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AUTONOMIA DOS POVOS INDÍGENAS E (I)LEGALIDADE DO ESTADO DE
DIREITO: O CASO DO PROJETO DE LEI 1057/2007 (LEI MUWAJI)
Patrícia Berti de Assis 1
RESUMO
O presente trabalho analisa o Projeto de Lei n. 1057/2007, conhecido como “Lei Muwaji”,
atualmente em trâmite no Congresso Nacional com a proposta de regulamentar as “práticas
tradicionais nocivas” e os direitos fundamentais das crianças indígenas. O Projeto de Lei
objetiva, em uma explicação sintética, evitar o “infanticídio indígena” por meio do controle
desses povos. A proposta legislativa permite questionar se há situações em que o Estado de
Direito se torna ilegal e age contrariamente ao próprio Direito, promovendo ele mesmo a
violação de direitos humanos sob a alegação de os proteger. A partir de uma análise das
teorias multiculturalista e interculturalista dos direitos humanos, utilizando-se de autores
como Boaventura de Souza Santos, Joaquín Herrera Flores e outros, o estudo pretende
demonstrar que o caso da “Lei Muwaji”, se aprovada, configurará verdadeira violação ao
direito de autonomia dos povos indígenas e muito contribuirá para o reforço da ideologia anti-
indígena disseminada que os rotula como criminosos bárbaros. A ideia contida no Projeto de
Lei 1057/2007, num viés universalizante dos direitos humanos, inviabiliza completamente
qualquer possibilidade de abertura de espaços de diálogos interculturais, pois já afirma
aprioristicamente a superioridade de uma cultura, no caso a não-índia, sobre as culturas dos
povos indígenas. O estudo busca demonstrar que o Projeto em pauta implica violação à
autonomia dos povos indígenas pelo próprio Estado de Direito e dificulta a possibilidade de
reconhecimento do outro.
Palavras-chave: Eugenia indígena. Projeto de Lei 1057/2007. Interculturalidade. Direitos
humanos.
ABSTRACT
This paper analyzes the Bill no. 1057/2007, known as "Law Muwaji", currently before the
National Congress with the proposal to regulate "harmful traditional practices" and the
fundamental rights of indigenous children. The purpose of the Bill in a synthetic explanation,
avoid the "Indian infanticide" by controlling these people. The legislative proposal would
question whether there are situations where the rule of law becomes illegal and acts contrary
to the law itself, promoting himself to human rights violations on the grounds of protecting
them. From an analysis of the multiculturalist theories and interculturalist of human rights,
using authors as Boaventura de Souza Santos, Joaquín Herrera Flores and others, the study
aims to demonstrate that the case of "Law Muwaji", if approved, will set real violation the
right to autonomy of indigenous peoples and contribute to strengthening the widespread anti-
1 Mestranda do Programa de Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Especialista em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail:
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indigenous ideology that labels them as barbaric criminals. The idea contained in the Bill
1057/2007, a universalizing bias of human rights, completely prevents any possibility of
opening intercultural dialogue spaces, as already a priori affirms the superiority of one
culture, in this case non-Indian, on crops of indigenous peoples. The study seeks to
demonstrate that the project in question involves violation of the autonomy of indigenous
peoples by the very rule of law and hinders the possibility of recognition of the other.
Keywords: Indigenous Eugenia. Bill 1057/2007. Interculturalism. Human rights.
1. INTRODUÇÃO
Está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 1057/2007 que
objetiva, na prática, controlar a prática de algumas etnias indígenas que, por suas crenças e
valores próprios, interrompem a vida de sujeitos nascidos com imperfeições físicas, gêmeos
etc. Partindo-se do princípio de que os povos indígenas contam com autonomia para tomar
suas próprias decisões e que suas culturas devem ser respeitadas, o que lhes é garantido
inclusive por norma internacional (Convenção 169 da OIT), critica-se referido Projeto por
sinalizar uma atuação ilegal do Estado Brasileiro que, em nome do direito e de uma visão
universalista dos direitos humanos, poderá violar os próprios direitos desses povos,
principalmente a sua autonomia. Propõe-se o respeito à cultura e o reconhecimento do outro
como bases para um diálogo intercultural que possibilite a troca de saberes e a eventual
mudança cultural que parta da própria cultura e com base em seus próprios conhecimentos e
interesses, afastando-se, assim, uma imposição universal e acrítica dos direitos humanos.
2. ENTRE O UNIVERSALISMO, O MULTICULTURALISMO E O
INTERCULTURALISMO
As formas como as diversas sociedades recepcionam os direitos humanos ou mesmo
se possuem a noção de direito podem dizer muito sobre o seu significado, e não é possível
afirmar que os direitos humanos sejam os mesmos em todos os lugares e em todos os tempos.
“O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é
fundamental em outras épocas e em outras culturas” (BOBBIO, 2004, p. 18). Contudo, a ideia
generalizada acerca dos direitos humanos é originária dos países ocidentais e decorre de um
processo de lutas sociais ocorrido no interior desse universo. Nesses países, em razão da
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estrutura social marcada pela presença de classes, do poder estatal e do mercado, a defesa de
determinados direitos, como a liberdade e a igualdade, era, e ainda é, indispensável. O mesmo
talvez não se possa falar em relação a outros tipos de comunidades, detentoras de diferentes
visões de mundo e organização social.
Atendo-se, primeiramente, à concepção universalista dos direitos humanos, o debate
se concentra sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de
1948, marco histórico do reconhecimento desses direitos enquanto sistema de valores e prova
do consenso sobre a necessidade de salvaguardá-los, como defendeu Bobbio (2004, p. 26 e
28):
A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação
da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado
humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso
geral acerca da sua validade. [...] Somente depois da Declaração Universal é
que podemos ter a certeza histórica de que a humanidade – toda a
humanidade – partilha alguns valores comuns; e podemos, finalmente, crer
na universalidade dos valores, no único sentido em que tal crença é
historicamente legítima, ou seja, no sentido em que universal significa não
algo dado objetivamente, mas algo subjetivamente acolhido pelo universo
dos homens.
Bobbio afirma que, sendo a discussão sobre os fundamentos dos direitos humanos
necessária para promover o seu mais amplo reconhecimento, após a aprovação da Declaração
Universal essa discussão perdeu o sentido, já que a Declaração consistiu na prova irrefutável
do alcance do reconhecimento desses direitos. Para ele, a partir da aprovação da Declaração
Universal por 48 Estados, a questão deslocou-se do plano da fundamentação teórica, da
justificação, para a esfera da efetiva proteção dos direitos humanos, tratando-a como um
problema político, e não filosófico (BOBBIO, 2004, p. 23). A aprovação da Declaração
Universal teve um significado esplêndido, na visão de Bobbio, pois demonstrou, como nunca
antes, a comunhão de pensamento entre diversos países, dissolvendo qualquer dúvida sobre a
importância dos direitos humanos para os próprios indivíduos que compõem o mundo,
representados por seus Estados. Bobbio ainda vê na crescente defesa dos direitos humanos
(por movimentos pacifistas, ecológicos, partidos e governos) um sinal do progresso moral da
humanidade, à semelhança da disposição moral da humanidade que Kant visualizou no
entusiasmo mundial provocado pela Revolução Francesa (BOBBIO, 2004, p. 48 e 49).
Mesmo considerando a existência de diferentes concepções religiosas e morais,
Bobbio sustenta que alguns direitos humanos sempre deverão subsistir, indistintamente para
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todos os homens, seja qual for a categoria do gênero humano, pois inexistentes outros direitos
de mesma ordem que possam restringir-lhes a eficácia. Como exemplo desses direitos,
indicou o direito de não ser escravizado e de não sofrer tortura (2004, p. 20). Afasta, portanto,
qualquer possibilidade de relativização de certos direitos, que, em nenhuma hipótese, deverão
deixar de ser observados. Quanto à maioria dos direitos, porém, Bobbio reconhece que não
são absolutos e que podem ser relativizados em face de outro direito de igual patamar, pois,
quase sempre, a satisfação de um direito implica o sacrifício de outro (2004, p. 41). Conclui-
se, portanto, que até mesmo na visão universalista dos direitos humanos acolhe-se a
relatividade, que é rejeitada apenas quanto a alguns direitos. E não poderia ser diferente, pois
diversos direitos, como a liberdade religiosa e de crença, não poderiam subsistir, mesmo na
visão universalista dos direitos humanos, caso todos os direitos fossem considerados
absolutos, e isso também Bobbio observou (2004, p. 18-19).
As constantes transformações sociais acabam por dar novo sentido a direitos já
reconhecidos, estabelecendo novos ou extinguindo direitos antigos, razão por que os direitos
do homem são considerados históricos e mutáveis, além de não estarem garantidos para todo
o sempre. A luta pelas liberdades individuais, por exemplo, deve ser contínua, ainda que já
esteja aparentemente consolidado o reconhecimento dos direitos do indivíduo perante o
Estado. Os direitos do homem precisam ser (re)conquistados cotidianamente.
Assim como Bobbio propunha que o crescente debate sobre os direitos do homem
seja um indicador do progresso moral da humanidade, também há quem diga que esses
mesmos direitos encerram o desafio da humanidade no século XXI e que devem ser vistos de
uma maneira crítica, não abstrata, mas pautada na realidade e nos diferentes contextos sociais.
As realidades política, econômica, social e cultural vivenciadas no momento da aprovação da
Declaração Universal, e de outros documentos internacionais, não são as mesmas vividas hoje
e, certamente, não serão as de amanhã. Defensor dessa visão crítica, Herrera Flores chama a
atenção para fatos contemporâneos e propõe uma nova perspectiva dos direitos (2009, p. 31):
A deterioração do meio ambiente, as injustiças propiciadas por um comércio
e por um consumo indiscriminado e desigual, a continuidade de uma cultura
da violência e guerras, a realidade das relações transculturais e das
deficiências em matéria de saúde e de convivência individual e social que
sofrem quatro quintos da humanidade obrigam-nos a pensar e,
consequentemente, a apresentar os direitos desde uma perspectiva nova,
integradora, crítica e contextualizada em práticas sociais emancipadoras.
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Herrera Flores situa a teoria dos direitos humanos em práticas sociais ou lutas pela
amenização desses contrastes responsáveis por criar verdadeiros abismos entre as várias
populações e indivíduos do mundo. Além disso, tratando os direitos humanos como
processos, atribui a eles uma concepção original, definindo-os como “o resultado sempre
provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens
necessários para a vida” (FLORES, 2009, p. 34). Para o autor, os direitos humanos estão além
daquilo que se encontra positivado ou reconhecido em cartas políticas e em tratados
internacionais. Primeiramente, vêm as lutas pela obtenção de bens necessários à vida
(liberdade de expressão, moradia, educação etc.) e, posteriormente, os direitos, como
resultados dessas lutas. Ainda aprimorando sua concepção de direitos humanos, esclarece que
não basta o acesso aos bens, mas é imprescindível que esse acesso ocorra de forma justa,
igualitária e não hierarquizada por meios de subordinação, defendo, então, que “os direitos
humanos seriam os resultados sempre provisórios das lutas sociais pela dignidade” (FLORES,
2009, p. 37).
Para a adequada visão dos direitos humanos é imprescindível que se abram os olhos
para os inúmeros problemas sociais decorrentes, sobretudo, da desigualdade econômica e da
deficiente distribuição de riquezas no mundo, que impedem um acesso justo de todas as
pessoas àquilo que necessitam para viver, existir dignamente e participar da vida social e
política. Não basta afirmar que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade
e direitos” (artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos), quando a realidade não
confirma essa assertiva. Os homens, efetivamente, não nascem todos com a mesma facilidade
de acesso aos bens (materiais ou imateriais). Essa igualdade poderá ser viabilizada ao longo
dos processos de lutas dos povos, de ações positivas do Estado na defesa dos direitos sociais.
O reconhecimento jurídico de direitos é extremamente importante, notadamente por facilitar a
sua defesa, no entanto, a criação de normas não garante por si só a mudança da dinâmica
social. E também por isso, Bobbio asseverou que “o problema fundamental em relação aos
direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los” (2004, p. 23),
enquanto Herrera Flores defendeu que as normas devem ser criadas para garantir as
conquistas já alcançadas, vindo, em primeiro lugar, portanto, a luta pelo acesso aos bens, e
não a positivação (2009, p. 34-35).
A forma de satisfação das mesmas necessidades humanas é culturalmente diferente
em cada grupo e, por essa razão, a ideia de dignidade não pode ser extraída de um único
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ângulo, assim como os direitos humanos somente devem ser colocados em prática a partir de
realidades concretas. Não se pode duvidar que a ideologia que embasa os direitos humanos,
tal como transcrita na Declaração Universal, é essencialmente ocidental. Isso não abstrai a
importância desses direitos, porém exige cuidado no momento de sua aplicação a culturas não
ocidentais (FLORES, 2009, p. 43):
Desse modo, um conceito que surgiu em um contexto particular (Ocidente)
difundiu-se por todo o globo como se fosse o mínimo ético necessário para
se lutar pela dignidade. É fácil ver a complexidade dos direitos, pois em
grande quantidade de ocasiões tentam se impor em face de concepções
culturais que nem sequer têm em sua bagagem lingüística o conceito de
direito (como é o caso de inumeráveis cosmovisões de povos e nações
indígenas). Isso gera graves conflitos de interpretação em relação aos
direitos humanos que se deve saber gerir sem imposições nem
colonialismos.
Os direitos humanos, como fonte de emancipação e resultado de conquistas sociais,
não podem sofrer uma implementação impositiva e descontextualizada de situações locais
(econômicas, sociais e culturais), sob pena de se tornarem meros mecanismos de
subordinação do mais fraco, ou seja, justamente aquilo a que se propõem combater. Os
direitos humanos devem ser constituídos de práticas que permitam a todas as pessoas e
comunidades, por mais diferentes que pareçam ser, efetivarem suas próprias crenças e
estabelecerem suas ideologias, pois “a maior violação aos direitos humanos consiste em
impedir que algum indivíduo, grupo ou cultura possa lutar por seus objetivos éticos e políticos
mais gerais” (FLORES, 2009, p. 120).
Também não se pode ignorar que as questões culturais têm íntima ligação com o
problema da desigualdade econômica. Prova disso, por exemplo, é a situação deplorável de
indígenas brasileiros, cada dia mais “amontoados” em pequenas porções de terras, enquanto
latifundiários avançam ainda mais sobre elas, impedindo ou dificultando os processos
culturais de aprendizagem, além de, não raro, aplicarem contra eles extrema violência.
Para abordar os direitos humanos, considerando os aspectos da pluralidade e da
convivência, Herrera Flores sugere uma visão mista das teorias universalista e
multiculturalista. Na verdade, rejeita os extremos de ambas as doutrinas, demonstrando que a
radicalidade em cada uma delas, bem como a repulsa total de uma à outra, acarreta o mesmo
problema: o do contexto. A universalista por falta de contexto e a multiculturalista por
excesso (não reconhece aquilo que não coincide consigo). Dessa forma, tanto a concepção
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universal quanto à multicultural acaba por cair na mesma armadilha, a da proclamação de
realidades absolutas que não se relacionam. Herrera Flores propõe, então, a construção de
uma cultura dos direitos que acolha a universalidade das garantias e o respeito pelo diferente
(2009, p. 158 e 156). Aponta o consenso acerca das garantias mínimas da humanidade como
uma meta a ser atingida através de diálogos, sem desprezo às diferentes concepções de
mundo. Defende, assim, a ideia do universalismo “de chegada”, e não do universalismo “de
partida” (FLORES, 2009, p. 163):
Ao universal, há que se chegar – universalismo de chegada ou de
confluência – depois (não antes) de um processo de luta discursivo, de
diálogo ou de confrontação em que se rompam os preconceitos e as linhas
paralelas. Falamos do entrecruzamento de propostas, e não de uma mera
superposição.
Sua proposta é a de um universalismo que não exclua as diferenças e de um
multiculturalismo também inclusivo. A visão adotada por Herrera Flores é a do
interculturalismo, que se estabelece no respeito às diferenças e na convivência entre culturas.
Defende, portanto, um processo de encontro comum de “generalidades”, ou seja, de
“concordâncias” entre as diversas comunidades e indivíduos sobre determinados assuntos ou
direitos. E, nesse complexo processo, importante não é apenas o reconhecimento do outro,
mas também a transferência de poderes (FLORES, 2009, p. 170).
Assim como a concepção universalista dos direitos humanos é alvo de críticas, dentre
outras razões, por se situar no campo da abstração (todos têm direitos), a concepção
multicultural, como já adiantado por Herrera Flores, também é destinatária de consideráveis
dissensos. O multiculturalismo, em síntese, preocupa-se com a existência de diversas culturas
no mundo e também dentro do mesmo espaço territorial de um Estado. Dentre as principais
críticas, sintetizadas por Santos e Nunes, está a de que o conceito de multiculturalismo é
eurocêntrico, criado pelos países do Norte e impostos aos países do Sul como forma de lidar
com a imigração de pessoas para o espaço europeu. Também a de que o multiculturalismo
pode ser uma nova forma de racismo, na qual se supervaloriza a própria cultura, além de não
exigir o envolvimento com os outros, reforçando a sensação de superioridade de quem
observa a partir de uma autodenominada universalidade (SANTOS e NUNES, 2010, p. 30-
31). O multiculturalismo deve conduzir à emancipação social, afastando-se de concepções e
práticas que acabem por repetir as mesmas falhas das concepções eurocêntricas. O
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reconhecimento da diferença não pode ser também uma fonte de desigualdades (SANTOS e
NUNES, 2010, p. 43).
Sem dúvida, são várias as formas que os homens escolheram para se estabelecer no
mundo, sendo, igualmente, muito diversificadas suas crenças e suas concepções. Acolhendo
essa característica própria da humanidade, Santos posiciona-se de maneira similar a Herrera
Flores e apresenta o debate intercultural, sobretudo na busca de preocupações comuns, como
um caminho a ser trilhado rumo à emancipação social (SANTOS, 2010, p. 443):
Estas são as premissas de um diálogo intercultural sobre a dignidade humana
que pode levar, eventualmente, a uma concepção mestiça de direitos
humanos, uma concepção que, em vez de recorrer a falsos universalismos, se
organiza como uma constelação de sentidos locais, mutuamente inteligíveis,
e que se constitui em rede de referências normativas capacitantes.
As premissas a que o autor se refere são aquelas necessárias para que a conceituação
e a prática dos direitos humanos se transformem, em suas próprias palavras, de “localismo
globalizado para um projeto cosmopolita” (SANTOS, 2010, p. 441).
Atentando-se para a intensificação das relações sociais em nível global, Santos
aponta que não existe apenas uma forma de globalização, sendo correto, portanto, falar-se em
“globalizações”. Explica que “a globalização é o processo pelo qual determinada condição ou
entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade
de considerar como sendo local outra condição social ou entidade rival” (SANTOS, 2010, p.
433). Partindo do princípio da pluralidade de globalizações, Santos aduz quatro modos de
produção de globalização: o localismo globalizado, o globalismo localizado, o
cosmopolitismo e o patrimônio comum da humanidade. Sucintamente, em sua visão, por
localismo globalizado (SANTOS, 2010, p. 435), entende-se o processo que transporta um
fenômeno local para o plano da globalização (e.g. globalização do fast food americano). Por
globalismo localizado (SANTOS, 2010, p. 435), entende-se a interferência de práticas
transnacionais em condições locais, provocando um processo de desestruturação e
reestruturação que faça frente a essa globalização (e.g. utilização de mão-de-obra local por
empresas multinacionais sem a observância das mínimas garantias trabalhistas). Apresenta o
patrimônio comum da humanidade como a concentração de questões afetas à humanidade em
sua integralidade, como, por exemplo, a preservação da própria vida na terra (SANTOS,
2010, p. 437). O cosmopolitismo, por sua vez, é o conjunto não homogêneo de iniciativas,
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movimentos e organizações que engendram esforços para o combate das desigualdades
sociais e para a proteção do meio ambiente, “é a solidariedade transnacional entre grupos
explorados, oprimidos ou excluídos pela globalização hegemônica” (SANTOS, 2010, p. 437).
E as premissas que estabelece para a transformação dos direitos humanos em um
projeto cosmopolita são: a) superação da discussão entre universalismo e relativismo cultural,
propondo o debate intercultural e um relativismo progressista, não conservador; b)
reconhecimento de que todas as culturas possuem uma concepção de dignidade humana, mas
nem todas a concebem sob os moldes dos direitos humanos; c) tomada de consciência de que
todas as culturas apresentam incompletudes; d) reconhecimento de que todas as culturas
possuem uma versão própria de dignidade humana e de que e) todas as culturas tendem a
distribuir pessoas e grupos entre os princípios da igualdade e da diferença. O equilíbrio dessa
distribuição, por meio da percepção de que as lutas sociais podem ocorrer pela igualdade ou
pelo reconhecimento da diferença, traduz uma política emancipatória de direitos humanos
(SANTOS, 2010, p. 441-442). Santos propõe a atuação cosmopolita como uma nova forma de
perceber os direitos humanos, que não seria a da volatilidade desses direitos a critério de
interesses escusos de entes estatais e de empresas privadas, mas a do engajamento de diversos
setores em prol da construção de uma prática de direitos humanos realmente emancipatória.
Quanto à Declaração Universal dos Direitos Humanos, em postura diametralmente
oposta à de Bobbio, Santos não visualiza nela os mesmos beneplácitos, chegando a dizer,
também ao contrário de Bobbio, que a Declaração Universal foi elaborada com a participação
de uma minoria dos povos do mundo (SANTOS, 2010, p. 439). Chama atenção para o fato de
que “ainda que todas as culturas tendam a definir os seus valores mais importantes como os
mais abrangentes, apenas a cultura ocidental tende a formulá-los como universais” (SANTOS,
2010, p 439). Observando essa tendência da cultura ocidental em considerar seus valores
primordiais como universais, o autor situa essa característica como um particularismo, ou
seja, uma questão da própria cultura ocidental.
A proposta central de Santos, diante dos apontamentos feitos, é a hermenêutica
diatópica, por meio da qual se poderia alcançar a política cosmopolita de direitos humanos.
Aponta que todas as culturas possuem concepções próprias que fazem parte do senso comum
no interior de cada uma delas2. No entanto, vistas de fora, ou seja, por outras culturas,
precisam, muitas vezes, ser explicadas ou justificadas. Tentar entender outra cultura a partir
2 A essas concepções culturais particulares Santos dá o nome de “topoi”. “Os topoi são lugares comuns retóricos
mais abrangentes de determinada cultura”. (SANTOS, 2010, p. 443).
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das próprias concepções de mundo é algo extremamente difícil, vindo a hermenêutica
diatópica como uma forma de lidar com essa dificuldade. Nas palavras de Santos (2009, p.
444):
A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que os topoi de uma dada
cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto à própria
cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível a partir do interior
dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a
parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a
completude – um objetivo inatingível – mas, pelo contrário, ampliar ao
máximo a consciência de incompletude mútua por intermédio de um diálogo
que se desenrola, por assim dizer, com um pé em uma cultura e outro em
outra. Nisto reside o seu caráter diatópico.
O objetivo da hermenêutica diatópica, portanto, é promover o aumento recíproco de
consciência de cada cultura acerca de suas próprias incompletudes, já que nenhuma cultura
possui concepções completas, assim como elas mesmas não são. A ideia básica da
hermenêutica diatópica consiste em encontrar legitimidade para os direitos humanos a partir
da visão de mundo, dos postulados, da própria cultura onde estão inseridos ou se querem fazer
inserir, mas exigindo “uma produção de conhecimento coletiva, participativa, interativa,
intersubjetiva e reticular, uma produção baseada em trocas cognitivas e afetivas que avançam
por intermédio do aprofundamento da reciprocidade entre elas” (SANTOS, 2010, p. 451).
Ao apresentar a hermenêutica diatópica, Santos não esquece a problemática de se
manter um diálogo entre culturas com históricos de dominação, ou, ainda, de trocas culturais
desiguais, lembrando-se do argumento do risco de acentuar-se a subordinação de culturas, de
configurar-se a descaracterização ou mesmo a absorção por culturas dominantes (2010, p.
453). Tal argumento parece evidente, por exemplo, quando se põe em discussão a situação de
populações dizimadas em nome da cultura ocidental. Suscitar a abertura cultural por parte
delas é uma exigência que deve ser vista com muito cuidado (SANTOS, 2010, p. 453):
É este o caso de muitas culturas dos povos indígenas das Américas, da
Austrália, da Nova Zelândia, da Índia etc. Estas culturas foram tão
agressivamente amputadas e descaracterizadas pela cultura ocidental que
recomendar-lhes agora a adoção da idéia de incompletude cultural, como
pressuposto da hermenêutica diatópica, é um exercício macabro por mais
emancipatórias que sejam as suas intenções.
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O argumento em questão, porém, não pode impedir o diálogo entre culturas, cujas
cláusulas e partes a serem envolvidas devem ser escolhidas por mútuo acordo, já que o
encontro entre culturas é algo inevitável. A opção por participar do diálogo deve partir,
consensualmente, das próprias culturas envolvidas. O momento de abandonar esses mesmos
diálogos é uma decisão a ser tomada unilateralmente por cada cultura, a fim de evitar a
conquista ou o fechamento cultural (SANTOS, 2010, p. 456-457). Além disso tudo, Santos
adverte que, para tornar possível o diálogo intercultural e a hermenêutica diatópica, não se
pode perder de vista que o princípio da igualdade precisa estar sempre conjugado com o da
diferença, estabelecendo para isso um “imperativo transcultural”: “temos o direito a ser iguais
quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza” (SANTOS, 2010, p. 458).
O debate sobre os direitos humanos, seja no viés do universalismo ou do
multiculturalismo, de forma explícita ou não, traz a preocupação central com a dominação e a
subordinação de indivíduos e de coletividades. Nada obstante, devem ser observados os locais
onde essa dominação ocorre. Na estrutura social ocidental, por exemplo, a posição do
trabalhador frente à voracidade do mercado e das relações oriundas do capital, especialmente
diante da influência da ideologia neoliberal, exige-se a implementação de políticas públicas
voltadas a garantir direitos que suavizem a subordinação do homem a um sistema que
visualiza os lucros, e não o enxerga. Essa mesma situação, porém, não se vislumbra em
sociedades com estruturas diversas, onde a dominação pode ocorrer pela imposição de
regimes hegemônicos, sem a consulta e sem a valorização da cultura que sofre a ingerência.
Tanto num caso como noutro, verifica-se o problema da dominação, porém sob ângulos
diferentes. Não se pode excluir, pois, a preocupação da teoria universalista, que estende a
todos direitos iguais, já que originada dentro de uma realidade de dominação e de exclusão.
Também não se pode afastar a preocupação da concepção multiculturalista, pois igualmente
gerada num cenário de dominação e de exclusão.
O que não é admissível é a imposição de concepções entre mundos diversos. Para
esse problema são pensadas soluções, como as indicadas acima, apesar de reconhecidas
dificuldades práticas. Mas a grandiosidade do labor desses autores e dos movimentos pela
defesa da dignidade reside na crença na mudança, por mais utópica que pareça. A descrença
gera a passividade e esta, por sua vez, permite a consolidação de quadros de dominação, em
seus aspectos mais particulares.
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Do mesmo modo, deve ser reconhecida a importância das organizações e
movimentos, nacionais e internacionais, responsáveis por acalorar a discussão sobre os
direitos e a dignidade humana. Enquanto o processo de individualização do homem perante o
Estado foi importante para a proteção dos direitos individuais, notadamente das liberdades
negativas, a individualização do homem no mundo globalizado, não em relação ao Estado,
mas em relação a seus próprios pares, acaba por dificultar a proteção que o Estado deve dar.
Nesse novo contexto, especialmente de mercado, a força está em unir, e não em separar.
3. A “EUGENIA INDÍGENA” E O PROJETO DE LEI 1057/2007 (LEI MUWAJI)
Apesar de possuírem a mesma carga biológica, como visto na primeira parte deste
trabalho, os homens, situados nas mais diversas partes da terra, possuem modos de vida e
crenças próprios. O homem é um ser cultural e “o comportamento dos indivíduos depende de
um aprendizado, de um processo que chamamos de endoculturação” (LARAIA, 2009, p. 19-
20). Como todo animal, o homem necessita de seu aparato orgânico para satisfazer funções
vitais, no entanto, de uma cultura para outra, variam muito as formas como essas mesmas
necessidades são satisfeitas. É justamente essa grande variação frente a restritas funções vitais
“que faz com que o homem seja considerado um ser predominantemente cultural [...] A sua
herança genética nada tem a ver com as suas ações e pensamentos, pois todos os seus atos
dependem inteiramente de um processo de aprendizado” (LARAIA, 2009, p. 37-38). As ações
humanas decorrem das vivências do homem dentro de determinado grupo e não são frutos de
instintos ou de heranças genéticas.
Para o presente estudo, mais importante que compreender o significado de cultura,
está o reconhecimento da necessidade de preservá-la como o meio em que o homem
desenvolve e transmite suas potencialidades e, especialmente, o meio em que exerce a sua
autonomia. Em razão da cultura, é normal que cada homem tenda a acreditar que sua maneira
de enxergar as coisas é mais adequada que a dos outros, o que pode caracterizar o
etnocentrismo. O extremismo na defesa de seus próprios padrões culturais, no entanto, pode
provocar graves atritos, uma vez que “comportamentos etnocêntricos resultam também em
apreciações negativas dos padrões culturais de povos diferentes. Práticas de outros sistemas
culturais são catalogadas como absurdas, deprimentes e imorais” (LARAIA, 2009, p. 74). Não
se deve esquecer que cada cultura tem uma lógica interna própria, que não pode ser
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questionada por indivíduos de fora dela. É etnocêntrica a tentativa de introduzir a lógica de
uma cultura noutra, pois “a coerência de um hábito cultural somente pode ser analisada a
partir do sistema a que pertence” (LARAIA, 2009, p. 87). Como dito por Santos (2009, p.
443), os lugares comuns de determinada cultura são evidentes para ela, no entanto,
dificilmente serão entendidas por outras culturas.
Por razões de sobrevivência e por crenças particulares, algumas etnias indígenas
praticam a “eugenia”, que, nesse particular, consiste na eliminação do indivíduo nascido com
alguma deficiência física ou por nascer com irmão gêmeo, dentre outras situações específicas
estabelecidas no interior da cultura. Importante frisar que a utilização do termo eugenia não se
aplica adequadamente para essa prática, pois se trata de uma verdadeira manifestação cultural,
com significações próprias, e que nada tem a comparar com o processo “científico” de
melhoramento ou purificação de “raças” apresentado inicialmente.
Essa prática cultural também vem sendo chamada pelos não-índios de “infanticídio
indígena”. O termo é ainda menos apropriado, já que o infanticídio é uma forma de homicídio
praticado pela própria mãe contra seu filho, durante o parto ou logo após, estando sob a
influência do estado puerperal3, que, como esclarece Jorge de Rezende “é o período
cronologicamente variável de âmbito impreciso, durante o qual se desenrolam todas as
manifestações involutivas e de recuperação da genitália materna havidas após o parto” (apud,
GRECO, 2010, p. 257). Na realidade, nenhuma expressão se adequará à tradição mencionada,
pois não há em nossa cultura situação correspondente. Mas, sem dúvida alguma, a prática em
referência não se trata de eugenia, enquanto método de alcance da perfeição física e mental
humana, tampouco de infanticídio, já que não é uma ação cometida sob influência do
puerpério. Apesar da inconsistência, preferiu-se neste trabalho adotar a nomenclatura
“eugenia indígena”, pois esta não se concentra na ação específica de “matar”, ao contrário do
infanticídio.
A prática da eugenia indígena se tornou motivo de sérias críticas por parte da
população não-índia, especialmente após a veiculação pela mídia de matérias envolvendo
casos, como, por exemplo, da índia Hakani, da etnia Suruwahá, que nasceu com
hipotireoidismo e foi rejeitada por sua tribo4. Outro caso emblemático é o da índia Iganani,
3 Figura criminalizada pelo artigo 123 do Código Penal Brasileiro. 4 A criança foi adotada por um casal de missionários, conforme matéria veiculada na Revista Veja, edição n.
2021, de 15 de agosto de 2007, que pode ser acessada virtualmente pelo endereço
http://veja.abril.com.br/150807/p_104.shtml (acesso em: 26/11/2011).
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também da etnia Suruwahá, que sofreu paralisia cerebral, mas obteve tratamento médico, e
não foi “sacrificada”, porém sua mãe, Muwaji, temia sofrer complicações para se reintegrar
ao grupo após o afastamento para tratamento da criança (PINEZI, 2010).
Contemporaneamente a Iganani, a criança Sumawani, da mesma etnia, nascida com
características hermafroditas, foi submetida a cirurgia, onde foi possível constatar que era
menina, e após reintegrada à tribo. No entanto, necessitava do uso contínuo de hormônios
para desenvolver-se regularmente e acabou morrendo por causa de desnutrição, provocada,
justamente, por falta do remédio (PINEZI, 2010).
Pinezi esclarece que os Suruwahá, etnia localizada na bacia do Rio Purus, no
sudoeste do Amazonas, possuem um pensamento coletivo que supera o plano individual,
sendo os assuntos dos indivíduos partilhados por todos. Assim, o nascimento de uma criança é
um assunto de toda a tribo, e não apenas dos pais e parentes. Para eles, o nascimento de filhos
com anomalia física, gêmeos ou considerados ilegítimos, implica uma maldição e mal-estar
para todos os membros (PINEZI, 2010).
Como visto nos temas abordados anteriormente, a análise de uma cultura partindo
dos princípios de outra, geralmente, acarreta a incompreensão e, neste caso, a aparência de
barbárie. Porém, partindo dos princípios da própria cultura que a pratica, a “eugenia indígena”
certamente possui razões bastante evidentes para seus membros. A cultura não é estática, e
pode sofrer mudanças, sobretudo decorrentes do contato com outras culturas. Nos casos
apresentados acima, por exemplo, a aceitação da intervenção da medicina foi uma alternativa,
encontrada em outra cultura, para a reinserção dos membros excluídos do grupo.
Relacionado a esse tema está a edição do Projeto de Lei n. 1057/2007 (intitulado Lei
Muwaji)5, de cunho altamente universalista e desatento à complexidade das questões voltadas
à proteção cultural, especialmente dos indígenas brasileiros, cujos modos de vida estão sendo
alijados há mais de quinhentos anos. O artigo 1º do mencionado Projeto assim foi redigido:
Art. 1º. Reafirma-se o respeito e o fomento a práticas tradicionais indígenas
e de outras sociedades ditas não tradicionais, sempre que as mesmas estejam
em conformidade com os direitos humanos fundamentais, estabelecidos na
Constituição Federal e internacionalmente reconhecidos. (Grifo não original)
5 Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=351362. Acesso
em: 26/11/2011.
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Como se vê, conforme a redação legal, os costumes tradicionais indígenas somente
prevalecerão quando não conflitarem com os direitos humanos fundamentais, reconhecidos na
Constituição e em tratados e convenções internacionais. Apesar de o projeto afirmar o
respeito e o fomento a práticas tradicionais, impõe aos povos indígenas a adoção de conceitos
de direitos humanos não elaborados por eles próprios em evidente violação à autonomia
desses povos. Perceba-se que o projeto não se abre nenhum espaço para a discussão
intercultural, impondo aprioristicamente a própria visão de mundo de origem ocidental do
Estado de Direito Brasileiro.
No artigo 2º insere-se o rol das práticas consideradas nocivas pelo Projeto de Lei em
questão, incluindo variadas formas de “eugenia indígena”. Do artigo 3º consta a obrigação, de
todas as pessoas, de comunicarem às autoridades competentes a possibilidade de ocorrência
dessas “práticas nocivas” de que tenham conhecimento, sob pena de incorrerem em crime de
omissão de socorro, conforme estabelece o artigo 4º. O projeto ainda prevê a retirada
provisória da criança de sua comunidade, conjuntamente ou não com seus pais, e colocação
em abrigos institucionais, vinculados ou não ao governo, quando estiver em situação de risco
(artigo 6º). Estabelece também a necessidade de dialogar, até o esgotamento, com a
comunidade a qual a criança pertença, sobre a desistência da prática em questão. No entanto,
em caso de persistência, a criança deverá ser encaminhada a programa de adoção. Também
importante a citação do artigo 7º do Projeto de Lei 1057/2007, que cria o compromisso com a
erradicação dessas práticas:
Art. 7º. Serão adotadas medidas para a erradicação das práticas tradicionais
nocivas, sempre por meio da educação e do diálogo em direitos humanos,
tanto em meio às sociedades em que existem tais práticas, como entre os
agentes públicos e profissionais que atuam nestas sociedades. Os órgãos
governamentais competentes poderão contar com o apoio da sociedade civil
neste intuito.
Verifica-se que não há nenhuma abertura para um diálogo intercultural verdadeiro,
uma vez que a solução já está dada de plano. Não se parte da incompletude da cultura
ocidental, sobretudo quanto à falta de conhecimento da cultura alheia, mas apenas da
incompletude da cultura indígena, que merece, por isso, ser erradicada. Além disso, a própria
imposição do debate, por meio de uma regulamentação jurídica, demonstra o efetivo
desinteresse no diálogo, já que uma das características básicas da norma jurídica é a cogência.
Os processos de diálogo e educação referidos no Projeto (artigo 7º), certamente, teriam um
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cunho assimilacionista da concepção eurocêntrica de dignidade humana, pois não se observa,
na maioria das pessoas não-índias, uma preocupação com o conhecimento do saber indígena,
o que torna difícil, senão impossível, um diálogo intercultural.
A questão aqui tratada é extremamente complexa e não pode ser resolvida com a
aplicação de instrumentos legais. A imposição dessa solução aos povos indígenas apenas
confirma o histórico avassalador de aculturação a que foram submetidos ao longo dos últimos
séculos. É possível que as etnias indígenas praticantes dessa cultura cheguem a modificá-la
pelo dinamismo que acompanha todas elas, pois “os homens, ao contrário das formigas, têm a
capacidade de questionar os seus próprios hábitos e modificá-los” (LARAIA, 2009, p. 95). No
entanto, essa mudança, se ocorrer, deve partir de uma decisão dos próprios povos envolvidos,
sem intervenção do poder estatal, mormente para criminalizá-los ou tentar exercer ainda
maior controle sobre suas vidas, crenças e costumes.
O Projeto de Lei 1057/2007 foi aprovado em 1 de junho de 2011 pela Comissão de
Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, no entanto, não em conformidade
com a redação original, mas com o substitutivo que previu apenas o acréscimo do artigo 54-A
à Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio). Sendo assim, ao invés dos
artigos anteriormente referidos, a aprovação da CDHM foi pela seguinte redação:
Art. 54-A. Reafirma-se o respeito e o fomento às práticas tradicionais
indígenas, sempre que as mesmas estejam em conformidade com os direitos
fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e com os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos de que a República
Federativa do Brasil seja parte.
Parágrafo único. Cabe aos órgãos responsáveis pela política indigenista
oferecerem oportunidades adequadas aos povos indígenas de adquirir
conhecimentos sobre a sociedade em seu conjunto quando forem verificadas,
mediante estudos antropológicos, as seguintes práticas:
I – infanticídio;
II - atentado violento ao pudor ou estupro;
III - maus tratos;
IV - agressões à integridade física e psíquica de crianças e seus genitores.
Apesar de ter sido mantida a afirmação de respeito à tradição indígena apenas
quando esta não conflitar com os direitos fundamentais, é sem dúvida menos intervencionista
a redação do substitutivo do projeto original. Observe-se que, embora a redação não seja clara
quanto às espécies de “oportunidades” de aquisição de “conhecimento sobre a sociedade em
seu conjunto”, o substitutivo estabelece, ao menos, a necessidade de estudos antropológicos a
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respeito dessas práticas. Além disso, a redação aprovada não aplica o termo “práticas
nocivas”, assim como não repete a criminalização por omissão de socorro, reduzindo, dessa
forma, a carga de preconceito e marginalização que a lei poderá provocar ou acentuar. Assim,
mesmo que o substitutivo ao projeto também traga uma posição universalista bastante
presente, bem como não faça qualquer menção à audiência dos povos indígenas sobre esse
assunto tão delicado, ainda é menos prejudicial que a redação original. No entanto, o que se
mantém na norma acima, é a necessidade de “conscientização” dos indígenas sobre o “erro”
de suas práticas, conferindo-lhes “oportunidades adequadas de adquirir conhecimentos sobre a
sociedade em seu conjunto”. Não há, portanto, nada de dialógico, e sim a implícita declaração
de que a cultura do outro é inferior e precisa ser conscientizada ou ensinada sobre os valores
melhores da sociedade não-índia, em nítida violação da autonomia desses povos.
O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira destaca a necessidade da argumentação
racional nos conflitos interétnicos, lembrando o caso dos indígenas Tapirapé, que, no ano de
1957, contavam com apenas 54 membros, e, ainda assim, mantinham a tradição cultural de
eliminar o quarto filho, a fim de garantir o equilíbrio do ecossistema local, que não suportaria
mais de mil indivíduos. Missionárias católicas, inconformadas, a partir de sua visão cristã,
com o acontecimento, conseguiram convencer o grupo a aumentar a quantidade de membros
da família, utilizando, dentre outros argumentos - mas que parece ter sido o elementar -, o de
que aquela prática, ao invés de fortalecer a comunidade, estava ajudando a enfraquecê-la6. A
partir de um princípio basilar da própria etnia, o interesse da comunidade, conseguiu-se
estabelecer positivamente um diálogo intercultural, sem imposições. Esse caso ilustra um
típico exemplo de troca de saberes que não parte da negação do outro.
A busca do intercâmbio cultural não é tarefa simples, mas também não é impossível.
O primeiro passo para se estabelecer um debate adequado no presente caso começaria, talvez,
pela curiosidade de conhecer os argumentos dos grupos indígenas que ainda realizam essas
práticas, iniciando, via argumentos racionais e originários nas próprias culturas, uma
discussão sobre sua viabilidade. E não pela imposição de instrumentos legais que já tomam
como ponto de partida a erradicação da tradição ou a necessidade de levar aos povos
indígenas o “conhecimento da sociedade em seu conjunto”.
O projeto de Lei 1057/2007 configura expressiva violação aos direitos dos povos
indígenas e, se aprovado, configurará verdadeira atuação ilegal do Estado Brasileiro em
6 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Antropologia e Moralidade. Disponível em: http:
www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_0024/rbcs24_07.htm. Acesso em: 26/11/2011.
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descumprimento de várias normas da Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho como, por exemplo, a que determina que “a integridade dos valores, práticas e
instituições desses povos deverá ser respeitada” (art. 5º, b) e que eles deverão ser consultados
sempre que medidas legislativas ou administrativas sejam suscetíveis de afetá-los diretamente
(art. 6º, 1, a). Além disso, não se pode ignorar que há grande diversidade étnica entre os
próprios povos indígenas e que a prática do “infanticídio indígena” é um costume de algumas
delas e, por isso, a consulta pública, evidentemente, deveria incluir as comunidades afetadas,
sob pena de tornar inócua a previsão da norma internacional.
A análise mostra, então, que a intervenção do Estado nessas culturas, por meio de
edição de norma com nítido caráter universalista, configurará grave violação dos direitos
humanos dessas populações, pois implicará interferência legalizada nas crenças, valores e
autonomia de povos indígenas. Sob o manto da legalidade formal, o Estado investe-se no
direito de agir ilegalmente sobre a vida dos povos indígenas e de outras minorias
marginalizadas.
4. CONCLUSÃO
A pluralidade cultural existente exige uma cautela maior no momento da aplicação
dos direitos humanos, pois não se deve esquecer que coexistem, validamente, várias versões
sobre a dignidade humana. A via conciliatória para essa aplicação em meio à diversidade
parece apontar para a interculturalidade, que reconhece tanto a inexistência de direitos inatos
e unilineares, quanto a necessidade de não se fechar a cultura em visões conservadoras e,
igualmente, segregacionistas, embora autointituladas multiculturais. No caso da “eugenia
indígena” - que não se refere, verdadeiramente, à eugenia propagada “cientificamente”, mas,
ainda assim, um termo a ser utilizado na ausência de melhor correspondente -, a
complexidade da questão não pode ser resolvida com a simples regulamentação legislativa,
iniciada a partir de pontos de vista universalistas e sem abertura efetiva para a troca de
conhecimentos. A imposição de uma visão de mundo sobre outra acaba por malferir um dos
principais objetivos do diálogo intercultural: a chegada ao consenso sobre preocupações que
se identificam. Além disso, não se deve esquecer a trajetória de descumprimento dos direitos
dos povos indígenas e da marginalização a que são expostos, o que reforça a necessidade do
reconhecimento e do respeito a essas culturas. A esses objetivos não se chegará utilizando-se
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de métodos impositivos e de políticas de “conscientização”. As mudanças culturais, se o caso
e no interior dessas próprias culturas, devem advir de argumentos racionais embasados em
seus próprios conhecimentos, não se podendo admitir a atuação ofensiva e ilegal do Estado a
pretexto de universalizar os direitos humanos.
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