú n io nosso que tenham os que con fron ta r parte do m u n d o m u çu lm an o n o m o m en to em que atravessa u m desses períodos, e q u ando a m aio r p arte daquele ódio - m as não todo ele, de fo rm a al­gum a - está d irig ido co n tra nós.

Por quê? N ão devem os exagerar as d im ensões do problem a. O m u n d o m u çu lm an o está longe de ser u n ân im e em sua rejeição do O cidente, e nem as regiões m uçu lm anas do Terceiro M undo têm es­tado sozinhas em sua hostilidade. Existem ainda núm eros significa­tivos de m uçu lm anos, em alguns lugares talvez a m aio ria deles, com os quais partilh am o s algu mas crenças e aspirações básicas de n a tu re ­za cu ltu ral e m oral, social e política; existe u m a significativa presença ocidental - cu ltural, econôm ica, d ip lom ática - em terras m u çu lm a­nas, algum as das quais sao aliadas do O ciden te . M as há u m a m aré de ódio que aflige, alarm a c, acim a de tudo , desconcerta os no rte- am ericanos.

Frcqiicntcm enle esse odio vai além do nível de hostilidade a in ­teresses, ações, políticas ou m esm o países específicos, e se tran sfo r­m a em rejeição à civilização ocidental p ro p riam en te dita, não tan to pelo que faz, m as pelo que é e [k To s princíp ios e valores que p ra tica e professa. Na verdade, esses são vistos com o in trínsecam ente m aléfi-

COS, e os que os p ro m o v em ou aceitam são considerados “in im igos de D eus”.

Essa frase, que reaparece tão freqüen tem ente nas declarações da liderança iran iana, tan to em seus p roced im entos ju ríd icos quan to nos p ro n u n c iam en to s políticos, pode parecer m u ito estranha ao m o d ern o observador externo, seja religioso o u secular. A idéia de que D eus tem inim igos e necessita de ajuda h u m an a para iden tifi­cá-los e elim iná-los é u m tan to difícil de assim ilar. N o en tan to , não é assim tão estranha. O conceito de in im igos de D eus era fam iliar na A ntigü idade pré-clássica e clássica, tan to no A ntigo e N ovo Testa­m en tos q u an to no Alcorão.

N o islã, a lu ta en tre bem e m al adqu iriu , desde o com eço, d i­m ensões políticas e m esm o m ilitares. Deve-se recordar que M aom é era não apenas u m profeta e m estre, tal com o os fundadores de o u ­tras religiões; era tam b ém u m dirigente e u m soldado. Daí que sua lu ta envolvesse u m Estado e suas forças arm adas. Se os com batentes na guerra pelo islã, a guerra san ta “no cam inho de D eus”, estão lu ­tan d o p o r Deus, segue-se que seus oponen tes estão lu tan d o con tra D eus. E dado que D eus é, em princíp io , o soberano , o suprem o chefe do Estado islâm ico, ten d o o Profeta e, depois dele, os califas com o Seus vice-regentes, en tão D eus, com o soberano, com anda o exército. O ex érc ito é o ex é rc ito de D eus e o in im ig o é o in im ig o de D eus. A o b rig ação dos Seus so ld ad o s é d esp ach ar os in im ig o s, tão rá p i­do qu an to possível, para o lugar onde D eus os castigará, o u seja, a ou tra vida.

A tualm cnle, a iiucsiao t h.ive (|ue ocupa os form uladores de p o ­líticas no O cidente pode sei expiessad.i sim |)lesm entc com o: será o islã, fundam eiitalista oli nao, iiiii.i aiiu-.u,.i p.iia o O cidenie? A essa questão sim ples têm sido d.idas varias respusi.is l.inibem sim ples, e, sendo assim , a m a io r p arte apon ía na direção ei i.ul.i. I )e .leordo com u m a escola de pensam ento , após o desm anlel.im eiilo da União So­viética e do m ov im en to com unista , o islã e o lundaiueiil.ilism o islâ­m ico passaram a o cu p ar seus lugares com o a m aio r am eaça ao

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O cidente e ao m o d o de vida ocidental. De acordo com o u tra escola de pensam ento , os m uçu lm anos, inc lu indo os fundam entalistas ra ­dicais, são pessoas basicam ente decentes, am antes da paz e devotas, algum as das quais foram levadas além do suportável p o r todas as coisas terríveis que nós, do O cidente, tem os feito a elas. Escolhem os vê-los com o inim igos p o rq u e tem os u m a necessidade psicológica de um in im igo para sub stitu ir a finada U nião Soviética.

A m bas as perspectivas con têm elem entos de verdade; am bas es­tão perigosam ente erradas. O islã, com o tal, não é u m in im igo do O cidente, e há porções crescentes de m uçu lm anos, tan to lá com o aqui, que desejam nada m ais que um a relação m ais p róx im a e m ais am istosa com o O cidente e o desenvolvim ento de institu ições d em o ­cráticas em seus p ró p rio s países. M as um n ú m ero significativo de m uçu lm anos - especialm ente aqueles que cham am os de fu n d am en ­talistas, m as não apenas eles - é hostil e perigoso, não p o rque neces­sitem os de u m inim igo, m as p o rque eles, sim.

N os ú ltim os anos tem havido algum as m udanças de p o n to de vista e, conseqüentem ente, de táticas en tre os m uçu lm anos. Alguns deles a inda vêem o O cidente em geral - e seu atual líder, os Estados U nidos, em particu la r com o um antigo e irreconciliável in im igo do islã, o único sério obstáculo à restauração da fé e da lei de D eus em seus países e ao triu n fo definitivo das m esm as em todo o m undo . Para esses m uçu lm anos, iiáo há ou tro cam inho senão a guerra até a m orte , em obediência ao t|uc vêem com o os m an d am en to s de sua fé. H á ou tros que, em bora perm anecendo m uçu lm anos co m p ro m eti­dos e m u ito consc ientes tias falhas da m o d ern a sociedade ocidental, a indaassim lam bem veem seus m é r i to s - s e u esp írito indagador, que p roduz iu a ciêiu i,i e ,t leenologia m odernas; suas preocupações com a liberdade, t|ue t riaram m odernos governos dem ocráticos. Esses ú l­tim os, em bora m anieiu lo suas p róprias crenças e sua p ró p ria c u ltu ­ra, buscam jun tai se a nós na cam inhada em direção a u m m u n d o m ais livre e m elhor. 1 Ia ou tros a inda que, apesar de verem o O ciden ­te com o seu p riiu ipal inim igo e com o fonte de todos os m ales, estão.

Definindo o islã 43

ainda assim , conscientes do p o d er ocidental e buscam algum a aco­m odação tem p o rá ria a fim de m elho r se p rep ara rem para a ba talha final. Seria sábio de nossa p arte n ão co n fu n d ir os segundos com os terceiros.

44 A crise do islã

2 A Casa da Guerra

Ao longo da h isto ria hu m an a , m uitas civilizações floresceram e de­caíram - C hina, índ ia , Grécia, R om a e, antes delas, as antigas civili­zações do O rien te M édio. D u ran te os séculos que a h istó ria européia cham a de m edievais, a m ais avançada civilização do m u n d o era, sem dúvida, a do islã. O islã pode ter sido igualado - o u m esm o, em al­guns aspectos, u ltrapassado - pela ín d ia e pela C hina, m as essas duas perm aneceram essencialm ente circunscritas a um a região e a um grupo étnico, e seu im pacto sobre o resto do m u n d o foi, p o r isso m esm o, lim itado. A civilização do islã, em contraste , tin h a perspecti­vas ecum ênicas e, em suas aspirações, era explicitam ente assim.

U m a das tarefas elem entares legadas aos m uçu lm anos pelo P ro ­feta era ã jihad . Essa palavra vem da raiz arábica j-h -d , significando basicam ente em penho ou esforço. C om freqúência, é usada em tex ­tos clássicos com um seu lido bastante p róx im o de batalha e, p o r ta n ­to, tam bém de luta. h usualm ente c itada n o versículo do A lcorão “esforçando-se iio (.auiinho de D eus” (p.ex, IX, 24; LX, 1 etc.), e tem recebido várias iiilerprelações no sen tido de esforço m ora l e lu ta a r­m ada. Em ger.il, e bastante fácil entender, pelo contexto, qual dessas nuances de s igu ilitado tem -se em m ente. N o A lcorão, a palavra ocorre m uitas ve/a s uesscs dois sentidos d istin tos, m as relacionados. N os prim eiros tap ilu lo s , datados do p eríodo em M eca, q u an d o o Profeta ainda ci-.i o lulcr de u m g rupo m in o ritá rio lu tan d o con tra a

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oligarquia pagã do m in an te , a palavra freqüen tem en te tem o sentido, p referido p o r exegetas m odern istas, de esforço m oral. N os últim os capítu los, revelados em M edina, onde o Profeta d irig ia o Estado e com andava seu exército, jih a d geralm ente tem u m a conotação p rá ­tica m ais explícita. Em m u ito s casos, o significado m ilitar é in eq u í­voco. U m b o m exem plo é a passagem IV, 95: “Aqueles crentes que perm anecem em casa, além dos incapacitados, n ão são iguais àq u e­les que se em p en h am n o cam inho de D eus com seus bens e suas pes­soas. D eus s ituou os que se em p en h am com seus bens e suas pessoas em u m nível m ais elevado do que aqueles que perm anecem em casa. D eus p ro m eteu recom pensa a todos que crêem , m as concede aos que lu tam u m a recom pensa m aio r, d istingu indo-os dos que p e rm a­necem em casa.” Juízos sem elhantes podem ser encon trados em VIII, 72; IX, 4 1 , 81 , 88; LXVI, 9 etc.

A lguns m uçu lm anos m odernos, especialm ente ao se d irig irem ao m u n d o exterior, explicam a obrigação da jih a d n u m sentido espi­ritual e m oral. A esm agadora m aio ria das au to ridades m ais antigas, citando as passagens relevantes do Alcorão, os com entários e as tra ­dições do Profeta, discute jih a d em term os m ilitares. Segundo a lei is­lâm ica, está de acordo com as escrituras fazer g uerra co n tra quatro tipos de inim igos: infiéis, apóstatas, rebeldes e band idos. E m bora os qu a tro tipos de guerras sejam legítim os, apenas os dois prim eiros con tam com o jihad. P o rtan to , a jih a d é u m a obrigação religiosa. Ao d iscu tir a obrigação da guerra santa, os ju ristas m uçu lm anos clássi­cos d istinguem entre g uerra ofensiva e defensiva. Na ofensiva, a jihad é u m a obrigação da com un idade m u çu lm an a com o um lodo, e pode ser cum prida , po rtan to , p o r com baten tes vo lun tá rio s e profissionais. Em u m a guerra defensiva, to rn a-se u m a obrigação de Iodos os ind i­víduos fisicam ente aptos. É esse p rinc íp io que O sam a bin l .adcn in ­vocou em sua declaração de guerra con tra os Estados Unidos.

D uran te a m aio r p arte dos 14 séculos de h istória m uçu lm ana registrada, a jih a d foi m ais com um en te in te rp re tada c o m o luta a r ­m ada p ara defesa o u au m en to do p o d er m uçu lm ano . N.i ii adição

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m uçulm ana, o m u n d o é d ivid ido em duas casas: a Casa do Islã [Dar al-Islam), na qual existem governos m u çu lm an o s e onde prevalece a lei m uçu lm ana, e a Casa da G uerra {Dar al-H arh), o resto do m u n ­do, a inda h ab itado p o r infiéis e, m ais im p o rtan te , sob governos infiéis. A presunção é que a obrigação da jih a d con tinuará , in te r­rom pida apenas p o r tréguas, até que o m u n d o to d o adote a fé m u ­çulm ana ou se subm eta ao m an d o m u çu lm an o . Aqueles que lu tam na jih a d qualificam -se para recom pensas nos dois m u ndos, b u tim nesse, paraíso no próx im o.

Nessa questão, com o em tan tas ou tras, a o rien tação do A lcorão c am pliada e elaborada ñas hadiths, trad ições que tra tam dos atos e palavras do Profeta. M uitas dessas referem -se à guerra santa. Esses são alguns exem plos:

A jih ad é sua obrigação sob qualquer com andante, seja ele divino ou iníquo.

É m elhor um dia e um a noite de lutas na fronteira do que um m ês de jejum e prece.

A picada de uma formiga causa mais dor a um mártir do que a ferida de uma arma, pois essa é mais bem -vinda para ele do que água fres­ca e doce em um dia quente de verão.

Aquele que morre sem ter participado de um a cam panha morre num certo tipo de desci eiiça.

D eus se maravilha com ac|ueles [aos quais o islã é trazido por conquis­ta] que são .in asiados ao paraíso em cadeias.

Aprenda a atii'.ii', pois o es[iaço entre o alvo e o arqueiro é um dos jar­dins do paiaiso.

O paraíso esl.i .i som hi .i de espadas.

A trad ição l.nnhein esl.ibdcce algum as regras de guerra para a condução da jihati:

Saiba que os prisioiieiios devem ser bem tratados.A pilhagem nao e m.iis leg.il do que carne podre.D eus proibiu m.il.ii m u lh e re s e crianças.

A casa da guerra 47

Os m uçulm anos estão obrigados por seus acordos, desde que esses es­tejam em conform idade com a le i f

Os tra tad o s ju ríd icos convencionais relacionados com a sharia no rm alm en te con têm u m capítu lo sobre ajihad , e n tend ida no sen ti­do m ilita r com o guerra regular con tra infiéis e apóstatas. M as esses tra tad o s prescrevem co m p o rtam en to correto e respeito às regras da guerra em questões com o o início e o té rm in o das hostilidades e o tra tam en to de não -com baten tes e prisioneiros, p ara não falar dos enviados d ip lom áticos.

D u ran te a m aio r p arte da h istó ria reg istrada do islã, desde o tem po em que vivia o profeta M aom é, a palavra jih a d foi usada em sen tido p rincipalm en te m ilitar. M aom é com eçou sua m issão profé­tica em M eca, sua cidade natal, m as, devido à perseguição sofrida p o r ele e seus seguidores nas m ãos da o ligarquia pagã que governava a cidade, m ud o u -se com eles p ara M edina, onde as trib o s locais os acolheram e fizeram do Profeta seu árb itro e, depois, seu governante. Essa m igração de M eca p a ra M edina é conhecida em árabe com o a Hijra, às vezes escrita de fo rm a inco rre ta com o Hegira** e traduzida equivocadam ente co m o “fuga.” A era m u çu lm an a tem in ício com o com eço do ano árabe no qual oco rreu a Hijra. A p r im e m jih a d foi realizada pelo Profeta co n tra os governantes de sua cidade nata l e te rm in o u com a conquista de M eca n o m ês do R am adã do ano 8 da Hijra, co rrespondendo a janeiro do ano 630 da era cristã. A liderança de M eca rendeu-se quase sem lutar, e os hab itan tes, com exceção d a ­queles acusados de insultos específicos con tra o Profeta o u con tra um m uçu lm ano , receberam im u n id ad e para suas vidas e p roprieda-

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* Esses e o u tros textos sobre a jihad serão encontrados nas edições s landard das tra ­dições do Profeta, alguns deles tam bém disponíveis em inglês. Os citados acim a fo­ram tirados de ‘Ala ai-D in ‘Ali ibn H usam al-D in a l-M uttq i, Kaiiz al-'Ummal, 8 partes (H iderabad, 1312; 1894-1895), vol.2, p.252-86.*’* Em português, Hégira.

des, desde que se com portassem confo rm e o acordo. A p róx im a ta ­refa era a extensão da au to rid ad e m u çu lm an a ao resto da A rábia e, sob os califas sucessores do Profeta, ao resto do m u n d o .

Nos prim eiros séculos da era islám ica, isso parecia possível e, na realidade, provável. D en tro de u m tem p o ex trao rd inariam en te c u r­to, os exércitos conquistadores m uçu lm anos haviam d errubado o antigo im pério da Pérsia e inco rp o rad o todos os seus territó rio s aos dom ínios do califado, ab rindo cam inho para a invasão da Ásia C en­tral e da índ ia . A Oeste, o Im pério B izantino ainda não havia sido derrubado , m as g rande parte de seus te rritó rio s fora tom ada. As p ro ­víncias en tão cristãs da Síria, Palestina, África do N orte e do Egito fo­ram incorporadas e, a seu devido tem po, islam izadas e arabizadas, passando a servir com o bases para a subseqüente invasão da Europa c a conquista da E spanha e de Portugal, bem com o do sul da Itália. Por volta do in ício do século V III, os exércitos conquistadores árabes já haviam avançado além dos P irineas, até a França.

Após vários séculos de in in te rru p tas v itórias, a jih a d árabe foi fi­nalm ente refreada e repelida pela Europa cristã. N o Leste, os b izan ti­nos m an tiveram a g rande cidade cristã de C o n stan tinopla , repelindo um a série de ataques árabes. N o Oeste, com eçaram o longo processo conhecido na h istó ria espanhola com o a Reconquista, que acabou resultando na expulsão dos m uçu lm anos dos te rritó rio s que haviam conqu istado na Itália e na Península Ibérica. Tam bém foi deslancha­da u m a tentativa de levar a R econquista ao O rien te M édio e recobrar o local de nascim ento de Cristo, tom ado pelos m uçu lm anos no sécu­lo VII. Essa tentativa, conhecida com o as cruzadas, falhou to ta lm en ­te, e os cruzados foram expulsos em debandada.

M as a jih a d não havia term inado. U m a nova fase foi inaugurada, agora não pelos árabes, mas por turcos e tártaros, recentem ente in ­corporados ao islã. Esses loi am capazes de conqu istar a até en tão te r ­ra cristã da A natólia e, em m.iio de 1453, to m aram C onstan tinop la , que a p a rtir daí to rn o u se a capital dos sultões o tom anos, sucessores do an tigo califado na lulei aiiça da jihad islâm ica. Os o tom anos nos

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Bálcãs e os tá rta ro s islam izados na Rússia reassum iram a ten ta tiva de co nqu ista r a E uropa, dessa vez com eçando pelo leste, e, p o r algum tem p o , pareciam estar p róx im os do sucesso.

M as, novam ente, a cristandade européia foi capaz de expulsar os invasores e, de novo, agora com m elhores resultados, de co n ­tra -a taca r os dom ín ios do islã. A jih a d en tão to rnara-se quase to ta l­m en te defensiva - resistindo à R econquista na E spanha e na Rússia, resistindo aos m ovim entos de auto liberação nacional dos cristãos su b m e tid o s ao Im p é rio O to m a n o e, f in a lm en te , ta l q u a l o p o n to de vista dos m uçu lm anos, defendendo o coração da te rra islam ita con tra o a taque de infiéis. Essa fase veio a ser conhecida com o im p e­rialism o.

M esm o nesse período de re tirada, a jih a d ofensiva de fo rm a al­gum a foi abandonada. Em 1896, os afegãos invad iram as regiões m on tan h o sas de E lindu Kuch onde é agora o nordeste do A feganis­tão. Até então, os hab itan tes eram não -m u çu lm an o s, e a região era, p o rtan to , conhecida pelos m uçu lm anos com o C afiristão, “te rra dos que não crêem ”. Após a conqu ista afegã, foi renom eada N uristão , “te rra de luz”. D uran te o m esm o período , jihads de vários tipos fo­ram conduzidas na África co n tra populações não -m uçu lm anas. M as, em sua m aio r parte , o conceito, a p rática e a experiência da j i ­had n o m o d ern o m u n d o islâm ico têm sido, em sua quase to talidade, de natu reza defensiva.

O uso p red o m in an tem en te m ilita r do te rm o co n tin u o u até tem pos relativam ente m odernos. N o Im pério O tom ano , a cidade de Belgrado, um a base avançada na guerra con tra os austríacos, recebeu o nom e de Casa da Jihad {Dar al-Jihad). No início do século XIX,

q uan d o M uham m ad ‘Ali Paxá, o líder m o d c rn i/a d o r do Egito, refo r­m o u suas forças arm adas e sua adm in istração seguindo (cs gêneros francês e britânico , foi criado u m “d ep artam en to de gLicrra” para a d ­m inistrá-las. Era conhecido em árabe com o o Divã dos A ssuntos da Jihad {Diwan al-Jihadiyya), e seu chefe era o superv iso r dos assuntos da jih a d {Nazir al-Jihadiyya). Seria possível citar o u tro s exem plos

50 A crise do Islã

A casa da guerra 51

nos quais a palavra, jih a d p erd eu seu aspecto sacro, conservando ape­nas sua conotação m ilitar. N os tem pos m odernos, tan to o uso m ili­ta r q u an to o m oral do te rm o fo ram revividos, e são en tend idos e em pregados de m aneiras diversas p o r diferentes grupos de pessoas. O rganizações que, na a tualidade, se a tribuem o no m e de Jihad na C axem ira, T chetchênia, Palestina e em o u tro s lugares, evidente­m en te não usam a palavra para d en o ta r em p en h o m oral.

A jih a d é apresen tada, às vezes, com o o equivalente m uçu lm ano das cruzadas, e as duas são vistas com o m ais o u m enos equivalentes. Em um certo sentido , isso é verdadeiro - am bas foram proclam adas e lançadas com o guerras santas da fé verdadeira con tra u m inim igo infiel. M as há urna diferença. As cruzadas são u m evento ta rd io na h istó ria crista e, de certo m odo , m arcam u m afastam ento radical dos valores básicos cristãos, tal com o expressos nos Evangelhos. A cris­tandade estivera sob a taque desde o século VII, e havia perd ido vastos te rritó rio s para o d om in io m uçu lm ano; o conceito de urna guerra santa, m ais com um en te urna guerra justa, era fam iliar desde a A n ti­güidade. A inda assim , no longo conflito en tre islam ism o e c ris tanda­de, as cruzadas fo ram tardias, lim itadas e de relativam ente pouca duração. A jihad , ao con trário , está presente desde o in icio da h is tó ­ria islâm ica - nos textos sagrados, na v ida do Profeta e ñas condutas de seus com panheiros e sucessores im ediatos. C o n tin u o u a existir ao longo da h istó ria islâm ica e m an tém seu apelo até os dias atuais.

A palavra cruzada deriva, obviam ente, de cruz, e denotava o rig i­nalm ente urna guerra san ta da cristandade. M as, no m u n d o cristão, há m u ito perdeu aquele significado, sendo usada no sen tido geral de urna cam panha de o rien tação m oral po r urna boa causa. Pode-se in i­ciar urna cruzada pelo m eio am biente , p o r despoluição das águas, p o r m elhores serviços sociais, pelos direitos das m ulheres e p o r toda urna gam a de cansas. O único contexto no qual a palavra cruzada n ão é usada hoje em di.i c juslam ente no sen tido religioso original. Jihad tam bém é usada em varios sentidos, m as, ao con trá rio de cru­zada, m anteve sen sigiiilicado orig inal principal.

B S C s h /

Aqueles que são m o rto s m jih a d são cham ados m ártires, shahid ~ em árabe e em ou tras línguas m uçulm anas. A palavra m ártir vem do grego m artys (“testem unha”) e, no uso ju d a ico -cristão, designa aquele que está p reparado para sofrer to rtu ra e m o rte em vez de re ­nu n c ia r à sua fé. Seu m artírio é, assim , u m testem unho daquela fé e de sua disposição de sofrer e m o rre r p o r ela. A palavra árabe shahid tam b ém significa “testem unha” e é u sualm ente trad u z id a com o “m á r tir”, m as tem u m a conotação bastan te diferente. O uso islâm ico do te rm o m artírio é no rm alm en te in te rp re tado com o m o rte em um a jihad, e sua recom pensa é a b em -aven tu rança eterna, descrita com certo detalhe em textos religiosos m ais antigos. O suicídio, ao co n ­trário , é um pecado m o rta l e leva à danação eterna, m esm o para aqueles que, de o u tra form a, te riam garan tido u m lugar no paraíso. Os ju ristas clássicos d istinguem claram ente en tre defro n ta r a m orte nas m ãos do in im igo e m atar-se com as p róp rias m ãos. A p rim eira leva ao céu, a o u tra , ao inferno. A lguns ju ristas fundam entalistas m od ern o s e ou tros têm obscurecido o u m esm o repud iado essa d is­tinção, m as sua op in ião de fo rm a algum a é aceita unan im em en te . O ho m em -b o m b a, p o rtan to , está assum indo um risco considerável, decorren te de um a sutileza teológica.

D ado que a guerra san ta é u m a obrigação da fé, tem u m a regula­m entação elaborada na sharia . Os que lu tam em u m a jih a d são ins­tados a não m ata r m ulheres, crianças e idosos - a m enos que esses ataquem p rim eiro - , a não to r tu ra r ou m u tila r p risioneiros, a avisar a tem po sobre o recom eço das hostilidades após u m a trégua e a h o n ­ra r acordos. Juristas e teólogos m edievais d iscu tem com certa m in u - ciosidade as regras da guerra, inc lu indo questões com o arm as perm itidas ou proibidas. Existe até algum a discussão nos textos m e­dievais sobre a legalidade de m ísseis e guerra quím ica, a p rim eira relacionada a m anganelas e catapultas, a segunda, a flechas envene­nadas e ao envenenam ento dos reservatórios de água do inim igo. H á u m a variação considerável a respeito desses pon tos. C ertos juristas perm item , alguns lim itam , o u tros desaprovam o uso dessas arm as. A

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razão apresen tada para esse cu idado são as m ortes ind iscrim inadas que p roduzem . Em n e n h u m m o m en to os textos básicos do islã o r ­denam o te rro rism o e o assassinato. Em m o m en to algum - pelo m e ­nos que eu saiba - eles sequer consideram o m assacre aleatorio de circunstantes.

Os juristas insistem em que os espólios da guerra devem ser u m beneficio incidental, não o p ropósito principal. A lguns chegam a d i­zer que, se vêm a to rnar-se o objetivo p rincipal, isso invalida a jih a d e anula seus beneficios, se não nesse m u n d o , en tão no próxim o, k j i ­had, para ter qualquer valor legal, tem que ser em preend ida “no ca­m inho de D eus” e não em nom e de ganhos m ateriais. Existem, todavia, reclam ações freqüentes sobre o uso do h o n rad o nom e áa j i ­had p a ra propósitos desonrosos. Juristas africanos, em particu lar, la ­m entam o uso do te rm o jih a d p o r caçadores de escravos para justificar suas depredações e estabelecer a p rop riedade legítim a de suas vítim as. A Lei Sagrada prescreve b o m tra tam en to para não- com batentes, m as concede aos vencedores d ireitos extensivos sobre a propriedade e tam b ém sobre as pessoas e as fam ílias dos vencidos.1 )e acordo com o costum e universal da A ntigüidade, inim igos c ap tu ­rados na guerra e ram escravizados, ju n to com suas fam ílias, e p o d e ­riam ser vendidos ou m an tid o s pelo vencedor p ara seu uso. O islã trouxe u m a m odificação dessa regra, lim itan d o o d ireito à escraviza- ção apenas daqueles cap tu rados em um a jihad, e em n en h u m a o u tra form a de guerra.

As regras relativas a u m a guerra con tra apóstatas são u m tan to diferentes, e sem dúv ida m ais rigorosas que as p ara u m a guerra co n ­tra infiéis. O apóstata o u renegado, aos o lhos m uçu lm anos, é m u ito p ior do que o infiel. O infiel não v iu a luz, e há sem pre a esperança de que, u m dia, ele a veja. No m eio tem po, desde que a tenda às co n d i­ções necessárias, pode m erecer a to lerância do Estado m u çu lm an o e ter perm issão para co n tin u ar a p ra tica r sua p ró p ria religião e até m esm o aplica r suas próprias leis religiosas. O renegado é alguém que conheceu a fé verdadeira, não im porta se p o r pouco tem po, e a aban-

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d o n o u . N ão existe perdão h u m an o para essa ofensa, e, de acordo com a esm agadora m aio ria dos ju ristas, o renegado deve ser m orto , se for hom em . Se for m ulher, pode ser suficiente u rna pun ição m ais leve, com o flagelação e prisão. A m isericord ia d ivina pode perdoá-lo n o o u tro m u n d o , se D eus assim escolher. N e n h u m ser h u m a n o tem au to rid ad e para tan to . Essa distinção é de a lgum a im portânc ia a tualm ente , q u an d o líderes m ilitan tes p roclam aram u m a jih a d d u ­pla - co n tra estrangeiros infiéis e con tra apóstatas dom ésticos. A m aio r parte , se não a to ta lidade, dos governantes m u çu lm an o s que nós, no O cidente, tem os o prazer de ver com o nossos am igos e alia­dos é vista p o r m u ito s - o u talvez pela m aio ria de seu p ró p rio povo - com o tra idores e, m u ito p io r que isso, com o apóstatas.

Desde os tem pos antigos foi feita um a d istinção legal entre te rr i­tó rio s adqu iridos pela força ( ‘anw atan em árabe, o equivalente a vi et armis no d ireito ro m an o ) e os adqu iridos sulhan, isto é, p o r algum a fo rm a de trégua o u rendição pacífica. As regras relativas a b u tim e, em te rm os m ais gerais, ao tra tam en to da popu lação do te rritó rio recém -adqu irido diferem em alguns aspectos notáveis. De acordo com a trad ição , a d iferença era sim bolizada na m esqu ita todas as sextas-feiras. Em te rritó rio s tom ados ‘anw atan, o im am e levava um a espada; naqueles tom ados sulhan, u m bastão de m adeira. A im agem da espada co n tin u a a ser im p o rtan te . Até hoje, a bande ira sau d i­ta tem dois em blem as em u m cam po verde. U m é o texto em árabe do credo m uçu lm ano: “N ão existe o u tro deus além de D eus, M aom é é o p rofeta de Deus.” O o u tro é um a inequívoca represen tação de um a espada.

Em certos períodos, os ju ristas reconheceram u m status in te r­m ediário , a Casa da Trégua {Dar al-Sulh) ou Casa da A liança {Dar a l-‘A hd), entre as Casas da G uerra e do Islã. Essas Casas in te rm e­diárias eram form adas p o r países não -m u çu lm an o s, u sualm ente cristãos, cujos governantes en tra ram em algum tip o de acordo com os governantes do islã: pagavam u m a fo rm a de taxa ou trib u to , visto com o o equivalente á a jizya , ou im posto p o r cabeça, e conservavam

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um alto grau de a u to n o m ia em seus assuntos in te rnos. U m exem plo mais antigo foi o acordo feito pelos califas O m íadas no século VII

com os p ríncipes cristãos da A rm ênia. O exem plo clássico da D ar al-Sulh, o u Casa da T régua, foi o pacto acordado em 652 d.C. com os governantes cristãos da N úbia, segundo o qual náo pagavam a taxa, mas prov iam um tr ib u to anual, consistindo em um n ú m e ro especí­fico de escravos. Ao fazer a opção de considerar presentes com o tr i ­butos, os governantes m u çu lm an o s e seus conselheiros ju ríd icos podiam ajustar a lei para co b rir urna g rande variedade de relações políticas, m ilitares e com erciais com as nações não -m uçu lm anas. Essa abordagem não desapareceu in te iram ente .

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Desde tem pos m ais antigos, os m uçu lm anos sabiam que havia certas diferenças en tre os povos da Casa da G uerra. A m aio r p arte deles era constitu ída sim plesm ente de politeístas e idó latras, que não repre­sentavam qualquer am eaça séria ao islã e eram prováveis candidatos à conversão. Esses eram encon trados p rinc ipa lm en te na Ásia e na Africa. A p rincipal exceção eram os cristãos, que os m uçu lm anos re­conheciam com o tendo u m a religião do m esm o tipo da sua e, p o r ­tan to , sendo seus m aiores rivais na guerra pela dom inação do m u n d o - ou , com o teriam definido, pela ilum inação do m u n d o . A cristandade e o islã são duas civilizações definidas a p a r tir de suas re ­ligiões, e en tra ram em conflito não p o r suas diferenças, m as pelas se­m elhanças.

A m ais antiga edificação religiosa m u çu lm an a que sobrevive fora da Arábia, o D om o da Rocha, em Jerusalém , foi com pletada em 691 o u 692 d.C. A construção desse m o n u m en to no lugar do antigo tem plo judeu , no estilo c na vizinhança de m o n u m en to s cristãos tais com o o Santo Sepulcro c a Igreja da Ascensão, enviou u m a inequ ívo­ca m ensagem aos judeus e, mais im p o rtan te ainda, aos cristãos. As revelações recebidas [lor csscs, em bora autênticas, haviam sido co r­rom pidas p o r seus indignos guardiães e foram , p o rtan to , sup lan ta-

das pela revelação final e perfeita encarnada no islã. Assim com o os judeus haviam sido vencidos e superados pelos cristãos, tam b ém a o rd em m u n d ia l cristã seria agora substitu ida pela fé m u çu lm an a e pelo califado islám ico. Para salientar a questão , as palavras do A lco­rão inscritas no D om o da R ocha denunc iam o que os m uçu lm anos vêem com o os p rincipais erros cristãos: “B endito seja D eus, que não gerou n e n h u m filho e n ão tem n en h u m sem elhan te” e “Ele é D eus, un o , e terno . Ele não gerou, Ele não foi gerado, e Ele não tem sem e­lh an te .” (A lcorão CXIl) Isso era, claram ente, u m desafio à c ristanda­de em seu p ró p rio berço . U m m ilênio m ais ta rde , q u an d o tropas n o rte-am ericanas estac ionaram na A rábia, isso foi visto p o r m uitos m uçu lm anos, e no tavelm ente p o r O sam a b in Laden, com o um desa­fio sim ilar, dessa vez v indo da cristandade co n tra o islã.

V isando reforçar aquele desafio inicial à cristandade, o califa, pela p rim eira vez, fez cu n h ar m oedas de ouro , até en tão u m a p re rro ­gativa im peria l rom ana. É significativo que o no m e da p rim eira m oeda de o u ro islâm ica, o dinar, tenha sido to m ad o em prestado do denarius rom ano . A lgum as dessas m oedas traz iam o no m e do califa, seu títu lo de C om an d an te dos Fiéis e os m esm os versículos p o lêm i­cos. A m ensagem era clara. N o en tend im en to m u çu lm ano , os judeus e, m ais tarde, os cristãos, haviam -se desencam inhado e seguido fal­sas dou trinas. As duas religiões, p o rtan to , fo ram superadas e substi­tu ídas pelo islã, a revelação final e perfeita na sucessão de Deus. Os versículos do A lcorão inscritos no D om o e nas m oedas de ou ro co n ­denam o que, para os m uçu lm anos, é a p io r das co rrupções à fé ver­dadeira. H á tam bém , p o r certo, u m a m ensagem adicional do califa p ara o im perador: “Sua fé está co rrom pida , seu tem po passou, agora sou eu o governante do im pério de D eus na terra.”

A m ensagem foi b em com preend ida, e a cunhagem de m oedas de ou ro vista pelo im p erad o r com o um casus belli. Por m ais de m il anos, a p a r tir de suas sucessivas capitais em M edina, D am asco, Bag­dá, C airo e Istam bul, os califas do islã fizeram guerra con tra os im p e­radores cristãos em C onstan tinop la , V iena e, p oste rio rm en te , sob

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ou tros títu los, em países a oeste m ais d istantes. C ada u m desses, em seu tem po , foi o p rinc ipa l alvo da jihad.

Na prática, p o r certo, a aplicação da d o u trin a da jih a d nem sem ­pre era rigorosa o u violenta. O estado de g uerra canón icam ente obrigató rio poderia ser in te rro m p id o para o que era en tão definido pela lei com o trégua, m as esta d iferia u m pouco dos cham ados tra ta ­dos de paz que nações européias em guerra assinavam um as com as outras. Tais tréguas eram feitas pelo Profeta com seus in im igos p a ­gãos, e se to rn a ram a base do que pode ser cham ado direito in te rn a ­cional islám ico. De acordo com a sharia, to le ra r as religiões baseadas em revelações divinas an terio res não era u m m érito , m as urna o b ri­gação (A lcorão II, 256: “N ão há com pulsão na religião.”). Nas terras sob governo m uçu lm an o , a lei islâm ica requeria que judeus e cris­tãos tivessem a perm issão de p ra tica r suas religiões e cu idar de seus p róprios negócios, sujeitos a certas restrições, sendo a m ais im p o r­tante um a taxa im posta sobre todos os hom ens adultos. Essa taxa, cham ada jizya , está especificada no A lcorão IX, 29: “Lute con tra aqueles que não acred itam em D eus o u no ú ltim o dia, que não p ro í­bem o que D eus e Seus A póstolos declararam pro ib ido , que não p ra ­ticam a religião da verdade, em b o ra sejam o Povo do Livro [i.e., judeus e cristãos], até que paguem a jizya , d ire ta e hum ildem ente .” As ú ltim as palavras têm tid o in terp re tações variadas, tan to na litera- tu ra com o na prática.

O u tras lim itações incluíam o uso de vestim entas ou sím bolos d istintivos e a pro ib ição de p o rta r arm as, an d ar a cavalo, possu ir escravos m uçu lm anos ou ocupar u m p o n to m ais elevado que as construções m uçu lm anas. Exceto pelas duas ú ltim as e a jizya , nem sem pre tin h am u m a im posição rigorosa. Em com pensação, os sú d i­tos n ão -m u çu lm an o s to lc iados pelo Estado m u çu lm an o d esfru ta­vam de g rande au tonom ia na condução de seus negócios in ternos com unitários, inc lu indo cd ucação, taxação e a aplicação de suas p ró ­prias leis civis, especialm ente casam ento, divórcio e herança. O pacto ou con tra to en tre o Estado m uçu lm ano e u m a com unidade não-

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m u çu lm an a nele residente era cham ado dhim m a, e os m em bros des­sa co m u n id ad e to lerada eram dhim m is. Em te rm os m odernos, ju ­deus e cristãos n o Estado islâm ico clássico eram o que cham aríam os cidadãos de segunda classe - m as era m u ito m e lh o r um a cidadania de segunda classe estabelecida p o r lei e revelação, e reconhecida pela op in ião pública, do que a to ta l falta de cidadania a que estavam des­tinados os não-cristãos e m esm o alguns cristãos desviantes no O ci­dente.

A jih a d tam b ém não im ped iu os governos m uçu lm anos de oca­s ionalm ente buscarem aliados cristãos con tra m u çu lm an o s rivais, m esm o d u ran te as cruzadas.

58 A crise do isiã

3 De Cruzados a Imperialistas

As cruzadas o cu p am espaço p ro em in en te na consciência e no d is­curso do m o d ern o O rien te M édio, tan to dos árabes nacionalistas quan to dos fundam entalistas islám icos, n o tad am en te O sam a bin Laden. N em sem pre foi assim.

A to m ad a de Jerusalém pelos cruzados em 1099 d.C . foi u m tr i ­unfo p ara a cristandade e u m desastre para os m uçu lm anos e ta m ­bém para os judeus que viviam na cidade. A ju lgar pela h istoriografia árabe do período , suscitou m u ito pouco interesse na região. Apelos de ajuda dos m uçu lm anos locais a D am asco e Bagdá perm aneceram sem resposta, e os recém -estabelecidos p rincipados cruzados, de A ntioqu ia a Jerusalém , logo se encaixaram no p ad rão de jogo p o líti­co do Levante, com alianças m ultirreligiosas envolvendo príncipes m uçu lm anos e crislaos c lam bém com rivalidades in ternas em cada um desses dois grupos.

A grande conlrac t uzada que acabaria p o r vencer e expulsar os cruzados não com eçou senão quase u m século m ais tarde. Sua causa im ediata foram as al ividadcs de u m líder cruzado flibusteiro, Reinal­do de C hâtillou , ijue ilo m in o u a fortaleza de Kerak, n o sul da atual Jordânia, entre I 176 e I I 87 d.C., u sando-a p ara lançar u m a série de ataques-surprcs.i to n l i a caravanas m uçu lm anas e o com ércio das re ­giões vizinhas, incluiiulo o Hijaz. Os h isto riadores das cruzadas es­tão provavelm enle t erlos em dizer que a m otivação de R einaldo era

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p rinc ipa lm en te econôm ica; em ou tras palavras, a busca de p ilh a­gens. M as os m u çu lm an o s v iram suas cam panhas com o u m a p ro v o ­cação e u m desafio aos lugares sagrados do islã.

Em 1182, v io lando u m acordo en tre o cruzado rei de Jerusalém e o líder m u çu lm an o Saladino, Reinaldo a tacou e saqueou caravanas m uçu lm anas, inc lu indo u m a de peregrinos que se d irig iam a Meca. A inda m ais abom inável, do p o n to de vista m uçu lm ano , foi sua am eaça à A rábia e, especialm ente, u m a expedição p ira ta no m ar Ver­m elho, consistindo em ataques a navios m uçu lm anos e aos p o rto s do H ijaz que serviam M eca e M edina. Foram esses eventos que leva­ram Saladino d ire tam en te a declarar um a jih a d co n tra os cruzados - u m exem plo vivido da im p o rtân c ia central da A rábia segundo a co n ­cepção islâmica.

As v itórias de Saladino e sua tom ada de Jerusalém das m ãos dos cruzados, em 1187, têm sido desde sem pre, e até hoje, u m a fonte de insp iração p ara líderes árabes. Saddam H ussein refere-se freqüen te­m ente a dois d irigentes do Iraque que susten ta serem predecessores de sua m issão: Saladino, que acabou com a am eaça ocidental do seu tem po , vencendo e expulsando os cruzados, e N abucodonosor, que lidou ráp ida e decisivam ente com o p rob lem a sionista. Em 8 de o u ­tu b ro de 2002, o p rim e iro -m in is tro francês, Jean-P ierre Raffarin, em u m p ro n u n c iam en to p eran te a A ssem bléia N acional francesa, refe­riu -se a com o Saladino foi capaz de “d e rro ta r os cruzados na Galiléia e libertar Jerusalém ”. Esse in teressante uso da palavra libertar p o r um p rim e iro -m in is tro francês p ara descrever com o Saladino to m o u Je­rusalém dos cruzados p ode ser u m reflexo de rea linham entos atuais ou , alternativam ente, u m caso de ex trem a correção política. Em al­guns ou tros países, essa form ulação poderia ser a trib u íd a à ig n o rân ­cia da história, m as certam ente não na Erança.

M esm o na E uropa cristã, Saladino era celebrado e adm irado , com justiça, pela m aneira cavalheiresca e generosa com o tra tava seus in im igos vencidos. Esse tra tam en to , con tudo , não foi estendido a R einaldo de C hâtillon . O g rande h is to riad o r árabe Ibn al-A thir ex-

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plica as circunstâncias. “D uas vezes [disse Saladino] eu havia ju rad o m atá-lo se o tivesse em m inhas m ãos: q u an d o ele ten to u m archar con tra M eca e M edina e, m ais u rna vez, q u an d o tra içoeiram ente cap tu ro u a caravana [que ia para o Hijaz] A pós a grande vitória de Saladino, q u an d o m uito s dos príncipes e capitães cruzados foram feitos p risioneiros e m ais ta rde libertados, ele separou Reinaldo de C hátillon dos dem ais e o m a to u e decap itou com as p róp rias m ãos.

Após o sucesso da jih a d e a re tom ada de Jerusalém , Saladino e seus sucessores parecem ter perd ido interesse pela cidade, e u m deles chegou a ceder Jerusalém ao im p erad o r Frederico II, em 1229, com o p arte de u m acordo en tre o chefe m u çu lm an o e os cruzados. A cida­de foi recobrada em 1244, após os cruzados ten ta rem fazer déla urna cidade pu ram en te cristã. D epois de longo p eríodo de relativa obscu ­ridade, o interesse pela cidade foi reavivado n o século XIX, prim eiro pelas altercações en tre as au to ridades européias sobre a custódia dos lugares sagrados cristãos e, em seguida, pela nova im igração judia.

Foi tam bém n o século XIX que surg iu o interesse dos m u çu lm a­nos pelas cruzadas, em contraste com o notável g rau de desinteresse que m o stra ram pelas m esm as n a época em que ocorreram . A vasta e rica h istoriografía árabe do p eríodo registra adequadam en te a che­gada dos cruzados, suas batalhas e os Estados que estabeleceram , m as m o stra pouca ou quase n en h u m a com preensão da natu reza e dos propósitos de seus em preend im entos. As palavras cruzada e c ru ­zado nem ao m enos ocorrem na h istoriografía árabe da época: os cruzados são designados p o r infiéis, cristãos ou, m ais freq ü en tem en ­te, francos, um te rm o genérico para cristãos europeus católicos - e, m ais tarde, tam bém para pro testan tes - usado a fim de distingui-los de seus correlig ionários o rtodoxos e orientais. A visão das cruzadas com o u m fenóm eno histórico d istin to data do século XIX, bem com o

D e cruzados a imperialistas 61

* Ibn al-A thir, iii Al Kaiiiil f i’l-Ta'rikh, C.J. T ornberg (org.), v o l .l l , ano 583 (Lei- den, 1853-1864), i>.3M 5.

a trad u ção de livros de h isto ria eu ropeus. Desde en tão , existe u m novo en ten d im en to das cruzadas com o u m p ro to tip o inicial da ex­pansão do im perialism o eu ro p eu sobre o m u n d o islám ico. U rna descrição m ais precisa as apresen taria com o urna resposta à jih a d - ta rd ia , m u ito lim itada e, p o r ú ltim o , sem n e n h u m efeito. As c ruza­das te rm in aram em fracasso e d e rro ta e fo ram rap id am en te esqueci­das nas terras do islã, m as posteriores esforços eu ropeus para resistir ao avanço m u çu lm an o sobre a cristandade e revertê-lo tiveram m ais sucesso, in ic iando o que se to rn o u u m a série de du ras derro tas nas fron te iras do m u n d o islâm ico.

D u ran te o califado árabe m edieval e, novam ente , sob as d in as­tias persa e tu rca, o Im pério do islã era a m ais rica, m ais poderosa, m ais criativa e esclarecida região do m u n d o , e no d eco rrer da m aior p arte da Idade M édia a cristandade esteve na defensiva. N o século XV,

o con tra -a taq u e cristão se am pliou . Os tá rta ro s fo ram expulsos da Rússia, e os m ouros, da E spanha. M as no sudeste europeu , onde o sultão o to m an o con fron tou -se p rim eiro com o im p erad o r bizan tino e depois com o do Sacro Im pério R om ano, o p o d er m u çu lm an o p re ­valeceu, e esses e ou tros reveses fo ram vistos com o periféricos e in ­significantes. N o século XVII, paxás tu rcos a inda governavam em B udapeste e Belgrado, exércitos tu rcos sitiavam V iena e corsários bárbaros atacavam navios e praias d istantes, com o as da Ing laterra e Irlanda e, às vezes, até m esm o da M adeira e da Islândia. Os corsários eram m uito a judados em seu traba lho p o r europeus que, p o r um a razão o u ou tra , estabeleceram -se na África do N orte e lhes en sin a­ram a constru ir, equ ipar e o p erar navios no m ar do N orte e m esm o no Atlântico. Essa fase não d u ro u m uito .

E veio então a g rande m udança . O segundo sítio tu rco de Viena, em 1683, te rm in o u em fracasso total, seguido p o r u m a longa re tira ­da - u m a experiência to ta lm en te nova para os exércitos o tom anos. Essa derro ta , sofrida pelo que era en tão a m aio r po tên c ia m ilita r do m u n d o m uçu lm ano , deu origem a u m novo debate que, de certo m odo , estende-se até os dias de hoje. A discussão com eçou en tre as

62 A crise do islã

elites o tom anas - m ilitares, políticas e, p o ste rio rm en te , intelectuais - com o u m exam e de duas questões: p o r que os até en tão invictos exércitos o to m an o s haviam sido derro tad o s pelo m enosprezado in i­m igo cristão? E com o sua an tiga do m in ân c ia po d eria ser restaurada? C om o tem po , o debate estendeu-se das elites p ara círculos cada vez m ais am pios, da T u rq u ia p ara m u ito s o u tro s países, abrangendo cada vez m aio r n ú m ero de aspectos.

H avia urna b o a razão para a preocupação . Seguiram -se derrotas e m ais derro tas, e as forças européias cristas, tendo liberado suas p ró ­p rias terras, persegu iam os antigos invasores até as deles na Ásia e na África. M esm o pequenos governos europeus com o H olanda e P o rtu ­gal foram capazes de co n stru ir vastos im périos no Leste e desem pe­n h a r u m papel d o m in an te n o com ércio. Em 1593, u m oficial o to m an o que tam b ém servia com o cronista de eventos em curso, Se- laniki M ustafa eféndi, reg istrou a chegada de u m em baixador inglês a Istam bul. N ão d em o n stro u g rande interesse pelo em baixador, m as estava m u ito in trig ad o com o navio inglês n o qual ele viajava: “U m navio tão e s tran h o qu an to esse n u n ca havia en trad o no p o rto de Is tam bu l”, escreveu. “C ruzou 3.700 m ilhas de m ar e carregava 83 ca­nhões, além de o u tras arm as ... era o assom bro da época, nu n ca nada sem elhante fora v isto o u registrado.”* O u tra fonte de m aravilha- m en to era o soberano que havia enviado o em baixador: “O gover­n an te da ilha da Ing la terra é u m a m u lh er que governa o re ino que h erd o u ... com p o d e r total.”

U m deta lhe adicional, não m encionado pelo h is to riad o r o to ­m ano , era tam b ém de algum a im portância . O em baixador inglês em questão havia realm ente sido nom eado pela ra inha E lizabeth I, m as escolhido e ap o iad o não pelo governo inglês, m as p o r u m a co rp o ra ­ção de com ércio iim arran jo ú til n u m tem po em que os negócios

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Selaniki Miisl.il.i i-U-iuli, in Tarih-i Selaniki, M ehm et Ipsirli (org.), 2“* ed., Istam ­bul. 1999, p.-l.n .

eram a m aio r p reocupação do m u n d o ocidental no O rien te M édio. De fato, foi a ráp ida e inovadora expansão tecnológica e econôm ica do O cidente - a fábrica, o navio cargueiro, a sociedade an ô n im a - que m arco u o com eço da nova era. N avios da E uropa ocidental p ro ­je tados para o A tlântico , pod iam facilm ente superar o desem penho de o u tros feitos para o M editerrâneo , o m ar V erm elho e o oceano Índico, tan to na guerra q u an to n o com ércio , e aquele com ércio era a inda m ais fortalecido p o r dois hábitos ocidentais: cooperação e com petição. Por volta do século XVIII, p ro d u to s trad icionais do O rien te M édio, com o café e açúcar, estavam sendo cultivados nas novas colônias ocidentais na Ásia e nas A m éricas e exportados para o O rien te M édio p o r com ercian tes e corporações ocidentais. Até m es­m o peregrinos m uçu lm anos v iajando do sul e sudeste da Ásia para as cidades sagradas da Á rábia algum as vezes faziam reservas em n a ­vios eu ropeus - m ais rápidos, baratos, seguros e confortáveis.

64 A crise do islã

Para a m aio r parte dos h istoriadores, tan to os ocidentais qu an to os do O rien te M édio, o início oficial da h istó ria m o d ern a n o O rien te M édio data de 1798, q u an d o a Revolução Francesa, na pessoa de um jovem general cham ado N apoleão B onaparte, ap o rto u no Egito. Em u m tem po ex trao rd inariam en te curto , o general B onaparte e sua p e ­quena força expedicionária foram capazes de conquistar, o cu p ar e governar o país. Á ntes disso, havia oco rrido ataques, retiradas e p e r­das de te rritó rio nas fron teiras rem otas, onde os tu rcos e os persas en fren taram a Á ustria e a Rússia. M as ver u m a pequena força oci­dental invadir um a das áreas vitais do islã causou um choque p ro ­fundo. Á p a rtid a dos franceses, n u m certo sentido, foi um choque a inda m aior. Foram forçados a sair do Egito não pelos egípcios, nem p o r seus suseranos, os tu rcos, m as p o r u m pequeno esquadrão da M arinha Real inglesa com andado p o r u m jovem alm iran te cham ado H orácio N elson. Essa foi a segunda am arga lição que os m u çu lm a­nos tiveram de aprender: não apenas um a força ocidental pod ia che-

gar, invadir e governar com o Ihe aprouvesse, m as apenas urna ou tra força ocidental poderia expulsá-la.

Im perialism o é u m tem a particu larm ente im po rtan te no O riente M édio e, sobretudo , no caso do islã con tra o O cidente. Para eles, a palavra imperialismo tem u m significado especial. Essa palavra, p o r exem plo, n unca é usada pelos m uçu lm anos dos grandes im périos m uçu lm anos - o p rim eiro deles fundado pelos árabes, os ú ltim os pelos turcos, que conqu istaram vastos te rritó rio s e populações e os inco rpo raram à Casa do Islã. Era perfeitam ente legítim o para os m u ­çulm anos conqu istar e governar a E uropa e os europeus e, assim, possibilitar - m as não obrigar - que abraçassem a fé verdadeira. Era um crim e e u m pecado p ara os europeus conqu istar e governar os m uçulm anos e, p io r ainda, ten ta r desencam inhá-los. Segundo a visão m uçu lm ana, a conversão ao islam ism o é um benefício ao con­vertido e u m m érito dos que o convertem . N os cânones m u çu lm a­nos, a renúncia ao islam ism o é u m a apostasia - u m a ofensa capital tan to para o que é m al-encam inbado qu an to para o que o de- sencam inha. Sobre essa questão, a lei é clara e inequívoca. Se u m m u ­çu lm ano renuncia ao islã, m esm o que seja u m novo m uçu lm ano voltando à sua fé an terior, a penalidade é a m orte . N os tem pos m o ­dernos, o conceito e a p rática de takfir, reconhecer e den u n c iar a apostasia, têm sido m u ito am pliados. N ão é pouco usual em círculos extrem istas e fundam entalistas decretar que de te rm in ad a política, ação o u m esm o fala de um m uçu lm ano professo equivale a um a apostasia e p ro n u n c ia r um a sentença de m o rte co n tra o acusado. Foi esse o p rinc íp io invocado nas falwas con tra Salm an Rushdie, no as­sassinato do p resid en ie Sadat c m uitos outros.

As atividades européias em terras islâm icas passaram p o r d iver­sas fases. A prim ciia foi de expansão com ercial, vista pelos m u çu l­m anos com o ex[ilor.iç<io deles m esm os e de seus países, tan to com o m ercados quan io io m o fontes de m atérias-p rim as. D epois v ieram a invasão arm ada e ,i co iu |u ista , através das quais as nações européias estabeleceram um a dom inação efetiva sobre im p o rtan tes áreas do

D e cruzados a imperialistas 65

m u n d o islâm ico - os ru ssos no C áucaso e em te rra s tran scau cas ia- nas e, m ais ta rde , na Ásia C entral; os ingleses na India; os ingleses e os holandeses na M alásia e Indonésia; e, na fase final, os ingleses e os franceses n o O rie n te M éd io e n a Á frica do N o rte . N esses lugares, os im perialistas governaram p o r d iferentes períodos - em alguns, com o no sudeste asiático e na India, duran te séculos; em outros, com o ñas terras árabes do O rien te M édio, p o r intervalos relativam ente curtos.

Em qualquer dos casos, deixaram sua m arca. N o m u n d o árabe, o p eríodo de d o m in io im peria l anglo-francés com eçou com os fran ­ceses na Argélia (1830) e os ingleses em Á den (1839); co n tin u o u com a ocupação inglesa do Egito (1882), a extensão do contro le francés à Tunísia (1881) e ao M arrocos (1911) e da ascendência b ritân ica so ­bre o Golfo Pérsico; e chegou ao p o n to m áxim o com a divisão das provincias árabes o tom anas do Crescente Fértil en tre os dois m aio ­res im périos da E uropa ocidental. Dessa vez, os te rrito rio s recém - adqu iridos não fo ram sim plesm ente anexados no estilo trad icional, com o colonias o u dependências. A Ing la terra e a França, com o p o ­deres m andatário s, receberam a incum bência de adm in istrá-los, sob a ju risd ição da Liga das N ações, com a tarefa explícita de prepará-los para a independência. Esse foi u m episodio m u ito breve, com eçando após a P rim eira G uerra M undia l e te rm in an d o após a Segunda, qu ando os m andatos fo ram encerrados e os te rrito rio s a d m in is tra ­dos to rn aram -se independentes. A m aio r parte da Península A rábica perm aneceu fora dos d o m ín ios im periais.

A pesar disso, o im pacto do im perialism o foi visto com o im enso e, aos olhos da m aio ria das pessoas da região, to ta lm en te prejudicial. O im pacto e o dano foram , sem dúvida, consideráveis, m as provavel­m ente m enos extensos e m enos un id im ensionais do que as m ito lo ­gias nacionalistas te riam sustentado. Afinal, houve alguns benefícios - in fra-estru tura, serviços públicos, sistemas educacionais, bem com o algum as m udanças sociais, no tad am en te a abolição da escravidão e a considerável redução, em bora não a elim inação, da poligam ia. O

66 A crise do islã

con traste pode ser visto m u ito c laram ente com parando-se os países que sofreram sob o jugo im perial, com o o Egito e a Argélia, com aqueles que n unca p e rd eram sua independência , com o a A rábia e o A feganistão. N a A rábia Saudita, as universidades su rg iram m ais ta r ­de, e em pequeno n ú m ero . A tualm ente, para urna popu lação esti­m ada em 21 m ilhões, há o ito universidades - u rna a m ais que as sete institu ições de ensino superio r criadas pelos palestinos desde a o cu ­pação dos te rritó rio s p o r Israel em 1967. A escravidão só foi legal­m en te abolida na A rábia Saudita em 1962, e a subjugação das m ulheres perm anece em p lena vigência.

M as certam ente o im perialism o e, em te rm os m ais am pios, a in ­fluência ocidental ou européia tiveram conseqúências negativas consideráveis, m esm o naqueles países que conseguiram m an te r sua independência política, com o a T urquia e o Irã. É notável, en tre os efeitos da m odern ização , o fo rta lecim ento da au to rid ad e do Estado pela consolidação do apara to de vigilância, repressão e d ou trinação e, ao m esm o tem po , o en fraquecim ento o u elim inação daqueles p o ­deres in term ediários que, na o rdem trad icional, lim itavam o po d er efetivo de governantes autocráticos. A m u d an ça social e o ro m p i­m en to de antigas relações e obrigações sociais trouxeram grande d ano à sociedade e c riaram novos e crescentes contrastes, que os m eios de com unicação m od ern o s to rn a ram cada vez m ais visíveis. Já em 1832, u m sagaz observador b ritân ico , u m jovem oficial naval cham ado A dolphus Slade, n o ta ra essa diferença en tre o que cham ou a an tiga nobreza e a nova nobreza.* A antiga nobreza, disse ele, vivia em suas p ropriedades. Para a nova nobreza, suas propriedades eram o Estado. Isso con tinua valendo em grande p a rte da região até os dias de hoje.

N o início do século XX, em bora u m a independência p recária fosse m an tid a pela liirqiiia, pelo Irã e p o r alguns países m ais afasta-

D e cruzados a imperialistas 67

A dolphus Sladc, Tnikí'y and the Crimean War: A Narrative o f Historkal Events (Londres, 1867), p .311

dos com o o A feganistão - que, naquela época, não parecia valer a pena invad ir - , quase to d o o m u n d o m u çu lm an o havia sido in co r­p o rad o aos qu a tro im périos europeus (Britânico, Francês, Russo e H olandês). G overnos e facções do O rien te M édio fo ram forçados a ap ren d er a jogar esses poderosos rivais uns co n tra os ou tros. D u ra n ­te algum tem po , o jogo fu n c ionou com algum sucesso. D ado que os aliados ocidentais - G rã-B retanha e França, e depois os Estados U n i­dos - dom inavam de fato a região, os oponen tes do O rien te M édio n a tu ra lm en te buscaram apoio ju n to aos in im igos daqueles aliados. N a Segunda G uerra M undial, vo ltaram -se p ara a A lem anha; na G uerra Fria, para a U nião Soviética.

Já em 1914, a A lem anha, en tão aliada do Im pério O tom ano , ten to u m obilizar sen tim en tos religiosos en tre os súditos m u çu lm a­nos dos im périos B ritânico, Francês e Russo co n tra seus senhores im periais e, p o rtan to , em favor da A lem anha. O esforço p roduziu parcos resultados, e foi fo rtem ente rid icu larizado pelo g rande o rien ­talista ho landês Snouck H urgron je em u m fam oso artigo in titu lado “G uerra santa: m ade in G erm any”.*

O nde o kaiser havia falhado, H itler foi, p o r algum tem po, consi­deravelm ente bem -sucedido . N o final de m arço de 1933, poucas se­m anas após H itler sub ir ao poder, o m ufti de Jerusalém , Hajj A m in al-H usseini, ab o rd o u o cônsul-geral alem ão na cidade, H einrich Wolff, e ofereceu seus serviços. Ao relatar essa o ferta a Berlim , o cô n ­sul recom endou que fosse rejeitada ou, no m ín im o , ignorada. E nquan to houvesse a lgum a esperança de ganhar o Im pério B ritân i­co com o u m aliado da A lem anha, não havia sen tido em antagonizar os ingleses fo rm ando associações com o que era en tão u m m ov i­m en to p rinc ipa lm en te an tib ritán ico . Foi só depois dos acordos de M unique, em 1938, q u ando H itler finalm ente desistiu de recru tar os

68 A crise do islã

* Para um a versão em inglês ligeiram ente revista, ver .Siunick I liirgronje, Versprei- de Geschriften, vol.3 (Leiden, 1923), p.257ss.

britán icos para urna aliança ariana com a A lem anha, que as p ro p o s­tas da liderança palestina fo ram aceitas. A p a rtir de en tão , e ao longo dos anos da guerra, suas ligações fo ram m u ito próxim as, e o m ufti, de seu escritorio nos arredores de Berlim , desem p en h o u papel signi­ficativo na política in terárabe. Em 1941, com a ajuda alem ã através da Síria (con tro lada p o r V ichy), R ashid ‘Ali conseguiu, d u ran te al­gum tem po , estabelecer u m regim e p ró-E ixo no Iraque. Eoi d e rro ta ­do p o r tropas aliadas e ju n to u -se ao m u fti na A lem anha. M esm o A nw ar Sadat, segundo ele m esm o adm itiu , trab a lh o u com o u m es­pião alem ão no Egito ocupado pelos británicos.*

A derro ta da A lem anha e o colapso do Terceiro Reich e de suas várias agências deixaram u m vazio am argo. C om o visto p o r m uitos, foi du ran te o in te rlúd io que se seguiu que, em 1948, os judeus conse­guiram estabelecer seu Estado e infligir u rna derro ta hu m ilh an te aos exércitos árabes enviados para im pedi-los. N ecessitava-se, com u r ­gência, de u m novo p a tro n o e p ro tetor, de u m su b stitu to do Terceiro Reich, que foi encon trado na U nião Soviética.

E en tão veio o colapso da U nião Soviética, que deixou os Esta­dos U nidos com o a ún ica superpo tência m undia l. A era h istó rica do O rien te M édio inaugurada po r B onapartee Nelson havia sido encer­rada po r M ikhail ( iorbacliev c C eorge Bush sénior. N o inicio, parecia que, com a re tirada dos dois adversários, a era de rivalidade im perial estava term inada - a IJniao Soviética não p o d eria desem penhar o papel im perial, c os Estados Unidos não o fariam . M as não dem orou m uito para que os aco n k c im entos, em especial a Revolução Iran iana e as guerras do (.lilatloi iiacjuiano Saddam H ussein, forçassem os Estados U nidos a se envolverem m ais d ire tam en te nos assuntos da região, o que foi to iis iderado pelos povos dali com o urna nova fase de u m velho jogo im perial. Os n o rte-am ericanos não pensavam as-

D e cruzados a imperialistas 69

* Anw ar al-S.Kl.il, M lUililh ‘un al-dhat (Cairo, 1978), p .50-86; versão em ing lês,/« Search ofideiillly, nn Aulnhioyraphy (Nova York, 1978), p.31ss.

sim , e m o stra ram não ter o anseio de assum ir u m papel im perial e n em a ap tidão para tan to .

Os líderes m uçu lm anos, tan to no governo qu an to na oposição, reag iram de diferentes m aneiras a essa nova situação. Para alguns, a resposta n a tu ra l foi buscar u m novo p a tro n o - u m sucessor do Ter­ceiro Reich e da U nião Soviética ao qual pudessem recorrer p ara in ­centivo, apoio e ajuda na guerra con tra o O cidente. C om o u m bloco de poder, o O cidente, nesse m eio tem po, havia-se m ovido m ais para o oeste, e agora consistia, essencialm ente, nos Estados U nidos, ab r in ­do u m a nova e in teressante possib ilidade p ara a Europa con tinen tal assum ir o papel de opositor. De fato, alguns europeus, p a rtilhando , p o r razões próprias, do ranco r e hostilidade do O rien te M édio co n ­tra os Estados U nidos, m o stra ram disposição de aceitar esse papel. M as, em bora possam ter a in tenção , faltam -lhes os m eios.

O colapso da U nião Soviética, seguido pela d e rro ta de Saddam H ussein n a G uerra do G olfo de 1991, foi u m golpe devastador para os m ovim entos nacionalistas seculares, especialm ente o dos palesti­nos, que, u m a vez m ais, com o em 1945, en co n tra ram -se desprovidos de u m p a tro n o poderoso que os auxiliasse na defesa da causa. Seu p ro te to r soviético havia desaparecido. M esm o os árabes que lhes d a ­vam su porte financeiro no Kuwait e na A rábia Saudita, enraivecidos pelo entusiástico apoio palestino a Saddam H ussein, suspenderam p o r a lgum tem p o seus subsídios, deixando os palestinos isolados, em pobrecidos e enfraquecidos. Foi essa situação que os forçou a pensar o im pensável e in iciar u m processo de paz com Israel. A OLP

foi resgatada pelos n o rte -am erican o s e israelenses de u m a m aneira considerada ignom in iosa pelos fundam entalistas, e induzida a e n ­tra r em u m diálogo h u m ilh an te com Israel.

Tudo isso deu m a io r p lausibilidade à visão que os fu n d am en ta ­listas têm do m u n d o e m a io r apelo a sua causa. Eles - e O sam a bin Laden, em especial - in te rp re ta ram o colapso da U nião Soviética de m aneira diferente. Em seu en tend im en to , foram eles, não os n o r ­te-am ericanos, os vencedores da G uerra Fria. A seus olhos, a U nião

70 A crise do islã

Soviética não era u m auxilio ben igno em urna lu ta co m u m co n tra os judeus e os im perialistas ocidentais, m as sim a fon te do ateísm o e da descrença, a opressora de m u ito s m ilhões de súd itos m uçu lm anos, e a invasora do Afeganistão. C onfo rm e seu p o n to de vista, de form a não im plausível, fora a sua lu ta no A feganistão que vencera o p o d e ­roso Exército V erm elho e levara os soviéticos à d e rro ta e ao colapso. T endo-se livrado do m ais feroz e perigoso d en tre as duas su p er­potências infléis, sua p róx im a tarefa era lidar com a o u tra , os Esta­dos U nidos - e, nessa guerra, as partes envolvidas eram instrum entos e agentes do in im igo infiel. P o r urna série de razões, os fu ndam en ta- listas islám icos acred itavam que com bater a A m érica seria urna ta re ­fa m ais sim ples e m ais fácil. Para eles, os Estados U nidos haviam -se to rn ad o m ora lm en te co rrup tos, socialm ente degenerados e, em conseqúéncia, po lítica e m ilita rm en te enfraquecidos. Essa visão tem um a h istó ria in teressante.

D e cruzados a imperialistas 71

4 Descobrindo a América

D u ran te m u ito tem po, no tavelm ente pouco se sabia sobre a A m érica nas terras do islã. N o início, as viagens do descobrim en to suscitaram algum interesse - a ún ica cópia existente do m ap a da A m érica feito pelo p ró p rio C ristóvão C olom bo é u m a tradução e adaptação turca, a inda preservada no M useu do Palácio de Topkapi em Istam bul. O relato de u m geógrafo tu rco do século XVI sobre o descobrim en to do N ovo M undo, in titu lad o A história das índias Ocidentais, foi u m dos p rim eiro s livros im pressos na Turquia, no século XVIII. M as o in te ­resse era m ín im o, e não m u ito foi d ito sobre a A m érica em turco, árabe ou em ou tros id iom as m uçu lm anos até u m a época relativa­m ente recente. A Revolução A m ericana, ao co n trá rio da Francesa de uns poucos anos depois, passou quase sem ser no tada , e era vista, se tan to , com o u m tip o bem conhecido de insurreição. Na época, um em baixador m arro q u in o na E spanha escreveu o que deve ser, certa­m ente , o p rim eiro relato árabe da Revolução A m ericana;

O e m b a ix a d o r in g lê s d e ix o u a E sp a n b a p o r c au sa d a g u e rra d e fla g rad a

e n tre e sp a n h ó is e in g leses. A c au sa d isso foi q u e o p o v o d a A m é ric a e s ­

tav a s u b m e tid o ao re i in g lês e, g ra ça s ao s im p o s to s q u e co le tav a n a

A m é ric a , o rei e ra m a is fo r te q u e to d o s o s o u tro s p o v o s c r is tã o s . D iz -se

q u e a u m e n to u a c a rg a d e tax as e im p o s to s e e n v io u u m n a v io c a r re g a ­

d o d e ch á e os o b r ig o u a p a g a r p o r ele m a is d o q u e e ra c o s tu m e . Isso

eles re c u sa ra m , e p e d ir a m ao re i q u e ace ita sse o d in h e iro q u e lh e e ra

72

d e v id o , m as se m im p o r tax a s excessivas s o b re eles. Isso ele re c u so u , e

e les se re b e la ra m , b u s c a n d o a in d e p e n d ê n c ia . O s fran c e se s os a ju d a ­

ra m e m su a re b e liã o c o n tr a o s ing leses, e s p e ra n d o , d e ssa m a n e ira ,

c a u s a r d a n o a o re i in g lês e e n fra q u e c ê - lo , p o rq u e ele e ra o m a is fo r te

d as d ife re n te s ra ça s d e c r is tã o s n o m ar.*

O sultão do M arrocos assinou u m tra tad o de am izade com os Estados U nidos em 1787 e, a p a r tir daí, a nova R epública passou a ter u m grande n ú m ero de negócios com o u tros Estados m uçu lm anos, alguns cordiais, alguns hostis, a m aio r parte com ercial e todos eles li­m itados.

O p rim eiro registro de u m a m enção à A m érica com o u m sím ­bolo político no m u n d o islâm ico foi em Istam bul, em 14 de ju lho de 1793, quan d o o recém -chegado em baixador da república francesa p rom oveu um a cerim ôn ia pública que cu lm in o u com u m a salva de tiros de dois navios franceses ancorados no cabo Seráglio. Segundo o relato do em baixador, desfraldaram as cores do Im pério O tom ano , das repúblicas francesa e no rte -am ericana , e “as de algum as ou tras poucas nações que não haviam m anchado suas arm as na ím pia liga de tiran o s”.** U m o u tro em baixador francês em Istam bul, general A ubert d u Bayet (posterio rm en te D ubayet), que assum iu o posto em 1796, era, em certo sentido , u m no rte -am ericano , tendo nascido em Nova O rleans e lu tado no Exército dos Estados Unidos. Ele em preen­deu algum esforço para dissem inar as idéias da revolução na Turquia.

M as essas foram iniciativas francesas, não norte-am ericanas, e, enquan to as idéias da Revolução Francesa reverberavam em idéias e correspondências turcas, árabes c de ou tras nacionalidades da região

D escobrindo a A m érica 73

M uham niad ibn 'U lliin.iii al Miknasi (em baixador m arroqu ino na Espanba, 1779 e 1788), in A l I C n fi 1 ' ikak a l - A s i r , M ubam m ad al-Fasi (org.) (Rabat, 1965), p.97. Ver tanilH'in Anu Ay .iloii, “ l he Arab Discovery o f Am erica in tbe N ineteen tb C entury”, M Íí I í I I c ¡■n'-lcni S l iu l ie s , vol.20 (out. 1984), p .5-17.** E. de M areère, l hie Aiiilxissade à Constantinople; lapolitique oriéntale de la Révo- lution Fran<;aise (1’ai is, 1927), vol.2, p .12-15.

ao longo do século XIX, a Revolução A m ericana e a R epública que déla nasceu perm aneceram despercebidas e até desconhecidas p o r m u ito tem po . M esm o a crescente presença n o rte -am erican a - co ­m ercian tes, cónsules, m issionários e professores - causou pequena o u n en h u m a curiosidade, ten d o recebido quase n en h u m a m enção n a lite ra tu ra e nos jo rna is da época. Livros de geografia, a m a io r p a r­te deles traduz ida o u adap tada de originais eu ropeus, incluem b re ­ves relatos concretos sobre o hem isfério ocidental; os jo rnais con têm um as poucas referências dispersas a acon tec im entos nos Estados U nidos, designados em geral po r u m nom e que era a form a arabizada de sua designação francesa, États Unis: Itazuni, o u algo sem elhante.

U m livro d idático publicado n o Egito em 1833, traduzido do francês e adap tado pelo fam oso escrito r e tra d u to r xeque Rifa‘a R aff al-Tahtaw i (1801-1873), con tém breve descrição dos Itazun i “com o u m Estado (dwala) com posto de diversas regiões (iqlim ), agregadas em u m a R epública no te rritó rio da A m érica do N orte . Seus h ab itan ­tes são tribos que v ieram ... da Ing laterra e to m aram posse daquela terra . E ntão se liberta ram do jugo dos ingleses e se to rn a ram livres e independen tes p o r si m esm os. Esse país está en tre os m aiores países civilizados da A m érica, e nele se p erm item o culto de todas as fés e a existência de todas as com unidades religiosas. A chefia de seu gover­n o está em um a cidade cham ada W ashington”.* As últim as frases são notáveis.

N o final do século XIX e início do século XX, deu-se u m pouco m ais de atenção à A m érica em livros d idáticos, enciclopédias e jo r ­nais, m as ainda de fo rm a m u ito lim itada, além de ter parecido re s tri­ta, em sua m aio r parte , a m ino rias n ão -m uçu lm anas. As referências à A m érica na lite ra tu ra geral são, no con jun to , nem positivas nem n e ­gativas, m as sucintas e descritivas. M issionários, p o r certo, não eram apreciados em círculos m uçu lm anos, m as, a não ser p o r isso, tu d o

74 A crise do islã

* Rifa‘a Rafi‘ al-Tahtawi, Q aldid al-Mafakhir f i gharib ‘aw aid al-awdil wa’l- awakhir (Bulaq, 1833), p .l , p .14; cf. Ayalon, “Arab Discovery o f Am erica”, p .9.

D escobrindo a A m érica 75

indica não terem sido alvos de desconfiança e, m enos ainda, de ódio. Após o fim da G uerra Civil, alguns oficiais no rte -am ericanos de­sem pregados conseguiram até m esm o fazer carreira a serviço dos governantes m uçu lm anos, a judando-os a m o d ern iza r seus exérci­tos. M issionários no rte-am ericanos, em b o ra pro ib idos de fazer p ro ­selitismo entre os m uçulm anos, foram capazes de transfo rm ar alguns cristãos o rtodoxos em presb iterianos e, m ais im p o rtan te , de oferecer um a m o d ern a educação secundarista e un iversitária a quan tidades crescentes de rapazes e, p oste rio rm en te , de m oças - p rim eiro das m inorias e, p o r fim , de m uçu lm anos. A lguns dos form ados p o r essas escolas chegaram a ir para os Estados U nidos a fim de co n tin u a r sua form ação em escolas e universidades n o rte-am ericanas. N o início, p rov inham , p rincipalm ente , das m inorias cristãs; no devido tem po , foram seguidos p o r cada vez m aio r n ú m ero de com patrio tas m u çu l­m anos, alguns deles custeados pelos governos de seus países.

A Segunda G uerra M undial, a in d ú stria do petró leo e os desen­volvim entos que se deram no pós-guerra levaram m uitos n o r ­te-am ericanos ãs terras islâm icas; núm eros cada vez m aiores de m uçu lm anos tam b ém vieram para a A m érica, p rim eiro com o estu ­dantes, depois com o professores, hom ens de negócios o u visitantes e, finalm ente, com o im igrantes. O cinem a e, m ais tarde, a televisão, levaram o m o d o de v ida no rte -am erican o ou, de qualquer form a, um a certa visão dele a incontáveis m ilhóes p ara os quais o p ró p rio nom e A m érica não significava nada até então, o u era desconhecido. U m a grande variedade de p rodu tos no rte -am ericanos - sobre tudo nos anos logo após a guerra, quan d o a com petição européia estava v irtua lm en te elim inada c a japonesa ainda não havia surg ido - espa­lhou-se até os mais rem otos m ercados do m u n d o m u çu lm ano , ga­n h an d o novos clieiiles e, talvez o m ais im p o rtan te , c riando novos gostos e novas am bições. Para alguns, a A m érica representava liber­dade, justiça e opoi (unidade. Para m uitos m ais, representava riq u e ­za, p o d er e sucesso, luim tem po em que essas qualidades não eram vistas com o pecados o u crim es.

A C r ' C L J #

E então veio a g rande m udança, quan d o os líderes de um a restauração religiosa am pla e em expansão tiveram êxito em iden tifi­car seus in im igos com o os in im igos de D eus e deram a eles “u m local de residência e u m n o m e ” n o hem isfério ocidental. De repente, ou assim pareceu, a A m érica havia-se to rn ad o u m arquiin im igo, a en ­carnação do m al, o opo n en te diabólico de tu d o o que é b o m e, espe­cificam ente para os m uçu lm anos, um opon en te do islã. Por quê?

76 A crise do islã

E ntre os com ponen tes do sen tim en to an tiam erican is ta estavam cer­tas influências in telectuais v indas da Europa. U m a dessas o rig ina­va-se na A lem anha, o nde u m a im agem negativa da A m érica fazia p arte de u m a escola de pensam en to que incluía escritores tão d iver­sos qu an to R ainer M aria Rilke, O sw ald Spengler, E rnst Jünger e M artin Heidegger. Para eles, os Estados U nidos eram o exem plo p e r­feito de civilização sem cu ltu ra ; rica e confortável, m ateria lm en te avançada, m as desprovida de alm a e artificial; m o n tad a ou, no m e­lh o r dos casos, constru ída , m as não arraigada; m ecânica, não o rgâ­nica; tecnológicam ente com plexa, m as sem a esp iritualidade e vitalidade das cu ltu ras enraizadas, h um anas, nacionais dos alem ães e de o u tros povos “au tên ticos”. A filosofia alem ã e a filosofia da educa­ção, em particular, desfru ta ram de popu larid ad e considerável entre in telectuais árabes e de alguns o u tros países m uçu lm anos na década de 1930 e in ício da década seguinte, e esse an tiam erican ism o filosófi­co era parte da m ensagem .

A versão nazista das ideologias alem ãs tin h a influência em cír­culos nacionalistas, especialm ente en tre os fundadores e seguidores do P artido Ba‘th na Síria e no Iraque. Após a rendição da França aos alem ães em ju n h o de 1940, os te rritó rio s sob m an d a to francês. Síria e Líbano, perm aneceram sob o con tro le das au to ridades de Vichy e eram , p o rtan to , facilm ente acessíveis p a ra os alem ães, que os usaram com o base de suas atividades no m u n d o árabe. Notável en tre essas foi a ten tativa - tem p o rariam en te bem -suced ida - de estabelecer u m

regim e p ró -n az i n o Iraque. A fundação do P artido Ba‘th data desse período. Essas atividades te rm in aram em ju lh o de 1941, com o fim da ocupação da Síria-L íbano pela Ing laterra e pela F rança Livre, mas o P artido Ba‘th e suas peculiares ideologias sobreviveram .

O tem a da artificialidade n o rte -am erican a e de sua falta de um a identidade genu inam ente nacional com o a dos árabes encontra-se com freqüência nos escritos do P artido Ba’th e é ocasionalm ente in ­vocada p o r Saddam H ussein, com o, p o r exem plo, em u m a fala de ja ­neiro de 2002. C om a con tinuação das guerras - a Segunda G uerra M undial, depois a G uerra Fria - , e to rn an d o -se m ais óbvia a lid e ran ­ça n o rte -am erican a no O cidente, a parte do ódio resu ltan te que co u ­be à A m érica to rn o u -se m ais significativa.

Após o colapso do Terceiro Reich e o fim da infiuência alem ã, ou tro p o d er e o u tra filosofia, a inda m ais an tiam ericanos, to m aram seus lugares: a versão soviética do m arx ism o, den u n cian d o o cap ita­lism o ocidental e iden tificando os Estados U nidos com o sua form a m ais avançada e m ais perigosa. O fato de que os russos governassem , e não com m ão b randa , o vasto im pério asiático conqu istado pelos czares e reconqu istado pelos soviéticos não os im ped iu de posar, com considerável sucesso, com o os cam peões e pa trocinadores dos m ovim entos an tiim peria listas que varreram o m u n d o após a Segun­da G uerra M undial, cm especial, m as não exclusivam ente, no O rien ­te M édio. Em 194.S, assim parecia naquele tem po, o socialism o era a o n d a do fu tu ro . Na Europa o rien ta l, a U nião Soviética havia t r iu n ­fado nos cam pos de balalha. Na E uropa ociden tal, o P a rtid o T raba­lh ista b ritân ico vencera até m esm o o g rande W in sto n C hurch ill nas eleições gerais ile 1943, Várias fo rm as de socialism o fo ram e n tu ­siasticam ente ab raçadas po r governos e m o v im en to s em to d o o m u n d o árabe.

M as, em boi a esses patrocinadores estrangeiros e essas filosofias im portadas loriRaessem ajuda m ateria l e expressão in telectual para sen tim entos ani iocidenlais e an tiam ericanos, não fo ram as suas cau ­sas e, certam ente, nao explicam o d issem inado an tiociden talism o

D escobrindo a A m érica 77

que fez com que tan to s, no O rien te M édio e em ou tras partes do m u n d o islám ico, fossem receptivos a tais idéias. Deve ficar ab so lu ta ­m en te claro que o que garan tiu apoio a do u trin as to ta lm en te d iver­sas não foi a teoria racial nazista, que pode ter tido pouco apelo para árabes, n em o com un ism o soviético ateu , sem qualquer apelo para m u çu l­m anos, m as, sim , seu an tiociden talism o básico. O nazism o e o co ­m u n ism o eram as m aiores forças de oposição ao O cidente, tan to com o u m m o d o de vida q u an to com o u m p o d er no m u n d o , e, as­sim , po d iam co n ta r com a s im pada o u m esm o a colaboração dos que viam no O cidente seu in im igo principal.

M as, p o r qué? Se passarm os do geral p ara o específico, não te re ­m os d ificuldade em en co n tra r políticas e ações individuais, realiza­das e m an tidas p o r governos ocidentais específicos, que tenham incitado o od io apaixonado do O rien te M édio e de o u tro s povos islâ­m icos, m anifestado em suas várias lutas p ara ganhar independência de u m governo ou dom inação estrangeira; para liberta r recursos, es­pecialm ente petró leo , da exploração estrangeira, o u d e rru b a r gover­nantes e regim es vistos com o agentes o u im itadores do O cidente. A inda assim , com m u ita freqüência, qu ando essas políticas são ab an ­donadas e os problem as, resolvidos, há, no m áxim o, apenas u m alí­vio local e tem porário . Os ingleses saíram do Egito, os franceses deixaram a Argélia, am bos deixaram suas ou tras possessões árabes, as m onarqu ias fo ram derrubadas no Iraque e n o Egito, o xá pró - ocidentalização saiu do Irã, as com panh ias ocidentais de petró leo perderam o contro le dos poços que haviam descoberto e desenvolvi­do e se con ten ta ram com os m elhores a rran jos que p u d eram fazer com os governos desses países - e, a inda assim , o ressen tim en to ge­neralizado dos fundam entalistas e de ou tros ex trem istas con tra o O cidente perm anece, cresce e não se aplaca.

78 A crise do islã

Talvez o exem plo m ais freqüen tem ente citado de in terferência do O cidente e de suas conseqüências seja a d e rru b ad a do governo M o-

saddeq n o Irã, em 1953. A crise com eçou qu an d o o líder nacionalista p o p u la r M osaddeq, co n tan d o com apoio geral no país, decidiu nacionalizar as com panh ias de petró leo e, em particu lar, a m ais im ­p o rtan te delas, a C o m p an h ia A nglo-Iran iana. N ão há dúvida de que as condiçóes em que operavam essa e ou tras concessionárias de p e ­tró leo eram vistas, co rre tam en te , com o desiguais e desfavoráveis. P o r exem plo, a co m p an h ia de petró leo A nglo-Iran iana pagava m ais im postos ao governo b ritân ico do que royalties ao governo do Irã. Os Estados U nidos envolveram -se, p rim eiro , com o u m aliado da Ing laterra e depois, cada vez m ais, p o r receio de que os soviéticos se colocassem do lado do governo de M osaddeq. Os governos n o rte - am ericano e b ritân ico , p o rtan to , decid iram , alegadam ente em aco r­do com o xá, livrar-se de M osaddeq através de u m golpe de Estado. N o início, o p lano não pareceu ir m u ito bem . M osaddeq sim ples­m ente p ren d eu o m ensageiro do xá e o rd en o u a prisão do líder do golpe, general Z ahedi, que p re ten d ia ser o chefe do novo governo. P o r algum tem po , os que apoiavam M osaddeq e os m em bros do P artido C om u n ista T u d eh p rom overam dem onstrações de m assa nas ruas, den u n cian d o o xá e seu pai e g ritando “Yankees go h o m e ”. O xá fugiu com sua esposa para o Iraque, onde m anteve encon tros secretos com o em baixador no rte -am ericano , e depois foi para Rom a.

E nquan to isso, as m anifestações em Teerã m u d aram de caráter. Antes, haviam sido todas con tra o xá; agora, com eçavam a ser a seu favor, e os m ilitares a |iarcccram nas ruas apo iando-o . Após u m a série de protestos, M osaddeq foi d e rru b ad o e Zahedi o substitu iu com o p rim e iro -m in istro . Em 19 de agosto de 1953, as notícias chegaram ao xá através tie um telegram a da A ssociated Press: “Teerã: M osad­deq derrubado . ’lii)|-)as im periais con tro lam Teerã. Z ahedi p rim e i­ro -m in istro .” 1 ,ogo em seguida, o xá re to rn o u a Teerã e reassum iu seu trono .

Os desdobi am entos, de acordo com os padrões da região, foram notavelm ente am enos. O m in istro das Relações Exteriores do gover-

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no de M osaddeq foi executado e m uitos dos que o apoiavam m an d a ­dos p a ra a prisão. O p ró p rio M osaddeq foi ju lgado e condenado a três anos de prisão dom iciliar. Após ser libertado em agosto de 1956, viveu sob vigilância em sua p rop riedade até 1967. D ada a ativa in tervenção da C IA n o rte -am erican a e do M I6 b ritán ico na d e r­ru b ad a do regim e e no re to rn o do xá, este foi visto p o r g rupos signi­ficativos de seus súditos com o u m fantoche b ritán ico e, depois, no rte-am ericano .

Se assim foi, os que puxavam os cordões não eram confiáveis nem eficientes. Q u an d o veio a Revolução Iran iana, em 1979, nem in ­gleses nem n o rte -am ericanos fizeram qualquer coisa p ara im ped ir que o xá fosse derrubado . A adm in istração no rte -am erican a da ép o ­ca não apenas deixou de d ar qualquer ajuda, com o tam b ém deixou claro que não tin h a a in tenção de fazê-lo. M ais d ram ático ainda, d u ­ran te algum tem po recusou asilo ao xá e à sua fam ília nos Estados U nidos. O xá fugiu de Teerã em m eados de janeiro de 1979 e voou, via Egito, para o M arrocos, onde esteve brevem ente com o hóspede do rei. M as este tin h a ou tras preocupações, especialm ente u m en ­con tro da O rganização da C onferência Islâm ica que iria sediar em R abat no início de abril. Assim , o rei H assan p ed iu ao xá que deixasse o país no m áxim o até 30 de m arço. O xá in fo rm o u ao em baixador n o rte -am erican o que gostaria de aceitar a o ferta de asilo feita pelo presidente Cárter, apenas para descobrir que essa havia sido retirada, aparen tem en te na crença de que estabelecer boas relações com os novos governantes do Irã deveria te r p recedência sobre garan tir asilo ao xá e à sua família. Os Estados U nidos cederam apenas quan d o o xá estava m o rren d o e em extrem a necessidade de cu idados m édicos. Em 22 de o u tu b ro de 1979 o xá foi in fo rm ado de que poderia ir para os Estados U nidos; chegou a Nova York no início da m an h ã seguinte e foi d ire tam ente para o hospital. Ao se dar con ta de que sua presença estava causando problem as aos Estados U nidos, deixou o país, a des­peito de sua grave doença, e foi para o Panam á, de onde quase foi ex­trad itad o p ara o Irã, e de lá re to rn o u ao Egito, onde m o rreu em 1980.

80 A crise do islã

D iferentes g rupos na região tira ram duas lições desses aconteci­m entos: um a, que os n o rte -am ericanos estavam dispostos a usar tan to força qu an to in triga para insta lar o u restau rar seus governan­tes fantoches nos países do O rien te M édio; a o u tra , que os no rte- am ericanos não eram pa tro n o s confiáveis q u an d o seus fantoches eram atacados de fo rm a siginificativa p o r seu p ró p rio povo, e sim ­plesm ente os abandonavam . A p rim eira lição provocou ódio, a o u ­tra , desprezo - u m a com binação perigosa.

C laram ente, existe aí algo m ais p ro fu n d o que reclam ações e res­sen tim entos específicos, p o r m ais num erosos e im portan tes que possam ser; algo m ais p ro fu n d o que tran sfo rm a to d a discordância em prob lem a e to rn a todos os problem as insolúveis. O que estam os con fron tando agora não é apenas u m a reclam ação a respeito dessa ou daquela po lítica no rte -am ericana , m as sim u m a rejeição e um a condenação, ira e desprezo ao m esm o tem po, d irigidas a tu d o o que os Estados U nidos parecem represen tar no m u n d o m oderno .

U m a figura-chave na evolução dessas novas a titudes foi Sayyid Q utb , um egípcio que se to rn o u u m dos principais ideólogos do fu n d a m e n ta lism o m u ç u lm a n o e u m m em b ro ativo da o rg a n iz a ­ção fundam enta lista conhecida com o Irm ãos M uçulm anos. N ascido em 1906 em um a vila do Egito Superior, estudou no C airo e, p o r a l­guns anos, traballiou com o professor e depois com o funcionário do m in istério da Educaçáo. Foi enviado nessa posição para u m a m issão especial de estudos nos Fstados U nidos, onde ficou de novem bro de 1948 a agosto dc 1930. Seu ativism o fundam enta lista e seus escritos com eçaram logo cpie re to rn o u ao Egito. Após o golpe m ilita r de ju ­lho de 1952, m anteve, dc início, relações estreitas com os cham ados Oficiais lavres, mas alastou-se deles q u ando seus ensinam entos i.slá- m icos en tra ram em choque com as políticas secularistas daqueles. Após diversos em iiales com as au toridades, foi condenado, em 1955, a 15 anos de pi isao. ( ioino resultado da intercessão a seu favor do presidente Aril do lr.K|iic, foi libertado em 1964 e, no final do m es­m o ano, publicou um de seus livros m ais im po rtan tes , M a a lim

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f i l-T a r iq [M arcos n o cam inho], Foi preso novam en te em 9 de agosto de 1965, dessa vez acusado de traição e, especificam ente, de p lanejar o assassinato do presiden te Nasser. A pós u m ju lgam ento sum ário , foi condenado à m o rte em 21 de agosto de 1966. A sen ten ­ça foi cu m p rid a o ito dias depois.

A estadia de Sayyid Q u tb nos Estados U nidos parece ter sido u m período crucial para o desenvolvim ento de suas idéias a respeito das relações en tre o islã e o m u n d o exterior e, m ais particu la rm en te , en ­tre os p róp rio s países m uçu lm anos. O Estado de Israel havia acabado de ser estabelecido, lu tan d o e vencendo a p rim eira de u m a série de guerras árabe-israelenses p ara garan tir sua sobrevivência. N aquela época, a h u m an id ad e estava to m an d o ciência da quase to tal d estru i­ção dos judeus na Europa nazista, e a op in ião pública n o rte -am e­ricana, assim com o a da m aio r parte do m u n d o , estava m aciçam ente do lado israelense. As relações, d u ran te a guerra, en tre o Terceiro Reich e p roem inen tes líderes árabes com o o m ufti de Jerusalém e R ashid ‘Ali, do Iraque, tam b ém estavam nos no tic iários, e a sim patia p o p u la r foi, n a tu ra lm en te , para aqueles vistos com o vítim as de H i- tler, que haviam lu tado p ara escapar da destru ição nas m ãos dos cúm plices do nazism o. Sayyid Q u tb ficou chocado com o nivel de apoio na A m érica ao que via com o urna agressão selvagem dos ju ­deus con tra o islã, com a cum plicidade cristã.

M ais reveladora ainda foi sua resposta escandalizada ao m odo de vida n o rte -am erican o - p rinc ipa lm en te em seus aspectos peca­m inosos e degenerados e em seus hábitos - , ao que viu com o p ro ­m iscuidade sexual. Sayyid Q u tb to m o u com o dado o contraste en tre a espiritualidade o rien ta l e o m ateria lism o ocidental, e descreveu os Estados U nidos com o urna fo rm a p a rticu la rm en te ex trem ada do ú l­tim o. Tudo na A m érica, escreveu, m esm o a religião, é m edido em term os m ateriais. O bservou que lá havia m uitas igrejas, m as alertou seus leitores de que não deviam ser vistas equivocadam ente com o urna m anifestação de religiosidade ou espiritualidade. As igrejas na A m érica, disse ele, o p eram com o negócios, co m petindo p o r clientes

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e public idade e usando os m esm os m étodos das lojas e teatros para a tra ir fregueses e platéias. P ara o clérigo de u m a igreja, assim com o p ara o gerente de u m a loja ou de u m tea tro , o que con ta é o sucesso, e sucesso é m edido p o r tam an h o e núm eros. Para a tra ir clientelas, as igrejas se anunc iam sem o m en o r constrang im en to , e oferecem o que os n o rte -am ericanos m ais buscam - “good tim e” o u “fu n ” (ele u sou as palavras em inglês no seu texto árabe). O resu ltado é que os salões de festa das igrejas, com as bênçãos do clero, p ro m o v em bailes onde pessoas de am bos os sexos se en co n tram , se m istu ram e se to ­cam . Os clérigos chegam ao p o n to de reduzir a ilum inação a fim de facilitar o frenesi da dança. “A dança se in tensifica com as no tas do g ram ofone”, n o to u , com evidente desprazer; “o salão transfo rm a-se em u m redem o in h o de saltos e coxas, braços em volta de quadris, lá­bios e seios se en co n tran d o , e o ar fica cheio de lu x ú ria”. T am bém cita os R elatórios K insey sobre co m p o rtam en to sexual p ara d o cu ­m en ta r sua descrição e co n d en ar a universal libertinagem n o r­te-am ericana.* Esse p o n to de vista do O cidente e de seus costum es pode a judar a explicar p o r que terro ristas devotos vêem com o alvos legítim os de seus ataques os salões de dança, boates e o u tros locais

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Sayyid Q utb , Al-Islam wa-mushkUat al-hadara (n .p ., 1967), p.SOss. Ver tam bém John Calvert, ‘“ The W orld is an U ndutifu l Boy!’ Sayyid Q u tb ’s A m erican Experien- ces”, in Islam and Christian-Muslim Relations, 2 (m arço 2000), p .87-103. Ele ded i­cou u m livro à parte, publicado após sua m orte na Arábia Saudita, a “nossa batalha com os jud eu s”: Ma'rakatuna m a‘a al-Yahud (D jedda, 1970). Além do específico conflito árabe com os judeus, fala do pernicioso papel ju d eu na guerra con tra o islã e, em term os mais gerais, con tra valores religiosos: “Por trás da concepção ateísta, m aterialista, cs(á um judeu [M arx]; po r trás da concepção sexual bestial, um judeu [Freud]; po r trás ila destruição da família e da pertu rbação dos laços sagrados da so­ciedade, um jtuleu 11iurkheim ].” Na realidade, os três são m encionados não por Sayyid Q utb , mas por seu editor, que, para com pletar, acrescenta um quarto em um a nota de rod.iiie: le.m -Paul Sartre, to rn ad o judeu para esse propósito , com o o insp irador da iilei.iluia ile desintegração e ru ína. Parece provável que a inspiração de Sayyid Q u tb pai .i ess.i e o utras passagens antijudeus (distintas de anti-Israel e a n ­ti-sionista) era européi.i ou americana.

onde ho m en s e m ulheres jovens se encon tram . As censuras ao m o d o de vida n o rte -a m e rica n o feitas p o r Sayyid Q u tb e ram tão v eem en ­tes q u e , em 1952, foi o b rig a d o a d e ix a r seu cargo n o m in is té r io da Educação. D epois disso, aparen tem ente , ju n to u -se aos Irm ãos M uçulm anos.

O cerne dos ataques contidos nos escritos e nas pregações de Sayyid Q u tb estava d irig ido con tra o in im igo in te rn o - o que cham a­va de a nova era da ignorância, jahiliyya em árabe, um te rm o islâm i­co clássico aplicado ao p eríodo de paganism o que prevaleceu na A rábia antes do advento do Profeta e do islã. Na op in ião de Sayyid Q u tb , u m a nova jahiliyya havia envolvido os povos m uçu lm anos e os novos Faraós - co rre tam en te vistos com o u m a alusão aos regim es existentes - que os estavam governando. M as a am eaça do inim igo ex terno era g rande e crescente.

Tem sido sugerido que o an tiam erican ism o de Sayyid Q u tb é sim plesm ente o resultado do fato de ele ter v isitado os Estados U n i­dos, e que teria reagido da m esm a fo rm a se seu m in istro o tivesse en ­viado para qualquer país europeu . M as, naquela época, a A m érica era o que im portava, e, p ara o bem ou para o m al, a liderança que exercia sobre o m u n d o não-islâm ico era crescentem ente reconheci­da e d iscutida. O pecado e a degeneração en tre os no rte-am ericanos, e a conseqüente am eaça que representavam para o islã e os povos m u ­çulm anos, to rnaram -se artigos de fé nos círculos fundam entalistas.

A tualm ente, há u m a ladainha quase p ad ron izada de insultos no rte -am ericanos recitada nas terras do islã, na m íd ia , em panfletos, em serm ões e em p ro n u n ciam en to s públicos. U m exem plo notável foi o discurso de u m professor egípcio na reun ião con jun ta da U nião E uropéia e da Q rganização da C onferência Islâm ica realizada em Istam bul em fevereiro de 2002. A lista de crim es rem on ta ã coloniza­ção da A m érica do N orte e ao que é descrito com o expropriação e ex­te rm ín io dos hab itan tes orig inais e con tínuos m au s-tra to s sofridos pelos sobreviventes. Segue com a escravização, a im portação e a ex­p loração de negros (um a acusação curiosa, v inda de onde veio) e de

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im igrantes nos Estados U nidos. Inclu i crim es de guerra con tra o Ja­pão em H irosh im a e Nagasaki, bem com o na C oréia, Som ália, no V ietnã e em o u tro s lugares. E ntre esses crim es de agressão im p eria ­lista são notáveis as ações no rte -am ericanas no Líbano, em C artum , na Líbia, no Iraque e, p o r certo , a ajuda a Israel con tra os palestinos. Em te rm os m ais am plos, a folha de acusação inclu i o apoio a tiranos do O rien te M édio e ou tros, tais com o o xá do Irã e H ailé Selassié, da E tiópia, bem com o u m a lista variada, ad ap tad a às circunstâncias, de tiranos árabes inim igos de seus p róp rio s povos.

No en tan to , a acusação m ais enérgica de todas é a degeneração e a libertinagem do m o d o de vida no rte -am ericano , e a am eaça que re ­p resen tam para o islã. Essa am eaça, fo rm ulada de m o d o clássico p o r Sayyid Q utb , to rn o u -se parte usual do vocabulário e da ideologia dos fundam entalistas islâm icos e, m ais notavelm ente, da linguagem da Revolução Iran iana. Isso é o que significa o te rm o o G rande Satã, aplicado aos Estados U nidos pelo falecido aiatolá K hom eini. Satã, tal com o descrito no A lcorão, não é u m im perialista nem u m explora­dor. Ele é um sedutor, “o ten tad o r insid ioso que sussurra nos co ra­ções dos h o m en s” (A lcorão CXIV, 4, 5).

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Satã e os Soviéticos

o novo papel dos Estados U nidos - e a m aneira com o esse era perce­b ido pelo O rien te M édio - foi ilustrado vividam ente p o r u m inc i­dente no Paquistão em 1979. N o dia 20 de novem bro , u m bando de m il religiosos radicais m uçu lm anos to m o u a G rande M esquita de M eca e a o cu p o u d u ran te algum tem po, resistindo às forças de segu­rança sauditas. Seu objetivo declarado era “purificar o islã” e libertar a te rra san ta da A rábia da “clique real de infiéis” e dos líderes religio­sos co rru p to s que os apoiavam . O líder, em discursos através de al­to-falantes, d enunc iou os ocidentais com o destru idores dos valores islâm icos fundam enta is e o governo saudita com o seu cúm plice, e conclam ou a u m re to rn o ãs velhas tradições islâm icas de “justiça e igualdade”. Após algum as lutas intensas, os rebeldes fo ram elim ina­dos. Seu líder foi executado em 9 de janeiro de 1980, ju n to com 62 de seus seguidores, en tre os quais egípcios, kuw aitianos, iem enitas e c i­dadãos de o u tro s países árabes.

E nquan to isso, u m a dem onstração de apoio aos rebeldes o co r­reu na capital do Paquistão, Islam abad. H avia circulado o ru m o r - adm itido pelo aiatolá K hom eini, en tão no processo de se estabelecer com o o líder revolucionário n o Irã - de que tropas norte-am ericanas estariam envolvidas nos conflitos em Meca. A em baixada no rte - am ericana foi atacada p o r u m a m u ltidão de m anifestantes m u çu l­m anos e, na ocasião, dois n o rte -am ericanos e dois em pregados p a ­

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quistaneses fo ram m ortos. P o r que teria K hom ein i acred itado e agido com base em um a notíc ia que nâo apenas era falsa, m as quase to ta lm en te im provável?

Esses acontecim entos oco rre ram no contexto da Revolução Ira ­n iana de 1979. N o d ia 4 de novem bro, a em baixada dos Estados U n i­dos em Teerã foi to m ad a e 62 n o rte -am erican o s feitos reféns. Dez deles, m ulheres e afro-am ericanos, fo ram libertados im ediatam ente; os dem ais fo ram m an tid o s p o r 444 dias, até serem soltos no dia 20 de janeiro de 1981. Os m otivos p ara isso, que a m u ito s pareciam obscu ­ros naquela época, to rn a ram -se cada vez m ais claros desde então, graças a subseqüentes declarações e revelações de alguns que m a n ti­veram os reféns e de ou tras fontes. É claro agora que a crise dos reféns ocorreu nâo p o rque as relações en tre o Irã e os Estados U nidos tives­sem deteriorado , m as p o rque estavam m elho rando . N o o u to n o de 1979, o p rim eiro m in is tro iran iano relativam ente m oderado , M ehdi Bazargan, havia conseguido u m encon tro com o conselheiro n o r ­te-am ericano p ara assuntos de segurança nacional, Z bigniew Brze- zinski, sob os auspícios do governo argelino. Os dois se encon tra ram no d ia 1- de novem bro e co rreu a no tíc ia de que foram fotografados tro can d o u m aperto de m ãos. Parecia haver u m a possibilidade real - um perigo real, aos olhos dos radicais - de que pudesse existir algu­m a reconciliação en tre os dois países. Os m anifestan tes to m aram a em baixada e fizeram reféns os d ip lom atas n o rte -am ericanos a fim de d estru ir qualquer esperança de diálogo subseqüente. N isso eles o b ti­veram , pelo m enos tem porariam en te , sucesso total.

Para K hom eini, os Estados U nidos eram o p rincipal inim igo con tra o qual havia qiie deflagrar sua guerra san ta pelo islã. Então, tal com o no passado, cssc m undo de infiéis era visto com o a ún ica força rival im p o rtan te im ped indo a realização do com ando divino de p ro ­m over a dissem inação c o triu n fo do islã. N os escritos m ais antigos de K hom eini, e em especial no seu livro de 1970, O governo islâmico, são poucas as m enções aos Estados U nidos, e oco rrem p rin c ip a l­m en te no conlexto do im perialism o - p rim eiro com o auxiliares, d e ­

Satã e os soviéticos 87

pois com o sucessores do m ais fam iliar Im pério Britânico. N a época da revolução e da confron tação d ire ta gerada p o r ela, os Estados U nidos haviam -se to rn ad o , para K hom eini, o p rinc ipal adversário e o alvo cen tral do ódio e desprezo m uçu lm anos.

A hostilidade especial de K hom ein i aos Estados U nidos parece d a ta r de o u tu b ro de 1964, q u ando fez u m p ro n u n c iam en to em fren ­te a sua residência em Q u m d enunciando apaixonadam ente a lei en cam inhada à A ssem bléia iran iana, que concedia status de ex trater- rito ria lidade à m issão m ilita r n o rte-am ericana , inclu indo famílias, pessoal adm inistra tivo , assessores e em pregados, e im un idade p e ­ran te a ju risd ição iran iana. A paren tem ente, ele não sabia que im u n i- dades sem elhantes haviam sido solicitadas e concedidas, com o era de se esperar, às forças no rte -am ericanas estacionadas na G rã-B retanha d u ran te a Segunda G uerra M undial. M as a questão das cham adas ca­p itu lações - im unidades ex tra territo ria is concedidas no passado a com erciantes ocidentais e a ou tros viajantes em terras islâm icas - era u m p o n to sensível, e K hom ein i teve g rande habilidade ao jogar com ele. “R eduziram o povo iran iano a u m nível m ais baixo que o de um cachorro no rte -am ericano . Se alguém a tropelar u m cachorro p e r­tencente a u m norte -am ericano , será julgado. M esm o se o p ró p rio xá a tropelar o cachorro de u m norte -am ericano , será julgado. M as se u m cozinheiro n o rte -am erican o a tropelar o xá, o chefe do Estado, n inguém terá o d ire ito de fazer nada con tra ele.”* E stando já com problem as com as au to ridades, esse p ro n u n c iam en to fez com que K hom ein i fosse exilado do Irã em 4 de novem bro. Ele vo ltou a esse tem a em diversas o u tras falas e escritos, rid icu larizando os n o r-

88 A crise do islã

Esses e ou tros textos serão encontrados em Islam and Revolutiou: Writings and Dedarations o fim am Khomeini, traduzido e ano tado po r H aniid Algar (Berkeley, 1981). Seu Islamic Government íoi um a série de leituras realizadas no centro xiita de Najaf, Iraque, lugar do exílio de K hom eini, e publicado logo depois em árabe e p e r­sa. Para os que o leram , o curso subseqüente da Revolução Islâmica no Irã não terá sido nenhum a surpresa.

te-am ericanos em particu la r p o r seu suposto com prom isso com os d ireitos h u m an o s e pela m an eira com o ignoravam esses d ireitos no Irã e em o u tros lugares, inc lu indo a A m érica Latina, “em seu p ró p rio hem isfério”. O u tras acusaçóes inclu íam o saque das riquezas do Irã e o apoio à m o n arq u ia iraniana.

Em p ro n u n ciam en to s após sua volta ao Irã, tan to a lista de q u e i­xas quan to a de inim igos ficaram m aiores, m as os Estados U nidos v i­nham agora em p rim eiro lugar. E não apenas no Irã. Em u m discurso feito em setem bro de 1979 em O um , reclam ou que to d o o m u n d o is­lâm ico estava am arrad o a m uletas n o rte-am ericanas, conclam ando os m uçu lm anos de todo o m u n d o a se un irem co n tra seu inim igo. Foi p o r essa época que com eçou a falar dos Estados U nidos com o “o G rande Satã”. Tam bém d atam desse tem po suas denúncias con tra Anw ar Sadat do Egito e Saddam H ussein do Iraque, apo n tan d o -o s com o servos e agentes da A m érica. Sadat servira a A m érica ao fazer as pazes com Israel; Saddam H ussein, ao declarar guerra con tra o Irã. As confrontações com a A m érica na crise dos reféns, na invasão do Iraque e em m uitos cam pos de bata lha d ip lom áticos e econôm icos con firm aram a crítica de K hom eini, segundo a qual a A m érica o c u ­pava a posição central na lu ta en tre o islã e o O cidente. Dali em d ia n ­te, a A m érica passou a ser “o G rande Satã”. Israel, visto com o um agente no rte -am ericano , era “o Pequeno Satã”, e “m o rte à A m érica” passou a ser a o rdem do dia. Esse era o slogan b ran d id o e g ritado nas m anifestações an tiam ericanas de 1979. M ais tarde, g anhou um a qualidade cerim onial, quase ritualizada, que o d ren o u da m aio r p a r ­te de seu significado real.

O bservadores norte-am ericanos, despertados pela re tó rica da Revolução Iraniana pai a seu novo status de o G rande Satã, ten ta ram en co n tra r razócs para o sen tim en to an tiam ericano que se v inha in ­tensificando no m n n d o islâmico havia algum tem po. U m a explica­ção, tem p o rariam en te aceita por m uitos, em especial nos círculos de política externa norte-am ericanos, era que a im agem da A m érica h a ­via sido m anch.ula por sua aliança, tan to no tem po da guerra qu an to

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depois, com os antigos poderes coloniais da E uropa. N a defesa de seu país, alguns com entaristas n o rte-am ericanos m o stra ram que, d iferen tem ente dos im perialistas da E uropa ocidental, a A m érica havia sido, ela m esm a, u m a vítim a do colonialism o, pois os Estados U nidos fo ram o p rim eiro país a se libertar do d o m ín io britân ico . M as a esperança de que os súditos dos antigos Im périos B ritânico e Francês no O rien te M édio aceitassem a Revolução A m ericana com o um m odelo p ara sua p ró p ria lu ta an tiim peria lista apoiava-se n u m a falácia elem entar, logo identificada p o r escritores árabes. A R evolu­ção A m ericana, com o freqüen tem en te destacam , foi u m a lu ta de co lonizadores britân icos, não de nativos n o rte -am ericanos n ac io n a­listas, e, longe de ser u m a v itória con tra o colonialism o, rep resen tou o to ta l tr iu n fo desse; os ingleses na A m érica do N o rte tiveram um sucesso tão g rande em colonizar a te rra que já não precisavam do apoio da m e trópo le co n tra os hab itan tes originais.

Não poderia su rpreender que antigos súditos coloniais no O rien ­te M édio vissem os Estados U nidos com o con tam inados pelo m es­m o tip o de im peria lism o da E uropa ocidental. M as o ressen tim ento do O rien te M édio co n tra os poderes im periais nem sem pre tem sido coerente. A U nião Soviética, que conservou e am p lio u as conquistas im periais dos czares da Rússia, governou, com m ão nada leve, deze­nas de m ilhões de súditos m uçu lm anos na Ásia C en tral e no Cáuca- so. E, a inda assim , não foi tão fustigada pela raiva e pelo ód io da com unidade árabe.

O interesse da Rússia pelo O rien te M édio nâo era novo. D u ra n ­te séculos, os czares haviam -se expand ido para o sul e para o leste, in ­co rp o ran d o vastos te rritó rio s m uçu lm anos a seu im pério às custas da Turquia, da Pérsia e dos antigos Estados m u çu lm an o s in d ep en ­dentes da Ásia C entral. A d erro ta do Eixo em 1945 trouxe u m a nova am eaça soviética. O s soviéticos estavam agora fo rtem ente e n tr in ­cheirados nos Bálcãs e p o d iam p ô r a T urquia em perigo nas fro n ­teiras orien tal e ocidental. Já estavam den tro do Irã, o cupando a província persa do A zerbaijão. Sua am eaça ao Irã v inha de longa

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data. Nas guerras russo-iran ianas de 1804-1813 e 1826-1828, os ru s ­sos haviam adq u irid o a parte n o rte do A zerbaijão, que se to rn o u um a província do im pério czarista e, m ais ta rde , u m a república da U nião Soviética. N a Segunda G uerra M undial, ju n to com os ingle­ses, os soviéticos ocu p aram o Irã a fim de garan tir suas linhas de co ­m unicação para uso m ú tu o . Q u an d o a guerra te rm in o u , os ingleses se re tiraram ; os soviéticos ficaram , aparen tem en te com a in tenção de anexar à U nião Soviética o que restava do Azerbaijão.

D aquela vez eles fo ram contidos. Graças, em grande parte , ao apoio no rte -am ericano , os tu rcos fo ram capazes de resistir à d em an ­da soviética p o r bases nos Estreitos, enq u an to os iran ianos desm an ­telavam o Estado fan toche com un ista que os ocupan tes soviéticos haviam instalado n o A zerbaijão persa e reasseguravam a soberan ia do governo do Irã sobre todos os seus territó rio s.

Por algum tem po , a ten tativa soviética de m ateria lizar o antigo sonho dos czares en co n tro u resistência, e tan to a T urquia q u an to o Irã fizeram alianças ocidentais. M as o acordo russo-egípcio sobre a r­m am entos, firm ado em 1955, trouxe a Rússia de volta ao jogo do O rien te M édio, agora n u m papel de liderança. Os tu rcos e iran ianos tin h am longa experiência com o im peria lism o russo e se m ostravam , p o rtan to , cautelosos. A experiência dos Estados árabes com o im p e­rialism o era exclusivam ente ocidental, e estavam dispostos a o lhar p ara os soviéticos de m o d o m ais favorável. Através de avanços suces­sivos na fron teira n o rte e de negociações diretas com os recém - independen tes Estados árabes, os russos conseguiram , em pouco tem po, estabelecer um a posição m u ito sólida.

No início, seguiram os m esm os passos de seus antecessores da E uropa ocidental - bases m ilitares, su p rim en to de arm as, “ajuda” m ilitar, penetração econôm ica e cultural. M as, p ara o estilo de rela­ções soviéticas, isso era apenas u m com eço, e a in tenção era, c lara­m ente, levar as coisas m uito m ais adiante. Restam poucas dúvidas de que, se não fosse a oposição no rte-am ericana , a G uerra Fria e o co­lapso final da U nião Soviética, o m u n d o árabe teria, na m elho r das

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hipóteses, seguido a sorte da Polônia e da H ungria , m ais provavel­m ente , do U sbequistão . E isso não é tudo . E nq u an to buscavam esta­belecer u m p ro te to rad o sobre seus aliados n o O rien te M édio , os soviéticos m o stra ram -se defensores m u ito pouco eficazes. N a guer­ra árabe-israelense de 1967 e, novam ente , em 1973, não m o stra ram n en h u m a inclinação n em capacidade para salvar seus p ro teg idos da d e rro ta e da hum ilhação . O m elh o r que pu d eram fazer foi se un irem aos Estados U nidos p ara p ô r u m fim ao avanço israelense.

N o início da década de 1970, a presença soviética estava to rn a n ­do-se não apenas ineficaz, m as tam bém irritan te . C om o n o caso de seus antecessores im peria is ocidentais, os soviéticos haviam estabe­lecido em solo egípcio bases m ilitares nas quais os p ró p rio s cidadãos egípcios não po d iam entrar, e logo passaram p ara o clássico estágio seguinte de celebrar tra tados tendenciosos e desiguais.

H ouve alguns líderes do O rien te M édio que ap renderam a lição e se voltaram , com m aio r o u m en o r relu tância, para o O cidente. N o ­tável en tre eles foi o presidente A nw ar Sadat do Egito, que havia h e r­dado a relação soviética de seu antecessor, o presidente Nasser. Em m aio de 1971, Nasser foi induzido a assinar um m u ito desigual “Tra­tad o de A m izade e C ooperação” com a U nião Soviética;* em ju lho de 1972, o rd en o u que seus assessores m ilitares soviéticos deixassem o país e to m o u as p rim eiras m edidas para estabelecer relações cordiais com os Estados U nidos e a paz com Israel. No en tan to , o presidente Sadat parece ter se m an tid o quase sozinho em seus ju lgam entos e em suas políticas e, de m o d o geral, isso parece não te r resu ltado em n e ­n h u m a d im inu ição da boa von tade com relação aos soviéticos e n en h u m corresponden te crescim ento da b o a von tade qu an to aos Estados U nidos. Os soviéticos não sofreram n e n h u m a penalidade, nem ao m enos reprovação, p o r sua repressão ao islã nas repúblicas

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* Sobre esse tratado , ver B ernard Lewis, “O rientalist N otes oii the Soviet-U nited Arab Republic T reaty o f 27 M ay 1971”, Princeton Papers in Near V.astern Studies, n.2 (1993),p .57-65.

da Ásia C entral e transcauscasianas, o nde fo ram autorizadas 200 m esquitas para a ten d er às necessidades religiosas de 50 m ilhões de m uçulm anos. D a m esm a form a, os chineses não fo ram condenados po r suas batalhas co n tra m u çu lm an o s em Sinkiang, nem os norte- am ericanos receberam q u a lquer m érito p o r seus esforços para salvar m uçu lm anos na Bosnia, em K osovo e n a A lbânia. O bviam ente, h a ­via ou tras considerações em jogo.

Talvez a m ais d ram ática ilustração dessa d isparidade tenha sido a invasão soviética do A feganistão no final de dezem bro de 1979, com a criação de u m governo fan toche naquele país. Seria difícil e n ­co n tra r u m caso m ais claro e m ais óbvio de agressão, conqu ista e d o ­m inação im perialistas. E, a inda assim , a resposta dos árabes e, em term os m ais gerais, do m u n d o islâm ico, foi consideravelm ente silen­ciosa. Em 14 de janeiro de 1980, após longas protelações, a A ssem ­bléia Geral das N ações U nidas foi finalm ente capaz de aprovar um a resolução sobre esse episódio, não com o sugerido, condenando a agressão soviética, m as “lam en tan d o veem entem ente a recente in ­tervenção arm ada no A feganistão”. A palavra agressão não foi usada, e não se m en cio n o u o “in te rv en to r”. A votação teve 104 votos con tra 18. E ntre os países árabes, a Síria e a Argélia abstiveram -se; o lêm en do Sul vo to u co n tra a resolução; a Líbia não estava presente. O o b ser­v ador - sem direito a voto - da OLP fez um discurso em que defendia com vigor a ação soviética. A O rganização da C onferência Islâm ica não se saiu m u ito m elhor. Em 27 de janeiro , após m uitas m anobras e negociações, a O C I conseguiu organizar u m encon tro em Islam abad e d iscu tir a questão soviético-afegã. Dois Estados m em bros, lêm en do Sul e Síria, bo ico taram a reunião; a delegação da Líbia fez u m v io ­lento a taque aos Estados U nidos, enq u an to o rep resen tan te da OLP,

m em bro pleno da O C I, absteve-se de vo tar sobre a resolução a n ti­soviética c apresen tou suas reservas p o r escrito.

H ouve algum a resposta no m u n d o m u çu lm an o à invasão sovié­tica - algum d inheiro saudita, algum as arm as egípcias e m uitos v o ­lun tário s árabes. Mas ficou a cargo dos Estados U nidos organizar,

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com certo sucesso, u m co n tra -a taq u e islâm ico ao im perialism o so ­viético n o Afeganistão. A O C I aju d o u pouco os afegãos, p referindo co n cen tra r sua atenção em o u tro s assuntos - algum as pequenas p o ­pulações m uçu lm anas em áreas a inda não-descolonizadas e, é claro, o conflito Israel-Palestina.

Israel é u m d en tre m u ito s pon to s nos quais os m u n d o s islâm ico e não-islâm ico se encon tram : Nigéria, Sudão, Bosnia, Kosovo, M ace- dôn ia , T chetchênia, Sinkiang, Caxem ira, T im or, M indanao etc. C ada u m desses m u n d o s constitu i a questão central p ara os d ire tam ente envolvidos, e u m a digressão incôm oda para os ou tros. Os ocidentais, ao con trário , tendem a d ar a m aio r im p o rtân c ia às queixas que espe­ram ver satisfeitas às custas de ou tros. O conflito Israel-Palestina cer­tam ente tem a tra ído m u ito m ais atenção que qualquer u m dos ou tros, p o r diversas razões. P rim eira , dado que Israel é um a d em o ­cracia e u m a sociedade aberta, é m u ito m ais fácil no tic iar - e no tic iar de fo rm a e rrada - o que está acontecendo no país. Segunda, os ju ­deus estão envolvidos, e, em geral, isso p ode garan tir u m a audiência significativa en tre aqueles que, p o r u m a razão o u o u tra , são a favor deles o u contra. U m b o m exem plo dessa d iferença é a G uerra Irã- Iraque, que d u ro u oito anos, de 1980 a 1988, e causou m ortes e des­tru ição m u ito m aiores que todas as guerras árabe-israelenses jun tas, m as recebeu bem m enos atenção. É verdade que nem Iraque nem Irã são u m a dem ocracia, e a co b ertu ra jo rnalística era, p o rtan to , um a tarefa m ais difícil e m ais perigosa. Por o u tro lado, os judeus não esta­vam envolvidos, nem com o vítim as nem com o autores, e as notícias, p o rtan to , eram m enos interessantes.

U m a terceira e, em ú ltim a instância, a m ais im p o rtan te razão p ara a p rim azia da questão palestina é que ela é, p o r assim dizer, um a queixa au to rizada - a ún ica que pode ser expressada com liberdade e segurança naqueles países m u çu lm an o s o nde a m íd ia está to ta lm en ­te nas m ãos do governo o u é estritam ente superv isionada p o r ele. Na verdade, Israel serve com o u m ú til b ode expiatório para reclam ações sobre as privações econôm icas e a repressão po lítica sob as quais vive

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a m aior parte dos povos m uçu lm anos, e com o u m a m aneira de des­viar o ód io resu ltan te. Esse m éto d o é am plam en te favorecido pelo cenário in te rn o israelense, o nde q u a lquer im p ro p ried ad e da parte do governo, do exército, dos co lonos ou de quem quer que seja é im ed ia tam ente revelada e qualquer falsidade im ed ia tam en te d e n u n ­ciada p o r críticos israelenses, tan to judeus q u an to árabes, na m íd ia e no P arlam ento israelenses. A m aio r p arte dos o p o nen tes de Israel não sofre n e n h u m desses im ped im en to s em sua d ip lom acia pública.

À m ed ida que os im périos da E uropa ocidental declinavam , o an tiam erican ism o do O rien te M édio foi sendo a trib u íd o a ou tras causas m ais específicas: exploração econôm ica, freqüen tem ente des­crita com o pilhagem dos recursos das terras islâmicas; o apoio a tira ­nos locais co rru p to s que serviam aos p ropósitos norte-am ericanos, o p rim in d o e ro u b an d o seu p ró p rio povo, e, cada vez m ais, u m a o u ­tra causa - o apoio dos Estados U nidos a Israel, p rim eiro em seu co n ­f i to com os árabes palestinos, depois em seu conflito com os Estados árabes vizinhos e o m u n d o islâm ico. Existe, certam ente, sustentação p ara essa h ipótese nas declarações árabes e persas, m as o argum ento de que, sem um o u o u tro desses im ped im en tos, tu d o teria ido bem p ara as políticas n o rte-am ericanas no O rien te M édio parece u m ta n ­to im plausível. O p rob lem a palestino tem causado, sem dúvida, g rande e crescente ódio, renovado e agravado, de tem pos em tem pos, p o r políticas e ações dos governos ou p a rtidos israelenses. M as será que p ode ser, com o a rg u m en tam alguns, a causa p rim e ira do sen ti­m en to antiocidental?

A lgum as incongruências aparecem reco rren tem en te nos regis­tros h istóricos. Na década de 1930, as políticas da A lem anha nazista fo ram a principal causa da m igração ju d ia p ara a Palestina, que esta­va en tão sob m andato britânico , e do reforço da com unidade jud ia na nova terra. O s nazistas não apenas p e rm itiam essa m igração; eles a facilitaram até o início da guerra, enqu an to os ingleses, na esperan ­ça u m tan to desolada dc ganhar a benevolência árabe, im puseram restrições c as lizet am cum prir. A inda assim , a liderança palestina da

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época, e m u ito s o u tro s líderes árabes, apo iaram os alemães, que m an d a ram os judeus p ara a Palestina, em vez de apoiar os ingleses, que ten ta ram m an tê-lo s longe.

O m esm o tip o de discrepância pode ser visto nos acon tec im en­tos que levaram ao estabelecim ento do Estado de Israel, em 1948, en ­tre o u tro s que se seguiram . A U nião Soviética desem penhou papel significativo na ob tenção da m aio ria pela qual a Assem bléia Geral das Nações U nidas vo to u o estabelecim ento de u m Estado judeu na Palestina e den a Israel im ediato reconhecim ento de jure. Os Estados U nidos estavam m ais hesitantes, e deram apenas reconhecim ento de facto. M ais im p o rtan te , o governo n o rte -am erican o m anteve um em bargo parcial de arm as con tra Israel, en q u an to a Tchecoslová- quia, com autorização de M oscou, enviou im edia tam ente u m su p ri­m en to de arm as que p e rm itiram a sobrevivência do novo Estado. Na época, a razão dessa po lítica soviética não foi nem boa vontade com relação aos judeus nem m á-von tade con tra os árabes. Estava baseada na crença equivocada - m as am plam ente aceita en tão - de que a Ing laterra ainda era a m aio r po tência do O cidente e, p o rtan to , o p rinc ipal rival de M oscou. G om base nisso, qualquer u m que criasse p roblem as para os ingleses - tal com o haviam feito os judeus nos ú l­tim os anos do m an d ato b ritán ico - m ereceria o apoio soviético. M ais tarde, Stálin percebeu seu erro e vo ltou a atenção para os Esta­dos U nidos, em vez de para a Inglaterra.

N a década que se seguiu à fundação de Israel, os n o rte -am eri­canos que tra tavam com o Estado ju d eu co n tin u aram a ser lim itados e cau te lo so s. A pós a G u e rra de Suez, em 1956, os E stad o s U nidos in te rv ie ram , de m an e ira v igorosa e decisiva, p a ra g a ran tir a re tira ­da das forças israelenses, b ritân icas e francesas. O líder soviético K hrushchev, que p erm anecera cautelosam ente silencioso ñas p r i­m eiras etapas da guerra, percebeu que u m p ro n u n c iam en to pró - árabe não trouxera n en h u m perigo de colisão com os Estados U n i­dos, e en tão - apenas en tão - se posic ionou fo rtem ente do lado á ra ­be. Até bem m ais tarde, na guerra de 1967, Israel ainda contava com

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a rm am en tos da E uropa, p rinc ipa lm en te de fornecedores franceses, e não dos norte-am ericanos.

A pesar disso, o re to rn o do im perialism o russo, agora na form a de U nião Soviética, a u m papel m ais ativo nos interesses do O rien te M édio trouxe um a resposta en tusiástica do m u n d o árabe. Após al­gum as visitas d ip lom áticas e ou tras atividades, a nova ligação veio a público, com o anúncio oficial, no final de setem bro de 1955, da assi­n a tu ra de u m tra tad o de a rm am en tos en tre a U nião Soviética e o Egito, que, d u ran te os anos seguintes, to rn o u -se cada vez m ais um satélite soviético. A inda m ais expressivo que o p ró p rio negócio das arm as foi o m odo com o foi bem recebido no m u n d o árabe, tra n s ­cendendo diferenças e reclam ações locais. As C âm aras de D eputados na Síria, L íbano e Jordânia reun iram -se im ed ia tam en te e vo taram resoluções de congratu lação ao en tão p rim e iro -m in is tro Nasser; até N uri Said, o governante p ró -o c id en te do Iraque e rival de N asser na d ispu ta pela liderança pan-aráb ica , sen tiu-se ob rigado a enviar co n ­gratulações a seu colega egípcio. Q uase to d a a im prensa árabe deu um apoio entusiástico.

Por que essa reação? C ertam ente , os árabes não tin h am u m a es­tim a especial pela Rússia, nem os m uçu lm anos do m u n d o árabe e de ou tras partes desejavam trazer a ideologia com unista o u o p o d er so ­viético p ara seus países. N em foi, tam pouco , u m a recom pensa à p o lí­tica israelense de M oscou, que havia sido bastan te am istosa. O que encan tou os árabes foi que v iram - corre tam ente , sem dúv ida - o tra tad o de a rm am en tos com o u m tapa na cara do O cidente. O tapa e a resposta visivelm ente em baraçada do O cidente e, em particular, dos Estados U nidos, reforçaram o clim a de ód io e m alevolência co n ­tra o O cidente e encorajaram seus proponen tes.

A expansão da inlluência soviética no O rien te M édio e a respos­ta entusiástica a ela eslinu ilaram os Estados U nidos a o lhar m ais fa­voravelm ente paia Isr.iel, visto agora com o u m aliado confiável e po tencialm enie iilil em um a região em grande parte hostil. H oje, es­quece-se, com li cHiiiencia, que a relação estratégica en tre os Estados

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U nidos e Israel foi u rna conseqüência da penetração soviética, e não sua causa.

A p rim eira p reocupação de qualquer governo n o rte -am ericano é, p o r certo, defin ir os interesses do país e conceber políticas para a p ro teção e o avanço desses interesses. N o período logo após a Segun­da G uerra M undial, a po lítica n o rte -am erican a no O rien te M édio, b em com o em ou tras partes, foi regida pela necessidade de im p ed ir a penetração soviética. L am entavelm ente, os Estados U nidos abriram m ão da superio ridade m ora l que detinbam , com o observadores ex­ternos, e envolveram -se p o r estágios; p rim eiro , apo iando a cada vez m ais frágil posição b ritân ica e, então, q u ando essa se to rn o u clara­m ente insustentável, in te rv indo m ais d ire tam en te e, p o r fim , substi­tu in d o a Ing laterra com o defensor do O rien te M édio con tra ataques de fora, em especial da U nião Soviética.

A necessidade im ed iata do pós-guerra era resistir a pressóes so­viéticas nas fron teiras do norte , g aran tindo a re tirada soviética do A zerbaijão iran iano e o p ondo-se a dem andas sobre a Turquia. Essa po lítica era clara e inteligível e, no con jun to , teve sucesso em salvar a T urquia e o Irã. M as a ten tativa de estendê-la p a ra o m u n d o árabe através do Pacto de Bagdá p ro d u z iu resultados opostos e desastrosos, e con trapôs o u enfraqueceu aqueles que p re tend ia atrair. O p resi­dente egípcio. G am ai ‘A bd al-Nasser, vendo o pacto com o um a am eaça a sua liderança, vo ltou-se para os soviéticos; o regim e pró - O cidente no Iraque foi derrubado , e regim es am igos na lo rd ãn ia e no Líbano ficaram em tam an h o perigo que necessitaram de ajuda m ili­ta r do O cidente p ara sobreviver. A p a r tir de 1955, quan d o os soviéti­cos, através da fron teira norte , fo ram pouco a pouco p en e tran d o no m u n d o árabe, tan to a am eaça q u an to os m eios de con trapo r-se a ela m u d aram rad icalm ente. E nquan to a fron teira n o rte m anteve-se fir­m e, as terras árabes to rn a ram -se hostis ou , no m áxim o, nervosa­m ente neutras. Nessas circunstâncias, a relação norte -am ericana com Israel en tro u em u m a nova fase.

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D u ran te m u ito tem po, esse re lac ionam ento foi m o ldado po r duas considerações in te iram en te diferentes: u m a delas p ode ser cha­m ada ideológica o u sen tim ental; a o u tra , estratégica. Os no rte- am ericanos, escolados na Bíblia e em sua p ró p ria h istória , podem p ron tam en te ver o nasc im ento do m o d ern o Estado de Israel com o um novo Êxodo e u m re to rn o à Terra P rom etida, e acham fácil de­senvolver u m a em patia p o r pessoas que parecem estar repetindo a experiência dos peregrinos fundadores, dos p ioneiros e dos que os sucederam . Os árabes, p o r certo, não vêem dessa m aneira , e m uitos europeus tam b ém não.

O ou tro vínculo en tre os Estados U nidos e Israel é a relação es­tratégica, que com eçou na década de 1960, floresceu nas décadas de 1970 e 1980, flu tuou nos anos 90 e ganhou nova im p o rtân c ia q u a n ­do os Estados U nidos en fren taram as atuais am eaças das am bições hegem ônicas de S addam H ussein, do te rro r fundam enta lista da A l-Q aeda e de p ro fundos e crescentes descon ten tam entos en tre os aliados árabes da Am érica. Tem sido m u ito d iscu tido o valor de Is­rael para os Estados U nidos com o u m tru n fo estratégico. A lguns nos Estados U nidos vêem Israel com o u m im p o rtan te aliado estratégico na região e u m bastião seguro con tra in im igos externos e regionais. O u tros têm argum en tado que Israel, longe de ser u m trun fo , tem sido u m risco estratégico, p o r m in ar as relações no rte-am ericanas com o m u n d o árabe e causar o fracasso das políticas n o rte -a m e ­ricanas na região.

M as, q u an d o se com param os resultados da po lítica n o rte - am ericana no O rien te M édio com o alcançado em ou tras regiões, fica-se perplexo n ão c o m seu fracasso, m as com seu sucesso. Afinal, não há n en h u m Vietnã n o O rien te M édio, n en h u m a C uba, N icará­gua ou El Salvador, n em m esm o u m a Angola. Ao con trário , através de crises sucessivas cpie têm abalado a região, tem havido sem pre u m a im po n en te presença política, econôm ica e cu ltu ra l no rte- am ericana, usLialmeiilc em diversos países - e isso, até a G uerra do Golfo de 1991, sem necessidade de qualquer in tervenção m ilita r sig-

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nificativa. E, m esm o então , sua presença foi necessária para livrar as v ítim as de urna agressão en tre os p róp rio s países árabes, não relacio­nada com israelenses n em com palestinos. Aqueles que o lham ape­nas para o O rien te M édio estão regu larm ente conscientes das d ificuldades e fracassos das políticas naquela região, m as, q u ando se analisa essa co n ju n tu ra de urna perspectiva m ais am pia, não se pode deixar de ficar pasm o com a eficácia da política no rte -am ericana no O rien te M édio, q u an d o com parada com , digam os, o sudeste da Ásia, a A m érica C en tra l o u o sul da África.

Desde o colapso da U nião Soviética, u rna nova política n o rte ­am ericana surg iu no O rien te M édio, relacionada com diferentes o b ­jetivos. Seu p rincipal p ropósito é im ped ir a em ergência de urna h e ­gem onia regional - ou de urna ún ica au to ridade regional que possa d o m in ar a área e estabelecer o contro le m onopo lístico do petró leo do O rien te M édio. Essa tem sido a p reocupação básica subjacente a sucessivas políticas no rte-am ericanas para o Irã, Iraque o u para qualquer o u tra situação percebida com o u m a fu tu ra am eaça den tro da região.

A política ado tada até agora p ara im p ed ir tal hegem onia é in ­centivar, a rm ar e, q u an d o necessário, apo iar u m pacto de segurança regional e, po rtan to , basicam ente árabe. Essa po lítica inevitavelm en­te evoca a infeliz m em ó ria de tentativas an teriores que trouxeram m ais danos que benefícios. Dessa vez, o pacto p ro posto pode ter chances u m pouco m elhores. O suposto in im igo já não é m ais a fo r­m idável U nião Soviética, e governantes regionais estão ganhando u m a perspectiva m ais sóbria do m u n d o e de seu lugar nele. Mas tal pacto, baseado em regim es instáveis governando sociedades voláteis, é ineren tem ente precário , e a co rren te não é m ais forte que seu elo m ais fraco. A h istó ria recente do Iraque ilustra as diferentes m aneiras com o u m a política desse tip o p ode d ar errado. Ao abraçar a m o n a r­quia, p rom ovem os sua derrubada; ao p rom over Saddam H ussein, a lim entam os u m m onstro . Seria fatalm ente fácil repetir u m desses

100 A crise do islã

erros, ou am bos, com considerável risco para os interesses ociden ­tais na região e terríveis conseqüências para as pessoas que aí vivem.

Nesse contexto, to rn am -se com preensíveis a disposição de al­guns governos árabes de negociar a paz com Israel e a preocupação norte -am ericana de levar ad ian te o processo de pacificação. M uitos árabes com eçaram a com preender que, levando em con ta a m elhor estim ativa da força israelense, e a p io r estim ativa das intenções de Israel, tal Estado não é o seu p rob lem a m ais sério, n em a m aio r am eaça que os confron ta . U m Israel em guerra com seus vizinhos se­ria u m perigo constan te , u m a d istração que sem pre poderia ser usa­da p o r u m novo Saddam Elussein - ou até pelo m esm o. M as u m Israel em paz com seus v izinhos poderia p ropo rc ionar, n o m ín im o dos m ín im os, u m elem ento de estabilidade dem ocrática na região.

Existem , em geral, dois tipos bastan te diferentes de aliança. U m a é estratégica, e p ode ser u m acordo p u ram en te tem p o rá rio baseado em am eaças en tend idas com o com uns. Tal conciliação p ode ser a l­cançada com qualquer tip o de governante - o tipo de governo e o tipo de sociedade governada são igualm ente irrelevantes. O ou tro parceiro dessa aliança pode m u d ar de idéia a qualquer m o m en to ou pode ter sua idéia m u d ad a p o r ou tros se for d erru b ad o e substitu ído . A aliança pode, então , ser quebrada p o r um a m u d an ça de regim e, de líder, ou m esm o u m a m udança de perspectiva. O que pode acontecer é bem ilustrado p o r acontecim entos na Líbia, Iraque, Irã e Sudão, onde m udanças na área política ocasionaram total inversão nas po líti­cas; ou, em ou tro sentido, pelo caso do Egito, onde, m esm o sem um a m udança de regim e, os governantes foram capazes de passar do O ci­dente para os soviéticos, e de volta para um alinham ento ocidental.

A m esm a flexibilidade existe do lado no rte -am ericano . Assim com o tais aliados podem , a qualquer m om ento , ab an d o n ar os E sta­dos U nidos, esses obviam ente sentem -se livres p ara ab an d o n ar tais aliados se a aliança loi iia-se m uito com plicada o u deixa de ser in te ­ressante em term os de eusto-efetividade - com o, p o r exem plo, no V ietnã do Sul, no ( áird istão e no Líbano. Ao ab an d o n ar u m aliado

Satã e os soviéticos 101

com o qual não há m ais que urna acom odação estratégica, pode-se ir ad ian te sem rem orsos e sem o risco de en co n tra r críticas im p o rta n ­tes em seu p ró p rio país.

O o u tro tip o de aliança está baseado em urna au tén tica afin i­dade de institu ições, aspirações e m odos de vida - e m u ito m enos su ­jeito a m udanças. Em seus dias de gloria, os soviéticos tin h am plena consciencia disso, e ten ta ram criar d itaduras com unistas onde quer que fossem. D em ocracias são m ais difíceis de criar. E tam b ém m ais difíceis de destruir.

102 A crise do islã

Dois Pesos, Duas Medidas

C ada vez m ais, nas ú ltim as décadas, os povos do O rien te M édio vêm articu lando um a queixa m ais evidente, u m a nova reclam ação con tra a po lítica dos Estados U nidos; não apenas a cum plicidade no rte- am ericana com o im peria lism o o u sionism o, m as algo que toca m ais de perto e m ais im ed ia tam ente - a cum plicidade n o rte -am erican a com os tiranos co rru p to s que os dirigem . Por razões óbvias, essa queixa específica não aparece com freqüência nos d iscursos públicos e nem é provável que seja m encionada em conversas en tre d ip lo m a­tas e funcionários de Relações Exteriores. G overnos do O rien te M édio tais com o os do Iraque, da Síria e a A utoridade Palestina de­senvolveram grande habilidade em con tro lar suas p róp rias m ídias e m an ip u la r as dos países do O cidente. Pelas m esm as razões óbvias, essa questão tam bém não é suscitada em negociações d iplom áticas. M as é d iscutida, com cada vez m ais angústia e urgência, em conver­sas particu lares com ouvintes nos quais se possa confiar, e, recente­m ente, até cm púlilico - c não apenas p o r radicais islâm icos, p ara os quais é um a das principais questões (na verdade, a p rincipal). É in te ­ressante n o ta r c|ue a Revolução Iran iana de 1979 foi u m a época em que esse ressen tim en io loi abertam ente expressado. O xá foi acusado de apo iar os Estados Unidos, m as estes tam b ém fo ram criticados p o r im p o r com o m arionete o que os revolucionários v iram com o u m lí­der ím pio e tirânico. Nos anos que se seguiram , os iran ianos desco-

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b riram que tiranos devotos podem ser tão ru in s q u an to tiranos ím pios, ou até p iores, e que a culpa pela existência desse tipo de tira ­n ia não pod ia ser a trib u íd a a p a tro n o s o u m odelos estrangeiros.

H á algum a justiça em u m a acusação feita freqüen tem ente aos Estados U nidos e, em term os m ais gerais, ao O cidente; os povos do O rien te M édio reclam am cada vez m ais que o O cidente os julga com base em padrões diferentes e inferiores aos usados p ara ju lgar eu ro ­peus e no rte-am ericanos, tan to no que se espera deles quan to no que eles p o d em esperar em relação a seu bem -esta r econôm ico e sua li­berdade política. A firm am que porta-vozes ocidentais rep e tid am en ­te relevam ou m esm o defendem ações e apóiam governantes que eles p ró p rio s não to le ra riam em seus países.

H oje em dia, no m u n d o ocidental, são relativam ente poucos os que vêem a si m esm os com o engajados em u m a confron tação com o islã. M as, apesar disso, existe u m en tend im en to d issem inado de que há diferenças significativas en tre o m u n d o ocidental avançado e o resto, sob re tudo os povos do islã, e que esses ú ltim os são, de algum as m aneiras, diferentes, com a u sualm ente tácita p resunção de que são inferiores. As m ais flagrantes violações de d ireitos civis, liberdade política, até m esm o decência h u m an a são ignoradas ou apagadas, e crim es con tra a hum an idade , que em u m país eu ropeu o u nos Esta­dos U nidos invocariam um a onda de ind ignação , são vistos com o n o rm ais e m esm o aceitáveis. Regimes que p ra ticam tais violações são não apenas to lerados, m as até m esm o eleitos para a C om issão de D ireitos H um anos das N ações U nidas, cujos m em bros incluem a A rábia Saudita, Síria, Sudão e Líbia.

Subjacente a tu d o isso está a idéia de que esses povos são incapa­zes de o p erar u m a sociedade dem ocrática, não se p reocupam com a decência h u m an a e nem são capazes de cultivá-la. Q ualquer que seja o caso, eles serão governados p o r despotism os corrup tos. N ão é ta re ­fa do O cidente corrigi-los, e m enos a inda m udá-los, mas m eram ente garan tir que os déspotas sejam am igáveis, em vez de hostis aos in te ­resses ocidentais. Dessa perspectiva, é perigoso m exer com a ordem

104 A crise do islã

existente, e aqueles que buscam vida m elh o r para si m esm os e seus concidadãos são depreciados e, com freqüência, energicam ente d e ­sencorajados. É m ais sim ples, m ais bara to e seguro substitu ir u m t i­rano im p ertin en te p o r u m d isposto a cooperar, em vez de enfren tar os riscos im previsíveis de u m a m u d an ça de regim e, especialm ente de u m a m u d an ça p ro d u z id a pelo desejo do povo expresso em elei­ções livres.

O p rinc íp io de “m elho r u m m al conhecido” parece estar p o r trás das políticas externas de m uitos governos ocidentais p ara os p o ­vos do m u n d o islâm ico. Essa a titu d e é às vezes apresen tada, e m esm o aceita, com o u m a expressão de sim patia e apoio aos árabes e suas causas, aparen tem en te na crença de que, ao ex im ir governos e líderes árabes das regras no rm ais de co m p o rtam en to civilizado, estaríam os, de algum a form a, conferindo u m privilégio aos povos árabes. Na verdade, essa d ispensa não represen ta n ad a disso, sendo, no m elhor dos casos, a busca de u m a aliança tem p o rária baseada em au to -in - teresses sem elhantes e d irig ida con tra u m in im igo com um , às vezes tam b ém susten tada pelos m esm os preconceitos. Em u m nível m ais p ro fu n d o da realidade, é u m a indicação de desrespeito e falta de in ­teresse - desrespeito pelo passado árabe, falta de interesse pelo p re ­sente e fu tu ro árabes.

Essa abordagem encon tra algum apoio tan to nos círculos d ip lo ­m áticos q u an to acadêm icos nos Estados U nidos, e em círculos ainda mais am plos na Europa. Os governantes árabes são, assim , capazes de esm agar dezenas dc m ilhares de seu p ró p rio povo, com o na Síria e na Argélia, oii c cn lenas de m ilhares, com o no Iraque e no Sudão, p ara privar os hom ens da m aior parte de seus d ireitos civis - e, as m ulheres, de Iodos e para d o u trin a r crianças nas escolas com in to ­lerância e ódio eoiil ra ou Iras sem que isso provoque n en h u m pro tes­to signiticalivo da inirlia c das institu ições liberais no O cidente e, m enos ainda, (nial(|uei indício de punições com o boicotes, re tirada de investim enlos ou deiuiiicias em Bruxelas. Na realidade, essa assim cham ada alilu tie d ip lom ática peran te governos árabes tem sido p ro ­

D ois pesos, duas medidas 105

fu n d am en te danosa para os povos árabes, u m fato a respeito do qual estão to m an d o consciência de urna m aneira penosa.

Tal com o m uitos vêem no O rien te M édio, a posição básica dos governos europeus e no rte -am erican o é: “N ão nos p reocupam os com o que vocês fazem com seus p ró p rio s povos em seus países, des­de que sejam cooperativos em atender nossas necessidades e p ro te ­ger nossos interesses.”

Às vezes, m esm o nos casos que envolviam seus interesses, os go­vernos n o rte -am ericanos tra íram aqueles a quem haviam p rom etido apo iar e persuad ido a co rrer riscos. U m exem plo notável ocorreu em 1991, q u ando os Estados U nidos conclam aram o povo iraqu iano a se revoltar co n tra Saddam H ussein. Assim fizeram os curdos no no rte do Iraque e os xiitas n o sul do país, e as forças v itoriosas dos Estados U nidos sen taram -se e assistiram Saddam H ussein, usando os heli­cópteros que o acordo de cessar-fogo havia p erm itid o que m antives­se, e lim inar e tru c id a r de fo rm a sangu inária g rupo p o r grupo , região p o r região.

A lógica po r trás dessa ação - ou, m elh o r dizendo, inação - não é difícil de ver. Sem dúvida, a coalizão v itoriosa na G uerra do Golfo queria um a m u d an ça de governo n o Iraque, m as esperava p o r um golpe de Estado, não u m a revolução. Via um típ ico levantam ento p o p u la r com o perigoso - poderia levar à incerteza o u m esm o à an a r­quia na região. Poderia até m esm o p ro d u z ir u m estado dem ocrático , um a perspectiva a larm ante p ara os “aliados” da A m érica na região. U m golpe seria m ais previsível, e p o d eria levar ao resu ltado desejado: a substitu ição de Saddam H ussein p o r ou tro d itad o r m ais coopera ti­vo, que ocupasse seu lugar en tre os aliados da coalizão. Essa política falhou com pletam ente, e foi in te rp re tad a na região com o traição ou fraqueza, insensatez o u h ipocrisia.

O u tro exem plo do uso de dois pesos e duas m edidas oco rreu na cidade síria de H am a em 1982. Os problem as com eçaram com um levante encabeçado pelo g rupo radical Irm ãos M uçulm anos. O go­verno sírio respondeu rap idam ente , e com força to tal. N ão usou ca­

106 A crise do islã

nhões de água nem balas de borracha , n em m a n d o u soldados en fren tar liv re-atiradores e arm adilhas de m inas em buscas de casa em casa para en co n tra r e iden tificar seus inim igos en tre a população civil local. Seu m éto d o foi m ais sim ples, m ais seguro e m ais rápido. A tacaram a cidade com tanques, a rtilharia e bom barde iro s aéreos, seguidos de bulldozers p a ra com pletar o traba lho de destruição. D en tro de m u ito pouco tem po , haviam reduzido u m a grande parte da cidade a ru ínas. O n ú m ero de pessoas m ortas foi estim ado pela A nistia In te rnac ional com o algo en tre dez m il e 25 m il.

A ação, o rdenada e superv isionada pelo presidente sírio. Hafiz al-Assad, cham ou pouca atenção na época. Essa reação fraca co n ­trastava n itid am en te com aquela evocada p o r o u tro m assacre, p o u ­cos m eses depois, n o m esm o ano, nos cam pos de refugiados em Sabra e Shatila, n o Líbano. N aquela ocasião, 700 ou 800 palestinos fo ram m assacrados p o r u m a m ilícia cristã libanesa aliada a Israel. Isso provocou u m a condenação a Israel enérgica e generalizada, que reverbera até hoje. O m assacre em H am a não im p ed iu os Estados U nidos de, em seguida, corte jar Assad, que recebeu um a longa série de visitas de Secretários de Estado n o rte -am ericanos - James Baker (11 vezes en tre setem bro de 1990 e ju lho de 1992), W arren Chris- to p h er (15 vezes en tre fevereiro de 1993 e fevereiro de 1996) e M ade- line A lbright (qua tro vezes en tre setem bro de 1997 e janeiro de 2000) - e inclusive do presidente C lin ton (um a visita à Síria e dois en co n ­tros na Suíça ent re ja neiro de 1994 e m arço de 2000). É m u ito im p ro ­vável que os Estados U nidos se m ostrassem tão ávidos p ara fazer as pazes com um dirigente que tivesse p erp e trad o tais crim es em solo ocidental, com vítim as ocidentais. H afiz al-Assad n u n ca se to rn o u u m aliado norte am ericano ou, com o ou tros d iriam , u m a m ario n e ­te, m as certam enie nao loi por falta de esforços da diplom acia norte- am ericana.

Os funda nu-nlalislas estavam conscientes de u m a o u tra d isp ari­dade - ou tro raso ii.io m enos dram ático de dois pesos, duas m ed i­das. Aqueles m assacrados em H am a, cujas m ortes provocaram tão

D ois pesos, duas medidas 107

po u ca p reocupação no O cidente, eram Irm ãos M uçu lm anos, suas fam ílias e vizinhos. Aos olhos ocidentais, assim parecia, os direitos h u m an o s não se aplicavam a v ítim as m uçu lm anas devotas, nem os con tro les dem ocráticos a seus assassinos “seculares”.

A falta de confiança ocidental nos m ovim entos políticos islâm i­cos e a disposição de to le ra r ou m esm o apoiar d itadores que m a n ti­vessem tais m ovim entos fora do p o d er apareceram de fo rm a ainda m ais d ram ática n o caso da Argélia, onde um a nova constitu ição de­m ocrá tica foi ado tada p o r referendo em fevereiro de 1989 e o sistem a m u ltip a rtid á rio foi o ficialm ente estabelecido em ju lh o daquele ano. Em dezem bro de 1991, a Frente Islâm ica de Salvação (FIS) saiu-se m u ito bem no p rim eiro tu rn o das eleições para a Assem bléia N acio­nal, e parecia m ais do que provável que teria u m a clara m aio ria no segundo tu rn o . A FIS já havia desafiado os m ilitares argelinos, acu ­sando-os de serem m ais inclinados a rep rim ir seu p ró p rio povo que a a judar u m irm ão necessitado. O irm ão necessitado era Saddam H ussein, cuja invasão do Kuwait e desafio ao O cidente haviam p ro ­vocado g rande en tusiasm o en tre fundam enta listas m uçu lm anos na Á frica do N orte, p e rsuad indo seus líderes a tran sferir p ara o novo heró i iraqu iano a lealdade até en tão prestada a seus p a tro n o s saud i­tas. Em janeiro de 1992, após u m intervalo de tensão crescente, os m ilitares cancelaram o segundo tu rn o das eleições. N os m eses que se seguiram , dissolveram a FIS e estabeleceram u m regim e “secular”, de fato u m a d itad u ra cruel, sob sinais de aprovação vindos de Paris, W ashington e de ou tras capitais ocidentais. Seguiu-se um conflito penoso e m ortífero , com acusações recíprocas de m assacre - de fundam entalistas, pelo exército e p o r o u tros in stru m en to s m enos form ais do governo, e de secularistas, m odern istas e espectadores, pelos fundam entalistas. Em 1997, a A nistia In ternacional avaliou o n ú m ero de v ítim as desde o in ício do conflito em 80 mil, sendo a m aio ria de civis.

A A l-Q aeda ju lgou explicitam ente os Estados U nidos com o res­ponsáveis pelo golpe m ilita r na Argélia. Aqui, com o cm o u tro s luga­

108 A crise do islã

res, a A m érica, com o a po tência d o m in an te no m u n d o dos infiéis, na tu ra lm en te foi acusada de tu d o o que deu e rrado e, m ais especifi­cam ente, da supressão dos m ovim entos islâm icos, da m atança de seus seguidores e do estabelecim ento do que foi visto com o d itad u ­ras antiislám icas com o apoio ocidental e, para ser m ais exato, norte- am ericano. Aqui tam b ém os n o rte -am erican o s foram acusados - p o r m uitos, p o r não p ro testa r con tra essa violação das liberdades d e ­m ocráticas; p o r alguns, p o r encorajar e apo iar a tivam ente o regim e m ilitar. Problem as sem elhantes su rg iram no Egito, no Paquistão e em alguns o u tros países m u çu lm an o s onde parecia provável que u m a eleição verdadeiram ente livre e lim pa resultasse em u m a vitória islâmica.

Nisso, é claro, os dem ocratas estão em desvantagem . Sua ideolo­gia requer que, m esm o q u ando no poder, dêem liberdade e d ireitos à oposição islam ita. Os islam itas, q u an d o no poder, não estão subm e­tidos a tal obrigação. Ao con trário , seus princ íp ios requerem que re­p rim am o que vêem com o atividades ím pias e subversivas.

Para os islam itas, a dem ocracia, expressando a von tade popular, é o cam inho para o poder, m as é um a estrada de m ão única, na qual não há re to rnos e n en h u m a rejeição da soberan ia de D eus tal com o exercida através dc seus represen tan tes escolhidos. Sua política elei­to ral tem sido classicam ente resum ida com o “U m h o m em (apenas hom ens), um volo, um a vez”.

C laram ente, no m undo islâm ico, tal com o era na Europa, um a eleição livre e jusia é o auge, não a inauguração, do processo de desenvolvim ento tiem oerático. M as isso não é n en h u m a razão para m im ar dil.idoies.

D ois pesos, duas medidas 109

7 Um Fracasso da Modernidade

Q uase todo o m u n d o m u çu lm an o é afetado p o r pobreza e tirania. A m bos os problem as são atribu ídos, especialm ente p o r aqueles in te ­ressados em desviar a atenção de si m esm os, aos Estados U nidos - o prim eiro , à dom inânc ia e exploração econôm icas norte-am ericanas, agora apenas superficialm ente disfarçada de “globalização”; o se­gundo, ao apoio n o rte -am erican o a m uitos dos cham ados tiranos m uçu lm anos que servem a seus propósitos. A globalização to r ­n ou -se u m dos tem as m ais im p o rtan tes na m íd ia árabe, e é quase sem pre suscitada em associação à penetração econôm ica n o rte -am e­ricana. A situação cada vez m ais deplorável da econom ia na m aio r p arte do m u n d o m uçu lm ano , com parada não apenas com o O ci­dente, m as tam b ém com as econom ias rap idam en te em ascensão do leste da Ásia, a lim enta essas frustrações. A suprem acia n o rte -am e­ricana, com o o O rien te M édio a vê, ind ica para onde d irig ir a cu lpa e a hostilidade resultantes.

A com binação de baixa p rodu tiv idade e alta taxa de natalidade no O rien te M édio p ro d u z u m a com binação instável, com u m a g ran ­de população que cresce com rapidez de hom ens jovens desem pre­gados, sem instrução e frustrados. Segundo todos os indicadores das Nações U nidas, do Banco M undial e de ou tras au to ridades, os países árabes - em questões com o geração de em pregos, educação, tecno lo ­gia e p rodu tiv idade - estão ficando cada vez m ais para trás do O ci­dente. P io r ainda, as nações árabes tam b ém estão m ais a trasadas do

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que os m ais recentes recru tas da m o d ern id ad e estilo O cidente, com o C oréia, Taiw an e C ingapura.

Os dados com parativos do desem penho dos países m u çu lm a­nos, tal com o refletido nessas estatísticas, são arrasadores. Na classi­ficação das econom ias segundo o P ro d u to In te rn o B ruto (pib ), o país de m aio ria m u çu lm an a com a m ais alta classificação é a Turquia, com 64 m ilhões de habitan tes, em 23- colocação, en tre Á ustria e D i­nam arca, cada u m a com cinco m ilhões. O segundo é a Indonésia, com 212 m ilhões, em 28^ lugar, an tecedido pela N oruega, com 4,5 m ilhões, e seguido pela A rábia Saudita, com 21 m ilhões. N a co m p a­ração p o r po d er de com pra, o p rim eiro Estado m u çu lm an o é a In d o ­nésia, em 15^ lugar, seguido pela T urquia no 19-. O país árabe com m ais alta colocação é a A rábia Saudita, em 2 9 - lugar, seguida pelo Egito. Em term os de padrões de vida m edidos pelo PIB p er capita, o p rim eiro Estado m u çu lm an o é o Q atar, em 2 3 - lugar, seguido pelos Em irados Á rabes U nidos no 2 5 - e Kuwait no 28-.

Em um a classificação segundo a p rodução industrial, o país m u ­çu lm ano com m elhor colocação é a Arábia Saudita, n^ 21, seguido pela Indonésia que, ju n to com Á ustria e Bélgica, ocupam o 2 2 - lugar, e pela Turquia, que, ju n to com a Noruega, está em 27^ lugar. Em um a lista p o r produtos m anufaturados, o país árabe com m ais alta coloca­ção é o Egito, em 35^ lugar, ju n to com a N oruega. Em um a classifica­ção segundo a expectativa de vida, o prim eiro Estado árabe é o Kuwait, em 32- lugar, logo após a D inam arca e seguido p o r Cuba. C onsideran­do o núm ero de linhas telefônicas p o r cem pessoas, o p rim eiro país m uçu lm ano listado sao os Em irados Árabes U nidos, em 33- lugar, en ­tre M acau e Iléunioii. Em term os de com putadores po r cem pessoas, o p rim eiro país m uçulm ano listado é Bahrain, em 30- lugar, seguido pelo Qatar, em 32", e pelos Em irados Árabes U nidos, em 34-.

A venda de livros apresenta u m quadro a inda m ais desolador. U m a lista de vinte e sete países, com eçando com os Estados U nidos e te rm in an d o eoin o Vietnã, não inclui um único Estado m uçu lm ano . Em um índice de desenvolvim ento h u m an o , B runei é n^ 32, Kuwait

Um fracasso da m odernidade 111

112 A crise do islã

36, B ahrain 40, Q atar 41, E m irados A rabes U nidos 44, Líbia 66, Ca- zaquistão 67, e a A rábia Saudita 68, ju n to com o Brasil.

O rela tó rio sobre o D esenvolvim ento E lum ano Á rabe em 2002, p reparado p o r u m com itê de intelectuais árabes e publicado sob os auspícios das N ações U nidas, revela, novam ente , alguns contrastes d ram áticos. “O m u n d o árabe trad u z cerca de 330 livros anualm ente, u m q u in to do n ú m ero trad u z id o na Grécia. O to ta l acum ulado de li­vros traduz idos desde a época do califa M aa’m o u n (szc) [o século IX]

é de cerca de cem m il, quase a m édia do n ú m ero de traduções feitas na E spanha em u m único ano.” A situação econôm ica não é nada m elhor: “O PIB com binado de todos os países árabes alcançou 531,2 bilhões de dólares em 1999 - m enos que o de u m único país europeu , a E spanha (595,5 b ilhões).” O u tro aspecto do subdesenvolvim ento é ilustrado em um a tabela de “pesquisadores científicos em atividade, artigos citados freqúen tem ente, e p a p e r s citados freqúen tem ente p o r m ilhão de habitan tes, 1987.”*

País Pesquisadorescientíficos

Artigos com 40 ou mais citações

Número de papers citados freqüentemente, por milhões

de pessoas

Estados U nidos 466.211 10.481 42,99índ ia 29.509 31 0,04

Austrália 24.963 280 17,23Suíça 17.028 523 79,90China 15.558 31 0,03Israel 11.617 169 36,63Egito 3.782 1 0,02

Rep. da Coréia 2.255 5 0,12Arábia Saudita 1.915 1 0,07

Kuwait 884 1 0,53Argélia 362 1 0,01

The Arab Human Dcvelopment Report2002: Creating Opportunilies for Future Ge- nerations, pa trocinado pelo B ureau Regional para os Estados Árabes/PNUD, Fundo Árabe para o D esenvolvim ento E conôm ico e Social.

Isso dificilm ente poderia surpreender, dados os núm eros co m p ara ti­vos de analfabetism o.

Em u m a classificação de 155 países conform e seu grau de liber­dade econôm ica em 2001, os do Golfo Á rabe parecem sair-se b astan ­te bem , com B ahrain sendo o n^ 9, os E m irados Á rabes U nidos 14 e o Kuwait 42. M as o desem penho econôm ico geral do m u n d o árabe e, em term os m ais am plos, do m u n d o m u çu lm an o perm anece relati­vam ente fraco. De acordo com o Banco M undial, em 2000 a renda m édia anual nos países m uçu lm anos, de M arrocos a Bangladesh, era apenas a m etade da m édia m und ia l, e na década de 1990 os p rodu tos nacionais b ru to s com binados da Jordânia, Síria e Líbano, isto é, três dos vizinhos árabes de Israel - eram consideravelm ente m enores que o israelense. O s n ú m ero s per capita são ainda piores. De acordo com estatísticas das Nações U nidas, o PIB per capita de Israel era três vezes e m eia o do L íbano e da Síria, 12 vezes o da lo rd ân ia e 13 vezes e m eia o do Egito.

O contraste com o O cidente, e agora tam b ém com o Extrem o O rien te , é a inda m ais desconcertante. O u tro ra , tais discrepâncias poderiam ter passado despercebidas pela vasta m aio ria da p o p u la ­ção. Hoje, graças à m oderna m ídia e às com unicações, m esm o os m ais pobres c mais ignorantes estão du ram en te conscientes das dife­renças en tre eles c oiilro.s, e isso acontece em todos os níveis - pes­soal, fam iliar, local c social.

A m odern ização política não é nada m elh o r - talvez seja até p io r - que nas áreas m ilitar e econôm ica. M uitos países islâm icos têm fei­to tentativas com instituições dem ocráticas de u m tip o o u ou tro . Em alguns, com o l uKiiiia e Ira, foram in troduz idas p o r reform istas n a ­cionais inovarlori’s; ran ou tros, com o em vários dos países árabes, fo­ram instaladas e depois rieixadas com o h erança pelos im perialistas que se relir.ivam . ( )s resultados, com a exceção da Turquia, são de quase iuvariavel Ir.n.isso. Partidos e parlam entos de estilo ocidental te rm inaram ( | u a s e invariavelm ente em tiran ias co rrup tas m an tidas p o r repressão e ilou lrinação . O único m odelo eu ropeu que funcio-

Um fracasso da m odernidade 113

no u , no sen tido de alcançar seus p ropósitos, foi a d itad u ra do p a r ti­do único . O P artido Ba’th , cujas d iferentes facções têm governado o Iraque e a Síria p o r décadas, in co rp o ro u os piores aspectos de seus m odelos nazista e soviético. Desde a m o rte do presiden te egipcio N asser, em 1970, n en h u m líder árabe foi capaz de ganhar am plo apoio fora de seu p ró p rio país. N a verdade, n en h u m líder árabe tem m o strad o disposição de su b m eter sua aspiração ao p o d er ao vo to li­vre. Os líderes que chegaram m ais perto de ganhar u m a aprovação p an -árab e são o libio M u ‘am m ar O addafi, na década de 1970, e, m ais recen tem ente, Saddam H ussein . Q ue esses dois, den tre todos os governantes árabes, devam gozar de tão am pla popu larid ad e é, em si m esm o, tan to assustador q u an to revelador.

Em vista disso, d ificilm ente poderia su rp reender o fato de que m u ito s m uçu lm anos falem sobre o fracasso da m odern ização e res­p o n d am a diferentes d iagnósticos da doença de suas sociedades com diferentes receitas p ara sua cura.

Para alguns, a resposta é m ais e m elho r m odern ização , a lin h an ­do o O rien te M édio com o m u n d o m o d e rn o e em vias de m o d e rn i­zação. Para ou tros, a m od ern id ad e é, p o r si só, o p ro b lem a e a fonte de todas as m isérias.

As pessoas n o O rien te M édio estão cada vez m ais conscientes do p ro fu n d o e crescente h iato en tre as o p o rtu n id ad es do m u n d o livre além de suas fron teiras e a privação e repressão chocantes den tro de­las. A raiva daí resu ltan te é n a tu ra lm en te d irig ida, p rim eiro , con tra seus governos e, depois, con tra aqueles que, para elas, m an têm esses governantes no p o d er p o r razões egoístas. É certam ente significativo que todos os terroristas identificados nos ataques de 11 de setem bro em Nova York e W ashington ten h am v indo da A rábia Saudita e do Egito, isto é, de países cujos governantes são considerados am igos dos Estados U nidos.

U m a razão para esse fato curioso, apresen tada p o r um agente da A l-Q aeda, é que terro ristas de países am igos têm m enos dificuldades p ara conseguir vistos no rte-am ericanos. O u tra razão mais e lem en­

114 A crise do islã

ta r é o m a io r g rau de hostilidade existente em países o nde os Estados U nidos são tidos com o responsáveis pela m an u ten ção de regim es t i­rânicos. U m caso especial, agora sob cada vez m ais fiscalização, é a A rábia Saudita, onde elem entos significativos no p ró p rio regim e p a ­recem , de tem pos em tem pos, pa rtilh a r e fom en tar essa hostilidade.

Um fracasso da m odernidade 115

8 A Aliança entre o Poder Saudita e o Ensinamento Wahhabi

A rejeição da m od ern id ad e a favor de um re to rn o ao passado sagra­do tem urna h isto ria variada e ram ificada na região, e deu origem a u m grande n ú m ero de m ovim entos. O m ais im p o rtan te desses foi, sem dúvida, aquele conhecido com o w ahhabism o, palavra derivada do nom e de seu fundador. M u h am m ad ibn ‘A bd al-W ahhab (1703- 1792) foi um teólogo da região de N ajd, na Arábia, governada p o r xe­ques da Casa de Saud. Em 1744, lançou u m a cam panha de pu rifica­ção e renovação. Seu objetivo declarado era re to rn a r ao p u ro e au tén tico islá do Fundador, rem ovendo e, onde necessário, d e s tru in ­do todos os posteriores acréscim os e distorções.

A causa wahhabi foi abraçada pelos governantes sauditas de N ajd, que a p rom overam , com sucesso tem porário , pela força das a r­m as. Em urna série de cam panhas, levaram seu d om in io e sua fé a g rande parte da A rabia cen tra l e o rien tal, e chegaram a fazer in c u r­sões hostis às terras do C rescente Fértil sob d ireta adm inistração o tom ana. Após saquear Karbala, a cidade sagrada xiita do Iraque, v o lta ram sua atenção para o H ijaz, o cupando e - nas suas palavras - pu rificando as cidades sagradas de M eca e M edina em 1804-1806. A essa altura, era claro que estavam confro n tan d o c desafiando o sultão o tom ano , acusado pub licam ente pelos governantes sauditas com o u m apóstata da fé m u çu lm an a e u m u su rp ad o r o cupando um E sta­do m uçu lm ano .

116

O Im pério O tom ano , m esm o naquele estágio de seu declínio, foi capaz de lidar com u m rebelde do deserto . C om a ajuda do paxá do Egito e suas forças, com plctou-se a tarefa em 1818, q u an d o a cap i­tal Saudita foi ocupada e sen em ir m an d ad o p a ra Istam bul e decapi­tado. T em porariam ente o Estado saud ita deixava de existir, m as a d o u trin a wahhabi sobreviven e, p o r volta de 1823, o u tro m em bro da Casa de Saud conseguiu reconstitu ir o p rinc ipado , com sua capital em Riad. M ais urna vez, os chefes locais da Casa de Saud ajudaram os represen tan tes da d o u trin a wahhabi e fo ram ajudados p o r eles.

Esse su rg im ento do w ahhab ism o na A rábia do século XVIIl foi, significativam ente, u rna resposta às circunstâncias cam biantes da época. Urna dessas era, p o r certo, a re tirada do islã e o co rresp o n d en ­te avanço da cristandade. H á m uito isso já v in h a acontecendo, um processo lento e gradual in iciado ñas periferias longínquas do m u n ­do islámico. N o século XVIII, já era visível até m esm o no centro. A longa, len ta re tirada dos o tom anos dos Bálcãs e o avanço dos ingleses na Ind ia a inda estavam m uito distantes da Arábia, m as sen im pacto foi sentido, tan to através dos o tom anos q u an to no Golfo Pérsico, e estava claram ente refletido cu tre os peregrinos que v inham à A rábia todos os anos dc todas as partes do m u n d o m uçulm ano . A ira dos wahhabis d irigia-sc em prim eiro lugar não con tra os de fora, m as con tra aqueles c|ue viam com o traiiido c deg radando o islã a p a rtir de dentro : dc um lado, os cpie lentavam qualquer tip o de reform a m odern izadora; de oul io e esse era o alvo m ais im ediato - , aqueles que os wahhiil)is considei avam responsáveis pela co rrupção e deg ra­dação da verdadeii.i hei.m ça islâmica do Profeta e de seus C o m p a­nheiros. 0 [n iiili.im se to m veem ência, é claro, a qualquer escola ou v ersan d o isla, lossi'el.i sunila ou xiita, diferente de sua p róp ria . O p u - nham -se , pai lu u lam ien le , ao sufism o, condenando nâo apenas sen m isticism o e (o leiaiu ia, mas tam b ém o que viam com o cultos p a ­gãos a ele assoi rulos.

Sem pie (|iie podi.im , exigiam o cu m p rim en to de suas crenças com a mais exliem a severidade e ferocidade, dem olindo túm ulos.

o poder saudita e o ensinamento wahhabi 117

v io lando o que cham avam locais sagrados falsos e idólatras e tru c i­dan d o g rande n ú m ero de hom ens, m ulheres e crianças que deixas­sem de a tender a seus padrões de pureza e au ten tic idade islâmicas. O u tra p rá tica in tro d u z id a p o r Ibn ‘A bd a l-W ahhab foi a censura e queim a de livros. Eram principalm ente trabalhos islâmicos sobre teo ­logia e legislação, considerados con trários à d o u trin a wahhabi. A queim a de livros freqüen tem en te era acom panhada da execução su ­m ária dos que os haviam escrito, copiado o u ensinado.

A segunda aliança en tre a d o u trin a wahhabi e a tro p a saudita com eçou nos ú ltim os anos do Im pério O to m an o e co n tin u a até os dias de hoje. Dois acontecim entos do início do século XX tran sfo r­m aram o w ahhabism o em u m a das grandes forças a tuantes no m u n ­do islâm ico e fora dele tam bém . O p rim eiro foi a expansão e consolidação do reino saudita. N os ú ltim os anos do Im pério O to ­m ano , o xeque A bd al-A ziz Ibn Saud (nascido p o r volta de 1880, tendo re inado de 1902 a 1953) jogou hab ilm en te com o conflito en ­tre os o tom anos, de u m lado, e o crescente p o d er b ritân ico na A rábia orien tal, do ou tro . Em dezem bro de 1915, assinou u m acordo com a Ing la terra pelo qual, p reservando sua independência, obteve um subsídio e um a prom essa de ajuda, caso sofresse u m ataque. O fim da guerra e a queda do Im pério O to m an o encerraram essa fase e deixa­ram -n o sozinho, cara a cara com a Ing laterra. Saiu-se m u ito bem nesse novo arran jo e, pouco a pouco , foi capaz de expand ir o reino herdado . Em 1921, finalm ente d e rro to u no n o rte de N ajd seu rival de longa data, Ibn Rashid, e, anexando seus te rritó rio s, assum iu o títu lo de sultão de Najd.

Estava p ro n to o cenário para u m conflito m ais crucial pelo co n ­tro le do Hijaz. Essa terra , inc lu indo as duas cidades sagradas m u çu l­m anas de M eca e M edina, havia sido governada p o r m em bros da d inastia hash im ita, descendentes do Profeta, p o r m ais de um m ilê­nio, e estivera, nos séculos m ais recentes, sob frouxa suseran ia o to ­m ana. O estabelecim ento das m onarqu ias hash im ilas, encabeçadas po r vários ram os da fam ília, no Iraque e na T ransjordânia, com o

118 A crise do islã

p arte da reestru tu ração de antigas provincias árabes o tom anas após a P rim eira G uerra M undial, foi vista p o r Ibn Saud com o urna am ea­ça a seu p ró p rio reino. Após anos de relações deterio ran tes, o rei H ussein do H ijaz forneceu u m pretex to duplo , p roclam ando-se cali­fa e, depois, recusando-se a p e rm itir que peregrinos wahhabi chegas­sem às cidades sagradas. Ibn Saud respondeu invad indo o H ijaz em 1925.

A guerra de conqu ista saudita foi u m sucesso com pleto. Suas tropas cap tu ra ram p rim eiro Meca; e em 5 de dezem bro de 1925, após u m sitio de dez meses, M edina en tregou-se pacificam ente. D uas sem anas depois o rei ‘Ali, que havia sucedido seu pai, H ussein, ped iu ao v ice-cônsul b ritân ico em D jedda que inform asse Ibn Saud de sua saída do H ijaz apenas com seus pertences pessoais. Isso foi to ­m ado com o urna abdicação e, no dia seguinte, as forças sauditas en ­tra ram em D jedda. O cam inho estava en tão aberto p ara Ibn Saud proclam ar-se rei do H ijaz e sultão de N ajd e suas dependências, em 8 de janeiro de 1926. O novo regim e foi im ed ia tam ente reconhecido pelas au toridades européias, e de m aneira notável pela U nião Sovié­tica, em urna nota d ip lom ática de 16 de fevereiro para Ibn Saud, “com base no p rincip io do direito de au todeterm inação dos povos e em respeito à vontaile do povo do Hijaz, conform e expressada em sua escolha de lé lo com o scu rci’f U m tra tad o form al en tre Ibn Saud e a G rã-B relanh.i, reconhecendo a p lena independência do re i­no, foi assinado em 20 ríe m aio dc 1927. A lguns o u tros Estados eu ro ­peus fizeram o m esm o.

O reeonhei ¡Míenlo m uçulm ano, ao con trário , foi m ais lento e m ais relnl.mh'. Dm.i missao m uçu lm ana v inda da Ind ia v isitou D jedda c solii ¡Ion (|iie o rei abrisse m ão do con tro le das cidades sa­gradas para nin lo in i lé de representantes a serem indicados p o r to ­dos os países muçulmanos . Ibn Saud não respondeu a esse ped ido e

o poder saudita e o ensinamento wahhabi 119

C itado f i n Mcxci V.issilicv, l'hc History o f Saudi Arabia (Londres, 1998), p.265.

m a n d o u a m issão de volta à ín d ia p o r m ar. Em ju n h o do m esm o ano, convocou u m C ongresso Islâm ico em M eca, conv idando os so ­beranos e presidentes dos Estados m uçu lm anos independen tes e re ­p resen tan tes de organizações m uçu lm anas em países sob governo n ão -m u çu lm an o . P artic iparam do congresso 69 pessoas de todas as partes do m u n d o islâm ico. D irig indo-se a eles, Ibn Saud deixou cla­ro que era agora o governan te do Elijaz. C u m p riria suas obrigações com o guard ião dos locais sagrados e p ro te to r da peregrinação , m as não perm itiria n en h u m a in tervenção externa no seu desem penho dessas tarefas.

Na época, isso p ro d u z iu reações variadas en tre seus convidados. Alguns d iscordaram e pa rtiram ; o u tros aceitaram e reconheceram a nova ordem . N otável en tre os ú ltim os foi o chefe da delegação de m u çu lm an o s da U nião Soviética, cujo líder, em u m a entrevista à agência soviética de notícias TASS, an u n c io u que o C ongresso Islâm i­co havia reconhecido o rei Ibn Saud com o guard ião dos locais sagra­dos; havia tam b ém requerido a transferência de partes da Jordânia para o novo reino do H ijaz e, de m o d o geral, expressado apoio a Ibn Saud. O reconhecim ento pelos Estados m u çu lm an o s e, m ais ainda, pelos Estados árabes, levou m u ito m ais tem po. T ratados de am izade fo ram assinados com a T urquia e o Irã em 1929, com o Iraque em 1930 e com a Jordânia em 1933. A anexação saudita do H ijaz não foi form alm ente reconhecida pelo Egito até o acordo de m aio de 1936.

E nquan to isso, Ibn Saud seguiu rap idam en te com a reorgan iza­ção e reestru tu ração de seu vasto reino e, em setem bro de 1932, p ro ­clam ou u m novo Estado un itá rio , a ser cham ado Reino da A rábia Saudita. N o ano seguinte, ind icou seu filho m ais velho, Saud, com o herdeiro do trono .

O o u tro g rande acon tec im ento que afetou a região se deu no m esm o ano, com a assinatura, em 19 de m aio de 1933, de um acordo en tre o m in istro das F inanças saudita e u m represen tan te da S tan­dard O il da C alifórnia. As políticas sauditas e as d o u trin as wahhabi estavam agora apoiadas em sólidos alicerces econôm icos.

120 A crise do islã

Interesses ocidentais no petró leo do O rien te M édio d a tam do inicio do século XX, e fo ram d irig idos p rinc ipa lm en te p o r com panhias in ­glesas, holandesas e francesas. O interesse n o rte -am erican o com e­çou nos p rim eiros anos da década de 1920, com a p reocupação cada vez m aio r qu an to ao esgotam ento das reservas dom ésticas de p e tró ­leo e o receio de u m m onop ó lio eu ropeu sobre a p rodução do O rien ­te M édio. As com panh ias n o rte-am ericanas com eçaram a en tra r no m ercado de petró leo do O rien te M édio com o parceiros m ino ritá rio s em consórcios europeus. A S tandard Oil da C alifornia foi a p rim eira com panh ia dos Estados U nidos a se envolver p ro fu n d am en te n a ex­p loração do petró leo . Após alguns esforços não-conclusivos nos Estados do Golfo, a S tandard O il finalm ente buscou os sauditas e, em 1930, solicitou perm issão p ara u m a exploração geológica nas p ro ­víncias orientais. De início, o rei Ibn Saud recusou, m as depois co n ­co rdou com negociações que cu lm in aram no acordo de 1933. U m dos fatores que o in d u z iram a m u d a r de idéia foi, sem dúvida, a d e ­pressão que tivera início em 1929 e trouxera u m a grave e crescente deterioração às finanças do reino.

M enos de qu a tro meses após a assinatu ra do acordo, os p rim e i­ros geólogos n o rte -am ericanos chegaram à A rábia orien tal. N o final do ano, a m issão exp lo ra tó ria estava bem -estabelecida, e no ano seguinte as equipes n o rte-am ericanas com eçaram a extração e a ex­p o rtação do petró leo . O processo de desenvolvim ento foi in te rro m ­p ido pela Segunda G uerra M undial e re tom ado q u ando os conflitos te rm in aram . Pode-se ter u m a idéia da escala do em preend im en to através da quan tidade de petró leo extraído na A rábia, em m ilhões de barris: 1945, 21,3; 1955, 356,6; 1965, 804,8; 1975, 2.582,5.

O fluxo de petró leo que saía e o co rresponden te fluxo de recu r­sos que entrava trouxeram im ensas m udanças ao re ino saudita, sua estru tu ra interna e m odo de vida e seu papel externo e influência, tan to nos países to n sn m id o res de petró leo quan to , m ais forte ainda, no m u n d o do isla. A m udança m ais significativa foi no im pacto do w ahhabism o e no p.qrel de seus protagonistas. O w ahhabism o era

o poder saudita e o ensinamento wahhabi 121

agora a d o u trin a oficial, im posta pelo Estado de u m dos m ais in ­fluentes governos de to d o o islã - o guard ião dos dois locais m ais sagrados, o an fitrião da peregrinação anual, que traz m ilhões de m u ­çu lm anos de todas as partes do m u n d o para seus ritos e rituais. Ao m esm o tem po , os in stru to res e pregadores do w ahhab ism o tin h am á sua disposição recursos financeiros ilim itados, que usavam para p ro m o v er e d issem inar sua versão do islã. M esm o em países oc iden ­tais na E uropa e nos Estados U nidos, que d ispõem de bons sistem as de ensino público , os cen tros de dou trinação w ahhabi p o d em ser o ún ico m o d o de form ação islâm ica d isponível p ara novos converti­dos e p ara pais m uçu lm anos que querem dar a seus filhos algum a base sobre suas p róp rias heranças e tradições religiosas e culturais. Essa d o u trinação é oferecida em escolas particulares, sem inários re ­ligiosos, escolas em m esquitas, colônias de férias e, cada vez m ais, prisões.

No uso trad ic ional islám ico, o te rm o madrasa denotava u m cen­tro superio r de educação, erudição, ensino e pesquisa. O madrasa is­lám ico clássico foi o antecessor e, de várias m aneiras, forneceu o m odelo para as grandes universidades européias m edievais. N o uso m oderno , a palavra madrasa ad q u iriu sen tido negativo: acabou p o r d en o ta r u m centro de do u trin ação em in to lerância e violência. Um exem plo revelador pode ser visto na form ação de m u ito s dos tu rcos presos sob suspeita de cum plicidade em atividades terroristas. Todos nasceram e fo ram educados na A lem anha, n e n h u m deles na T ur­quia. O governo alem ão não superv isiona a educação religiosa de g rupos m ino ritário s. O governo tu rco m an tém u m olho aten to so ­bre essas questões. Na E uropa e nos Estados U nidos, devido ã re lu ­tância dos Estados em se envolverem em assuntos religiosos, o ensino do islã em escolas e em o u tros locais tem sido, de m o d o geral, to ta lm en te sem supervisão das au toridades. Essa situação c laram en­te favorece aqueles que têm m en o r grau de escrúpulos, as m ais fortes convicções e m ais dinheiro .

122 A crise do islã

O resultado talvez possa ser m o strad o através de u m paralelo im aginário . S uponham os que a Ku Klux Klan o u algum g rupo sim i­lar ganhe to ta l con tro le do Estado do Texas, de seu petró leo e, p o r ­tan to , de suas receitas do petró leo , e, tendo feito isso, use esse d inheiro para estabelecer u m a rede de escolas e universidades bem -do tadas p o r to d a a cristandade, m ascateando seu tip o peculiar de cristianism o. Esse paralelo é u m tan to m enos terrível que a reali­dade, já que a m a io r p a rte dos países cristãos tem seus p róp rio s siste­m as de escolas públicas em funcionam ento . Em alguns países m uçu lm anos isso não acontece, e as escolas e universidades financia­das pelos w ahhabis represen tam , p ara m uitos jovens m uçu lm anos, a ún ica form ação disponível. Por esses recursos, os wahhabis levaram sua m ensagem p o r to d o o m u n d o islám ico e, cada vez m ais, pelas co­m unidades m in o ritá rias em ou tros países, no tavelm ente na Europa e na A m érica do N orte. A vida pública m uçu lm ana, a educação, e até m esm o a p rática religiosa são, n u m a d im ensão a larm ante, financia­das e, p o rtan to , dirig idas p o r wahhabis, e a versão do islã que eles p ra ticam e p regam é d o m in ad a p o r p rin c ip io s e a titu d es wahhabi. A custód ia sobre os lugares sagrados e as receitas do petró leo confe­riram im pacto m u n d ia l ao que, de o u tra form a, teria sido u m co n ­to rn o extrem ista em u m país m arginal.

o poder saudita e o ensinamento wahhabi 123

A exploração do petró leo trouxe u m a eno rm e e nova opulência e, com ela, novas e cada vez m ais am argas tensões sociais. Na an tiga so ­ciedade, desigualdades de riqueza haviam sido lim itadas, e seus efei­tos eram con tidos - de u m lado, pelos laços e obrigações sociais trad ic ionais que ligavam ricos e pobres e, de ou tro , pela privacidade da vida dom éstica m uçulm ana. C om m u ita freqúéncia, a m o d e rn i­zação tem a lim en lado as diferenças, destru ido os laços sociais e, a tra ­vés da universalidade da m íd ia m oderna , to rn ad o visíveis as desigualdaiies l esiilt.m ics de urna fo rm a severa. Tudo isso tem criado públicos novos e receptivos aos ensinam entos w ahhabi e de ou tros

grupos com m enta lidade sem elhante, en tre eles os Irm ãos M u çu l­m anos, no Egito e na Síria, e o Talibã no Afeganistão.

A riqueza do petró leo tam b ém teve efeitos políticos negativos, ao in ib ir o desenvolvim ento de institu ições representativas. “N ão haverá taxação sem representação” m arca u m passo crucial no de­senvolvim ento da dem ocracia ocidental. Infelizm ente, o oposto tam bém é verdadeiro - não há representação sem taxação. G overnos cuja riqueza deriva do petró leo não têm necessidade de assem bléias popu lares para im p o r e arrecadar im postos, e p o d em se d ar o luxo, p o r algum tem po , pelo m enos, de igno rar a op in ião pública. M esm o esta lim itação tem p o u co significado em sociedades com o essas. Sem qualquer o u tra válvula de escape, descontentes novos e progres­sivos tam bém enco n tram expressão em m ovim entos extrem istas re ­ligiosos.

Já se to rn o u n o rm al descrever esses m ovim entos com o fu n d a ­m entalistas. É u m te rm o infeliz, p o r diversas razões. O rig inalm ente, era u m te rm o p ro testan te n o rte -am erican o usado para designar certas igrejas p ro testan tes que diferiam , em alguns aspectos, das igrejas convencionais. As duas p rincipais diferenças e ram a teologia liberal e a le itu ra crítica da Bíblia, am bas vistas com o objetáveis. A teologia liberal costum ava ser u m a questão en tre m u çu lm an o s no passado, e pode vir a ser de novo no fu turo . N o presente, não é. A d iv indade literal e a infalibilidade do A lcorão é u m dogm a básico do islã, e, em bora alguns possam ter dúvidas, n inguém o contesta. Essas diferenças não guardam qualquer sem elhança com aquelas que dividem os fundam enta listas m uçu lm anos da corren te p rinc ipal islâm ica, e o term o, p o rtan to , pode levar a um engano. N o en tan to , to rn o u -se uso com um agora, e tem até m esm o sido literalm ente traduz ido em árabe, persa e turco.

O eclipse do p an -arab ism o deixou os fundam entalistas islâm i­cos com o a alternativa m ais a traen te para todos aqueles que sen tiam que tem de haver algo m elhor, m ais verdadeiro e m ais p rom issor que as tiran ias ineptas de seus governantes e as ideologias falidas im pos-

124 A crise do islã

tas pelo exterior. Esses m ov im en tos a lim entam -se de privações e h u ­m ilhações, bem com o da frustração e do ressen tim en to gerados p o r elas após o fracasso de todas as panacéias políticas e económ icas, tan to as im portadas qu an to as suas im itações locais. C om o en ten d i­do p o r m u ito s n o O rien te M édio e na Á frica do N orte , o capitalism o e o socialism o fo ram experim entados e am bos falharam ; tan to os m odelos ocidentais q u an to os orien tais p ro d u z iram apenas pobreza e tiran ia . Pode parecer in justo que na Argélia pós-independéncia, p o r exem plo, o O cidente fosse cu lpado pelas políticas pseudo- stalinistas de u m governo an tiocidental, pelo fracasso de urnas e p e ­las inap tidóes do o u tro . M as o sen tim en to p o p u la r não está in te ira ­m en te errado ao ver o O cidente e as idéias ocidentais com o a principal fon te das m aiores m udanças que tran sfo rm aram o m u n d o islám ico no ú ltim o século ou m ais. Em conseqúéncia disso, grande parte da raiva do m u n d o islám ico é d irig ida co n tra os ocidentais, vistos com o o antigo e im em orial in im igo do islã desde os p rim eiros em bates en tre os califas m uçu lm anos e os im peradores cristãos, e co n tra o ocidentalizador, visto com o urna ferram en ta o u cúm plice do O cidente e tra id o r de sua p róp ria fé e de seu povo.

O fundam enta lism o religioso desfru ta de diversas vantagens com relação a ideologias concorrentes. É p ro n tam en te inteligível tan to p ara os m uçu lm anos instru ídos qu an to p ara os não -in stru í- dos. Oferece um con jun lo de tem as, slogans e sím bolos p ro fu n d a ­m ente fam iliares e, po rlan to , efetivos em m obilizar apoio e em fo rm ular tan to urna i rílica do que está errado q u an to u m p rogram a de correções. M ovim entos religiosos con tam com o u tra vantagem prá tica em socied.ides io rn o as do O rien te M édio e da Africa do N o r­te que estão sob regim es mais ou m enos autocráticos: d itadores p o ­dem pro ib ir pai lidos, podem pro ib ir reuniões - m as não podem pro ib ir preces p t ib l ic . is , e apenas de certa fo rm a conseguem c o n tro ­lar os serm oes.

C om o lesuliado, os g rupos de oposição religiosos são os únicos que tém locais legnl.n es de reunião onde podem congregar-se e te r à

o poder saudita e o ensinamento wahhabi 125

sua disposição um a rede fora do contro le do Estado ou, pelo m enos, n ão to ta lm en te subm etida a ele. Q u an to m ais opressor o regim e, m ais ele a juda os fundam enta listas ao lhes dar o m o n o p ó lio v irtual da oposição.

O radicalism o islâm ico m ilitan te não é novo. Por diversas vezes, desde os princ íp ios do im pacto ocidental, no século XVIII, têm existi­do m ovim entos de oposição m ilitan tes expressando-se com teor re ­ligioso. Até agora, todos fracassaram . Às vezes, de u m a m aneira sim ples e relativam ente indolor, sendo derro tados e reprim idos. Nesses casos, a coroa do m artírio lhes trouxe um a espécie de sucesso. O u tras vezes, fracassaram da m aneira m ais difícil, g anhando p o d er e tendo , assim , que en fren tar grandes problem as econôm icos e sociais p ara os quais não d isp u n h am de respostas concretas. O que acon te­ceu usualm ente foi que se to rn a ram , no tem po devido, tão opresso­res e cínicos q u an to os antecessores que d e rru b aram . É en tão que po d em vir a ser de fato perigosos, quando , p ara usar u m a tipologia européia, a revolução en tra na fase napoleónica - ou , talvez se deves­se dizer, na fase stalinista. Em u m p ro g ram a de a taque e expansão, esses m ovim entos se beneficiariam , com o seus predecessores jacob i­nos e bolcheviques, da vantagem de qu in tas-co lunas em todos os países e com unidades com os quais p a rtilh am u m m esm o universo discursivo.

Em term os am plos, os fundam enta listas m u çu lm an o s são aq u e­les que sentem que os atuais p roblem as do m u n d o m uçu lm ano resu ltam nâo de m odern ização insuficiente, m as de excessiva m o ­dernização, que vêem com o u m a tra ição aos au tên ticos valores islâ­m icos. Para eles, a solução é u m re to rn o ao verdadeiro islã, inclu indo a abolição de todas as leis e de o u tro s a rran jos sociais tom ados em ­prestados do O cidente, com a restauração da Lei Sagrada islâm ica, a sharia , com o a efetiva lei da terra. De sua perspectiva, o confiito b á ­sico não é con tra o in tru so ocidental, m as co n tra o tra id o r ocidenta- lizador em casa. Seus inim igos m ais perigosos, segundo vêem , são os m uçu lm anos falsos e renegados que governam os países do m u n d o

126 A crise do islã

islám ico e que im p o rta ram e im p u seram costum es infiéis aos seus povos.

A questão é c laram ente desenvolvida em u m panfle to de ‘Abd al-Salam Faraj, u m egípcio executado em abril de 1982 ju n to com ou tros acusados de terem p lanejado e instigado o assassinato do p re ­sidente Sadat. Seus com entários lançam algum a luz sobre a m o tiva­ção daquele ato;

A base da existência do im perialism o nas terras do islã são esses m es­m os governantes. Para começar, a luta contra o im perialism o é um tra­balho nem glorioso nem útil, mas apenas um a perda de tem po. Nossa obrigação é nos concentrarm os em nossa causa islâmica, e isso signifi­ca o estabelecim ento, antes de qualquer coisa, da lei de D eus em nosso próprio país e o fazer com que prevaleça a palavra de D eus. N ão há dú­vida de que o prim eiro cam po de batalha dã jih ad é a extirpação dessas lideranças infiéis e sua substituição por um a ordem islâmica perfeita, e daí virá a liberação de nossas energias.

N os poucos m om en tos que se passaram en tre o assassinato do p residente Sadat e a prisão dos assassinos, seu líder exclam ou t r iu n ­fantem ente: “Eu m atei o Faraó! N ão tenho m edo de m orrer.” Se, com o foi am plam en le en lend ido no m u n d o ocidental naquela ép o ­ca, o delito de Sadal, .tos ollios dos seus assassinos, foi fazer as pazes com Israel, a escolha do epíteto Faraó pareceria p articu la rm en te ina- propriada . C laram ente, eles não estavam se referindo ao faraó dos m o d ern o s livros didáticos do Egito, a personificação da g randeza e g lória do antigo Fgilo, mas ao Faraó do Êxodo, que, tan to no Alcorão qu an to na bíblia, e o liian o pagão que op rim e o povo de D eus. É, sem dúvida, nesse sen tido ciue O sam a bin Laden referiu-se ao p resi­den te Bush com o o F.n .ió dos nossos dias. No tem po do Êxodo, os

o poder saudita e o ensinamento wahhabi 127

** ‘Abcial S.il.iin t .u . i |, / t / ///iiij; íi/-L«riíía flí-G/ia’ifca (Am an, 1982); tradução in ­glesa eni Jiili.iiiiir', | . ( ,. I.uisi-ii, 1'lie Neglected Duty: The Creed o f Sadat’s Assassins and Islamic Uc-.iiiyciu c iii lhe Midiüe East (Nova York, 1986), p .l59ss.

Filhos de Israel eram o povo de Deus. A m aio r p arte dos m u çu lm a­nos a tua lm en te não reconhece o m o d ern o Estado de Israel com o o legítim o herdeiro dos antigos Filhos de Israel - no A lcorão Banu Isra il - e os assassinos de Sadat certam ente não aprovavam suas n e ­gociações com aquele país. M as, com o ficou claro no in te rroga tó rio subseqüente dos assassinos e seus cúm plices, a paz com Israel era, a seus o lhos, u m fenôm eno relativam ente m en o r - u m sin tom a, não a causa da ofensa m aio r de ab an d o n ar a fé de D eus, o p rim ir o povo de D eus e m acaquear as m aneiras dos infiéis.

128 A crise do islã

9 A Ascensão do Terrorismo

A m aio r parte dos m u çu lm an o s não é com posta de fundam en ta lis­tas e a m aio r p arte desses não é te rro rista , m as a m a io r parte dos te r ­roristas atuais é m u çu lm an a e tem orgu lho de se iden tificar com o tal. C om preensivelm ente, os m uçu lm anos reclam am que a m íd ia fala de m ovim entos e ações terro ristas com o “islám icos”, e p erg u n tam p o r que a m íd ia tam b ém não identifica os te rro ristas e o te rro rism o ir ­landés e basco com o “cristãos”. A resposta é sim ples e obvia - eles não descrevem a si m esm os com o cristãos. A queixa m u çu lm an a é razoável, m as deveria ser dirigida àqueles que se fazem m atéria de noticias, e nao aos ipic noliciam . O sam a bin Laden e seus seguidores da A l-Q aeda podem nao i cpresen tar o islã, e m uitas de suas declara­ções e ações co n lra ili/em d ire tam ente princíp ios e ensinam entos islám icos básicos, m.is d e s surgcm de den tro da civilização m u çu l­m ana, tal com o I liller e o s nazistas su rg iram de den tro da c ristanda­de, e tam bcm tém (|iie sei sil nados em seu p ró p rio contexto cultural, religioso c hislói li o.

A tuainu-nle, exisiem diversas form as de extrem ism o. As m ais conhecidas sao o i.u liia lism o subversivo da A l-Q aeda e de ou tros grupos sem elhantes, i spalhados p o r todo o m u n d o m uçu lm ano ; o fundam enta lism o pievenlivo do esfah/¿s/ime«f saudita; e a revolução in stitueionali/.u la da liieiarquia governante iran iana. Todos esses são, num si-nlulo, di- oi igem islám ica, m as alguns deles estão m uito afastados de suas i .nzes.

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Sem exceção, esses diferentes g rupos extrem istas santificam sua ação através de referências pias aos textos islâm icos, no tad am en te o A lcorão e as tradições do Profeta, e todos clam am represen tar um islã m ais verdadeiro, m ais p u ro e m ais au tên tico do que o p raticado a tua lm en te pela vasta m aio ria dos m uçu lm anos e endossado pela m aio r parte , se não a to talidade, das lideranças religiosas. São, no en ­tan to , a ltam ente seletivos em sua escolha e in terp re tação dos textos sagrados. Ao considerar os d itos do Profeta, p o r exem plo, descartam os m étodos trad icionais desenvolvidos pelos ju ristas e teólogos ao longo de séculos para testar a precisão e autenticidade de tradições transm itidas oralm ente e, em vez disso, aceitam o u rejeitam até m es­m o textos sagrados, dependendo de se esses apóiam o u contradizem suas próprias posições dogm áticas e m ilitantes. Alguns chegam a des­cartar certos versículos do Alcorão com o “revogados” ou “ab-roga­dos”. O argum ento usado para justificar isso é que versos revelados du ran te os prim eiros anos da m issão do Profeta podem ser substitu í­dos p o r revelações posteriores, presum ivelm ente m ais m aduras.

U m exem plo esclarecedor de tais desvios foi a íam osa fa tw a de­cretada pelo aiatolá K hom ein i em 14 de fevereiro de 1989 con tra o rom ancista Salm an R ushdie p o r causa de seu rom ance in titu lad o Os versos satânicos. Na fa tw a , o aiatolá in fo rm o u a “todos os zelosos m u ­çu lm anos do m u n d o que o sangue do au to r desse livro ... que foi com pilado, im presso e pub licado em oposição ao islã, ao Profeta e ao A lcorão, bem com o o daqueles envolvidos em sua publicação que conheciam seu con teúdo é, a p a rtir de agora, declarado condenado. C onclam o todos os zelosos m uçu lm anos a executá-los rap idam ente , onde quer que possam ser encon trados, de m o d o que n inguém ouse insu ltar as crenças e práticas islâm icas novam ente. Q ualquer u m que seja m o rto nesse cam inho será considerado um m á r tir”.* Para com -

130 A crise do islã

* O texto com pleto d i fatwa foi publicado na im prensa iraniana e in ternacional na época.

p letar e an tecipar as recom pensas n o paraíso , u m fu n d o islám ico b e ­neficente em Teerã ofereceu a quem m atasse Salm an R ushdie um a recom pensa de 20 m ilhões de tum ans (na época, três m ilhões de d ó ­lares à taxa oficial, cerca de 170 m il no câm bio livre) para u m iran ia ­no, o u u m m ilhão de dólares p ara u m estrangeiro . A lguns anos depois, a recom pensa con tinuava sem ser reclam ada, e o fundo a u ­m en to u os valores.

C om o era de se esperar, m uitos leitores desinform ados no m u n ­do ocidental ficaram com a im pressão de que “decretar u rna fa tw a ” era o equivalente islám ico de “colocar u rna cabeça a p rêm io ” - isto é, visar urna v ítim a e oferecer um a recom pensa m o n etá ria p o r sua m orte . Tal com o madrasa, a p a lav ra /afvra adqu iriu , no uso com um in ternacional, u rna conotação to ta lm en te negativa. Isso é, de fato, u m absurdo m onstruoso . Fatwa é u m te rm o técnico na ju risp ru d ê n ­cia islâm ica p ara u m a op in ião ou parecer legal sobre u m aspecto da lei. É o equivalente n a shan a p a ra a responsa pruden tium na lei ro ­m ana. O ju risconsu lto islám ico que está au to rizado a decretar urna fa tw a é cham ado u m m ufti, o partic ip io ativo p ara a m esm a raiz. Ao usar urna fa tw a para p ro n u n c iar urna sentença de m o rte e recru tar u m assassino, o aialoiá estava se desviando consideravelm ente da p rá tica usual islámic.i.

O desvio foi nao só no veredicto e na sentença, m as tam b ém na n atu reza da acusaçao. Insultar o Profeta - a acusação feita a Salm an Rushdie - é ccrlan ien te nina ofensa na lei m uçu lm ana , e os ju ristas d iscu tem a queslao em algum detalhe. Q uase todas essas discussões g iram em to rn o de um n ao -m uçulm ano vivendo em u m Estado m u ­çu lm ano c|ue insulla o Profeta. Os ju ristas dedicam considerável atenção ã definição de ofensa, às regras de ob te r evidências e à p u n i­ção apropriada. M osiram grande p reocupação com que as acusações dessa ofensa nao sejam usadas com o u m artifício para conseguir al­gum a vingança parlieular, e insistem em cuidadoso escru tín io das provas anies i|ue i|ualc|uer veredicto o u sentença sejam p ro n u n c ia ­dos. A op in ião m ajo ritária é que u m a flagelação e u m a pena de

A ascensão do terro rism o 131

prisão são punições suficientes - a severidade da flagelação e o te m ­po de ap risionam en to dependem da gravidade da ofensa. O caso do m u çu lm an o que insu lta o Profeta p ra ticam en te não é levado em consideração, e deve ter sido m u ito raro. Q u an d o d iscu tido , a o p i­n ião co m u m é de que se tra ta de u m ato equivalente à apostasia.

Essa foi a acusação específica con tra Salm an Rushdie. A ap o sta ­sia é u m a das grandes ofensas na lei m uçu lm ana, e resulta em pena de m o rte para hom ens. M as a palavra im p o rtan te nessa declaração é lei. A ju risp ru d ên c ia islâm ica é um sistem a de lei e justiça, não de lin ­cham ento e terror. Ela estabelece p roced im entos de acordo com os quais u m a pessoa acusada de um a ofensa deve ser levada a ju lgam en­to, con fron tada com seu acusador e ter a o p o rtu n id ad e de se defen­der. U m juiz en tão dará u m veredicto e, se for considerada culpada, p ro n u n c ia rá a sentença.

Existe, con tudo , u m a o u tra opinião , susten tada p o r u m a m in o ­ria de juristas, de que a ofensa com etida p o r u m m u çu lm an o que in ­sulta o Profeta é tão grande que se pode - e, na verdade, se deve - d ispensar as form alidades de acusação, ju lgam ento e condenação e passar d ire tam ente para a execução. A base dessa op in ião é um dito a tribu ído ao Profeta, m as de fo rm a algum a aceito universalm ente com o autêntico: “Se alguém m e insulta , en tão qualquer m uçu lm ano que ouça isso deve m a tá -lo im ed ia tam en te .” M esm o en tre os ju r is ­tas que aceitam a au ten tic idade desse dito , existem discordãncias. A lguns insistem que algum a fo rm a de p roced im en to ou autorização é requerida, e que m orte sum ária sem tal au torização é assassinato, e deve ser pu n id a com o tal. O u tro s a rgum en tam que o texto dos ditos, tal com o transm itido , deixa claro que a execução sum ária e im ediata do blasfem o é não apenas legal m as obrigatória , e que ac]ueles que não o fazem estão eles m esm os com etendo um a ofensa. M esm o o m ais rigoroso e ex trem ado dos ju ristas clássicos requer apenas que u m m uçulm ano m ate qualquer um que ele ouça insu ltar o Profeta em sua presença. Não se diz nada sobre um a m orte encom endada em fun ­ção de um insulto d ito em u m país distante.

132 A crise do islã

A santificação do assassinato con tida na fa tw a de K hom eini aparece, n u m a fo rm a m ais avançada, na prá tica - e no culto - do as­sassinato suicida.

A ascensão do terro rism o 133

Q u an d o se exam inam os registros históricos, a abordagem m u çu l­m ana da guerra não difere g randem ente da dos cristãos, ou da dos judeus de épocas m u ito antigas e das m ais m odernas ñas quais essa opção estava d isponível para eles. E nquan to os m uçu lm anos, talvez com m ais freqüência que os cristãos, fizeram guerra con tra os segui­dores de o u tro s credos v isando trazé-los p ara o ám bito do islã, os cristãos - com a notável exceção das cruzadas - ten d iam m ais a lu tar guerras religiosas in ternas con tra aqueles a quem viam com o cism á­ticos ou heréticos. O islã, sem dúv ida devido ao envolvim ento po líti­co e m ilitar de seus fundadores, tem urna visão que se poderia cham ar de m ais p ragm ática que a dos Evangelhos, no que se refere às relações de natu reza social e estatal. Sua posição é m ais p róx im a à dos livros m ais antigos do Velho Testam ento e à d o u tr in a de esm agar os am alequitas, d istanciando-se da visão dos profetas e dos Evan­gelhos. (Ts m uçu lm anos não são in stru ídos p ara dar a o u tra face, n em se espera que rcfundam suas espadas para transfo rm á-las em arados e suas lanças em foices (Isaías 2:4). Essas adm oestações cer­tam ente não im pediram que os cristãos fizessem um a série de g u erras s a n g re n ta s de re lig ião d e n tro da c r is ta n d a d e e g u e rra s de agres­são fora dela.

isso levanta ,i i|uestáo m ais am pla relativa ã p o s tu ra das religiões q u an to ã fon,.! e a violência e, m ais especificam ente, ao terrorism o. Seguidores de m uitos credos têm invocado a religião, n u m m om en to ou (uilm , na pialica do assassinato, tan to n o varejo q u an to no atacado. I )nas pal.ivi as derivadas desses m ovim entos nas religiões orientais eslao hoje integradas a línguas ocidentais: thug, do h índ i, significa, em n u ’Jes, assassino b ru tal, m atador, e a palavra árabe Has- hishiyya, cjiie oi iginon assassino em po rtu g u ês e variações aproxi-

m adas em diversas ou tras línguas. A m bas celebram seitas religiosas fanáticas cuja fo rm a de culto era executar aqueles a quem viam com o inim igos da fé.

A prá tica e depois a teo ria do assassinato no m u n d o islám ico su rg iram bem no inicio, com disputas sobre a governança política da co m un idade m uçu lm ana. D os p rim eiros qu a tro califas do islã, só o p rim eiro não foi assassinado: o segundo foi m o rto p o r u m escravo cristão insatisfeito, o terceiro e o qu arto p o r rebeldes pios m u çu lm a­nos que se v iam com o executores cu m p rin d o a von tade de Deus. A questão m anifestou-se de fo rm a aguda em 656 d.C ., com o assassi­n ato do terceiro califa ‘U th m an p o r rebeldes m uçu lm anos. A p r i­m eira de u m a série de guerras civis resu ltou da questão sobre se os m atadores estavam seguindo o u desafiando o m an d am en to de Deus. A lei e a trad ição islâm icas são m u ito claras qu an to à obrigação de obedecer ao governante islâm ico. M as tam b ém citam dois d itos a tr i­bu ídos ao Profeta: “N ão há obediência n o pecado” e “N ão obedeça a u m a cria tu ra con tra seu criador.” Se u m governante o rdena algo co n ­trá rio à lei de D eus, en tão a obrigação de obediência é substitu ída pela obrigação de desobedecer. A noção de tiran ic id io - a rem oção justificada de u m tiran o - não foi u m a inovação islâmica; na A n ti­güidade, era fam iliar en tre judeus, gregos e rom anos, e os que execu­tavam o ato eram m uitas vezes aclam ados com o heróis.

M em bros da seita m u çu lm an a conhecida com o os Assassinos, que a tu o u no Irã e depois na Síria en tre os séculos XI e X III, parecem ter sido os prim eiros a tran sfo rm ar o ato que lhes deu nom e em um sistem a e um a ideologia. Seus esforços, ao co n trá rio da crença co­m u m , foram dirig idos p rim eiram en te não con tra os cruzados, m as con tra governantes m u çu lm an o s a quem v iam com o usurpadores ím pios. Nesse sentido, os Assassinos são os verdadeiros predecesso­res de m u ito s dos cham ados terro ristas islâm icos de hoje, alguns dos quais explicitam ente destacam esse p on to . O no m e Hashishiyya, com sua conotação de “o que consom e haxixe”, foi dado a eles p o r

134 A crise do islã

seus in im igos m uçu lm anos. C ham avam -se a si m esm o s fidayeen, do árabe f td a ’i - aquele que está p ro n to a sacrificar sua vida pela causa.

A pós a derro ta e o desaparecim ento dos assassinos no século X III, o te rm o saiu de uso. Foi brevem ente revivido em m eados do sé- culo XIX, p o r u m pequeno g rupo de conspiradores tu rcos que tra ­m aram a deposição e talvez o assassinato do sultão. O com pló foi descoberto e os conspiradores, presos. O te rm o reapareceu no Irã, nos cham ados Fida’i yan-i islã, os f td a is do islã, g rupo terro rista político-relig ioso de Teerã que, en tre 1943, q u an d o com eçou suas atividades, e 1955, q u an d o foi extin to , levou a cabo u m grande n ú ­m ero de assassinatos políticos. Após urna ten tativa m al-sucedida con tra a v ida do p rim e iro -m in is tro em o u tu b ro de 1955, fo ram p re ­sos, ju lgados e seus líderes executados. O te rm o foi novam ente revivido pela ala m ilitan te da O rganização p ara a L ibertação da Pa­lestina e, desde a década de 1960, designa ativistas terroristas das o r ­ganizações palestinas.

Em dois aspectos - a escolha das arm as e a escolha das v ítim as - os Assassinos eram m arcadam ente diferentes de seus sucessores atuais. A vítim a era sem pre u m individuo, u m líder do alto escalão político, m ilitar ou religioso visto com o urna fonte do m al. Ele, e ape­nas ele, era m orto . Essa ação não era te rro rism o no sen tido corren te do term o, m as sim o que é ho je cham ado de assassinato d irig ido a u m alvo certo. A arm a era sem pre a m esm a: a adaga. O s Assassinos desprezavam veneno, bestas e ou tras arm as que pudessem ser usadas à distância, c o Assassino não esperava- o u , ao que parece, nem m es­m o desejava - sobreviver a seu ato, que acreditava lhe ga ran tir a bem -aven tu rança eterna. Mas em n en h u m a c ircunstância ele com e­tía suicidio; m o n i.) ñas m ãos de seus captores. O s Assassinos foram finalm ente dei rol.ulos por expedições m ilitares que to m aram suas fortificações e suas b.iscs no Irã e na Siria, os dois p rincipais países nos quais operav.im . Pode bem ser que os assassinos de hoje sejam igualm ente derro tados, mas será um cam inho longo e difícil. Os as-

A ascensão do te rro rism o 135

sassinos m edievais eram u m a seita extrem ista, m u ito afastados do cerne do islã. Isso não é verdade no caso de seus im itadores atuais.

136 A crise do islã

O século XX trouxe u m a renovação de tais ações n o O rien te M édio, em b o ra de tipos d iferentes e com o u tros p ropósitos, e o te rro rism o passou p o r diversas fases. D u ran te os ú ltim os anos do Im pério B ritâ­nico, a Ing laterra im peria l en fren tou m ovim entos terro ristas em suas dependências no O rien te M édio, que represen tavam três dife­rentes culturas: gregos em C hipre, judeus na Palestina e árabes em Á den. Todos os três a tuavam em nom e de m otivos nacionalistas, e não religiosos. E m bora m u ito diferentes em suas raízes e p a rticu la ri­dades políticas, os três eram substancialm ente sim ilares em suas táticas. Seu p ropósito era p ersuad ir o p o d er im peria l de que p e rm a­necer na região não com pensava o custo em sangue. Seu m éto d o era a tacar m ilitares e, em m en o r proporção , pessoal adm in istra tivo e b a ­ses. Todos os três operavam apenas den tro de seu p ró p rio te rritó rio e geralm ente evitavam danos colaterais. Todos os três tiveram sucesso em seus esforços.

Para o novo estilo de terroristas, a m atança de civis inocentes e não-envolvidos não é u m “d ano colateral”. É o p rinc ipa l objetivo. Inevitavelm ente, o con tra -a taq u e aos terro ristas - que, p o r certo, não usam uniform es - tam b ém atinge civis. Essa d ificuldade na d is­tinção é im ensam ente ú til p ara os te rro ristas e seus sim patizantes.

Graças ao ráp ido desenvolvim ento da m ídia, especialm ente da televisão, as m ais recentes form as de te rro rism o visam não objetivos inim igos específicos e lim itados, m as a op in ião m und ia l. Seu p rin c i­pal p ropósito não é d e rro ta r ou m esm o enfraquecer o in im igo m ili­ta rm en te , m as ganhar pub lic idade e in sp ira r m edo - u m a v itória psicológica. O m esm o tip o de te rro rism o foi p ra ticado p o r m uitos g rupos europeus, em especial na Á lem anha, Itália, E spanha e Irlan ­da. A OLP está en tre os de m a io r sucesso e m ais persistência nessa prática.

A OLP foi fundada em 1964, m as to rn o u -se im p o rtan te em 1967, após a d erro ta dos exércitos árabes com binados na G uerra dos Seis Dias. A guerra trivial havia falhado; era tem p o de ten ta r ou tros m étodos. Os alvos nessa fo rm a de conflito a rm ad o não eram ins- titu içóes m ilitares o u governam entais, u sualm ente m u ito bem guar­dadas, m as locais públicos e aglom eraçóes de qualquer tipo , que são esm agadoram ente civis e nos quais as vítim as não necessariam ente têm u m a conexão com o in im igo declarado. Exem plos dessa tática incluem , em 1970, o seqüestro de três aeronaves - u m a suíça, um a inglesa e u m a no rte -am erican a - que fo ram todas levadas para A m an; o assassinato de atletas israelenses nas O lim píadas de M u n i­que de 1972; a to m ad a da em baixada saud ita em C artu m em 1973, q u ando dois n o rte -am ericanos e u m d ip lom ata belga fo ram assassi­nados; a to m ad a do cruzeiro italiano Achille Lauro em 1985, com o assassinato de u m passageiro paralítico. O u tro s ataques fo ram d iri­gidos con tra escolas, shopp ing centers, discotecas e até passageiros na fila em aeroportos europeus. Essas e o u tras operaçóes da OLP tive­ram notável sucesso em alcançar seu objetivo im ed ia to - ganhar as m anchetes dos jo rna is e espaço na televisão. Tam bém conseguiram grande apoio em locais às vezes inesperados, e elevaram seus p e rp e ­trado res a papéis de estrelas no d ram a das relações in ternacionais. N ão é de ad m ira r que ou tros se sentissem encorajados a seguir esses exem plos. Os terro ristas árabes das décadas de 1970 e 1980 deixaram claro que estavam lu tan d o em u m a guerra p o r u m a causa nacional árabe o u Palestina, não pelo islã. N a verdade, u m a proporção signifi­cativa dos líderes e ativistas da OLP era cristã.

M as, apesar de seus sucessos na m ídia, a OLP não alcançou n e ­n h u m resu ltado significativo onde realm ente im portava - na Palesti­na. C om exceção da Palestina, os nacionalistas alcançaram seus p ropósitos cm todas as terras árabes: a derro ta e a p a rtid a de gover­nan tes estrangeiros c o estabelecim ento da soberan ia nacional sob o com ando dc líderes nacionais.

A ascensão do te rro rism o 137

Por algum tem po, liberdade e independência fo ram usadas m ais ou m enos com o sinón im os e com o term os intercam biáveis. N o en ­tan to , as p rim eiras experiências de independência revelaram que isso era u m erro lam entável. Independência e liberdade são m uito diferentes, e, com a m aio r freqüência, a ob tenção de urna significou o fim da o u tra , com a substitu ição de dom inadores estrangeiros p o r t i ­ranos dom ésticos m ais aptos, m ais fam iliares e m enos contidos em sua tiran ia .

H avia urna necessidade urgente e crescente de urna nova expli­cação do que estava e rrado e de urna nova estratégia p a ra corrig ir os erros. Isso foi encon trado nos sen tim en tos e iden tidade religiosos. Essa escolha não era nova. Na p rim eira m etade do século XIX, q u a n ­do os im périos europeus estavam avançando em m uitas das terras do islã, a resistência m ais significativa a seu avanço foi insp irada e de­fin ida sob o âm bito religioso. Os franceses na Argélia, os russos no C áucaso, os ingleses na ín d ia , todos en fren taram grandes levantes religiosos que só foram debelados após batalhas longas e difíceis.

U m a nova fase da m obilização religiosa com eçou com o m ov i­m en to conhecido nas línguas ocidentais com o pan-islam ism o. In i­ciado nas décadas de 1860 e 1870, provavelm ente devia algo aos exem plos dos alem ães e italianos que haviam sido bem -sucedidos em suas lutas pela unificação nacional naqueles anos. Seus co n tem ­p orâneos e im itadores m uçu lm anos inevitavelm ente identificavam a si m esm os e defin iam seus objetivos em term os religiosos e co m u ­nais, e não nacionalistas o u patrió ticos, pois esses, naquela época, a inda eram estranhos e pouco fam iliares. Mas, com a dissem inação da influência e educação européias, essas idéias c riaram raízes e, p o r algum tem po, d o m in aram tan to o discurso q u an to o conflito nas terras islâm icas. M esm o assim , a iden tidade e lealdade religiosas a in ­da eram p ro fundam en te consideradas, e se exprim iam em diversos m ovim entos religiosos, no tavelm ente os Irm ãos M uçulm anos. C om o re tu m b an te fracasso das ideologias seculares, esses m ovim entos

138 A crise do islã

g anharam nova im p o rtân c ia e assum iram a lu ta - bem com o m uitos dos com baten tes - dos nacionalistas fracassados.

Tanto para fundam entalistas q u an to p ara nacionalistas, as vá­rias questões te rrito ria is são im portan tes, m as de u m a fo rm a dife­rente, m ais in tratável. Por exem plo, p ara os fundam entalistas, de m odo geral, n en h u m a paz ou acordo com Israel é possível, e q u a l­quer concessão é apenas u m passo na d ireção da verdadeira solução final - a dissolução do Estado de Israel, o re to rn o da te rra da Palesti­na a seus verdadeiros donos, os palestinos m uçu lm anos, e a expulsão dos in trusos. N o en tan to , isso de fo rm a algum a sati.sfaria as d em an ­das dos fundam entalistas, que se estendem a todos os o u tros te r r itó ­rios d ispu tados - e até m esm o sua aquisição seria apenas u m passo na direção da ú ltim a e m ais longa luta.

M uito da an tiga tática foi m an tido , m as n u m m o d o significati­vam ente m ais vigoroso. Tanto na derro ta com o na v itória , os te rro ­ristas religiosos ad o ta ram e aperfeiçoaram os m étodos in troduzidos de fo rm a p ioneira pelos nacionalistas do século XX, em particu la r a falta de consideração pela m atança de circunstan tes inocentes. Essa despreocupação alcançou novas proporções na cam panha de te rro r desencadeada p o r O sam a b in Laden no início da década de 1990. O p rim eiro exem plo im p o rtan te foi a explosão de duas em baixadas no rte-am ericanas na África O rien ta l em 1998. Para m atar 12 d ip lo ­m atas no rte-am ericanos, os terro ristas d ispuseram -se a tru c id a r m ais de 200 africanos, m uitos deles m uçu lm anos, que estavam nas proxim idades. Em um a edição lançada im ed ia tam ente após esses ataques, a revista fundam enta lista A l-Sirat al-M ustaqim , publicada em árabe cm P ittsburgh , na Pensilvânia, expressou seu lu to pelos “m ártires” que deram suas vidas nessas operações e listou seus n o ­m es, fornecidos pelo escritório da A l-Q aeda em Peshawar, no Pa­quistão. O au to r acrescentou u m a expressão de esperança de que “Deiis ... nos reun irá a eles n o para íso”. A m esm a falta de considera­ção pela vida hu m an a , nu m a escala im ensam ente m ais am pla, subjaz às açoes em Nova York e W ashington em 11 de setem bro de 2001.

A ascensão do terrorism o 139

U m a figura significativa nessas operações era o te rro ris ta suicida. Em u m sentido, isso era u m fato novo. Os terroristas nacionalistas das décadas de 1960 e 1970 geralm ente tom avam cuidados para nâo m o rre r com suas v ítim as, lançando seus ataques de u m a distância segura. Se tivessem a m á sorte de serem cap tu rados, suas o rgan iza­ções u sualm ente ten tavam , às vezes com sucesso, ob te r sua libertação fazendo reféns e am eaçando feri-los ou m atá-los. O s antigos assassi­nos de insp iração religiosa, sobre tudo os Assassinos originais, não se p reocupavam em sobreviver a suas operações, m as não chegavam a se m atar. O m esm o pode ser d ito dos m eninos-so ldados iran ianos na guerra de 1980-1988 co n tra o Iraque, que cam inhavam p o r cam pos m inados, a rm ados apenas com um passaporte p ara o paraíso , lim ­p an d o o terreno para as tropas regulares.

O novo tip o de m issão suicida, no estrito senso da palavra, p are ­ce ter sido in troduz ido p o r organizações religiosas com o o H am as e o H ezbollah, que, a p a r tir de 1982, realizaram inúm eras m issões des­se tipo no Líbano e em Israel. C o n tin u aram d u ran te os anos 1980 e 1990, com ecos em ou tras áreas com o, p o r exem plo, no leste da T ur­quia, Egito, ín d ia e Sri Lanka. A p a rtir das in form ações disponíveis, pareceria que os candidatos escolhidos para essas m issões eram , com raras exceções, hom ens, jovens e pobres, freqüen tem ente de cam pos de refugiados. Recebiam a oferta de um a recom pensa dup la - na vida fu tu ra , os prazeres de ta lhadam en te descritos do paraíso; neste m u n ­do, benefícios e estipendios para suas famílias. U m a inovação n o tá ­vel foi o uso de m u lheres-bom ba - p o r terroristas cu rdos na Turquia, em 1996-99, e p o r palestinos desde janeiro de 2002.

D iferen tem ente do guerreiro o u assassino sagrado m edieval, d isposto a encarar a m o rte certa nas m ãos dos in im igos ou captores, o novo te rro rista suicida m orre pelas p róp rias m ãos. Isso levanta u m a questão im p o rtan te no ensino islâm ico. Os livros da lei islâm ica são m u ito claros qu an to à questão do suicídio. É um grande pecado, p u n id o com a danação eterna sob a fo rm a da repetição sem fim do

140 A crise do isiã

ato através do qual o suicida se m atou . As seguintes passagens, t i ­radas das tradições do Profeta, ilustram a questão vividam ente:

O Profeta disse: Q uem quer que se mate com urna lám ina será ator­m entado com aquela lâm ina nos fogos do inferno.O Profeta tam bém disse: Aquele que se enforca enforcará a si m esm o no inferno, e aquele que se esfaquear esfaqueará a si m esm o no infer­no. ...A quele que se lança de urna m ontanha e se mata lançará asi m es­m o aos fogos do inferno para todo o sempre. Aquele que tom a veneno e se mata levará seu veneno ñas m áos e o beberá no inferno para todo o sem pre.... Q uem quer que se mate de algum a maneira será atorm enta­do da m esm a m aneira no in fern o .... Q uem quer que se mate de algu­ma maneira neste m undo será atorm entado do m esm o m odo no dia da ressurreição.

No passado as au to ridades faziam clara d istinção en tre en fren ­ta r m orte certa ñas m ãos do in im igo e m o rre r pelas p róp rias m ãos. U m a trad ição m u ito an tiga do tip o conhecido com o hadith qudsi, ind icando um a afirm ação do Profeta c itando o p ró p rio Deus, provê u m exem plo notável. O Profeta estava presente q u ando u m hom em ferido m orta lm en te na guerra santa m atou -se para abreviar a sua dor. H en tão Deus disse: “ Meu servo se an tec ipou a m im to m an d o sua alm a com suas próprias m ãos; p o rtan to , ele não será adm itido no paraíso.” De acordo com o u tra antiga tradição, o Profeta recu ­sou-se a rezar d iau le tio corpo de u m ho m em que havia m o rrid o p e ­las p róprias m aos.’ ’

Duas cai .u lei isi it ,is m arcam os ataques de 11 de setem bro e o u ­tras ações sim ilaifs: a tlisposição dos executores de com eter suicídio

A ascensão do terro rism o 141

tó.s.is li.uliinc". .■ oiiii.i', ■.iiiiil.ircs .serão encontradas nas edições standard dos ha- dillis, |>oi i'srni|i|.>, <1 s ,;/;;/( de al-Bukhari, Recueil des Traditions Mahométanes, vo l.l, M, I iidoll Kielil (oie,.) (l.ciden, 1862), p.363; vol.2 (Leiden, 1864), p.223-4, 373; vol. l, I I.. VV. Iiiviiboll (org.) (Leiden, 1908), p.71, 124, 243, 253-4, 320, 364. V e r a d rs, ir.s.io , o inp lil.i cni I ranz Rosenthal, “On Suicide in Islam ”, /ou rn a / ofthe Arnci li iiii ( >1 leiihil Sm /i7r, vol.(i6 (1946), p .239-59.* * ( ã l , u l o / / / / c i i/Z/i/ po í llili 11.111 bal, Musnad (Cairo, 1313; 1895-1896), vol.5, p .87.

e a crueldade daqueles que os enviam , indiferentes tan to à sorte de seus p ró p rio s em issários q u an to à de suas num erosas vítim as. P ode­riam esses aspectos, em qualquer sentido, ser justificados em term os do islã?

A resposta tem que ser u m n ítido não.A fria destru ição de m ilhares de vidas no W orld Trade Center,

inc lu indo m uito s n ão -no rte -am ericanos, sendo alguns m u çu lm a­nos de países m uçu lm anos, não tem n en h u m a justificativa na d o u ­trin a ou na lei islâm ica e nen h u m precedente na h is tó ria islâm ica. Na verdade, há poucos atos de tam an h a perversidade deliberada e in d is­crim inada na h istó ria h um ana . Esses não são apenas crim es con tra a h u m an id ad e e con tra a civilização; de um a perspectiva m uçu lm ana, tam b ém são atos de blasfêm ia, q u ando aqueles que com etem tais c ri­m es clam am fazê-lo em nom e de Deus, Seu Profeta e Suas escrituras.

A resposta de m u ito s árabes e m uçu lm anos ao a taque ao W orld Trade C enter foi de choque e h o rro r d ian te da terrível destru ição e carnificina, ju n to com vergonha e raiva de que isso tivesse sido feito em seu nom e em nom e de sua fé. Essa foi a resposta de m u ito s - m as não de todos. H ouve relatos e até m esm o im agens de com em orações nas ruas de cidades árabes e de ou tras cidades m uçu lm anas às n o tí­cias de N ova York. Em parte , a reação foi de inveja - u m sen tim ento que era tam b ém dissem inado, de form a m ais abafada, na Europa. E ntre os pobres e m iseráveis havia u m certo grau de satisfação - de prazer m esm o, para alguns - ao verem os ricos e au to-indu lgen tes n o rte -am ericanos recebendo u m a lição.

As respostas da im pressa árabe aos m assacres em N ova York e W ashington m ostravam u m equilíb rio incôm odo en tre negação e aprovação, e eram bastan te sem elhantes a suas respostas ao H o lo ­causto.* N o que se refere ao H olocausto , não é incom um encon tra r

142 A crise do islã

* Para esses e ou tros relatos na m ídia árabe, ver o M iddle East M edia Research Insti- tute , W ashington, D.C. (w w w .m em ri.org).

três posições na m ídia árabe: n u n ca aconteceu; foi g randem ente exa­gerado; de qualquer form a, os ju d eu s m ereciam . Q u an to ao ú ltim o p o n to , alguns escritores m ais em preendedores acrescentam u m a re ­p rim en d a a H itler p o r não te r te rm in ad o o trabalho . N inguém ainda a firm ou que a destru ição do W o rld T rade C en ter n unca acontecen, em bora, com o passar do tem po , isso não esteja além da capacidade de teóricos com visão conspiratória . O d iscurso atual en tre m uitos dos com entaristas m uçu lm anos - em bora, de fo rm a algum a, de to ­dos - é a rg u m en ta r que nem m uçu lm anos n em árabes pod eriam ter feito isso. Em vez disso, oferecem ou tras explicações. Essas incluem suprem acistas e m ilícias brancas n o rte-am ericanas, com referência, é claro, a O klahom a e T im o th y M cVeigh; oponen tes da globaliza­ção; europeus, chineses e o u tros con trário s ao p ro je to do escudo an- tim ísseis; os japoneses, com o u m a rep rim en d a há m u ito adiada à destru ição de H irosh im a; e ou tras coisas do tipo . U m co lunista che­gou m esm o a sugerir que o a taque foi o rganizado pelo p residente Bush para desviar a atenção de sua eleição p o r “u m a m inúscu la m i­no ria que não teria sido suficiente para eleger u m conselheiro d istri­tal no Egito S uperio r” . Esse escritor tam bém denuncia C olin Powell com o um cúm plice dos dois Bush.

A cxplicaçao mais com um a trib u i o crim e, com pequenas varia­ções, a seus viloes ta v o rito s - a Israel, ao M ossad (em associação com a C I A , segundo alguns), aos Sábios de Sião ou , m ais sim ples e n a tu ­ralm ente, aos “ judeus", fsso lhes perm ite, ao m esm o tem po, reconhe­cer e rcpinliar os ,il,i<|iies. () m otivo a trib u íd o aos judeus é a in tenção de fazer com i|ue os .ii.ibes c, de m aneira geral, os m uçu lm anos se­jam mal vistos, si-ine.uul<) d iscórdia en tre eles e os norte-am ericanos. Um colunisi.i ( o k I . i m í . u i o .icrescentou u m tem a in teressante - que “as (irgaiii/.içocs sion istas” perpetraram o a taque para que Israel p u ­desse desti uii a m es(|uila dc Aqsa enquan to a atenção do m u n d o es­tivesse (lesvi.id.i p.ii .i os fstad o s U nidos. Esse tip o de explicação não in ibe ao ( o iilia i io, estim ula - a idéia m anifestada freqüen tem ente de que o iiue .a oiilet eu, em bora um crim e, foi um a ju sta re tribu ição

A ascensão do te rro rism o 143

aos crim es no rte-am ericanos. Talvez a resposta m ais drástica - e ex­plícita - ten h a v indo do sem anário do H am as Al-Risala, em Gaza, em sua edição de 13 de setem bro de 2001: “Alá resp o n d eu a nossas preces.”

Na m ed ida em que o h o rro r to tal da operação foi sendo m ais b em conhecido, alguns escritores estavam dispostos a censurar os au tores e expressar com paixão pelas vítim as. M as m esm os esses ra ­ram en te perd eram a o p o rtu n id ad e de ap o n ta r que os n o rte -am e­ricanos haviam traz ido aquilo para si m esm os. O catálogo de ofensas n o rte-am ericanas que citam é longo e detalhado, com eçando com a conquista , colonização e povoam en to - palavras de conotação em o ­cional - do N ovo M undo e co n tin u an d o até os dias de hoje; tam bém longa é a lista dos que caíram vitim ados pela cobiça e crueldade norte­am ericanas na Ásia, A frica e A m érica Latina.

O sam a b in Laden deixou claro com o percebe o conflito ao defi­n ir repetidam en te seus inim igos com o “cruzados”. O s cruzados, é preciso lem brar, não e ram n o rte -am ericanos nem judeus; eram cris­tãos lu tan d o u m a guerra san ta p ara recuperar os locais sagrados da cristandade. Urna “carta à A m érica” pub licada em novem bro de 2002,* a trib u id a a O sam a b in Laden, enum era , em algum detalhe, vários insultos perpe trados não apenas pelo governo, m as tam bém pelo povo dos Estados U nidos, e estabelece, em sete tópicos, “o que estam os c lam ando vocês a fazer, e o que querem os de vocês”. O p r i­m eiro tóp ico é aceitar o islã; o segundo, “pa ra r com suas opressóes, m en tiras, im oralidade e orgias”; o terceiro, descobrir e ad m itir que a A m érica é “urna nação sem princip ios ou costum es”; o quarto , dei­xar de apo iar Israel na Palestina, os ind ianos na C axem ira, os russos con tra os tchetchenos, e o governo de M anila con tra os m uçu lm anos n o sul das Filipinas; o qu in to , “a rru m a r suas m alas e dar o fora de

144 A crise do islã

* A íntegra do texto da carta, em árabe e inglés, foi am plam ente divulgado via In te r­net em novem bro de 2002.1 )adas as diferenças de estilo e perspectiva, é im provável que seja da autoria pessoal de O sam a bin Laden.

nossas te rras”. Isso é oferecido com o u m conselho para o p ró p rio bem dos Estados U nidos, “para que não sejam os forçados e m an d ar vocês de volta com o carga em caixões”. O sexto, “encerrar seu apoio aos líderes co rru p to s em nossos países. N ão in te rfe rir em nossas p o ­líticas e m étodos de educação. D eixar-nos em paz, o u en tão nos es­perar em N ova Y ork e W ashington; o sétim o, lidar e in terag ir com os m uçu lm anos com base em interesses e benefícios m ú tu o s, em vez de políticas de subjugação, ro u b o e o cupação”. O do cu m en to te rm ina d izendo aos no rte -am ericanos que, se recusarem esse conselho, se­rão derro tados com o todos os cruzados an terio res, e “seu destino será o m esm o dos soviéticos que fugiram do A feganistão para am ar­gar sua d erro ta m ilitar, destru ição política, ru ín a ideológica e b a n ­carro ta econôm ica”.

As alegações con tra os Estados U nidos apresentadas nesse d o cu ­m ento são m u ito detalhadas. Incluem , além da fam iliar lista de q u e i­xas específicas, um a variedade de acusações tan to gerais quan to particulares. Essas são de origem variada e usualm ente reconhecível, refletindo as sucessivas ideologias que, em diferentes épocas, in ­fluenciaram os políticos e as políticas do O rien te M édio. A lgum as datam da era nazista, tais com o degeneração dos judeus e contro le fi­nal p o r eles; outras, do período de influência soviética, com o cobiça e exploração capitalista. M uitas são recentes, de origem européia e até no rte-am ericana , e vêm tan to da esquerda q u an to da direita. In ­cluem a poluição do pl.meta e a recusa de assinar os acordos de Kio- to; a co rrupção política através do financiam ento de cam panhas; o privilégio ã "raça b i . i n c . i c, da direita, o m ito neonazista da su p re­m acia bra iu .i, scg.undo o qual B enjam in Franklin teria a lertado quan to ao pei i¡’,o |ndeu. () papel sin istro dos judeus é destacado em quase todas esses insultos.

M esm o os v.iu}’,loriados m éritos do m o d o de v ida n o rte -am e­ricano sao tr.m sloi m .idos em crim es e pecados. A liberação das m u ­lheres sij’.nilu .i dev.rssidao e seu uso com ercial com o “p rod u to s de consum o". I leiçoc s livres significam que o povo n o rte -am erican o es­

A ascensão do terro rism o 145

colheu liv rem ente seus governantes e tem , p o rtan to , que ser respon- sabilizável e punível pelos insultos desses - isto é, não existem “civis inocen tes”. O p io r de tu d o é a separação en tre igreja e Estado: “V o­cês são a nação que, em vez de legislar segundo a Sharia de Alá em sua C onstitu ição e suas leis, escolhe inven ta r suas p róp rias leis segundo seu desejo e vontade. Vocês separam a religião de suas po lí­ticas, con trad izendo a n a tu reza p u ra que afirm a a A bsoluta A u to ri­dade do Senhor e seu C riado r.” Em sum a, “vocês são a p io r civilização já vista pela h istó ria da h u m a n id a d e ”. Esse ju lgam en to se to rn a m ais ex trao rd inário p o r surgir n u m tem po em que as d itadu ras nazistas e soviéticas a inda estão vivas na m em ória - para não falar de tiranias m ais antigas preservadas nos registros históricos que O sam a b in La­d en e seus com panheiros citam com tan ta freqüência.

A razão básica é que a A m érica agora é percebida com o líder do que é ind iscrim inadam en te designado com o o O cidente, c ris tanda­

de ou, m ais genericam ente, as “Terras dos Incrédu los”. Nesse sentido, o presidente n o rte -am erican o é o sucessor de u m a longa lista de go­vernantes - os im peradores b izan tinos de C onstan tinop la , os im p e­radores rom anos do Sacro Im pério R om ano em Viena, a ra inha V itória e seus colegas e sucessores im periais na Europa. H oje, com o n o passado, esse m u n d o de incrédulos cristãos é visto com o a ún ica força rival au tên tica o b stru in d o a dissem inação d iv inam ente o rd e ­n ad a do islã, resistindo e a trasando , m as nâo im ped indo , seu triu n fo final, inevitável e universal.

N ão há dúvida de que a fundação da A l-Q aeda e as consecutivas declarações de guerra p o r O sam a b in Laden m arcaram o com eço de u m a nova e sin istra fase na h istó ria tan to do islã q u an to do te rro ris­m o. O que desengatilhou as ações de Bin Laden, com o ele m esm o ex­p licou m uito claram ente, foram a presença no rte -am erican a na A rábia d u ran te a G uerra do Golfo - um a profanação da Terra Santa m u çu lm an a - e o uso da Arábia Saudita com o base para u m ataque ao Iraque. Se a A rábia é o local m ais sim bólico no m u n d o do islã, o

146 A crise do islã

segundo é Bagdá, a sede do califado p o r m eio m ilênio e palco de al­guns dos m ais gloriosos capítu los na h isto ria islámica.

idouve um o u tro fator, talvez a inda m ais im p o rtan te , guiando Bin Laden. N o passado, m u çu lm an o s com batendo o O cidente p u d e ­ram sem pre se vo ltar para os in im igos do m u n d o ocidental em busca de apoio, fom ento e auxílio m ateria l e m ilitar. Agora, pela p rim eira vez em séculos, não existem tais in im igos úteis. O sam a b in Laden e seus seguidores logo perceberam que, na nova configuração do p o ­der m und ia l, se quisessem lu ta r co n tra a A m érica, te riam que fazê-lo p o r eles m esm os. Em 1991, o m esm o ano em que a U nião Soviética deixou de existir, Bin Laden e seus seguidores c riaram a A l-Q aeda, que incluía m u ito s veteranos da g uerra no Afeganistão. Sua tarefa poderia te r parecido desencorajadora para qualquer um , m as não a v iam dessa m aneira . Segundo eles, já hav iam tirad o os russos do Afe­ganistão, n u m a d erro ta tão esm agadora que levou d ire tam en te ao colapso da U nião Soviética. Vencido o su p erp o d er que sem pre h a ­viam visto com o o m ais tem ível, sen tiram -se p ron tos para en fren tar o ou tro ; a seu m odo , foram incentivados pela opinião , freqúen te­m ente enunciada p o r Bin Laden, en tre ou tros, de que os Estados U nidos eram um tigre dc papel.

Os terroristas m uçu lm anos hav iam sido m ovidos p o r tais c ren ­ças antes. Uma das mais su rp reenden tes revelações nas m em órias dos que ocuparam .1 em iiaixada no rte -am erican a em Teerã de 1979 a 1981 c que sua in tenção orig inal havia sido m an te r o edifício e os re­féns apenas por uns poucos dias. M u d aram de idéia q u ando declara­ções dc W ashiugjoii di-ix.iram claro que não havia n en h u m risco de açóes sérias eo u lia eles. f in a lm en te , explicaram , so ltaram os reféns apenas pou iue teini.uii i|ue o presidente eleito, R onald Reagan, p u ­desse ab o id a r o p ioh ieina “com o u m cau b ó i”. Bin Laden e seus se- guidoivs U .uaineu le nao têm tal p reocupação , e seu ód io não é con tido pi-lo m edo e nem d ilu ído pelo respeito. C om o precedentes, citam repetul.m u-nie ,is retiradas no rte -am erican as do V ietnã, do Lí­bano i', a seus ollios, o caso m ais im p o rtan te de to d o s - d a Som ália.

A ascensão do terrorism o 147

O s com entários de Bin Laden na entrevista com John M iller, da ABC

News, em 28 de m aio de 1998, são especialm ente reveladores;

Na últim a década, v im os o declínio do governo norte-am ericano e a fraqueza do soldado norte-am ericano, pronto para fazer guerras frias e despreparado para lutar longas guerras. Isso ficou provado em Bei­rute, quando os marines fugiram após duas explosões. Também prova que eles podem fugir em m enos de 24 horas, o que se repetiu na Som á­lia. ... [Nossos] jovens ficaram surpreendidos com o baixo m oral dos soldados norte-am ericanos. ... Após uns poucos golpes, fugiram der­rotados. ... Eles esqueceram isso de serem o líder m undial e o líder da nova ordem m undial. Partiram arrastando seus cadáveres e sua vergo­nhosa derrota.

Para O sam a b in Laden, sua declaração de guerra con tra os Esta­dos U nidos m arca a re tom ada da lu ta pela dom inânc ia religiosa do m u n d o , in iciada no século VII. Para ele e seus seguidores, esse é u m m o m en to de o p o rtu n id ad e . H oje, os Estados U nidos são u m exem ­p lo da civilização e encarnam a liderança da Casa da G uerra; assim com o R om a e Bizâncio, to rn a ram -se degenerados e desm oralizados, p ro n to s para serem derrubados. M as, a despeito de sua fraqueza, tam b ém são perigosos. Eoi significativa a designação de “o G rande Satã” dada p o r K hom eini aos Estados U nidos, e, para os m em bros da A l-Q aeda, a sedução exercida p o r esse país e seu m o d o de vida ex tra­vagante e d issoluto represen ta a m aio r am eaça ao tip o de islã que d e ­sejam im p o r a seus com panheiros m uçu lm anos.

M as há ou tros p ara os quais os Estados U nidos oferece u m tipo diferente de ten tação - a p rom essa de direitos hum an o s, de in s titu i­ções livres e de um governo representativo e que inspire confiança. Existe um n ú m ero cada vez m aio r de indivíduos, e até alguns m o v i­m entos, que assum iram a com plexa tarefa de in tro d u z ir tais in s titu i­ções em seus p róp rio s países. N ão é fácil. Tentativas sim ilares, com o visto, conduziram a m uitos dos atuais regim es co rrup tos. D os 57 Estados m em bros da O rganização da C onferência Islâm ica, apenas um , a República Turca, tem m an tid o institu ições dem ocráticas fun-

148 A crise do islã

cionando p o r um longo período e, a despeito de dificuldades e p ro ­blem as existentes, tem feito progressos n o estabelecim ento de urna econom ia liberal e de urna sociedade e o rd em política livres.

Em dois países, Iraque e Irã, onde os regim es são fo rtem ente a n ­tiam ericanos, há oposições dem ocráticas capazes de assum ir o poder e fo rm ar governos. N ós, naquilo que gostam os de cham ar de o m u n ­do livre, poderíam os fazer m uito p ara ajudá-las, e tem os feito pouco. Na m aio r parte dos ou tros países da região, há pessoas que partilham nossos valores, s im patizam conosco e gostariam de ter parte no nos- so m odo de vida. Elas en tendem o que seja liberdade e querem des- fru tá-la em sua p ró p ria terra. E m ais difícil para nós a judar a essas pessoas, m as, pelo m enos, não devem os lhes criar obstáculos. Se tive­rem sucesso, terem os am igos e aliados no sen tido verdadeiro dessas palavras, e não apenas no sen tido dip lom ático .

E nquan to isso, há problem as m ais urgentes. Se os líderes da A l-Q aeda p o d em persuad ir o m u n d o do islã a aceitar suas opiniões e sua liderança, en tão terem os adian te um longo e am argo conflito, e não apenas para os Estados U nidos. A Europa e, m ais p a rticu la rm en ­te, a Europa ocidental, é agora te rra de u m a com un idade m u çu lm a­na g rande e rap idam en te crescente, e m uitos europeus estão com eçando a ver sua presença com o u m prob lem a e, alguns, m esm o com o um a am eaça. Mais cedo ou m ais tarde, a A l-Q aeda e grupos re­lacionados a ela irão bater-se com os o u tros vizinhos do islã - Rússia, China, índia - que podem provar-se m enos m elindrosos que os norte- am ericanos e usar seu poder contra os m uçu lm anos e seus p r in c í­pios sagrados. Se os fundam entalistas estão corretos em seus cálculos e tiverem sucesso em sua guerra, en tão u m fu tu ro negro espera o m undo , especialm ente aquela parte que segue o islã.

A ascensão do terro rism o 149

POSFACIO

o núcleo deste livro foi um artigo publicado no The N ew Yorker em novem bro de 2001. Ao atualizá-lo , tran sfo rm an d o u m longo artigo em um pequeno livro, adaptei algum as poucas passagens de pub lica­ções anteriores, especialm ente alguns artigos publicados em Foreign Affairs e The A tlantic M onthly. O restan te é novo.

Vem agora a agradável tarefa de agradecer a todos que ajudaram na preparação e p rodução deste livro. Sou especialm ente grato, m ais u m a vez, a m eu incansável e inestim ável editor, Joy de iSdenil, e a m i­n h a assistente, A nnam arie C erm inaro , pelo pe rm an en te apoio e a ju ­da; a m in h a am iga Buntzie C hurchill, p o r sua le itu ra crítica das p rim eiras versões e por sugestões para m elhorá-las; a Eli Alsheck, es­tu d an te de Princeton que a judou de vários m odos no processo de pesquisa e preparação. Q uaisquer faltas restantes são, p o r certo, in ­te iram ente m in lias.

151

INDICE REMISSIVO

Abu Bakr (califa); 28 Aden; 66,136Afeganistão; 17, 33, 40, 67, 68, 71 ,93-4 ,

145, 147África; 49, 50, 53, 55, 62, 63, 125, 144

ver também Argélia Al-Assad, Hafiz; 107 Alcorão; 28-9 ,45 , 47, 56, 85, 130-2 Alem anha; 68-9, 76-7, 95, 138 A l-Husseini, Hajj Am in; 68 ‘Ali (rei do H ijaz); 119 ‘Ali, Rashid; 69, 82Al-Nasser, Gam al ‘Abd; 8 2 ,9 2 ,9 7 , 98,

114Al-Qaeda; 99, 108, 129, 147, 149 Al-Quds aT'Arabi (jornal); 18 Al-Tahtawi, Rifa'a Rafi‘; 74 Am érica ver Estados U nidos Anatólia ver também Turquia apostasia; 53-5

acusação con tra Salm an Rushdie; 65, 132

com o ofensa capital; 54, 65-6 e governantes m uçulm anos; 40, 54,

115, 126-7, 128Arábia;

com o Terra Santa m uçulm ana; 21-2 e im perialism o; 66-7 h istória; 12, 21-3, 116 17 nen h u m a palavra árabe para; 15-16

presença dos Estados U nidos na;23-4, 56, 146-7

queixas e am eaças percebidas; 23-4 ver também Arábia Saudita

A rábia Saudita;com o m em bro da Com issão de

D ireitos H um anos da ONU; 104 desem penho econôm ico; 110-11 e a Casa de Saud; 23, 116-17 e o islam ism o radical; 39-40, 114 e palestinos; 70 história; 11 ,23 ,116-20 m udanças trazidas pelo petróleo;

22-3 ,121-4 na Declaração da Frente M undial

Islâmica pela jihad con tra os judeus e os cruzados; 18, 19, 24

nome; 15, 16tropas norte-am ericanas na; 23-4,

56, 146Argélia; 15, 40, 66, 67, 78, 105, 108-9,

125, 138 assassinato; 52-3, 133-4, 141-3

ver também suicídio assassinos (seita m uçulm ana); 134-5,

140ataques de 11 de setem bro; 114, 141-4 A taturk, M ustafa Kemal; 12 Azerbaijão; 90-1, 98

153

156 A crise do islã

Ibn ‘Abd al-W ahhab, M uham m ad; 116, 118, 119

Ibn al-A thir; 60-1 Ibn Rashid; 118 Ibn Saud; 1)8, 119-20,121 im perialism o;

após a G uerra Fria; 69-70 británico; 65, 66, 67-8, 69, 78 definição; 50 holandês; 63, 66, 68 papel na h istória islâmica; 65-7, 90 russo; 68, 90-2, 97 vs cruzadas; 62

im perialism o holandés; 63, 66,68 Im pério B izantino; 49, 62 Im pério O tom ano;

declínio e derro ta; 11-12, 15,66-7, 117, 118

governo do; 32 ,49-50, 62-3, 73 Im pério R om ano; 27, 30-1 im posto por cabeça; 54-5, 57 incréus; 53-4, 146-7

ver tambérn infiéis índ ia ; 33, 66,138 infléis; 16, 22-3, 52-3, 127, 128

ver tambérn cruzadas Irá; 42, 67-8 ,79-80, 90-1, 98, 101 Iraque;

com o centro do m undo islámico;21-2, 146-7

com o provincia m edieval; 15 governáncia; 69, 76-7, 78, 81-3, 97,

98, 101, 105 na Declaração da Frente Islámica

M undial para a Jihad con tra os Judcus e os Cruzados; 18-20

oposição dem ocrática; 148-9 origem d.i entidade; 12 Partido Ba’th; 76, 114 política norte am ericana para o;

100-1, 105-6 regim e pró-nazi; 69, 76-7, 82

ver tambérn G uerra do Golfo de 1991; Hussein, Saddam; guerra Irã-Iraque

Irm ãos M uçulm anos; 81, 83-4, 106-7, 108, 124,138-9

islã;caráter dual; 25, 27-8, 30-2 com o civilização m undial líder

du ran te a Idade das Trevas européia; 25-6, 45, 62

com o um a das grandes religiões do m undo; 41

conquistas nos p rim eiros séculos; 48-50

e “inim igos de D eus”; 42-4, 76 elem entos de ódio e violência; 41-4 ensino em escolas patrocinadas p o r

wahhabis; 122-3 na esfera política; 32-7 onda revolucionária; 38-41 papel da h istória no O riente M édio

m oderno; 13-18 tolerância d iante de outras

religiões; 57-8 vs cristandade; 25-8, 29-30, 55-7,

146ver também jihad

Islamabad; 86 islam ism o radical;

com o ataque a seus p róprios governantes e líderes; 40, 54, 115, 126-7, 128

e “inim igos de D eus”; 42, 43-4, 75-6 form as de extrem ism o; 39-40,

129-30 vs dem ocracia; 108-9 ver também Revolução Iraniana

Israel;confiitos árabe-israelenses; 91-2,

94-6, 139, 140 criação do Estado dc Israel; 96 desem penho econôm ico; 113

Indice remissivo 157

relações estratégicas com os Estados Unidos; 97-8, 99-100

ver também judeus

jahiUyya; 84Djedda, Arabia Saudita; 33, 122 Jerusalém;

D om o da Rocha; 55, 56 h istoria du ran te as cruzadas; 59-61 na Declaração da Frente Islámica

M undial para a fihad con tra os Judeus e os Cruzados; 18-19

Jesús Cristo; 27, 30, 49 jihad;

com o esforço m oral; 45-6, 50-1 com o herança de M aom é; 45-6 com o lu ta arm ada; 46 ,47-55 con tra apóstatas; 53-5 Declaração da Frente M undial

Islámica para a Jihad con tra os Judeus e os Cruzados; 18-19, 24

no Alcorão; 45, 47 ofensiva vs. defensiva; 46, 49-50 origem do term o; 45-6 papel das tréguas; 54-5, 57 papel dos m ártires; 52-3 regras da guerra; 47 8, 52, 53-5 vs cruzados; 51-2

jizya; 57J o r d a n ia ; 1 2 ,5 9 , 97, 98 ju d e u s ;

eulp.idos pelos ataques de 1 1 de setem bro; 143-4

expulsos da Arábia; 21-2 n.i I teel.ii .içáo da Frente Islámica

Mmull.il para a Jihad con tra os linleus e os Cruzados; 18-19

ver liimlii-in Israel

Khom eini, ,ii.i(ol.i; 28, 37, 85, 86, 87-9, 130 3. I 18

Krushchev, NikiLi; 0(,Kuwait; 20, 23. /O, 111,115

lei sagrada ver shari‘a leste da Ásia; 66, 110-4 Líbano; 12, 76, 97, 98, 102, 107, 113,

140, 147 Libia; 15, 101, 104, 112 Liga das Nações; 66 língua árabe, e nom es m odernos dos

Estados-nação; 15-16

madrasa; 122 M aom é, Profeta;

criação da com unidade política e religiosa islámica; 25, 27-8, 30

duplo aspecto de sua carreira; 31, 42

e a jihad; 45-9insultos com o ofensa a; 131-2 relação com a Arábia; 21

M arrocos; 33, 66, 73, 80 m ártires; 52 m arxism o; 77Meca; 2 0 ,2 1 ,3 1 ,4 8 ,8 6 , 116, 118-19 M edina; 21, 28, 3 1 ,4 6 ,4 8 , 56, 116,

118-19 m esquitas; 20 ,29 , 39 m odern idade ver m odernização m odernização;

com o o problem a; 113-14, 116, 126 desejo de; 113-14 efeitos da; 67 e petróleo; 123-4 excessiva; 126-7 fracasso da; 114

M osaddeq, M uham m ad; 78, 80 m ovim entos islám icos ver islam ism o

radical M u an im ar Qaddafi; 114 m uçulm anos;

com o população m inoritária; 33-4, 149

estatísticas econôm icas; 110-13 tentações da dem ocracia; 148-9

158 A crise do islã

visão dos líderes com o infiéis; 40, 53-4, 114, 126-7, 128

ver também islã; O riente M édio m ufti; 31, 131 m ufti de Jerusalém; 68, 82 M uham m ad ‘Ali Paxá; 50 m ulheres; 54, 66-7, 105, 140, 145-6

N abucodonosor; 60 Nações Unidas; 93, 96, 104 Najd, região da Arábia; 116, 118, 119 N úbia; 55

ocidentalizadores; 125, 126 O rganização da C onferência Islâmica

(O C I); 33, 80 ,84 , 93 ,94 , 148 O rganização para a Libertação da

Palestina (O LP); 70, 93, 135, 136-8 O rien te M édio;

com eço da h istória m oderna; 64-5 cum plicidade norte-am ericana com

governos corruptos; 81, 95, 103-9, 114

desem penho econôm ico; 110-3 expectativas ocidentais; 104-9 im perialism o no; 50, 62, 63, 64-7,

68 ,69-70, 7 8 ,9 0 ,9 1 -2 ,9 7 papel da h istória islâmica; 13-18 surgim ento do antiam ericanism o;

76-85,95, 146 ver também m uçulm anos

Pacto de Bagdá; 98 Palestina;

com o um nom e da A ntigüidade clássica; 15

conflito Israel-Palcstina; 70-1, 94,95-6, 139, 144-5

conquista pelos m uçulm anos; 49 divisão em dois segm entos; 12 e a OCI; 34, 94 judeus na; 22, 93, 136 origem da entidade; 12

pan-islam ism o; 138

Paquistão; 17 ,40 ,86 , 139 Partido Ba’th; 76, 114 Pérsia; 16, 17,49, 64, 90

ver também Irã petróleo; 22, 75, 78-9, 100, 121

Q atar; 111-12 Q utb , Sayyid; 81-4, 85

Raffarin, Jean-Pierre; 60 Reagan, Ronald; 147 Reinaldo de Châtillon; 59, 60, 61 religião ver cristianism o; islã revolução;

definição; 38ver também Revolução Iraniana

Revolução Iraquiana;a questão da liderança tirânica;

103-4com o m ovim ento popular; 39-40 crise dos reféns norte-am ericanos;

69-70 ,86-8 , 147-8 e K hom eini; 28-9, 37, 85, 86-9,

130-3, 148 e o x á ; 40 ,80-1 , 103-4 im pacto no m u n d o m uçulm ano;

37-8oposição dem ocrática; 148-9 os Estados U nidos com o o C rande

Satã; 85, 89, 148 Riad, A rábia Saudita; 22, 117 Rushdie, Salman; 65, 130-2 Rússia; 33, 48-9, 62, 64, 6 6 ,6 8 ,9 0 -2 , 97

ver também U nião Soviética

Sabra e Shatila; 107Sadat, Anwar; 40, 65, 69, 89, 92, 127Said, Nuri; 97Saladino; 60, 61Satã ver G rande SatãSelaniki M ustafa efêndi; 63shahid; 52

índice remissivo 159

sharia (lei sagrada);conversão ao islã e ab andono dele;

65definição; 28 e jihad-, 48, 52-5 e terrorism o; 24, 52 papel do ulem á; 29 tolerância de ou tras religiões; 57-8

Síria;com o centro do m u n d o islámico;

21,57, 59 com o nom e da A ntigüidade

clássica; 15 conquista pelos m uçulm anos; 49 con tro lada po r Vichy; 69, 76 desem penho econôm ico; 113 divisão em dois segm entos; 11-12 e a U nião Soviética; 97 e direitos hum anos; 104, 105 judeus na; 22 levante de H am a; 106, 107 origem da entidade; 12 Partido Ba‘th; 76, 114

Slade, Adolphus; 67 socialismo; 77 Somália; 34, 147-8 Stálin, Josef; 96Standard Oil da (ialilórnia; 120-1

Sudão; 1 9 , 3 4 , 101, 104, 105

guerra d e Suez, d e 1956; 96

suicidio n o islá; 52 , I 13 14, 140 -2

takfir; 65 Talibã; 17, 124 tártaros; 33, 49, 62 TASS; 120t c h c t d i e n o s ; 39, 9-1

T e e r a ; 7 9 .HO, K7, 1 3 1 , 1 3 5 , 1 4 7

T e rc e i ro Kcicli; 98 9, 7 7 , 9 5

t e r r o r i s m o ;

Al ( T ie d . i ; 9 9 , 108-9 , 129, 139, 147, I 19

c r e s c i m c n l o d o ; 129 49

e a lei sagrada islámica; 23-4, 52 e civis inocentes; 136, 139-40 fases do; 136-40 hom ens-bom ba; 52, 139-42 m otivos nacionalistas; 136-8 m otivos religiosos; 138-40

Tunísia; 15,66turcos; 16,49, 62, 6 3 ,6 4 ,6 5 , 91 Turquia;

adoção do nom e; 16 am eaça soviética á; 90-1, 98 com o independente; 67-8 com o m em bro da OCI; 33 desem penho econôm ico; 111-12,

113e descobrim ento da América; 72 instituições dem ocráticas; 113,

148-9 libertação da; 12-13

ulem á; 20, 28, 29-30 ‘U m ar (califa); 15, 21 U nião Soviética;

colapso da; 69, 70, 71, 147 e Afeganistão; 33-4, 71 ,93-4 , 145,

147e criação do Estado de Israel; 96 interesses n o O riente M édio; 68,

6 9 -71 ,77 -8 ,90 -3 negociação de arm as com o Egito;

96, 97-8 reconhece o reino saudita; 119

‘U thm an (califa); 134

wahhabism o; 23, 116-23 Wolff, H einrich; 68 W orld Trade C enter ver ataques de 11

de setem bro

xá do Irã; 40, 78, 79, 80-1 ,103-4 xiita; 106

Zahedi, general Fazlollah; 79

I .s lc livici loi com posto pela Textos & Form as ein Mlnion e Cill Sans e im presso pela

( '. ro m o s e le ( ii alica e E ditora em agosto de 2004.