barreiras urbanas em cidades de fronteira

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Barreiras urbanas em cidades de fronteira: análise das cidades gêmeas Ponta Porã/ BR e Pedro Juan Caballero / PY (1) Isabella Benini Lolli Ghetti * Resumo: As fronteiras brasileiras possuem uma extensão de 23.105 quilômetros, sendo que a faixa de fronteira corresponde a 27% do território nacional, abrangendo 588 municípios em 11 estados e uma população estimada em 10 milhões de habitantes. O Estado de Mato Grosso do Sul faz fronteira com 44 municípios, onde se encontra Ponta Porã, estudo de caso deste trabalho. Pretende-se apresentar o processo de desenvolvimento das cidades gêmeas Ponta Porã (Brasil) e Pedro Juan Caballero (Paraguai), analisando as alterações morfológicas na área de fronteira e a degradação da linha de divisa, compreendendo a questão fronteiriça. Pode-se afirmar que a história destas cidades e da fronteira divide-se em antes e depois da Guerra do Paraguai, que foi o conflito armado mais grave ocorrido no período de 1864 a 1870. Palavras-Chave: Fronteira; Urbanização; Barreiras Urbanas. __________________________________________________________ Introdução A pesquisa aborda o processo de urbanização de cidades em localizações especiais – fronteira - e os procedimentos de intervenção urbana nestas localizações. O trabalho estuda, em uma visão integradora e comparativa, a partir das teorias e práticas urbanísticas desenvolvidas no Brasil e em países latino-americanos, tal processo nas cidades-gêmeas Ponta Porã, Brasil e Pedro Juan Caballero, Paraguai (2). A partir da compreensão do desenvolvimento urbano, procura-se construir uma visão daquela sociedade em sua complexidade com suas diferenças e contradições, materializada nas várias formas de expressão sócio-cultural, trabalhando as noções de matriz urbana e de identidade cultural em um contexto de fronteira, na perspectiva abordada por Boaventura de Souza Santos em seus estudos sobre identidade e cultura de fronteira. Pela complexidade que as cidades de fronteira internacional representam para o contexto do país, é abordada a questão das barreiras urbanas em cidades de fronteira. Estudar o desenvolvimento de áreas fronteiriças, analisar suas alterações morfológicas e * Universidade Presbiteriana Mackenzie – Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. Anais Eletrônicos do VII Encontro Internacional da ANPHLAC Campinas - 2006 ISBN 978-85-61621-00-1

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Page 1: Barreiras urbanas em cidades de fronteira

Barreiras urbanas em cidades de fronteira: análise das cidades gêmeas Ponta Porã/ BR e Pedro Juan Caballero / PY (1)

Isabella Benini Lolli Ghetti* Resumo: As fronteiras brasileiras possuem uma extensão de 23.105 quilômetros, sendo que a faixa de fronteira corresponde a 27% do território nacional, abrangendo 588 municípios em 11 estados e uma população estimada em 10 milhões de habitantes. O Estado de Mato Grosso do Sul faz fronteira com 44 municípios, onde se encontra Ponta Porã, estudo de caso deste trabalho. Pretende-se apresentar o processo de desenvolvimento das cidades gêmeas Ponta Porã (Brasil) e Pedro Juan Caballero (Paraguai), analisando as alterações morfológicas na área de fronteira e a degradação da linha de divisa, compreendendo a questão fronteiriça. Pode-se afirmar que a história destas cidades e da fronteira divide-se em antes e depois da Guerra do Paraguai, que foi o conflito armado mais grave ocorrido no período de 1864 a 1870. Palavras-Chave: Fronteira; Urbanização; Barreiras Urbanas. __________________________________________________________ Introdução

A pesquisa aborda o processo de urbanização de cidades em localizações

especiais – fronteira - e os procedimentos de intervenção urbana nestas localizações. O

trabalho estuda, em uma visão integradora e comparativa, a partir das teorias e práticas

urbanísticas desenvolvidas no Brasil e em países latino-americanos, tal processo nas

cidades-gêmeas Ponta Porã, Brasil e Pedro Juan Caballero, Paraguai (2).

A partir da compreensão do desenvolvimento urbano, procura-se construir uma

visão daquela sociedade em sua complexidade com suas diferenças e contradições,

materializada nas várias formas de expressão sócio-cultural, trabalhando as noções de

matriz urbana e de identidade cultural em um contexto de fronteira, na perspectiva

abordada por Boaventura de Souza Santos em seus estudos sobre identidade e cultura de

fronteira.

Pela complexidade que as cidades de fronteira internacional representam para o

contexto do país, é abordada a questão das barreiras urbanas em cidades de fronteira.

Estudar o desenvolvimento de áreas fronteiriças, analisar suas alterações morfológicas e

* Universidade Presbiteriana Mackenzie – Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Arquitetura e Urbanismo.

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compreender o que as barreiras representam para o desenvolvimento dessas regiões, são

as questões bases da pesquisa.

Justificativa

As fronteiras brasileiras possuem uma extensão de 23.105 quilômetros: sendo

15.735 quilômetros de fronteiras terrestres e 7.367 quilômetros de fronteiras marítimas,

segundo Torrecilha (3). O Brasil é o país da América do Sul que mais possui vizinhos,

fazendo fronteira com 10 países. De acordo com o Programa de Desenvolvimento da

Faixa de Fronteira (Ministério da Integração, 2005), a faixa de fronteira brasileira

corresponde a 27% do território nacional, abrangendo 588 municípios em 11 estados e

uma população estimada em 10 milhões de habitantes.

Faixa de Fronteira dos municípios brasileiros Fonte: Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira - Ministério da Integração (2005).

O Estado de Mato Grosso do Sul faz fronteira com 44 municípios. Além de fazer

fronteira com a Bolívia, com as cidades de Corumbá (Brasil) e Porto Soares (Bolívia),

faz divisa com o Paraguai, sendo com este país a maior extensão de fronteira. Apenas

três municípios do estado fazem contato contíguo, ou seja, direto com o outro país:

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Coronel Sapucaia (Brasil) e Capitão Bado (Paraguai), Paranhos (Brasil) e Ipê-Juhi

(Paraguai) e Ponta Porã (Brasil) e Pedro Juan Caballero (Paraguai), além do distrito da

cidade de Ponta Porã, Sanga Puitan, que faz contato direto com o distrito paraguaio de Pedro Juan

Caballero, Sanga Puitã.

A escolha do tema, contudo, não está apenas vinculada ao desenho urbano

peculiar das cidades de fronteira de Mato Grosso do Sul, e sim ao processo histórico de

formação das fronteiras internacionais latino-americanas, abrangendo sua história,

cultura, sociedade e relações trans-fronteiriças. Descobrir a existência de uma forma

comum de organizar espacialmente cidades que se encontram em localizações especiais

– fronteiras – é um dos pressupostos que sustentam esta pesquisa. A este respeito faz-se

uso das palavras de Carlos Guilherme Mota (4) para explicar a importância do tema:

O fato é que hoje, com novas perspectivas sobre tais processos

históricos, detectam-se formas matriciais de organização do espaço,

tanto da cidade, quanto das formas de construir e habitar, que sugerem a

existência de uma forma comum ibérica. Seus desdobramentos na

América, como encontro de outras civilizações em tempos distintos,

lançam novos desafios aos estudiosos das identidades, sobretudo

quando se adotam métodos e técnicas inovadoras da Historia Urbana

Comparada.

A pesquisa procura oferecer uma visão do processo de construção da cidade nos

territórios estudados e da sua organização territorial e político-administrativa, a partir do

entendimento da sociedade e das suas relações de poder, procurando oferecer uma

compreensão histórica da organização espacial e estruturações urbanas, identificando

possíveis semelhanças, disparidades, regularidades e rupturas, em especial no que se

refere às matrizes hispânicas e lusas das cidades coloniais e aos modelos culturais

subjacentes. Como se sabe, nesse aspecto a regularidade ortogonal explícita da

colonização espanhola, que é o caso tanto de Ponta Porã como de Pedro Juan,

contrapõe-se com as estruturas de malhas menos regulares das cidades de origem

portuguesa, implantadas muitas vezes em sítios com topografia acidentada.

O trabalho tem como alicerce, contudo, as contribuições de pesquisadores não só

arquitetos, como também historiadores, geógrafos e sociólogos, cada qual em sua

atribuição: Para a concepção histórica da pesquisa utiliza-se de Holanda (1986) O

Extremo Oeste; Holanda (1990) Monções; Holanda (1994) Caminhos e Fronteiras; Reis

Filho (1968) Contribuição ao estudo da evolução urbana no Brasil: 1500-1720; Santos

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(1993) A urbanização brasileira. A respeito dos estudos de cidades latino-americanas

tomamos como base as contribuições de Mota (2005) A cidade iberoamericana: Temas,

problemas, historiografia; Romero (2004) América Latina – As cidades e as idéias;

Richard Morse (2000) O Espelho de Próspero: Cultura e Idéias nas Américas. Poucos

foram os autores, entretanto, que procuraram estabelecer uma compreensão comparada

e totalizante da questão, como o fizeram Holanda (1978) Raízes do Brasil, Gutiérrez

(1997) Arquitectura e Urbanismo em Iberoamerica e Hardoy (1969) El proceso de

urbanización en America Latina desde sus origenes hasta nuestros dias.

Definir alguns dos principais conceitos que permeiam a pesquisa é também de

extrema importância para melhor compreensão do trabalho. Segundo Carlos Guilherme

Mota (2002, p. 03) “conceitos de cidade, matriz urbana, urbanismo, urbanização, cultura

urbana, urbanidade, cidadania transitam no campo da inter e transdiciplinaridade”,

fazendo-se necessário, portanto, alguns esclarecimentos que mais tarde serão aqui

abordados.

Alguns conceitos são menos abrangentes que outros, como explica Nestor

Goulart Reis Filho (5) a respeito da palavra cidade. Para ele “quando falamos em

cidades estamos apenas nos referindo aos aspectos físicos, materiais do espaço. Quando

queremos incluir a dimensão social devemos usar o conceito de urbano”. E acrescenta:

“a contrapartida de cidade é campo, a de urbano é rural”.

Para compreensão do significado de barreiras no desenho urbano, utiliza-se de

conceitos como os empregados por Flavio Villaça (1998), que analisa o termo barreira

em situações distintas, analisando as barreiras que caracterizam o crescimento de

metrópoles brasileiras, e por Kevin Lynch (1997), que explica a questão da imagem que

essas barreiras representam para a cidade.

Além dos trabalhos já citados, estudos de fronteira são imprescindíveis para a

elaboração da pesquisa. Nessa linha encontram-se análises como as de Machado (1998),

Sistemas de Estados e Limites Internacionais; Ministério da Integração (2005)

Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira e Martín (1997) Fronteiras e

Nações.

Sobre o conceito de fronteira, a palavra origina-se do latim frons ou frontis, que

significa frente, frontaria, face de uma coisa (Torrinha, 1942, apud TORRECILHA

2004, p. 349). Segundo a geógrafa Lia Machado (1998), a palavra fronteira significa

aquilo que está na frente, está orientada “para fora” (forças centrífugas). Ressaltando o

caráter histórico do conceito, a autora afirma que, em sua origem, a palavra fronteira

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não estava associada a nenhum conceito legal e que não era um conceito político ou

intelectual. Nasceu como um fenômeno da vida social espontânea, indicando a margem

do mundo habitado. Mesmo com o desenvolvimento das civilizações a palavra não tinha

a conotação de uma área ou zona que marcasse o limite definido ou fim de uma unidade

política. Não marcava, portanto, o fim, mas o começo do Estado.

Apesar de muitas vezes considerados como sinônimos, os termos limite e

fronteira possuem diferenças essenciais. Ainda segundo a geógrafa Lia Machado

(1998) a palavra limite designa aquilo que mantém coesa uma unidade político-

territorial, ou seja, sua ligação interna. A autora afirma que enquanto a fronteira está

orientada “para fora”, os limites estão orientados “para dentro” (forças centrípetas). A

fronteira é considerada uma fonte de perigo ou ameaça porque pode desenvolver

interesses distintos aos do governo central. Para a geógrafa, o limite não tem vida

própria e nem mesmo existência material, é um polígono. O chamado “marco de

fronteira” é um símbolo visual do limite. Enquanto a fronteira pode ser um fator de

integração, o limite é um fator de separação, pois separa unidades políticas soberanas e

permanece como um obstáculo fixo.

Analisando os conceitos de fronteira e limite, Martin (1997) afirma que a

identificação entre eles decorre provavelmente da mobilidade e imprecisão cartográfica

que na maior parte do tempo acompanhou o desenvolvimento das sociedades. Para o

autor (op. cit, p. 47):

Hoje, o limite é reconhecido como linha, e não pode, portanto ser

habitada, ao contrário de fronteira que, ocupando uma faixa constitui

uma zona, muitas vezes bastante povoada onde os habitantes de Estados

vizinhos podem desenvolver intenso intercâmbio, em particular sob a

forma de contrabando.

O autor lembra ainda das diferenças de cotidiano vividos de um lado e de outro

de um limite. Embora os dois lados do limite de uma região fronteiriça possam possuir

estilos de vida semelhantes, a presença do Estado impõe distinções marcantes, o que

contribui para um choque entre o “direito de ir e vir” e o intercâmbio com os vizinhos.

Kevin Lynch (1997) analisando três cidades norte-americanas, Boston, Los

Angeles e Jersey City, abordou os elementos vias, limites, bairros, pontos nodais e

marcos para explanar sobre a imagem das cidades. Para o urbanista, os limites são os

elementos lineares que não são usados ou entendidos com via pelo observador. São as

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fronteiras entre duas faces, quebras de continuidade lineares: praias, margens de rios,

lagos, etc., cortes de ferrovias, espaços em construção, muros e paredes. São referências

laterais, mais que eixos coordenados. Para ele, esses limites podem ser barreiras mais ou

menos penetráveis que separam uma região de outra, mas também podem ser costuras,

linhas ao longo das quais duas regiões se relacionam e se encontram.

O geógrafo André Roberto Martin (1997) acrescenta ainda mais um elemento

com certa semelhança aos dois termos aqui abordados, trata-se da divisa, isto é, o

aspecto visível do limite. Afirma que a divisa é o limite que se apóia geralmente em

cursos de água, cristas montanhosas, coordenadas geográficas ou outras linhas

geodésicas.

Já as pesquisas sobre as cidades-gêmeas estudadas (Ponta Porã e Pedro Juan

Caballero) restringem-se principalmente a Torrecilha (2004) A Fronteira, as cidades e a

linha e o trabalho elaborado pelo Grupo de Pesquisa Retis, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro, para o Ministério da Integração (2005) Programa de Desenvolvimento

da Faixa de Fronteira.

As Barreiras

Quando se diz que um determinado local de uma cidade

é uma barreira física para seu desenvolvimento, refere-se ao arranjo espacial do

crescimento, não atribuindo a causa de um crescimento desordenado ao local em

específico, e sim na organização espacial que a cidade seguiu a partir da locação deste

espaço (seja ele um parque, uma via, uma ferrovia ou uma área de preservação).

Para explicar a questão das barreiras para o desenvolvimento das cidades,

Villaça (1998) mostra sínteses das estruturas intra-urbanas de algumas metrópoles

brasileiras (Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte) e

destaca alguns pontos em cada uma delas. No caso de São Paulo a cidade possui uma

barreira vale-ferrovia que a define, tendo o centro da cidade como referência: o “lado de

lá” (oposto ao centro) e o “lado de cá” (onde está o centro). A barreira divide o espaço

urbano em duas partes distintas, que tem custos e tempos de deslocamento ao centro

diferenciados. Define-se então, um lado do espaço urbano mais vantajoso que o outro,

do ponto de vista da acessibilidade ao centro.

É comum que exista uma maior concentração de pessoas em torno do centro da

cidade uma vez que é o local que concentra a maior diversidade de usos. A respeito

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disso, Jacobs (2001, p. 222) explica que “se não houvesse tal concentração, não haveria

centro urbano que se prezasse - certamente não com a diversidade típica dos centros”.

Segundo Jacobs (2001), uma cidade precisa ter diversidade para então obter

vitalidade, sendo assim, pode-se pensar que uma barreira física que impede a expansão

de uma cidade, impede, consequentemente, que aconteça a diversidade do espaço.

Jacobs explica que para um determinado espaço da cidade ter diversidade, ele precisa

obter usos principais combinados, ou seja, diversas formas de habitação, comércio e

serviços em um mesmo espaço, ter necessidade de concentração (concentração

suficientemente alta de pessoas, seja quais forem seus propósitos), além da necessidade

de ruas cortando grandes espaços, ou seja, quadras curtas que propiciem oportunidade

de se virar esquinas frequentemente.

Percebe-se que o sentido de expansão das cidades está intimamente relacionado

com as barreiras e interesses de consumo da população. As barreiras determinam o

sentido de expansão do espaço urbano, forçam contornos, fluxo e direção, assim como

as ações dos conflitos de classes que vão em busca das vantagens e desvantagens do

espaço urbano.

As cidades de fronteira possuem grande complexidade em relação às suas

barreiras, uma vez que para dividir uma cidade da outra, ou seja, um país do outro,

existe a necessidade de um limite. Esse limite é entendido como uma barreira de

crescimento para os dois lados. Essa barreira (divisa) muitas vezes pode ser geradora de

um mau crescimento urbano, uma vez que bloqueia a expansão do crescimento do

município em algum de seus sentidos, não podendo mais se expandir para todos os

lados. O modelo de Burgess (1967, apud VILLAÇA, 1998), mostra as possibilidades de

crescimento de cidades em círculos concêntricos, onde a cidade pode se expandir em

90°, 180° ou 360°. Nota-se que as cidades de fronteira - seca (que fazem contato direto

com o país vizinho) não podem crescer para todos os lados uma vez que a própria

barreira que as separam, são um impedimento de expansão.

Estudo de caso – as cidades gêmeas Ponta Porá / Pedro Juan Caballero

Ponta Porã faz fronteira seca por meio de uma linha de quase 14 quilômetros de

extensão na área urbana com a cidade paraguaia Pedro Juan Caballero.

Pode-se afirmar que a história das cidades e da fronteira dividiu-se em antes e

depois da Guerra do Paraguai, o conflito armado mais grave ocorrido na América Latina

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no período de 1864 a 1870. Os impactos desta guerra foram mais drásticos para o

Paraguai, pois grande parte da população, principalmente masculina, morreu. Após a

Guerra, o território paraguaio, segundo Bethell (1995), foi reduzido em 40%. Com isso,

inicia-se um novo período de desenvolvimento para o território brasileiro, pois começa

a exploração da erva-mate nativa. Ponta Porã surge, então, em 1895 para facilitar o

escoamento da produção da erva-mate. Pedro Juan, por sua vez, surge um pouco antes,

próximo a uma lagoa onde os carreteiros descansavam.

O comércio teve um papel importante de ligação na formação das duas cidades,

uma vez que estas nasceram com a mesma atividade econômica. Possuem juntas

aproximadamente 120 mil habitantes e os primeiros sinais de povoamento datam do ano

de 1862, trinta anos após o desbravamento da região. A linha de fronteira tornou-se um

ponto por onde começa o crescimento de forma linear e contígua das duas cidades.

Esta linha que separa Ponta Porã e Pedro Juan Caballero é uma faixa central

entre as duas cidades que possui em sua parte central 50 metros de largura (25 metros de

cada cidade), podendo variar ao longo de sua extensão, e representa o limite

internacional. Sua extensão é de 13.800 metros dentro do perímetro urbano, definindo

um eixo longitudinal.

Uma das primeiras hipóteses desta pesquisa é a de que existam peculiaridades

estruturais no processo de urbanização de cidades de fronteira, principalmente nas que

se encontram em condição de cidades-gêmeas.

De acordo com o Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira - PDFF -

(2005), três aspectos devem ser ressaltados na geografia das cidades-gêmeas na

fronteira brasileira. O primeiro é que a posição estratégica em relação às linhas de

comunicação terrestre e a existência de infra-estrutura de articulação, embora possam

explicar a emergência de muitas cidades-gêmeas, nem sempre garantem o crescimento e

a simetria urbana das cidades, muitas vezes reduzindo-se a meros povoados locais ou a

cidades de tamanho urbanos muito diferentes. É o caso de Corumbá-MS (sub-região do

Pantanal) e Puerto Suárez (BO), a primeira quase cinco vezes maior do que a última,

apesar da fronteira seca.

Tais assimetrias, segundo o Programa (2005), são interessantes por indicar, além

de diferenças de grau de desenvolvimento econômico dos países, tipos diferentes de

economia regional, e dinâmicas distintas de povoamento fronteiriço. Inserções mais

favoráveis no espaço-rede nacional, condições geoambientais desfavoráveis ao

povoamento, ausência de infra-estrutura de articulação entre as aglomerações vizinhas,

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relações políticas entre as unidades administrativas locais e o governo central são outros

fatores que influem sobre a evolução urbana das cidades fronteiriças.

O segundo aspecto, em parte resultante do anterior, é que a disposição

geográfica das cidades e seu tamanho urbano devem muito à ação intencional de

agentes institucionais (unidades militares, eclesiásticas, jurídico-administrativas). O

terceiro aspecto a ser destacado na geografia das cidades-gêmeas é, segundo o PDFF, a

disjunção entre o tipo de interação predominante na linha de fronteira e o tipo de

interação que caracteriza a cidade-gêmea nela localizada.

Mapa das municipalidades de Pedro Juan Caballero e Ponta Porã Fonte: TORRECILHA (2004).

Diferente de outras cidades brasileiras, em Ponta Porã a linha de fronteira define

o centro comercial, o qual é de fácil acesso para a maioria da população. Entretanto, a

área no município ocasiona outra barreira física, o 11º RC MEC, que se localiza

próximo ao centro comercial da cidade e, por sua extensa área, bloqueia o acesso dos

bairros mais afastados ao centro. É um espaço subutilizado e representa uma barreira

física para o crescimento da cidade. A linha de divisa também indica uma barreira para

o município, mas ela é, ao mesmo tempo, uma barreira psicológica e física, pois além de

representar um local de circulação da população é o limite físico do país.

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Linha de divisa entre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero Linha de divisa entre Ponta Porá e Pedro Juan Caballero Fonte: arquivo pessoal (2004) Fonte: arquivo pessoal (2004)

Além da extensa área militar e da Linha de fronteira, existem outras barreiras

muito significativas na cidade, como o aeroporto internacional que também dificulta o

sentido de desenvolvimento urbano da cidade. Assim como ocorre com o quartel, o

aeroporto representa um espaço que impede o fluxo de pessoas e automóveis no sentido

bairro-centro, forçando um contorno, inclusive de expansão urbana.

Imagem aérea dos dois municípios - localização das barreiras. Fonte: Elaborado a partir de imagens do Programa Google Earth.

Considerações Finais

Parece haver íntima relação entre a localização da área do exército e o sentido da

expansão da cidade. O quartel provoca o crescimento descontínuo e desordenado de

Ponta Porã, uma vez que se localiza no centro da cidade, provocando um desvio no

sentido de expansão, inclusive do trânsito. A área do quartel funciona então como uma

barreira que define lados distintos da cidade, tendo como referência o centro.

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A área militar de Ponta Porã dificulta o processo de vitalidade da cidade, uma

vez que, por ser uma grande área institucional vazia, não permite ocupação, dificultando

a diversidade de uso do espaço, que, como foi dito, segundo Jacobs (2001) é essencial

para o pleno desenvolvimento da cidade.

Percebe-se que o crescimento de Ponta Porã no sentido da linha divisória

(sentido norte-sul, oposto à localização do quartel) está intimamente relacionado com a

localização do comércio, que se concentra na região da linha e define o centro urbano da

cidade. Relaciona-se à questão da concentração do comércio nesta região a valorização

da terra urbana, uma vez que o preço da terra é mais valorizado nesta região da cidade.

Segundo Villaça (1998) todo espaço urbano é produzido, assim como o espaço

social. Para o autor o espaço urbano é produzido pelo trabalho social despendido na

produção de algo útil. Logo, esse trabalho produz um valor. Sendo assim, o produto do

trabalho gerado na região central de Ponta Porã é o crescimento do comércio, o qual

gera a valorização da terra urbana naquele local. Considera-se então o valor dos

produtos em si (edificações, ruas, infra-estrutura) e o valor produzido pela aglomeração

(dado pela concentração do comércio).

A barreira quartel divide a cidade em lados distintos, onde tanto a infra-estrutura

como a renda dos moradores é diferenciada. O lado onde está o centro, por ser mais

vantajoso, tende a abrigar a população de maior renda. O lado oposto ao centro, por

ficar fora de mão, não comporta bairros de alta renda, como ocorre em Belo Horizonte,

onde a região da Pampulha, segundo Villaça (1998) não se desenvolveu na região

oposta ao centro.

Planta Urbana de Ponta Porã - localização do centro comercial.

Fonte: Elaborado a partir de imagens da Prefeitura Municipal de Ponta Porã

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Notas

1 Por ser uma pesquisa de mestrado, este trabalho encontra-se em processo de desenvolvimento, uma vez que teve início em fevereiro deste ano, 2006, e terá dois anos de duração. Apresenta-se aqui uma etapa da pesquisa que fará parte da dissertação. Algumas hipóteses já foram, contudo, levantadas, podendo ainda o trabalho ser expandido e melhor desenvolvido.

2 Por cidades-gêmeas entende-se cidades em contato direto.

3 Maria Lúcia Torrecilha é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, especialista nos cursos de Metodologia, Projetos de Desenvolvimento Municipal e Urbano e Formação de Políticas Ambientais e Urbanas. Autora do livro: A Fronteira, as Cidades e a Linha, Uniderp, 2004.

4 MOTA, Carlos Guilherme. A Cidade Ibero-Americana: O Espaço Urbano Brasileiro e Hispano-Americano em Perspectiva Comparada [Anotações Preliminares]. Texto do Seminário resultante da cooperação entre a Universidade de Salamanca e a Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2002, p. 07.

5 MEDRANO, Ricardo Hernán. Resumos das aulas do prof. Nestor Goulart Reis Filho na disciplina AUH 237 Urbanização e Urbanismo no Brasil I. Notas preparadas pelo arq. Ricardo Hernán Medrano. São Paulo, FAUUSP, maio-junho 1997. [Cadernos de Pesquisa do LAP 19].

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