barros, josé d'assunção. história social. ufop, 2005 (1)

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A História Social: seus significados e seus caminhos José D’Assunção Barros 1 RESUMO Este artigo busca esclarecer e discutir alguns aspectos relacionados à História Social, examinando inicialmente, de um ponto de vista crítico, os diversos usos e significados da expressão como modalidade do saber historiográfico. São discutidos aspectos diversos, incluindo os objetos, fontes e abordagens mais comuns a este campo. O artigo apresenta como principal referência importante o livro O Campo da História, publicado pelo autor recentemente, e que cujo principal objetivo é elaborar uma visão panorâmica dos vários campos em que se divide o conhecimento histórico nos dias de hoje, incluindo o da História Social e de outras modalidades como a História Política, a História Econômica, a História Cultural e a Micro-História. ABSTRACT This article attempts to clarify and discuss some aspects related to the Social History, discussing the various uses and significances of this expression as a modality of historical knowledge. The aspects to be discussed are diverse, and include the objects, sources and approaches more common in this field. The article presents as principal reference the book named The Field of History, recently publicized by the author ant witch principal subject is to organize a panoramic view of the various fields in which ones the historical knowledge is divided nowadays, including the Social History and much other as the Political History, the Economic History, the Cultural History and the Micro- History. Palavras-chave: História Social, Campos da História, escrita da história. Key Words: Social History, Fields of History, historical writing. 1 Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), nos Cursos de Mestrado e Graduação em História. Professor-Colaborador do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ.

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  • A Histria Social: seus significados e seus caminhos

    Jos DAssuno Barros1

    RESUMO

    Este artigo busca esclarecer e discutir alguns aspectos relacionados Histria Social, examinando inicialmente, de um ponto de vista crtico, os diversos usos e significados da expresso como modalidade do saber historiogrfico. So discutidos aspectos diversos, incluindo os objetos, fontes e abordagens mais comuns a este campo. O artigo apresenta como principal referncia importante o livro O Campo da Histria, publicado pelo autor recentemente, e que cujo principal objetivo elaborar uma viso panormica dos vrios campos em que se divide o conhecimento histrico nos dias de hoje, incluindo o da Histria Social e de outras modalidades como a Histria Poltica, a Histria Econmica, a Histria Cultural e a Micro-Histria.

    ABSTRACT

    This article attempts to clarify and discuss some aspects related to the Social History, discussing the various uses and significances of this expression as a modality of historical knowledge. The aspects to be discussed are diverse, and include the objects, sources and approaches more common in this field. The article presents as principal reference the book named The Field of History, recently publicized by the author ant witch principal subject is to organize a panoramic view of the various fields in which ones the historical knowledge is divided nowadays, including the Social History and much other as the Political History, the Economic History, the Cultural History and the Micro-History.

    Palavras-chave: Histria Social, Campos da Histria, escrita da histria. Key Words: Social History, Fields of History, historical writing.

    1 Doutor em Histria Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), nos Cursos de Mestrado e Graduao em Histria. Professor-Colaborador do Programa de Ps-Graduao em Histria Comparada da UFRJ.

  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    A Histria Social: seus significados e seus caminhos

    Jos DAssuno Barros

    1. Breve Introduo aos Campos Histricos

    Entre as inmeras modalidades e especialidades nas quais se reparte a disciplina e a

    prtica da Histria nos dias de hoje, talvez a dimenso historiogrfica mais sujeita a

    oscilaes de significado seja a da Histria Social. Modalidade historiogrfica rica de

    interdisciplinaridades com todas as Cincias Sociais, e igualmente rica na sua possibilidade

    de objetos de estudo, a Histria Social abre-se de fato a variadas possibilidades de definio e

    delimitao que certamente interferem nos vrios trabalhos produzidos pelos historiadores

    que atuam neste campo intradisciplinar. Veremos, neste artigo, que h razes vrias para essa

    oferta de uma diversidade de sentidos que vem tona quando falamos em Histria Social.

    Por outro lado, antes de aprofundar a temtica em questo, uma reflexo inicial sobre os

    critrios que presidem a partio da Histria nas suas diversas modalidades mostrar-se-

    bastante oportuna, e para tal nos basearemos em uma obra especfica recentemente publicada

    sobre o assunto com o ttulo O Campo da Histria especialidades e abordagens

    (BARROS, 2004).

    Antes de mais nada, ser til compreender que existem basicamente duas grandes

    ordens de dificuldades que costumam tornar confusos os esforos de classificar e organizar

    internamente a Histria em sub-reas especializadas. Uma corresponde a uma intrincada

    confuso de critrios que costuma presidir estes esforos classificatrios, questo que

    deixaremos para discutir mais adiante. A outra ordem de dificuldades, da qual gostaramos de

    falar em primeiro lugar, corresponde ao fato de que uma abordagem ou uma prtica

    historiogrfica no pode ser rigorosamente enquadrada dentro de um nico campo.

    Apesar de falarmos freqentemente em uma Histria Econmica, em uma Histria

    Poltica, em uma Histria Cultural, e assim por diante, a verdade que no existem fatos

    que sejam exclusivamente econmicos, polticos ou culturais. Todas as dimenses da

    realidade social interagem, ou rigorosamente sequer existem como dimenses separadas. Mas

    o ser humano, em sua nsia de melhor compreender o mundo, acaba sendo obrigado a

    proceder a recortes e a operaes simplificadoras, e neste sentido que devem ser

    considerados os compartimentos que foram criados pelos prprios historiadores para

    enquadrar os seus vrios tipos de estudos histricos.

    2

  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    Preocupados com uma religao dos saberes depois deste conturbado sculo que

    de certa maneira foi o sculo das especializaes no faltam os autores que alertam para

    os perigos e empobrecimentos do isolamento e da compartimentao:

    Sabe-se que o historiador tem o costume de arrumar os fatos em envelopes que se transformaram em entidades trans-histricas, em categorias temporais e universais: o social, o econmico, o poltico, o religioso, o cultural ... Depois de proceder a esta distribuio e a esta etiquetagem, por razes de competncia pessoal ou por escolha disciplinar, o historiador atm-se comumente a uma nica ordem de fatos1

    A sada, naturalmente, no utilizar as classificaes como limites ou pretexto para o

    isolamento. No se justifica o recuo diante de uma curva demogrfica, quando o objeto de

    estudo o exige, sob o pretexto de que a sua apenas uma Histria Cultural. Da mesma forma,

    um historiador econmico no pode recuar diante dos fatos da cultura (ou dos aspectos

    culturais de um fato econmico). Peter Burke registra em seu livro sobre a Escola dos

    Annales um exemplo extrado do grande historiador econmico Witold Kula:

    [...] Kula faz uma anlise econmica dos latifndios poloneses nos sculos XVII e XVIII. Mostrou que o comportamento econmico dos proprietrios de terras poloneses era o oposto do que previa a economia clssica. Quando o preo do centeio, seu produto principal, aumentava, produziam menos, e quando o preo abaixava, produziam mais. A explicao deste paradoxo deveria ser encontrada, diz Kula [...] no reino da cultura, ou das mentalidades. Tais aristocratas no estavam interessados em lucros, mas em manter um estilo de vida, da maneira a que estavam acostumados. As variaes na produo eram tentativas de manter uma renda padro. Seria interessante imaginar as reaes de Karl Marx a essas idias2

    O fundador do Materialismo Histrico teria possivelmente reagido bem flexibilidade

    de Kula, poderamos acrescentar. Afinal, em sua anlise poltica e econmica do 18

    Brumrio de Lus Bonaparte (1952), Marx no recua diante dos fatos do imaginrio

    (palavra que ainda estava longe de ser cunhada). Sua explicao para a ascenso de Lus

    Bonaparte ao governo francs na segunda metade do sculo XIX, com base nos votos dos

    camponeses, est ancorada precisamente em uma anlise do imaginrio, do peso que a

    imagem de Napoleo Bonaparte (tio de Lus Bonaparte) ainda exercia sobre a populao3.

    Em vista destes e de tantos outros exemplos que poderiam ser extrados de obras

    historiogrficas magistrais, tem-se a lio nem sempre bem compreendida de que o

    esclarecimento do campo ou da combinao de campos em que se insere um estudo no deve

    ter efeito paralisante, nem servir como pretexto para justificar omisses. Definir o ambiente

    3

  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    intradisciplinar em que florescer a pesquisa ou no qual se consolidar uma atuao

    historiogrfica deve ser encarado como um esforo de autoconhecimento, de definir os

    pontos de partida mais significativos e no como uma profisso de f no isolamento

    intradisciplinar.

    Uma segunda ordem de dificuldades que costuma confundir as tentativas de

    subdividir internamente o Campo Histrico refere-se a uma inadvertida mistura dos critrios

    que so habitualmente utilizados para a classificao das vrias histrias. Fala-se por

    exemplo em uma Histria Demogrfica ou em uma Histria Poltica, noes que se referem

    a dimenses ou a fatores que ajudam a definir a realidade social (a populao, o poder);

    fala-se de uma Histria Oral ou de uma Histria Serial, que so classificaes da Histria

    que remetem ao tipo de fontes com as quais elas lidam ou s abordagens que os

    historiadores utilizam para tratar estas fontes (a entrevista, a serializao de dados); fala-se da

    Micro-Histria ou da Histria Quantitativa, que so classificaes relativas aos campos de

    observao abordados pelo historiador (a micro-realidade, o nmero); fala-se em uma

    Histria das Mulheres ou em uma Histria dos Marginais, que so classificaes

    relacionadas aos sujeitos que fazem a Histria (a Mulher, o Marginal); fala-se em uma

    Histria Rural ou em uma Histria Urbana, que so subdivises relativas aos ambientes

    sociais examinados pelo historiador (o Campo, a Cidade); fala-se de uma Histria da Arte

    ou de uma Histria da Sexualidade, que so mbitos associados aos objetos considerados

    na pesquisa histrica (a Criao Artstica, o Sexo). Poder-se-ia falar ainda em uma Histria

    Vista de Baixo, para simbolizar uma inverso de perspectiva em relao tradicional

    historiografia que partia do poder dominante, e at em uma Histria Imediata, modalidade

    historiogrfica em que o autor ao mesmo tempo historiador e personagem dos

    acontecimentos que descreve ou analisa.

    Todos estes exemplos constituem legtimas especialidades da Histria. Mas as

    dificuldades comeam a se mostrar quando estas vrias classificaes, oriundas de critrios

    bem diferentes e estranhos entre si, so misturadas indiscriminadamente para organizar os

    vrios lotes da Histria.

    De algum modo, pode-se postular trs ordens de critrios correspondentes a divises

    da Histria respectivamente relacionadas a enfoques, mtodos e temas. Uma dimenso

    implica em um tipo de enfoque ou em um modo de ver (ou em algo que se pretende ver em

    primeiro plano na observao de uma sociedade historicamente localizada); uma abordagem

    implica em um modo de fazer a histria a partir dos materiais com os quais deve trabalhar o

    historiador (determinadas fontes, determinados mtodos, e determinados campos de

    4

  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    observao); um domnio corresponde a uma escolha mais especfica, orientada em relao a

    determinados sujeitos ou objetos para os quais ser dirigida a ateno do historiador (campos

    temticos como o da histria das mulheres ou da histria do Direito).

    Desnecessrio dizer que os historiadores podem unir em uma nica perspectiva

    historiogrfica uma dimenso (por exemplo, a Histria Econmica), uma determinada

    abordagem (a Histria Serial), e um certo domnio (a Histria dos Camponeses). Na verdade,

    muitos outros tipos de combinaes sero possveis, at mesmo no interior de um grupo de

    critrios, mas por ora avancemos mais nesta clarificao.

    A primeira ordem de classificaes a que podemos nos referir aquela gerada pelas

    vrias dimenses da vida humana que podem constituir enfoques historiogrficos, embora na

    realidade social efetiva estas dimenses nunca apaream desligadas entre si. Teremos ento

    uma Histria Demogrfica, uma Histria da Cultura Material, uma Histria Econmica, uma

    Histria Poltica, uma Histria Cultural, e assim por diante.

    preciso ter em vista, antes de mais nada, que estas dimenses a serem definidas

    como instncias da realidade social so em todos os casos construes do historiador,

    contendo a sua parcela de arbitrariedade e a sua possibilidade de flutuaes ao longo do

    desenvolvimento da histria do pensamento historiogrfico. A cada novo perodo da

    historiografia, uma dimenso pode como que se desprender da outra, ou ento duas

    dimenses que antes andavam separadas podem voltar a se juntar.

    A Histria das Mentalidades, a Histria do Imaginrio e a Histria Antropolgica, por

    exemplo, foram enfoques que de certo modo se desprenderam h algumas dcadas da

    Histria da Cultura; e a Histria da Cultura Material organizou-se a partir de um certo setor

    da Histria Econmica que estava diretamente voltado para o consumo e que passou a se

    conectar com certos aspectos enfatizados pela Histria Cultural, ao mesmo tempo em que se

    beneficiava das preocupaes crescentes com a vida cotidiana que surgiram no decurso do

    sculo XX. H tambm as dimenses que so constitudas pelo contato da Histria com

    outras disciplinas, como a Geo-Histria, que surgiu de uma interface do trabalho

    historiogrfico com a Geografia.

    tambm digno de nota o fato de que algumas dimenses podem comear por ser

    construdas por contraste com outras, por vezes gerando certas oposies mais marcantes, at

    que em seu desenvolvimento posterior certas interfaces possam ser estabelecidas ou

    retomadas. De certo modo, tal como j foi ressaltado no incio deste ensaio, a Histria Social

    e a Histria Econmica do sculo XX comearam a ser edificadas a partir de um contraste

    com a velha Histria Poltica que se fazia no sculo XIX e isto resultou alis no provisrio

    5

  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    abandono de alguns objetos por estas novas sub-especialidades (por longo tempo,

    desapareceriam da prtica historiogrfica profissional do sculo XX a biografia de

    personalidades polticas importantes e a histria das grandes batalhas, temas que depois

    retornaram nas ltimas dcadas do sculo XX). Em suma: o caleidoscpio historiogrfico

    sofre os seus rearranjos. E estes rearranjos so eles mesmos produtos histricos, derivados

    das tendncias de pensamento de cada poca e das suas motivaes polticas e sociais. Os

    paradigmas acabam sendo substitudos uns por outros, por mais que tenham perdurado, e

    trazem a seu reboque novas tbuas de classificao.

    Posto isto, ser possvel dividir a Histria conforme ela hoje compreendida pelos

    historiadores profissionais em dimenses relativas a certos enfoques que so priorizados na

    apreenso da vida e da organizao de uma sociedade. Uma vez que o objetivo mais

    especfico deste artigo delimitar e discutir a Histria Social, no teremos espao para

    discutir cada um dos demais campos gerados por este grupo de critrios e que vo da

    Histria Social a outras modalidades como a Histria Poltica, a Histria Econmica, a

    Histria Demogrfica, a Geo-Histria ou a Histria das Mentalidades. Contudo reenviamos,

    para uma continuidade no aprofundamento deste assunto, a uma obra recente que foi

    desenvolvida neste sentido4.

    Do mbito das dimenses, passaremos agora ao mbito das abordagens. Existem

    subdivises possveis da Histria que se referem ao campo de observao com que os

    historiadores trabalham. E existem outras que se referem ao tipo de fontes ou ao modo de

    tratamento das fontes empregado pelo historiador. Em cada um destes casos, estas divises

    da Histria referem-se mais aos modos de fazer a pesquisa do que s dimenses sociais que

    enfocadas pelo historiador (modos de ver). Deste modo, os critrios envolvidos por estas

    subdivises so divises que esto mais relacionadas com Metodologia do que com Teoria.

    o caso, por exemplo, da Histria Oral. Esta subdiviso historiogrfica refere-se a

    um tipo de fontes com o qual o historiador trabalha, a saber, os testemunhos orais. Aqui,

    entramos em um outro tipo de critrio que no interfere com os do primeiro grupo. Um

    historiador pode estabelecer como enfoque a Histria Poltica ou a Histria Cultural, e

    selecionar como abordagem a Histria Oral. Isto significa que ele ir produzir o essencial dos

    seus materiais de investigao e reflexo a partir da coleta de depoimentos, que depois dever

    analisar com os mtodos adequados. Suas preocupaes neste mbito estaro relacionadas ao

    tipo de entrevista que ser utilizado na coleta de depoimentos, aos cuidados na decodificao

    e anlise destes depoimentos, ao uso ou no de questionrios pr-direcionados, e assim por

    diante. Todos estes aspectos mais se referem a mtodos e tcnicas do que a aspectos

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  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    tericos. A Histria Oral, enfim, remete a um dos caminhos metodolgicos oferecidos pela

    Histria, e no a um enfoque, a um caminho terico ou a um caminho temtico.

    Outro exemplo de modalidade da Histria definida por um critrio estabelecido por

    uma abordagem a Histria Serial modalidade da Histria que desempenhou um papel

    primordial na historiografia do sculo XX e que,.quando surgiu, foi vista como uma

    revoluo nas relaes do historiador com as suas fontes. Ao invs das fontes habituais que

    eram tomadas sempre para uma abordagem qualitativa, a chamada Histria Serial introduziu

    nas proximidades dos meados do sculo XX uma perspectiva inteiramente nova: tratava-se de

    constituir sries de fontes e de abord-las de acordo com tcnicas igualmente inditas.

    Neste caso, teremos tambm aqui um campo a ser definido em relao abordagem ou ao

    modo de fazer a Histria que a perpassa, j que consideramos que o que define uma

    modalidade historiogrfica como Histria Serial precisamente a presena de fontes que so

    constitudas em srie e uma determinada maneira de tratar historiograficamente esta srie

    ou seja: um tipo de fonte a ser utilizado e uma forma especfica de tratamento destas fontes,

    uma fazer histrico, enfim.

    Poderamos seguir adiante na descrio de outros campos da Histria que se referem

    a abordagens, seja a modos de fazer a histria (escolha ou constituio de determinados

    tipos de fontes, ou formas de tratamento destas fontes), seja ao campo de observao no

    qual se detm o historiador. A Micro-Histria, por exemplo, uma abordagem historiogrfica

    deste ltimo tipo: ela escolhe como campo de observao um recorte micro-historiogrfico

    uma vida, um circuito de sociabilidade, uma prtica social e a partir desta gota dgua

    cuidadosamente escolhida busca enxergar algo do oceano inteiro. J a Histria Regional a

    modalidade historiogrfica que estuda uma regio por ela mesma, examinando-a como

    sistema com seu prprio funcionamento ou como sub-sistema que se insere em um sistema

    mais vasto notando-se que o prprio historiador quem define o critrio a partir do qual

    est definindo este ou aquele campo de observao como uma regio. Esta no coincide,

    necessariamente, com a regio administrativa ou geogrfica, pode ser uma regio definida

    antropologicamente, culturalmente, ou de qualquer outra maneira.

    Mas no nos deteremos mais no mbito das abordagens, j que preciso examinar o

    ltimo mbito de critrios que pode presidir uma diviso da Histria em modalidades mais

    especficas. Examinaremos em seguida aquilo que denominaremos de domnios da Histria.

    Os domnios da Histria so na verdade de nmero indefinido. Alguns domnios

    podem se referir aos agentes histricos que eventualmente so examinados (a mulher, o

    marginal, o jovem, o trabalhador, as massas annimas), outros aos ambientes sociais (rural,

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  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    urbano, vida privada), outros aos mbitos de estudo (arte, direito, religiosidade,

    sexualidade), e a outras tantas possibilidades. Os exemplos sugeridos so apenas indicativos

    de uma quantidade de campos que no teria fim, e qualquer um poder comear a pensar por

    conta prpria as inmeras possibilidades.

    Tal como se disse, os critrios de classificao que estabelecem domnios da Histria

    referem-se primordialmente s temticas (ou campos temticos) escolhidas pelos

    historiadores. So j reas de estudo mais especficas, dentro das quais se inscrever o objeto

    de investigao e a problemtica constitudos pelo historiador.

    A maioria dos domnios histricos presta-se a historiadores que trabalham com

    diferentes dimenses histricas, e certamente s vrias abordagens. Mas existem domnios

    que tm muito mais afinidade com uma determinada dimenso, dada a natureza dos temas

    por eles abarcados. Assim, a Histria da Arte ou a Histria da Literatura so praticamente

    sub-especialidades da Histria Cultural (embora se deva chamar ateno para uma Histria

    Social da Arte, ou uma Histria Social da Literatura, que no deixam de ser possibilidades

    dentro da Histria Social).

    De modo anlogo, um domnio como o da Histria das Imagens (entendida como

    histria das imagens visuais obtidas a partir de fontes iconogrficas, fotogrficas, etc) quase

    que um anexo da Histria do Imaginrio. Mas, bem entendido, uma srie de imagens visuais

    tomadas como fontes histricas sempre poder dar a perceber qualquer das dimenses que

    discutimos atrs, como a Histria Econmica, a Histria Poltica, a Geo-Histria ou a

    Histria da Cultura Material. Pense-se em uma iluminura de Livro de Oras, da qual o

    historiador lana mo para perceber aspectos da economia rural no ocidente medieval, as suas

    representaes polticas, as relaes do homem medieval com o seu meio natural ou traos

    de sua cultura material; ou pense-se em uma pintura impressionista utilizada para captar

    aspectos da Histria Social na Belle poque; ou ainda nas cermicas gregas utilizadas para

    levantar aspectos da Histria Poltica da Atenas da Antigidade Clssica.. Mas de uma

    maneira ou de outra, em todos estes casos sempre estar ocorrendo um dilogo evidente da

    Histria do Imaginrio com uma destas outras dimenses. De maneira anloga, j a Histria

    do Cotidiano, ou a Histria da Vida Privada, abrem-se a inmeros campos de enfoques para

    alm da Histria das Mentalidades, como a Histria da Cultura Material, a Histria Social a

    Histria Econmica ou a Histria Poltica (neste ltimo caso, focando a questo dos

    micropoderes). Raciocnios similares podem ser encaminhados para outros domnios

    igualmente abertos, como a Histria das Religies ou a Histria da Sexualidade.

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  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    Conforme estamos vendo, os domnios tendem a ser englobados por uma dimenso

    (so poucos os casos) ou ento partilhados preferencialmente por duas ou mais dimenses.

    Mas possvel ainda que algum campo que hoje esteja sendo tratado como domnio, mas

    que possua uma abrangncia em potencial, possa vir a transformar-se futuramente em uma

    dimenso. A Histria da Sexualidade tem sido pouco estudada em relao importncia da

    sexualidade para a vida humana na concretude diria, e talvez isto o que lhe d um status de

    domnio. Mas seguramente esta poderia ser vista como uma dimenso to fundamental como

    a Economia, a Poltica ou as Mentalidades. O que ocorre que estas no apenas so

    dimenses significativas que definem a vida humana, elas constituem na verdade macro-

    campos, ou tornaram-se macro-campos devido ateno que lhes prestaram os

    historiadores e outros pensadores.

    As dimenses, deve-se ter percebido, so sempre macro-campos capazes de se

    desdobrar em ambientes internos, de produzir interfaces mais diversificadas, e de darem

    margem a um nmero significativo de obras historiogrficas. J os domnios correspondem a

    caminhos ou campos temticos definidos pelas preocupaes dos historiadores com relao a

    determinados mbitos humanos, ambientes sociais ou agentes histricos especficos. Assim,

    se de um lado podemos falar de domnios histricos que se referem a mbitos (Arte,

    Religiosidade, Representaes), de outro lado existem outras categorias definidoras de

    domnios historiogrficos que se referem a agentes histricos especficos (Histria da

    Mulher, Histria dos Excludos), ou a determinados ambientes sociais (Histria Rural,

    Histria Urbana). Naturalmente que, em um caso ou outro, teremos domnios que se prestam

    a todos os enfoques (dimenses) possveis da Histria da Cultura Material Histria das

    Mentalidades. Os excludos podem ser historiados com a ateno voltada para as

    Mentalidades, como fez Bronislaw Geremek, com a ateno voltada para a Economia, como

    fez Kula, ou com a ateno voltada para a Cultura, como fez Thompson, ou com a ateno

    voltada para o Social, como fez Michel Mollat. A Histria Urbana ou a Histria Rural podem

    ser avaliadas a partir de enfoques direcionados para cada uma das dimenses que j

    mencionamos antes, da Economia Cultura e s Mentalidades afinal, estes domnios so

    rigorosamente ambientes menores dentro do mundo humano que no deixam de ser unidades

    totalizantes (so mundos humanos especficos, que podem ser examinados na totalidade de

    seus aspectos).

    Vale lembrar tambm que existem os domnios que so aparentemente sub-campos de

    um domnio maior. A Histria das Doenas poderia ser inscrita em uma Histria do Corpo. A

    Histria da Prostituio poderia ser inserida na Histria dos Excludos (embora em alguns

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  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    aspectos tambm possa ser includa na Histria da Sexualidade). A Histria da Criana, da

    maneira como tm funcionado at hoje as nossas instituies familiares, poder ser inscrita

    sem maiores dificuldades em uma Histria da Famlia. Tudo isto, por outro lado, ficar bem

    se englobado por uma Histria da Vida Privada.

    Para alm disto, so inmeros os domnios que se enquadram opcionalmente como

    sub-campos em mais de um domnio mais abrangente, ou que se localizam nos interstcios

    situados entre dois ou mais outros domnios. A Histria da Medicina, enquadrar-se- na

    Histria das Cincias, na Histria dos Sistemas de Pensamento ou dos sistemas repressivos

    (como props Michel Foucault) ... estar em afinidade com os j mencionados domnios da

    Histria das Doenas ou da Histria do Corpo? Incluir como subconjunto a Histria da

    Clnica? Temos nestes e em tantos outros casos um entrelaado de domnios histricos,

    abrindo espaos por dentro do labirinto do saber historiogrfico.

    Para retornar, em seguida, a nossas reflexes mais especficas sobre a Histria Social,

    deixaremos estabelecidos estes trs grupos de critrios capazes de presidir a diviso da

    Histria em espaos interdisciplinares: dimenses, abordagens e domnios. Diante destas trs

    grandes ordens de critrios, tal como j se disse, a Histria Social dever ser mais

    adequadamente classificada como uma dimenso historiogrfica. Neste ponto, retomaremos a

    reflexo sobre os diversos sentidos que tm sido atribudos Histria Social, e sobre a seu

    enquadramento como campo histrico especfico a partir dos critrios atrs arrolados.

    2. A Histria Social como campo histrico relacionado a uma dimenso da vida social

    Antes de mais nada, para retornar aos primeiros usos da expresso histria social na

    historiografia moderna, podemos fixar a Histria Social como modalidade que comea a

    aparecer de maneira auto-referenciada por ocasio do surgimento na Frana do Grupo dos

    Annales, e que naquele momento principia a se mostrar claramente construda ao lado da

    Histria Econmica por oposio Histria Poltica tradicional. Nesta esteira inicial,

    houve quem direcionasse a expresso Histria Social para uma histria das grandes massas

    ou para uma histria dos grupos sociais de vrias espcies (em contraste com a biografia dos

    grandes homens e com a Histria das Instituies a que tinha sido to afeita a historiografia

    do sculo anterior).

    10

  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    Tambm evidente que a historiografia marxista da mesma poca seguindo os

    princpios norteadores que j no sculo XIX haviam sido indicados por Marx e Engels com

    vistas a uma nova filosofia da histria direcionava-se na mesma poca para a elaborao de

    uma histria preocupada com a conjuno dos aspectos econmicos e dos aspectos sociais. O

    que haveria de relevante a ser estudado no era certamente a histria dos grandes homens, ou

    mesmo a histria poltica dos grandes estados e das instituies, mas sim a historia dos

    modos de produo isto , das bases econmicas e sociais que determinariam toda a vida

    social e tambm a histria das lutas de classes, isto , das relaes entre os diversos

    grupos sociais presentes em uma sociedade particularmente nas suas situaes de conflito.

    A delimitao de um novo campo a ser chamado de histria social surge portanto

    sob a forte influncia destes dois campos de motivao que passaram a exercer profunda

    influncia no seio da historiografia da primeira metade do sculo XX. De um lado vinham os

    ataques desfechados pelo grupo dos Annales contra aquilo que consideravam uma velha

    histria poltica, de outro lado comeavam a surgir as primeiras grandes obras da

    historiografia marxista, que cumpriam fielmente um programa de filosofia da histria voltado

    para o econmico e para o social tal como havia sido proposto pelos fundadores do

    materialismo histrico a partir de meados do sculo XIX.

    A Histria Social, enfim, surgia no cenrio historiogrfico como campo relevante e

    definitivo a se estabelecer no mbito das modalidades historiogrficas que devem ser

    definidas pelas dimenses que so trazidas tona quando o historiador se pe a examinar um

    processo histrico qualquer. Considerando aquilo que colocado em evidncia em uma

    determinada anlise historiogrfica a Poltica, a Cultura, a Economia, as relaes sociais

    poderamos ter respectivamente uma Histria Poltica, uma Histria Cultural, uma Histria

    Econmica, uma Histria Social, entre outras possibilidades.

    Tal como foi explicitado atrs, esta clara tendncia da historiografia contempornea a

    constituir e perceber a histria social como campo relacionado a uma dimenso social

    especfica liga-se ao fato de que, na primeira metade do sculo XX, os novos historiadores

    passam a opor um novo campo de interesses e enfoques Histria Poltica do sculo XIX, o

    que de certo modo produzia uma aliana entre a Histria Social e a Histria Econmica na

    luta pelo estabelecimento de uma historiografia inteiramente nova no que se refere aos

    fazeres historiogrficos do sculo anterior. Histria Social e Histria Econmica como

    campos inauguradores de um novo fazer historiogrfico logo se juntariam a Histria

    Demogrfica, a Histria Cultural, a Histria das Mentalidades, a Histria do Imaginrio, e

    tambm uma nova Histria Poltica, no mais preocupada apenas com o poder institucional

    11

  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    mas sim com todas as formas de poder que circulam em qualquer sociedade, inclusive os

    micropoderes que afetam a vida cotidiana e as relaes familiares. O quadro das dimenses

    historiogrficas, portanto, multidiversificava-se e neste contexto que pode ser definido um

    primeiro sentido para a Histria Social como uma instncia historiogrfica especfica, no

    mesmo nvel da Histria Poltica e da Histria da Cultura, apenas para dar dois exemplos.

    Por outro lado, outra indagao que surge nos dias de hoje, quando a expresso

    histria social j multiplicou os seus sentidos e as suas aberturas de significados, se a

    Histria Social deve ser considerada uma especialidade, com objetos prprios e definidos, ou

    se o social que ao seu nome se agrega como adjetivo acaba de um modo ou de outro por

    fazer coincidir o seu circuito de interesses com a sociedade o que faria da Histria Social

    uma espcie de categoria transcendente que acaba perpassando ou mesmo englobando todas

    as outras especialidades da Histria.

    3. Os diversos mbitos da Histria Social

    Se investirmos na idia de que a Histria Social uma sub-especialidade entre as

    outras (o que parece ter sido a proposta da Escola dos Annales nos seus primrdios ao

    introduzir esta categoria no ttulo de sua revista), veremos que comeam a se destacar certos

    objetos mais evidentes: os modos e mecanismos de organizao social, as classes sociais e

    outros tipos de agrupamentos, as relaes sociais (entre estes grupos e entre os indivduos no

    seu interior), e por fim os processos de transformao da sociedade.

    O Quadro abaixo busca reunir alguns dos objetos e mbitos que poderiam ser

    pretensamente visados por uma sub-especialidade chamada Histria Social. Este esquema

    complexo foi construdo rastreando os objetos mais especficos que tm sido trabalhados por

    alguns dos mais conhecidos historiadores que se autodefinem como inscritos na categoria

    Histria Social. Pode-se perceber que a maioria dos campos de interesse que ali foram

    assinalados correspondem a recortes humanos (as classes e grupos sociais, as clulas

    familiares), ou a recortes de relaes humanas (os modos de organizao da sociedade, os

    sistemas que estruturam as diferenas e desigualdades, as formas de sociabilidade). Em um

    caso, estudam-se fatias da sociedade (ou os subconjuntos internos sociedade); em outro

    caso, estudam-se elementos especficos e transversais que parecem atravessar a sociedade por

    inteiro (os mecanismos de organizao social e os sistemas de excluso, por exemplo,

    atravessam a sociedade como um todo)5.

    12

  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    os Grupos e Classes Sociais e as suas relaes

    conflituais

    Colonizao / Descolonizao Burocratizao

    os Movimentos Sociais as Ideologias Modernizao

    Para alm dos subcampos citados no pargrafo anterior, indicamos ainda uma

    categoria que obviamente uma das mais importantes para a Histria Social: a dos

    processos (industrializao, modernizao, colonizao, ou quaisquer outros, inclusive as

    revolues, que aparecem includas na rubrica movimentos sociais). muito importante

    indicar que a Histria Social tambm estuda estes processos, e no apenas modos de

    organizao ou estruturas, pois caso contrrio a Histria Social poderia ser vista como uma

    Histria esttica, e no dinmica.

    Voltemos por ora aos objetos da Histria Social que coincidem com subconjuntos da

    sociedade (grupos e classes sociais, categorias de excludos, clulas familiares). Quando o

    historiador volta-se para o exame destes grupos humanos especficos no interior de uma

    sociedade, ou ento para as relaes conflituosas e interativas entre alguns destes grupos, seu

    interesse poder se voltar tanto para a elaborao de um retrato sintetizado destes grupos

    sociais e de suas relaes, como para a incidncia de questes transversais nestes grupos.

    Como uma certa classe ou grupo se comporta diante de determinada conjuntura poltica ou

    as Comunidades

    Populaes

    Clula Familiar

    os Crculos de

    Sociabilidade

    as Diferenas e

    Desigualdades sociais

    Interesses e objetos da

    HISTRIA SOCIAL

    (considerada como o ramo da Histria que examina a dimenso social de uma

    sociedade)

    os critrios e prticas de Excluso Social

    as Minorias

    os Excludos os Marginais

    os Discriminados

    Raas e Etnias

    os Enclausurados

    Sindicatos

    os Circuitos Profissionais

    os Gneros e as relaes de gneros

    Circuitos da Festa e dos encontros sociais

    Agrupamentos Culturais

    Meios Educacionais

    Urbanas

    Rurais

    Industrializao a Hierarquizao Social

    as Posies Sociais em relao ao traba-lho e propriedade

    os processos de transformao da

    sociedade

    Os cdigos e a Comunicao Social

    os modelos e mecanismos de

    Organizao Social

    os Interditos Sociais

    Cotidiano

    Os Circuitos Religiosos

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  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    econmica? Como reage a uma determinada crise poltica, ou a uma determinada crise

    econmica? Como reage um grupo, por exemplo, s flutuaes de preos? Como repercutem

    certas mudanas polticas na vida social de um grupo?

    Embora as questes acima colocadas refiram-se alternadamente aos mbitos poltico

    ou econmico, elas podem ser trabalhadas socialmente pelos historiadores. Dito de outra

    forma, existe um modo especfico como a Histria Social encara os fatos polticos e

    econmicos. As repercusses sociais dos fatos polticos e econmicos, seja nos grupos

    especficos ou em um conjunto mais amplo, devem ser tambm objetos privilegiados para os

    historia-dores sociais. Isto nos leva quela questo inicial, qual ainda voltaremos outras

    vezes: no existem fatos polticos, econmicos ou sociais isolados. No o tipo de fato

    poltico, econmico, social ou cultural por definio o que define uma sub-especialidade da

    Histria, mas sim o enfoque que o historiador d a cada um destes tipos de fatos. Um

    historiador econmico pode dar um destino a determinados fatos econmicos (ao elaborar,

    por exemplo, um estudo dos ciclos econmicos no decurso de algumas dcadas), e um

    historiador social um outro pois este ltimo estar mais preocupado em perceber como

    estas variaes conjunturais afetam diferentemente os vrios grupos sociais, que alteraes

    elas provocam nas relaes entre estes grupos, e assim por diante.

    Ainda com relao possibilidade de examinar no interior de uma sociedade certos

    recortes humanos, uma outra observao deve ser feita. Vimos que a Histria Social pode

    dirigir sua ateno para uma classe social, para uma minoria, para um grupo profissional,

    para a clula familiar ou seja, para um subconjunto especfico da sociedade. Em contraste

    com este tipo de enfoque, existem duas das divises ou subconjuntos possveis que perdem o

    seu carter mais especfico por se autoconstiturem de certo modo em totalidades : o estudo

    das comunidades (rurais e urbanas) e o estudo das populaes como um todo. Ou seja, em

    um caso dois subconjuntos que se complementam e que dividem a sociedade na dicotomia

    rural / urbano, e no outro caso um subconjunto que coincide com o conjunto universo da

    sociedade, e que chamamos de populao. Estes dois campos so os nicos que esto

    especificamente ligados a uma outra acepo da Histria Social que discutiremos a seguir.

    4. Histria Social como histria totalizante

    Se a Histria Social foi se constituindo desde o princpio como uma sub-especialidade

    da Histria, direcionada para objetos bem especficos e que se distinguiam dos objetos das

    outras modalidades da histria, por outro lado a noo de Histria Social tambm comeou

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  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    a ser vinculada por alguns pensadores e historiadores a uma histria total, encarregada de

    realizar uma grande sntese da diversidade de dimenses e enfoques pertinentes ao estudo de

    uma determinada comunidade ou formao social. Portanto, estaria a cargo da Histria Social

    criar as devidas conexes entre os campos poltico, econmico, mental e outros o que

    implica que nesta acepo a Histria Social deixa de ser uma modalidade mais especfica,

    como qualquer outra, para se tornar o campo histrico mais abrangente que se abriria

    possibilidade da mediao ou da sntese ... Histria Social como Histria da Sociedade ...

    Na verdade, esta ltima acepo foi adotada ainda pela Escola dos Annales, mas a

    partir da dcada de 1940, de modo que acaba se contrapondo quela primeira acepo que

    procurava fixar a Histria Social como especialidade. Em uma conferncia de 1941, mais

    tarde publicada em Combates pela Histria [1942], Lucien Febvre chega a afirmar que no

    h histria econmica e social; h somente histria, em sua unidade (Febvre, 1992: p.45).

    Trata-se portanto de um programa que assume a perspectiva da Histria Total, ou da

    Histria-Sntese, que to bem caracteriza a segunda fase dos Annales sobretudo com as

    monumentais obras de Fernando Braudel sobre O Mediterrneo e sobre a Civilizao

    Material do Capitalismo (Braudel, 1997 e 1984). Muitos historiadores passaram a entender

    Histria Social, a partir de ento, com este sentido mais abrangente (se existem fatos

    econmicos ou fatos polticos propriamente ditos, no existiriam rigorosamente os fatos

    sociais, ou melhor, todos os fatos seriam sociais, uma vez que estariam ocorrendo no interior

    da sociedade a partir dos relacionamentos dos homens e dos grupos de homens uns com os

    outros).

    A idia de uma Histria Social que tem a seu cargo a tarefa de promover uma sntese

    de aspectos relacionados a vrias dimenses ou domnios historiogrficos tambm expressa

    por Georges Duby em um texto de 1971 (1971: p.1-13):

    Que ela [a Histria Social] deixe de se considerar entretanto a seguidora de uma histria da civilizao material, de uma histria do poder, ou de uma histria das mentalidades. Sua vocao prpria a da sntese. Cumpre-lhe recolher todos os resultados das pesquisas efetuadas, simultaneamente, em todos estes domnios e reuni-los na unidade de uma viso global

    Aqui, uma nova noo da Histria Social fazia a sua entrada na histria do

    pensamento historiogrfico. Esta nova noo de Histria Social, voltada para a idia de uma

    totalidade de aspectos, podia ser aplicada tanto ao estudo de uma sociedade inteira, como

    para o estudo de comunidades tomadas como centros de referncia, como as comunidades

    rurais e urbanas que comearam a ser examinadas pelos historiadores associados Histria

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  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    Regional. Em um caso ou outro, a Histria Social no apresenta mais objetos especficos

    dentro da Histria: seu interesse a sociedade como um todo (esteja ela estudando um pas,

    uma grande regio como o Mediterrneo, uma cidade ou uma aldeia).

    Mas a verdade que a designao anterior continuou existindo paralelamente, de

    modo que a Histria Social assumiu um lugar especfico como sub-especialidade ao lado da

    Histria Econmica, da Histria Poltica, da Histria Cultural e de todas as outras.

    Rigorosamente, depois da crise da Histria Total (esperana de abarcar todos os aspectos de

    uma sociedade em uma grande sntese coerente) esta designao mais especfica ganhou at

    mais fora, sobretudo a partir da dcada de 1960. De qualquer modo, a noo de Histria

    Social continuou sempre aberta a muitas possibilidades de sentidos.

    Os meios acadmicos na Europa e nas Amricas vieram trazer a partir da

    institucionalizao de seus programas de ps-graduao uma contribuio para os usos

    amplificados da expresso Histria Social. Nestes meios ligados Pesquisa que vem sendo

    desenvolvida nas Universidades, esta designao tem sido muito utilizada no seu sentido

    mais abrangente, conseguindo assim enquadrar em um mesmo plano de coerncia uma

    quantidade multidiversificada de pesquisas. Em certo sentido, argumenta-se que toda a

    Histria que hoje se escreve de algum modo uma Histria Social mesmo que direcionada

    para as dimenses poltica, econmica ou cultural.

    De fato, possvel incorporar uma preocupao social a cada uma das demais

    dimenses antes citadas como sub-especialidades da Histria, e tambm s vrias abordagens

    e domnios que veremos a seguir. Assim, vimos que a Demografia Histrica pode reduzir-se

    a um mero censo retrospectivo por historiadores descritivos e no-problematizadores, ou que

    ela pode se transformar em uma verdadeira Demografia Social quando superamos a mera

    enunciao do nmero em favor do tratamento problematizado dos ndices populacionais.

    Vimos que a Histria da Cultura Material pode ser reduzida mera descrio de objetos, o

    que seria questionvel, ou que ela pode enveredar por uma recolocao destes objetos nos

    usos sociais que eles teriam na poca e na sociedade em que foram produzidos (neste caso,

    poder-se-ia dizer que empreendemos uma espcie de Histria Social da Cultura Material).

    Qualquer informao historicizada pode ser tratada socialmente, correto dizer. Mas

    tambm verdade que nem toda Histria necessariamente social. Se possvel elaborar

    uma Histria Social das Idias ou uma Histria Social da Arte, possvel tambm elaborar

    uma Histria das Idias ou uma Histria da Arte que se restrinjam a discutir obras do

    pensamento ou da criao artstica sem reestrutur-las dentro do seu ambiente social mais

    amplo. Basta percorrer os olhos por uma prateleira livresca de Histria da Arte ou de Histria

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  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    da Literatura para encontrarmos pilhas destas obras em que so descritos os estilos artsticos,

    ou at mesmo que oferecem uma sucesso cronolgica de descries das vidas dos principais

    artistas e literatos, de modo que estas histrias da arte e histrias da literatura acabam se

    tornando um somatrio de pequenas biografias de artistas importantes mais ou menos

    encadeadas segundo critrios cronolgicos ou agrupadas conforme os seus pertencimentos

    estilsticos. Por isto, encontra-se quem fale em uma Histria da Cultura, preocupada em

    descrever produes culturais de vrios tipos, mas contrastando-a com a Histria Cultural

    propriamente dita, que tem incorporado tradicionalmente uma preocupao social muito

    definida (neste caso, uma Histria Social da Cultura) 6.

    Com base em alguns exemplos conhecidos de obras produzidas com pretensas

    preocupaes historiogrficas (mas certamente aliceradas em uma outra noo de

    historiografia), pode ser questionada aquela idia de que toda histria social. social,

    poderemos corrigir, se o historiador tiver efetivamente preocupaes sociais na sua maneira

    de examinar o passado.

    Com relao aos j mencionados objetos da Histria Social (seja enquanto

    especialidade particular, seja no sentido totalizador), convm lembrar que tem se apresentado

    nas ltimas dcadas uma tendncia cada vez maior para o exame da sociedade em toda a sua

    complexidade, superando o manejo de categorias sociais estereotipadas e de dicotomias

    generalizadoras.

    Nunca demais nos referimos s conhecidas preocupaes de Edward Thompson

    historiador ingls que trabalha na interconexo de uma Histria Social com uma Histria

    Cultural em denunciar aquelas abstraes desencarnadas relacionadas ao conceito de

    classe social (Thompson, 1987). Thompson um dos autores que melhor representam esta

    tendncia da Histria Social que gradualmente se afirma em direo complexidade e ao

    tratamento das sociedades como realidades dinmicas e vivas como processos e no

    apenas como descries de estruturas perfeitas como se fossem relgios, mas abstradas de

    realidade humana.

    Afirma-se tambm, mais do que nunca, uma Histria Social que estabelece interfaces

    com os outros campos da prpria histria, ou tambm com outros circuitos interdisciplinares.

    Se voltarmos ao Quadro atrs exposto, que pretende ser apenas um esboo de possibilidades,

    e no mais que isto, veremos ali que os vrios objetos possveis a uma Histria Social

    (definida como sub-especialidade que traz as suas prprias idiossincrasias) localizam-se

    habitualmente na fronteira com outros campos.

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  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    Posso trabalhar um grupo tnico segregado em uma dada realidade urbana do ponto

    de vista de uma Histria Social ou do ponto de vista de uma Etno-Histria. Ou posso

    trabalh-lo do ponto de vista de uma interconexo de Histria Social e Etno-Histria. Os

    movimentos sociais, por exemplo, dificilmente podem ser trabalhados fora de uma conexo

    entre o Social e o Poltico (e que, possivelmente, incluir ainda o Econmico). J um

    processo como o da industrializao pode receber um enfoque social, ou um enfoque mais

    propriamente econmico (ou o duplo enfoque, que sempre uma boa alternativa). De igual

    maneira, a clula familiar pode ser examinada por um vis social ou por um vis de

    antropologia histrica. O Cotidiano de uma determinada comunidade ou grupo social pode

    ser avaliado do ponto de vista de uma Histria da Cultura Material, pronta a recuperar os seus

    bens materiais e os seus usos (sociais), ou pode ser avaliado mais propriamente de uma

    perspectiva da Histria Social, manifestando-se a preocupao em recuperar as formas de

    sociabilidade, os conflitos entre os indivduos pertencentes aos vrios grupos sociais, os

    entrechoques ideolgicos, e toda uma rede de aspectos que constitui inegavelmente um

    territrio mais definido da sub-especialidade Histria Social.

    5. As fontes e abordagens relacionadas Histria Social

    Com relao s conexes da Histria Social com as abordagens isto , com os sub-

    campos da historiografia que se referem a mtodos e fazeres histricos elas podem se

    estabelecer tanto no nvel dos tratamentos qualitativos, como no nvel dos tratamentos

    quantitativos. Da mesma forma, a Histria Social pode ser elaborada tanto do ponto de vista

    de uma Macro-Histria, que examina de um lugar mais distanciado aspectos como os

    movimentos sociais ou como a estratificao social de uma determinada realidade humana,

    como pode ser elaborada do ponto de vista de uma Micro-Histria, que se aproxima para

    enxergar de perto o cotidiano, as trajetrias individuais, as prticas que s so percebidas

    quando examinado um determinado tipo de documentao em detalhe (por exemplo os

    inquritos policiais, os documentos da Inquisio, mas tambm determinadas produes

    culturais do mbito popular onde transpaream elementos da vida cotidiana, das relaes

    familiares, e assim por diante). As diferenas entre Macro-Histria e Micro-Histria ficaro

    mais claras no item relativo a este ltimo tipo de abordagem.

    No h limitaes com relao ao que pode ser tomado como fonte para a Histria

    Social. possvel encontr-las tanto na documentao de origem privada como na

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  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    documentao oficial, por assim dizer. O que estamos chamando de documentao privada

    so aquelas fontes produzidas ao nvel das vidas individuais: os relatos de viagem, os dirios

    pessoais, correspondncias entre particulares (sejam indivduos ilustres, ou no).

    Documentao oficial ou pblica existe de todos os tipos: desde aquelas que oferecem dados

    massivos sobre uma sociedade como os inventrios e registros fiscais, censitrios,

    testamentrios, cartoriais, e paroquiais at aquelas mais pontuais, referentes a situaes

    especficas. Por exemplo, um material muito rico do tipo que estamos caracterizando como

    pontual encontra-se nos arquivos judiciais e policiais (ou seja, na documentao oriunda dos

    sistemas repressivos). Os historiadores sociais da atualidade tm precisamente prestado muita

    ateno a um vasto manancial de fontes que por muito tempo foi esquecido: os registros de

    polcia, os processos criminais incluindo os depoimentos, as confisses e as sentenas

    proferidas sobre determinado caso ou ainda, para os primeiros sculos da Idade Moderna,

    os processos da Santa Inquisio, que costumavam rastrear obsessivamente a vida dos

    indivduos investigados, anotar a sua fala nos mnimos detalhes, registrar rigorosamente os

    dados de sua vida cotidiana com o fito de perceber qualquer indcio de comportamento

    anormal ou mentalidade hertica.

    bastante irnico. Os indivduos pertencentes s classes sociais privilegiadas do-se a

    conhecer atravs dos mais diversificados tipos de fontes disposio dos historiadores na

    documentao poltica, falam atravs dos deputados e governantes que os representam; nas

    notcias de jornais, pode-se at mesmo perceb-los em flashes de sua vida privada nas

    colunas sociais; na arte letrada, iremos encontr-los como sujeitos produtores de discurso ou

    como referentes dos discursos a produzidos. J ao pobre, e mais ainda ao excludo, s dada

    uma voz quando ele comete um crime (ou quando acusado de um). Os registros repressivos

    so paradoxalmente os espaos documentais mais democrticos aqueles onde os

    historiadores podero encontrar literalmente as vozes de todas as classes, mas sobretudo as

    dos indivduos pertencentes aos grupos sociais menos privilegiados do ponto de vista poltico

    e econmico. s quando comete um crime que o homem pobre adquire uma identidade para

    a Histria!

    Existem tambm, preciso reconhecer, as fontes oriundas da cultura popular. Mas

    este tipo de fonte mais propriamente relacionado com a Histria Cultural, como j vimos

    anteriormente. Tambm no deve ser desprezada a grande literatura. A leitura atenta da

    Comdia Humana de Balzac no irrelevante para a compreenso da transio para o

    Capitalismo moderno, e a mesma recomendao de atentar para a importncia da literatura

    como fonte para este perodo pode ser feita em relao s obras de Victor Hugo. A partir do

    19

  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    momento em que a perspectiva realista abriu-se como uma possibilidade para os produtores

    de obras associadas cultura letrada (literatura, mas tambm artes visuais), o homem comum

    tambm comeou a chegar aos historiadores atravs destas fontes, embora elas sempre

    requeiram o cuidado de serem trabalhadas com a conscincia de que, nestes casos, o homem

    pertencente aos extratos sociais menos privilegiados s recebe a sua voz ou a sua

    transparncia atravs de um filtro, que a sensibilidade do escritor ou do pintor pertencente a

    outro grupo social (fora, claro, quando o prprio artista oriundo do grupo social que

    pretende retratar).

    Voltemos s fontes de Histria Social que chegam aos historiadores atravs da

    violncia. Alm da violncia individual, que aparece atravs do crime, existe ainda a

    violncia coletiva, onde a massa annima deixa suas marcas e conquista tambm a sua voz

    atravs de exploses de revolta que podem ficar registradas nas notcias de jornais, ou ento

    nas descries dos cronistas para os perodos mais antigos. As revolues e os processos de

    transformao social, conforme j observou Thompson muito bem, so momentos

    privilegiados para a percepo das identidades de classe, inclusive as relativas aos grupos

    sociais menos privilegiados. So nestes momentos que as massas tornam-se visveis,

    exprimindo-se atravs dos gestos do protesto (sejam protestos espontneos, sejam os

    movimentos organizados, como as greves) ou da violncia coletiva, que podem produzir

    desde badernas e motins at revolues com repercusses sociais definitivas. So tambm

    nestes momentos que, eventualmente, emergem as lideranas populares por vezes deixando

    suas vozes registradas em panfletos e em discursos que foram recolhidos pela imprensa ou

    pelos cronistas de uma poca.

    No dia a dia, as massas populares so informes: executam como que emudecidas as

    tarefas que lhes permitiro assegurar a sua sobrevivncia diria. A Histria conhece os

    camponeses do final da Idade Mdia, os operrios urbanos das sociedades industriais, os

    escravos do Brasil Colonial ... sempre atravs dos registros massivos, que anotaro as datas

    de seus nascimentos, o nmero de filhos, a morte, a ocupao, e as modalidades de

    pertencimento (a um senhorio na Idade Mdia ou a uma indstria no mundo capitalista).

    Nestes momentos, as massas falam Histria atravs de nmeros que registram a sua

    laboriosa e sofrida passividade. Mas quando ocorre um motim, uma insurreio, um protesto

    pblico, pela primeira vez a massa de despossudos ser ouvida no atravs da passividade

    dos nmeros silenciosos, e sim atravs dos gestos violentos e ruidosos.

    Os sem-terra7, por exemplo, so habitualmente encontrados pelos historiadores que

    examinam a Histria contempornea do Brasil nos documentos do censo, que os registram

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  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    como camponeses despossudos e desempregados. Mas quando eles ocupam uma fazenda, ou

    quando em protesto eles adentram um espao que para eles no estaria previsto como um

    shopping center neste momento eles se transformam em atores sociais mais definidos e

    ganham espao nas notcias de jornal e outras mdias. Quando a massa excitada derruba uma

    bastilha, entra subitamente na Histria no como uma estatstica, mas como sujeito coletivo

    que realiza um ato, que produz ou se incorpora a um movimento social. Os camponeses

    medievais, de modo similar, chegam aos historiadores como um nmero incorporado terra

    atravs dos contratos celebrados entre um suserano e um vassalo, ou atravs de um

    testamento que os passa adiante para os herdeiros de um feudo. Mas quando produzirem uma

    Jacquerie sero registrados pela primeira vez por algo que fizeram, e no por algo que

    fizeram a eles.

    So os grandes momentos de protesto ou de violncia coletiva que tornam visveis as

    massas, e os pequenos momentos de crimes individuais que do visibilidade ao homem

    comum. Por isto o historiador acaba chegando s massas e aos indivduos menos favorecidos

    atravs da violncia. So as fontes que expressam os vrios tipos de violncia (ou que

    registram a represso a esta violncia) aquelas que permitiro a este historiador examinar as

    relaes de classe, as suas expectativas, o seu cotidiano. alis curioso observar que, quando

    o criminoso escapa represso, ele perde-se para a Histria.

    Na verdade, as fontes de natureza repressiva como os processos criminais ou os

    registros inquisitoriais constituem registros mltiplos, polifnicos por excelncia. A prpria

    diversidade social pode estar presente em um processo judicial ou inquiridor afinal, o modo

    como devem ser organizados os processos, entrecruzando indivduos dos mais diversos tipos,

    acaba conferindo a este tipo de fontes uma posio muito rica no repertrio de documentos

    disposio de um historiador social. So fontes que habitualmente envolvem um foco

    representando o sistema repressivo (no raro expressando contradies internas que podem

    aparecer sob a forma de conflitos de autoridade) e um universo multifocal que passa por um

    vasto nmero de depoentes e de testemunhas, at chegar ao criminoso ou ao inquirido.

    mais raro que a Histria Social, pelo menos no que se refere a perodos mais

    recuados, v encontrar fontes relativas aos grupos menos favorecidos na documentao

    privada (dirios, livros de memria, relatos de viagem, correspondncia) porque estes tipos

    de textos nem sempre so conservados depois que os seus autores desaparecem. Mas, na

    medida em que avana para classes mais favorecidas, o historiador j comea a dispor deste

    tipo de documentao.

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  • Jos DAssuno Barros LPH - Revista de Histria da UFOP. n 15, 2005

    As fontes da Histria Social, enfim, so de inmeras modalidades. Sua escolha,

    naturalmente, ser orientada pelo problema histrico a ser definido e investigado pelo

    historiador.

    Conforme vimos seja no que se refere a seus campos de interesse e objetos

    privilegiados, seja no que se refere a seus mtodos mais recorrentes e fontes historiogrficas

    disponveis a Histria Social mostra-se ao historiador contemporneo como um campo

    aberto a inmeras possibilidades. Um de seus traos centrais, certamente, continuar para o

    futuro a referir-se ao intenso dilogo com todas as Cincias Sociais, o que tem permitido

    precisamente essa maior amplitude de objetos e o tratamento de uma maior variedade de

    tipos de fontes a partir de metodologias que a Histria pde apreender de diversificados

    campos do saber como a Sociologia, a Antropologia, a Lingstica, a Semitica.

    1 Serge GRUZINSKI, Acontecimento, bifurcao, acidente e acaso ... observaes sobre a histria a partir das periferias do Ocidente In E. MORIN (org.) A Religao dos Saberes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p.391. 2 Witold KULA, Economic Theory of the Feudal System, apud Peter BURKE, A Escola dos Annales 1929-1989, So Paulo: UNESP, 1991, p.110-111. [Edio polonesa original da obra de Witold Kula: 1962]. 3 Karl MARX, O 18 Brumrio de Lus Bonaparte In Os Pensadores, vol. XXXV, So Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 329-410 [original alemo: 1852]. 4 BARROS, Jos DAssuno O Campo da Histria Especialidades e Abordagens, Petrpolis: Vozes, 2005. 5 Por exemplo, a ideologia das Trs Ordens atravessava as sociedades medievais, e no mundo que era organizado por ela os trs grupos tpicos (camponeses, guerreiros e clrigos) encontravam cada qual o seu papel social. Da mesma forma, o sistema de excluses do Nazismo incidia transversalmente sobre a sociedade alem das dcadas de 1930 e 1940, colocando de um lado os cidados e de outro os excludos (judeus, eslavos, estrangeiros, etc...). 6 Robert DARNTON distingue uma histria das idias voltada para o estudo do pensamento sistemtico, geralmente em tratados filosficos; uma histria intelectual que se ocuparia do estudo do pensamento informal, dos climas de opinio e dos movimentos literrios; uma histria social das idias, que se voltaria para o estudo das ideologias e da difuso das idias; e uma histria cultural que se ocuparia do estudo da cultura no sentido antropolgico (DARNTON, Robert. Histria Intelectual e Cultural In O Beijo de Lamourette. So Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.175-197). 7 Movimento social de homens do campo no-proprietrios de terra que fortaleceu-se no Brasil na ltima dcada, clamando por reformas sociais direcionadas para a Reforma Agrria.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BALZAC, Honor de. A Comdia Humana, Porto Alegre: Editora Globo, 2002. BARROS, Jos DAssuno. O Campo da Histria Especialidades e Abordagens, Petrpolis:

    Vozes, 2004. BRAUDEL, Fernando. Civilizao Material, Economia e Capitalismo. 3 vol. So Paulo: Martins

    Fontes, 1997. BRAUDEL, Fernando. O mediterrneo e o mundo mediterrnico na poca de Felipe II. So Paulo:

    Martins Fontes, 1984. 2 vol.

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    BURKE, Peter (org.), A Escrita da Histria novas perspectivas, So Paulo: UNESP, 1992. BURKE, A Escola dos Annales 1929-1989. So Paulo: UNESP, 1991. FRANCO, Maria Slvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. So Paulo: tica,

    1974. DARTON, Robert. Histria Intelectual e Cultural In O Beijo de Lamourette. So Paulo: Companhia

    das Letras, 1990. p.175-197. DUBY, Georges. As Trs Ordens ou o Imaginrio do Feudalismo. Lisboa: Edies 70, 1971. _____________. Les socits mdievales. Une approche densemble In Annales, E.S.C., janeiro-

    fevereiro de 1971. p.1-13. FEBVRE, Lucien. Combates pela Histria. So Paulo: Ed. UNESP, 1992. GRUZINSKI, Serge. Acontecimento, bifurcao, acidente e acaso ... observaes sobre a histria a

    partir das periferias do Ocidente In MORIN, E. (org.) A Religao dos Saberes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001..

    HOBSBAWM, Eric. Sobre histria. So Paulo: Cia. das Letras, 1998. MARX, Karl. O 18 Brumrio de Lus Bonaparte In Os Pensadores, vol. XXXV. So Paulo: Abril

    Cultural, 1974. MORIN, E. (org.) A Religao dos Saberes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. THOMPSON, E. P. A Formao da Classe Operria Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, 3

    vol. _______________. History from Below, The Times Literary Supplement, 7 de abril de 1966, p.278-

    280 [ As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. So Paulo: UNICAMP, 2001. p.185-201 ].

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    RESUMOEste artigo busca esclarecer e discutir alguns aspectos relacionados Histria Social, examinando inicialmente, de um ponto de vista crtico, os diversos usos e significados da expresso como modalidade do saber historiogrfico. So discutidos aspectos diversos, incluindo os objetos, fontes e abordagens mais comuns a este campo. O artigo apresenta como principal referncia importante o livro O Campo da Histria, publicado pelo autor recentemente, e que cujo principal objetivo elaborar uma viso panormica dos vrios campos em que se divide o conhecimento histrico nos dias de hoje, incluindo o da Histria Social e de outras modalidades como a Histria Poltica, a Histria Econmica, a Histria Cultural e a Micro-Histria.ABSTRACT

    Palavras-chave: Histria Social, Campos da Histria, escrita da histria.