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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO ERIVAN HILÁRIO AUTO-ORGANIZAÇÃO DE ESCOLAS PÚBLICAS: A INCIDÊNCIA DO MST NA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO CAMPINAS/SP 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAO

ERIVAN HILRIO

AUTO-ORGANIZAO DE ESCOLAS PBLICAS:

A INCIDNCIA DO MST NA ORGANIZAO DO

TRABALHO PEDAGGICO

CAMPINAS/SP

2016

ERIVAN HILRIO

AUTO-ORGANIZAO DE ESCOLAS PBLICAS:

A INCIDNCIA DO MST NA ORGANIZAO DO

TRABALHO PEDAGGICO

Dissertao de Mestrado apresentada

ao Programa de Ps-Graduao em

Educao da Faculdade de Educao

da Universidade Estadual de

Campinas para obteno do ttulo de

Mestre em Educao, na rea de

concentrao de Ensino e Prticas

Culturais.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos de Freitas

CAMPINAS/SP

2016

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAO

DISSERTAO DE MESTRADO

AUTO-ORGANIZAO DE ESCOLAS PBLICAS:

A INCIDNCIA DO MST NA ORGANIZAO DO

TRABALHO PEDAGGICO

Autor : Erivan Hilrio

Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos de Freitas

COMISSO JULGADORA:

Profa. Dra. Mara R. L. De Sordi (UNICAMP)

Profa. Dra. Sandra Luciana Dalmagro (UFSC)

2016

Dedico este trabalho Martinha Severina,

minha me, que em meio s adversidades do

mundo, se fez e se faz uma mulher-militante

da vida!

AGRADECIMENTOS

Nem sempre encontramos as palavras certas para EXPRESSAR nossa imensa

GRATIDO para aqueles e para aquelas que, de uma maneira ou de outra, marcam as

nossas vidas. Por isso, fazemos o uso do que temos de mais belo na POESIA que

VIDA, de CORA CORALINA. Esta poetisa que versa sobre o MUNDO nos deixou um

recado: No te deixes destruir... Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces.

Recomea. Faz de tua vida mesquinha um poema. E vivers no corao dos jovens e na

memria das geraes que ho de vir. Esta fonte para uso de todos os sedentos. Toma a

tua parte. Vem a estas pginas e no entraves seu uso aos que tm sede.

As pginas que se seguem s tornaram-se realidade pelo companheirismo,

compreenso, solidariedade e crtica de muitos que, direta ou indiretamente, so parte

deste trabalho. Assim, somos gratos:

Ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST, pelo

aprendizado permanente e por ser parte incondicional na nossa formao enquanto

militante social e educador;

Escola Nacional Florestan Fernandes ENFF, pelos momentos mais

fecundo na nossa reflexo terico-prtico;

Ao professor Luiz Carlos de Freitas, pela orientao;

Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES),

pelo apoio financeiro sem o qual esta pesquisa no seria possvel; Aos camaradas do

Laboratrio de Estudos Descritivo LOED, pelos bons e oportunos momentos de

debate e reflexo;

s professoras Mara De Sordi, Sandra Dalmagro, Adriana Varani e nossa

querida companheira Slvia Adoue, por nos darem a honra de contar com a presena das

mesmas na banca final de defesa deste trabalho;

Ana Saldanha, a pessoa que nos deu o impulso necessrio no momento mais

frgil e difcil da tarefa de escrever;

Camila Rodrigues, pela a amizade e a cumplicidade acadmica;

Lizandra Guedes, uma camarada e amiga de todas as horas, pelas leituras

crticas, mas, sobretudo pelo incentivo e a acolhida nos momentos mais difceis;

Joseline Almeida(Line), com todo o carinho, pelas interrogaes que nos fez,

pelos aprendizados na convivncia;

Maria Gorete, que em tempos difceis aprendemos a dar boas gargalhadas,

aprendemos a sermos cmplices um do outro na tarefa rdua, mas necessria, que o

estudo;

Aos educadores e educadoras das reas de assentamentos do MST, em Santa

Maria da Boa Vista, pelas entrevistas cedidas, pelos dilogos, sem os quais essa pesquisa

no se concretizaria;

Elizangela Gomes, por sua disposio e solidariedade, por cada ligao (e no

foram poucas) atendida e pelas prosas fundamentais para este trabalho;

Edna Rodrigues, pela fora e aprendizados mtuos na caminhada;

Ao Coletivo Regional e Estadual de Educao do MST, pelos anos de

militncia e convivncia;

A Alessandro Mariano, pessoa com quem aprendemos todos os dias, por nossa

amizade e pelas conspiraes que nos oxigena;

Ao querido Rodrigo Almeida, por sua singela e mais vital contribuio no apagar

das luzes;

A Alexandre Leandro (Limo), pela solidariedade na reta final de organizao

dos dados da pesquisa;

Estela Zeferino, pela morada de gargalhadas e por nossas histrias de vida;

A Talles Reis, por contribuir na construo das figuras, em especial, do mapa da

Estrada da Reforma Agrria;

A Miguel Yoshida e Ceclia Luedemann, pela singela mas fundamental

contribuio na reviso do texto;

Ana Terra Reis, por todos os momentos que passamos juntos: na militncia e

na tarefa de escrever que tambm faz parte da luta e da vida;

Carol Bahniuk, pela disposio e solidariedade de sempre, obrigado!

A Monfredini Junior e Tia Corsi, pela fora, amizade e boas prosas sobre ns

e a vida.

RESUMO

A presente dissertao resultado de um estudo acerca da experincia educacional

do MST em Santa Maria da Boa Vista PE, por meio do Coletivo de Escolas de

Assentamentos da Reforma Agrria. O objetivo central consiste na descrio e anlise da

prtica poltico-pedaggica do Coletivo de Escolas, a fim de perceber as contradies,

limites e possibilidades de construo de uma organizao de um trabalho pedaggico em

sintonia com o projeto educativo do MST. Do ponto de vista metodolgico, este trabalho

conjugou uma pesquisa de campo, composta de: observao, entrevistas e anlise

documental, e com um estudo terico a partir de autores como Caldart (2003), Dalmagro

(2010), Freitas (2011), Pistrak (2000) e Paro (2012). Os resultados indicam que, de fato, o

MST incide na Organizao do Trabalho da escola pblica, a partir de tal experincia,

sobretudo nos aspectos da gesto, com nfase na construo dos coletivos pedaggicos, nos

quais estes coletivos e sujeitos realizam, nos limites de cada territrio, um trabalho

coletivo e aos poucos qualificam o sentido da escola pblica na medida em que tomam o

Projeto Poltico Pedaggico como prxis. Por outro lado apesar das iniciativas

desenvolvidas , destacamos que dois grandes desafios ainda esto postos no que tange

Organizao do Trabalho Pedaggico: a) a articulao do conhecimento humano-

histrico com a vida; e b) a construo de coletivos de estudantes, sujeitos estes que so a

finalidade principal do trabalho educativo.

Palavras-chaves: Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra Educao. Escolas

pblicas - Organizao e administrao. Auto-organizao. Organizao do trabalho

pedaggico.

ABSTRACT

This essay is the result of a study about the educational experience of MST in Santa

Maria da Boa Vista - PE through the Collective Settlements Schools of Agrarian Reform.

The main objective is the description and analysis of the political-pedagogical practice of

Schools Collective in order to realize the contradictions, limits and possibilities of

building an organization of educational work in harmony with the educational project of

the MST. Methodologically, this work has combined field research (observation,

interviews, document analysis) with a theoretical study from authors like Caldart (2003),

Dalmagro (2010), Freitas (2011), Pistrak (2000) and Paro (2012). The results indicate

that, indeed, the MST influences on the public school Labour Organization, from this

experience, particularly in the aspects of management, with emphasis on the construction

of pedagogical collective, which as subjects, perform within the limits of each territory; a

collective and gradually work qualify the meaning of public schools since they take the

Pedagogical Political Project as praxis. On the other hand - despite the initiatives - two

major challenges are still posts regarding the pedagogical work organization: a) the

articulation of human-historical knowledge with life b) the construction of collective of

students, subjects these being the main purpose of the educational work.

Passwords: Movement of Landless Rural Workers Education. Public Schools -

Organization and administration. Self-organization. Organization of pedagogical work

FIGURAS

FIGURA 1 Localizao do municpio de Santa Maria da Boa Vista

FIGURA 2 Localizao dos assentamentos na Rodovia PE 517

FIGURAS 3-4 Colheita da melancia e do feijo Assentamento Safra

FIGURAS 5-6 Protesto dos professores na rodovia 428

FIGURAS 7-8 Sede da SME aps protestos das crianas

FIGURA 9 Composio do Coletivo de Escolas de Assentamentos

FIGURAS 10-11 Atividade organizada pelas escolas de assentamentos na

sede do municpio

FIGURA 12 Tempo recreio Escola Municipal Catalunha

FIGURA 13 Chegada das crianas Escola Municipal Catalunha

FIGURA 14 Temtica do tempo formao da EMC

FIGURA 15 Tempo formao EMAC

FIGURA 16 Mapeamento da realidade

FIGURA 17 Funo das equipes de trabalho

FIGURA 18 Falas dos profissionais da EMAC no processo avaliativo

FIGURA 19 Falas da comunidade sobre o processo avaliao da

EMAC

GRFICOS E TABELAS

GRFICO 1 Estabelecimentos de ensino pblico municipal em SMBV

por localizao

GRFICO 2 rea de atuao no Ensino Fundamental das escolas de

assentamentos

GRFICO 3 Quantidade de escolas em que atua

GRFICO 4 Quadro de profissionais da Escola Municipal Catalunha

GRFICO 5 Tempo de atuao na Escola Municipal Catalunha

GRFICO 6 Tempo de atuao na Escola Municipal Antnio Conselheiro

TABELA 1 Projetos de Assentamentos do MST em Santa Maria da

Boa Vista PE

TABELA 2 Culturas agrcolas dos assentamentos SMBV

TABELA 3 Dados gerais das escolas

TABELA 4 Percurso histrico da Educao no MST em

SMBV (1995-2014)

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ATER Assistncia Tcnica e Extenso Rural

CEPAL Comisso Econmica para a Amrica Latina

DER/PE Departamento de Estradas de Rodagem do Estado de Pernambuco

EJA Educao de Jovens e Adultos

EMAC Escola Municipal Antnio Conselheiro

EMC Escola Municipal Catalunha

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

IDEB ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica

INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

MEC Ministrio da Educao

MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

OTP Organizao do Trabalho Pedaggico

PDDE Programa Dinheiro Direto na Escola

PFL Partido da Frente Liberal

PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro

PPP Projeto Poltico Pedaggico

PSB Partido Socialista Brasileiro

PSC Partido Social Cristo

SMBV Santa Maria da Boa Vista

SME Secretaria Municipal de Educao

SUMRIO

INTRODUO ............................................................................................................................. 15

CAPTULO I ITINERRIO DA PESQUISA ............................................................................ 18

1.1 Premissas iniciais ................................................................................................................. 18

1.2 Geografia do objeto de pesquisa .......................................................................................... 21

1.2.1 A Estrada da Reforma Agrria .................................................................................. 22

1.3 Sujeitos e atores da pesquisa: as lutas de 2014 .................................................................... 27

1.4 O que o Coletivo de Escolas? ............................................................................................ 31

1.5 Instrumentos de coleta e tratamentos dos dados .................................................................. 37

CAPTULO II A ORGANIZAO DO TRABALHO PEDAGGICO NA ESCOLA

PBLICA: CONFRONTO DE PROJETOS .................................................................................. 43

2.1 Breves apontamentos sobre escola: sua lgica e estrutura ................................................... 43

2.2 A luta do MST e a construo do seu projeto educativo ...................................................... 48

2.3 A organizao do Trabalho Pedaggico e o princpio da organizao coletiva .................... 57

CAPTULO III TRAJETRIA DA EDUCAO NO MST EM SANTA MARIA DA BOA

VISTA: DE UMA ESCOLA DE ACAMPAMENTO A UM COLETIVO DE ESCOLAS ............ 66

3.1 Territorializao do MST em Santa Maria da Boa Vista: da ocupao da Fazenda Safra

ocupao de escolas ................................................................................................................... 66

3.2 A criao do Coletivo de Educao do MST, a formao e a insero dos educadores ....... 70

3.3 Acompanhamento poltico-pedaggico: o enraizamento da pedagogia do MST na escola . 75

3.3.1 O acompanhamento em lcus (1995-2004) ................................................................... 76

3.3.2 O acompanhamento integrado: o coletivo de escolas (2006 at o presente) ................. 79

CAPTULO 4 A PEDAGOGIA EM MOVIMENTO NA ESCOLA: APROXIMAES E

DISTANCIAMENTO DO PROJETO EDUCATIVO DO MST .................................................... 84

4.1 Imerso nas escolas pblicas de assentamentos: Escola Municipal Catalunha e Escola

Municipal Antnio Conselheiro ................................................................................................. 84

4.1.1 Ambiente educativo da Escola Catalunha. .................................................................... 84

4.1.2 Ambiente educativo da Escola Municipal Antnio Conselheiro e novos estudantes. 87

4.2 A Pedagogia em sala de aula ................................................................................................ 91

4.2.2 A unidade pedaggica aula. ........................................................................................... 96

4.3 A Pedagogia na escola: a construo dos coletivos pedaggicos. ...................................... 106

4.3.1 O Coletivo de gestores ................................................................................................ 106

4.3.2 O coletivo de educadores ............................................................................................ 118

4.3.3 Os desafios de construo do coletivo estudantil ........................................................ 126

4.5 A relao com a Secretaria Municipal de Educao ........................................................... 132

CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................................... 135

REFERNCIAS ........................................................................................................................... 140

15

INTRODUO

A luta por uma escola pblica de qualidade, socialmente referenciada e

protagonizada pelos Movimentos Sociais representa, para alm do acesso educao,

uma luta de resistncia a projetos que conformam a ordem social vigente. Isso ocorre na

medida em que a escola historicamente constituda assume papel fundamental na

formao da juventude, tratando de coloc-la a servio das necessidades do modo de

produo capitalista.

Apesar de sua aparncia de neutralidade, as funes sociais da escola para os

filhos dos trabalhadores esto articuladas sua subsuno ao projeto burgus, em que a

formao por ela realizada responde economicamente explorao do trabalho

demandada pelo campo produtivo; e, politicamente, inculcao da ideologia burguesa

sob a aparncia de integrao democrtica.

Na modernidade, a cincia a forma dominante de entender o real. Assim,

escola coube ser o espao que, de acordo com Freitas (2010), aprisionou o contedo

estudado pelas cincias e autodeclarou-se a nica credenciada para transmiti-los

juventude dentro das salas de aula, passando a ser o espao-tempo da atualizao

histrica por meio da distribuio de determinados conhecimentos aos indivduos de

acordo com os interesses dominantes. Da, o lugar que deveria ocupar a escola como

instituio que monopolizasse e hegemonizasse a formao da juventude, colocando-a

em sintonia com a sociedade que a cerca como consumidores e como fora de trabalho,

submetidos lgica do capital (FREITAS, 2010, p. 155).

Contudo, as contradies provocadas pelo prprio capitalismo fazem da escola

uma instituio em disputa que pode ser articulada aos interesses dos trabalhadores. No

entanto, ela precisa ser acionada pelos prprios trabalhadores para que possa contribuir

nessa direo. Por isso, para o MST, a luta pela terra e a luta pela educao caminham

lado a lado, figurando como duas questes muito caras ao Movimento, dado o contexto

das desigualdades sociais no qual estamos submersos. A educao vai configurar-se no

interior do MST como uma dimenso estratgica importante na formao das crianas e

jovens e est diretamente articulada com o projeto societrio historicamente defendido

pelos trabalhadores.

Pensar uma educao estreitamente vinculada com os processos de lutas mais

amplas na qual a mesma educao desempenha papel fundamental na construo de

novas relaes socais, sendo impulsionada pela prpria materialidade da ofensiva dos

16

trabalhadores contra a lgica imperativa do capital significa a luta contra o prprio

capital na medida em que esta ajude a realizar as transformaes polticas, econmicas,

culturais e sociais necessrias (MZSARS, 2005, p.10). Apesar de reconhecer que a

escola, por si s, no capaz de transformar as relaes sociais, em sua totalidade.

A estratgia de disputa do iderio educativo no cho da escola pblica realizada

pelos movimentos de luta social implica em um confronto direto com a forma escolar

historicamente constituda. Conforme observa Freitas (2014), no basta criticar a

pedagogia, preciso questionar tambm a sua engenharia. 1 No se trata de travar a luta

to somente em torno da didtica de ensino, sobre as ferramentas mais adequadas para

socializar o conhecimento, trata-se, sobretudo, de um movimento constante de identificar

a natureza da escola, explicitando as suas bases constituintes e finalidades educativas.

Ainda de acordo com Freitas (2014), a escola tem funes sociais que so aprendidas na

escola e exercitadas no mundo real. Subordina-se na escola para que o aluno possa ser

docilmente subordinado na vida.2 Ou seja, isto ocorre porque objetivos educacionais

esto ligados a objetivos sociais.

A edificao de uma escola pblica popular alinhada com as lutas por

emancipao um longo caminho em construo. Realizada por diversos movimentos

sociais da classe trabalhadora que fazem a crtica forma escolar existente, mas no

ficam apenas na crtica, eles constroem desde o presente, a partir dos seus territrios de

resistncia. Afinal, sabe-se que no se constri algo novo que no tenha seu embrio

nascido nas entranhas do velho. Isso nos faz lembrar o discurso proferido por Karl Marx

ao Conselho Geral da Primeira Internacional em agosto de 1869, onde foi categrico ao

afirmar: Por um lado, necessrio modificar as condies sociais para criar um novo

sistema de ensino; por outro, falta um sistema de ensino novo para poder modificar as

condies sociais. Consequentemente, necessrio partir da situao atual (MARX,

2004, p. 107).

Ao afirmar isso, Marx (2004) evidencia que o ponto de partida a prpria

realidade, as formas e processos produzidos pelo prprio homem. Neste sentido, partir da

escola existente significa debruar-se a investigar o que faz desta ser o que ela na atual

formao histrica. Entender as relaes travadas fora e no interior da escola que

apontam para sua manuteno ou mudana. Assim, ousa o MST incidir sobre as escolas

1 Palestra proferida pelo Professor Luiz Carlos de Freitas sobre Transformao da forma escolar e projeto

educativo da classe trabalhadora durante a Reunio do Coletivo Nacional de Educao do MST, em 20 de

janeiro de 2014, na Escola Nacional Florestan Fernandes ENFF, em Guararema/SP. 2 Idem.

17

situadas em seus territrios, produzindo diversas experincias que aos poucos vo ficando

como um legado educacional da classe trabalhadora.

Entre estas iniciativas, encontra-se a prtica educacional que tomamos como

objeto de investigao. Referimo-nos prtica poltico-pedaggica de um conjunto de

escolas pblicas vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no

municpio de Santa Maria da Boa Vista, localizado no serto de Pernambuco, aqui por

ns, enquanto sujeito pesquisador, compreendido como Coletivo de Escolas de

Assentamentos da Reforma Agrria.

O objetivo do presente trabalho consiste na descrio e anlise da prtica poltico-

pedaggica do Coletivo de Escolas de Assentamentos da Reforma Agrria, em Santa

Maria da Boa Vista PE. Alm disso, buscamos tambm perceber as contradies, limites

e possibilidades de construo de uma organizao do trabalho pedaggico em sintonia

com o projeto educativo do MST.

O Coletivo de Escolas uma instncia auto-organizada das escolas pblicas

localizadas nos assentamentos do MST, em Pernambuco, que compreende nove unidades

escolares, as quais fazem parte do sistema municipal de ensino, atendendo Educao

Infantil, Ensino Fundamental e modalidade de Educao de Jovens e Adultos. Segundo

dados do censo escolar 2014, esse conjunto de escolas tem uma matrcula total de 2.146

estudantes, 156 trabalhadores da educao, desde professores, atuando no ensino, aos

auxiliares de servios gerais.

O processo de encontro entre escolas pblicas uma forma importante de

construo de dilogos e prticas para a criao das condies de concretizao da

funo social da escola. Da a importncia da organizao de coletivos pedaggicos e da

participao direta da comunidade no sentido de ajudar nos rumos da escola.

Nesse sentido, o presente texto est organizado em quatro captulos: o primeiro,

Itinerrio da pesquisa, trata dos caminhos metodolgicos escolhidos. O segundo, A

Organizao do Trabalho Pedaggico na Escola Pblica: confronto de projetos, diz

respeito s reflexes em torno da escola pblica e confronto de lgicas entre o projeto

hegemnico e o projeto educativo do MST; o terceiro, Trajetria da educao no MST,

em Santa Maria da Boa Vista, trata da retomada do processo histrico e constituio da

questo escolar na experincia educacional do MST no referido municpio; o quarto e

ltimo captulo, A Pedagogia em movimento na escola: aproximaes e distanciamento

do projeto educativo do MST, refere-se s dimenses de incidncia do MST nas escolas.

18

CAPTULO I ITINERRIO DA PESQUISA

O presente captulo tem por finalidade discorrer sobre os caminhos da pesquisa, a

fim de favorecer uma viso geral do percurso realizado na produo e organizao de

conhecimento a partir da conjugao de um estudo terico com uma pesquisa de campo.

1.1 Premissas iniciais

A metodologia de pesquisa no deve ser uma escolha aleatria que pretende

apenas dar conta das exigncias acadmicas. sempre uma opo poltica anteriormente

definida pelo investigador numa relao permanente com o objeto a ser pesquisado.

Consideramos que no h neutralidade no processo de investigao, pois o

pesquisador um sujeito histrico, situado em uma dada realidade. Portanto, possui uma

viso de mundo, no dia a dia, toma partido e no fica indiferente frente aos

acontecimentos da sociedade. A neutralidade cientfica um posicionamento a ser

questionado: Esta forma de apresentar ou de demonstrar a cincia tpica do mtodo

positivista, para o qual a neutralidade essencial para que o pesquisador consiga

demonstrar a realidade tal qual ela , sem preconceitos ou parcialidade (FREITAS,

2011, p.2).

Nesta mesma direo, Minayo (2013) corrobora explicitando que

No existe uma cincia neutra. Toda cincia embora mais

intensamente as Cincias Sociais passa por interesses e vises de

mundo historicamente criadas, embora suas contribuies e seus

efeitos tericos e tcnicos ultrapassem as intenes de seus prprios

autores. [...] Na investigao social, a relao entre o pesquisador e seu

campo de estudos se estabelece definitivamente. A viso de mundo de

ambos est implicada em todo processo de conhecimento desde a

concepo do objeto aos resultados do trabalho e sua aplicao

(MINAYO, 2013, p.14).

Afirmar no ser possvel a neutralidade no processo de conhecimento no

significa afirmar a ausncia de rigor cientfico. Para conhecer um objeto determinado,

devemos partir do pressuposto de que este j possui uma existncia concreta: para alm

das representaes e das significaes que o ser humano constri, h um mundo de

acontecimentos que passvel de ser conhecido e estudado (FREITAS, 2007, p. 52).

19

Esta prxis da pesquisa requer, por parte do investigador, o domnio de uma bibliografia

que lhe fornea meios e instrumentos para capturar a natureza (essncia) do objeto, o

qual, na vida real se encontra em movimento (no , por isso, um dado esttico)3. Da a

sntese fundamental que expressa a indissociabilidade sujeito/objeto no processo de

investigao:

Sujeito e objeto no processo de conhecimento terico no uma

relao de externalidade, tal como se d, por exemplo, na citologia ou

na fsica; antes uma relao em que o sujeito est implicado no

objeto. Por isso mesmo, a pesquisa e a teoria que dela resulta da

sociedade exclui qualquer pretenso de neutralidade, geralmente

identificada com objetividade (NETTO, 2011, p. 23).

O papel do sujeito se d de maneira ativa no sentido de buscar apreender a

natureza do objeto, ou seja, a sua essncia, o que para Netto (2011), fazendo referncia a

Marx, diz respeito sua estrutura e sua dinmica (mais exatamente: apreend-lo como

processo) (p. 23). Este processo ir exigir, cada vez mais, conhecimento e capacidade

investigativa por parte do sujeito. Em suma, o sujeito deve ser capaz de mobilizar uma

srie de conhecimentos, critic-los, revis-los e ser dotado de criatividade e imaginao.

(Ibidem, p. 25).

A existncia de um determinado objeto , sem dvida, resultado de um largo

processo histrico, no sendo possvel entend-lo apenas a partir de sua manifestao

aparente. Destaca-se como uma dimenso de fundo, durante o processo de investigao,

que sejam consideradas as bases constituintes e a prpria manifestao material do

objeto, o que, para Cheptulin (1982), supe a evidenciao da fonte do desenvolvimento

da fora motora que faz avanar e condiciona sua passagem de um estgio a outro. Essa

fonte a contradio, a unidade e a luta dos contrrios (p.228). Portanto, a contradio

uma das categorias centrais que perpassa todo o processo de investigao.

Assim, no podemos tomar um fenmeno social como uma expresso de si

mesmo, sendo fundamental submet-lo crtica e localizao das relaes e dos

3 (...) em meu estudo, tudo assumia a forma acientfica do dogmatismo matemtico, no qual o esprito gira

em torno da coisa, tangenciando-a aqui e ali, sem que a coisa possa desdobrar ela mesma em algo rico e

vivo, mas se apresentando de antemo como um obstculo para compreender a verdade. O tringulo deixa

que o matemtico o construa e o demonstre como uma mera reproduo dentro do espao, sem chegar a

desenvolver-se sob outras formas, pois, para que adquirisse outras posies, seria necessrio relacion-lo

com outras coisas, e ento veramos como isso traz distintos resultados com relao ao j exposto e assume

diferentes relaes e verdades, mas na expresso concreta de um mundo de pensamentos vivos como o so

o Direito, o Estado, a Natureza, toda a filosofia. necessrio se deter para escutar atentamente o prprio

objeto em seu desenvolvimento, sem se empenhar em imputar-lhes classificaes arbitrrias, e sim

deixando que a prpria razo da coisa siga seu curso contraditrio e encontre em si mesma a sua prpria

unidade (MARX, 2012, p. 297).

20

processos que o configuram como fenmeno determinado.

A presente pesquisa teve como ponto de partida o questionamento da incidncia

dos movimentos sociais na educao pblica. Surgiram, ento, as seguintes

problemticas: Como, de fato, o MST incide, com seu projeto educativo, na organizao

do trabalho pedaggico da escola pblica? Quais as contradies emergentes desta

experincia? Tal experincia se configura como uma educao da classe trabalhadora

numa perspectiva emancipatria no bojo do Estado capitalista?

No decorrer de nossa pesquisa, fomos percebendo a necessidade de reformular

essas questes para melhor evidenciar o prprio objeto de estudo. Aquelas, apesar de

constiturem as problemticas gerais que guiam esse trabalho, foram, gradualmente,

sendo delimitadas.

Vale lembrar que as questes inicialmente orientadoras deste trabalho tm

origem na prtica cotidiana de exerccio docente e de militncia poltica, pelo que a

pesquisa no comea, nem tampouco termina, com nossa passagem pela universidade. A

ps-graduao, contudo, nos possibilitou explorar a realidade a fim de melhor a

conhecer. De acordo com Minayo (2010), a pesquisa no somente uma prtica terica,

uma vez que vincula pensamento e ao. Logo, nada pode ser intelectualmente um

problema se no tiver sido, em primeiro lugar, um problema da vida prtica. (Minayo,

2010, p. 16).

Neste refletir sobre o fenmeno em questo, fomos alinhando e reformulando as

problemticas de pesquisa iniciais e os objetivos pretendidos. De forma a entender a

incidncia do MST na organizao do trabalho pedaggico da escola pblica, optamos

por centrar a nossa pesquisa na experincia do Coletivo de Escolas em Santa Maria da

Boa Vista (SMBV), Pernambuco. Elegemos como objetivo central a descrio e anlise

da prtica poltico-pedaggica do Coletivo de Escolas de Assentamentos da Reforma

Agrria a fim de perceberas contradies, limites e possibilidades de construo de uma

organizao do trabalho pedaggico em sintonia com o projeto educativo do MST. Os

objetivos especficos foram assim definidos:

a) Sintetizar os pressupostos terico-polticos que fundamentam o projeto de

educao e de escola do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra;

b) sistematizar o percurso histrico e o funcionamento do Coletivo de Escolas

de Assentamentos de Reforma Agrria e como este se insere no contexto dos

enfrentamentos do MST na luta pela terra e por escola pblica no serto de

Pernambuco;

21

c) c) identificar e analisar as principais aes discutidas e planejadas no

Coletivo de Escolas de Assentamentos;

d) identificar, caracterizar e analisar quais os campos de incidncia do MST na

organizao do trabalho pedaggico da escola pblica a partir do Coletivo de

Escolas de Assentamentos.

1.2 Geografia do objeto de pesquisa

O trabalho de campo uma fase to central para o

conhecimento da realidade que Lvy-Strauss (1975) o

denomina ama de leite de toda a pesquisa social.

(Minayo, 2010).

O trabalho de campo, em Santa Maria da Boa Vista (SMBV), iniciou-se no dia

10 de maio de 2014, com a durao de 20 dias. Neste perodo, estivemos em contato

direto com docentes, gestores, lideranas e diferentes escolas.

Para tal, deslocamo-nos de So Paulo Guarulhos, via area, at cidade de

Petrolina, municpio com o aeroporto mais prximo de SMBV. O territrio que

circunda SMBV marcado pela paisagem natural de predominncia do bioma caatinga,

o qual se estende at as margens do rio So Francisco.

Para se chegar SMBV necessrio atravessar as cidades de Petrolina e Lagoa

Grande. Ambas fazem parte da histria de SMBV, uma vez que pertenceram matriarca

do submdio So Francisco: Santa Maria da Boa Vista.

O cenrio no nos era alheio, pois parte da nossa infncia e militncia poltica se

fez nestas terras de natureza exuberante, marcada por muitos conflitos de interesses em

pleno serto. Petrolina ocupa lugar de destaque no cenrio regional tanto poltica

quanto economicamente, deixando na contramo do desenvolvimento municpios

como SMBV. O ttulo de capital do serto no lhe foi dada por acaso. Petrolina tem 119

anos de emancipao poltica, possui 293.962 habitantes, de acordo com o Instituto

Brasileiro de Geografia Estatstica (IBGE), e hoje a principal referncia nacional no

agronegcio no que concerne fruticultura irrigada. Desempenha papel estratgico na

exportao, possuindo, junto com Juazeiro da Bahia (cidade vizinha), um faturamento

anual no valor de 2 bilhes de reais.

De Petrolina para Santa Maria so 105 quilmetros. Para boa parte dos

sertanejos, este trajeto realizado em vans de particulares, pois na regio existe apenas

22

uma empresa de nibus que faz o percurso de Petrolina a Recife.

Figura 1: Localizao do municpio de Santa Maria da Boa Vista PE

Fonte: Secretaria de Planejamento - PE

Santa Maria da Boa Vista um dos municpios mais antigos do Estado de

Pernambuco e, de acordo com dados do IBGE 2014, tem uma populao estimada em

41.103 habitantes, distribuda em um territrio que compreende 3.001,79 km2.

considerado um dos municpios de maior extenso territorial do Estado. Estima-se que

60% de sua populao viva no campo, distribuda no que popularmente conhecido

como regies: sede, regio Ribeirinha (que concentra 3 comunidades quilombolas);

regio de Sequeiro; Projeto Fulgncio (reassentamento de pessoas atingidas com a

construo da Barragem de Itaparica); Regio MST Assentamentos (concentra o maior

nmero de assentamentos do MST no municpio).

1.2.1 A Estrada da Reforma Agrria

Segundo dados do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra),

em 2014, existiam no municpio de Santa Maria da Boa Vista 36 projetos de

assentamentos, com 2.407 famlias, e dois acampamentos, com 1.400 famlias. Desse

total, 16 assentamentos so do MST, com 1.871 famlias, assim como os dois

acampamentos (Filhos da Luta e Hugo Chvez), com aproximadamente 1.200 famlias.

23

Tabela 1: Projetos de Assentamentos do MST em Santa Maria da Boa Vista PE

N Nome do Projeto de Assentamento Data de criao rea PA (ha) N famlias

01 Assentamento Safra 02/12/1996 2245 220

02 Assentamento Vitria 27/05/1997 4163,2 264

03 Assentamento Boqueiro 30/06/1997 1102 105

04 Assentamento Catalunha 16/12/1998 6825 600

05 Assentamento N. Senhora Conceio 13/08/1999 3443,4 140

06 Assentamento Aqurios 27/12/1999 2667,06 150

07 Assentamento Brilhante 25/05/2000 939,8747 55

08 Assentamento Mrtires da Resistncia I 27/12/2004 1962,6003 51

09 Assentamento Mrtires da Resistncia II 27/12/2004 1196,962 39

10 Assentamento Luiz Gonzaga 06/12/2005 2000,313 50

11 Assentamento Jos Ivaldo 13/07/2005 351,7714 25

12 Assentamento Jos Ivaldo I 23/08/2005 775,8007 50

13 Assentamento Josias Barros 31/08/2006 3196,4677 69

14 Assentamento Samuel Barbosa I 27/11/2006 311,3733 10

15 Assentamento Maria Bonita 11/05/2007 463,3514 10

16 Assentamento Denis Santana 05/11/2008 1001,124 30

TOTAL 32.645,2985 1.763

Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados disponveis no site do INCRA4

Na tabela 1, os assentamentos em destaque so os que esto localizados na

rodovia PE 574, batizada pelos trabalhadores de Estrada da Reforma Agrria.

Contraponto ao que os senhores do agronegcio chamam de Estrada da Uva e do

Vinho, uma referncia produo de vinhos, bastante forte na regio. A seguir,

apresentamos a figura 2 com a localizao de reas do Movimento5, situadas nessa

mesma rodovia. Vale lembrar que nem todos os assentamentos do MST no municpio se

encontram nesta rota.

4 Disponvel em: http://painel.incra.gov.br/sistemas/index.php Acesso em: julho de 2014.

5 De agora em diante, ao utilizar a palavra Movimento, com a letra inicial maiscula, estaremos nos

referindo ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST.

http://painel.incra.gov.br/sistemas/index.php

24

Figura 2 Localizao dos assentamentos na Rodovia PE 517

Fonte: Elaborado por REIS (2014)6

A rodovia PE-574 compreende uma extenso de 62 km e, de acordo com o

Departamento de Estradas de Rodagem de Pernambuco (DER-PE), os principais pontos

de passagem da PE-574 so: Entrada BR-428 (prximo a Santa Maria da Boa Vista) -

Acesso a Ilha do Ccero - Acesso a Vermelho - Entrada BR-428 (prximo a Lagoa

Grande).7

6 REIS, Talles. Estrada da Reforma Agrria. Recife, 2014. Desenho produzido especialmente para integrar

esta dissertao a partir de dados da pesquisa de campo. 7 Disponvel em: http://www.der.pe.gov.br/web/der/rodovias-do-estado Acesso em: setembro de 2014.

http://www.der.pe.gov.br/web/der/rodovias-do-estado

25

A Estrada da Reforma Agrria faz parte dos municpios Santa Maria da Boa

Vista e Lagoa Grande. Lagoa Grande, de acordo com o IBGE8, tem uma populao

estimada em 24.475 habitantes. Era um distrito de Santa Maria da Boa Vista at meados

de 1995, mas, dado o crescimento da populao e da economia, teve sua emancipao

poltica em 16 de junho do mesmo ano.

Esse extenso territrio habitado por diversos trabalhadores que, em sua

maioria, vivem em assentamentos de reforma agrria, enquanto outros vivem em

pequenos e mdios povoados. Eles dividem o territrio com grandes fazendas produtoras

de uva e vinho, alinhadas com as expectativas nacionais do agronegcio, cuja base

produtiva se sustenta no monocultivo, no uso intensivo de veneno e na produo para

exportao.

Na Estrada da Reforma Agrria, existem quatro vincolas (de um total de sete

em todo o serto), 18 assentamentos de reforma agrria, dos quais 15 so do MST, trs

acampamentos (dois em SMBV e uma em Lagoa Grande), tambm do MST, mais de 10

pequenos povoados e um grande povoado (o maior da regio), a comunidade de

vermelhos.

Nos assentamentos situados Estrada da Reforma Agrria, no municpio de

Santa Maria da Boa Vista, esto produzindo os seguintes tipos de culturas:

Tabela 2: culturas agrcolas dos assentamentos SMBV

8 Informaes disponveis no site http://www.cidades.ibge.gov.br/painel/historico

.php?lang=&codmun=260875&search=pernambuco|lagoa-grande|infograficos:-historico Acesso em

setembro de 2014.

CULTURAS QUANTIDADE

(h.)

Acerola 32,0

Banana 125,0

Cebola 17,0

Feijo 11,0

Goiaba 160,0

Macaxeira 78,5

Mamo 40,0

Manga 56,5

Maracuj 65,0

Melancia 58,0

Milho 7,5

Pinha 1,0

http://www.cidades.ibge.gov.br/painel/historico%20.php?lang=&codmun=260875&search=pernambuco|lagoa-grande|infograficos:-historicohttp://www.cidades.ibge.gov.br/painel/historico%20.php?lang=&codmun=260875&search=pernambuco|lagoa-grande|infograficos:-historico

26

Fonte: Diamantina9, 2015

Alm dessa diversidade de produo, os trabalhadores criam bovinos,

caprinos, ovinos, aves e sunos. Possuem ainda tanques de pisciculturas. A forma de

organizao dos processos produtivos se d de maneira geral por meios de lotes

individuais, ficando nos assentamentos poucas reas coletivas, bem como no h

nenhuma cooperativa nos assentamentos, todos os instrumentos legais so as

associaes. E, apesar de toda essa diversidade na produo, os trabalhadores

encontram srios problemas na organizao da comercializao, sendo feita esta por

meio de atravessadores que se apropriam desses produtos num valor bem inferior ao

do mercado. Logo, organizar o processo de produo se constitui como o principal

desafio para os assentados e o prprio MST.

Figuras 3 e 4: colheita da melancia e do feijo Assentamento Safra

Fonte: Barbalho10

, 2015

Os municpios localizados na regio do submdio So Francisco e os

9 A Diamantina Projetos Agrcolas LTDA uma empresa que mantm convnio com o INCRA para prestar servios de Assistncia Tcnica e Extenso Rural (Ater) nas reas de assentamentos do submdio So

Francisco. 10

BARBALHO, Samuel. Levantamentos de dados da produo do assentamento Safra. Santa Maria da Boa

Vista PE, relatrio de ATER.

Iamem 2,0

Caju 12,0

Coco 5,5

Uva 18,0

Total 689,0

27

assentamentos vivem a contradio de grandes empreendimentos que esto na pauta

do neodesenvolvimentismo11

, como as barragens (que tm expulsado os

trabalhadores de suas terras), a transposio do rio So Francisco e os grandes

projetos de irrigao (os quais beneficiam o agronegcio da fruticultura irrigada). O

serto , portanto, um territrio de disputa no qual se manifestam relaes de

enfrentamento entre, por um lado, aqueles trabalhadores que no possuem terras ou

que delas foram expropriadas e, por outro, grandes proprietrios de terras e/ou

empresas com interesses fundirios.

A regio tambm alvo de interesses das transnacionais, nomeadamente a

Monsanto, que montou uma unidade de pesquisa em Petrolina. Inaugurada em 2013,

essa unidade surge com o objetivo de seguir avanando no melhoramento gentico

de sementes (ou seja, a transgenia); ela desempenha um papel estratgico para a

transnacional, e no por acaso, seu presidente no Brasil, Rodrigo Santos, se mostra

confiante no investimento de mais 40 milhes realizados desde 2009 para a sua

implementao:

Petrolina ser para ns o que o Hava para os Estados Unidos. Com o

tempo, este ser o nosso principal centro de tecnologia em sementes no

Brasil. Por aqui passaro todas as sementes desenvolvidas pela

Monsanto no pas e tambm vamos trocar informaes em tempo real

com os Estados Unidos.12

A regio sertaneja faz parte da rota de investimentos do capital, com atuao

especial no ramo da fruticultura e na construo de megaempreendimentos realizados

pelo Estado, em parceria com o setor privado, como o caso da transposio do rio So

Francisco e as construes de hidreltricas em curso.

1.3 Sujeitos e atores da pesquisa: as lutas de 2014

Os primeiros dias em Santa Maria da Boa Vista (SMBV) foram dedicados a

encontrar membros do Coletivo de Educao do MST13

, com o objetivo de situ-los do

11

O desenvolvimentismo foi uma teoria econmica desenvolvida desde o final da Segunda

Guerra Mundial, no seio da Comisso Econmica para Amrica Latina (Cepal), para justificar o progresso

econmico de pases com atrasos estruturais, graas a forte interveno estatal (como sucedeu, por

exemplo, nos pases latino-americanos a partir da dcada de 1950). 12

Ver reportagem sobre o assunto. Disponvel em: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/

noticia/economia/2013/03/11/internas_economia,427743/petrolina-ganha-unidade-monsanto-e-deve-se-

tornar-referencia-em-pesquisas-de-biotecnologias-para-sementes.shtml Acesso em: outubro de 2014. 13

O Coletivo de Educao um dos setores internos do MST, cuja tarefa pensar e articular as aes que

envolvem as questes educacionais mais gerais no Movimento e o trabalho com as escolas. conhecido

http://www.diariodepernambuco.com.br/app/%20noticia/economia/2013/03/11/internas_economia,427743/petrolina-ganha-unidade-monsanto-e-deve-se-tornar-referencia-em-pesquisas-de-biotecnologias-para-sementes.shtmlhttp://www.diariodepernambuco.com.br/app/%20noticia/economia/2013/03/11/internas_economia,427743/petrolina-ganha-unidade-monsanto-e-deve-se-tornar-referencia-em-pesquisas-de-biotecnologias-para-sementes.shtmlhttp://www.diariodepernambuco.com.br/app/%20noticia/economia/2013/03/11/internas_economia,427743/petrolina-ganha-unidade-monsanto-e-deve-se-tornar-referencia-em-pesquisas-de-biotecnologias-para-sementes.shtml

28

estudo em questo e, assim, ajustar o planejamento da pesquisa de campo.

Como uma cidade pequena, o encontro com professores e gestores que atuam

nos assentamentos quase involuntrio, sobretudo junto de rgos pblicos, como a

prefeitura e a Secretaria Municipal de Educao (SME). Aproveitando alguns destes

encontros espontneos, apresentamos a nossa pesquisa a alguns educadores e muitos

deles logo se colocaram disposio para contribuir.

Pelas conversas informais estabelecidas com professores e lideranas dos

movimentos sociais, parecia que o ano letivo estava comeando naquele ms, pois havia

entre as pessoas uma memria recente de alguns acontecimentos que movimentaram as

escolas, estudantes e professores.

Com efeito, uma greve de 20 dias tivera incio no dia 24 de maro. O clima era,

por isso, de recomposio e de incio das atividades educacionais depois de terem tido

lugar vrias mobilizaes e protestos. Entre outras, mencione-se a ocupao da Secretaria

Municipal de Educao e da prefeitura contra o fechamento de trs escolas no campo e

contra o corte de carga horria de professores; e a greve dos servidores municipais.

A greve teve como paroxismo o protesto realizado na BR-428, na entrada da

Estrada da Reforma Agrria, organizado pelo Sindicato dos Servidores Municipais de

SMBV (Sindboa), com a participao de movimentos sociais (Quilombolas, Sindicato

dos Trabalhadores Rurais e MST). De acordo com o sindicato, a mobilizao contou com

a participao de 500 pessoas, entre pais, professores, crianas e lideranas que, alm de

interditarem a rodovia, montaram uma sala de aula no local, conforme demonstram as

fotos, a seguir:

Figuras 5 e 6: Protesto dos professores na rodovia 428

Fonte: Blog Santa Maria em Foco14

como Setor de Educao, mas em vrios lugares conhecido como Coletivo de Educao. Assim, faremos

a opo por usar a ltima denominao. 14

Disponvel em: http://www.santamariaemfoco.com.br; Acesso em: junho de 2014.

http://www.santamariaemfoco.com.br/

29

O fechamento da rodovia 428 ocorreu no dia 4 de abril. A prefeita, que no estava

disposta a negociar sem que a greve se encerrasse, foi obrigada a se sentar mesa de

negociao no dia 7 do mesmo ms.

Apesar de a greve ter sido alvo de crticas por parte do executivo, que a

considerou ilegal, para os servidores, foi a que contou com maior adeso dos

trabalhadores e, de maneira peculiar, com uma participao expressiva de estudantes e

movimentos sociais.

No dia 13 de maio, fomos sede da Secretaria Municipal de Educao com o

propsito de obter alguns dados sobre as escolas de assentamentos.

As paredes da Secretaria Municipal de Educao estavam pintadas de diversas

cores e havia tambm algumas palavras pichadas que davam sinais de quem passara por

ali. Entre estas, se destacavam: Fechar escola crime! e Queremos educao. Trata-

se, portanto, da passagem de mais de 500 crianas, pais e professores de assentamentos,

que no dia 26 de maro haviam parado a cidade, um dia aps a deflagrao da greve dos

servidores municipais. O protesto era contra o fechamento de trs escolas no campo: a

escola do Assentamento Nossa Senhora da Conceio, que funcionava como extenso da

Escola Alexandre Oliveira Costa; a Escola Municipal Castro Alves; e a Escola Municipal

So Benedito; as duas ltimas situadas em comunidades vizinhas a assentamentos, mas

que recebiam crianas do MST.

Figuras 7 e 8: Sede da SME aps protestos das crianas

Fonte: Blog Santa Maria em foco15

15

Disponvel em: http://www.santamariaemfoco.com.br; acesso em junho de 2014.

http://www.santamariaemfoco.com.br/

30

Ao adentrar a secretaria, as cores que vimos nas paredes de fora seguiam de

maneira intensa nos corredores internos, demonstrando que a ao no ficou apenas

restrita parte externa do prdio. As principais marcas deixadas foram o que ousamos

chamar de aquarela de mos. Alm de colorirem de maneira espontnea, as crianas

marcaram aquelas paredes brancas com suas prprias mos, as mos de crianas que

assim demonstraram a sua disposio para lutar por seus direitos, por escola e por

dignidade.

O atual quadro de tcnicos da Secretaria de Educao composto por diversos

docentes que j atuaram em escolas de assentamentos do MST. Durante a nossa presena

na Secretaria de Educao, alguns destes profissionais demonstravam preocupao com o

que ocorrera, pois, segundo eles, foi uma ao radical das crianas com presena de

adultos, que destruram carteiras e quebraram objetos da instituio. Mas, ao mesmo

tempo em que manifestavam sua contrariedade perante a forma como se desenvolveu a

ao, reconheciam que o dilogo no ocorrera por parte do executivo.

Dado o clima de recomposio de foras e demanda por reposio dos dias

perdidos na greve e nas mobilizaes, aos poucos as escolas retomavam a sua rotina.

Neste contexto, o Setor de Educao do MST se reuniu para fazer uma retomada

estratgica do trabalho com as escolas, o que inclua o retorno aos encontros mensais das

escolas16

, ainda no realizados at aquela data, em virtude das mobilizaes e da greve.

Portanto, ali estvamos com os sujeitos da pesquisa, no como construo terica

anteriormente formulada, mas como manifestao emprica, em contato direto com estes

atores sociais e suas realizaes. Dadas as vrias relaes estabelecidas no processo de

contato com a realidade e seus sujeitos, Minayo (2010) adverte que, no campo, os sujeitos

esto imersos num conjunto de relaes, ou seja,

[...] eles fazem parte de uma relao de intersubjetividade, de

interao com o pesquisador, da resultando num produto

compreensivo que no a realidade concreta e sim uma descoberta

com todas as disposies nas mos do pesquisador: suas hipteses e

pressupostos tericos, seu quadro conceitual e metodolgico, suas

iteraes, entrevistas e observaes, suas inter-relaes com os

colegas de trabalho (MINAYO, 2010, p. 63).

16

As escolas de assentamentos juntamente com o Coletivo de Educao do MST, em Santa Maria da Boa

Vista, realizam de maneira ordinria um encontro por ms para seguir construo de aes comuns.

31

1.4 O que o Coletivo de Escolas?

O Coletivo de escolas de assentamentos de Reforma Agrria uma instncia auto-

organizada das escolas pblicas de assentamentos do MST, em Santa Maria da Boa Vista

(SMBV), que tem o propsito a construo de uma pauta comum e a conduo do

trabalho coletivo nas escolas. Nesse sentido, a educadora Eduarda17

afirma que uma

forma de se unir com mais facilidade e que o individualismo desaparece e se constri o

gosto, o prazer de pensar, de sonhar e realizar em grupo.

Assim,

Todas as escolas so representadas nesse coletivo, que estuda, debate,

pensa as atividades conjuntas, dividem tarefas, renem periodicamente

em uma das escolas e fazem os encaminhamentos de forma coletiva.

Levam os encaminhamentos para o coletivo de professores que ajudam

a tomar as decises. Ento deixa de ser algo s do gestor e passa a ser

do conjunto (Vnia18

).

Nesta mesma direo, a educadora Mara19

define o Coletivo de Escola como

espao de integrao, consonncia de um trabalho pedaggico entre todas as escolas. As

escolas falando a mesma lngua e com os mesmos objetivos, os mesmos ideais. Da

mesma forma, essa fala ratificada pelo educador Antnio20

que diz que h uma pauta

construda conjuntamente, onde as escolas trazem suas demandas. No momento do

planejamento, as aes pensadas retornam ao coletivo de educadores de cada escola onde

debatem e essa pauta transformada em aes, l na ponta, com os nossos educandos.

Assim, compreendem que o Coletivo de Escolas oportuniza tecer dilogos e deflagra

aes em direo transformao da escola na medida em que se constri com diversos

sujeitos por meio de espao organizativo coletivo.

17

Entrevista cedida em: 21/02/2015. 18

Entrevista cedida em: 22/05/2014. 19

Entrevista cedida em: 29/05/2014. 20

Entrevista cedida em: 28/05/2014.

32

Figura 9: composio do Coletivo de Escolas de Assentamentos

Fonte: montado pelo autor a partir de dados da pesquisa

A seguir, apresentamos dados gerais das escolas que atualmente compem o

Coletivo de Escolas de Assentamento.

Tabela 3: Dados gerais das Escolas

N Unidade escolar Nvel

Ensino/modalidade

Localidade Matrcula Docentes Outros Funcionrios

01 Escola Municipal Alexandre Costa

Oliveira

Ed. Infantil

Fundamental I

Povoado Nova

Olinda

108 5 9

02 Escola Municipal Antnio Conselheiro Ed. Infantil

Fundamental I e II

Assentamento

Boqueiro

274

12

8

05 Escola Municipal Brilhante Ed. Infantil

Fundamental I

Assentamento

Brilhante

48 2 1

09 Escola Municipal Catalunha Ed. Infantil Fundamental I e II

EJA

Assentamento

Catalunha

400 16

11

04 Escola Municipal Chico Mendes Ed. Infantil

Fundamental I

Assentamento

Aqurios

143 6 5

07 Escola Municipal Francesco Mauro Ed. Infantil

Fundamental I e II

Assentamento

Safra

278 12 10

08 Escola Municipal Gabriela Prsico Ed. Infantil,

Fundamental I e II

Fazenda Milano 438 16 12

Diretores e representantes de escolas

Estudantes

Docentes, diretor, auxiliares de servios gerais, vigilante

Militantes que atuam no acompanhamento s escolas de assentamentos e a pauta geral de Educao no MST Coletivo

MST Coletivo de Educadores

Coletivo de Gestores

Coletivo Estudantil

(?)

33

EJA

06 Escola Municipal Marcos Freire Ed. Infantil

Fundamental I e II

Assentamento

Vitria

292 10 8

03 Escola Municipal Treze de Maio Ed. Infantil Fundamental I

Povoado Curral

Novo

165 7 6

TOTAL 2146 86 70

Fonte: elaborado pelo autor a partir da coleta de dados 2014

Conforme demonstra a figura 9, o Coletivo formado por diversos coletivo das

escolas, entre escolas e o coletivo de educao do MST. Logo, o coletivo de escolas a

expresso do processo organizativo de outros coletivos, o de gestores e de educadores.

Mais do que uma estrutura, o coletivo o processo em movimento da experincia

educacional nas escolas de assentamentos. um conceito-chave que nos permite abarcar

a larga experincia que se faz como a unidade do trabalho entre escolas sob o

acompanhamento do MST.

A partir da tabela 3, observa-se que apenas duas das nove escolas ofertam a

modalidade de Educao de Jovens e Adultos (EJA), as quais so contabilizadas na

matrcula municipal. Mas, em todas as reas de assentamentos, h a oferta de EJA, por

meio dos Programas Pr-jovem Campo Saberes da Terra21

(Ensino Fundamental e

Mdio), promovidos pela Secretaria Estadual de Educao a partir das diretrizes do

MEC em parceria com os movimentos sociais do campo, com a finalidade de elevar a

escolarizao da populao jovem e adulta que vivem no campo. Nos assentamentos do

MST em SMBV, a matrcula de aproximadamente 400 estudantes. Em grande medida,

as aulas desta modalidade ocorrem nas dependncias das escolas municipais.

No transcurso da pesquisa, observamos que h um esforo dos docentes e do

Coletivo de Educao no sentido de integrar o trabalho realizado na EJA com a dinmica

do trabalho pedaggico das escolas. Boa parte da populao atendida na EJA so os

pais/mes dos estudantes do ensino fundamental. Parte dos professores que lecionam

nestes programas tambm atuam na Educao Bsica das mesmas escolas.

O Ensino Mdio para adolescentes e jovens em idade escolar ofertado apenas na

Escola Gabriela Prsico, como extenso da Escola Pblica Estadual Judite Gomes de

Barros, localizada na sede do municpio. Os que no frequentam a referida escola vo

21

um programa do Ministrio da Educao que se encontra na poltica de Educao do Campo, por meio

do Programa Nacional de Educao do Campo (PRONACAMPO), e tem por objetivo elevar a

escolaridade de jovens e adultos em consonncia a um projeto de desenvolvimento sustentvel do campo, a

partir da organizao e expanso da oferta da modalidade Educao de Jovens e Adultos, anos iniciais e

finais do Ensino Fundamental de forma integrada qualificao profissional e Ensino Mdio (MEC, 2013,

s/p).

34

para a sede do municpio, em nibus fretados pelo executivo municipal, ou ainda, como

o caso dos assentamentos Safra e Vitria, deslocam-se diariamente, em barcos, para a

cidade de Cura, no Estado da Bahia. Isso se torna possvel porque ambas as

comunidades esto localizadas prximas ao referido municpio baiano, sendo separadas

pelo Rio So Francisco.

De acordo com os dados do censo escolar 201422

, Santa Maria da Boa Vista tem

53 escolas municipais; destas, 86,8% so escolas do campo. Do total de estabelecimentos

de ensino no municpio, as escolas do MST representam 16,98%.

Fonte: Censo Escolar 2014

Ainda de acordo com o Censo Escolar 2014, no que se refere matrcula, a rede

municipal de ensino de SMBV tem 8.134 estudantes, distribudos na Educao Infantil e

no Ensino Fundamental. Deste total, as escolas da regio de assentamentos representam

26,38% da matrcula.

No que diz respeito atuao dos profissionais, temos 63% em sala de aula, e os

demais em outras funes:

Grfico 2: rea de atuao no Ensino Fundamental nas escolas de assentamentos

22 Para verificar os dados educacionais relacionados ao municpio de SMBV . Disponvel em:

http://portal.inep.gov.br/basica-censo-escolar-matricula Acesso em: novembro de 2014.

13,2

86,8

Grfico 1: Estabelecimentos de ensino pblico municipal em SMBV por

localizao

Urbano Rural

http://portal.inep.gov.br/basica-censo-escolar-matricula

35

Fonte: autor a partir dados da pesquisa

Quanto ao tempo de atuao desses profissionais, identificamos que a sua maioria

trabalha na regio. Temos os seguintes dados: 30% entre 11 e 15 anos; 20% a mais de 16

anos; 26% entre 6 e 10 anos; 15,1% entre 3 e 5 anos; 6,9 entre 1 e 2 anos e 5,8% menos

de um ano. Os dados demonstram que existe um tempo significativo de atuao desses

profissionais em escolas da regio de assentamentos/MST. Sendo que 79% so efetivados

por meio de concurso pblico frente a 21% que possuem contratos temporrios. Este

ltimo dado difere dos dados nacionais, cujo vnculo da maioria dos professores das

escolas do campo se d por meio de contrato temporrio.

No questionrio (anexo 3) aplicado, uma das questes se referia em quantas

unidades escolares os mesmos exerciam a sua profisso. Conforme demonstra o grfico

3, mais de 72% atuam em apenas uma escola, sendo que sua maioria nos anos iniciais do

ensino fundamental.

0

10

20

30

40

50

60

70

Ensino(sala de

aula)

Direo Ensino edireo

ASG,vigilante

Aux. Adm MaisEducao

36

Fonte: idem

De acordo com os dados da pesquisa, podemos considerar que os objetivos do

Coletivo de Escolas de assentamentos so os seguintes:

a) Integrar as escolas pblicas municipais situadas na Estrada da Reforma Agrria

num trabalho coletivo no que se refere educao e seus vnculos polticos,

pedaggicos e organizativos com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra;

b) Desenvolver uma gesto escolar ampla, objetivando a participao de todos os

segmentos com o intuito de fortalecer a escola pblica desde os assentamentos de

Reforma Agrria;

c) Garantir o processo de formao permanente dos educadores;

d) Pensar e desenvolver atividades conjuntas que fortaleam a unidade e autonomia

das escolas do campo;

e) Organizar os coletivos de educadores e de estudantes em cada unidade escolar;

f) Desenvolver e socializar experincias pedaggicas que tenham como princpio

uma educao pblica, popular e socialmente referenciada.

72%

24%

4%

Grfico 3: quantidade de escolas em que atua

Em uma escola

Em duas escolas

Em trs ou mais

37

1.5 Instrumentos de coleta e tratamentos dos dados

Para o trabalho de campo, elegemos os seguintes instrumentos: observao

participante, entrevistas e anlise documental.

A observao participante parte integrante de uma pesquisa social, pois um

instrumento que fornece elementos importantes para a produo de conhecimento. Assim,

Minayo a define como

[...] um processo pelo qual um pesquisador se coloca como observador

de uma investigao cientfica. O observador, no caso, fica em relao

direta com os seus interlocutores no espao social da pesquisa, na

medida do possvel participando da vida social deles no seu cenrio

cultural, mas com a finalidade de colher dados e compreender o

contexto da pesquisa (MINAYO, 2010, p. 70).

Neste trabalho, a observao participante consistiu, em nossa insero nas

atividades do coletivo e das escolas, sendo que foi registrado em um caderno, em

cada encontro, os acontecimentos e questes, por vezes, no verbalizadas nas

entrevistas, mas manifestadas como parte da prpria experincia educacional. Isso

permitiu uma interao dos sujeitos em contato com outros, na vivncia e no

cotidiano, e no em um ato isolado. Deste modo, participamos em diferentes

reunies, encontros e atividades.

No dia 13 de maio de 2014, participamos numa reunio do Coletivo de

Educao do MST; no dia 29 de maio, participamos do Encontro do Coletivo de

Escolas de Assentamentos, ambas as atividades no assentamento Safra. Visitamos e

participamos ainda em algumas atividades realizadas pelas escolas.

Contudo, no basta apenas observar o cotidiano. preciso, a partir de

algumas questes previamente formuladas, dar voz aos atores sociais que constroem

a prtica educativa, e, neste sentido, as entrevistas so um instrumento de pesquisa

fundamental. De acordo com Bardin (2014, p. 89), nas entrevistas [...] lidamos

ento com uma fala relativamente espontnea, com um discurso falado, que uma

pessoa o entrevistado orquestra mais ou menos vontade.

A entrevista, como instrumento, figura como dimenso estratgica de uma

pesquisa de natureza qualitativa, na medida em que visa responder aos objetivos da

investigao, fornecendo elementos para a compreenso da realidade. Nessa direo,

de acordo com Minayo (2010), a partir da entrevista podemos obter dados

secundrios e primrios de duas naturezas:

38

[...] (a) os primeiros dizem respeito a fatos que o pesquisador

poderia conseguir por meio de outras fontes como censos,

estatsticas, registros civis, documentos, atestados de bitos e outros;

(b) os segundos que so objetos principais da investigao

qualitativa referem-se a informaes diretamente construdas no

dilogo com o indivduo entrevistado e tratam da reflexo do prprio

sujeito sobre a realidade que vivencia (MINAYO, 2010, p. 65).

Nesse sentido, o que se produz como dado no se realiza a partir de algo

esttico, inerte, como os documentos (sem diminuir a sua importncia), mas a partir

de relaes humanas, onde aqueles indivduos constroem para si, diante da

experincia coletiva, representaes, identidade, pertencimento ou no da vivncia

em questo. Contudo, importante lembrar que, por se tratar de processos em

movimento, de situaes produzidas por elas mesmas, fundamental, no universo de

entrevistados, estar atento ao que cada um tem a dizer sobre o processo vivido, suas

tendncias e perspectivas de futuro. Uma fala determinada (salvaguardando sempre

os elementos essenciais) produtora de componentes que permitem a conexo com

as demais falas, e tambm para alm delas, no que tange s questes comuns e

quilo que lhe especfico.

No total, foram feitas 27 entrevistas orientadas por um roteiro previamente

elaborado; em seguida, foi realizada a transcrio, edio e anlise. Os entrevistados

foram educadores que atuaram/atuam no processo de construo do Coletivo de Escolas

de Assentamentos, tanto no perodo de gestao da experincia, como tambm os que na

atualidade se encontram frente deste processo. O objetivo das entrevistas foi o de obter

elementos do processo histrico de construo do coletivo e de seu funcionamento; elas

foram realizadas individualmente e por segmentos:

1 segmento: Diretores e responsveis de escolas. Do universo de 9 escolas que

compe a instncia coletivo de escolas foram entrevistados 5 responsveis, com o

objetivo de entender como seu deu o processo de constituio dessa instncia, bem como

de que maneira esse tipo de organizao contribui na organizao do trabalho pedaggico

no mbito da escola.

2 segmento: Professores que atuam em sala de aula. Do universo de

aproximadamente 100 professores que atuam no conjunto das escolas de assentamentos,

foram entrevistados 15 profissionais com o objetivo de apreender elementos do processo

do trabalho pedaggico da escola, bem como sobre o funcionamento do coletivo de

educadores.

39

3 segmento: Setor de Educao do MST: cinco pessoas foram entrevistadas com

o objetivo de entender como se realiza o processo de acompanhamento s escolas de

assentamentos, como ocorre a relao com a Secretaria de Educao do municpio e o

papel do Coletivo de Escolas.

4 segmento: Secretaria Municipal de Educao: dois secretrios foram

entrevistados, um que exercia a funo na poca da gestao do Coletivo de Escola e o

atual gestor. Pretendemos compreender como veem o projeto de educao do MST como

iderio educativo, mas, sobretudo, seu processo de implementao na prtica das escolas

e como respondem s demandas do Coletivo de Escolas e do prprio MST.

Dado o contexto poltico no municpio e uma srie de sujeitos envolvidos no

processo, optamos por no explicitar os nomes dos personagens, que doravante recebero

nomes fictcios. Todos os entrevistados estiveram de acordo com a no divulgao dos

seus nomes verdadeiros.

Tendo em vista a necessidade de entender os vnculos construdos entre os

profissionais das escolas da regio com o MST e com a prpria unidade de ensino

em que trabalho, aplicamos um questionrio (anexo 3) com o objetivo de obter

elementos em torno da insero desses trabalhadores da educao na sua relao

com Movimento Sem Terra. Assim, consideramos as unidades de ensino da regio e

todas as frentes de atuao (do ensino ao servio geral). Foram aplicados e

recolhidos 86 questionrios, o que equivale a 55,1% do total dos profissionais que

atuam nas escolas da regio.

No percurso em campo, colhemos uma srie de documentos que versam sobre o

objeto de estudo e os organizamos por ordem cronolgica. A anlise documental, de

acordo com Bardin (2014), pode ser definida como uma operao ou um conjunto de

operaes visando apresentar o contedo de um documento sob uma forma diferente da

original, a fim de facilitar, num estado ulterior a sua consulta e referenciao (p.47). Em

nossa pesquisa, demos destaque ao folder de divulgao da experincia, de 2007; ao

balano do Coletivo Estadual de Educao do MST, de 2009; e aos relatrios de

acompanhamento s escolas, de 2006-2014:

a)Folder sobre as escolas de assentamentos: intitulado de Educao do Campo

em Movimento, o folder, produzido em 2007, consta como uma produo do Setor de

Educao do MST, que teve sua impresso grfica financiada pela Secretaria Municipal

de Educao. Foram rodados mil exemplares. Um material simples, mas deveras

ilustrado, com fotografias e textos curtos sobre uma srie de atividades do trabalho

40

educativo do MST. Embora a chamada seja Educao do Campo, em verdade o que

consta diretamente so elementos da organizao do trabalho pedaggico das escolas de

assentamentos; alm disso, ainda que de maneira breve, ele situa o municpio e a regio.

As informaes presentes, neste material, referem-se a: dados de matrcula e pessoal

(trabalhadores da educao); organizao coletiva, com destaque para o Coletivo de

Gestores/escolas e Coletivo de Educadores; elementos do processo de conhecimento. Ao

final do material, surgem os nomes das parcerias, acompanhados das logomarcas na

seguinte ordem: MST, Secretaria Municipal de Educao e Prefeitura.

b) Balano do Setor de Educao do MST: relatrio elaborado pelo Coletivo

Estadual de Educao do MST sobre o processo de trabalho com as escolas pblicas de

assentamentos a partir da experincia de Santa Maria da Boa Vista. Intitulado O trabalho

com as escolas do MST em Pernambuco, possui 10 pginas, data de maio de 2009, e situa

de maneira breve o percurso histrico e as principais frentes do trabalho pedaggico com

as escolas de assentamentos, sobretudo a questo do acompanhamento poltico-

pedaggico. Por fim, elenca alguns desafios do trabalho com as escolas.

c) Relatrio de Acompanhamento s escolas: trata-se da compilao de diversos

relatrios e cadernos de acompanhamento de membros do Setor de Educao do MST s

escolas de assentamentos e ao Coletivo de Escolas. Tivemos acesso a este material graas

aos responsveis de cada perodo e Coordenao de Educao do Campo da Secretaria

Municipal de Educao. O compilado compreende mais de 200 pginas no numeradas

contendo cadernos de acompanhamento dos anos de 2006 e 2007, relatrios dos anos de

2008, 2009 e 2010 e pautas das reunies do Coletivo de Escolas dos anos de 2011, 2012,

2013 e 2014. Parte dos relatrios foi entregue Secretaria Municipal de Educao, como

forma de prestar contas do trabalho realizado nas escolas de assentamentos. O documento

permite apreender o cotidiano do trabalho coletivo organizado pelo MST. Como uma

questo pertinente, os cadernos constituem-se como base para produo do relatrio, e,

por isso, neles aparecem detalhes que, por vezes, no esto presentes nos relatrios, da a

importncia em conhec-los.

Tendo em vista a vasta documentao encontrada, passamos, num primeiro

momento, a fazer a sua leitura com o objetivo de estabelecer um primeiro contato. Para

alm de algumas pesquisas acadmicas23

sobre a educao no MST, naquele municpio,

23

Citamos, a ttulo de exemplo, a dissertao de Mestrado O processo de trabalho pedaggico no MST:

contradies e superaes no campo da cultura corporal de Nair Casagrande (UFPE, 2001), e as teses de

doutorado O ldico e o revolucionrio no MST: a prtica Pedaggica no Encontro dos Sem Terrinha de

41

aqueles so os nicos materiais organizados como registro coletivo e peridico da

experincia em curso. Em seguida, realizamos uma compilao dos documentos visando

a constituio de uma cronologia desses materiais para a posterior organizao de um

quadro temtico para a captura de componentes sobre o processo vivido e, em parte,

sistematizado neste material.

Para esta parte vital da pesquisa a organizao, o tratamento e a anlise dos

dados , tivemos como aporte terico a anlise de contedo proposta por Bardin (2014).

Para esta autora, trata-se de

Um conjunto de tcnicas de anlise das comunicaes visando obter,

por procedimentos sistemticos e objetivos de descrio do contedo

das mensagens, indicadores (quantitativos ou no) que permitam a

inferncia de conhecimentos relativos s condies de

produo/recepo (variveis inferidas) destas mensagens (IDEM, p.

44).

A anlise de contedo , nesta perspectiva, abrangente, constituindo um conjunto

de tcnicas que no se restringe a um tipo de instrumento, tal como referido quer por

Minayo (2010), quer por Bardin (2014). Bardin (2014) vai, alis, destacar os seguintes

tipos de anlise de contedo:

a) Anlise de avaliao ou anlise representacional;

b) Anlise de expresso;

c) Anlise de enunciao;

d) Anlise temtica.

Dado os diversos instrumentos de pesquisa e tendo em conta a natureza do nosso

trabalho, escolhemos trabalhar com a anlise temtica, pois comporta um feixe de

relaes e pode ser graficamente apresentado atravs de uma palavra, uma frase, um

resumo (Minayo, 2010, p. 86). Para Bardin (2014), entre as diferentes possibilidades de

categorizao, a investigao dos temas, ou anlise temtica, rpida e eficaz na

condio de se aplicar a discursos diretos (significaes manifestas) e simples (p.199).

Num primeiro momento, procedemos a uma leitura geral dos materiais

(documentos e entrevistas) para, em seguida, voltar a organiz-los de acordo com a

natureza de cada um. Aps este trabalho, voltamos a fazer uma leitura, com o objetivo, Marcelo Pereira de Almeida Ferreira (UFPE, 2002), As prticas pedaggicas das escolas do campo: a

escola na vida e a vida como escola de Maria do Socorro Silva (UFPE, 2009) e Occupying Land,

Occupying Schools: Transforming Education in the Brazilian Countryside de Rebecca Senn Tarlau

(Universidade da Califrnia, 2014).

42

desta vez, de extrair o que peculiar em cada material e em cada fala. Mais adiante,

organizamos um quadro temtico a partir dos temas/questes que emergiram dos

materiais. O quadro temtico foi composto por trs itens:

a) Tema;

b) Contedo (extrato dos textos originais e das entrevistas que versam sobre o

tema);

c) Pr-anlise (indicao de elementos a partir do contedo apresentado).

No captulo seguinte, abordaremos as temticas relacionadas com os projetos

educativos do MST como parte constitutiva do nosso objeto de estudo.

43

CAPTULO II A ORGANIZAO DO TRABALHO PEDAGGICO

NA ESCOLA PBLICA: CONFRONTO DE PROJETOS

O presente captulo tem como objetivo refletir sobre a Organizao do Trabalho

Pedaggico, buscando explicitar alguns fundamentos a partir de dois pontos divergentes:

a forma atual do trabalho pedaggico sob as bases e a lgica do capitalismo e o projeto de

educao do MST. Para isso, buscamos elencar, de maneira breve, alguns elementos que

configuram a escola tal qual a conhecemos sob a gide do modo de produo capitalista e

como esta forma escolar se estrutura para dar conta de suas tarefas educativas que esto

postas historicamente, atendendo a um determinado interesse de classes.

Dado o contraponto do projeto educativo do MST atual forma escolar, situamos

sinteticamente a luta empreitada por este movimento popular de classe, como tambm o

percurso de luta e construo de sua Pedagogia e seus elementos fundamentais de ao

na escola.

2.1 Breves apontamentos sobre escola: sua lgica e estrutura

A Organizao do Trabalho Pedaggico (OTP), na atual forma escolar, tem sido

vista de maneira estreita, circunscrevendo-a apenas s questes inerentes sala de aula,

com destaque para os processos que envolvem a construo do ambiente educativo que

favorece a aprendizagem. Entretanto, para Freitas (2009), a OTP refere-se ao todo

educativo da escola:

A organizao do trabalho pedaggico, ora vista em sua abrangncia

de um macro ambiente escolar, ora visto enquanto um ambiente restrito

sala de aula, bem como as suas relaes; e questo clssica sobre a

necessidade de se ultrapassar a mera funo de instruo no processo de

ensino-aprendizagem, explicitando a funo formativa da escola

(IDEM, p.13).

Como podemos observar, a OTP est para alm da sala de aula; de maneira mais

profunda, o seu sentido diz respeito a prpria escola e sua totalidade, ou ao prprio

projeto poltico pedaggico (PPP), entendido por ns como plano de vida escolar. Pois,

quaisquer prticas pedaggicas desenvolvidas nos diversos espaos e tempos educativos

da escola requerem necessariamente um olhar para os objetivos da escola, para a sua

funo, dimenses que podem figurar no PPP da escola, entendido aqui para alm do que

44

se coloca no papel. So esses objetivos a base dos processos das aprendizagens e

avaliativos. Mas quem os definem? Quem determina o que se ensinar (em termos de

conhecimento humano-histrico e em termos de relaes)? Logo, partimos do

pressuposto de que educao e escola so construes sociais, em um dado momento da

histria da humanidade, a fim de suprir algumas necessidades. Ambas no esto,

portanto, soltas no tempo e no espao, mas sim estritamente ligadas com as necessidades

do processo de produo e reproduo da vida que tem no trabalho o fundamento de toda

a existncia humana.

Se nos voltarmos para a histria, veremos que a origem da escola no

exclusividade da sociedade capitalista; ao contrrio, os elementos que a conformam esto

presentes nas experincias humanas em sociedades pretritas no que diz respeito

construo de um espao cuja tarefa desenvolver processos educativos em sintonia com

o todo social:

Assim, ainda que a produo de um espao educativo especfico,

isto , que ocorre separadamente das demais esferas da vida, mas

no sem relao com estas, remonte h quase 5 mil anos, as

formas, objetivos e contedos escolares sero configuraes

prprias de seu tempo histrico e no um desenvolvimento linear,

inevitvel, que desembocaria nos atuais sistemas

escolares.(DALMAGRO,2010,p.68)

A autora prossegue sua reflexo fazendo referncia a Manacorda (2010) a respeito

da educao e escola no antigo Egito, em que o espao educativo, que deveria ser

frequentado para aprender e desenvolver certas habilidades, j aparecia num lugar de

destaque:

Ao procurarmos situar as origens da escola no tempo, encontramos

meno a um provvel espao separado das demais esferas da vida,

reservado educao, no antigo Egito, nada menos do que por volta do

sculo XXVII a.C. Manacorda (2000) situa a sociedade de ento e o

contexto que far emergir o embrio da escola que hoje conhecemos:

pode-se deduzir que um povo residente s margens de um grande rio e

com uma agricultura avanada tivesse acumulado e transmitido desde

tempos remotssimos noes de alto nvel no somente sobre a

agricultura e a agrimensura, mas tambm sobre as cincias que lhe

servem de base: a geometria para a medio dos campos, a astronomia

para conhecimento das estaes, e, especialmente, a matemtica, que

base de uma e de outra (p.10). E ainda pode-se pressupor uma

transmisso organizada das habilidades prticas e das noes cientficas

relativas a cada atividade(apud DALMAGRO, 2010, p.69).

No temos por objetivo tratar da histria da escola o que nos exigiria um maior

aprofundamento acerca desse tema contudo, nos interessa deixar claro que o seu

45

nascedouro no est estritamente ligado ao surgimento do capitalismo. Nesta formao

social, a escola ganha uma fora que no havia tido em outras formaes sociais.

Interessa-nos, nesse sentido, situ-la no contexto da formao capitalista.

A escola, tal como a conhecemos, tem incorporado elementos do que foi a

necessidade de determinados aprendizados em outras formaes sociais. Constitui, assim,

o novo que brota do velho, tal como a sociedade capitalista incorporou elementos de

outras formaes sociais e os reconfigurou.

A educao escolar se configura como um espao ao qual a sociedade destina um

tempo e tarefa especfica. Assim, a escola necessita estabelecer uma srie de programas

que devem culminar na formao de determinadas posturas condizentes com as normas

gerais do todo social.

Para que o capitalismo perdurasse como sistema, precisou construir todo um

arcabouo ideolgico, mecanismos de inculcao (Mszros,2005) que continuam a

garantir a sua reproduo. Do ponto de vista da Educao, isso est posto, portanto, para

cada poca histrica, aquilo que mais apropriado para se aprender e para se ensinar

(FIGUEIRA, 1985,p.14). Figueira (1985) nos diz que uma determinada poca, ou melhor,

um determinado sistema, no ensina qualquer coisa: ensina o que necessrio para a vida

em sociedade, ou seja, os indivduos no podem nem devem existir fora de normas e

condicionantes que lhes so exteriormente impostas.

O autor nos relembra que quando nasceu a sociedade burguesa, o seu iderio

consistiu em transmitir a todos os membros da sociedade que o cio uma coisa contrria

prpria existncia (p.14). Figueira (1985) nos lembra ainda o fato de que, se em

sociedades anteriores, como no caso do feudalismo, o trabalho era algo avesso vida

(ainda que sua existncia vida dependesse do trabalho), o cio era algo eminentemente

natural, obviamente para os nobres e cleros, j que os servos no desfrutavam desse

tempo livre. Pode-se dizer que essa ideia se converte em ideia dominante da poca por

expressar a dominao real de classes. O que faz e ensina a sociedade burguesa

justamente o contrrio: o trabalho visto e difundido como algo inerente vida social,

embora esta oculte que em nosso tempo histrico o trabalho essencialmente um

instrumento de explorao.

A fora que tem a escola no contexto do modo de produo dominante, j

podemos reconhecer no final do sculo XVIII, a quando da Revoluo Francesa:

46

Se consideramos as conquistas ideais da burguesia revolucionria

(liberal-democrtica) durante o Setecentos no que diz respeito

instruo, podemos sintetiz-la em poucas palavras:

universalidade, gratuidade, estatalidade, laicidade e, finalmente,

revoluo cultural e a primeira assuno do problema do trabalho

(MANACORDA, 2010, p.325).

Dando continuidade a esta reflexo, Frigotto (2010) nos chama ateno de que a

escola, no contexto do capitalismo, surge no plano discursivo ideolgico, na medida em

que ela se apresenta ao conjunto da sociedade

Como uma instituio pblica, gratuita, universal e laica que tem, ao

mesmo tempo, a funo de desenvolver uma nova cultura, integrar as

novas geraes no iderio da sociedade moderna e de socializar, de

forma sistemtica, o conhecimento cientfico. Todavia, a escola, na

verdade, desde sua origem, foi organizada, sobretudo, para aqueles que

no precisam vender sua fora de trabalho e que tm tempo de viver a

infncia e adolescncia fruindo o cio. (p.5)

Por seu lado, Manacorda (2010) nos diz que a instruo est colocada como

uma necessidade do desenvolvimento das foras produtivas, uma vez que a

humanidade no teria chegado a nveis de apropriao da natureza atravs da cincia,

caso tivesse abdicado da instruo. Nesse mesmo sentido, Mekssenas (2005), afirma

que a sociedade capitalista pe a cincia em destaque, mostrando que a vida moderna

s pode ser entendida pela tica dos mtodos e, com isto, a educao deixa de refletir

apenas os valores religiosos como no tempo da sociedade feudal para ter a cincia

como base (p. 27).

Se na sociedade moderna a cincia a forma dominante de entender o real, como

bem menciona Mekssenas (op.Cit.), escola coube, portanto, ser o espao que

aprisionou o contedo estudado pelas cincias e autodeclarou-se a nica credenciada

para transmiti-los juventude dentro das salas de aula (FREITAS, 2010, p.155). A

escola passou a ser o espao-tempo de atualizao histrica por meio da distribuio de

conhecimentos aos indivduos, de acordo com os interesses dominantes. Da o lugar

ocupado pela escola como instituio que monopoliza e homogeneza a formao da

juventude, colocando-a em sintonia com a sociedade que a cerca como consumidores e

como fora de trabalho, submetidos lgica do capital (idem, ibidem).

Na sociedade atual, a escola cumpre a tarefa de socializar o conhecimento;

contudo, se observarmos mais atentamente ela no se restringe a esta dimenso,

configurando-se como forma de convencimento do modo dominante de produo da

existncia. Ela no se reduz, desta forma, a dispor ou no de conhecimento. Sua forma

47

reflete uma estrutura/arquitetura social que deve ajudar a construir um tipo de pessoa que

corresponda e se encaixe em tal estrutura.

Para Freitas,

A escola encarna funes sociais que se adquire do contorno da

sociedade na qual est inserida (excluso, submisso por exemplo) e

encarrega os procedimentos de avaliao, em sentido amplo, de garantir

o controle da consecuo de tais funes mesmo sob o rtulo de

contnua e processual. Ainda que se admita que isso ocorre em um

processo conflitivo e cheio de contradies