barbosa, andréa - imagem, pesquisa e antropologia

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    lidade, surgindo como uma aposta no poder e potencial desta linguagem para compreenso dasrealidades sociais (MacDougall, 2006). Este campo, que pode assumir denominaes diversascomo, por exemplo, Antropologia Visual, Antropologia da Imagem, Antropologia Audiovisual, um campo consolidado com um lastro de reflexes importantes sobre a construo de conhe-cimento antropolgico.

    Pensar as possibilidades do uso das imagens na reflexo antropolgica implica entendera imagem como forma especfica de linguagem, que se diferencia a partir dos diferentes meiosque a vinculam. Entender o discurso cinematogrfico, fotogrfico ou do desenho, por exem-plo. E como desdobramento necessrio, implica tambm entender a emergncia histrica daAntropologia Visual, verificar as questes metodolgicas e epistemolgicas que este campo temagregado discusso mais ampla da Antropologia.

    Ao refletirmos sobre os uso das imagens a partir da considerao dos esforos daAntropologia Visual ao longo de sua trajetria, podemos recuperar brevemente alguns momen-

    tos decisivos para sua constituio. No incio do Sculo XX, a Antropologia moderna j se lan-ava em direo a intensidade do encontro e da intersubjetividade, ao encurtar a distncia fsicaentre os povos e culturas levando para o campo o terico, o antroplogo e o observador unidosna mesma figura que vai realizar suas pesquisas. Esse movimento parece ter sido essencial paraa gradual percepo da dicotomia entre o Eu e o Outro, a fronteira dura da alteridade que con-tribua, em grande medida, para reproduo etnocntrica do mundo, dificultando a apreenso einterpretao do humano pelas suas diferenas.

    Com esse primeiro passo em direo a ampliao das possibilidades do humano iniciaassim um caminho da Antropologia para consideraes mais amplas de seu instrumental de

    coleta, anlise, interpretao e difuso dos dados recolhidos em campo. E quando associados auma tecnologia e linguagem da produo de imagens, as investigaes antropolgicas ganhamnovas possibilidades.

    Se a imagem fotogrfica e a antropologia nascem praticamente juntas, durante o sculoXIX, com a complexificao das formulaes dos problemas, perspectivas e prticas antro-polgicas do sculo seguinte que a imagem e a antropologia comeam um dilogo frtil, cul-minando com a consolidao de uma antropologia especificamente visual. A princpio, comonova possibilidade metodolgica de registro do trabalho de campo, paulatinamente a imagemcomea a se insinuar como linguagem capaz de contribuir para uma melhor comunicao inter-cultural e provocar novas questes que se desdobram em prticas antropolgicas variadas comoas de Malinowski, Margaret Mead e Jean Rouch.

    Hoje, analisando a utilizao seminal das fotogrficas nos relatos etnogrficos, como emOs Argonautas do Pacfico Ocidentalde Malinowski, temos a sensao de poder apreender, mesmoque por instantes, todo esse potencial de linguagem, de narrativa visual, de nova contribuioepistemolgica para toda a Antropologia. Mesmo considerando que seu uso das imagens foto-grficas parece ser bastante ingnuo e ilustrativo, hoje amplamente criticvel como uma utili-zao reducionista da imagem, como simples prova do eu estive l, as fotografias se rebelamcontra essa apropriao reducionista e nos abrem a possibilidade de perceber um olhar outro queretorna ao antroplogo. Ao vermos a troca de olhares entre fotgrafo e fotografados, a disposi-

    o dos corpos em relao a uma cena que se constri, um fora de campo que se insinua, somosdespertados por essas imagens para uma sensao provocadora. A sensao de que o uso seminal

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    da fotografia para a reflexo antropolgica das diferentes culturas que compem a humanidaderealizada por Malinowski aguardavam um leitor que ainda no existia.3Um leitor capaz de co-nhecer e aprender pela e com a imagem, capaz de ler a imagem e as complexas relaes que estaconstri com a realidade insinuada nela (e tambm as que ela constri com outras imagens numuniverso muito particular), de considerar a imagem como capaz de explicitar a complexa relaoentre objetividade e subjetividade presente na experincia da realidade, mesmo que atravs deum breve sopro, provisrio e efmero, mas suficiente para revelar tanto a complexidade darealidade quanto o potencial da imagem para compreend-la imaginativamente. Um leitor queentenderia o risco da subjetividade ligado imagem como uma oportunidade de conhecer.

    Passados mais de 80 anos da experincia de Malinowski, o uso da fotografia acumuloumuitas possibilidades na sua relao com o campo etnogrfico. Das metodologias visuais parti-cipativas s fotoetnografias, a imagem fotogrfica se embrenhou no fazer do antroplogo que,atento construo das relaes no processo de pesquisa, coloca a produo de imagens nocentro dessas relaes.

    O ato de fotografar em contextos etnogrficos levado ao seu limite como ndice das re-laes construdas em campo na produo de retratos. O olhar que pede, o olhar que assente, oolhar que inquire e o que nega. Buscando refletir sobre o uso do retrato na pesquisa antropol-gica, Fernanda Rechenberg traz em seu artigo, presente neste dossi Notas etnogrficas sobreo retrato: repensando as prticas de documentao fotogrfica em uma experincia de produocompartilhada das imagens uma reflexo sobre sua pesquisa realizada na cidade de PortoAlegre, RS. A partir da atuao em um projeto de elaborao de retratos de famlia no bairroVila Jardim, a autora levanta questes metodolgicas sobre a produo de retratos na pesquisaetnogrfica. Qual a realidade desses retratos? Ou melhor, qual a sua verdade? Eles falam de

    quem? Para quem? Qual seria a questo incontornvel da fotografia? Os retratos trazidos porFernanda Rechenberg so bons para pensar a potncia imaginativa da fotografia e das relaesimplicadas na sua elaborao. O retrato aqui no apenas um ato, mas um processo de muitosatos. Um processo que assume o risco da construo intersubjetiva na qual se baseia.

    Se ao olhar as fotografias de Malinowski nos acomete a sensao de que elas aguardavamum leitor mais desperto para as questes epistemolgicas que a imagem pode provocar, estasensao no diferente com as imagens em movimento, do primeiro cinema. nesse encon-tro, cinema e antropologia, concretizado desde os fins do sculo XIX, e valorizado ao longoda histria da disciplina que a sua vertente visual se institucionaliza, e logo surgem leitores eespectadores dispostos a enfrentar os riscos desse encontro entre imagem e Antropologia, comooportunidade cognitiva. O cinema parece, portanto, estar na origem do que hoje chamamos deAntropologia Visual, todo o ambicioso objetivo de estabelecer o dilogo entre o rigor cientficoe a arte cinematogrfica ganha reconhecimento e aceitao nas Universidades, mesmo que atra-vs de um debate que se estende indefinidamente para a definio do que o filme etnogrfico.Estamos nos referindo aqui a um cinema feito por antroplogos, contudo, h toda uma gama depossibilidades na relao entre cinema e pesquisa antropolgica que no se esgota nessa produ-o. Falamos das anlises antropolgicas de filmes produzidos fora da academia e sem nenhumpropsito cientfico. As anlises desses filmes so pertinentes justamente porque evidenciam arealidade como criao imaginativa. Evidenciam que esses universos imagticos participam da

    3 O antroplogo Etienne Samain foi um desses leitores esperados e escreveu um instigante artigo sobre essasfotografias (1995).

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    construo social e cultural da realidade. Os filmes podem tornar-se, portanto, interlocutoresprivilegiados.

    As imagens em movimento foram ganhando centralidade na trajetria da AntropologiaVisual, no entanto, essa proeminncia tambm parece ter anunciado seus limites. justamentecom o objetivo de refletir sobre a potncia das imagens fotogrficas e seu silncio em contrastecom a palavra em evidncia de um tipo de documentrio etnogrfico predominante na pro-duo acadmica que Sylvia Caiuby Novaes apresenta seu ensaio O silncio eloquente dasimagens fotogrficas e sua importncia na etnografia. A autora argumenta que diferentementedo vdeo ou filme etnogrfico, que vem sendo cada vez mais utilizado em pesquisas, as fotos per-manecem mudas. Talvez por isso mesmo as fotografias venham sendo menos utilizadas do queos filmes na antropologia, que permanece uma disciplina de palavras, diz a autora concordandoe atualizando uma formulao, dos anos de 1970, da antroploga norte-americana e uma dasmaiores entusiastas do uso das imagens por antroplogos, Margaret Mead (1995).

    Se a forma de mobilizar silncios e palavras nas imagens com as quais lidamos na pesquisaevidenciam que tipo de antropologia est sendo praticada, o ritmo que se imprime ao trabalhocom elas tambm o faz. O ensaio de Marcus Banks se debrua sobre esse ritmo da investigao,particularmente no que diz respeito ao papel desempenhado pelos filmes e pelas fotografias nacriao ou subverso desse ritmo. Em Slow Research: exploring ones own visual archive, oautor revisita seu arquivo visual pessoal de mais de vinte anos de pesquisa na ndia buscandopossibilidades para que fotografias e outras imagens possam ser reabertas a fim de provocar no-vos insights. Aqui o deslocamento no tempo e no espao colocado no centro da questo. No odeslocamento clssico entre o estar l e o estar aqui do fazer etnogrfico, mas o deslocamen-to epistemolgico do olhar do fotgrafo/antroplogo que cede lugar ao olhar entre as imagens

    que se deslocam de seus contextos etnogrficos de origem para se aventurar por novos sentidos.Ainda outra prtica etnogrfica que lana mo das imagens insurge a nos provocar. Os

    dirios grficos de campo, ou melhor dizendo, a presena do desenho na etnografia. A produode desenhos uma ferramenta com enorme potencial de contribuio para o conhecimento et-nogrfico, tanto como forma de acesso ao universo dos interlocutores, como um campo possvelpara a interseco das subjetividades em jogo, a do antroplogo e a dos interlocutores. O proces-so de desenhar impe um ritmo diferente na investigao, favorecendo interaes e colocando oetnlogo numa situao de exposio do seu prprio fazer. O ato em si de desenhar, por sua vez,requer um reaprendizado do olhar sobre o mundo, capaz de produzir no apenas registros gr-ficos daquilo que se olha, mas tambm apreender os conceitos e valores do universo investigadoque fundamentam esse registro. Karina Kushnir explora em seu artigo Ensinando antroplo-gos a desenhar: uma experincia didtica e de pesquisa alguns resultados de sua experincia deensino que prope o desenho como ferramenta central para a pesquisa etnogrfica. Alunos semformao prvia na rea foram incentivados a desenhar como uma forma de conhecer o mun-do. Atravs de oficinas prticas, as convenes em torno do desenho acabaram desconstrudaspara, em seu lugar, serem reencontradas novas formas narrativas capazes de evocar graficamenteideias, encontros, dilogos, observaes e percepes sobre a vida social. A experincia partiuda sala de aula para, posteriormente, explorar espaos na cidade do Rio de Janeiro, tendo comopano de fundo o desafio de compreender a cidade e os mltiplos pontos de vista que se enfren-tam no espao urbano.

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    Nas ltimas duas dcadas uma perspectiva que foge lgica da representao e que, porisso, amplia as possibilidades de lidar com as imagens como seres viventes, nos abre os hori-zontes da nossa antropologia das e com imagens. Essa a perspectiva que Etienne Samaintraz em seu ensaio Antropologia, imagens e arte. Um percurso reflexivo a partir de GeorgesDidi-Huberman. As fronteiras entre Histria da Arte, imagens e Antropologia foram feliz-mente abaladas. Na virada cognitiva visual da qual participamos, essas cincias Antropologiae Historia da Arte outrora distintas, vo redescobrindo a natureza e os horizontes de seusprprios comeos. Neste ensaio, o autor retraa algumas das etapas de sua prpria descobertae explorao das relaes entre antropologia, imagens e arte, remetendo s importantes con-tribuies de Gregory Bateson, Claude Lvi-Strauss, Alfred Gell, Hans Belting, William J. T.Mitchell. Abre, em seguida, um novo espao crtico, que conduz obra humanistica de GeorgesDidi-Huberman, quando, na linhagem de Aby Warburg e de Walter Benjamin, esse filsofo ehistoriador da arte trata de situar as imagens e o saber visual como sendo um campo privile-giado de questionamentos sobre nossa histria, apelos e gritos para tomar posio em nome doporvir de nosso planeta.

    Mesmo com essa trajetria heterognea podemos formular, de maneira mais geral, queos desafios terico-metodolgicos do uso da imagem sob a perspectiva antropolgica levaram complexificao dessa relao: imagem e pesquisa. A sua utilizao como mero registro ouilustrao do argumento desenvolvido no texto acadmico tornou-se apenas uma possibilidade,considerada ainda como simplista, quando vislumbrada as potencialidades desse meio, imag-tico, para atingir os objetivos de pesquisa ligados compreenso e interpretao das realidadessociais. Assim, novos caminhos enriqueceram a discusso, abrindo novos horizontes e possibili-tando a dissoluo de problemas e obstculos de ordem metodolgica e epistemolgica e crian-do outros desafios. Dentre eles, o uso da imagem como instrumento de pesquisa, atravs da uti-

    lizao de fotos e vdeos no apenas como registro de observao, mas tambm como elementosque permitem a criao de um settingetnogrfico especfico; como elemento a ser incorporadona anlise de uma realidade especfica; como forma expressiva de um percurso de pesquisa, en-fim, as imagens como formas que pensam e nos ajudam a pensar antropologicamente.

    O ltimo ensaio deste dossi um ensaio visual. Imagens provocativas. O carnaval tem-po de festa, mas tambm de trabalho. Esta imerso fotoetnogrfica, realizada por um cordeiroda Bahia, literalmente enfoca a maior categoria de trabalhadores do carnaval de Salvador, oscordeiros de bloco. Como o autor mesmo nos adverte, puxar corda de bloco no tarefa paraqualquer um. Precisa estar curtido pela vida, gordo de fome, para ter coragem de enfrentar amultido que se espreme nos circuitos. O carnaval tambm tempo de festa para os cordeirosque labutam, fantasiados, enfeitados, cantam e danam, namoram e bebem, enquanto puxam acorda de aoite, smbolo do moderno carnaval de Salvador. Cordeiros da Bahia, festa e trabalhonas cordas do carnaval de Haroldo Abrantes no apenas para ser visto. para ser olhado eenxergado.4Ver mobilizar nossa competncia visual, mas olhar mobilizar nossas refernciasinterpretativas, o olhar que tem corpo e histria. Enxergar ir alm disso, mobilizar ques-tes que inquirem as imagens para alm do visto e olhado. a transviso de Manoel de Barros,5aquela que une memria, imaginao e criao.

    4 Uma reflexo mais detida sobre essas trs possibilidades epistemolgicas est melhor desenvolvida em Barbosa

    (2012).5 O olho v, a memria rev e a imaginao transv fala do poeta Matogrossense Manoel da Barros no filmeJanela da Alma de Joo Jardim e Walter Carvalho (2001).

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    justamente nesse sentido, plural e criativo, que em nosso contexto brasileiro, surgem di-versas iniciativas e ncleos, o que demonstra o avano da Antropologia Visual no pas e tambma conquista de terreno da imagem nas Cincias Sociais. O que refora a pertinncia deste dossi,que apresenta um conjunto de reflexes sobre experincias de pesquisas com imagens, abrindo--se para explorar as suas questes e potencialidades.

    BIBLIOGRAFIA

    Barbosa, Andrea. 2012. So Paulo Cidade Azul. So Paulo: Alameda Casa Editorial.Caiuby Novaes, Sylvia. 2009. Imagem e Cincias Sociais: trajetria de uma relao difcil.

    Pp. 35-59 in Imagem-conhecimento, editado por Andrea Barbosa, Edgar Cunha e RoseSatiko Gitirana Hikiji. Campinas: Papirus.

    Samain, Etienne Ghislain. 1995. Ver e Dizer na Tradio Antropolgica. Bronislaw Malinowski

    e a Fotografia. Horizontes Antropolgicosv. 2: 19-48.MacDougall, David. 2006. Corporeal Image. Princeton and Oxford: Princeton University Press.Mead, Margaret. 1995. Visual Anthropology in a Discipline of Words.. Pp. 3-10 in Principles

    of Visual Anthropology, editado por Paul Hockings. New York: Mouton de Gruyter.