autocura e evoluÇÃo, a metÁfora do cÂncer planetÁrio - filipe freitas

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AUTOCURA E EVOLUÇÃO A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO Filipe Freitas

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A proposta deste trabalho é apresentar, em forma de analogias sistêmicas, as nítidas relações entre o padrão de organização da humanidade inserida na biosfera, na atualidade, e o padrão do câncer no organismo humano. Em síntese, o que se propõe é que identifiquemos as valiosas lições que a cura do câncer no indivíduo nos traz para a orientação dos nossos esforços de superação da crise planetária. A contribuição primordial deste texto é, possivelmente, alimentar a perspectiva de enxergarmos a metáfora do câncer planetário não como um fato mórbido ou gerador de desencanto pela vida. Mas, ao contrário, um processo necessário, fundamental para que, a partir do reconhecimento emocional da enfermidade, tomemos atitudes eficazes para a superação do distúrbio.

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AUTOCURA E EVOLUÇÃO A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO

Filipe Freitas

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A Aurora.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço os pensadores, educadores, cientistas e artistas que vêm contribuindo para a

efetivação de uma nova percepção emancipatória para a humanidade;

Agradeço à minha mãe, Maria Cristina Freitas Castro de Melo Carvalho, pelo amor e por todo o

“background” ao longo dos meus 31 anos de vida;

Agradeço ao meu pai, Antônio Cândido de Melo Carvalho, que, desde as estrelas, me orienta com

seu discernimento, integridade e senso de justiça;

Agradeço à minha avó Maria Ignez de Melo Carvalho, referência maior de dedicação, serenidade

e paz de espírito;

Agradeço à minha família pelo ambiente criativo que me foi proporcionado ao longo de minha

formação;

Agradeço aos meus primos Alberto e Paulo Freitas Castro Fonseca, pela visão crítica e pelo ponto

de equilíbrio em longas reflexões ao longo dos últimos anos;

Agradeço a José Henrique Porto Silveira e toda a equipe da Alternativa Educação e Manejo

Ambiental, pelo ambiente favorável ao trabalho e à pesquisa, possibilitando-me a oportunidade

de estar junto às comunidades humanas, atestando o potencial de cura através de processos

educativos;

Agradeço a Caetano Scoralick Magalhães pela firme parceria e pelo grande incentivo ao meu

potencial;

Agradeço aos meus amigos e amigas que ouviram atentamente minhas conjecturas e meus

esboços do argumento que aqui apresento, oferecendo-me valiosas considerações para o

aprimoramento das idéias chaves do texto;

Agradeço ao meu orientador, Prof. Geraldo Tadeu, pela paciência e incentivo ao longo de todo o

processo;

Agradeço aos meus colegas da Turma 13 do Curso de Especialização em Educação Ambiental do

CEPEMG, pelas férteis discussões que travamos ao longo de tantos sábados de trabalho;

Agradeço a Rolando Toro e Liliana Viotti por me apresentarem a Biodança;

E por fim agradeço às crianças de todas as partes por me prover do amor natural que é o

fundamento do ser humano e a chave para a transformação do nosso padrão cultural.

F.F.

maio de 2006

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“Lembremo-nos

que vivemos em um tempo excepcional, em uma época única,

e que temos essa grande felicidade, esse incalculável privilégio,

de estarmos presentes ao nascimento de um novo mundo”.

Sri Aurobindo

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................15

1. A TERRA COMO UMA HOLARQUIA ................................................................25

1.1 Autonomia e Holonomia como Polaridades Complementares................................25

1.2 A Visão de Mundo Excessivamente Orientada pelos Princípios Norteadores do

Masculino........................................................................................................29

2. AUTOCRIAÇÃO, A ESSÊNCIA DOS SISTEMAS VIVOS.......................................35

3. A AUTOPOIESE DO SISTEMA DE GAIA...........................................................43

4. A METÁFORA DO CÂNCER.............................................................................50

5. A DINÂMICA DO TUMOR...............................................................................55

6. A DIMENSÃO EMOCIONAL DO CÂNCER..........................................................73

7. PERSPECTIVA DE CURA................................................................................82

8. VISÃO SISTÊMICA COMO CENÁRIO COGNITIVO PARA A RESTAURAÇÃO

PLANETÁRIA..............................................................................................98

8.1 Uma nova concepção de mente....................................................................103

8.2 Ecologia Profunda......................................................................................107

8.3 Princípio Biocêntrico..................................................................................109

8.4 Aprendizado de Gaia..................................................................................111

8.5 Sustentabilidade........................................................................................112

9. TEMPO DE DOENÇA E TEMPO DE MORRER..................................................115

10. CONCLUSÃO.............................................................................................120

NOTAS............................................................................................................127

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................133

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INTRODUÇÃO

Este trabalho de pesquisa tem como objetivo fundamental contribuir na

formação de agentes de restauração planetária, buscando a incorporação de uma nova

lógica que possa reger os esforços de reação da sociedade humana no processo de

superação do agudo desequilíbrio causado pelo seu próprio padrão cultural e modelo de

desenvolvimento.

Espera-se que, a partir de uma percepção centrada na biosfera – e não na

espécie humana como ápice da pirâmide evolutiva –, grupos de mobilização e serviço

planetário possam se nutrir de perspectivas cognitivas capazes de efetivamente nos

auxiliar na concatenação dos esforços de superação da atual crise ecológica.

Nossa trajetória evolutiva apresenta um ponto de bifurcação de magnitude sem

precedentes. Atualmente estamos perdendo o jogo contra os atos de devastação da

natureza perpetrados pelos impulsos patológicos de nossa cultura de consumo

insaciável.

Superpopulação, tecnologia industrial poluente, doenças da civilização

(cardiopatias, câncer, derrames), doenças mentais (esquizofrenia, depressão),

acidentes, suicídios, crimes violentos, desemprego, alcoolismo, toxicomania,

esgotamento energético, catástrofes ambientais, exploração incontrolada dos recursos

naturais, contaminação das águas, aquecimento global, devastação de ecossistemas,

definhamento e morte dos solos. Chegamos a um momento crítico, em que

constatamos, diante de gigantescos arsenais nucleares, que a espécie humana, vista

como parte integrante do sistema terrestre, um tecido do Sistema de Gaia∗, vive uma

crise profunda, com nítido potencial de auto-aniquilação.

∗ Sistema de Gaia é a denominação que será utilizada para se referir ao biossistema auto-regulador e auto-

mantenedor da Terra, identificado por James Lovelock e Lynn Margulis, no qual toda a gama de organismos

viventes e também o ar, os oceanos e a superfície terrestre se integram e se unificam em laços de

realimentação. Vista a partir dessa perspectiva, a Terra parece funcionar como um superorganismo

planetário vivo, capaz de ajustar e corrigir ininterruptamente os seus processos químicos, físicos e

biológicos, a fim de conservar as condições ideais para a vida e para a sua contínua evolução. Cf.

THOMPSON (2000), MARGULIS e SAGAN (2002), CAPRA (1997), RUSSELL (1991), SAHTOURIS (1998).

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A proposta deste trabalho, diante de sintomas evidentes, é apresentar, em

forma de analogias sistêmicas, as nítidas relações entre o padrão de organização da

humanidade inserida na biosfera, na atualidade, e o padrão do câncer no organismo

humano. Em síntese, o que se propõe é que identifiquemos as valiosas lições que a cura

do câncer no indivíduo nos traz para a orientação dos nossos esforços de superação da

crise planetária.

Fomenta-se uma compreensão sistêmica focada na unicidade da vida do

Sistema de Gaia, entendendo-se a crise por um viés geobiológico. Pode-se enxergar o

conjunto de idéias deste trabalho como uma espécie de diagnóstico, uma tomada de

consciência capaz de mobilizar o sistema emocional das pessoas no sentido de constituir

uma coalizão no âmbito da sociedade para efetivar um eficaz processo de cura.

Sustenta-se que, se seguirmos justificando os processos deletérios atuais a

partir de uma perspectiva antropocêntrica, ou seja, centrada no ser humano como a

“espécie rainha”, controladora de toda a natureza, é provável que permaneçamos

imobilizados em nosso próprio olhar autocentrado, divididos em facções que defendem

seus próprios pontos de vista, enquanto que os recursos biológicos e geológicos do

planeta continuam a ser carcomidos em um ritmo cada vez mais rápido.

A hipótese de um câncer planetário não é, em absoluto, uma novidade. Um

número significativo de cientistas e artistas já aventou essa hipótese e este trabalho

deverá se basear nessas visões para justificar esse isomorfismo∗ e, assim, buscar

processos de regeneração e vivificação, através de novos cenários cognitivos que visam

fortalecer o sentimento de autocura da humanidade e, conseqüentemente, do Sistema

de Gaia. Como afirma Peter Russell,

“A analogia com o câncer não pode ser ignorada. A civilização moderna

parece estar carcomendo indiscriminadamente a superfície do planeta,

consumindo em décadas recursos minerais que a própria Gaia herdou

bilhões de anos atrás. Ao mesmo tempo, a humanidade ameaça

∗ Isomorfismo é um conceito que diz respeito a princípios ou propriedades gerais que aparecem em

diferentes disciplinas científicas. Tal conceito também pode ser utilizado na identificação de padrões

semelhantes encontrados em sistemas de complexidades diferentes. Cf. ESTEVES DE VASCONCELLOS

(2002), pág 196.

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destruir a estrutura biológica que levou milhares de anos para ser

criada (...) De fato, uma fotografia aérea de qualquer grande metrópole

com seus subúrbios espraiados lembra muito o modo como certos

cânceres crescem no corpo humano. A civilização tecnológica realmente

assemelha-se a um virulento tumor maligno que devora cegamente a

sua própria hospedeira ancestral num ato egoísta de consumpção” . 1

A contribuição primordial deste texto é, possivelmente, alimentar a perspectiva

de enxergarmos a metáfora do câncer do Sistema de Gaia não como um fato mórbido

ou gerador de desencanto pela vida. Mas, ao contrário, um processo necessário,

fundamental para que, a partir do reconhecimento emocional da enfermidade, tomemos

atitudes eficazes para a superação do distúrbio.

Da mesma forma que um ser humano que desenvolve um tumor maligno em

seu organismo precisa de um diagnóstico para iniciar o processo de cura, sustenta-se

que o biossistema planetário também precisa desse diagnóstico para que ações efetivas

de restauração do equilíbrio do Sistema de Gaia sejam tomadas.

E, como desdobramento desse diagnóstico, será apresentado, em linhas gerais,

um cenário cognitivo capaz de fortalecer o sentimento de autocura no âmago da

sociedade. Tal percepção da realidade visa contribuir para o processo de reorientação

dos modos humanos de forma a restaurar o senso de holonomia∗ perdido quando da

ascensão do pensamento antropocêntrico e individualista ocorrido nos últimos milênios.

Para se lograr alcançar tais objetivos, este trabalho de pesquisa foi dividido em

nove capítulos, além de uma conclusão.

∗ Holonomia se refere à regra do todo mais amplo no qual um sistema está inserido e depende dele para

existir. Algo como “uma tendência integradora”, ou “uma transcendência de si mesmo” que precisa ser

equilibrada com o autogoverno, ou a autonomia. Este conceito será aprofundado adiante. Cf. SAHTOURIS

(1998), pág. 57 e BOHM (2001), pág. 209 e 210.

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O primeiro capítulo, intitulado “A TERRA COMO UMA HOLARQUIA”,∗ é

subdividido em duas partes. A primeira sub-parte, “Autonomia e Holonomia como

Polaridades Complementares”, visa alicerçar o trabalho a partir da noção chinesa de

opostos complementares – yin e yang – definindo assim uma estrutura conceitual

coerente para introduzir a perspectiva da autonomia e da holonomia como polaridades

complementares que encerram em si o padrão de equilíbrio dinâmico característico do

processo evolutivo da vida.

A segunda sub-parte, “Visão de Mundo Excessivamente Orientada pelos

Princípios Norteadores do Masculino”, propõe uma leitura do processo evolutivo da

espécie Homo sapiens de forma a caracterizar o surgimento, nos últimos milênios, de

uma visão de mundo excessivamente orientada pelo pólo arquetípico yang, cujas

características – racionalidade, competição, expansão e auto-afirmação – engendraram

um quadro de desequilíbrio estrutural que levou a humanidade a se fechar em si

mesma, a se colocar como o topo da criação e assumir uma postura de “dona da terra”,

subjugando todos os outros seres aos seus próprios desejos e objetivos.

Esse primeiro capítulo visa contextualizar o surgimento desse padrão cultural da

espécie humana de forma a identificá-lo como a própria estrutura motriz do padrão

isomórfico ao câncer no âmbito do planeta. Aproveita-se esta contextualização para

reforçar a compreensão da efemeridade da espécie humana em relação ao processo

evolutivo da Terra e também de salientar que todos os parâmetros que utilizamos para

definir nossas verdades e nossos métodos organizacionais são muito pontuais e não

podem ser vistos como verdades objetivas.

Os capítulos 2 e 3, intitulados “AUTOCRIAÇÃO, A ESSÊNCIA DOS SISTEMAS

VIVOS” e “A AUTOPOIESE DO SISTEMA DE GAIA”, buscam descrever o planeta como

uma unidade viva, valendo-se da Teoria de Gaia e da Teoria da Autopoiese. Todo o

raciocínio deste trabalho de pesquisa se baseia em características de sistemas vivos.

Faz-se essencial, portanto, que o leitor consiga compreender o planeta como um

biossistema auto-regulador, uma totalidade integrada que se auto-organiza e apresenta

∗ Holarquia é um conceito cunhado por Arthur Koestler que significa a coexistência de seres menores em

totalidades maiores. A palavra criada por Koestler é isenta de implicações de superioridade, ou de que um

dos componentes da holarquia controle os outros de algum modo. Cf. MARGULIS e SAGAN (2002), pág. 24

e KOESTLER (1981), pág 48.

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os mesmos princípios de organização dos organismos vivos que a compõem, bem como

das células que compõem estes organismos vivos.

Depois de definirmos a Terra como um sistema auto-organizador, adentramos o

domínio do câncer propriamente dito, primeiramente delimitando os domínios de

linguagem através dos quais percorreremos esse caminho. O capítulo 4 “A METÁFORA

DO CÂNCER” visa esclarecer o caráter metafórico de todas as analogias sistêmicas e

isomorfismos apresentados ao longo do trabalho. A intenção é construir imagens

reconhecíveis que permitam a visualização global a partir de um eixo biocêntrico,

buscando transcender os enfoques atuais carregados de valores morais.

Em suma, busca-se uma linguagem unificadora para gerar compreensão de

processos similares em sistemas de complexidades muito diferentes. Entretanto, é de

especial importância que nenhuma analogia presente neste trabalho seja confundida

com a realidade objetiva. A geofisiologia, em cujo domínio podemos encaixar este

processo de identificação do câncer planetário, ainda é uma ciência nascente, incapaz

de gerar conclusões alicerçadas por evidências ontológicas.

Portanto, é crucial que se entenda a natureza metafórica destas analogias e

que elas sejam vistas como instrumentos cognitivos capazes de trazer à consciência

coletiva humana os patamares mortíferos de autodestruição ocasionados pelos modelos

políticos e econômicos praticados na atualidade, visando comover os indivíduos para a

necessidade de participação neste processo de transformação cultural.

Compreendida a linguagem a ser utilizada no trabalho, focamos a atenção nas

analogias existentes entre a dinâmica do câncer em um indivíduo e o padrão cultural e

econômico da sociedade humana no Sistema de Gaia. O capítulo 5 “A DINÂMICA DO

TUMOR” visa estabelecer e delinear os paralelos entre a doença em uma pessoa e a

situação planetária atual. A partir das particularidades fisiológicas das células cancerosas

em um tecido humano, podemos construir padrões isomórficos consistentes no cerne do

comportamento da humanidade no contexto planetário.

O capítulo 6, “A DIMENSÃO EMOCIONAL DO CÂNCER”, visa analisar os

procedimentos médicos mais eficazes no tratamento do câncer na atualidade, de forma

que possamos compreender os estreitos vínculos emocionais da doença. Neste capítulo,

serão analisados os trabalhos de Lawrence LeShan; James Creighton, Stephanie e Carl

Simonton; e Wilhelm Reich, de forma que se torne clara a relação entre o estado

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emocional do paciente e o surgimento e superação da doença. Dar-se-á uma atenção

especial a um tipo específico de estresse emocional como fator de extrema relevância no

surgimento do câncer: a perda da esperança de viver a vida da forma como ela é

sonhada.

O capítulo propõe um caminho circular de reflexão, associando conceitos de

estresse emocional, enfraquecimento dos mecanismos de defesa do corpo, substâncias

potencializadoras do câncer, neuroses sexuais e cultura repressiva. Procura-se

demonstrar que tais conceitos se remetem tanto à situação de um indivíduo acometido

pela doença, como que para toda a humanidade e sua relação com a biosfera, buscando

a verificação de que a dimensão emocional do câncer encontra paralelos significativos

na trajetória histórica dos seres humanos.

O capítulo 7, intitulado “PERSPECTIVAS DE CURA”, vem mostrar como os

tratamentos atuais estão conduzindo os pacientes em direção à cura a partir de um

trabalho de orientação e avivamento emocionais dos seus organismos, de forma que

fortaleçam seus sistemas imunológicos e possam superar a enfermidade.

Ao se descrever esses caminhos de cura no âmbito do indivíduo, traçam-se

paralelos que nos auxiliem na construção de planos de ação que se utilizem dos mesmos

princípios dos tratamentos e possam incorporar estratégias transdisciplinares no âmbito

social e ecológico. Espera-se mostrar com clareza as valiosas lições da superação do

câncer no indivíduo para nos orientarmos rumo a uma nova cultura planetária.

Estabelecidos estes paralelos, que se configuram como a base fundamental de

todo o raciocínio aqui apresentado, no capítulo 8, “VISÃO SISTÊMICA COMO CENÁRIO

COGNITIVO PARA A RESTAURAÇÃO PLANETÁRIA”, procura-se apresentar algumas das

profundas mudanças de percepção necessárias ao encaminhamento efetivo de novos

arranjos sociais capazes de criar uma nova cultura de integração e parceria, restaurando

o senso de holonomia da humanidade em relação ao Sistema de Gaia. Nesse ponto são

reunidas cinco dimensões cognitivas que se realimentam na constituição de uma nova

forma de pensamento. Uma nova concepção de mente, a ecologia profunda, o princípio

biocêntrico, o aprendizado de Gaia e a noção de sustentabilidade são apresentados

como premissas cognitivas que trazem consigo um grande potencial regenerativo e dão

sustentação ao pensamento sistêmico como alicerce a uma nova cultura caracterizada

por integração e equilíbrio dinâmico entre humanidade e natureza.

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O capítulo 9, “TEMPO DE DOENÇA E TEMPO DE MORRER”, busca trazer a

reflexão em torno do atual estágio da enfermidade do planeta, engendrando

considerações em torno da perspectiva de ação em nosso contexto atual. Estaremos

ainda no tempo de doença, em que os esforços são todos orientados para a cura? Ou

estaremos no tempo de morrer, em que devemos nos orientar para nos proporcionar o

fim mais digno possível, tendo em vista a impossibilidade da cura? Este trabalho de

pesquisa se posiciona na crença de que ainda vivemos o tempo de doença e que

existem formas viáveis de transformação cultural capazes de encaminhar os indivíduos,

comunidades e instituições à efetivação de uma nova cultura planetária.

Por fim, apresenta-se uma conclusão que traz reflexões em torno da própria

natureza do texto, aponta desdobramentos que emergem a partir deste raciocínio e

identifica a essência do trabalho como um esforço na busca de reconexão com o ser

planetário vivente.

Por se tratar de um trabalho acadêmico sem uma orientação efetiva que

direcione o trabalho dentro de uma linha de pesquisa sólida, em algumas passagens da

estrutura discursiva o leitor poderá notar certa superficialidade nos argumentos,

principalmente no que diz respeito à fisiologia do câncer e seus desdobramentos a partir

das ciências médicas. Espera-se, contudo, que as evidências apresentadas em forma de

isomorfismos possam abalizar o estudo e superar algumas dificuldades de pesquisa.

O trabalho também parece carecer de uma maior utilização de fontes primárias,

tendo em vista que sua construção se deu, preponderantemente, a partir de trabalhos

de síntese, obras cuja função é reunir informações oriundas de vários trabalhos

disciplinares de análise científica de forma a compor cenários paradigmáticos.∗

Tais obras incorporam várias teorias e fazem uma leitura dessas estruturas

conceituais de forma que o leitor possa ter uma visão ampla do assunto, sem, contudo,

se aprofundar em pormenorizações, cuja importância se dá principalmente no âmbito

dos especialistas.

∗ Utiliza-se o conceito de paradigma no sentido em que KUHN (1987) propõe como sendo os pressupostos

nem sempre explicitados nas formulações de teorias que estabelecem crenças e valores sobre o mundo,

subjacentes à prática científica, que fundamentam os modelos e fornecem analogias e metáforas

apropriadas ao compromisso com os valores compartilhados pelas comunidades de cientistas.

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Tomo como referência o livro “O Ponto de Mutação”, de Fritjof Capra, ao qual

considero um marco epistemológico e cujas idéias influenciaram decisivamente este

trabalho. Em sua introdução, Capra diz o seguinte:

“Nosso exame abrange uma gama muito ampla de idéias e fenômenos, e

estou perfeitamente cônscio de que a apresentação das conquistas

detalhadas em vários campos será fatalmente superficial, dadas as

limitações de espaço e tempo e de meus conhecimentos. Entretanto, ao

escrever o livro, acabei por ficar fortemente convencido de que a visão

sistêmica que nele defendo aplica-se também ao próprio livro. Nenhum

de seus elementos é realmente original, e muitos deles podem estar

representados de um modo um tanto simplista. Mas a maneira como as

várias partes estão integradas no todo é mais importante do que as

próprias partes. As interconexões e interdependências entre os

numerosos conceitos representam a essência de minha própria

contribuição. Espero que o resultado, no seu todo, seja mais importante

do que a soma de suas partes.” 2

Sem comparar os trabalhos, com dimensões de pesquisa bastante diferentes,

acredito que a contribuição deste raciocínio deverá seguir um caminho semelhante à do

livro “O Ponto de Mutação”. Espero que o todo seja mais importante que suas partes e

que as lacunas metodológicas possam ser transcendidas pela compreensão da idéia-

matriz do trabalho: a busca por um arcabouço conceitual de perspectiva ecológica para

a constituição de planos de ação pragmáticos visando a superação da crise ecológica e,

consequentemente, do desafio evolutivo de vasta magnitude que temos enfrentado.

Por fim, para iniciarmos o trabalho propriamente dito, vale ressaltar que, por se

tratar de um tema de natureza transdisciplinar, este trabalho de pesquisa está

fundamentado, em grande medida, a partir de referências bibliográficas cujos

pressupostos da complexidade, da instabilidade e da intersubjetividade estão presentes

como matrizes epistemológicas.3

Como diz J. M. Keynes, citado em Esteves de Vasconcellos (2002), “a

elaboração de novas idéias depende da libertação das formas habituais de pensamento

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e expressão. A dificuldade não está nas novas idéias, mas em escapar das velhas, que

se ramificam por todos os cantos da nossa mente”.

A adoção desses pressupostos implica em alterações na forma de condução da

narrativa científica. A incerteza, o paradoxo e a metáfora vêm substituir a exatidão, a

lógica racional restrita e o formalismo da linguagem determinística. Essa mudança de

perspectiva não significa que devamos “trocar fatos por fantasia, nem rigor por

imaginação”.4 Ou seja, essa mudança de pressupostos não exigirá o abandono dos

procedimentos científicos, mas sim a superação de algumas limitações intrínsecas aos

conceitos e métodos que até então se utilizava.

Por mudar o seu paradigma, a ciência não está deixando de ser científica ou se

confundindo com outros domínios de explicações, mas sim, como diz Ilya Prigogine e

Isabelle Stengers, “se compatibilizando com os processos complexos que constituem o

mais familiar dos mundos, o mundo natural onde evoluem os seres vivos e suas

sociedades”.5

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1. A TERRA COMO UMA HOLARQUIA 1.1 Autonomia e Holonomia como Polaridades Complementares

Para iniciarmos o trabalho, deveremos delinear uma visão coerente do Planeta

Terra como uma unidade viva, um superorganismo que tem na fisiologia a disciplina

mais apropriada para estudar seu corpo geobiológico.∗

Ao fundamentarmos essa visão orgânica do planeta, espera-se uma

transformação radical da visão corrente que induz a apreciação da Terra como um

simples habitat, como uma estrutura inanimada, composta de rochas, água, ar,

meramente habitada por inúmeros seres vivos independentes que vivem em luta

constante por sobrevivência.

Essa percepção do planeta formado por partes dissociadas está no cerne do

nosso comportamento deletério. Desenvolvemos uma visão de mundo cujo centro é nós

mesmos. Tudo ao redor existe para nos prover daquilo que necessitamos. O ambiente e

os outros seres estão aí como recursos, meramente.

A visão de Gaia a ser descrita devolve-nos uma compreensão que

provavelmente esteve presente por tempos extensos nas sociedades primitivas, quando

os grupos humanos mantinham uma visão sagrada em relação à Terra e seus seres.∗∗

Enxergar a Terra como um superorganismo devolve-nos a noção de holarquia,

ou seja, sistemas aninhados em outros sistemas, cujas relações não são tomadas de

conotações de superioridade, maior importância ou controle de um sistema sobre o

outro. Cada unidade distinguida é um hólon, uma totalidade que também funciona como

parte. Cada hólon tem simultaneamente a autonomia – em grego, ‘autogoverno’ – de

∗ Um dos primeiros cientistas a desenvolver um raciocínio que unificava a dimensão geológica e a dimensão

biológica do planeta foi o russo Vladimir Ivanovich Vernadsky (1863-1945). Ele chamou tanto os organismos

quanto os minerais de “matéria viva” e mostrou o que chamou de “ubiqüidade da vida”, ou seja, a

penetração quase completa e o envolvimento da “matéria viva” nos processos aparentemente inanimados

das rochas, das águas e do vento. Ver MARGULIS e SAGAN (2002), pág. 61 e ss.; e SAHTOURIS (1998),

pág. 71. ∗∗ Cf. EISLER (1989). O Cálice e a Espada é um trabalho valioso para a compreensão dos estágios anteriores

da evolução humana marcados por sociedades igualitárias. Em sua síntese, Eisler se orienta a partir das

descobertas arqueológicas para traçar um panorama abrangente da civilização.

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um todo e a dependência de uma parte, uma vez que está implantado em hólons mais

amplos, dos quais depende para existir.1

Por depender do sistema mais amplo, que se configura como seu ambiente, o

hólon deve conter em si uma tendência integradora; deve, como colocou Arthur

Koestler, “transcender a si mesmo”. Por conseguinte, o hólon em questão deve se

apropriar das determinações estruturais de seu ambiente e estabelecer um ritmo

adequado à fenomenologia do hólon mais amplo do qual faz parte. Essa tendência

integradora é o que chamamos holonomia.

Dessa forma, o hólon se orienta a partir de um equilíbrio dinâmico entre duas

polaridades complementares: autonomia e holonomia.

Essas duas tendências holárquicas podem ser relacionadas com a estrutura

desenvolvida no “I CHING” chinês, ou “O Livro das Mutações”, um dos mais antigos

livros de sabedoria da humanidade. O I CHING baseia-se na idéia de contínua flutuação

cíclica que envolve a noção mais ampla de dois pólos arquetípicos – yin e yang – que

sustentam o ritmo fundamental do universo.*

Os filósofos chineses viam a realidade, cuja essência primária chamaram TAO,

como um processo de contínuo fluxo e mudança. Todos os fenômenos são dinâmicos,

estão em movimento mediante a interação dos dois opostos yin e yang que fixam os

limites para os ciclos de mudança: “Tendo o yang atingido seu clímax, retira-se em favor

do yin; tendo o yin atingido o seu clímax, retira-se em favor do yang”.2

Fritjof Capra faz uma bela análise dos caminhos históricos e significados dos

pólos yin e yang em seu livro “O Ponto de Mutação”, estabelecendo íntima relação dessa

visão chinesa – de um universo dinâmico em constante mudança através da flutuação

de dois opostos complementares – com o fluir da nossa cultura e nossas transições

sociais: * Existe, no âmbito científico, uma intensa resistência em se incorporar conceitos oriundos de tradições e/ou

filosofias místicas por se temer uma distorção do pensamento científico e sua metodologia peculiar.

Utilizaremos a terminologia chinesa do yin e yang como pólos arquetípicos que sustentam o ritmo

fundamental do universo a partir de trabalhos científicos tais como o de Manfred Porkert (apud CAPRA,

1986) que os interpreta à luz da medicina chinesa, e o de YAN, Johnson F. (2004), que traça

surpreendentes paralelos entre a estrutura do I CHING e seus hexagramas baseados nas relações entre o

yin e o yang e as seqüências de proteínas do DNA, aclarando as implicações matemáticas e científicas da

terminologia taoísta dos opostos complementares.

Page 23: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

21

“É importante, e muito difícil para nós, ocidentais, entender que esses

opostos não pertencem a diferentes categorias, mas são pólos extremos

de um único todo. Nada é apenas yin ou apenas yang. Todos os

fenômenos naturais são manifestações de uma contínua oscilação entre

os dois pólos (…) A ordem natural é o equilíbrio dinâmico entre o yin e o

yang” .3

Ao longo da trajetória do pensamento chinês, os dois pólos arquetípicos yin e

yang nunca foram associados a valores morais. Aquilo que é considerado benéfico não é

vinculado ao yin ou ao yang. O equilíbrio dinâmico entre os dois é que pode ser visto

como algo benigno e, conseqüentemente, o que é maligno ou nocivo é o desequilíbrio

entre os dois pólos complementares.

Desde os tempos mais remotos da cultura chinesa o yin está associado ao

feminino e o yang ao masculino. Essas relações foram interpretadas pelo ocidente de

forma errônea, ao definir o feminino pertencente às mulheres e o masculino pertencente

aos homens.

Quando penetramos no domínio da biologia humana, podemos perceber

claramente que as características masculinas e femininas não estão nitidamente

separadas, mas ocorrem, em proporções variáveis, em ambos os sexos. Os chineses

acreditavam que todas as pessoas, homens e mulheres, passavam por fases yin e yang

ao longo de seu desenvolvimento, sendo que cada personalidade não é uma entidade

estática, mas a interação dinâmica entre os pólos feminino e masculino.

Capra segue analisando os padrões complementares desmistificando a

associação ocidental do yin e do yang como sendo um passivo e outro ativo,

relacionando essa visão aos modelos patriarcais que se utilizaram da atividade do

masculino yang e da passividade do feminino yin para manter as mulheres num papel

de subordinação e subserviência em relação aos homens.

Apresenta, por conseguinte, uma interpretação que coloca o yin como

correspondente às atividades integrativas, consolidadoras, cooperativas, intuitivas; e o

yang às atividades auto-afirmativas, expansivas, competitivas e racionais. E completa:

“a ação yin tem consciência do ambiente e a ação yang está consciente do eu. Em

Page 24: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

22

terminologia moderna, poderíamos chamar à primeira ‘eco-ação´ e a segunda ‘ego-

ação’”.4

Nesse ponto podemos introduzir as noções de autonomia e holonomia como

dimensões complementares que interagem através dos pólos arquetípicos yin e yang.

Podemos sugerir que a autonomia é a dimensão yang das relações holárquicas, tendo

em vista a auto-afirmação, a preservação do eu, caracterizadas pela ação masculina,

agressiva e competitiva. Em contrapartida, a holonomia é o pólo yin, integrativo, cuja

compreensão ambiental é enfatizada e a noção do eu é contraída para se dar ênfase ao

todo, sustentando-se uma ótica cooperativa.

Vale ressaltar que, como descrito acima, nada é somente yin ou somente yang,

mas estão em constante ritmo flutuante através dos opostos complementares.

Outra observação importante é não conceber o yang, o ego, a competição e a

auto-afirmação como, por si mesmos, nocivos, ruins, ou negativos. Diferentemente da

interpretação ocidental preponderante, não existe um pólo caracterizado como o mal e

um pólo caracterizado como o bem. É o equilíbrio entre os dois que faz emergir o bem,

ao passo que o que se faz nocivo é o desequilíbrio entre o pólo yang e o pólo yin, como

veremos agora.

Page 25: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

23

1.2 Visão de Mundo Excessivamente Orientada pelos Princípios

Norteadores do Masculino

A espécie Homo sapiens, vista como um hólon, desenvolveu, ao longo dos

últimos milênios, uma visão de mundo patriarcal (voltada para o domínio dos homens

sobre as mulheres), antropocêntrica (voltada para sua auto-afirmação), competitiva

(voltada para a expansão), individualista (voltada para o ego). Todas essas dimensões

tendem ao pólo arquetípico yang, desequilibradamente. Nos últimos milênios, a espécie

desenvolveu uma visão da vida excessivamente masculina, em uma estrutura de

distinção cognitiva que nos levou a perder a holonomia em relação ao sistema mais

amplo do qual somos componentes: o Planeta Terra.

Esse desequilíbrio arquetípico da espécie veio ao longo dos séculos

aumentando a importância da racionalidade em detrimento da dimensão intuitiva do

conhecimento, determinando o modelo competitivo de existência e asfixiando o intuito

cooperativo nas sociedades. Essa visão excessivamente yang foi responsável pelo ritmo

frenético de expansão da humanidade e introduziu, no âmago do nosso comportamento,

a noção prevalecente de hierarquias existenciais, em detrimento da visão holárquica da

vida.∗

A partir dessa visão de mundo, os seres humanos se colocaram no topo da

pirâmide evolutiva. Como exemplo clássico desta visão, cita-se a Bíblia judaico-cristã, as

escrituras sagradas mais acessadas de todos os tempos, que, logo em seu livro inicial,

“Gênesis”, apresenta o ser humano ocupando um lugar especial no plano divino: “Sede

fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e dominai-a. Sede o medo e o pavor de todos

os animais da terra e de todas as aves do céu, como de tudo o que se move na terra e

de todos os peixes do mar: eles são entregues nas vossas mãos. Tudo o que se move e

possui vida vos servirá de alimento, tudo isso eu vos dou, como vos dei a verdura das

plantas”.5

∗ É importante diferenciar as hierarquias funcionais, profundamente difundidas na natureza, que não

pressupõem níveis de importância nem relações de subordinação e controle; das hierarquias existenciais,

típicas da civilização humana, que impõem ordens rígidas verticalizadas, nas quais o grupo que se posiciona

no alto escalão é visto como mais importante, mais nobre, mais preparado, cabendo a si mesmo o poder de

controlar e determinar os rumos do sistema. Cf. CAPRA (1986), págs. 276 e ss.

Page 26: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

24

Desde a Antiguidade, noções materialistas, racionalistas, utilitaristas do mundo

natural validaram conceitualmente a dominação humana durante toda a era moderna.

Essas formulações, contudo, não podem ser vistas como origem da visão de

mundo antropocêntrica, mas sim uma catalisação de um fluxo cognitivo que remonta a

tempos mais antigos, cuja gênese não será analisada nesse trabalho.

O importante, nesse momento, é delimitar historicamente a presença de uma

cosmovisão antropocêntrica, patriarcal, hierárquica, cuja dinâmica é excessivamente

yang, que vem acompanhando o evoluir da sociedade humana há milhares de anos,

pelo menos desde o inicio da documentação da história através da escrita na

Mesopotâmia.

Pode-se notar, ao longo de toda a história documentada, a constante existência

de grupos humanos utilizando-se de artifícios políticos, bélicos, intelectuais, no sentido

de preservarem-se no topo da pirâmide, subjugando os demais seres humanos e os

outros seres vivos do planeta.

Se tomarmos como base estudos mais aprofundados da história evolutiva da

espécie Homo sapiens desde quando surgem os documentos e os registros que nos

possibilitam uma compreensão mais clara do processo, vamos conseguir rastrear, ainda

que intuitivamente, um fluxo constante desses grupos humanos orientados

excessivamente pelo pólo arquetípico yang – auto-afirmativo, expansionista – visando

prioritariamente – até mesmo compulsivamente – sua autonomia e negligenciando as

relações integrativas com o ambiente.

Sem o senso de holonomia necessário para se equilibrar à necessidade de

autonomia, imprimiu-se, nos últimos milhares de anos, o desenvolvimento de padrões

econômicos de explícita incoerência, caracterizados por consumo excessivo de energia e

degradação do ambiente.

Em um momento posterior vamos verificar que esses padrões econômicos

humanos são isomórficos ao padrão celular canceroso, visto que degeneram o corpo

hospedeiro – o hólon mais amplo – e consomem grandes montantes de recursos e

energia que, em uma situação de equilíbrio, seriam coerentemente destinados às outras

partes do corpo.

Essa visão de mundo antropocêntrica, masculinizante e hierárquica, que nos

acompanha desde os tempos mais remotos de nossa história escrita, costuma ser vista

Page 27: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

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como um modelo natural, com suas doutrinas sendo universalmente aceitas, ao ponto

de parecerem se constituir como leis da natureza.

Forças motrizes, pressões sociais, rituais, tradições, entidades divinas, leis,

linguagens, costumes, etiquetas, educação e trabalho são inconscientemente atrelados

às premissas dessa cosmovisão excessivamente yang, desprovida do senso de

holonomia.

Há, todavia, um aspecto da evolução profundamente relevante que não

costuma ser enfocado. Poucas vezes somos alertados que a história humana

documentada, que nos forneceu todos os parâmetros para a construção de nossas

verdades sagradas e nossos métodos organizacionais, tem apenas alguns milhares de

anos, sendo que o processo da vida no planeta tem mais de três bilhões de anos de

existência e mesmo a evolução do Homo sapiens abrange, no mínimo, 100.000 anos.6

A trajetória humana tal qual a conhecemos é a fase mais recente do

desdobramento da vida no planeta e, sem dúvida, exerce um fascínio especial em nós.

No entanto, quando transcendemos a perspectiva antropocêntrica e nos focamos na

vida planetária, a evolução humana passa a ser vista como um episódio muito breve e,

sob um ponto de vista temporal, chega mesmo a ser insignificante.

Para visualisarmos as proporções do processo da vida no planeta com a

evolução do ser humano, torna-se muito oportuna a narrativa concebida por David

Brower, um ambientalista californiano, citada em CAPRA (1997), na qual ele comprime a

idade da Terra nos seis dias da história bíblica da criação:

“Nesse cenário, a Terra é criada no domingo à zero hora. A vida, na

forma das primeiras células bacterianas, aparece na terça-feira de manhã,

por volta das 8 horas. Durante dois dias e meio seguintes, o microcosmo

evolui, e por volta da quinta-feira à meia-noite, está plenamente

estabelecido, regulando todo o sistema planetário. Na sexta-feira, por

volta das dezesseis horas, os microorganismos inventam a reprodução

sexual, e, no sábado, o último dia da criação, todas as formas de vida

visíveis se desenvolvem. Por volta de 1h30min da madrugada de sábado,

os primeiros animais marinhos são formados, e, por volta das nove e

Page 28: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

26

meia da manhã, as primeiras plantas chegam às praias, seguidas, duas

horas mais tarde, por anfíbios e insetos. Dez minutos antes das dezessete

horas, surgem os grandes répteis, que perambulam pela Terra em densas

florestas tropicais durante cinco horas, e então, subitamente, morrem por

volta das 21h45min. Enquanto isso, os mamíferos chegam à Terra no

final da tarde, por volta das 17h30, e os pássaros já à noitinha, por volta

das 19h15min. Pouco antes das 22 horas, alguns mamíferos tropicais que

habitavam árvores evoluem nos primeiros primatas; uma hora depois,

alguns destes evoluem em macacos; e por volta das 23h40min aparecem

os grandes símios antropóides. Oito minutos antes da meia-noite, os

primeiros símios antropóides do sul se erguem e caminham sobre duas

pernas. Cinco minutos mais tarde, desaparecem novamente. A primeira

espécie humana, o Homo habilis, surge quatro minutos antes da meia

noite, evolui no Homo erectus meio minuto mais tarde e, nas formas

arcaicas do Homo sapiens, trinta segundos antes da meia-noite. Os

Neandertais comandam a Europa e a Ásia de quinze a quatro segundos

antes da meia-noite. Finalmente a espécie humana moderna aparece na

África e na Ásia onze segundos antes da meia-noite, e na Europa, cinco

segundos antes da meia-noite. A história escrita da humanidade começa

por volta de dois terços de segundo antes da meia-noite”.7

Observada sob essa perspectiva, a vida se faz muito, muito mais ampla e

complexa do que nossa aprendiz mente antropocêntrica é capaz de compreender

atualmente.

Entender o caminho da vida até surgir o Homo sapiens é realmente fascinante.

Este entendimento do processo de hominização, ainda incipiente, deverá nos

proporcionar visões antes inimagináveis de nossa própria constituição como ser vivo e

como espécie.

Descobertas arqueológicas nos mostram, por exemplo, que os seres humanos

antigos já se utilizavam da arte há mais de trinta mil anos. Pinturas rupestres datadas

desta época nos mostram que a grande arte fazia parte integral da evolução dos

modernos seres humanos, desde o princípio. Como assinalam MARGULIS e SAGAN

Page 29: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

27

(2004), “a procura pelo ancestral histórico do homem é a procura pelo contador de

histórias e pelo artista”.

Pouco ainda se sabe sobre a trajetória humana e suas composições sociais até

o surgimento da escrita na Mesopotâmia. De qualquer forma, já existem estudos

definitivos que apontam para experiências humanas fundamentadas a partir de aguçado

senso de holonomia, nas quais a presença de deusas e imagens da natureza como

sagradas, como mãe-provedora, influenciaram o surgimento de sociedades pacíficas,

igualitárias e democráticas.

Trabalhos recentes de arqueólogos e historiadores, tais como James Mellaart,

Marija Gimbutas e Merlin Stone, deram-nos uma visão inteiramente nova das antigas

civilizações, conforme exemplificadas pela bem preservada cidade neolítica de Çatal

Huyuk, na atual Turquia. Em seus estudos, eles retrataram a existência de sociedades

bem planejadas e administradas, com grandes cidades, tecnologia agrícola, pinturas

murais, cerâmica decorada, esculturas e outras artes, e que, ao contrário de culturas

posteriores, não apresentavam sinais de fortificações, guerra, conquista, escravidão ou

qualquer desigualdade social importante. Pensam os estudiosos que homens e mulheres

trabalhavam em parceria e há provas em Çatal Huyuk de que os que passavam

necessidades eram socorridos por reservas públicas de alimentos ou com produtos das

hortas do templo da deusa.8

Esses estudos desafiam os postulados que sustentam a natureza anti-social da

espécie humana. Hoje contamos com provas evidentes de que grupos humanos

espalhados pela África, Oriente Médio e Europa viveram durante longos períodos se

orientando através da parceria e do respeito sagrado à natureza.

A arqueologia deverá ter essencial contribuição para que possamos entender e

refletir sobre como a nossa espécie se amotinou contra a ordem natural da vida no

planeta, como perdemos o senso de holonomia e nos centramos em nós mesmos,

egocentricamente, a partir de configurações sociais hierárquicas e modelos

organizacionais caracterizados por consumo excessivo de energia e degradação

ambiental.

Quando compreendemos o processo de evolução dessa visão de mundo

excessivamente yang, sem nos determos em conotações morais, somos capazes de

verificar isomorficamente o padrão do câncer em nosso comportamento como espécie,

Page 30: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

28

sem que nos detenhamos em sentimentos de culpa moral. De fato, estaremos dando

um passo primordial para nossa cura como espécie, como integrante do Sistema de

Gaia. Como dizem Thorwald Dethlefsen e Rudiger Dahlke, “o câncer tem que ser

compreendido para que possamos compreender a nós mesmos”.9

Antes de adentrarmos no âmbito da doença propriamente dita e verificarmos

mais pormenorizadamente as relações de reconhecimento da enfermidade com a sua

cura efetiva neste trabalho de pesquisa, devemos conceber a visão autopoiética da vida,

a fim de sustentar, na Biologia, a condição de ser vivente do Planeta Terra.

Page 31: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

29

2. AUTOCRIAÇÃO, A ESSÊNCIA DOS SISTEMAS VIVOS

Buscaremos lograr uma descrição convincente do planeta como uma unidade

viva e, para tanto, empreenderemos uma síntese de algumas teorias científicas de

grande originalidade que vieram despontando ao longo do Século 20, na medida em que

o pensamento sistêmico ganhava consistência. A coesão de um novo modelo conceitual

permitiu que uma nova Biologia emergisse, alterando incisivamente a compreensão do

fenômeno da vida tanto no micro, quanto no macrocosmo.

Essa nova Biologia e suas implicações culturais, contudo, ainda não obtiveram

êxito em penetrar nos sistemas de informação, seja através das mídias, seja através dos

sistemas de educação. Ainda prepondera a visão mecanicista do universo e suas partes

constituintes.

A máquina do mundo, um autômato sem propósito, é a metáfora dominante

desde o Século 16. Oriunda da Revolução Científica e associada aos nomes de, Galileu,

Descartes, Bacon e Newton,1 a visão do mundo como uma máquina veio substituir a

imagem mítica do planeta como uma entidade viva, como mãe nutriente, que

predominou na Idade Antiga, advinda de tradições filosóficas e religiosas que possuíam

uma visão organicista do planeta em seu cerne.

Ao longo dos últimos quatrocentos anos, a visão mecanicista do mundo foi

vigorosamente difundida e se espalhou pelos mais diversos domínios do conhecimento,

tornando-se a base do modo de pensar e agir das sociedades modernas.

A percepção mecanicista da vida transformou o planeta em uma estrutura sem

vida, mecânica, feita de rochas, água e ar, meramente habitada por seres vivos

independentes. Esse modelo permeou o raciocínio de Charles Darwin em seu impactante

trabalho que culminou com a Teoria da Evolução das Espécies e é o modelo da História

Natural ainda hoje utilizado nos sistemas de educação, apesar de todos os

desdobramentos da ciência ao longo do Século 20.∗

Com a estruturação da física quântica nas três primeiras décadas do Século 20,

muitos pressupostos que sustentavam a ciência mecanicista tiveram que ser revistos,

∗ Para um aprofundamento na compreensão e delineamento das características do paradigma mecanicista e

sua influência em nossos modelos sociais ver CREMA (1988), CAPRA (1986), ESTEVES DE VASCONCELLOS

(2002).

Page 32: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

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diante de evidências contrárias advindas dos experimentos com os átomos. A metáfora

do mundo como uma máquina começava a ruir.

Abria-se uma nova e fascinante vertente de pesquisa na ciência, na qual várias

linhas de pensamento foram fazendo emergir a visão organicista do Universo,

conduzindo o pensamento científico a uma perspectiva holística da realidade e a

conseqüente elaboração da Teoria da Autopoiese e da Teoria de Gaia que, juntas,

apresentam uma nova compreensão do planeta como um superorganismo auto-

regulador.

Autopoiese foi a denominação que os neurobiólogos chilenos Humberto

Maturana e Francisco Varela atribuíram ao padrão metabólico que caracteriza os

sistemas vivos.

Auto, naturalmente, significa ‘si mesmo’ e poiese – que compartilha da mesma

raiz grega da palavra ‘poesia’ – significa ‘criação’. Sendo assim, autopoiese significa

autocriação. A partir da compreensão da autopoiese como a organização da vida, a idéia

de autocriação torna-se a característica central de qualquer forma vivente.

Mas, afinal, o que é vida? Essa pergunta, aparentemente simples, vem

acompanhando e desafiando os cientistas na busca pelas propriedades de um sistema

que são necessárias para que possamos chamá-lo de vivo.

Como podemos distinguir um sistema vivo de um sistema não-vivo? Sabemos

que somos seres vivos. Sabemos também que, embora imóveis aos nossos olhos, as

plantas estão vivas e que há seres vivos tão diminutos que não conseguimos enxergá-

los. Mas o que faz de todas essas instâncias que conhecemos como vivas estarem vivas

realmente? O que é a vida como um fenômeno do existir?

Diante de perguntas semelhantes a estas, Humberto Maturana se ocupava com

a “organização da vida”, na década de 1960. Refletindo sobre o que todos os seres vivos

têm em comum, ele buscava um padrão que os reunisse em uma mesma definição.

Antes, contudo, de prosseguirmos com a jornada intelectual de Maturana e de

seu colaborador Francisco Varela, é interessante que contextualizemos os avanços do

conhecimento na época. Ao longo dos anos 1960, a ciência passava por momentos de

grande fertilidade. Vivia-se a consolidação da concepção de auto-organização como idéia

central de um modelo qualitativo dos sistemas vivos.

Page 33: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

31

O físico e ciberneticista Heinz Von Forster, citado em CAPRA (1997), havia

introduzido a frase “ordem a partir do ruído” para indicar que um sistema auto-

organizador não apenas “importa” ordem vinda de seu meio ambiente, mas também

recolhe matéria rica em energia, integra-a em sua própria estrutura e, por meio disso,

aumenta sua ordem interna.

Ilya Prigogine, físico e químico belga, ganhador do Prêmio Nobel, havia

demonstrado que os sistemas auto-organizadores eram abertos e operavam afastados

do equilíbrio termodinâmico. Ou seja, é necessário que exista um fluxo constante de

energia e de matéria através do sistema para que ocorra a auto-organização. Sua Teoria

das Estruturas Dissipativas pode ser considerada a primeira a abordar de forma

influente e detalhada o fenômeno da auto-organização.

Assim, a estrutura dissipativa de que fala Prigogine é um sistema aberto que se

conserva bem longe do equilíbrio termodinâmico, embora seja estável: a mesma

estrutura global se conserva, apesar do fluxo e da mudança constantes dos seus

compontentes. Prigogine cunhou o termo “estruturas dissipativas” para sublinhar a

íntima interação que existe entre a estrutura, de um lado, e o fluxo e a mudança (ou

dissipação) de outro.

Ele também demonstrou que as estruturas dissipativas auto-organizadoras

criam espontaneamente novas formas de ordem e novos modos de comportamento.

Quando o fluxo de energia aumenta, o sistema pode chegar a um ponto de

instabilidade, chamado de “ponto de bifurcação”, no qual tem a possibilidade de derivar

para um estado totalmente novo, em que podem surgir novas estruturas e novas formas

de ordem, novos padrões espontâneos qualitativamente diferentes.2

O grande avanço da concepção de auto-organização, na década de 1960,

montou o palco para a construção de um modelo conceitual que pudesse responder à

pergunta ‘o que é vida?’.

Essa trajetória intelectual em torno da noção de auto-organização demonstrou

claramente que os domínios das formas vivas e das formas não-vivas – de onde,

provavelmente, a vida emergiu há mais de três bilhões de anos atrás – têm interfaces

realmente tênues.

No início da década de 1970, Manfred Eingen, bioquímico alemão, concebeu o

conceito de “hiperciclos”, no qual sugere que a vida pode ter surgido a partir de uma

Page 34: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

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organização progressiva em sistemas químicos afastados do equilíbrio. Suas pesquisas o

levaram a introduzir o termo “hiperciclos” para descrever os sistemas de reações

especiais conhecidos como ciclos catalíticos.

Um catalisador é uma substância que aumenta a velocidade de uma reação

química sem ser, ele próprio, alterado no processo. Reações catalíticas são processos de

importância crucial na química da vida. Os catalisadores mais comuns são as enzimas,

componentes essenciais das células.

Quando Manfred Eigen estudou as reações catalíticas envolvendo enzimas,

observou que nos sistemas bioquímicos afastados do equilíbrio termodinâmico, ou seja,

expostos a fluxos de energia, diferentes reações catalíticas se combinavam para formar

redes complexas que podiam conter laços fechados de realimentação.

O espantoso foi que Eigen descobriu que, com tempo suficiente e um fluxo

contínuo de energia, tais ciclos catalíticos tendiam a se encadear para formar novos

laços fechados, nos quais as enzimas produzidas em um ciclo atuavam como

catalisadores no ciclo subseqüente. Hiperciclos são justamente esses laços nos quais

cada elo é um ciclo catalítico.

Tais hiperciclos mostram-se notavelmente estáveis e também capazes de auto-

replicar-se e de corrigir erros de replicação, o que significa que podem conservar e

transmitir informações complexas.

As pesquisas de Manfred Eigen mostram que essa auto-replicação – que é bem

conhecida nos sistemas vivos – pode ter ocorrido em sistemas químicos antes da

emergência de sistemas biológicos com estrutura genética. Tais hiperciclos são, de fato,

modelos não-vivos precursores dos sistemas vivos. E a lição a ser aprendida aqui é a de

que as raízes da vida atingem o domínio da matéria não-viva.3

Essa constatação é corroborada pelo fato de que um tornado, uma fogueira e

um redemoinho que se forma na água, estruturas não-vivas, apresentam características

de seres vivos, pois todos são estruturas dissipativas, centros dinâmicos de atividade

que se estabelecem como estruturas fechadas – no sentido de serem estáveis, de

poderem ser identificadas – mas que ao mesmo tempo são abertas, ou seja, as suas

partes constituintes são continuamente substituídas, em um processo ininterrupto de

troca de energia e matéria com o ambiente externo.

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33

Para compreendermos melhor uma estrutura dissipativa, podemos tomar como

exemplo o Homo sapiens. A cada ano, 98% dos átomos de um corpo humano são

substituídos, mas ainda assim um padrão corporal é preservado.4

Como então continuamos sendo a mesma pessoa, se 98% do nosso corpo já

não é mais o mesmo? Como preservamos nossa identidade se aquilo que éramos há até

bem pouco tempo hoje já não faz parte de nós? Como a memória e a personalidade não

se esvaem junto com os átomos que se misturam com o meio adjacente?

Ao constatarmos essa constante substituição de nossa matéria-prima, somos

levados a nos enxergar não como algo sólido que permanece, mas como um padrão que

se perpetua. Temos que necessariamente nos transformar para que possamos conservar

nossa essência. Através da tecnologia, que nos permitiu enxergar para além da

capacidade dos nossos olhos, pudemos compreender que nosso corpo é, na verdade,

um fluxo perene de energia “dançando” junto com o ambiente que o encerra.

A cada instante, montantes de células morrem e se decompõem, ao mesmo

tempo em que incorporamos moléculas do ar e dos alimentos para produzir novas

células, utilizando a energia do Sol e dos outros seres para fazer movimentar uma

fábrica química autoperpetuante, num amálgama de trilhões de relações celulares

simultâneas.

Mas, de fato, ao contrário do tornado, do redemoinho e da fogueira, que, sem

nenhuma reação, encerram suas atividades no instante em que lhes falta a energia

motriz provida pelo ambiente, os seres vivos tomam caminhos, assumem escolhas,

intuem estratégias de preservação e agem organizadamente no sentido de evitar o

equilíbrio termodinâmico, que se traduz no fenômeno da morte.

Foi nesse ponto que Humberto Maturana e Francisco Varela intuíram que algo

de comum a todos os seres vivos se estabelecia. Ao constatarem que existe, nos seres

vivos, um ímpeto de perpetuação, a busca por estabilidade em meio às flutuações, a

criatividade na produção de novas formas de estruturação, Maturana e Varela

identificaram a vida nas formas autodelimitadas que continuamente especificam e

produzem sua própria organização através da produção de seus componentes, sendo

sua própria organização a variável que é mantida constante.5

Auto-organizadas, as formas vivas criam a si mesmas e se realizam

existencialmente como torrentes de ordem em estruturas que se dissipam na medida

Page 36: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

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em que incorporam novas substâncias e montantes de energia, sendo suas relações de

produção geradas recursivamente pelos componentes que a produzem, num fluxo

constante que as faz assemelharem-se “a redemoinhos em um rio de águas em fluxo

incessante”.6

Um padrão de organização autoperpetuante emerge em meio ao incessante

movimento de energia que flui através de limites membranosos, visto que toda a vida é

autodelimitada, possui membrana.∗

Esse padrão, como observaram Maturana e Varela, está relacionado ao fato de

os seres vivos serem redes químicas que se fecham em estruturas metabólicas circulares

nas quais o produto é o produtor daquilo que o produz.

A partir dessa complexidade metabólica, supera-se o nível meramente químico

e penetra-se no domínio dos sistemas biológicos providos de um ímpeto auto-regulador

caracterizado por perseverança evolutiva. E a esse padrão metabólico foi atribuído o

nome Autopoiese.

Como dizem Maturana e Varela em seu marcante livro “A Árvore do

Conhecimento”,

“É claro que o fato de que os seres vivos têm uma organização não é

exclusivo deles, mas sim comum a todas as coisas que podem ser

investigadas como sistemas. Entretanto, o que lhes é peculiar é que sua

organização é tal que seu único produto são eles mesmos. O ser e o fazer

de uma unidade autopoiética são inseparáveis, e isso constitui seu modo

específico de organização”.7

Um ser autopoiético opera como uma organização circular que se abre para as

mudanças na maneira como a circularidade é mantida, mas que não permite a perda da

própria circularidade. Forma um padrão em rede, no qual a função de cada componente

é ajudar a produzir e transformar outros componentes, enquanto a circularidade global

da rede é mantida. Desse modo, toda a rede, continuamente, produz a si mesma. A

cada momento, o conjunto é produto e, ao mesmo tempo, produtor de si mesmo.

∗ Membranas parecem estabelecer um novo espaço-tempo, uma estratificação, um aninhamento de

sistemas metabólicos, que pode ser relacionada com a concepção de holarquia, observada anteriormente.

Page 37: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

35

A autopoiese, o padrão de redes autogeradoras, define a presença da vida.

Autopoiese é a autocriação e a autoperpetuação que caracteriza a vida encerrada dentro

de uma fronteira, uma membrana, qualquer que seja a natureza do ser vivo. Como diz

Francisco Varela, “o que permite definir a vida é uma organização e não os

componentes, por muito sofisticadas que sejam as propriedades enzimáticas ou

replicativas”. 8

Lynn Margulis e Dorion Sagan, em seu livro “O Que É Vida”, dissertam sobre a

autopoiese de forma eloqüente, situando o padrão autopoiético em meio aos seus

imperativos termodinâmicos, de dissipação de calor oriundo do Sol:

“… mas se a ordem interna aumentada é a da vida, então, havendo

acesso do sistema a uma fonte de energia e ao tipo certo de matéria

(nutrientes), ela se manterá indefinidamente. Essa é a autopoese (sic). A

autopoese é o que acontece quando um sistema químico autodelimitado

– baseado (…) em ácidos nucleicos e proteínas de moléculas longas –

atinge um ponto crítico e não pára mais de efetuar o metabolismo”.9

A tendência à auto-organização é intrínseca à autopoiese. Sistemas

autopoiéticos são capazes de ordenar processos altamente complexos, gerando formas

sempre criativas no perene desafio de manter sua estrutura, escolhendo caminhos para

prevenir, indefinidamente, o momento inevitável do equilíbrio termodinâmico, a morte.

A célula é a menor estrutura autopoiética hoje conhecida, é a unidade mínima

capaz de um metabolismo auto-regulador incessante. A origem da autopoiese no

Planeta Terra, na forma de células bacterianas, ainda é obscura. No entanto, grande

parte dos pesquisadores concorda que compostos complexos de carbono, expostos de

algum modo a uma energia incessante e à transformação ambiental, e encerrados em

vesículas oleosas presentes nos oceanos primitivos, podem ter se transformado em

células delimitadas por uma membrana.10

Os seres multicelulares são feitos de células autopoiéticas e podemos identificar

tendências isomórficas nas quais estes seres complexos substituem suas células com a

mesma dinâmica auto-replicadora que as células substituem suas macromoléculas

orgânicas. Devemos compreender que, ao atribuirmos a noção de autopoiese aos seres

Page 38: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

36

multicelulares, estamos nos valendo de uma metonímia, pois a autopoiese em seu

contexto original de pesquisa referia-se ao padrão celular. De forma semelhante, a

identificação da autopoiese planetária segue o mesmo caminho isomórfico a partir do

entendimento do padrão de organização da biosfera.

A morte de uma criatura é uma forma de reciclagem semelhante ao processo

de substituição de células em um organismo multicelular e ao processo de substituição

das moléculas orgânicas em uma célula.

Ou seja, da mesma forma que uma célula substitui suas moléculas e uma

criatura constantemente substitui suas células em um processo autogerador, o sistema

planetário substitui suas criaturas, auto-regulando-se em uma superestrutura

autopoiética.

Usando a energia proveniente do Sol, a vida na Terra vem se desenvolvendo

autopoieticamente ao longo desses bilhões de anos. Quando enxergamos a vida a partir

da autopoiese, podemos dizer que a morte é ilusória. Como pura persistência

bioquímica, o padrão autopoiético terrestre, que une todos os seres vivos, nunca

morreu, é um mesmo fenômeno desde que surgiu na forma de corpos bacterianos

primitivos.

A percepção do padrão autopoiético, identificador do fenômeno da vida, na

fenomenologia da Terra como um todo, formando um sistema biogeoquímico planetário

auto-regulador é o ponto de sustentação para a compreensão do planeta como um ser

vivo. A Terra, como veremos, satisfaz a definição biológica de entidade viva como um

sistema autopoiético, uma estrutura dissipativa auto-organizadora.

Page 39: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

37

3. A AUTOPOIESE DO SISTEMA DE GAIA

No intuito de apresentar de forma convincente o Sistema de Gaia e sua

natureza viva, devemos voltar mais uma vez à década de 1960, mais precisamente ao

Laboratório de Propulsão à Jato da NASA, em Pasadena, Califórnia, no ano de 1965.

James Lovelock, químico especializado em atmosferas, havia recebido a

incumbência de fazer um estudo crítico das experiências para detecção de vida, na

época, destinadas para Marte. Naquele momento histórico, havia uma crença bastante

forte de que poderia haver vida naquele planeta.

Em seus estudos, Lovelock tinha a nítida impressão de que as experiências de

prospecção de vida em outros planetas haviam sido concebidas de forma a encontrar

vida do tipo terrestre em outros ambientes planetários. Ele se perguntava se haveria

como desenvolver um modelo que pudesse reconhecer vida em qualquer de suas

formas prováveis, evitando o equívoco de buscar formas de vida próprias da Terra em

planetas nada semelhantes à ela.

Sua proposta seria a de procurar inconsistências na composição química da

atmosfera e superfície dos planetas para verificar se havia a presença de substâncias ou

processos que seriam inexplicáveis à luz da química inorgânica. Como ele mesmo diz:

“A idéia por trás disso era que, se o planeta possuísse vida, essa vida

seria obrigada a utilizar a atmosfera como fonte de depósito de

matérias-primas e também como um conveniente meio de transporte

para seus produtos. Esse tipo de uso da atmosfera planetária seria

revelado pelas alterações na sua composição química – as quais seriam

bastante improváveis no caso de processos fortuitos sem a presença de

vida”. 1

Provido de considerável quantidade de informações, Lovelock constatou que a

atmosfera de Marte apresentava-se bastante próxima de um estado de equilíbrio

químico. Sendo assim, de acordo com sua teoria, Marte era um planeta com poucas

probabilidades de possuir vida.

Page 40: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

38

Para corroborar este prognóstico, seria necessário a utilização da mesma

metodologia em um planeta com vida. Naturalmente, o único ao seu alcance era a

própria Terra.

James Lovelock então montou uma experiência com um telescópio

infravermelho ficticiamente postado em Marte. Esse instrumento, voltado para a Terra,

teria facilmente descoberto que a atmosfera do nosso planeta apresenta uma

composição instável, cuja coexistência de dois gases reativos – metano e oxigênio –

seria impossível a partir das matérias-primas disponíveis e com a utilização da energia

solar.

Portanto, deveria haver algum processo na superfície da Terra capaz de

agregar a seqüência de intermediários químicos instáveis e reativos que proporcionasse

tal composição atmosférica, e esse processo provavelmente seria a vida.

Dessa forma, James Lovelock comprovou a eficácia de seu método,

proporcionando uma relação consistente entre as composições químicas atmosféricas e

o fenômeno da vida.

Sugerida a inexistência de vida em Marte, como era de se esperar, Lovelock

acabou desempregado e voltou para a Inglaterra, em 1966, acompanhado de um

questionamento que não saía de sua mente: como é que a Terra mantém uma

composição atmosférica tão constante se esta é composta de gases altamente reativos?

Diante de tão intrigantes evidências, surgiu, em seu pensamento, as primeiras

imagens de um biossistema planetário auto-regulador:

“Foi então que comecei a imaginar que talvez o ar não fosse apenas um

meio ambiente para a vida, mas também uma parte da própria vida. Em

outras palavras, parecia que a interação entre a vida e o ambiente, da

qual o ar é uma parte, era tão intensa que o ar poderia ser considerado

como uma pele de gato, ou o revestimento de um ninho de vespas: sem

vida, mas feitos por seres vivos para suportar um dado ambiente”. 2

James Lovelock estava diante de uma entidade de abrangência planetária, com

uma poderosa capacidade de regular seu clima e sua composição química. Aos poucos,

Page 41: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

39

foi compreendendo que a hipótese de um sistema planetário auto-regulador significava

uma ruptura radical com a ciência convencional.

William Golding, prêmio Nobel de Literatura, era vizinho de Lovelock naquele

período. Em um passeio a pé, quando refletiam sobre tal hipótese, Golding sugeriu o

termo Gaia, referente à denominação da Terra pelos gregos antigos em seus mitos de

criação, para representar o sistema hipotético que Lovelock estava concebendo.

A hipótese de Gaia surgia como uma alternativa à sabedoria convencional que

via a Terra como um planeta sem vida, feito de rochas, atmosfera e oceanos

inanimados, meramente habitado pela vida. Gaia era “um verdadeiro sistema,

abrangendo toda a vida e todo o seu meio ambiente, estreitamente acoplados de modo

a formar uma entidade auto-reguladora”.3

Lovelock publicou a primeira versão extensa de sua idéia em um artigo

intitulado “Gaia as Seen Through the Atmosphere”, em 1972. Logo depois, Lovelock se

encontrou com Lynn Margulis, microbiologista norte-americana, que estava estudando

processos que Lovelock precisava entender para analisar como a Terra poderia regular

sua temperatura e composição de sua atmosfera, envolvendo organismos da biosfera.

Lovelock e Margulis iniciaram uma longa e proveitosa colaboração que resultou

na Teoria de Gaia plenamente científica. O conhecimento de Lynn Margulis acerca das

origens biológicas dos gases atmosféricos e as concepções de Lovelock provenientes da

química, da termodinâmica e da cibernética, reunidas em uma odisséia intelectual ao

longo da década de 1970, foram capazes de identificar, gradualmente, uma complexa

rede de laços de realimentação, a qual criaria a auto-regulação do sistema planetário.

Interligando plantas e rochas, animais e gases atmosféricos, microorganismos e

oceanos, um sistema altamente complexo de laços de realimentação regula o clima da

Terra, a salinidade dos oceanos e outras importantes condições planetárias. Segundo

Margulis, “a vida, efetivamente, fabrica e modela e muda o meio ambiente ao qual se

adapta. Em seguida, esse ‘meio ambiente’ realimenta a vida que está mudando e

atuando e crescendo nele. Há interações cíclicas constantes”.4

A Teoria de Gaia é uma teoria sistêmica em seu cerne. Reúne geologia,

microbiologia, química atmosférica, e desafia a visão científica tradicional que encara

essas disciplinas como compartimentos do conhecimento separados por natureza.

Page 42: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

40

Ao compreendermos esses laços de realimentação constantes do Sistema de

Gaia, em que o magma do interior da Terra é transformado ininterruptamente em

crosta, a crosta é transformada em micróbios e organismos, posteriormente estes seres

vivos voltam a ser crosta e a crosta transforma-se novamente em magma para

completar o ciclo constante da autocriação, percebemos claramente que os domínios da

Geologia e da Biologia não podem estar separados. Toda parte ou aspecto geológico da

Terra que podemos encontrar são produtos da atividade da vida do Sistema de Gaia e

vice-versa.

Nosso planeta jamais foi um lar pronto para se usar, no qual as criaturas vivas

se desenvolveram e ao qual se adaptaram. Rochas foram constantemente rearrumadas

e se tornaram criaturas vivas, assim como as criaturas vivas rearrumaram rochas,

transformando-as em habitats propícios, como também se decompuseram em rochas,

transformando-se no próprio habitat. Como diz Elisabet Sahtouris,

“Vida não pode ser parte de um ser vivo. A vida é a essência ou o

processo de todo o ser vivo (…) Vida é processo de corpos, não de uma

de suas partes, e (…) sustentamos que o mesmo se aplica à Terra-Gaia

(sic) – que a vida é seu processo, seu tipo particular de organização

operante, e não uma de suas partes. Podemos dizer que os organismos

existentes em Gaia criam seus ambientes e são criados por eles, no

mesmo sentido em que dizemos que as células criam seus próprios

ambientes e são criadas por eles em nosso corpo”.5

Pode-se então afirmar que o equilíbrio certo de elementos químicos e ácidos

nos mares e solos e mesmo o equilíbrio da temperatura em toda a Terra – isto é, todas

as condições necessárias para a vida em nosso planeta – são regulados dentro do

planeta como o são em nosso corpo.

Assim, podemos identificar, com bastante clareza, uma rede global de

processos de produção e de transformação que nos oferece evidências da natureza

autopoiética do Sistema de Gaia.

Page 43: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

41

Para verificar se o Sistema de Gaia pode realmente ser descrito como uma rede

autopoiética, vamos aplicar alguns critérios de identificação da autopoiese em

organismos vivos: autodelimitação, autogeração e autoperpetuação.∗

Em primeiro lugar, como em qualquer sistema autopoiético, Gaia é

autolimitada. Como vimos, a atmosfera da Terra é criada, transformada e mantida pelos

processos metabólicos da biosfera, assim como podemos verificar nas membranas

celulares, que são criadas, transformadas e mantidas pela redes químicas encerradas

em seu interior.

Maturana e Varela (2001) afirmam que “a membrana celular desempenha um

papel mais rico e diversificado do que uma simples linha de demarcação espacial de um

conjunto de transformações químicas, porque participa da célula tal qual os outros

componentes”. A atmosfera terrestre comporta-se da mesma maneira, influindo em

todos os processos de regulação planetária.

O Sistema de Gaia é também claramente autogerador. O metabolismo

planetário transforma substâncias inorgânicas em matéria orgânica viva, e também as

decompõe novamente em substratos não-vivos, unificando biosfera, solos, mares,

atmosfera em um complexo sistema de realimentação no qual todos os componentes da

rede, incluindo aqueles de sua fronteira atmosférica, são produzidos pela própria rede e

seus processos internos. Assim como ocorre em todo sistema autopoiético, seus

componentes apresentam-se como redes químicas que se fecham em estruturas

metabólicas circulares nas quais o produto é o produtor daquilo que o produz.

Nota-se que as bactérias desempenham um papel crucial nos processos auto-

reguladores terrestres, influindo na velocidade das reações químicas, atuando como um

equivalente biológico das enzimas em uma célula autopoiética.

Por fim, o Sistema de Gaia é, evidentemente, autoperpetuante. Todos os

componentes da rede metabólica planetária, incluindo os organismos da biosfera, os

oceanos, os solos e o ar, são continuamente repostos pelos processos de produção e

transformação do planeta. Durante a longa história evolutiva da vida a biosfera se

deparou com obstáculos e crises de grande magnitude, porém, sobreviveu, continuando

a regular as condições para a vida na Terra e a desencadear o imperativo evolutivo

∗ Critérios definidos por Gail Fleischaker, citados em CAPRA (1997), pág. 173 e ss.

Page 44: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

42

autoperpetuante, transcendendo formas e aumentando sua complexidade através de

adaptação e criatividade.

Miríades de bactérias, vivendo no solo, nas rochas e nos oceanos, bem como

no interior de todas as plantas e animais, regulam continuamente a vida na Terra.

Entende-se a rede autopoiética planetária criando-se e sendo criada por uma

abrangente teia microbiana em evolução.

A partir dessa perspectiva, parece a Terra um terceiro nível holárquico

autopoiético, assemelhando seu padrão metabólico de substituição química autocriativa

e autoperpetuante com aqueles apresentados por células – primeiro nível – e

organismos multicelulares – segundo nível.

A visão científica do planeta como um sistema vivo auto-regulador, contudo,

não é recente. James Hutton, considerado o pai da Geologia, ainda no Século 18

chamou a Terra de um superorganismo vivo e afirmou que a disciplina mais apropriada

para estudá-la seria a fisiologia. Vladimir Vernardsky, no início do Século 20, também

enxergava a natureza viva da Terra, concebendo a vida como uma “dispersão de

rochas”, um processo geoquímico do planeta como um todo.6

Contudo, nem Hutton e nem Vernardsky foram capazes de influenciar a visão

mecanicista do planeta que preponderou nos últimos séculos, atribuindo à Terra as

características de uma estrutura inerte, um mero palco passivo para o fenômeno da

vida.

A Teoria de Gaia de Lovelock e Margulis vem, aos poucos, transpondo os

obstáculos epistemológicos e a forte resistência do “establishment” científico,

produzindo vasto material de pesquisa e impressionando com o número cada vez maior

de cientistas e filósofos a considerarem metáforas não-mecânicas de sistemas naturais

como úteis para a interpretação dos processos geobiológicos do planeta.

Elisabet Sahtouris, no epílogo de seu abrangente livro “A Dança da Terra”,

argumenta, de forma inequívoca, sobre uma força cultural conservadora a impedir a

incorporação da visão do planeta vivo no cerne da atividade científica:

“Algum dia – se nossa espécie sobreviver, como continuo a ter

esperança de que aconteça –, acredito que a história registrará que o

Page 45: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

43

reconhecimento de Gaia como um sistema autopoiético, um planeta

vivo, um organismo terrestre, foi combatido no Século 20 por

praticamente as mesmas razões por que foi combatida a teoria

heliocêntrica de Copérnico nos Séculos 16 e 17: porque viola crenças

fortemente enraizadas e ameaça interesses adquiridos. Durante a

Renascença, o homem não queria renunciar à idéia de que era a

criatura mais desenvolvida e mais amada por Deus, e que Deus, por

conseguinte, o encarregava de gerir a mais importante propriedade

imobiliária em todo o universo – nosso planeta, no seu centro exato.

Tampouco pode ele agora aceitar que não é o auge da evolução, (...) a

espécie apropriada para dirigir tudo mais – até mesmo que é a meta

“antrópica” do universo”.7

O que se buscou fazer neste capítulo foi fornecer uma sustentação biológica da

natureza viva da Terra para iniciarmos a descrição do atual processo isomórfico ao

câncer no Sistema de Gaia. Este trabalho sustenta que a visão antropocêntrica

excessivamente yang do mundo, desenvolvida por nossa espécie nos últimos milhares

de anos, produziu um padrão deletério caracterizado por um profundo desequilíbrio

estrutural que vem solapando a saúde do planeta da mesma forma que células de um

tumor orientadas egocentricamente estabelecem sua dinâmica patológica em um

organismo humano.

Nos próximos capítulos tentaremos apresentar uma visão da realidade que

possa contribuir para a preparação dos nossos espíritos no reconhecimento desse

padrão cognitivo patogênico da espécie, de forma a catalisar o processo de criação de

uma nova cultura planetária, de uma nova ecologia do conhecimento capaz de cessar a

devastação do ambiente e fazer regenerar os combalidos tecidos da vida.

Page 46: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

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4. A METÁFORA DO CÂNCER

Ao se iniciar esta parte do trabalho, torna-se necessário delimitar os domínios

de linguagem através dos quais percorreremos a desafiadora trajetória de identificar,

dentro de uma base conceitual coerente, um padrão semelhante ao câncer no Sistema

de Gaia, propiciando um diagnóstico que permita traçarmos planos de ação de cura que

se refletirão com a reintegração das sociedades humanas ao padrão de equilíbrio

dinâmico e ao fluxo de eficiência energética que caracterizam a fenomenologia dos

sistemas naturais que compõem o superorganismo planetário.

O que se busca fazer é construir imagens reconhecíveis que permitam a

visualização da situação global a partir de um eixo biológico. Espera-se transcender o

enfoque antropocêntrico carregado de valores morais e ilustrar as condições atuais do

planeta a partir de uma perspectiva centrada no conjunto da vida, refletindo a existência

de um ser orgânico que reúne a totalidade autopoiética dos sistemas naturais em seu

sistema metabólico auto-regulador.

Para tanto, paradoxalmente, precisaremos utilizar padrões visuais que estejam

próximos da realidade humana, de forma que possamos tornar familiares questões

relativas a um sistema que apresenta uma enorme complexidade além dos nossos

habituais parâmetros cognitivos.

O Planeta Terra flutua através de escalas imensas e suas partes se inter-

relacionam de maneiras profundamente complexas. A ciência fundamentada em sua

natureza viva é nascente e ainda carece de um código de linguagem que transmita

fidedignamente a fisiologia de sua complexidade.

Nesse contexto, a estrutura da linguagem a ser utilizada neste trabalho deverá

buscar analogias que nos aproximem de uma síntese, de uma compreensão integrativa

que nos faça perceber nossa presença como hólon integrante do Sistema de Gaia.

Sugere-se que um caminho eficiente nesse sentido seja a identificação de

padrões semelhantes em sistemas de complexidades ou linguagens diferentes, tal como

proposto por Ludwig Von Bertalanffy, em sua Teoria Geral dos Sistemas.

Bertalanffy, citado em ESTEVES DE VASCONCELLOS (2002), percebeu que “o

total de acontecimentos observáveis apresenta uniformidades estruturais que se

manifestam por traços isomórficos (…) nos diferentes níveis ou domínios”.1 Tais

Page 47: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

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analogias entre sistemas distintos permitem, segundo ele, “uma estrutura teórica

psicofisicamente neutra” que identifica princípios universais, enfocando padrões

aplicáveis à ciência dos “todos organizados”.2

Em suma, este trabalho é uma busca de isomorfismos, a busca por uma

linguagem unitária que possa gerar compreensão de processos similares em sistemas de

níveis holárquicos diferentes.

Tal procedimento parece se assemelhar à atividade cognitiva em sua dimensão

poética de geração de metáforas. Quando identificamos isomorfismos, estamos, em

última instância, produzindo metáforas que aproximem nosso processo de percepção do

mundo àquele fenômeno observado. Vivemos atualmente um fluxo que retroalimenta

uma inércia autodestrutiva produzida por um sentimento de incapacidade de nos

livrarmos da avalanche em curso.

A intenção deste trabalho se legitima na criação de uma metáfora capaz de

comover os espíritos humanos. Comover no sentido de “co-mover”, ou seja, fazer o

conjunto humano mover-se para fora da correnteza social que nos leva a um

“sumidouro cultural”.∗ A ciência contemporânea de essência organicista vale-se

imensamente dos recursos metafóricos para tornar identificáveis as miríades de padrões

que sustentam a complexidade dos sistemas naturais. Como argumenta James Lovelock,

“(…) quaisquer modelos que possamos construir da natureza serão, no

fundo, metafóricos, no sentido em que começa com alguma imagem ou

fórmula familiar para nós humanos e que é usada para representar as

complexidades da natureza em maneiras simples, compreensíveis e

úteis (…) Sinto-me cada vez mais impressionado com cientistas e

filósofos que consideram metáforas não-mecânicas de sistemas naturais

como úteis para interpretar a Teoria de Gaia”.3

∗ Na Matemática dos Sistemas Dinâmicos, sumidouro é um lugar onde uma linha de fluxo degenera,

tornando-se um único ponto para o qual todos os pontos vizinhos fluem (…) Assim, o próprio sumidouro

representa um estado estacionário do sistema”. Ver STEWART (1991), pág. 109.

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46

James Lovelock segue dizendo que “metáfora alguma deve ser confundida com

a realidade, e talvez uma grande variedade de metáforas seja uma apólice de seguro

contra a tentação de assim agir”.4

Esse posicionamento filosófico é de grande importância para a compreensão

adequada do presente trabalho. É de extrema necessidade esclarecer o propósito da

construção da metáfora do câncer planetário como um instrumento cognitivo na

construção de planos de ação de transformação cultural e criação de uma nova ecologia

do conhecimento, mas, em nenhuma hipótese, essa ação deve ser vista como a

elaboração de uma verdade objetiva.

Em qualquer experiência artística, há uma pluralidade de significados intrínseca

ao fazer poético e essa perspectiva pode, guardadas as devidas exigências do método

científico, ser aplicada quando se constata que existem variadas formas e modelos

capazes de representar a realidade do sistema observado com graus semelhantes de

autenticidade e eficácia.

Poderíamos apresentar a humanidade atual como um adolescente em crise, tal

como fez Elisabet Sahtouris em seu livro “A Dança da Terra”, ou mesmo o cérebro

global recém-formado, tal como descreveu Peter Russell em seu livro “O Despertar da

Terra”. Ambas, dentre outras, são metáforas oportunas e refletem, sob um determinado

ponto de vista, o significado da evolução humana.

Opta-se neste trabalho pela identificação de um padrão patológico, pois se

acredita que o câncer é uma das poucas metáforas capazes de trazer à consciência

coletiva humana os patamares mortíferos de autodestruição ocasionados pelos modelos

políticos e econômicos praticados na atualidade.

O câncer faz reverberar nos sentimentos humanos uma realidade bastante

próxima, presente no dia-a-dia das famílias de todos os povos, encadeando reflexões

existenciais profundas. É capaz de transpor barreiras cognitivas recorrentes no processo

de esfacelamento cultural em curso e integrar os diversos fragmentos da sociedade

humana em uma perspectiva de cura.

Apesar de sua natureza maligna, mortífera e implosiva, atualmente sabe-se que

o diagnóstico precoce, o reconhecimento emocional da enfermidade e a incorporação da

esperança de cura fazem os pacientes de câncer apresentarem significativas taxas de

superação efetiva da doença, hoje em torno de 30 a 40%.5

Page 49: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

47

Uma pessoa que se cura do câncer usualmente vivencia um extraordinário salto

qualitativo de existência, um ponto de mutação, tal como chamou o psicoterapeuta

Lawrence LeShan. Seu livro “O Câncer como Ponto de Mutação” pauta-se em 35 anos

de vivências com doentes de câncer cujas experiências de cura são valiosas lições

aplicáveis à nossa realidade como espécie.

Os processos de cura do câncer são experiências emocionais intensas, férteis, e

ressoam na contemporaneidade, um momento histórico que, segundo cientistas e

místicos, é a iminência de grandes transformações em níveis cosmológicos e espirituais.

Este trabalho alimenta-se da convicção de que se, nos próximos anos, ocorre

um reconhecimento emocional da doença e o desenvolvimento de planos de ação que

estimulem a perspectiva de autocura em nossas comunidades, poderemos empreender

um processo de superação da enfermidade com grandes chances de êxito.

O câncer, contudo, avança rapidamente, no ritmo da devastação ambiental. A

esperança que move este trabalho é difundir a percepção do diagnóstico da doença

como ponto de partida para o processo de cura, uma condição inicial para que tal

processo decorra. O quanto antes reconhecermos emocionalmente a doença, maior o

potencial de cura intrínseco às nossas comunidades.

Da mesma forma que um ser humano que desenvolveu um tumor não terá

chances de restauração da saúde se o câncer não for diagnosticado, o mesmo, sustenta-

se, pode ser aplicado no contexto da totalidade humana. O tempo torna-se escasso na

medida em que os tecidos da vida são assolados e o nosso “capital natural” ∗ é

consumido obsessivamente.

Parece improvável que se faça emergir um espírito de cura se não nos

posicionarmos biologicamente dentro do Sistema de Gaia e possamos agir

conscientemente na transformação dos modelos sociais.

A compreensão da natureza cancerosa dos nossos sistemas econômicos e

políticos pode fornecer um arcabouço cultural que mobilize todo o “corpo da

humanidade”, como cunhou Sahtouris6, em direção à restauração do senso de

∗ “O capital natural pode ser encarado como a soma total dos sistemas ecológicos que sustentam a vida (…)

Algo difícil de ser visto porque é a própria lagoa em que nadamos e, tal qual os peixes, nós não temos

consciência de estarmos na água”. Cf. HAWKEN et al (2002), pág. 141.

Page 50: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

48

holonomia perdido com a cultura antropocêntrica excessivamente yang desdobrada nos

últimos milhares de anos.

O câncer é um desequilíbrio de todo o sistema. As células cancerosas são

reflexos aparentes de um processo que é estrutural. Mais do que identificar quais são as

células cancerosas e por que elas se tornaram malignas, o caminho da cura passa por

reconhecer a enfermidade, compreender-se enfermo, assumir a participação no

processo em curso e mobilizar-se para a cura.

Nos próximos parágrafos vamos aprofundar a compreensão dessas metáforas.

Procuraremos entender a dinâmica da enfermidade para extrair daí o real potencial de

cura que é gestado no interior desse desafio biológico.

A expectativa é que o “diagnóstico” do câncer não faça desabar nossa estrutura

já abalada, mas gere uma catalisação de força de reação e mobilize todo o organismo

planetário em direção à superação do distúrbio.

De certa forma, enxergamos uma analogia com o que acontece quando vamos

ao médico e recebemos a confirmação do câncer: ou sucumbimos na angústia do

desespero, ou somos tomados por sentimentos de revitalização e convicção, pois a

partir de então sabemos que a cura depende da nossa própria esperança e, com a

realidade trazida à tona, sabemos agora qual caminho seguir.

Page 51: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

49

5. A DINÂMICA DO TUMOR

Compreendida a linguagem a ser utilizada neste trabalho, passemos agora para

o capítulo em que a doença em si será abordada, de forma a delinearmos a sua

presença em nossos padrões sociais e ecológicos.

Pois, o que é o câncer? No imaginário popular podemos identificá-lo

representado por um invasor poderoso capaz de destruir o corpo hospedeiro. Tal

imagem da enfermidade é, de fato, bastante difundida, embora não corresponda à

realidade.

Um câncer parece começar com células que contêm informações genéticas

modificadas através de processos de replicação defeituosos. Não se sabe ao certo como

se dão as alterações no DNA da célula, mas hoje se pode afirmar que o câncer é uma

doença genética.

Seja através de percauços bioquímicos aleatórios, seja através de ataque ao

DNA da célula por um carcinógeno – tais como alguns vírus, a nicotina, o álcool,

radiações, etc – o fato é que a célula modificada se torna incapaz de cumprir as funções

para as quais ela se constitui.

As mutações genéticas parecem afetar vários tipos de genes. Tais

transformações do DNA promovem mudanças de comportamento das células que

implicam no desenvolvimento e concretização de objetivos centrados em si próprias, em

desconsideração ao equilíbrio dinâmico do organismo do qual fazem parte. Entre essas

mudanças de atitude das células cancerosas, podemos identificar seis particularidades

fisiológicas capazes de caracterizar o processo cancerígeno em qualquer um dos mais de

cem tumores diferentes conhecidos atualmente:1

i. Células normais usualmente esperam por uma mensagem externa antes de

iniciar uma divisão. As células cancerosas geralmente simulam suas próprias

mensagens pró-crescimento.

ii. Células cancerosas ignoram o comando de bloqueio da divisão celular enviado

pelos tecidos adjacentes comprimidos pela expansão do tumor.

iii. Células saudáveis possuem um sistema de morte endógena inevitável, natural e

necessária, da qual dependem a normalidade dos corpos multicelulares,

Page 52: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

50

denominada apoptose. Assim como a menstruação e a troca de pelagem, a

apoptose é natural. Os corpos humanos precisam dessa morte celular para viver.

As células cancerosas, contudo, ignoram este sistema e lutam para permanecer

vivas a todo custo.

iv. Tumores precisam de oxigênio e nutrientes para seguirem crescendo. Células

cancerosas são capazes de persuadir os vasos sanguíneos próximos a

construírem a infra-estrutura necessária para sobreviverem. Assumem uma

postura de adequarem o meio a elas e não o contrário, como seria saudável, de

elas se adequarem ao ambiente corpóreo.

v. Células saudáveis possuem um limite de crescimento. Não podem se dividir mais

do que em torno de setenta vezes, suficiente para sustentar uma pessoa por até

um século de vida saudável. As células cancerosas se reproduzem

indefinidamente.

vi. Algumas células com características cancerígenas especiais adquirem a

habilidade de se destacar da massa inicial, flutuar através da circulação, e iniciar

uma nova colônia em um órgão diferente de onde se originaram.

Ao refletirmos sobre essas características das células cancerosas, podemos

identificá-las isomorficamente no cerne do comportamento da humanidade dentro do

Sistema de Gaia. Quando fazemos esses comparativos, devemos ter em mente que

estamos lidando com sistemas de complexidades muito diferentes e, por isso, nossa

atenção não deve estar focada nos componentes específicos, mas nos padrões refletidos

na totalidade do sistema. Isso significa que os processos são semelhantes, embora as

estruturas sobre as quais operam sejam de natureza distinta e, conseqüentemente, as

variáveis em questão podem até mesmo ser qualitativa e quantitativamente diferentes.

Vejamos correspondentes sistêmicos do processo humano às particularidades

identificadas nas células cancerosas:

i. Células cancerosas: Células normais usualmente esperam por uma

mensagem externa antes de iniciar uma divisão. As células cancerosas

geralmente simulam suas próprias mensagens pró-crescimento.

Page 53: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

51

Humanidade: Nos últimos séculos, a sociedade humana passou por um

processo frenético de crescimento populacional, apesar de todos os esforços

culturais para reprimir o impulso reprodutivo. Apenas no Século 20, os seres

humanos passaram de três bilhões para seis bilhões de indivíduos, e seguimos

aumentando nossas populações, principalmente nos países cuja pobreza é

endêmica.

A palavra que mais se houve em nossa perspectiva social é “crescimento”.

Simulamos mensagens pró-crescimento, do tipo “precisamos de crescimento

econômico para prover de nutrientes o crescimento das populações”, mesmo que

a situação do ambiente não comporte mais crescimento.

É oportuno salientar a diferença entre crescimento e desenvolvimento, no âmbito

humano, através das palavras do cancerologista sueco Karl Henrik-Ròbert:

“’Crescimento’, da maneira como eu entendia, significava um aumento

do uso de recursos limitados acompanhado da correspondente emissão

de detritos, ao passo que ‘desenvolvimento’ significava uma melhora da

condição humana, incluindo saúde, educação, informações, sabedoria,

liberdade e possibilidade de amar. O crescimento físico está

inerentemente limitado, mas o desenvolvimento pode continuar

indefinidamente – o que é uma distinção importante (…) Em sistemas

integrados de alto desempenho, o crescimento material continuado

torna-se contraproducente em relação ao desenvolvimento. Por isso, os

sistemas sustentáveis têm mecanismos próprios para reduzir a

velocidade do crescimento e acabar mantendo-o preso a um estilo

controlado. Se esse mecanismo ‘inteligente’ não estiver presente nos

sistemas em crescimento, então, a exemplo das bactérias que se

multiplicam nos recipientes de teste dos laboratórios, o único resultado

além de um determinado ponto de crescimento exponencial será a

morte súbita e a extinção (as bactérias não morrem de fome, mas das

próprias toxinas). Isso também se aplica ao caso das células de câncer,

Page 54: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

52

que se multiplicam sem se desenvolver. Finalmente o tumor ameaça o

sistema do qual se alimenta (como acontece entre as bactérias, a

ameaça ao hospedeiro geralmente não decorre da competição por

nutrientes, mas dos efeitos colaterais do crescimento do tumor). O

mesmo se daria com o crescimento econômico? A expansão global dos

gases causadores do efeito estufa e da degradação do ozônio pareciam

indicar que esse era o caso”.2

ii. Células cancerosas: Células cancerosas ignoram o comando de bloqueio da

divisão celular enviado pelos tecidos adjacentes comprimidos pela expansão

do tumor.

Humanidade: Atualmente é inconcebível para qualquer governo ou empresa

assumir uma postura contrária ao crescimento. O imperativo social é crescer,

independentemente se o ambiente suporta ou não este crescimento. Calcula-se

em 20% o déficit da resiliência do planeta, ou seja, a incapacidade dos

ecossistemas de regenerarem-se através dos processos cíclicos de reposição

biológica primária. Esse déficit, que expõe claramente o desequilíbrio das práticas

econômicas humanas, cresce a uma taxa de 2,5% ao ano.3 Mesmo assim, apesar

das evidências de um colapso promovido pelos modelos econômicos adotados, a

humanidade segue obsessivamente enfocando o crescimento em todos os

sentidos, ignorando os comandos de interrupção do fluxo expansivo que chegam

através de sinais de exaustão dos ecossistemas pressionados pela ação de

arruinamento impetrada pelo sistema econômico da humanidade.

iii. Células cancerosas: Células saudáveis possuem um sistema de morte

endógena inevitável, natural e necessária, da qual dependem a normalidade

dos corpos multicelulares, denominada apoptose. Assim como a menstruação

e a troca de pelagem, a apoptose é natural. Os corpos humanos precisam

dessa morte celular para viver. As células cancerosas, contudo, ignoram este

sistema e lutam para permanecer vivas a todo custo.

Page 55: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

53

Humanidade: As características da nossa cultura permitem um paralelo preciso

entre a desativação da apoptose nas células cancerosas e a obsessão dos seres

humanos em se manterem vivos a qualquer custo. Como nos diz Capra,

“A falta de espiritualidade, que se tornou característica da nossa

moderna sociedade tecnológica, reflete-se no fato de a profissão

médica, à semelhança da sociedade como um todo, negar a morte (…)

A antiqüíssima arte de morrer deixou de ser praticada em nossa cultura,

e o fato de ser possível morrer com boa saúde parece ter sido

esquecido”.4

Atualmente podemos verificar um número muito grande de seres humanos

debilitados por doenças e pela própria idade avançada, mas, salvo raríssimas

exceções, o procedimento usual é prolongar a vida o máximo possível. A morte

endógena, a “arte de morrer”, análoga à apoptose celular, deixou de prevalecer.

Essas constatações atingem um ápice quando entendemos que a eutanásia, a

prática pela qual se busca abreviar, sem dor ou sofrimento, a vida de um doente

reconhecidamente terminal, é considerada um crime em grande parte dos países.

iv. Células cancerosas: Tumores precisam de oxigênio e nutrientes para

seguirem crescendo. Células cancerosas são capazes de persuadir os vasos

sanguíneos próximos a construírem a infra-estrutura necessária para

sobreviverem. Assumem uma postura de adequarem o meio a elas e não o

contrário, como seria saudável, de elas se adequarem ao ambiente corpóreo.

Humanidade: Assim como as células cancerosas adaptam o ambiente às suas

demandas de oxigênio e nutrientes, a sociedade humana vem fazendo do

planeta um recipiente de recursos para sustentar seu processo de expansão

obsessiva. Da mesma forma que as células cancerosas impõem a produção de

vasos sanguíneos para alimentá-las, os seres humanos retalham a superfície do

planeta, abrem estradas por todas as partes, interrompem corredores ecológicos,

desenvolvem monoculturas que sulcam a terra e devastam a diversidade

Page 56: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

54

biológica, constroem barragens gigantescas e desviam rios de seu curso natural,

abrem crateras para minerar elementos economicamente úteis, desflorestam

áreas gigantescas para implementar pastagens, etc.

Os seres humanos já usam mais da metade da água potável de superfície

disponível, transformaram entre um terço e metade da superfície da Terra firme,

fixam mais nitrogênio que todos os sistemas naturais do planeta e se apropriam

de dois quintos de toda a produtividade biológica primária terrestre.5 Seguindo o

mesmo padrão de ocupação das células cancerosas, a espécie humana, ao invés

de se adequar ao ambiente, impõe uma adaptação abusiva do ambiente aos seus

propósitos antropocêntricos, enfraquecendo permanentemente os sistemas

naturais do planeta. Como diz Janine Benyus, atualmente “é a Terra que tem que

se adaptar a nós, e não o contrário”.6

v. Células cancerosas: Células saudáveis possuem um limite de crescimento.

Não podem se dividir mais do que em torno de setenta vezes, suficiente para

sustentar uma pessoa por até um século de vida saudável. As células

cancerosas se reproduzem indefinidamente.

Humanidade: A analogia entre as células cancerosas e os seres humanos no

que se refere à perda de seus limites de crescimento pode ser alcançada na

análise dos processos de formação de impérios político-econômicos. Podemos

constatar claramente a perda do senso de organicidade no crescimento excessivo

das instituições humanas, principalmente as corporações transnacionais, que não

apresentam limites de crescimento e reprodução de suas estruturas,

indiferentemente se o ambiente comporta tamanha concentração de poder

econômico. Assim como o câncer, gigantescas organizações impõem ao Sistema

de Gaia um padrão baseado na dominação e na subjugação, sorvendo com

avidez o “capital natural” do planeta, forjando lucros estéreis ao passo que todos

os demais são obrigados a subsidiar o esgotamento da saúde do organismo.

Page 57: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

55

Para ilustrar em números esse fenômeno, recorremos ao trabalho de Pat Roy

Mooney. Em seu livro “Século 21 – Erosão, Transformação Tecnológica e

Concentração do Poder Empresarial”, ele faz uma apresentação contundente de

“como as ferramentas bio e nanotecnológicas manipulam a matéria, se tornam

cada vez mais potentes e vão ficando cada vez mais concentradas nas mãos de

uma elite empresarial que luta por dominar o resto do planeta, à medida que se

erodem os fundamentos básicos da vida”.7

Para termos uma idéia desse processo de concentração patológica dos recursos,

basta verificarmos que, há 20 anos, nenhuma das 7.000 empresas de sementes

de maior peso no mundo tinha uma porção identificável do mercado comercial de

sementes. Hoje, as 10 principais empresas dominam um terço do mercado. Há

20 anos, as 20 maiores indústrias farmacêuticas tinham cerca de 5% do

comércio mundial de medicamentos receitados. Hoje as dez maiores empresas

controlam mais de 40% do mercado. Há 20 anos, 65 empresas de química

agrícola competiam no mercado mundial. Hoje, 9 companhias detêm

aproximadamente 90% das vendas de pesticidas. Noventa por cento das

patentes de tecnologias e produtos novos são controladas por transnacionais. A

começar este novo milênio, as 200 principais empresas do mundo representam

28% da atividade econômica global; as 500 maiores representam 70% do

comércio mundial e as 1.000 maiores controlam mais de 80% da produção

industrial do mundo.8 Este processo de concentração está em curso, apresenta

uma curva ascendente e não dá demonstrações de conceber um limite de

crescimento e reprodução de suas estruturas.

vi. Células cancerosas: Algumas células com características cancerígenas

especiais adquirem a habilidade de se destacar da massa inicial, flutuar

através da circulação, e iniciar uma nova colônia em um órgão diferente de

onde se originaram.

Humanidade: A capacidade que algumas células têm de colonizar outros órgãos

e induzi-los à mesma dinâmica cancerígena pode ser identificada no universo

Page 58: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

56

humano com a propagação, nestes últimos séculos, de um arcabouço cultural

advindo das civilizações imperiais antigas, primeiramente agrupadas em território

europeu, que vem esmagando as culturas tradicionais e impondo o modelo de

expansão obsessivo, antropocêntrico, distorcido em suas bases holonômicas,

desequilibrado em seus fluxos de energia. Assistimos à dilatação de uma cultura

“pasteurizante” via canais de comunicação de massas de linguagem alienante e

com estruturas publicitárias bilionárias. Veículos controlados por corporações

transnacionais concentradoras de recursos, cuja organização tem a capacidade

de levar aos mais distantes núcleos comunitários humanos as mensagens de

estímulo à cultura de afastamento à ordem cíclica natural, de apego aos

processos lineares de acúmulo de recursos, de desperdício, consumo supérfluo e

fragmentação competitiva das comunidades, tal como células cancerígenas

criando metástases por todo o corpo.

Estes isomorfismos, tomando como base as características biológicas das

células cancerosas, têm por objetivo aprofundar os paralelos entre o câncer humano e o

câncer planetário, transcendendo as analogias cunhadas no âmbito das ciências

humanas e aproximando a reflexão das ciências naturais. Decerto que tais isomorfismos

carecem de maior sustentação na fisiologia, mas essa exposição, em âmbito preliminar,

dá mostras que ambos os fenômenos apresentam íntimas relações sistêmicas.

Outro viés para demonstrar tais relações sistêmicas entre o câncer humano e o

fenômeno de desequilíbrio por que passa o planeta atualmente pode ser encontrado na

obra do austríaco Wilhelm Reich. Reich, ao longo da década de 1940, empreendeu um

aprofundado estudo sobre a natureza do câncer, apresentando suas conclusões com um

estilo admirável e com clareza e precisão em sua obra intitulada “Biopatia do Câncer”,

de 1948.

Reich atribui um papel fundamental à emoção, carência sexual e aos bloqueios

caracteriais∗ no desenvolvimento da doença, cujas implicações serão analisadas no

∗ Wilhelm Reich foi um cientista que gerou grande polêmica durante sua vida, expondo de forma incisiva as

mazelas orgânicas do ser humano causadas pela repressão instintiva e o bloqueio das funções primordiais

da sexualidade pela cultura. Ele desenvolveu, ao longo de sua experiência como psicanalista, uma análise

de caráter que embasou suas modalidades de intervenção terapêutica, focando a dissipação da couraça

caracterial produzida por um notável fenômeno de defesa às agressões do mundo social repressor.

Page 59: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

57

próximo capítulo. Em sua descrição da fenomenologia do câncer como biopatia, ele

enfatiza o processo de putrefação do organismo causada pela grande quantidade de

toxinas produzidas pela desintegração dos tecidos originais e funcionamento das células

cancerosas e a crescente dificuldade do organismo de se desfazer dessas toxinas. Nas

palavras do biógrafo de Reich, Roger Dadoun,

“(…) as células cancerosas iniciam um processo de desintegração,

verdadeira putrefação em vida, que produz uma auto-intoxicação do

organismo, que logo se torna incapaz de promover a evacuação de

todos os resíduos e sucumbe. (…) O problema da terapia do câncer não

reside tanto na supressão dos tumores como na neutralização e

eliminação dos produtos da desintegração”. 9

Em seus estudos, Reich consegue demonstrar que o organismo é sufocado

pelos resíduos gerados pelo processo de desintegração tissular e funcionamento

desordenado das células cancerosas, que provocam a morte do organismo pelo acúmulo

de substância pútrida, visto que o organismo debilitado não consegue desenvolver

formas de eliminar ou neutralizar a quantidade enorme de toxinas produzidas.

Essa perspectiva se acopla às idéias do cancerologista sueco Karl Henrik

Ròbert, apresentadas anteriormente, que afirmam que as células de câncer ameaçam o

sistema do qual se alimentam não por conta da competição por nutrientes, mas pelos

efeitos colaterais do crescimento do tumor.

Por conseguinte, não é difícil relacionarmos o fenômeno de intoxicação do

organismo humano que sofre de câncer com o processo de envenenamento dos solos,

das águas e do ar causados pelo desenvolvimento civilizatório da humanidade.

Atualmente estamos despejando volumes impressionantes de substâncias

tóxicas no ambiente e a cada dia os sistemas de regulagem da Terra apresentam mais

dificuldades de neutralizar os fluxos de resíduos venenosos produzidos pelos nossos

sistemas de produção.

Para que logremos fazer uma analogia precisa entre a produção de toxinas em

um organismo canceroso e o funcionamento da sociedade humana e a produção

descontrolada de rejeitos tóxicos, inclusive nucleares, é oportuno recorrer ao livro “O

Page 60: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

58

Ponto de Mutação” que, em sua introdução, descreve o desastre ecológico em grande

escala que estamos vivendo.

Capra demonstra como a superpopulação (tal qual um tumor) e a tecnologia

industrial têm contribuído de várias maneiras para uma grave deteriorização do meio

ambiente natural, do qual dependemos completamente. Enfatiza a poluição da

atmosfera e sua ação nociva em cadeia que desestabiliza as comunidades de plantas,

animais, induzindo mudanças graves no clima global, de forma que os meteorologistas

já falam de um véu nebuloso de poluição atmosférica que envolve todo o planeta.10

Capra segue sua análise da intoxicação do Sistema de Gaia enfocando a

poluição química:

“Além da poluição atmosférica, nossa saúde também é ameaçada pela

água e pelos alimentos, uma e outros contaminados por uma grande

variedade de produtos químicos tóxicos. Nos Estados Unidos, aditivos

alimentares sintéticos, pesticidas, agrotóxicos, plásticos e outros

produtos químicos são comercializados numa proporção atualmente

avaliada em mais de mil novos compostos químicos por ano. Assim, o

envenenamento químico passa a fazer parte, cada vez mais, de nossa

vida. (…) Tornou-se claro que nossa tecnologia está perturbando

seriamente e pode até estar destruindo os sistemas ecológicos de que

depende a nossa existência”.11

Além da poluição física do ambiente natural, estamos nos deparando com um

outro tipo de poluição que contamina a mentalidade da sociedade e incita a reprodução

e a perpetuação de um mesmo padrão de pensamento gerador das distorções de

comportamento verificadas. Trata-se da poluição informacional, o excesso de atenção

nos problemas, incoerências, desgraças. E esta pode ser vista como um outro aspecto

do acúmulo de toxinas provocado pelo tumor. Peter Russell assim coloca essa questão:

“Os ensinamentos indianos resumiram isso no ditado ‘Sarvam-annam’:

‘Tudo é alimento’ – onde ‘tudo’ inclui não apenas as comidas que

comemos e o ar que respiramos, mas também o que ingerimos através

Page 61: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

59

dos sentidos. Experiências negativas, destrutivas ou agressivas terão um

efeito negativo, destrutivo ou agressivo sobre a nossa consciência. Na

realidade, nós poluímos a nossa mente tanto quanto poluímos o mundo

físico em que vivemos; e essa poluição mental pode afetar a nossa vida

tão drasticamente quanto a poluição física, se não mais”.12

Estabelecida a relação entre toxinas, poluição e câncer, seguimos com o

trabalho de delinear a enfermidade planetária. Thorwald Dethlefsen e Rudiger Dahlke,

em seu livro “A Doença como Caminho”, nos ajudam a aprofundar a compreensão das

relações sistêmicas entre o câncer em um organismo humano e o comportamento da

humanidade no Sistema de Gaia:

“(…) o corpo assiste como um número crescente de células mudam de

comportamento e, através de uma participação ativa, iniciam um

processo que por si mesmo não leva a nenhum resultado, mas que de

fato descobre seus limites no esgotamento do hospedeiro (solo

nutritivo). A célula cancerosa não é, como por exemplo as bactérias, os

vírus ou as toxinas, algo que vem de fora, pondo em risco o organismo;

ela é uma célula que até então estava a serviço do órgão e assim

atendia ao organismo como um todo proporcionando-lhe a melhor

chance de sobrevivência possível. Mas, subitamente, sua orientação se

modifica e ela abandona a identificação comum. Ela começa a

desenvolver e concretizar objetivos próprios sem a menor consideração

pelas demais células. Ela encerra sua atividade habitual, ou seja, sua

função específica dentro de um órgão, e coloca seu próprio

desenvolvimento em primeiro plano. Ela não se comporta mais como um

membro do ser vivente multicelular (…) Rompe sua união com a

comunidade celular e, a partir daí, espalha-se com rapidez e indiferença

através de uma divisão caótica, desrespeitando os limites morfológicos

(…) e construindo por toda parte seus pontos de apoio (metástases). O

que sobra da comunidade celular da qual se excluiu é usado como um

anfitrião que lhe dá de comer”.13

Page 62: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

60

Se nos apropriarmos desse trecho do livro “A Doença como Caminho” e

substituirmos algumas palavras que se referem ao ambiente celular por palavras que

representem o ambiente terrestre, chegaremos legitimamente a uma descrição do

processo de ocupação e exploração humana no planeta.

“O câncer é uma expressão da nossa época e da nossa visão coletiva de

mundo”, afirmam Dethlefsen e Dahlke. Segundo eles, nosso todo racional é igual ao da

célula cancerosa. Somos capazes de uma expansão rápida e bem sucedida, mas não

conseguimos enfrentar os problemas de abastecimento. Temos um sistema de

comunicação que nos conecta com o outro lado do mundo, mas não conhecemos nossos

vizinhos. Há uma infinidade de facilidades, mas não sabemos o que fazer com elas.

Produzimos uma quantidade incrível de alimentos, mas chegamos a destruí-los somente

para manipular os preços.

A filosofia compartilhada pela humanidade pressupõe incontestavelmente o

progresso. “Trabalhamos, fazemos experiências e pesquisas – contudo, para quê?”,

perguntam Dethlefsen e Dahlke. “Em nome do progresso! E qual será o objetivo desse

progresso? Ainda mais progresso!” Os autores trazem então uma constatação

inquietante:

“A humanidade está envolvida numa viagem sem rumo. É por isso que

tem de estabelecer continuamente novos alvos para não se desesperar.

A célula cancerosa não pode simplesmente segurar uma vela para

iluminar a cegueira e a miopia da humanidade contemporânea. Em

virtude de visarmos apenas a expansão econômica, nós usamos o meio

ambiente como fonte alimentar e anfitrião e, atualmente, constatamos

surpresos que a morte desse hospedeiro implica a nossa própria morte.

Os homens contemplam o mundo como um grande celeiro: as plantas,

os animais, as matérias-primas. Tudo existe unicamente para que os

homens possam se espalhar de forma indiscriminada e ilimitada sobre a

Terra. De onde os homens que se comportam dessa maneira tiram a

coragem e a ousadia para se queixarem do câncer? Afinal, ele não passa

de um espelho que nos mostra o nosso comportamento, nossos

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argumentos e, também, o fim do nosso caminho (…) Mas os homens

sempre quebram seus espelhos quando a imagem não os agrada! Os

homens têm câncer porque eles são um cancro”.14

Dentro da perspectiva de avaliar o ideal cego de progresso e o crescimento

econômico indiferenciado, Capra desenvolve uma profícua reflexão em torno dos

sistemas produtivos humanos, cujas medições de eficiência são capazes de evidenciar os

níveis absurdos de atritos sociais geradores de entropia – unidade relacionada com a

dissipação de energia – e dissolução dos recursos da economia em atividades

improdutivas.

A futuróloga Hazel Henderson (apud CAPRA, 1986) sublinha que a dissipação

de energia atingiu tais proporções em algumas sociedades industriais avançadas que os

custos das atividades improdutivas – manutenção de tecnologias complexas,

administração de vastas burocracias, mediação de conflitos, controle da criminalidade,

proteção dos consumidores e do ambiente, etc – absorvem uma parcela cada vez maior

do montante de riquezas de uma nação, levando a uma inflação sempre crescente.

Henderson chegou a cunhar o termo “estado de entropia” para o estágio de

desenvolvimento econômico em que os custos de coordenação e manutenção

burocráticas excedem a capacidade produtiva da sociedade, e todo o sistema soçobra

sob seu próprio peso e complexidade.15

Ao adotarem uma perspectiva ecológica e usarem conceitos apropriados para

analisar processos econômicos, os economistas se deparam com evidências de que

nossa economia, nossas instituições sociais e nosso ambiente natural estão seriamente

desequilibrados.

Um corpo enfermo, analogamente, vê seus fluxos de energia serem

arbitrariamente destinados ao tumor e à produção de mais células cancerosas que, em

última instância, são improdutivas para o sistema. O tumor exerce tamanha pressão que

gera um forte revés na dinâmica energética de todo o organismo. Acumula montantes

imensos de energia orgânica que acabam por se estagnar no processo de crescimento

indiferenciado de suas células. Enquanto isso, as demais partes do corpo padecem com

a escassez de energia e alimento em níveis sempre crescentes.

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62

Por conseguinte, podemos fazer um paralelo entre o processo de demanda

energética sempre crescente em nível celular e o processo de inflação sempre crescente

em nossa economia.

Em um corpo humano, a energia é sorvida pelo tumor para alimentar seu

crescimento desencaminhado, privando os demais órgãos de um fluxo equilibrado de

nutrientes, da mesma forma que atualmente no planeta os recursos são sorvidos por

uma máquina institucional, descomunal em sua complexidade, que faz extorquir a

produção das nações e suas populações para alimentar um progresso sem rumo que

não vê nem na exaustão dos ecossistemas seu limite de crescimento obsessivo.

Sendo assim, os fenômenos vinculados ao atual estágio da economia humana e

suas seqüelas sociais parecem relacionar-se de forma muito precisa com a “economia”

em nível celular em um corpo que sofre de câncer, conforme assinalou Fritjof Capra:

“O crescimento indiferenciado tende a caminhar de mãos dadas com a

fragmentação, a confusão e o colapso geral da comunicação. Os

mesmos fenômenos são característicos do câncer em nível celular,

sendo o termo “crescimento canceroso” muito apropriado para o

crescimento excessivo de nossas cidades, tecnologias e instituições

sociais. Como existe uma interação contínua entre indivíduos e seu meio

ambiente natural e social, as conseqüências desse crescimento

canceroso são perniciosas para homens e mulheres, assim como para a

economia e o ecossistema. O restabelecimento do equilíbrio social e

ecológico também contribuirá para melhorar a saúde no plano

individual”.16

O americano Peter Russell é outro pensador que muito contribui para a

compreensão do câncer planetário. Em seu livro “O Despertar da Terra”, Russell

identifica o câncer como um fenômeno de baixa sinergia entre as células. Segundo ele,

“Sinergia não implica em qualquer coerção ou coibição, nem surge por

um esforço deliberado. Cada elemento do sistema trabalha

individualmente para atingir seus próprios fins, que podem ser os mais

Page 65: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

63

variados. E, no entanto, eles espontaneamente agem de uma maneira

que favorece a todos, havendo assim pouco ou nenhum conflito

intrínseco”.17

Um exemplo de alta sinergia é o nosso corpo, visto que somos um

agrupamento de trilhões de células individuais, cada uma agindo em seu próprio

interesse, mas contribuindo simultaneamente para uma organização evolutiva comum.

Sinergia em um organismo é a essência da vida e está intimamente ligada à saúde. No

tecido maligno em um organismo com câncer, as células deixam de funcionar como

parte de um organismo maior e passam a se alimentar e se reproduzir às custas do

restante do corpo. Segundo Russell, as células cancerosas são células egocêntricas e,

neste aspecto, o câncer é um fenômeno de baixa sinergia.

Os antropólogos que estudam comunidades e sistemas tribais primitivos

também utilizam a idéia de sinergia para atestar quanto à participação de um indivíduo

em colaboração com sua coletividade. E em estudos antropológicos constatou-se que

grupos de alta sinergia tendem a ter poucos conflitos e agressões, seja entre membros

do grupo, ou entre um indivíduo e o grupo.18

Peter Russell avança em seu raciocínio identificando as relações de baixa

sinergia em nossa sociedade:

“A necessidade constante de manter e reafirmar um senso de identidade

proveniente da experiência – seja através da nossa busca de esforços

positivos de reforço, dos papéis que representamos, dos grupos a que

pertencemos, das crenças que defendemos, ou de algum outro processo

– leva-nos a usar o mundo para suprir e apascentar o “eu”. O resultado

é um modo de consciência exploradora. Tornamo-nos exploradores

daquilo que nos cerca, de outras pessoas e até mesmo de nossos

corpos. Nossa forma de exploração talvez seja mais sutil do que a do

rico industrial que explora operários miseráveis, mas nem por isso deixa

de ser exploração – o resto do mundo é usado a serviço da identidade.

É este modo de consciência que está no cerne da baixa sinergia da

nossa sociedade”.19

Page 66: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

64

RUSSELL (1991) empreende um exame dos padrões através dos quais nossa

dimensão egóica opera em sociedade. Ele aborda o modelo de “eu” mais comum, de

acordo com o qual a maioria dos seres humanos age e que parece estar no âmago da

nossa baixa sinergia como espécie: a concepção de ego-encapsulado, termo cunhado

pelo escritor Alan Watts, que envolve uma individualidade separada e distinta do resto

do mundo, tal como o pensar que “eu estou aqui dentro” e o “mundo está lá fora”.

Essa dimensão encapsulada do ego, proeminente em nosso sistema social, nos

proporciona senso de distinção e singularidade individual. Isso é de considerável valor,

visto que biologicamente somos organismos auto-organizadores, auto-reguladores e

autodirigidos, e a noção de um “eu” individual separado contribui para nossa autonomia

como sistemas vivos.

Além disso, esse sentimento de unicidade e o fato de nos esforçarmos para

preservar nossa individualidade e nossa singularidade fazem com que o organismo

fisiológico tenha uma chance muito maior de sobrevivência. Essa habilidade em

sobreviver torna-se mais necessária e se exaspera em um ambiente excessivamente

auto-afirmativo, expansionista e competitivo como a sociedade humana atual.

Russell, contudo, mostra que quando o ego encapsulado é tomado como o

único senso do eu, acabamos vendo o mundo apenas em termos de ‘eu’ e ‘não-eu’ e

não desenvolvemos a percepção holística de “ser o todo”. E a conseqüência direta é

criarmos nosso senso de identidade baseadas em nossas percepções, experiências e

interações com o mundo exterior e não nos basearmos em nossa própria essência

interior. Pois, afinal, supõe-se que ela não se manifesta, tendo em vista que está

“encerrada por baixo da pele”.

Nosso “eu”, portanto, provém daquilo que nos rodeia e torna-se efêmero e

transitório, tanto quanto as experiências que lhe deram origem. Sendo assim, precisa

ser continuamente mantido, alimentado, protegido, reforçado.

Boa parte da atividade humana, alicerçadas pela presença predominante do

“eu” constituído a partir de experiências exteriores, está voltada para estabelecer e

defender nossas identidades encapsuladas e, como sugere Russell,

Page 67: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

65

“O baixo grau de sinergia que observamos na sociedade pode remontar

a esse tipo de esforço. Se é interagindo com outras pessoas que

conquistamos nosso senso de identidade, precisamos que elas

reconheçam e reafirmem nossa existência (…) A vida torna-se então

uma busca incessante de reforço pessoal”.20

Se analisarmos subjetivamente a constituição do ego encapsulado até a

consolidação de uma perspectiva social de baixa sinergia é possível que nos

aproximemos da compreensão do fenômeno de gênese do câncer planetário.

Assim como Capra, Peter Russell sustenta que ambos os fenômenos, o câncer

humano e o câncer planetário, parecem estar intimamente relacionados, sendo talvez

duas facetas de um mesmo fenômeno:

“É possível que o câncer humano e o câncer planetário estejam ainda

mais intimamente relacionados do que esta analogia sugere: é possível

que ambos sejam apenas dois sintomas diferentes do mesmo problema.

O câncer humano tem se tornado cada vez mais prevalecente nas

últimas décadas, particularmente nas nações desenvolvidas do Ocidente.

Isso ao mesmo tempo em que essas nações iam se tornando cada vez

mais “malignas” na maneira de tratar o meio ambiente (…) Estamos

ainda descobrindo que inúmeros produtos (e.g., tinturas para cabelos,

loções bronzeadoras, fibras de amianto, fluidos de fotocopiadoras e

água clorada para beber) podem induzir o câncer, para não falarmos da

radioatividade e dos inúmeros agentes poluidores da atmosfera. Todos

esses exemplos decorrem da baixa sinergia da sociedade

contemporânea; e a baixa sinergia da sociedade parece levar a uma

baixa sinergia – e ao câncer – no indivíduo”.21

Como pudemos verificar neste capítulo, as relações sistêmicas entre o câncer

humano e o câncer planetário são bastante manifestas. Contudo, não é intenção desse

trabalho de pesquisa apresentar estudos aprofundados de comprovação fisiológica da

natureza carcinogênica dos nossos padrões sociais.

Page 68: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

66

No atual estágio de pesquisa, parece suficiente a constatação do isomorfismo

entre as duas dimensões holárquicas – ser humano e biosfera – de forma que possamos

verificar com clareza o fenômeno de partes constituintes se amotinarem contra a ordem

holárquica, passando a agir egocentricamente, sem colaboração e responsabilidade pelo

todo-abrangente que as sustenta.

Tratou-se de delinear padrões semelhantes entre os dois níveis holárquicos de

forma que pudéssemos identificar a enfermidade como um ponto de partida para a

construção de planos de ação que integram as dimensões educacionais, psicológicas,

econômicas, culturais, políticas e espirituais. Como se vê, tais planos de ação são

transdisciplinares e podem ser traduzidos como estratégias de cura para uma

enfermidade que está dentro e fora de cada um de nós, seres humanos.

O capítulo seguinte apresenta as relações emocionais do câncer identificadas

pelas pesquisas médicas, de forma que possamos aprofundar o isomorfismo entre as

dimensões humanas e planetárias e estabelecer critérios para a aplicabilidade dos

procedimentos de cura no âmbito humano dentro da perspectiva social e ecológica.

Page 69: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

67

6. A DIMENSÃO EMOCIONAL DO CÂNCER

A compreensão integrada dos problemas atuais como um câncer planetário dá-

nos uma grande oportunidade de descobrirmos nossos próprios erros de pensamento e

enganos. Desta maneira, podemos reunir todas as mais diversas facetas da crise global

que nos acomete em um único fenômeno que se apresenta como um desafio biológico.

Longe de afirmar objetivamente a existência do câncer planetário, este trabalho

pretende construir um panorama fundamentado em isomorfismos e analogias sistêmicas

que nos permita uma reflexão aprofundada em torno dos nossos modelos culturais e

nossa percepção diante do planeta e da vida como uma totalidade.

Espera-se que, ao analisarmos os procedimentos médicos que vêm obtendo

sucesso na cura do câncer em indivíduos, sejamos capazes de transportar tal sabedoria

para o âmbito planetário, delineando planos de ação de cura alicerçados por mudanças

cognitivas que abrangem os níveis físicos, mentais, emocionais e espirituais.

Para tanto, recorreremos aos trabalhos de James Creighton, Carl e Stephanie

Simonton e de Lawrence LeShan, cujas abordagens psicossomáticas no tratamento da

doença induzem-nos à compreensão da enfermidade planetária a partir dos mesmos

princípios.

É importante ressaltar que o tempo médio de sobrevida dos pacientes de James

Creighton, Carl e Stephanie Simonton, em meados da década de 1980, era o dobro do

registrado nas melhores instituições para tratamento de câncer e o triplo da média

nacional nos Estados Unidos. Além disso, a qualidade de vida e os níveis de atividades

dos homens e mulheres submetidos ao tratamento podem ser considerados

extraordinários.1 Salienta-se que Creighton e os Simontons sempre buscaram pacientes

com diagnóstico de doença maligna incurável, do ponto de vista médico (um

prognóstico que é intensamente compartilhado no que tange a situação da humanidade

no Planeta Terra).

Outra abordagem que se fará presente representando a linha psicossomática

do tratamento do câncer será a de Wilhelm Reich, considerado precursor de

movimentos integradores de mente e corpo na psicologia e na medicina.

O ponto de partida para nossa abordagem integrativa entre o fenômeno do

câncer no indivíduo e o câncer planetário, extraindo daí os princípios que norteiem o

Page 70: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

68

processo de cura a partir de uma transformação cultural da humanidade, é a

compreensão cada vez mais precisa das relações entre as emoções e o câncer.

Tanto Creighton e os Simontons como Lawrence LeShan identificam o estado

emocional do paciente como um fator de extrema relevância no surgimento da doença.

Dentre vários sintomas de estresses emocionais estudados, um que chama atenção pela

sua freqüência é o que pode ser chamado de “perda da esperança”. James, Carl e

Stephanie relatam a presença da desesperança como indicador preponderante do

surgimento do câncer da seguinte forma:

“Acreditamos também que o câncer surge como uma indicação de

problemas existentes em outras áreas da vida da pessoa, agravados ou

compostos de uma série de estresses que surgem de 6 a 18 meses

antes do aparecimento do câncer. O paciente canceroso, de maneira

típica, reagiu a esses problemas e estresses com um sentimento de

profunda falta de esperança e de ‘desistência’. Esta reação emocional,

acreditamos, por sua vez dispara um conjunto de reações fisiológicas

que suprimem as defesas naturais do corpo, tornando-o suscetível à

produção de células anormais”.2

Lawrence LeShan compartilha da visão do mesmo processo originário e ressalta

a presença da desesperança como um aspecto do caráter das pessoas suscetíveis ao

câncer:

“A única coisa que surgiu mais nitidamente durante meu trabalho foi o

contexto em que o câncer se desenvolveu. Na grande maioria das

pessoas que entrevistei (certamente não em todas) existira, antes dos

primeiros sinais visíveis do câncer, uma perda da esperança de jamais

conseguir um tipo de vida que oferecesse uma satisfação real e

profunda, que proporcionasse uma sólida razão de ser, o tipo de

significado que nos deixa felizes de sair da cama pela manhã e

contentes de ir para a cama à noite – o tipo de vida que nos faz

aguardar com entusiasmo cada novo dia e o futuro. Com freqüência,

Page 71: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

69

essa ausência de esperança surgia da impossibilidade da pessoa em se

relacionar e se expressar e da incapacidade de encontrar um substituto

significativo”.3

Ao longo de muitos anos de pesquisa, Lawrence LeShan notou a perda da

esperança em 70 a 80 por cento dos seus pacientes com câncer, ao passo que também

trabalhou com grupos de controle – pessoas sem câncer a quem submetia os mesmos

testes de personalidade – e encontrou o mesmo padrão em apenas 10 por cento das

pessoas.4

Traçando um paralelo com a situação humana no contexto planetário, a perda

de esperança de encontrar significado para a existência, através de uma maneira

individual de expressão e de relacionamentos, é típica da sociedade. Nota-se fortemente

a perspectiva de desalento dos seres humanos em relação ao futuro e às próprias vidas.

Esse sentimento implica em atitudes imediatistas do tipo “aproveitar enquanto é tempo”,

“gastar antes que acabe”, que vieram a se tornar padrões sociais de conduta,

influenciando em toda a dinâmica social da modernidade. Tais atitudes, por sua vez,

impulsionaram a cultura consumista que vem desgastando os ecossistemas terrestres de

maneira ininterrupta. O planeta parece ter se tornado algo descartável. “Afinal, a

destruição acontecerá, de uma forma ou de outra”. Podemos ouvir este tipo de

afirmação em diversos âmbitos da sociedade, cotidianamente.

Uma segunda constatação que Creighton e os Simontons e Lawrence LeShan

encontraram em suas pesquisas foi que os estresses emocionais crônicos – tais como a

perda da esperança de possuir uma vida significativa, ou quando a vida está confusa

demais e a maneira como lidamos com os acontecimentos não dá os resultados que

esperamos – tornam as pessoas suscetíveis a várias doenças, ao suprimir o sistema

imunológico, responsável por destruir as células cancerosas e os microorganismos

estranhos ao corpo.

De maneira muito simplificada, o sistema imunológico é composto de vários

tipos de células designadas a preservar a identidade somática do organismo. Esta rede

celular desenvolve capacidades defensivas às infecções e a qualquer coisa estranha ou

anormal que ameace sua identidade somática.5

Page 72: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

70

A partir de sólidos pontos de vista a respeito, Lawrence LeShan afirma que

“Todos nós adquirimos câncer muitas vezes por dia. Enquanto os bilhões

de células individuais se dividem e se multiplicam, algumas perdem sua

ligação com o resto do corpo – sua habilidade para manter a relação

com o órgão no qual elas se encontram é destruída. Então surge um

câncer. Isso acontece repetidamente, mas nosso mecanismo de defesa

– não sabemos muito a respeito, porém ele existe – rapidamente toma

conta da situação”.6

Enquanto o organismo está forte física, mental e emocionalmente, as redes

celulares não permitem o avanço das células anormais, embora elas sejam produzidas

diariamente pelo organismo. Contudo, substâncias cancerígenas, radiação e, como

vimos, estresses emocionais podem enfraquecer nossa estrutura de defesa e acarretar

desequilíbrios hormonais que resultam num aumento da produção de células anormais.

A conseqüência é que a produção de células cancerosas é incentivada precisamente na

época em que o corpo é menos capaz de destruí-las.

LeShan, em seus mais de trinta anos de pesquisa com pacientes com câncer,

identificou a desesperança como um tipo de estresse emocional para o qual ficou

comprovada sua influência no enfraquecimento dos mecanismos de defesa do corpo

humano:

“Pelo menos um tipo de estresse emocional prolongado também pode

diminuir sua força [dos mecanismos de defesa]. O único tipo de estresse

emocional que conhecemos hoje em dia que certamente consegue

enfraquecê-la é a perda da esperança de jamais vivermos nossa vida de

maneira significativa, de jamais podermos cantar nossa própria canção e

nos relacionar, ser, criar, da forma que seja mais importante para nós”.7

Para estabelecermos uma conexão dessas descobertas científicas sobre o

câncer no indivíduo e seu correspondente planetário, faz-se interessante situarmo-nos

dentro de uma perspectiva histórica da humanidade, identificando tempos longevos que

Page 73: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

71

remontam ao Pleistoceno (Antiga Idade da Pedra) sobre os quais existem registros

arqueológicos de culturas humanas igualitárias, pacíficas e democráticas, espalhadas por

todo o Oriente Médio, Norte da África e Europa.

Tais culturas se mostravam integradas com o ambiente natural e enxergavam a

natureza como uma grande mãe, uma deusa que lhes dava vida e tudo que era

necessário para sustentar homens e mulheres. Provavelmente não se concebia a Deusa-

mãe dessas antigas culturas como existindo fora da natureza. Ela não era a criadora

externa da natureza, mas a sua própria força criativa. O princípio orientador do

feminino, integrador e cooperativo, repercutia como diretriz da cultura, em aparente

equilíbrio com a dimensão masculina da sobrevivência no ambiente.

Podemos sugerir que as comunidades humanas que habitavam a interseção da

Europa, Ásia e África no final do Período Neolítico (em torno de 6.000 anos atrás)

vivenciaram uma grande transição cultural, passando de uma cultura de integração à

natureza e relações de parceria para outro tipo de cultura guerreira e dominadora

impetrada por caçadores ou nômades patriarcais adoradores de deuses masculinos.

Estas tribos, de uma forma geral, não eram pacíficas nem igualitárias e eram lideradas

por homens experimentados no manejo de armas.

A crônica histórica nos sugere que estes homens guerreiros formularam uma

visão de mundo baseada na crença de sua própria superioridade. Projetaram essa auto-

imagem em um deus autoritário e severo, justificando assim seus atos de dominação

sobre as mulheres e outros povos.∗

Não cabe aqui um aprofundamento do contexto histórico, mas podemos

mapear, em caráter preliminar – a partir desta transição de uma cultura de parceria e

integração para uma cultura de dominação e formação de impérios – a gênese de uma

cosmovisão que transformou os seres humanos em algo diferente e superior à natureza

e transformou também o ambiente natural em depósito de suprimentos e esgoto, um

mero espaço físico destinado a satisfazer os desejos e glórias de culturas dominadoras.

A formação de uma cultura com tais características não necessariamente nos

levaria a uma ação cancerosa no Sistema de Gaia, assim como, nas pesquisas atuais ∗ SAHTOURIS (1998) e EISLER (1989) fazem uma descrição das transições culturais da história antiga

revelando a gênese da visão de mundo patriarcal, fragmentada e de afastamento da natureza que se

seguiu. Cf. SAHTOURIS (1998), págs. 189 e ss.

Page 74: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

72

sobre o câncer, pessoas com traços caracteriais recorrentes nos pacientes enfermos

podem nunca manifestar a doença.

Mas é oportuna a reflexão no sentido de identificarmos, desde a Antiguidade,

procedimentos culturais que correspondem à dinâmica do surgimento do câncer em um

organismo humano, tais como células de um organismo desprovidas de holonomia, que

perdem sua conexão com o sistema e se autocentram egocentricamente.

Em caráter especulativo, podemos sugerir que as dificuldades impostas pelas

circunstâncias ambientais naquele momento possivelmente desencadearam estresses

emocionais que se retroalimentaram no comportamento dos indivíduos e os mecanismos

naturais de defesa, enfraquecidos, não impediram o avanço das culturas dominadoras e

espoliativas.

Chama-se a atenção para um detalhe: é curioso e significativo observar que

data desse período histórico a consolidação do álcool como agente etnofarmacológico no

seio da civilização humana. Tal substância veio a se tornar universal, se alastrando por

todos os continentes e se tornando parte do cotidiano dos seres humanos em grande

medida.

O etnofarmacologista Terence McKenna apresenta relações instigantes entre o

álcool e as neuroses sexuais da humanidade:

“Ela [a fase alcoólica da História] reforça a dominação masculina. Se

analisarmos o que o álcool faz farmacologicamente, verificaremos que

ele, de fato, diminui a sensibilidade às intimações sociais. Esta é uma

maneira técnica de dizer que, ao ingerir álcool, você se transforma

numa criatura enfadonha e num imbecil libidinoso. Seu julgamento

social normal fica prejudicado e você está preparado para fazer uma

conquista sexual. A maioria das neuroses sexuais da civilização ocidental

pode ser rastreada até se chegar a incidentes envolvendo marcas

sexuais precoces na presença do álcool. O álcool se acha tão

entranhado no terror e na atração simultâneos que sentimos pela

experiência sexual que ele se tornou parte invisível de nosso legado

cultural”.8

Page 75: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

73

Não se pode dizer que o álcool seja o causador de algum fluxo ou

comportamento histórico específico. Mas é plausível supormos que ele seja um

potencializador de várias neuroses sociais que se seguiram. Assim também não

podemos dizer que o álcool é causador de um câncer de fígado ou o cigarro é causador

de um câncer de pulmão, mas sim seus potencializadores. Afinal, é notório que muitas

pessoas passam sua vida inteira ingerindo álcool e fumando tabaco e não desenvolvem

câncer. Mas é, de fato, interessante perceber a aguda presença de fatores

reconhecidamente carcinogênicos nos hábitos da humanidade ao longo desse processo

cultural.

Wilhelm Reich foi pioneiro na abordagem psicossomática do câncer. Já na

década de 1940, ele afirmava que “o câncer é uma doença que surge em conseqüência

da resignação emocional, uma carência bioenergética, uma renúncia à esperança”.9

Suas pesquisas heterodoxas adiantaram grande parte dos avanços médicos das

últimas décadas e é possível que seu trabalho continue sendo cada vez mais

considerado nos rumos do tratamento do câncer.

Reich, em suas pesquisas, sempre chamou atenção para os processos de

estase∗ sexual no desenvolvimento do câncer. Ele dizia que especialmente sob os efeitos

da repressão sexual, o equilíbrio energético que se manifesta no ritmo pulsátil

‘expansão-contração’ em todo o corpo humano se rompe em favor da contração; a

necessária e vital descarga energética, assegurada pela convulsão orgástica, fica

incompleta e insuficiente.

Estabelece-se, por conseguinte, o estado de estase sexual, de ‘estancamento

energético’, que se traduz por múltiplos sintomas: perda da motilidade plasmática,

espasmos e bloqueios musculares, anoxia e atrofia dos tecidos, resignação caracterial,

etc. Todos estes elementos foram reunidos por Reich sob o conceito “retração

biopática”.10

Segundo o biógrafo Roger Dadoun, Reich enxergava como “temível” a

repressão sexual. Em suas palavras:

∗ Estase significa estagnação, paralisia, entorpecimento.

Page 76: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

74

“Esta obriga o indivíduo a limitar e a reprimir seu desejo, seu

movimento de expansão (suas emoções e moções fundamentais), a

organizar defesas rígidas, formando uma ‘couraça caracterial’, a incorrer

num ‘rebaixamento da função energética global do organismo’. Algumas

fórmulas lapidares de Reich ressaltam esta estreita relação entre

sexualidade e câncer: ‘o câncer é uma biopatia sexual, uma doença de

carência sexual, uma manifestação das perturbações crônicas da

economia sexual humana’ (Reich acrescenta: ‘a esquizofrenia é a sua

expressão mais significativa no domínio emocional’)”.11

As neuroses sexuais criam um ambiente favorável ao surgimento dos estresses

emocionais. A retração biopática e a incapacidade do indivíduo de se expressar de forma

espontânea, sempre medindo os sentimentos e bloqueando-os para se ajustar a uma

dinâmica “monolítica” da cultura, desencadeou um círculo vicioso de insatisfação e

enfraquecimento, engendrando um panorama social super-fragmentado, no qual cada

indivíduo sente-se incapaz de influenciar os rumos da sociedade e aceita a contragosto o

infortúnio da vida nessa sociedade.

Esse padrão de destruição da vida gerado pela cultura repressiva faz com que

cada indivíduo mergulhe em uma prisão cultural que sorve toda a esperança de um

futuro sadio, integrado com o planeta e com os outros seres da Terra. E dá-se,

portanto, as condições propícias para o desenvolvimento da patologia isomórfica ao

câncer em âmbito planetário.

Em relação ao processo evolutivo humano, complementa-se que a transição de

culturas tribais, de comportamento sexual livre e desconhecimento do fluxo dos genes

paternos, para a cultura de famílias nucleares, caracterizada por repressão sexual e

linhas hereditárias bem definidas, parece ter ocorrido de forma concomitante ao

surgimento do patriarcado e da predominância alcoólica na cultura, todos estes aspectos

relacionados ao que os arqueólogos chamam de “invasões kurgas”, ocorridas entre

4.000 e 2.000 a.C.. 12

O leitor poderá notar que se criou um caminho circular neste capítulo,

buscando associar os conceitos de estresse emocional (a perda da esperança,

Page 77: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

75

especificamente), enfraquecimento dos mecanismos de defesa, substâncias

potencializadoras do câncer, neuroses sexuais e cultura repressiva. É importante

perceber que tais conceitos se remetem tanto à situação de um homem ou mulher

acometido pelo doença, como que para toda a humanidade e sua relação com a

biosfera.

A dimensão emocional do câncer encontra paralelos significativos na trajetória

histórica da humanidade. A intenção deste trabalho é sugerir estas relações para nos

posicionarmos criticamente em torno da cultura preponderante e buscar abordagens de

cura que se assemelhem aos tratamentos emocionais introduzidos na medicina e na

psicologia.

Vejamos agora como Creighton e os Simontons e Lawrence LeShan vêm

conduzindo os pacientes em direção à cura a partir de um trabalho de orientação e

avivamento emocionais dos seus organismos, de forma que fortaleçam seus sistemas

imunológicos e sejam capazes de superar a enfermidade.

O capítulo seguinte visa descrever as estratégias de cura que vêm obtendo

êxito na dimensão dos seres humanos, no sentido de traçar paralelos que nos auxiliem

na construção dos planos de ação de cura planetária. Acredita-se que os mesmos

princípios do tratamento de seres humanos possam ser incorporados em nossas

estratégias transdisciplinares nos âmbitos social e ecológico. O câncer e sua superação

apresentam valiosas lições para nos orientarmos rumo a uma nova cultura planetária.

Page 78: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

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7. PERSPECTIVA DE CURA

Em geral, quando se fala em câncer, o tom da conversa muda, faz-se um

silêncio desconfortável, as pessoas desviam o olhar. Tudo isso indica a expectativa da

morte trazida pela doença. Não é nada confortável pensar nesta enfermidade maligna

que nos remete a um conjunto trágico de sentimentos.

O lamentável dessas expectativas de dor e morte é que elas costumam criar

uma profecia auto-elaborada e retroalimentar o avanço das células anormais e o curso

aparentemente inevitável da doença rumo ao colapso do organismo. A visão popular do

câncer é carregada de crenças negativas que reforçam a sua imagem fatal.

Um dos primeiros passos na superação da doença é transformar o sistema de

crenças que envolve o câncer e construir um panorama simbólico que traga força e

coragem no seu enfrentamento.

Torna-se fundamental que revertamos expectativas negativas como:

i. o câncer é sinônimo de morte;

ii. o câncer é um invasor forte e poderoso e não há como controlá-lo;

iii. os tratamentos são drásticos, danificam ainda mais o corpo e têm efeitos

colaterais numerosos e muito desagradáveis.

Um dos pilares da abordagem de James Creighton e Carl e Stephanie Simonton

é promover um novo sistema de crenças que torne-se um aliado no caminho para a

cura. Com isso, é trazida à tona uma compreensão mais lúcida sobre a doença,

amparada pela pesquisa médica. Assim, podemos entender a doença da seguinte forma:

i. o câncer pode ou não ser fatal. Identificar e reconhecer a doença em seus

estágios iniciais trazem grandes probabilidades de cura e expectativas positivas

em relação ao tratamento podem – não há mais dúvidas entre os médicos –

trabalhar em favor do paciente;

ii. o câncer não é um ataque invasor, mas um colapso interno. As próprias defesas

corporais são os inimigos mortais do câncer, não importa o que o tenha causado

inicialmente;

Page 79: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

77

iii. os tratamentos podem ser um aliado importante para ajudar as defesas

imunológicas a superar o desequilíbrio.1

Um aspecto que se configura como essencial para o sucesso no processo de

cura é o reconhecimento emocional da doença. Esse aspecto é especialmente

importante em nossa abordagem do câncer planetário, tendo em vista que a realidade

atual induz as pessoas a colocarem distância entre si mesmas e o problema, tornando-

se estáticas, impassíveis e rígidas. Como dizem as ecologistas Joanna Macy e Molly

Young Brown:

“Quando estamos distraídos e receosos, e os prognósticos são adversos,

é fácil permitir o entorpecimento do coração e da mente. Os perigos

com que hoje nos defrontamos são tão abrangentes e tão difíceis de se

ver – e dolorosos de se ver, quando conseguimos fazê-lo – que esse

entorpecimento afeta a todos. Ninguém deixa de ser afetado por ele.

Ninguém está imune à dúvida, à negação ou à descrença acerca da

gravidade de nossa situação – e do nosso poder de alterá-la. Contudo,

de todos os perigos que podemos enfrentar, das alterações climáticas às

guerras nucleares, nenhum é tão grande quanto o torpor de nossas

reações”.2

Notemos que a linguagem de Macy e Brown evoca um dos conceitos chaves de

nossa abordagem: a desesperança como estresse emocional que enfraquece as defesas

do organismo. Como visto anteriormente, esta desistência da vida tem uma função

importante no desequilíbrio emocional que pode levar a um aumento da produção de

células anormais. Do ponto de vista físico, cria-se um clima que é ideal para o

desenvolvimento do câncer.

Creighton e os Simontons chamam a atenção para um ponto importante.

Devemos ter sempre em mente que todos nós criamos o sentido do acontecimento em

nossas vidas. Os indivíduos que assumem o papel de vítima têm participação ativa no

que lhes acontece por dar um significado a acontecimentos que provam que não há

esperança em suas vidas. Nossas reações dependem diretamente das nossas escolhas.

Page 80: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

78

A intensidade do estresse é determinada pelo significado que damos a ele e pelas regras

que estabelecemos sobre a maneira como iremos reagir a ele.3

Nesse sentido, reconhecer emocionalmente o câncer não deverá fazer com que

nos sintamos culpados ou assustados. Nas palavras de Creighton e dos Simontons,

“O que desejamos é que, caso a pessoa consiga enxergar sua

participação nesse processo psicológico, ela venha a reconhecer que se

trata de um sinal para que tome uma atitude e faça algumas mudanças

na sua vida. Já que os estados emocionais contribuem para que surja a

doença, eles também podem contribuir para que surja a saúde. Ao

reconhecer a própria participação no aparecimento da doença, a pessoa

estará, portanto, reconhecendo o seu próprio poder para participar da

recuperação da sua saúde e estará dando os primeiros passos para a

sua própria recuperação”.4

O que este trabalho preconiza é que podemos enxergar o mesmo fluxo

psicológico na coletividade humana. Ao reconhecermos emocionalmente o surgimento

do câncer planetário e nossa participação no desenvolvimento da enfermidade, seremos

capazes de reconhecer também o poder de transformação latente em nossas mudanças

de comportamento.

Percebe-se atualmente um abrangente movimento de alteração de hábitos e

perspectivas, apontando para a compreensão do grave desequilíbrio do planeta dentro

da ótica das questões ambientais. Contudo, em tal compreensão não se subentende o

planeta como um ser vivo e sua situação de acometimento por uma doença que pode

ser fatal. O ambiente de discussão e debate é confuso, pois dá margem a diversos

pontos de vista antagônicos que acabam por deter os impulsos de mudança de

comportamento.

Faz-se necessário o reconhecimento emocional da enfermidade do planeta vivo,

do nosso corpo cósmico, de forma que possamos criar coesão na linguagem de reação e

catalisar com eficácia o processo de transformação cultural regenerativo e mobilizar as

comunidades humanas em direção à cura.

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79

Ao nos tornarmos conscientes da espiral de comportamento que tornou possível

o aparecimento da nossa própria doença, geramos convicção e energia compartilhada

para alterarmos, através da mudança de atitudes e valores, a direção da sociedade,

orientando-nos para o caminho da saúde.

Creighton e os Simontons observam quatro etapas psicológicas que ocorrem

quando do redirecionamento de volta à saúde no indivíduo. Vejamos que podemos

identificar etapas isomórficas no redirecionamento social que induz a saúde do planeta:5

i. “Com o diagnóstico de uma doença mortal, a pessoa adquire uma nova

perspectiva em relação aos seus problemas. Muitas das regras obedecidas

pela pessoa, subitamente, parecem triviais e insignificantes face à morte.

Com efeito, a ameaça dá à pessoa a permissão para agir de uma maneira

que não o era anteriormente. O comportamento assertivo é permitido. A

doença dá à pessoa o direito de dizer não”.

Da mesma forma, muitas das regras sociais que foram estabelecidas ao longo dos

últimos séculos se tornam insignificantes perante o desafio biológico terrestre. A

compreensão do câncer dá às comunidades humanas o ímpeto de se reorganizarem

e modificarem seus acordos tácitos de forma que a inércia cultural seja revertida em

processos assertivos de reconfiguração das relações.

ii. “A pessoa toma a decisão de mudar o seu comportamento, de ser uma

pessoa diferente. Como em geral a doença elimina regras, de repente

surgem opções. À medida que o comportamento muda, conflitos

aparentemente insolúveis começam a apresentar soluções. A pessoa começa

a perceber o que está dentro do seu poder para chegar a solucionar os

problemas ou pelo menos lidar com eles. Ela também descobre que a vida

não acabou ao se quebrar antigas regras e que as mudanças de

comportamento não resultaram em perda de identidade. Ao contrário, há

maior liberdade de ação e mais recursos disponíveis. A depressão em geral

desaparece quando os sentimentos reprimidos foram liberados e há uma

maior energia psicológica disponível”.

Page 82: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

80

Tal mudança de comportamento em um contexto social deverá ocorrer de forma

semelhante. Ao nos tornarmos conscientes da doença mortífera que nós como parte

integrante do planeta experimentamos na atualidade, somos impelidos a modificar

nossas atitudes. Criam-se alianças comunitárias e há uma atmosfera de apoio

mútuo. Gera-se a energia de ativação para a revisão dos modelos vigentes e a

criação de alternativas estruturais. Promove-se a participação cidadã na medida em

que se dá vazão às emoções e sentimentos reprimidos pela cultura. A sensação é de

abundância de energia psicológica, pois paramos de sentir a sensação de “andar

sem sair do mesmo lugar” e encadeamos programas e planos de ação amparados

por uma crença compartilhada na cura. A educação se reorienta de forma a parar de

perpetuar o atual modelo e começa a reforçar o processo de mudança de

mentalidade, introduzindo efetivamente uma nova consciência como diretriz

cognitiva da sociedade.

iii. “Os processos físicos do corpo reagem aos sentimentos de esperança e há

um renovado desejo de viver, criando um ciclo reforçado a partir de um novo

estado mental. A esperança renovada e o desejo de viver dão início a um

processo físico que se traduz em uma melhora da saúde. Como a mente, o

corpo e as emoções agem como um só sistema, as mudanças no estado

psicológico resultam em mudanças do estado físico. E isto é um ciclo

contínuo, uma melhora do estado físico trazendo esperanças para a pessoa e

a esperança fazendo com que o estado físico melhore cada vez mais”.

Em âmbito social, na medida em que o sentimento de esperança na cura ganha

proeminência, processos de restauração ecológica dos ecossistemas passam a ser

implementados com vigorosa energia motriz. Recuperação das águas e solos das

bacias hidrográficas, aumento da diversidade biológica, reforma das cidades e dos

sistemas de produção, vivificação da saúde individual e coletiva nas comunidades,

todos os processos se integram a partir de um esforço conjunto da sociedade na

recuperação da saúde.

Page 83: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

81

iv. “O paciente curado está melhor do que antes (…) A saúde que eles

recuperaram é, na realidade, superior à que tinham antes do aparecimento

da doença. Esta observação cabe, em grande parte, aos pacientes que

participaram ativamente de sua recuperação do câncer. Eles têm uma força

psicológica, um autoconceito positivo, uma sensação de controle sobre as

próprias vidas que representa, sem dúvida, um nível superior de

desenvolvimento psicológico. Muitos pacientes que participaram de forma

ativa da sua própria recuperação adotam uma atitude diferente e mais

positiva em relação à vida. Eles passam a ter esperança de que as coisas vão

melhorar e deixam de ser vítimas”.

Dentro desta perspectiva, o potencial atual da sociedade é imenso. Na medida em

que se restabelece a saúde individual e coletiva, uma quantidade muito grande de

soluções ecológicas e tecnológicas vão sendo implementadas e é permitido que toda

a inventividade do espírito humano seja aplicada em melhorias sociais. A repressão à

criatividade é dissipada e todo um corpo conceitual é posto em ação em favor da

humanidade e de todos os outros seres vivos, privilegiando o equilíbrio dinâmico e a

flexibilidade, constituindo um novo patamar civilizatório que apresenta um padrão de

alta sinergia. A sociedade, por conseguinte, cria um sentimento compartilhado de

renovação e enxerga com legitimidade os desafios sob uma ótica confiante e

resoluta.

Podemos aprofundar essas relações e verificar as claras semelhanças entre o

processo de redirecionamento à saúde no indivíduo e na coletividade humana.

Pode-se argumentar, todavia, que as estruturas que controlam a economia e

abafam a criatividade e a fluidez da sociedade, reprimindo os intuitos transformadores,

não deixarão que estas possibilidades de cura se tornem realidade. De fato, estamos

lidando com uma doença que pode ser fatal e esse abafamento da cura pode ocorrer,

tal qual ocorre em indivíduos acometidos pelo câncer que, embora se mobilizem para a

cura, não adquirem força suficiente para superar o tumor.

Nova analogia é oportuna neste ponto, quando se notam semelhanças entre a

visão popular do câncer como um inimigo poderoso que não pode ser controlado e a

Page 84: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

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crença popular nas estruturas controladoras da economia como imensamente poderosas

e que não podem ser dissipadas.

Na medida em que o câncer é visto dessa forma, como um adversário forte e

vigoroso, delega-se a ele uma força que ele não tem, pois, nas conclusões das

pesquisas médicas, o câncer é composto por células indolentes e confusas. Embora

sejam maiores que as células normais, as células cancerosas, em sua grande maioria,

não têm a orientação de invadir ou atacar, são fracas e apresentam um comportamento

desnorteado. Nas palavras de Carl Simonton,

“A imagem do câncer como uma doença poderosa decorre de uma

porção de idéias preconcebidas pelas pessoas. Veja bem, as pessoas

costumam dizer: ‘Minha avó morreu de câncer, embora tenha lutado

muito bravamente contra ele; portanto, o câncer deve ser uma doença

muito forte. Se fosse fraca, como poderia ter matado minha avó?’ Se

insistirmos no fato de que o câncer é uma doença fraca, as pessoas

terão de repensar a morte de suas avós e isso é por demais doloroso

(…) Já presenciei muitas pessoas inteligentes ficando demasiado

perturbadas diante da questão da debilidade básica das células

cancerosas. Esse, porém, é um fato biológico irrefutável”.6

De maneira semelhante, as estruturas controladoras do sistema econômico,

que parecem determinar a atual dinâmica cancerosa, também não têm como dinâmica

básica invadir ou atacar, mas consumir. Buscam o crescimento de forma ininterrupta e

têm sua força agigantada a partir de uma porção de crenças pré-concebidas pela

sociedade, embora, na verdade, sua dinâmica seja marcada pela debilidade e confusão.

Recorremos novamente à Joanna Macy e Molly Young Brown:

“À medida que as pessoas vão conhecendo o assunto, vamos

desmistificando o mecanismo da economia global. Quando vemos como

esse sistema opera, (…) apesar do aparente poderio da Sociedade de

Crescimento Industrial, é possível enxergar sua fragilidade – como ela

depende de nossa participação, e como ela está fadada a se devorar”. 7

Page 85: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

83

Sociedade de Crescimento Industrial é o nome que elas atribuem a este modelo

de sociedade de crescimento ininterrupto e indiferenciado impetrado pelos sistemas

políticos e empresariais atrelados ao modus operandi do consumo sempre crescente e

do acúmulo estéril de recursos por uma parte da humanidade em detrimento do

equilíbrio sócio-ambiental e a satisfação das necessidades da maioria da população.

É muito interessante notar a relação que Macy e Brown sugerem entre o

mecanismo da economia global e nossa participação neste mecanismo. Na medida em

que compactuamos com o sistema econômico, criamos diversões alienantes para nós

mesmos como indivíduos e como nações, buscando atingir metas individualistas, muitas

vezes espoliativas, abrindo mão de nossa cidadania ao permitirmos que decisões que

afetam diretamente nossas vidas sejam tomadas por um grupo de políticos de intenções

questionáveis, e comprando produtos supérfluos que alimentam o mecanismo da

economia consumista que tem o desperdício como prerrogativa. Ao agirmos dessa

maneira, ofertamos nossa força biológica ao fortalecimento da Sociedade de

Crescimento Industrial, padrão isomórfico ao câncer. Se, todavia, entendemos o

mecanismo e deixamos de alimentá-lo, a fragilidade desse sistema se torna perceptível.

Parecem pertinentes as relações entre a imagem do câncer como uma doença

poderosa e a imagem das estruturas que controlam a economia global como um sistema

poderoso. No primeiro caso, pesquisas médicas mostram que o câncer é constituído de

células fracas e confusas e, no segundo caso, o mecanismo dá mostras de sua

fragilidade estrutural ao exigir a nossa participação para manter seus “motores”

funcionando.

Dessa forma, somos levados à compreensão de que o câncer não tem que ser

vencido, mas necessariamente tem que ser compreendido. Não devemos ir contra o

câncer, afinal, ele é parte de nós e estaremos indo contra nós mesmos. Mas,

compreendido o seu mecanismo, podemos parar de alimentá-lo, e podemos orientar a

destinação de nossa energia biológica para a construção de novos padrões culturais

benignos e harmoniosos.

Sob esta ótica, torna-se acessível o entendimento de que realmente criamos o

sentido dos acontecimentos em nossas vidas. Temos participação ativa no que nos

acontece. Nossas reações dependem diretamente das nossas escolhas.

Page 86: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

84

Entender essa autonomia é especialmente importante nos processos de cura do

câncer, pois da mesma forma que uma pessoa pode tornar-se psicossomaticamente

doente, outra que está doente pode ir em direção oposta e tornar-se psicossoma-

ticamente saudável. A influência dos nossos sentimentos e expectativas faz-se evidente

ao longo do tratamento contra o câncer.

Nesse ponto introduzimos um importante conceito em nosso trabalho:

autocura. Apesar de sabermos que a mente pode tornar o corpo doente, usualmente

não pensamos em quanto podemos influenciar de forma consciente a nossa mente para

tornar o nosso corpo saudável de novo. Quanto maior a crença de que temos influência

sobre o curso da própria doença, maiores se tornam as expectativas de sucesso do

tratamento.

Pesquisas na área de “biofeedback” demonstram de maneira clara que é

correto o princípio fisiológico segundo o qual toda mudança de estado fisiológico é

acompanhada de uma mudança apropriada no estado emocional, consciente ou

inconsciente, e, inversamente, qualquer mudança no estado emocional, consciente ou

inconsciente, é acompanhada de uma mudança apropriada do estado fisiológico.8

No caso específico do câncer, as pesquisas mostram que este princípio,

traduzido na presença da crença na autocura, é um fator essencial para a revitalização

orgânica. Nas palavras de Capra:

“O desenvolvimento dessa atitude positiva é crucial para todo o

tratamento. Estudos realizados mostraram que a resposta do paciente

ao tratamento depende mais de sua atitude do que da gravidade da

doença. Uma vez gerados os sentimentos de esperança e expectativa, o

organismo traduz esses sentimentos em processos biológicos, que

começam a restaurar o equilíbrio e a revitalizar o sistema imunológico,

utilizando os mesmos caminhos que foram utilizados no

desenvolvimento da doença. A produção de células cancerosas

decresce, enquanto o sistema imunológico se torna mais forte e mais

eficiente para lidar com elas”. 9

Page 87: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

85

Essa compreensão traz luz à intrigante questão sobre por que alguns pacientes

reagem de forma satisfatória ao tratamento e outros não. Hoje podemos perceber

claramente que, se o sistema total integrado de mente, corpo e emoções, que constitui

a pessoa como um todo, não está trabalhando para recuperar a saúde, então

intervenções simplesmente físicas não darão o resultado desejado.

Duas pessoas com tumores semelhantes levadas a tratamentos de radio ou

quimioterapia semelhantes podem apresentar reações muito diferentes, dependendo da

forma como elas encaram o processo de cura.

Ao trazer o raciocínio para o âmbito planetário, podemos aplicar com

consistência o princípio da influência emocional no desenvolvimento da doença ou da

cura. Hoje, se chegamos a uma comunidade do interior do Brasil e indagamos sobre as

expectativas em torno do futuro, ou seja, se as pessoas acreditam que a humanidade

vai conseguir superar a crise e se reintegrar à natureza para viver de forma sadia, é

provável que mais pessoas apontem para um depoimento desesperançado do que o

contrário.

Embora este trabalho não conte com pesquisas quantitativas que corroborem

essa suposição, ressoa no inconsciente coletivo a forte impressão de que a maioria das

pessoas não acredita na resolução dos problemas sociais, intuindo que a tendência é, na

verdade, o pioramento das condições de vida.

Nesse sentido, pouco tem adiantado as interferências de restauração do meio

ambiente. Por mais que haja um grande investimento de recursos nos trabalhos de

recuperação dos espaços físicos, o que se percebe é que o ritmo de destruição é sempre

maior e, no cômputo geral das iniciativas, os ecossistemas da Terra continuam se

enfraquecendo. A dimensão psicológica das comunidades humanas não está mobilizada

para a cura e, por conseguinte, as intervenções físicas não dão o resultado esperado.

Na medida em que a crença na autocura se estabeleça, influenciando

principalmente os sistemas de ensino-aprendizagem e o conteúdo dos programas de

comunicação social, deveremos encadear um processo análogo ao fortalecimento do

sistema imunológico de um organismo.

Ao vivificarmos as relações humanas em âmbito comunitário, introduzindo uma

nova forma de perceber a realidade e conseqüentemente de encarar os desafios, é

Page 88: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

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provável que ordenemos nosso potencial restaurador e as intervenções na dimensão

física atinjam os resultados esperados.

A “vontade de viver” define expectativas que resultam em mudanças

inconscientes que podem criar transformações extraordinárias no curso fisiológico. Se

um paciente espera melhorar, com certeza tomará os seus remédios e seguirá o regime

prescrito pelo médico, aumentando desta forma as suas possibilidades de recuperação.

Se ele acha que vai morrer, talvez ache que não vale a pena seguir as recomendações

de seu médico.

Da mesma forma, se uma comunidade acredita que os processos sociais irão se

resolver, a tendência é que haja cuidado e parcimônia com suas águas, solos e outros

recursos, esforços de revegetação, disciplina em relação à produção e destinação dos

resíduos, revigoração da confiança em seus familiares, vizinhos e companheiros de

equipe de trabalho, e assim por diante. Por outro lado, se não há essa expectativa de

melhoria, decerto não existirá força para cuidarmos dos rios, embelezarmos o ambiente,

organizarmos o sistema de lixo, nos esforçarmos para melhorar as relações já

desgastadas, etc. Como a tendência é negativa, não há como mobilizar

psicologicamente a coletividade humana. Creighton e os Simontons chamam esse

processo de “círculo de reforço”:

“Uma expectativa de sucesso, com freqüência, leva ao sucesso, o que

por sua vez fornece a prova de que a expectativa original estava

correta. Por outro lado, uma expectativa de fracasso conduzirá, em

geral, um resultado negativo, validando, portanto, a expectativa original

negativa. Quanto mais o círculo se repete, mais forte se torna a

expectativa, seja positiva ou negativa”. 10

Lawrence LeShan destinou trinta e cinco anos de sua vida para a pesquisa do

câncer. Psicoterapeuta de orientação holística, aprofundou significativamente a

compreensão da influência da renúncia à vida e da estagnação emocional no

desenvolvimento da doença. O foco do seu trabalho residiu na busca de mecanismos

que pudessem mobilizar o corpo do paciente em direção à cura:

Page 89: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

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“Parte da minha pesquisa foi dedicada à procura de uma resposta para

descobrir se podemos fortalecer o mecanismo de defesa contra o câncer

e aumentar a eficiência do sistema imunológico após o surgimento de

um tumor maligno. Será que se recuperarmos nossa esperança na

capacidade de viver nossa própria vida, nosso mecanismo de defesa

contra o câncer irá recuperar sua força e virá em auxílio do tratamento

médico? Será que, se procurarmos viver esse tipo de vida, nossa

capacidade de autocura agirá mais eficientemente e aumentará nossa

resistência ao câncer? A resposta fornecida por essa pesquisa é um

nítido sim”. 11

A abordagem psicológica de LeShan, reconhecidamente eficaz no trabalho de

superação do câncer no indivíduo, parece se aplicar vigorosamente no âmbito do câncer

planetário.

Para compreendê-la, é importante mencionarmos o legado da psicanálise de

Sigmund Freud, vertente técnico-filosófica que delineou preponderantemente o trabalho

psicoterapêutico do Século 20.

LeShan sintetiza as questões básicas da terapia psicanalítica clássica

estabelecidas por Freud da seguinte forma:

i. “Quais são os sintomas?” ou “O que está errado com esta pessoa?”

ii. “Qual a lesão oculta que está provocando os sintomas?” ou “Como ele ou ela

chegou a este estado?”

iii. “O que podemos fazer a esse respeito, seja para eliminar a lesão ou ajudar a

pessoa a compensá-la?”

Não há dúvida sobre a tremenda utilidade que o estabelecimento dessas

questões propiciou ao desenvolvimento da psicoterapia, através das quais se criou um

método para tratar muitas síndromes dolorosas e mutiladoras.

Entretanto, embora tais questões sejam aplicáveis em vários contextos, esta

não é uma abordagem proveitosa quando se trabalha com pessoas portadoras de

Page 90: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

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câncer. Este procedimento terapêutico não leva os pacientes a mobilizarem seus

próprios recursos de cura, fazendo com que ajudem no tratamento médico.12

LeShan enfatiza os aspectos culturais desse direcionamento terapêutico:

“Atualmente, quando as idéias sobre psicoterapia são tão difundidas,

quase sempre os pacientes esperam que o propósito dela seja descobrir

o que está errado com eles, como chegaram a esse estado e o que pode

ser feito a respeito disso. Eles chegam preparados para buscar, junto

com o terapeuta, a explicação de seus sintomas (no passado, no

presente, e como estão reagindo a eles, ou – entre os pacientes mais

sofisticados – em uma combinação de seu passado e seu presente). A

ampla divulgação da psicoterapia pela mídia e pela literatura, e as

conversas com amigos que passaram pelo processo, geralmente

suscitam expectativas muito precisas. O terapeuta, com a mesma

formação cultural, reforçada pelo treinamento profissional, quase

invariavelmente também possui as mesmas expectativas (…) Com esse

ponto de vista em comum, geralmente não verbalizado e, portanto, com

muito reforço mútuo acerca daquilo que a terapia está procurando e

tentando fazer, o processo tende a se dirigir inexoravelmente na direção

estabelecida por Freud. Nós, em nossa era pós-freudiana, estamos

dispostos a aceitá-lo como o caminho natural da prática terapêutica.

Esse realmente é o critério convencional sobre o assunto, fortalecido por

inúmeros romances, contos, apresentações na televisão e narrativas

pessoais”. 13

LeShan, baseado em sua longa experiência, conclui que, no auxílio

psicoterapêutico durante o processo de cura do câncer, deve-se encontrar um outro

conjunto de questões básicas. Se os terapeutas desejam fazer com que os pacientes

portadores de câncer utilizem sua capacidade de autocura e auto-renovação, trazendo-a

em auxílio do tratamento médico e ajudando a mobilizar seus sistemas imunológicos,

eles precisam reexaminar seu treinamento e reavaliar suas experiências, bem como se

confrontarem com as crenças de sua cultura e as expectativas de seus pacientes.14

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Aprende-se, por conseguinte, que existe um outro conjunto de questões que

pode servir de base para o processo psicoterapêutico e que realmente ajuda os

pacientes a aumentarem sua resistência ao câncer. Nas palavras de LeShan:

“Essas novas questões referem-se ao que está certo com os clientes,

sua maneira natural de ser, de relacionar-se, de criar. Qual o tipo de

vida que os tornaria felizes ao se levantar pela manhã e contentes ao ir

para a cama à noite, que lhes proporcionaria o máximo prazer e

entusiasmo na vida? O que poderíamos fazer para que eles pudessem

se expressar em níveis físico, psicológico e espiritual, de forma

harmônica e ‘natural’ a todo o seu ser? (…) O que estamos fazendo aqui

é mudar a definição básica de psicoterapia. No passado, ela foi um

processo de eliminação de determinados sofrimentos e deficiências do

paciente, de redução de sintomas. A definição que estamos usando aqui

é essencialmente a da psiquiatra Karen Horney: ‘Um processo em que a

singularidade, a individualidade, a própria neurose, é removida do rosto

do paciente, onde age como uma venda, e transferida para a parte de

trás do pescoço, onde age como um motor de popa”! 15

A abordagem terapêutica desenvolvida por Lawrence LeShan, portanto, se

baseia em perguntas muito diferentes. Procura-se descobrir o que está certo no

paciente, não o que está errado. Estas são perguntas que podem mobilizar a capacidade

de autocura da pessoa:

i. O que está bem nesta pessoa? Qual sua maneira única e especial de ser, de se

relacionar, criar, que constitui sua própria e natural forma de viver? Qual a

música especial para sua vida, sua canção particular que faz com que ao cantá-la

ela se sinta feliz ao se levantar pela manhã e contente ao ir para a cama à noite?

Qual o estilo de vida que lhe proporciona prazer, entusiasmo, dedicação?

ii. Como podemos trabalhar juntos para encontrar essa maneira de ser, de se

relacionar e de criar? O que bloqueou sua percepção e/ou expressão no

passado? Como podemos trabalhar juntos para que a pessoa siga nessa direção

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até conseguir viver uma vida plena e prazerosa, sem que lhe sobre tempo ou

energia para a psicoterapia?16

Tal perspectiva psicológica apresentada por Lawrence LeShan aplica-se ao

contexto social, no sentido que incute no inconsciente das comunidades a necessidade

de mudança de comportamento a partir da liberação da criatividade. Devemos observar

o que dá certo, o que é vigoroso, quais as nossas virtudes, quais as nossas vocações e

potencialidades.

Se empreendemos a tarefa de vasculhar o presente em busca do que está

errado e o passado para mapear as causas do atual desarranjo, tal como faz um

terapeuta convencional ao buscar os sintomas e suas causas referentes, costumamos

adentrar um labirinto emocional e dificilmente saímos de lá com uma compreensão

adequada. A tendência é que reforcemos a visão desesperançada por conta da

complexidade dos nossos conflitos.

Infelizmente este “círculo de reforço” está presente no caminho habitual de

nossa comunicação ao darmos ênfase aos problemas na tentativa de encontrar soluções

para eles. As mensagens intercambiadas nas comunidades apresentam, na maior parte

do tempo cotidiano, o lado obscuro da crise. Informações sobre a violência, os

desastres, a devastação ambiental, as guerras, a corrupção, imperam nos veículos de

comunicação e nas conversas habituais. Como salienta Peter Russell, “na medida em

que a sociedade se torna cada vez mais desesperançada quanto ao seu próprio futuro,

ela parece produzir mais casos de infortúnios para reforçar uma postura mental já

lúgubre e sombria”.17

Tal postura mental parece ser análoga à postura psicoterapêutica que

prevalece. Salienta-se que tal modelo de orientação psicológica foi fundado dentro de

uma cultura que já se orientava a partir dos impulsos negativos. Freud dava ênfase à

constatação de que a totalidade dos seres humanos são portadores de psicose,

perversão ou neurose. Estímulos básicos positivos não têm lugar na antropologia

psicanalítica, sendo considerados manifestações secundárias de impulsos primários

negativos.

Por conseguinte, a transformação cultural capaz de potencializar os

mecanismos de defesa da sociedade de forma que fortaleça a capacidade de autocura

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da humanidade parece ser análoga à mudança de perspectiva dos psicoterapeutas, ao

reexaminarem seu treinamento, reavaliarem suas experiências e se confrontarem com

as crenças da cultura e as expectativas dos pacientes.

Um processo similar de reexame, reavaliação e confrontamento surge no

âmago das relações sociais quando se procura ajustar o foco da percepção para aquilo

que dá certo, ao invés de reproduzir os erros e reforçá-los.

Isso não significa que devamos negar os problemas, “varrê-los para debaixo do

tapete”. Muito pelo contrário. O reconhecimento emocional da enfermidade, conforme

dito anteriormente, é essencial para o encadeamento do processo de cura. A diferença é

que não devemos enfatizar a enfermidade, mas sim enxergar a potencialidade da nossa

natureza para criarmos recursos que facilitem o desenvolvimento de nossas virtudes,

nossas relações harmoniosas como o ambiente e a arte de viver que é singular em cada

ser humano.

No próximo capítulo apresentamos um novo cenário cognitivo, de forma que

possamos criar condições favoráveis para a geração de novos modelos sociais que

possibilitem e fortaleçam a visualização de um futuro positivo, o desbloqueio da

inventividade, a integração afetiva, a renovação orgânica e a compreensão de nossa

condição humana como um tecido do ser planetário vivo.

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8. VISÃO SISTÊMICA: CENÁRIO COGNITIVO PARA A RESTAURAÇÃO

PLANETÁRIA

Ao considerarmos a profundidade da crise global, agora compreendida sob a

ótica da metáfora do câncer planetário, faz-se conveniente que consideremos nossas

soluções a partir de intensas transformações comportamentais, oriundas do

reconhecimento emocional da enfermidade e uma conseqüente tomada de decisão pelo

enfrentamento da situação e a criação de uma nova cultura planetária.

Devemos admitir que a reconquista do estado de holonomia em um mundo

caracterizado pela harmonia dinâmica da humanidade inserida na biosfera necessitará

da participação pessoal em um contexto de apoio mútuo, catalisando experiências reais,

generalizadas, possíveis de serem refletidas e que estimulem cada um de nós até as

raízes de nossas atitudes.

Por conseguinte, modelos de ação a serem criados deverão ser

multidimensionais e preconizar a integração entre atividades cognitivas e físico-

dinâmicas.

É importante que os modelos encerrem em si a totalidade do propósito de cura

e possam constituir a coesão necessária à força de experiências e projetos

complementares que atuarão em rede, buscando potencializar o que a humanidade

possui como vocação, delineando um novo modus operandi e consolidando um novo

fluxo cultural alicerçado por um novo paradigma social.

Entende-se por paradigma social “uma constelação de conceitos, de valores, de

percepções e de práticas compartilhadas por uma comunidade, formando uma visão

particular de realidade que constitui a base da maneira segundo a qual a comunidade

organiza a si mesma”. Essa definição de Fritjof Capra pressupõe a necessidade de um

paradigma ser compartilhado por uma comunidade. “Uma pessoa isolada pode ter uma

visão de mundo, mas um paradigma é compartilhado por uma comunidade”.1

Ao longo dos últimos séculos, o paradigma social alimentou e sustentou a

dinâmica patológica da nossa espécie. Entre postulados paradigmáticos que orientaram

as relações sociais, podemos citar alguns, entre outros, bastante significativos:

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• A natureza estritamente mecânica do universo, que se compõe de partes

independentes, dissociadas umas das outras, criadas por um ente superior e

exterior ao universo;

• Leis da natureza exatas e evidentes, alcançadas pela linguagem matemática;

• A natureza como um aspecto feminino que deve ser dominado e ter seus

segredos arrancados e subjugados, sendo ela uma propriedade inesgotável dos

seres humanos;

• O Planeta Terra inerte, um mero habitat, no qual os seres vivos independentes

lutam constantemente pela existência, disputando recursos limitados;

• O caráter anti-social da natureza humana, necessitando de instituições

repressivas para ordenar as relações em sociedade.

Ao longo dos últimos séculos, estes postulados, amparados pela ânsia

expansionista européia, enalteceram valores de dominação, subjugação e posse, e

contribuíram decisivamente para moldar uma visão que suprimiu em grande medida o

pólo arquetípico feminino de nosso paradigma social.

No Capítulo 1 fizemos uma reflexão em torno da visão de mundo

excessivamente yang que engendrou as atitudes espoliativas no âmago da sociedade

humana e determinou a perda do senso de holonomia que resultou na enfermidade

planetária atual.

Esse comportamento fundamentado em pressupostos individualistas e na

dissociação do ser humano e da natureza foi reproduzido sobremaneira desde o fim da

Idade Média, ao longo de séculos de impressionante expansão.

Durante este período, consolidou-se a chamada ciência clássica, cujos

pressupostos se compatibilizavam com o paradigma social e contribuíram para definir o

comportamento individualista e expansivo característico da sociedade européia. Tais

pressupostos são os seguintes:

i. Simplicidade – análise reducionista, enfoque nas relações causais lineares,

meta de revelar ordens simples ocultas por trás de uma aparente

complexidade dos fenômenos;

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94

ii. Estabilidade – determinação, previsibilidade, reversibilidade e

controlabilidade dos fenômenos naturais;

iii. Objetividade – versão única do conhecimento, crença de que é possível

conhecer o mundo “tal como ele é”. 2

Estes pressupostos mecanicistas foram, todavia, superados com a revolução

científica iniciada pelas teorias quântico-relativísticas na Física e reforçada pelas

transformações nas outras disciplinas encadeadas pelo novo conhecimento da natureza

da matéria.

Ao longo do Século 20, a ciência apresentou à humanidade um novo modelo de

realidade que desafiou grande parte dos alicerces conceituais que sustentaram a visão

de mundo predominante nos séculos anteriores.

As pesquisas quântico-relativísticas provocaram uma grande ruptura conceitual

e as verdades e certezas da ciência clássica que vieram sendo reproduzidas por

centenas de anos foram colocadas abaixo diante de incontestáveis evidências

experimentais.

Ao penetrarem no átomo, os físicos se depararam com uma realidade que em

nada se parecia com um mecanismo composto de partes independentes simples,

estáveis e objetivas, seguindo leis naturais exatas. Pelo contrário, o que os cientistas

enxergaram foi uma incrível interconexão entre as entidades subatômicas em um

padrão imprevisível estabelecido pelas relações entre as partículas e não pelas partículas

em si mesmas.

Nas palavras do físico Fritjof Capra,

“A teoria quântica mostrou que as partículas subatômicas não são

grãos isolados de matéria, mas modelos de probabilidade,

interconexões numa inseparável teia cósmica que inclui o observador

humano e sua consciência. A teoria da relatividade fez com que a teia

cósmica adquirisse vida, por assim dizer, ao revelar seu caráter

intrinsecamente dinâmico, ao mostrar que sua atividade é a própria

essência de seu ser. Na física moderna, a imagem do universo como

uma máquina foi transcendida por uma visão dele como um todo

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dinâmico e indivisível, cujas partes estão essencialmente inter-

relacionadas e só podem ser entendidas como modelos de um

processo cósmico. No nível subatômico, as inter-relações e interações

entre as partes do todo são mais fundamentais do que as próprias

partes. Há movimento, mas não existem, em última análise, objetos

moventes; há atividade, mas não existem atores; não há dançarinos,

somente a dança”. 3

O paradigma social ainda não compartilha a profundidade das mudanças de

percepção que o conhecimento quântico-relativista evoca. Arraigadas noções

individualistas, dissociativas e fragmentárias têm que ser revistas sob a ótica de uma

nova ciência sustentada por novos pressupostos, a saber:

i. Complexidade – incapacidade de imaginar um objeto a não ser em conexão

com outros objetos, importância essencial do contexto, relações causais

recursivas, abordagem das contradições sem a tentativa de excluí-las;

ii. Instabilidade – indeterminação, imprevisibilidade, irreversibilidade e

incontrolabilidade dos fenômenos naturais;

iii. Intersubjetividade – versões múltiplas do conhecimento, princípio da

incerteza, impossibilidade de se conhecer o mundo “tal como ele é na

realidade”, conhecimento relativo às condições de observação.4

Tais concepções encadearam um profundo processo de reestruturação

científica, promovendo uma revolução epistemológica que embasa de maneira

consistente a mudança do paradigma social.

Surge, no âmago da ciência, uma nova cosmovisão holística que tem como

alicerce fundamental o “Princípio Organizador da Totalidade”. Ao invés de desmontar o

grande quebra-cabeças universal para compreender suas peças componentes, tal qual a

ciência veio fazendo ao longo dos últimos séculos, a compreensão holística tem o foco

na visão do quebra-cabeças como um todo, na figura que ele assume como totalidade, e

enxerga cada peça em relação a essa totalidade na qual elas se integram.

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96

Ao incorporarmos a visão holística, passamos a enxergar o universo como um

todo interconectado, um padrão energético orgânico que não pode ser fragmentado,

estando presente em todas as partes, como uma mente cósmica que abrange a si

mesma no imenso e no ínfimo. Através de freqüências diferentes, esse padrão cósmico

da totalidade materializa-se em instâncias complementares que interagem criativamente

engendrando a extraordinária diversidade da matéria.

Conforme refletido acima, um paradigma social tem que ser compartilhado por

uma comunidade. Torna-se muito significativo perceber que essa profunda

transformação cognitiva advinda da nova ciência ainda não adentrou nas bases de nossa

cultura e a concepção reducionista do funcionamento da espetacular máquina universal

criada por um “grande engenheiro” ainda perdura, se realimentando pelas mídias, pelas

instituições sociais e pelos sistemas oficiais de educação. Estamos no Século 21 e a

grande maioria de nossas escolas ainda é orientada pela cosmovisão do Século 19.

Ao longo do Século 20, a percepção da realidade que emergiu da Física se

espalhou no âmbito das demais ciências, adentrando os conceitos centrais da Biologia,

da Medicina, da Psicologia, da Economia, da Sociologia, entre outras. A difusão das

idéias essenciais do pensamento holístico, tais como a interconexão essencial das partes

de um todo e a unidade e a diversidade em um universo indivisível, foi aos poucos se

tornando a base para o desenvolvimento das teorias científicas, incentivando a

aproximação dos domínios de pensamento e incitando a criação de uma perspectiva

transdisciplinar na ciência.

Ao longo das últimas três décadas do Século 20, o físico Fritjof Capra

empreendeu um vigoroso trabalho que buscou sintetizar a revolução do pensamento

que veio ocorrendo ao longo das décadas anteriores, fundindo diversas correntes de

pensamento que há séculos se desdobravam separadamente. Ao aproximar teorias de

campos diferentes em um contexto transdisciplinar, Capra propiciou uma visão clara das

mudanças culturais pelas quais a humanidade está passando a partir da ciência

contemporânea.

Uma inexorável força unificadora que expõe a profunda compatibilidade e

complementaridade entre as novas concepções científicas e as tradições espirituais de

todos os povos sustenta a estrutura conceitual que delineia de forma convincente uma

Page 99: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

97

nova percepção de realidade que Capra chamou de “Visão Sistêmica”, reconciliando o

método científico com a sabedoria ancestral e apontando diretrizes para o futuro.

Nas palavras de Willian Irwin Thompson,

“Podemos ver que todas essas correntes fazem parte de um mesmo

lençol d’água, e todas estão convergindo para alimentar um único lago.

Vejo esse lago como uma metáfora para uma nova comunidade, uma

nova ecologia do conhecimento. À medida que essas diferentes

correntes de pensamento começarem a se interligar num ecossistema

mais amplo, começaremos a deixar a atuação particularizada da

pesquisa e inovação científicas para uma idéia diferente, que não será

apenas a de uma nova descoberta ou uma nova teoria, mas a de uma

nova cultura planetária”. 5

Em contraste com os pressupostos do paradigma social que preponderou nos

últimos séculos, a visão sistêmica altera profundamente a percepção da realidade, e

pode promover o resgate do senso de holonomia perdido e viabilizar o erguimento de

premissas sociais capazes de gerar o equilíbrio entre humanidade e biosfera. A seguir

apresentamos algumas dessas premissas que trazem consigo um grande potencial

regenerativo.

8.1 Uma nova concepção de mente

Faz-se de grande valia se buscar novas compreensões do fenômeno da mente.

Gregory Bateson foi um pensador que muito contribuiu para a superação das noções de

um universo estritamente mecânico, composto de partes independentes, dissociadas

umas das outras, e de um planeta inerte, sem vida, de onde os seres vivos tiram seu

sustento, tendo proposto uma nova definição para a mente como um fenômeno

sistêmico característico dos sistemas vivos, sociedades e ecossistemas.

Para que o processo mental ocorra, Bateson enumerou uma série de critérios

que os sistemas têm que satisfazer. Satisfeitos esses critérios, qualquer sistema estará

Page 100: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

98

apto a processar informação e desenvolver fenômenos que associamos à mente, como,

por exemplo, o pensamento, a aprendizagem e a memória.

A mente, nesse contexto, é uma conseqüência necessária e inevitável de uma

certa complexidade que começa muito antes de os organismos desenvolverem um

cérebro e um sistema nervoso superior. A mente é, com efeito, uma propriedade

essencial dos sistemas vivos. Como disse Bateson, “a mente é a essência do estar

vivo”.6

Para se entender essa nova concepção de mente, faz-se oportuna a

compreensão do conceito de sistemas auto-organizadores, trabalhado pelo físico-

químico belga Ilya Prigogine, que sugere que os padrões de organização característicos

dos sistemas vivos podem ser resumidos em termos de um único princípio dinâmico, o

princípio da auto-organização. Capra assim descreve esse princípio:

“Um organismo vivo é um sistema auto-organizador, o que significa que

sua ordem não é imposta pelo meio ambiente externo, mas estabelecida

pelo próprio sistema. Em outras palavras, os sistemas auto-organizadores

apresentam certo grau de autonomia, o que não significa que sejam

isolados do ambiente em que vivem; pelo contrário, interagem com ele

continuamente, mas essa interação não determina sua organização. Eles se

auto-organizam.7

Os critérios para a ocorrência da mente na perspectiva de Bateson e os critérios

para a ocorrência da auto-organização na perspectiva de Prigogine são muito

semelhantes, quase idênticos, o que engendra a afirmação de que mente e auto-

organização são aspectos diferentes de um só fenômeno, o fenômeno da vida.

Por conseguinte, a partir desse novo ponto de vista, nas palavras de Capra,

“(...) a vida não é uma substância ou uma força e a mente não é uma

entidade que interage com a matéria. Vida e mente são manifestações

do mesmo conjunto de propriedades sistêmicas, um conjunto de

processos que representam a dinâmica da auto-organização. (...) A

descrição da mente como um modelo de organização, ou um conjunto

Page 101: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

99

de relações dinâmicas, está relacionada com a descrição de matéria na

física moderna. Mente e matéria já não parecem pertencer a duas

categorias fundamentalmente distintas, como acreditava Descartes;

pode-se considerar que apenas representem aspectos diferentes do

mesmo processo universal”. 8

Capra, em seu relato autobiográfico “Sabedoria Incomum”, descreve a forma

como o conceito de mente de Bateson influenciou sua percepção:

“Fiquei bastante excitado quando percebi isso, pois para mim significou

não apenas minha primeira compreensão real do conceito de mente de

Bateson, mas também uma perspectiva inteiramente nova do fenômeno

da vida. (...) A partir desse momento meu entendimento da relação

entre mente e vida, ou mente e natureza, como Bateson diria, continuou

se aprofundando. Com isso passei a apreciar melhor a riqueza e a beleza

de seu pensamento. Compreendi de maneira plena por que lhe era

impossível separar mente e matéria. Quando Bateson observava o

mundo vivo, ele concebia seus princípios de organização como

essencialmente mentais, e imanência da mente à matéria em todos os

níveis de vida. Ele alcançou assim uma síntese única e singular entre

noções de mente e noções de matéria; uma síntese que, como ele

gostava de ressaltar, não era mecânica nem sobrenatural”. 9

Essa nova concepção de mente, de fato, é bastante inovadora e não parece ter

nada a ver com as coisas que normalmente se associam à palavra “mente”.

Sendo a mente a dinâmica da auto-organização, ela representa a organização

de todas as funções dos sistemas vivos. O conceito de mente de Bateson, portanto,

atribui o processo mental não só a organismos individuais, mas também a sistemas

sociais e ecológicos. A mente, segundo Bateson, é imanente não só no corpo, mas

também nos caminhos e nas mensagens fora do corpo. Existem manifestações mais

amplas de mente, das quais nossas mentes individuais são apenas subsistemas.

Page 102: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

100

Como sugere Capra,

“Esse reconhecimento tem implicações bastante radicais para nossas

interações com o meio ambiente natural. Se separarmos os fenômenos

mentais dos sistemas maiores em que eles são imanentes, e os

confinarmos a indivíduos humanos, veremos o meio ambiente como

desprovido de mente e seremos propensos a explorá-lo. Nossas atitudes

serão muito diferentes quando nos apercebermos de que o meio

ambiente não só está vivo como também é dotado de mente, como nós.

(...) Na ordem estratificada da natureza, as mentes humanas individuais

estão inseridas em mentes mais vastas dos sistemas sociais e

ecológicos, e estes, por sua vez, estão integrados no sistema mental

planetário – a mente de Gaia –, o qual deve participar, finalmente, de

alguma espécie de mente universal ou cósmica”. 10

Finalizando seu raciocínio, Capra enfatiza que esta concepção de mente não é

restringida pela idéia tradicional de Deus. E cita Erich Jantsch: “Deus não é o criador,

mas a mente do universo”.11 Sendo assim, complementa Capra, “a deidade não é,

evidentemente, masculina ou feminina, nem se manifesta em qualquer forma pessoal,

mas representa nada menos do que a dinâmica auto-organizadora do cosmo inteiro”.12

Podemos agora nos recordar das palavras de Dethlefsen e Dahlke, citadas

anteriormente, que sugerem que a humanidade está envolvida em uma viagem sem

rumo, usando o meio ambiente como fonte alimentar, um celeiro, e tudo existe para

que os homens possam se espalhar de forma indiscriminada e ilimitada sobre a terra.

A nova e ampliada concepção de mente descrita acima nos traz um olhar

diferente e de reverência para o planeta, fazendo-o não mais um depósito de

suprimentos, mas o ser vivo do qual somos parte e dependemos inteiramente para

sobreviver.

Nas palavras de Elisabet Sahtouris,

“Quanto mais aprendemos sobre a natureza, incluindo a natureza

humana, menos sentido faz criar divindades à nossa própria imagem e

Page 103: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

101

contar a nós mesmos mitos, como o que somos suas criaturas

prediletas. O sentimento intuitivo antiqüíssimo, de que há uma

inteligência maior e mais sábia que a nossa e à qual pertencemos, é

hoje confirmado pela ciência e podemos perceber agora que nosso

planeta pai e todo nosso cosmo vivo são muito mais belos e

impressionantes, na realidade de sua autocriação, do que qualquer mito

que inventamos enquanto lutávamos para aumentar nossos

conhecimentos. Finalmente, as buscas científica e religiosa podem

fundir-se no reconhecimento de que a natureza autocriativa – de Géia

(sic) e cósmica – é a nossa origem física e espiritual, a fonte de nossa

inspiração antiga e o guia experiente que sempre procuramos, o guia de

que necessitamos mais do que nunca, agora que estamos no limiar da

maturidade”. 13

8.2 Ecologia Profunda

A nova Biologia é um coeso conjunto de conceitos potencialmente importantes

na mudança de mentalidade das sociedades humanas. Por sua vez, a Ecologia, a ciência

que estuda as relações que interligam os seres vivos e que emergiu das escolas

organísmicas da Biologia, enriqueceu muito a maneira sistêmica de pensar, introduzindo

concepções importantes para a compreensão da dinâmica dos sistemas vivos no Planeta

Terra.

Duas dessas importantes concepções facilitaram o alcance de um entendimento

mais consistente da vida: comunidade e rede.

Entende-se por comunidade o conjunto de organismos aglutinados num todo

funcional por meio de suas relações mútuas. Hoje, todavia, se sabe que os organismos

não são apenas membros de comunidades ecológicas, mas também são, eles mesmos,

complexas comunidades, contendo uma multidão de outros organismos menores

dotados de considerável autonomia e que, não obstante, estão harmoniosamente

integrados no funcionamento do todo mais abrangente.

Ao longo do Século 20, verificou-se que as comunidades ecológicas organizam-

se à maneira de redes de relações de alimentação e, por conseguinte, as noções

Page 104: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

102

relacionadas à interdependência essencial entre os variados organismos da biosfera

tornaram-se cada vez mais explícitas.

A “teia da vida” é uma idéia antiga, que tem sido utilizada por poetas e místicos

de várias épocas para expressar o entrelaçamento essencial entre os seres da natureza,

idéia que sugere uma apurada intuição em relação à nossa condição de participantes

dessa teia. 14

Entretanto, a perspectiva cultural que ganhou proeminência no âmago da

sociedade aponta para uma visão antropocêntrica da vida, que enxerga o ser humano

fora ou acima da natureza e como sendo fonte de todo o valor. O Homo sapiens é,

nessa visão, a imagem e a semelhança de Deus, tendo sido criado para dominar a

Terra.

Embora possamos identificar o valor dessa perspectiva no contexto histórico, ao

potencializar a capacidade de sobrevivência da espécie, a arrogância comportamental

que emergiu da concepção antropocêntrica é hoje a força motriz da cultura insaciável

que identificamos como o padrão cancerígeno do planeta.

Faz-se urgente a transformação cognitiva neste âmbito, promovendo a

compreensão ecológica profunda, em superação à perspectiva egocêntrica humana, que

é identificada inclusive dentro dos próprios movimentos ambientalistas.

O conceito de Ecologia Profunda surgiu na década de 1970, através do filósofo

norueguês Arne Naess, tanto como filosofia quanto como movimento social. A Ecologia

Profunda não separa o ser humano da natureza; enxerga-o como um fio da teia da vida,

enfatizando nossa interdependência com toda a vida sobre a Terra e a necessidade de

uma compatibilidade mútua entre os seres viventes.

Entretanto, a compreensão desta posição não-hierárquica do ser humano no

contexto planetário traz implicações de grande amplitude, muitas vezes incompatíveis

com o modo de vida da sociedade de crescimento industrial baseada nos valores

autocentrados que incitam a exploração do meio ambiente natural.

Isto se torna claramente perceptível na forma como uma parte do movimento

ambientalista lida com os processos de transformação de comportamento. Boa parte dos

ambientalistas segue defendendo a proteção da natureza tendo em primeiro lugar e

como objetivo último o bem-estar da humanidade.

Page 105: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

103

John Seed, ativista australiano das florestas tropicais, alerta para a ineficácia do

raciocínio ambientalista raso que pressiona as populações através de exigências e

deveres:

“Aquilo que a humanidade é capaz de amar em virtude do mero dever

ou exortação moral é, infelizmente, muito limitado... A grande

moralização presente no movimento ecológico deu ao público a falsa

impressão de que cada um está sendo basicamente solicitado a se

sacrificar, a mostrar mais responsabilidade, mais preocupação e uma

moral mais adequada.(...) [Mas] o cuidado necessário flui naturalmente

quando o Eu se amplia e se aprofunda a ponte de sentir a proteção da

natureza livre, concebida como a proteção de nós mesmos”. 15

Ao dissiparmos a névoa que perpetua nosso olhar egocêntrico, aí sim começa a

ocorrer uma mudança de consciência em um nível mais profundo. É uma espécie de

libertação, que vai além de um processo meramente intelectual. Nas palavras de John

Seed:

“ ‘Estou protegendo a floresta tropical’ transforma-se em ‘Sou parte da

floresta tropical e me protejo. Sou a parte da floresta tropical que

acabou de desfrutar do pensamento’. E que alívio sentimos, então!

Acabaram-se milhares de anos de separação imaginária e começamos a

nos recordar de nossa verdadeira natureza. Ou seja, a mudança é

espiritual, às vezes chamada de ecologia profunda”. 16

8.3 Princípio Biocêntrico

Uma outra premissa de grande valia na estruturação de uma sólida base

cognitiva capaz de movimentar a roda da transformação cultural e que se mistura com

os princípios da ecologia profunda é o que o psicólogo e antropólogo chileno Rolando

Toro chamou de Princípio Biocêntrico.

Page 106: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

104

Segundo Toro,

“Este princípio tem como ponto de partida a vivência de um universo

organizado em função da vida (...) um estilo de sentir e pensar que

toma como ponto de partida, e como referência existencial, a vivência e

a compreensão dos sistemas viventes. Tudo o que existe no universo,

sejam elementos, astros, plantas ou animais, incluindo o ser humano,

são componentes de um sistema vivente maior. O universo existe

porque existe a vida e não o inverso. As relações de transformação

matéria-energia são graus de integração da vida”. 17

O Princípio Biocêntrico, em suma, é o parâmetro essencial que orienta o

comportamento de forma que os movimentos possam nutrir o processo evolutivo, para

criar mais vida dentro da vida. Rolando Toro versa sobre a constituição de uma cultura

de vida:

“A desconexão dos seres humanos da matriz cósmica da vida gerou,

através da história, formas culturais destrutivas. A dissociação corpo-

alma e a repressão da experiência paradisíaca conduziram à profunda

crise cultural em que vivemos. Se tomamos como ponto de partida as

propostas intrínsecas que surgem do ato de viver e da comunicação

entre os seres vivos, temos que abandonar, com decisão absoluta,

qualquer tipo de fundamentação cultural baseada no dinheiro e no

assassinato. Os interesses da vida nem sempre se conjugam com as

exigências de nossa cultura. Assim, por exemplo, todo o delírio jurídico

do Oriente e do Ocidente, com seus códigos e tribunais de justiça, se

baseiam na propriedade privada, e não na vida. As guerras são também

a expressão dessa psicose coletiva que nega a sacralidade da vida. A

cultura deveria estar organizada em função da vida. Nossas formas

culturais são anti-vida”. 18

Page 107: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

105

Assim, a cultura biocêntrica – a cultura ecológica profunda –, em superação à

cultura antropocêntrica, é a condição análoga, em nível planetário, à perspectiva celular

integrada ao organismo do qual faz parte, em superação à perspectiva autocentrada que

desencadeia a formação do câncer.

8.4 Aprendizado de Gaia

Entendermos a teia da vida e nos posicionarmos como um de seus fios é um

grande desafio para a educação e para a comunicação humanas. Abrandar o sentimento

profundamente arraigado de sermos os donos da Terra e incutirmos nas pessoas a idéia

de que somos nós que devemos nos adaptar à dinâmica do planeta, e não o contrário,

são tarefas bastante difíceis, ainda que plenamente viáveis.

O sentido de pertencer à Terra, de ser a Terra, enxergá-la como nosso corpo

cósmico, engendra novas formas de ser e agir. É o que aqui chamamos de “Aprendizado

de Gaia”, uma mudança espiritual de desencapsulamento dos nossos egos e uma

abertura sensível à extraordinária beleza da teia da vida em sua majestosa condição de

sistema vivente aninhado em sistemas viventes maiores.

Joanna Macy e Molly Young Brown, em seu livro “Nossa Vida como Gaia”, citam

o poeta californiano Robinson Jeffers, em um poema que capta o espírito dessa

transformação espiritual das pessoas que aprendem o sentido de estarem vivas em um

planeta vivo:

“...Adentrei a vida da floresta marrom,

E a grande vida dos antigos cumes, a paciência da pedra, senti as

mudanças nas veias

Na garganta da montanha, um grão em muitos séculos, temos nosso

tempo, não o seu; e fui o riacho

Escoando os galhos da floresta; e fui o alce bebendo; e fui as estrelas

fervendo de luz, vagando solitárias, cada qual senhora de seu

próprio ápice; e fui a escuridão

Ao redor das estrelas, inclui-as, elas eram parte de mim. Fui ainda a

humanidade, um líquen móvel

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106

Na face da pedra redonda...

... como posso expressar a dignidade que encontrei,

que não tem cor, mas clareza;

Não o mel, mas o êxtase...” 19

8.5 Sustentabilidade

Segundo Fritjof Capra, entende-se por alfabetização ecológica (ecoliteracy) “a

compreensão dos princípios de organização, comuns a todos os seres vivos, que os

ecossistemas desenvolveram para sustentar a teia da vida”. 20

Tal definição permite-nos introduzir a noção de sustentabilidade como uma das

premissas do novo cenário cognitivo para a humanidade. Sustentabilidade foi definida

na década de 1980 por Lester Brown, ativista fundador do World Watch Institute, como

a capacidade de satisfazermos nossas necessidades sem diminuir as chances das

gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades.21 Tal conceito sugere idéias

de longevidade, abundância e sinergia.

Ao observarmos a natureza, vamos entender de forma clara que os

ecossistemas são comunidades sustentáveis de plantas, animais e microorganismos.

Destarte, para que possamos desenvolver comunidades humanas sustentáveis, não

precisaremos partir do zero. Temos modelos vigorosos nos quais podemos embasar

nossas ações de modo que cessemos a devastação ambiental e posicionemo-nos de

forma benigna no contexto do Planeta Terra, modificando nossa percepção e tornando-

nos agentes de restauração e fortalecimento da biosfera.

Como sugere Lester Brown, “assim como um câncer em contínuo crescimento

acaba destruindo seus sistemas de suporte de vida ao destruir seu hospedeiro, a

economia global em expansão contínua está destruindo lentamente seu hospedeiro – o

ecossistema da Terra”.22

Em nosso raciocínio da metáfora do câncer planetário, a criação de

comunidades sustentáveis faz-se análoga ao fortalecimento do Sistema de Gaia,

estabelecendo condições favoráveis para a dissipação dos núcleos malignos de atividade

da economia global que utilizam arbitrariamente os recursos do organismo para a

perpetuação de um padrão deletério insustentável.

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107

A característica mais marcante da Terra é sua capacidade intrínseca de

sustentar a vida. Na medida em que criamos comunidades capazes de co-evoluir com o

planeta de forma sustentável, estaremos restaurando o senso de holonomia perdido e,

desta forma, superando a atual enfermidade caracterizada pela dissociação entre o ser

humano e a natureza do planeta.

Na medida em que nossos modos de vida, negócios, economia, estruturas

físicas e tecnologia tornam-se sustentáveis, o ecossistema Terra vai se fortalecendo e o

represamento nefasto de energia por parte dos grupos controladores da economia

global vai sendo dissipado.

Conforme dissemos anteriormente, o motor desse sistema atual depende de

nossa participação e, por enquanto, tal engrenagem tem sido prodigiosa no trabalho de

sufocamento energético das massas. As comunidades insustentáveis acabam fornecendo

sua força criativa para alimentar a dinâmica do desarranjo, tendo em vista que estão

enfraquecidas e não conseguem se mobilizar em sentido contrário.

Na medida em que vão se restaurando, desenvolvendo alternativas estruturais

que permitam a utilização de seu potencial criativo na consolidação de sistemas

sustentáveis, as comunidades humanas se emancipam do jugo do sistema institucional

preparado para beneficiar uma pequena parcela – o “tumor” – em detrimento de todo o

superorganismo planetário.

Este raciocínio parece lógico, mas apresenta dificuldades de efetivação. A

ciranda viciosa sobre a qual a dinâmica econômica cancerígena se sustenta apresenta-se

tal qual uma forte “correnteza” que exige que toda a energia seja utilizada para evitar

que a sociedade seja levada “rio abaixo rumo à queda”.

A atual mentalidade que permeia as relações humanas não parece capaz de

desenvolver métodos eficazes de sobreposição da força de tal “correnteza”. Por mais

que nos esforcemos, não estamos conseguindo evitar a aproximação do colapso.

Precisamos de um novo olhar sobre a vida. E é na construção de uma nova forma de

enxergar a realidade que sustentamos a visão sistêmica como linguagem, como

estratégia cognitiva para alavancar a reação da sociedade.

Acredita-se que, provendo as pessoas de uma nova forma de compreender a

vida e o universo, revisitando os conceitos básicos de formulação do mundo e da

cultura, criaremos uma estrutura ecológica de conhecimento capaz de vivificar nossas

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108

esperanças, renovar os tecidos sociais e nos mobilizar para o grande desafio que temos

pela frente, criando um novo paradigma social embasado em um sentimento de

autocura e evolução.

Este novo olhar não é somente um sonho, mas está se tornando efetivo. São

muito numerosos os elos de uma nova sociedade em rede organizada e provida de

ferramentas e instrumentos para mobilizar as grandes massas, apesar do controle da

comunicação por parte das corporações de mentalidade cancerígena.

Mas, tal qual um rizoma, as novas perspectivas estão se espalhando pelos

cantos do planeta, através do uso hábil da internet e do alcance global de organizações

não governamentais que formam uma coalizão que dá o tônus a essa rede de ação.

Como sustenta o sociólogo Manuel Castells:

“Na sociedade em rede, as mudanças sociais (...) desenvolvem-se a

partir de identidades baseadas na rejeição dos valores predominantes na

sociedade – o patriarcado, o domínio e o controle da natureza, o

crescimento econômico e o consumo material ilimitados, etc. A

resistência contra esses valores começou com os poderosos movimentos

sociais que tomaram conta do mundo industrializado na década de 1960.

Por fim, nasceu desses movimentos uma visão alternativa, baseada no

respeito à dignidade humana, na ética da sustentabilidade e numa

concepção ecológica do universo. Essa nova visão constitui a base da

coalizão mundial de movimentos populares”. 21

Esta coalizão mundial das redes ecológicas de sustentabilidade ainda não

possui uma linha de ação unificada. O que se espera com a sistematização da metáfora

do câncer planetário é a catalisação de novas conexões que fortaleçam os grupos de

reação, provendo-os de um referencial capaz de transcender os antagonismos e

aglutinar as intenções de restauração da Terra, no qual eles possam se amparar na

construção de estratégias conjuntas de educação, comunicação e desenvolvimento de

novas tecnologias sociais.

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109

9. TEMPO DE DOENÇA E TEMPO DE MORRER

Quando se lida com uma doença que pode ser fatal, costuma-se dividir as

abordagens terapêuticas em dois tempos: o tempo da doença, em que todos os esforços

são orientados para a cura, para prover o paciente das melhores condições de

recuperação e superação da enfermidade; e o tempo de morrer, quando a situação

orgânica do paciente já não inspira expectativas de melhora e o trabalho médico e

terapêutico se volta para prover à pessoa um processo de passagem o mais digno e

menos doloroso possível.

Ao evocarmos a metáfora do câncer para a situação planetária, uma

conseqüência usual é nos indagarmos se estamos no tempo de doença ou no tempo de

morte. Se a humanidade vai conseguir se reorganizar através de outros alicerces

culturais e se reintegrar à natureza do planeta, ou se chegamos a um ponto sem retorno

e é apenas uma questão de tempo para que a humanidade sucumba em torno de seus

próprios equívocos de percepção.

A perspectiva adotada por este trabalho de pesquisa é a crença de que ainda

vivemos o tempo de doença e que existem formas viáveis de transformação cultural

capazes de estancar o processo de devastação ambiental e reorientar os indivíduos,

comunidades e instituições. Acredita-se ser possível criar o sentido do desenvolvimento

de uma lógica biocêntrica capaz de restaurar a harmonia ecológica do planeta e,

consequentemente, superar a moléstia que nos acomete.

Entretanto, esforços concatenados e bastante eficientes terão que ser

realizados no sentido de promover um entendimento mais amplo da condição do planeta

para que os grupos humanos se motivem e se mobilizem para a cura. Conforme

dissemos, reconhecer emocionalmente a enfermidade e fortalecer os sistemas que

sustentam a vida do planeta fazem-se ações prementes.

É, contudo, muito difícil afirmar qualquer coisa em relação ao estágio do atual

desequilíbrio do planeta e sua força dissociativa. O mesmo ocorre na avaliação dos

pacientes com câncer. Nas palavras de Lawrence LeShan,

“Nós, que trabalhamos com pacientes com câncer, somos culpados por

algumas vezes brutalizarmos pacientes, quer seja por não reconhecer

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110

que eles passaram da fase da doença para a fase da morte, quer por

tratá-los como se estivessem na fase da morte quando estão na fase da

doença. Para evitar essa brutalidade, os terapeutas devem estar

conscientes de sua orientação particular, compensá-la e ser tão sensíveis

quanto possível aos pacientes”. 1

Em sua visão, LeShan sugere alguns aspectos que ajudam ao terapeuta

identificar essa passagem de uma fase a outra:

“Uma maneira que considero útil para mim mesmo é o surgimento de

uma fadiga profunda, uma fadiga tão profunda que parece ser o

equivalente psicológico da exaustão adrenal. Os pacientes literalmente

não possuem mais energia para lutar pela vida. Eles participaram da

corrida, fizeram tudo o que foi possível, e não têm mais absolutamente

nenhuma energia para continuar. A exaustão é básica e total. Eles

apenas desejam descansar”. 2

Ao transpormos a perspectiva de um indivíduo para a perspectiva das

coletividades humanas, fica em aberto a reflexão sobre o nível de fadiga ao qual os

grupos e comunidades humanas estão submetidos. Ainda é possível verificar muita

energia de reação, mas o grau de inércia e desalento também parece muito intenso.

Embora a perspectiva adotada por este trabalho seja a crença no tempo de

doença, é bastante oportuno que se faça uma reflexão sobre o tempo de morrer, afinal

não existe nenhum parâmetro que nos ofereça a certeza de que não vamos vivenciar

esta fase.

Como nos dizem James Creighton, Carl e Stephanie Simonton,

“Talvez o fato mais assustador, carregado de emoções e difícil que a

vida deva assumir seja a morte. É terrível que o assunto da morte seja

praticamente um tabu na nossa sociedade. A omissão de discutir –

mesmo que somente para reconhecer – a morte acarreta o medo que

temos dela e a nossa incerteza em como abordá-la”. 3

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111

Já foi mencionada a enorme dificuldade de se aceitar a morte e a busca

incessante por prolongar a vida a qualquer custo no contexto social contemporâneo,

mesmo que isso acarrete sofrimento pessoal e inchaço social. Essa é uma das

características de uma célula cancerosa, quando ela desativa os mecanismos de

apoptose (morte celular endógena) e busca se manter viva de qualquer maneira,

mesmo percebendo que as células jovens vêm para ocupar o seu lugar e fazer

regenerar os tecidos do corpo.

Para nos curarmos, provavelmente, não precisaremos matar ninguém, mas

teremos inevitavelmente que aprender a morrer. Essa sabedoria diz respeito à nossa

individualidade e ao nosso senso de pertencimento a um organismo maior que depende

da renovação equilibrada de seus tecidos.

Se não formos capazes de nos livrar do apego em relação ao nosso próprio

corpo e à nossa própria vida individual, se não conseguirmos verificar que nossa vida

continua em formas mais amplas mesmo depois da morte de nosso corpo,

provavelmente a nossa superpopulação e a crescente demanda por recursos impedirá a

reorganização social e entraremos no tempo de morrer.

E nesse momento de encararmos o tempo de morrer, o que deveremos fazer?

A visão de LeShan traz uma perspectiva alentadora:

“A essência da tarefa do tempo de morrer é enxergar a totalidade de

nossa vida como um padrão e uma sinfonia na qual os temas se

intensificam e gradualmente desaparecem, e o conjunto forma um todo

organizado e real. É necessário perdoar e aceitar a nós mesmos para

que, no final, sejamos reais conosco mesmos, e não – como muitos de

nós somos para nós mesmos durante nossa vida – um fantasma. (...) O

tempo de morrer torna-se, assim, a última aventura, uma aventura tão

importante quanto quaisquer outras experimentadas (...). Torna-se um

período de crescimento e desenvolvimento”. 4

E LeShan apresenta a sua meta, quando trabalha no contexto do tempo de

morrer:

Page 114: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

112

“Mudar a cor do tempo de morrer, permitindo que seja, para cada

pessoa, uma excitante e interessante aventura em seu crescimento. Para

que este não seja um período árido, deprimente, mas, sempre que

possível, um período de vir-a-ser, de crescer, um avanço total em

direção à última tarefa que cada um de nós irá enfrentar, ou seja,

morrer tão bem, tão completamente, tão confiantes quanto nos é

permitido ser. Conhecer e afetuosamente aceitar quem somos, antes de

morrer”. 5

Se atingirmos a consciência de que vivemos o tempo de morrer, podemos

transformá-lo em um momento de extremo significado, buscando libertar nossas mentes

e nossos corpos dos condicionamentos nocivos que nos foram sendo acumulados ao

longo dos últimos milênios.

O fim da história torna-se um tempo de profundo aprendizado, em que

permitimos a exploração do extraordinário potencial de nossa espiritualidade, abrindo

veredas da imaginação e transcendendo a matéria para acessar os padrões de luz que

trazem a certeza de que a vida continua em outras escalas, de que o universo vivo

segue em seu curso e de que a vida, como disse Rainer Maria Rilke, não é um problema

para ser solucionado, mas um mistério para ser vivido.

Assim, o tempo de morrer é propício para que possamos evocar a gratidão em

rituais de celebração. Que possamos nos conhecer a nós mesmos, alimentando a

amplitude do mundo espiritual, acessando, através dos nossos aguçados sentidos, as

dimensões transcendentes do cosmos. Como diz David Steindl-Rast,

“É com a gratidão que a espiritualidade começa, com um senso de

gratidão por estar vivo, gratidão pela dádiva deste universo ao qual

pertencemos. No dar e no receber da vida de todos os dias, cada ação

pode se tornar uma grata celebração deste pertencer”. 6

Deve-se enfatizar aqui a crença de que vivemos o tempo de doença e na cura

da biosfera, o objetivo primordial deste trabalho. Entretanto, refletir sobre a morte faz-

Page 115: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

113

se muito importante. Na medida em que lidamos de uma forma mais lúcida e menos

assustada com este encontro, mais forte parecemos ficar para fazer o que tem que ser

feito. Quanto menos amarga nos for a idéia da morte, mais fortalecido nos sentimos

para lutar pela vida. Uma vez que nos permitamos morrer, toda a perspectiva dessa

morte é alterada. Afinal, podemos melhorar nossa qualidade de vida de qualquer forma.

Como Capra nos diz,

“A necessária confrontação com a morte (...) toca no problema

existencial fundamental, característico da condição humana. [As

pessoas] são assim levadas naturalmente a considerar suas metas na

vida, suas razões para viver e sua relação com o cosmos como um

todo”. 7

Em suma, é isso que precisamos para ativar nosso potencial de reação para que

possamos nos organizar e efetivar as ações de regeneração dos tecidos da vida. O olhar

cuidadoso para a morte e o discernimento que subjaz dessa lucidez nos eleva a

esperança na vida. E, sobre esperança, são inspiradoras as palavras do estadista tcheco

Vaclav Havel:

“O tipo de esperança sobre o qual penso freqüentemente,...

compreendo-a acima de tudo como um estado da mente, não um estado

do mundo. Ou nós temos a esperança dentro de nós ou não temos; ela

é uma dimensão da alma, e não depende essencialmente de uma

determinada observação do mundo ou de uma avaliação da situação...

[A esperança] não é a convicção de que as coisas vão dar certo, mas a

certeza de que as coisas têm sentido, como quer que venham a

terminar”. 8

Page 116: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

114

CONCLUSÃO

Este trabalho de pesquisa, em última instância, deve ser considerado um

trabalho filosófico. Afinal, muitas de suas afirmativas não estão corroboradas por

procedimentos de quantificação e mensurabilidade e não são mais do que especulações

sobre perguntas que não podem ser respondidas pela observação direta ou pela

experimentação. Contudo, como nos dizem Lynn Margulis e Dorion Sagan,

“É fascinante tentar discernir os fios dos conceitos culturalmente

herdados e lingüisticamente reforçados que norteiam até mesmo nossos

pensamentos de aparência mais original. Uma explicação da metafísica

pode não levar à verdade absoluta, mas certamente não deve ser um

anátema para as mentes científicas abertas”. 1

É com este espírito que procurei referenciar as idéias aqui apresentadas em

trabalhos de cientistas reconhecidos para mostrar que, embora a costura dos conceitos

seja um insight pessoal, todas as idéias têm embasamento nas obras de outros

pensadores. Este trabalho segue o propósito de transcender as inevitáveis separações e

limitações do sistema científico convencional e se imbui da missão transdisciplinar de

organizar idéias e difundi-las como elos de conexão à realidade viva do planeta. Como

diz James Lovelock, no prefácio do livro “A Dança da Terra”:

“Necessitaremos de sintetizadores e visionários independentes, que

possam extrair sentido dos dados produzidos pelo sistema científico e

apresentá-los de maneira que tornem nosso planeta vivo real para nós

dentro do contexto de Gaia e, portanto, confira sentido à nossa própria

vida e à vida de nossos filhos e netos”. 2

Em busca de uma síntese, toda a linguagem desenvolvida neste texto tem um

caráter metafórico, utilizando-se de isomorfismos que trazem subjacente a incerteza.

Partilha da crença de Terence McKenna de que “todos os modelos são provisórios e é

isso que preserva o estado de abertura daquilo que eles estão modelando”.3 A função

Page 117: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

115

básica de um trabalho como esse é projetar um feixe de luz no mistério intrínseco à

realidade.

Vislumbram-se algumas complementações, objetos de futuros trabalhos de

pesquisa, para que o texto ganhe a consistência desejada. A principal delas talvez seja a

descrição de práticas físicas, orgânicas, que podem auxiliar no fortalecimento da saúde

individual e, conseqüentemente, no fortalecimento comunitário e institucional no

processo de mobilização para a cura da enfermidade planetária.

Entre as diversas práticas, podem ser citadas:

i. Meditação – prática capaz de direcionar o poder do pensamento na

direção da cura do Sistema de Gaia, sendo análoga aos processos de

visualização utilizados na cura do câncer em indivíduos;

ii. Yoga – modo de vida capaz de fortalecer integralmente os organismos e

proporcionar à mente um estado benéfico de concentração;

iii. Biodança – sistema vivencial que promove integração afetiva, renovação

orgânica e reaprendizagem das funções originárias da vida, fortalecendo

os vínculos conosco mesmos, com os outros e com o universo;

iv. Substâncias Enteógenas – experiências que promovem o contato

transcendental com a realidade, alargando as vias ordinárias da percepção

e reconectando os indivíduos com a realidade unificada da biosfera.

Fazem-se análogas às intervenções medicamentosas em tratamentos.

Estas e outras práticas visam o enaltecimento das virtudes humanas, buscando

a dissipação dos vícios e condicionamentos impostos pela cultura e que hoje tornam as

pessoas meros autômatos de reprodução da mentalidade patológica. Um outro trabalho

de pesquisa deverá aprofundar esta dimensão física do processo de restauração do

Sistema de Gaia.

Ao caminharmos para o final deste texto, pode-se identificar, em suma, que a

essência da busca é a reconexão ao ser planetário vivente. Independente da forma

como essa conexão se dê, é ela que permitirá a dissolução do represamento crônico da

nossa energia vital. Como diz Elisabet Sahtouris,

Page 118: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

116

“Graças à nossa ciência brilhante, nossos instrumentos de medição e

computação, nossa tecnologia espacial, podemos ver o planeta como um

ser vivo uno, que entendemos mal e maltratamos à nossa própria custa.

Começamos a compreender que, enquanto o planeta tem grande

experiência e sabedoria a ensinar-nos, nossa falta de compreensão e

respeito levou-nos a explorá-lo como se ele só existisse para esse fim.

Só agora compreendemos que estivemos destruindo como vândalos o

planeta-mãe do qual dependemos e com o qual podemos aprender

muito sobre o uso mais sábio de nosso dom de liberdade consciente”. 4

A nascente (e também ancestral) visão de Gaia tem um singular potencial de

alterar nossa percepção e promover uma conexão espiritual com o planeta do qual

somos parte. A crise está em nossas mentes e sua solução, paradoxalmente, também

está.

Precisamos fundamentalmente mudar o enfoque, os valores, as metas e, por

mais difícil que isso possa parecer, é um fenômeno possível de acontecer, pois não

dependerá de forças exteriores. O processo é interno e temos, conforme nos salientam

Humberto Maturana e Francisco Varela, autonomia para nos transformarmos.

Precisamos, contudo, conhecer o conhecimento para que possamos assumir nossa

responsabilidade de criarmos o mundo com todos os outros seres que formam a teia da

vida:

“Não é o conhecimento, mas sim o conhecimento do conhecimento, que

cria o comprometimento. Não é saber que a bomba mata, e sim saber o

que queremos fazer com ela que determina se a faremos explodir ou

não. Em geral, ignoramos ou fingimos desconhecer isso, para evitar a

responsabilidade que nos cabe em todos os nossos atos cotidianos, já

que todos estes – sem exceção – contribuem para formar o mundo em

que existimos e que validamos precisamente por meio deles, num

processo que configura o nosso porvir. Cegos diante dessa

transcendência de nossos atos, pretendemos que o mundo tenha um

devir independente de nós, que justifique nossa irresponsabilidade por

Page 119: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

117

eles. Confundimos a imagem que buscamos projetar, o papel que

representamos, com o ser que verdadeiramente construímos no nosso

viver cotidiano”. 5

A experiência de escrever este texto me trouxe à mente muitas vezes a noção

de responsabilidade. Vivi momentos de crise por não querer assumir a responsabilidade

sobre estas idéias, talvez por achar que elas talvez expressem um ponto de vista

equivocado e que tenha um efeito adverso, colaborando para que os grupos humanos

realmente sucumbam diante de tamanho desafio. Entretanto, no âmago de minha

percepção, trago a convicção de que estas idéias têm sentido e podem realmente

auxiliar na concatenação dos esforços de superação da crise planetária.

Como diz William Irwin Thompson, “as idéias, da mesma forma que as uvas,

crescem em cachos. As pessoas gostam de se agregar pelo simples fato de sentir que,

na videira, suas idéias se tornam mais completas e mais enriquecidas”.6 Como uma uva,

este texto faz parte de um grande cacho de idéias que vai criando aos poucos uma nova

forma de pensar, um jeito novo de olhar para nós mesmos, para as outras pessoas,

para os seres vivos, para o planeta.

É como participar de uma mutação genética orientada, uma transformação

profunda que resgata o senso de holonomia, equilibra os pólos complementares YIN e

YANG e promove uma transformação ontológica a partir de uma revolução do

pensamento.

Devemos seguir andando no fio da navalha, evitando os extremos objetivos e

subjetivos. Não há certezas, mas há evidências. Nas palavras de Maturana e Varela,

“Nessa trilha mediana, encontramos a regularidade do mundo que

experienciamos a cada momento, mas sem nenhum ponto de referência

independente de nós mesmos, que nos garanta a estabilidade absoluta

que gostaríamos de atribuir às nossas descrições. Na verdade, todo o

mecanismo da geração de nós mesmos – como descritores e

observadores – nos garante e nos explica que nosso mundo, bem como

o mundo que produzimos em nosso ser com os outros, será

precisamente essa mistura de regularidade e mutabilidade, essa

Page 120: AUTOCURA E EVOLUÇÃO, A METÁFORA DO CÂNCER PLANETÁRIO - FILIPE FREITAS

118

combinação de solidez e areias movediças que é tão típica da

experiência humana quando a olhamos de perto”. 7

As referências empíricas deste trabalho não permitem nenhuma afirmação

resoluta, porém sustentam um ponto de vista que, espero, nos leve a pensar mais

profundamente sobre o atual contexto de nossas vidas. Se o leitor chegou até aqui e

encadeou pensamentos em torno de sua existência, de sua relação com a teia da vida

do planeta, estimulando sensações de pertencimento a sistemas vivos mais amplos, este

trabalho atingiu seu objetivo.

Encerro este longo raciocínio utilizando as palavras do etnofarmacologista

Terence McKenna, que em sua sabedoria nos mostra que esperamos por nós mesmos

dentro da visão:

“Agora podemos nos dirigir para uma nova visão de nós mesmos e de

nosso papel na natureza. Somos a espécie adaptável a tudo, somos os

pensadores, os fazedores, os solucionadores de problemas. Esses

grandes dons que são somente nossos e que surgiram da matriz

evolucionária do planeta não existem para nós – para nossa

conveniência, nossa satisfação e maior glória. São para a vida; são as

qualidades especiais com as quais podemos contribuir para a grande

comunidade do ser orgânico, caso nos tornemos aquele que cuida, o

jardineiro e a mãe de nossa mãe, que é a terra viva. (...) A longa noite

da história humana está finalmente chegando ao fim. Agora o ar está

silencioso e o leste manchado com um rubor róseo da alvorada.

Entretanto, sempre soubemos que a noite no mundo se aprofunda e que

as sombras se alongam na direção de uma noite que não terá fim. De

um modo ou de outro a história do macaco insensato está praticamente

encerrada para sempre. Nosso destino é nos afastarmos sem

arrependimento do que fomos, encarar nós mesmos, nossos pais,

amantes e filhos, juntar nossas ferramentas, nossos animais e os sonhos

velhos, muito velhos, para podermos atravessar a paisagem visionária

da compreensão cada vez mais profunda. Com toda a esperança, lá,

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119

onde sempre estivemos mais confortáveis, onde sempre fomos mais nós

mesmos, encontraremos a glória e o triunfo na busca para o significado

na vida infinita da imaginação, finalmente brincando nos campos de um

Éden reencontrado”. 8

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Notas

Introdução

1.RUSSELL (1991), pág. 43 e 44.

2. CAPRA (1986), pág. 15.

3. ESTEVES DE VASCONCELLOS (2002), págs. 101 e ss.

4. LAZLO, Erwin apud Esteves de Vasconcellos (2002), pág. 23.

5. PRIGOGINE, Ilya e STENGERS, Isabelle, apud ESTEVES DE VASCONCELLOS (2002),

pág. 23.

1. A TERRA COMO UMA HOLARQUIA

1. Cf. SAHTOURIS (1998), pág. 57.

2. WANG CH´UNG, apud CAPRA (1986), pág. 33

3. CAPRA (1986), pág. 33

4. Ibid, pág. 35.

5. Cf. Bíblia de Jerusalém, 2003

6. Cf. CAPRA (1997), págs. 187 e 204

7. BRAUER, David, apud CAPRA (1997), págs. 206 e 207.

8. Cf. SAHTOURIS (1998), págs. 177 e ss.

9. DETHLEFSEN e DAHLKE (1999), pág. 237.

2. AUTOCRIAÇÃO, A ESSÊNCIA DOS SISTEMAS VIVOS

1. Cf. CAPRA (1986), págs. 49 e ss.

2. Cf. CAPRA (2002), pág. 30 e 31.

3. Cf. CAPRA (1997), pág. 85 e ss.

4. Cf. MARGULIS e SAGAN (2002), pág. 31

5. Cf. MATURANA e VARELA (1997), pág. 71.

6. WIENER, Norbert, apud CAPRA (1997), pág. 56.

7. MATURANA e VARELA (2001), pág. 56 e 57.

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122

8. Cf. MATURANA e VARELA (1997), pág. 52.

9. MARGULIS e SAGAN (2002), pág. 89.

10. Ibid, pág. 89 e 90.

3. A AUTOPOIESE DO SISTEMA DE GAIA

1. LOVELOCK, J.: Gaia – Um Modelo Para a Dinâmica Planetária e Celular. In

THOMPSON (2000), pág. 79 e 80.

2. Ibid, pág. 81.

3. LOVELOCK, James, apud CAPRA (1997), pág. 92.

4. MARGULIS, Lynn, apud CAPRA (1997), pág. 94.

5. SAHTOURIS (1998), pág. 72.

6. Cf. SAHTOURIS (1998), pág. 70.

7. SAHTOURIS (1998), pág. 306 e 307.

4. A METÁFORA DO CÂNCER

1. BERTALLANFY, Ludwig Von, apud ESTEVES DE VASCONCELLOS (2002), pág. 196

2. Ibid, pág. 196.

3. LOVELOCK, James. Prefácio de SAHTOURIS (1998), pág. 19.

4. Ibid, pág. 19.

5. Cf. SIMONTON et al (1987), pág. 25.

6. Cf. SAHTOURIS (1998), pág. 214 e ss.

5. A DINÂMICA DO TUMOR

1. Adaptado de HAHN, Willian C. e WEINBERG, Robert A.. Rules for Making Human

Tumor Cells. New England Journal of Medicine, Vol. 347, No. 20, páginas 1593 -

1603, 14 de novembro de 2002, apud Gibbs (2003)

2. RÒBERT (2003), pág. 26.

3. Cf. documentação disponível no site do Programa das Nações Unidas para o Meio

Ambiente – www.unep.org

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123

4. CAPRA (1986), pág. 138.

5. Cf. HAWKEN et al (2002), pág 8.

6. BENYUS (2003), pág. 13.

7. Cf. MOONEY (2002), texto de contra-capa do livro.

8. Ibid, págs. 132 e 133.

9. DADOUN (1991), pág. 88, 91 e 92

10. Cf. CAPRA (1986), pág. 21.

11. Ibid, pág. 21.

12. RUSSELL (1991) pág. 258

13. DETHLEFSEN e DAHLKE (1999), pág. 234 e 235.

14. Ibid, pág. 236 e 237..

15. Cf. CAPRA (1986), pág. 385 e 386.

16. CAPRA (1986), pág. 387.

17. RUSSELL (1991), pág. 132.

18. Cf. RUSSELL (1991), pág. 133.

19. RUSSELL (1991), pág. 147.

20. Ibid, pág. 143 e 144.

21. Ibid, pág. 187.

6. A DIMENSÃO EMOCIONAL DO CÂNCER

1. Cf. CAPRA (1986), pág. 345.

2. SIMONTON et al (1987), pág. 21.

3. LESHAN (1992), pág. 26 e 27.

4. Cf. LESHAN (1992), pág. 28.

5. Cf. MATURANA e VARELA (1997), pág. 56.

6. LESHAN (1992), pág. 36.

7. Ibid, pág. 36.

8. ABRAHAM et al. (1994), pág. 162.

9. REICH, Wilhelm, apud DADOUN (1991), pág. 96.

10. Cf. DADOUN (1991), pág. 90.

11. DADOUN (1991), pág. 92.

12. ABRAHAM et al. (1994), pág. 159 e 160.

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124

7. PERSPECTIVA DE CURA

1. Cf. SIMONTON et al (1987), pág. 80 e 81.

2. MACY e BROWN (2004), pág. 38 e 39.

3. Cf. SIMONTON et al (1987), pág. 73.

4. SIMONTON et al (1987), pág. 74.

5. Os trechos entre aspas são oriundos de SIMONTON et al (1987), pág. 74 e 75.

6. SIMONTON, Carl, apud CAPRA (1990), pág. 158.

7. MACY e BROWN (2004), pág. 33 e 34.

8. Cf. SIMONTON et al (1987), pág. 37.

9. CAPRA (1986), pág. 349.

10. SIMONTON et al (1987), pág. 77.

11. LESHAN (1992), pág. 36.

12. Cf. LESHAN (1992), pág. 46.

13. LESHAN (1992), pág. 46 e 47.

14. Cf. LESHAN (1992), pág. 47.

15. LESHAN (1992), págs. 48 e 49.

16. Cf. LESHAN (1992), pág. 34.

17. RUSSELL (1991), pág. 258.

8. VISÃO SISTÊMICA COMO CENÁRIO COGNITIVO PARA A RESTAURAÇÃO

PLANETÁRIA

1. Cf. CAPRA e STEINDL-RAST (1991), pág. 43.

2. Cf. ESTEVES DE VASCONCELLOS (2002), pág. 69 e ss.

3. CAPRA (1986), pág. 86.

4. Cf. ESTEVES DE VASCONCELLOS (2002), pág. 101 e ss.

5. THOMPSON (2000), pág. 12.

6. BATESON, Gregory, apud CAPRA (1986), pág. 284.

7. Cf. CAPRA (1990), pág. 69.

8. CAPRA (1986), pág. 284.

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125

9. CAPRA (1990), pág. 70.

10. CAPRA (1986), pág. 285.

11. JANTSCH, Erich, apud CAPRA (1986), pág. 285.

12. CAPRA (1986), pág. 285.

13. SAHTOURIS (1998), pág. 270.

14. As idéias sobre biologia e ecologia apresentadas nestes últimos parágrafos foram

adaptadas de CAPRA (1996), págs. 43 e 44.

15. SEED, John, apud MACY e BROWN (2004), pág. 68 e 69.

16. Ibid, pág. 68.

17. TORO, Rolando, apud RIBAS (1995), pág. 53.

18. TORO, Rolando Inconsciente Vital e Princípio Biocêntrico. Apostila do Curso

de Formação Docente em Biodanza da International Biocentric Foundation.

19. JEFFERS, Robinson, apud MACY e BROWN (2004), págs. 37 e 38.

20. CAPRA (2002), pág. 238.

21. Cf. CAPRA (2002), pág. 237.

22. BROWN, Lester, apud MACY e BROWN (2004), pág. 30.

23. CASTELLS, Manuel, apud CAPRA (2002), pág. 228.

9. TEMPO DE DOENÇA E TEMPO DE MORRER

1. LESHAN (1992), pág. 150.

2. Ibid, pág. 150.

3. SIMONTON et al (1987), pág. 198.

4. LESHAN (1992), págs. 152 e 153.

5. Ibid, pág. 151.

6. Cf. CAPRA e STEINDL-RAST (1991), pág. 30.

7. CAPRA (1986), pág. 350.

8. HAVEL, Vaclav, apud CAPRA (2002), pág. 273.

CONCLUSÃO

1. MARGULIS e SAGAN (2002), pág. 55.

2. LOVELOCK, James. Prefácio de SAHTOURIS (1998), pág.19.

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126

3. ABRAHAM et al (1994), pág. 100.

4. SAHTOURIS (1998), pág. 234.

5. MATURANA e VARELA (2001), págs. 270 e 271.

6. THOMPSON (2000), pág. 7.

7. MATURANA e VARELA (2001), pág. 263.

8. McKENNA (1995), pág. 342.

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