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1. O hip hop

A cultura hip hop nasceu nos Estados Unidos, maisespecificamente no Brooklyn e no Bronx, dois bairros deNova Iorque. Seu contexto é o da década de 1970, quandoas grandes cidades estadunidenses enfrentaram uma criseem decorrência da desindustrialização1, o que as fezmergulhar em um cenário de violência urbana, consumode drogas, racismo, opressão policial, injustiça estatal e,principalmente, desigualdade social. As maiores vítimasdesse quadro eram os mais vulneráveis economicamente:negros e latinos. O hip hop surgiu, então, como reação aesse contexto adverso.

De acordo com Afrika Bambaatta (nome artístico deLance Taylor), o hip hop consiste em um ideal que reúnedança (break), arte plástica (grafite) e música (rap). Essaúltima vertente conta com a figura do DJ (“disk jockey”),que é o artista que manipula o equipamento de som, e orapper ou MC (“master of ceremony”, isto é, o mestre decerimônia), que é o artista que canta. Conectando todasessas manifestações está o “conhecimento”, que é afilosofia, a visão de mundo que orienta o hip hop.

No princípio, essa cultura servia para reunir jovensem competições artísticas, com destaque para o canto e adança, o que serviu para apaziguá-los, pois os desviou daviolência das gangues que aterrorizavam os bairros pobresde Nova Iorque. Criou-se, assim, um ideal do homemcomo ser dançante, o que já estava indicado nos termosque nomeiam esse movimento: “to hip” em inglês querdizer “mexer os quadris” e “to hop”, saltar. Tais açõespodem até ser entendidas como metáforas do resultado

final do hip hop: mexer os quadris e saltar para mexer amente e saltar na autoestima. Em outras palavras, ocorreuuma socialização de ascensão, uma positivação dasmarcas identitárias desses adolescentes: ser negro oulatino, ser periférico não era mais motivo de vergonha.Obviamente, tal postura contrariava o status quo, queentendia que grupos sociais minoritários deveriam seenxergar e se manter como inferiores. O hip hop assumiu,assim, uma atitude contestadora, natural nos jovens.

2. O rap

Por ser canção, modalidade artística que reúne músicae texto, o rap tem importância fundamental na divulgaçãoda cultura hip hop. Sua origem é multifacetada. Parte delaestá na Jamaica, mais especificamente na capital,Kingston. Lá, era comum músicos usarem sound systems,veículos que, guardadas as devidas proporções,assemelhavam-se aos trios elétricos baianos. Com a criseque atingiu o país caribenho, alguns artistas emigrarampara os Estados Unidos, principalmente para a cidade deNova Iorque, levando consigo o costume de executarmúsica na rua. No entanto, no novo ambiente, o ritmojamaicano, o reggae, foi substituído pelo estadunidense, ofunk.

Inicialmente, o rap comportou-se apenas como adeclamação de um texto, acompanhada de música, mascom o tempo se tornou uma poesia recitada em um ritmosuperior ao do padrão da fala. Atualmente, consagrou-sepelas frases longas e ritmadas, estreitando sua relação coma música, o que garantiu autonomia de identidade comrelação ao funk.

Por fim, é importante destacar que o rap tem comocaracterística essencial sua estreita ligação com o contextosocial. É certo que, de uma forma ou de outra, direta ouindiretamente, todo tipo de arte revela a conjuntura dasociedade em que está inserida. No entanto, o rap realizaessa tarefa de maneira vital – do contrário, perde suaessência. Dessa forma, tal modalidade artística, assim

1 A desindustrialização foi o processo que consistiu na

transferência do processo fabril dos países desenvolvidos para

as nações pobres, que possuíam mão de obra mais barata. A

consequência foi o desenvolvimento de setores industriais nos

países subdesenvolvidos, como ocorreu na região do ABC

paulista da década de 1970, e a consequente decadência dessa

divisão nos polos de origem, como os centros urbanos dos

Estados Unidos.

SOBREVIVENDO NO INFERNO

AULAS ESPECIAISAS OBRAS DA UNICAMP

PORTUGUÊS

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como o seu produtor, acabam se tornando porta-voz desua comunidade, conscientizando-a.

3. Hip hop no Brasil

O movimento negro recente no Brasil iniciou-se pelosidos das décadas de 1960 de 1970 e tem um forte viéstransnacional, ou seja, sua orientação teórica vem de outropaís, mais precisamente os Estados Unidos. Suas basesestão na luta pelos Direitos Civis dos negros dos EUA2,bem como nos postulados do Black Power3 e dos BlackPanthers4. No entanto, como o Brasil não foi caracterizadopor uma legislação segregacionista (o que não impediuque a discriminação social existisse por aqui, ainda quede maneira tácita), inicialmente ocorreu em nosso país umespírito de valorização da identidade afrodescendente pormeio dos bailes black5. Esse é o contexto que influenciouos primeiros anos de muitos dos rappers, entre eles osmembros do Racionais MC’s.

Entretanto, o hip hop começou de fato em 1983 coma chegada, à cidade de São Paulo, do break, queconquistou inicialmente a área da estação São Bento dometrô e depois se expandiu para outras localidades docentro da capital paulistana, como rua 24 de Maio e praçasDom José Gaspar e Roosevelt. Coincidentemente, era a

época em que a metrópole paulista sofria um contextosocial semelhante ao do início do hip hop estadunidense.Com a nova dinâmica econômica, o mercado de trabalho,mais modernizado, passou a exigir uma mão de obra emmenor quantidade e a que era admitida tinha de terespecialização – condição muito diferente da décadaanterior, em que havia maior empregabilidade e menorseletividade quanto a formação educacional. Assim, umenorme contingente humano fica sem colocação nomercado de trabalho, ou se vê obrigado, para sobreviver,a assumir condições degradantes de obtenção deremuneração.

Dentro do contexto econômico e social tão adversoem que se encontrava o Brasil na década de 1980, o hiphop tornou-se a oportunidade ideal para os jovens deperiferia, que não encontravam dignidade no mercado detrabalho – ou porque a atividade profissional não ossatisfazia, ou porque não conseguiam emprego – e naformação educacional – que não era eficiente em prepará-los para a vida e para o exercício profissional, tampoucopara a representatividade afrodescendente. Por meio dobreak, ganharam autoestima, pois deixaram de ser merosconsumidores de arte, passando a produzi-la.

No início, o break sofreu forte repressão da polícia,que alegava que as aglomerações dos jovens propiciavadelitos como furtos. Mas depois, com o sucesso devideoclipes como “Billie Jean” e “Beat it”, de MichaelJackson, essa dança começou a ser aceita até mesmo emambientes familiares, o que contribuiu para que cessassea perseguição a essa manifestação cultural.

Com a aceitação, o hip hop conseguiu integrar-se ànossa cultura, ganhando identidade própria, o que secomprova pela sua associação a outras manifestações,como a literatura marginal, o basquete de rua, o Cooperifa,as rádios comunitárias, os jornais de comunidade deperiferia e as entidades desses bairros. Toda essa uniãocontribuiu para que nosso país se tornasse o lugar demaior expressão política do hip hop no mundo.

4. O rap no Brasil

Assim que chegou ao Brasil, o rap não foi de imediatoidentificado, pois era chamado de “balanço” ou “funkfalado”. Mas, conforme foi se tornando conhecido, passoua se integrar de maneira mais forte na cultura negra daperiferia. E essa implantação passou por estágios, queindicam a constante transformação desse estilo até o

2 Movimento social ocorrido principalmente no sul dos Estados

Unidos entre 1955 e 1968. Visava inicialmente abolir as leis

segregacionistas raciais e acabou se transformando na luta pela

dignidade étnica negra.3 Slogan político que englobou várias orientações que visavam

a valorização da autoestima dos afrodescendentes.4 Organização revolucionária criada nos Estados Unidos em

1966 com a intenção de reunir membros armados para

monitorar a atuação de policiais, coibindo as rotineiras ações

opressivas contra a população negra. Mais tarde, já como

partido político, assumiu uma postura assistencialista aos

afrodescendentes. Fortalecido, com células espalhadas não só

dentro, mas fora dos Estados Unidos, passou a confrontar a

polícia, participando até de conflitos mortais. Sofre então forte

contra-ataque do governo, principalmente do departamento de

inteligência FBI, que acaba minando o movimento por meio de

uma extensão campanha de difamação. Contribuiu também para

esse enfraquecimento as lutas internas da agremiação.5 Festas realizadas inicialmente no Rio de Janeiro e São Paulo

e que eram frequentadas pela classe média baixa. Nelas,

tocavam-se discos de estilos norte-americanos como funk e soul,que serviram para aumentar a autoestima dos afrodescendentes

brasileiros na década de 1970. Verdadeiro hino desse espírito é

“Negro é lindo” (1971), de Jorge Ben Jor: “Negro é lindo /

Negro é lindo / Negro é amigo / Negro também é / Filho de

Deus” (disponível em http://www.letras.mus.br/jorge-ben-

jor/86412/ - Acesso em 22 set. 2019).

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momento atual.

No início, o rap brasileiro caracterizou-se por ter umcaráter ingênuo, pois se preocupava em narrar assuntoscomo a ida aos bailes ou a conquista das “minas”. Por issoera chamado de tagarela ou de estorinha. Destaque deveser dado, nesse fase, a Pepeu e Ndee Naldinho (JoséCarlos Souza Silva).

Sua segunda fase ficou conhecida como “gangsta”.Marcou-se pelo abandono da postura inocente do períodoanterior, dedicando-se, então, às questões ligadas ànegritude, havendo forte crítica social. Seus artistasdesenvolvem então uma atitude arredia, principalmentecontra os que enxergam como responsáveis pela situaçãoproblemática em que se encontra a periferia. Osrepresentantes desse período são os pioneiros Thaíde(Altair Gonçalves) e DJ Hum (Humberto Martins Arruda),seguidos de Racionais MC’s, DMN, RZO e GOG.

O estágio seguinte é visto como de transição, pois háainda uma forte preocupação com a crítica social, mas apostura arisca é deixada de lado, já que seus artistas estãoinseridos na grande mídia. Alguns dos integrantes dessemomento são Max B. O. (Marcelo Silva), Dina Di(Viviane Lopes Matias), Sabotage (Mauro Mateus dosSantos Filho).

A mais nova geração é a quarta, denominadaunderground. Seus integrantes dão atenção à abordagemcrítica de problemas sociais, mas dão ainda espaço emsuas canções para temas mais leves, como diversão,amizade e amor. Caracterizam-se ainda por utilizar outrosinstrumentos musicais, abandonando a exclusividade deum DJ na responsabilidade da parte sonora do rap.Integram essa fase Criolo (Kleber Cavalcante Gomes),Projota (José Tiago Sabino Pereira), Emicida (LeandroRoque de Oliveira), Rashid (Michel Dias Costa) e FloraMatos.

Outra maneira de caracterizar o rap é levar emconsideração a sua relação com os ideais democráticosrecuperados no Brasil após 1985. No início, coincidindocom a redemocratização do Brasil, que havia saído doregime militar imposto em 1964, a faceta musical do hiphop assumiu a preocupação de contribuir para o progressodo país por meio da produção de música que servisse deferramenta para cobrar das autoridades a implantação depolíticas em defesa da cidadania e do bem-estar social dopovo da periferia. Esse é o momento do rap

democratizante, que encontra como exemplo os primeirosálbuns do Racionais MC’s: Holocausto urbano (1990) eRaio-X do Brasil (1992).

No entanto, surgiu um desencanto com relação àspromessas da democracia. O Brasil mais justo nãoemergira – ao contrário, houve uma crise econômica,seguida de alta taxa de desemprego e de custo de vida.Atrelado a esse contexto está a escalada de violência, quemassacrou principalmente a periferia. Em tal conjuntura,a vertente musical da cultura hip hop ganha um novofeitio, tornando-se rap de guerra. Assume-se um teorbélico nos temas, já que suas letras falam de conflitosentre pretos e brancos, pobres e ricos. Abordam-setambém os embates contra a polícia, o Estado, o sistema.Agravante: enfoca-se a luta entre os próprios pobres.Exemplo dessa fase é o álbum Nada como um dia após ooutro (2002), também do Racionais MC’s.

Curiosamente, Sobrevivendo no inferno (1997)pertence tanto ao rap democratizante quanto ao rap deguerra.

5. O Racionais MC’s

Composto por Mano Brown (Pedro Paulo SoaresPereira), Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador), Edi Rock(Edivaldo Pereira Alves) e KL Jay (Kleber Geraldo LelisSimões), o Racionais MC’s é o mais importante grupo derap do Brasil.

Inicialmente, na época da chegada do hip hop aonosso país, pelos idos da primeira metade da década de1980, Mano Brown e Ice Blue, que frequentavam a regiãoda estação São Bento do metrô, criaram a dupla BBBoys(Black Bad Boys), que confessadamente admirava EdiRock e KL Jay, tidos como mais cultos. Os dois paresparticipam pouco depois, em 1988, de um álbum,Coletânea Brasil vol 1, do qual foram os destaques – oprimeiro dueto, com o single “Pânico na Zona Sul”; osegundo, com “Beco sem saída”.

Os inspiradores desses quatro jovens foram o produtormusical Milton Sales, responsável pelo ativismo políticodo hip hop na época, e DJ Thaíde, que acompanhavam emprogramas de televisão. Por meio desse último, tomaramconhecimento de grupos de rap como Public Enemy eRun DMC, que representavam a vertente mais engajadado estilo nos Estados Unidos. O contato com o segundogrupo foi mais marcante, pois permitiu que os rapperspercebessem o empoderamento do negro estadunidense,

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que, com o trabalho planejado de gestos e vestimentas,constituía o fortalecimento de uma identidade étnica.Criam então o Racionais MC’s.

A explicação para esse nome é ao mesmo tempocomplexa e interessante. A palavra “racionais” anuncia aintenção de se afastar do rap da geração anterior, que, porser de “estorinha”, era visto como bobo, frívolo,superficial. Além disso, constituiu uma referência ao discoRacional (1975), de Tim Maia (1942-1998), ídolo douniverso afro-brasileiro. E o “MC” vinha de Run DMC.

O primeiro álbum do grupo é Holocausto urbano(1990), que vendeu 200 mil cópias, prodígio que torna osrappers conhecidos e respeitados na periferia paulistana.O resultado consagrador é o Racionais MC’s abrir, em1991, o célebre show do Public Enemy no Ibirapuera, emSão Paulo.

Em 1993, mais sucesso. É o ano em que o grupointegra o programa “Rap... ensando a Educação”, daprefeitura de São Paulo. É também quando lança Raio-Xdo Brasil, que emplaca “Fim de semana no parque” e“Homem na estrada”. A primeira obtém o feito de setornar a primeira música a ser tocada nas emissoras de FMfora do circuito do hip hop. A segunda ganhou em 1994 oprêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte(APCA). E foi por causa dessa composição, tocada noVale do Anhangabaú, durante o evento “Rap no Vale”, queo Racionais MC’s foi preso por incitação à violência. Esseera apenas o começo dos problemas que sempre seusmembros teriam com o stablishment. Anos depois (2007),durante a Virada Cultural, na Praça da Sé, também em SãoPaulo, seu show se transformou em um campo de batalhaentre o público e a polícia. Essa relação explosiva estápresente até na atualidade.

Em 1997, vinha a consagração máxima: é publicadoSobrevivendo no inferno. O álbum atingiu o prodígio devender 1,5 milhão de cópias até hoje, o que é notável aindamais por se tratar de um lançamento por selo próprio, oCosa Nostra. A obra se tornou o marco divisório dogênero, a ponto de se dizer que o rap brasileiro tem doismomentos: o anterior e o posterior ao surgimento dessedisco.

Em 1998, os videoclipes “Mágico de Oz” e “Diáriode um detento”, de Sobrevivendo no inferno, são lançados.O último foi eleito o melhor clipe de rap pelo VMB daMTV Brasil. Além disso, o grupo recebeu o prêmio de

“melhor escolha da audiência” pelo mesmo evento.

Nada como um dia após o outro, CD duplo, vem apúblico em 2002, trazendo sucessos com “Vida loka”,“Jesus chorou”, “Estilo cachorro” e “Negro drama”. Essaúltima ganhou o prêmio “música do ano” do Hútuz,principal premiação da Central Única das Favelas. O grupofoi ainda agraciado na categoria “grupo ou artista solo”.

Em 2003, o Racionais MC’s é entrevistado pela TVCultura, de São Paulo, sinal de que não só estava havendoa consagração de sua arte pela intelectualidade, mastambém o caráter arredio diante da grande imprensaestava começando a ser deixado de lado.

Dois anos depois, o grupo ganhava o I PrêmioCooperifa, que reconhecia o papel dos músicos comoativadores no contexto social da periferia. Essapreocupação com os desprestigiados economicamentenunca abandonou os rappers, por isso sempreparticiparam de projetos que proporcionavam parceriascom grandes empresas para investimentos sociais nosbairros pobres paulistanos. A condição imposta é que essasações não assumissem uma postura paternalista e nãoviessem de setores econômicos ligados ao escravismo.Além disso, o Racionais MC’s, após atingida aconsagração, passou a investir em artistas iniciantes,dentro da política de resgate identitário. Fazia, assim,prevalecer o renomado lema de que o rap resgata vidas.

6. Principais obras

1988 – Músicas “Beco sem saída”, de Edi Rock e KLJay, e “Pânico na Zona Sul”, de Mano Brown eIce Blue, saem na coletânea Consciência Blackvol. 1.

1990 – Holocausto urbano (álbum), já como RacionaisMC’s.

1992 – Escolha seu caminho (EP6).

1993 – Raio-X do Brasil (álbum).

1997 – Sobrevivendo no inferno (álbum).

2002 – Nada como um dia após o outro (CD duplo).

6 EP (extended play) é uma gravação longa demais para ser

considerada single, mas curta para ser considerada um álbum.

No caso de Escolha seu caminho, trata-se de três versões da

música “Voz ativa”: a primeira, mais curta, tocava nas rádios; a

segunda, mais extensa, era executada em bailes; a terceira é acapela (ou seja, apenas com a parte vocal), para ser usada como

sample por outros rappers e DJ’s.

4 –

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2006 – 1000 trutas e 1000 tretas (DVD).

2008 – O jogo é hoje (mixtape7 com a Nike).

2009 – Tá na chuva (álbum).

2010 – “Umbabarauma” (com Jorge Ben Jor)8.

7. Sobrevivendo no inferno

Proprietário da marca de 1,5 milhão de cópias

vendidas até hoje e dono de três dos maiores hinos do rap

brasileiro (“Capítulo 4, versículo 3”, “Diário de um

detento” e “Fórmula mágica da paz”), Sobrevivendo no

inferno é um marco no cenário do hip hop nacional. Além

disso, é a obra mais engajada da música popular brasileira.

Coloca-se também entre as obras mais importantes da arte

nacional, como afirma Acauam Silvério de Oliveira:

Seu impacto no cenário nacional pode ser

comparado sem exageros ao de outras obras

pertencentes aos mais diversos campos culturais,

como Memórias póstumas de Brás Cubas, de

Machado de Assis, Grande sertão: verdes, de

Guimarães Rosa, Terra em transe, de Glauber

Rocha, e Chega de saudade, de João Gilberto.9

Outro ponto digno de nota é que esse álbum ajudou a

erguer a autoestima do povo da periferia, a ponto de não

só o incentivar a atuar em benefício de sua própria

comunidade, mas também a mergulhar na produção

artística, como confessaram o rapper Criolo e o poeta

Sérgio Vaz.

O aspecto que mais chama a atenção em Sobrevivendo

no inferno é a utilização de um discurso religioso, mais

especificamente da vertente pentecostal, que se mistura às

questões políticas tradicionalmente vinculadas ao rap.

Dentro da lógica da obra, como observou o estudioso

Henrique Yagui Takahashi10, o Racionais MC’s

ressignificou a narrativa bíblica, principalmente a do livro

do Êxodo, trazendo-a para os nossos dias. A comprovação

desse viés interpretativo estaria no fato de o grupo ter

convidado o rapper Pregador Luo (Luciano dos Santos

Souza) para fazer, na encenação de um culto evangélico

na abertura da apresentação do Racionais MC’s no VMB

da MTV Brasil de 1998, o seguinte discurso:

Você! Você se considera um homem livre?

Você pensa que é um homem livre, mas é um

escravo! Mesmo podendo andar pelas ruas, você

não passa de um prisioneiro! A bíblia conta a

história de um povo, que durante quatrocentos

anos foi escravizado! Que durante quarenta anos

vagou pelo deserto, a história do povo de Israel.

[Aleluia!]. Assim como vocês! Esse povo estava

desvalorizado, humilhado, sem moral e sem

esperança. Mas um dia Deus apareceu na vida

desse povo! E prometeu levá-los para a terra da

liberdade! Uma terra que emana leite e mel

chamada Canaã! Uma terra onde eles seriam

verdadeiros homens livres! [Aleluia!]. Sabe,

irmãos, eu também já fui como vocês, envolvido

com várias mulheres, com vários vícios e com

várias bebedices. Achava ali que a segurança

poderia ser feita por um revólver e com um

revólver eu poderia impor a minha moral

[Aleluia! Aleluia!]. Mas eu estava errado! Eu era

um simples escravo. Até que um dia o Senhor,

glória Deus, apareceu em minha vida. Me fez um

homem negro livre! Um homem livre como vocês

podem ser! Livre da dor e do sofrimento. Mas

ouçam, irmãos, o mesmo sistema que humilhou e

escravizou no passado, o mesmo sistema que

humilhou e escravizou o povo de Deus no

passado. Humilha vocês hoje!11

Seguindo essa chave interpretativa, a escravidão do

povo hebreu no Egito seria atualizada no sofrimento do

povo negro na periferia. O antagonista de Deus, que era o

faraó, agora se materializaria no “sistema”: o mecanismo

7 “Mixtape” é uma compilação de músicas que não foi

produzida em estúdio e geralmente é disponibilizada na internetem nome de alguma campanha beneficente. O presente caso foi

para atrair fundos para atividades esportivas na periferia de São

Paulo.8 Esta música, também conhecida como “Ponta de lança

africano”, aparecera originalmente no álbum África Brasil(1976), de Jorge Ben Jor. A nova versão fora gravada por Mano

Brown e Jorge Ben Jor para comemorar a Copa do Mundo FIFA

de 2010.9 OLIVEIRA, Acauam Silvério de. “O evangelho marginal dos

Racionais MC’s”. In: Racionais MC’s. Sobrevivendo no inferno.

São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 22-23.

10 TAKAHASHI, Henrique Yagui. Evangelho segundoRacionais MC’S: ressignificações religiosas, políticas eestético-musicais nas narrativas do rap (dissertação de

mestrado). São Carlos: UFSCar, 2015.

11 Pregador Luo, Apud TAKAHASHI, Henrique Yagui. Op. cit.,p. 38.

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social que incentiva o consumismo. Os egípcios, queseguiram os comandos opressores do faraó contra oshebreus, hoje estariam encarnados nos agentes do sistema,como policiais e os playboys (estereótipo criado pelosrappers para representar o branco da classe privilegiadaeconomicamente), oprimindo os afrodescendentes. Porfim, Moisés conduzindo seu povo para a terra prometida,Canaã, nos tempos atuais seria o Racionais MC’s guiandosua etnia para a aceitação identitária, o que implicariavalorizar o bairro em que moram e não mostrar submissãoaos brancos opressores.

Acauam Silvério de Oliveira, que fez o prefácio daversão em livro da obra-prima do Racionais MC’s, é outroque confirma a tese de que Sobrevivendo no infernoassume o discurso pentecostal. Para confirmar suaposição, esquematizou o conjunto do álbum,comprovando seu caráter não só conceitual, mas tambémde culto evangélico:

cântico de louvor e proteção direcionado ao

santo guerreiro (“Jorge da Capadócia”); leitura do

evangelho marginal (“Gênesis”); entrada em cena

do pregador do proceder, explicando (ou

confundindo, a depender da necessidade) os

sentidos da palavra divina (“Capítulo 4, versículo

3”); o momento dos testemunhos das almas que

se perderam para o diabo com resultados trágicos

(“Tô ouvindo alguém me chamar” e “Rapaz

comum”); Intermezzo musical para velar aquelas

mortes, interrompido por tiros que fazem

recomeçar o ciclo; a pregação ou mensagem

central (massacre do Carandiru) que liga o destino

daqueles sujeitos ao de toda a comunidade

(“Diário de um detento”), chave de compreensão

do destino de todos e descrição do próprio inferno;

exemplos do modo de atuação do diabo no interior

da comunidade (“Periferia é periferia”); exemplos

do modo de atuação do diabo fora da comunidade

(“Qual mentira vou acreditar”). Ao final, um

momento de autorreflexão sobre os limites da

própria palavra enunciada (“Mágico de Oz” e

“Fórmula mágica da paz”) e os agradecimentos a

todos os presentes, verdadeiros portadores da

centelha divina (“Salve”).12

Torna-se compreensível, então, que Sobrevivendo noinferno assuma muito da lógica pentecostal. O que àprimeira vista parece não fazer sentido é que essa estruturade pensamento acabe se misturando à forma de raciocíniodo crime, inclusive no campo do vocabulário, assumindo,assim, um feitio bélico. No entanto, esse compartilha -mento de fundamentos é plausível, já que os evangélicose os agentes da criminalidade estavam dentro do mesmocontexto social. Muitas vezes, o fiel, a caminho do culto,andava pela mesma área do bandido. Além disso, as redespentecostais espalharam-se de tal forma pela periferia queestavam presentes em todas as famílias dessa localidade.Dessa forma, não é de estranhar que os evangélicosutilizassem expressões como “inimigo”, “guerreiro”,“exército do Senhor”, a lembrar o estilo de batalha dosmarginais. Essa postura aguerrida pode ser vista, porexemplo, já no começo de “Capítulo 4, versículo 3”:

Minha intenção é ruim, esvazia o lugar

Eu tô em cima, eu tô a fim, um, dois, pra atirar

Eu sou bem pior do que você tá vendo

O preto aqui não tem dó, é 100% veneno

A primeira faz bum, a segunda faz tá,

Eu tenho uma missão e não vou parar

Meu estilo é pesado e faz tremer o chão

Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita

[munição13

No excerto acima, o enunciador, Mano Brown,assume um tom intimidador, pois tem consciência de quesua chegada é tão amedrontadora que chega a esvaziar olugar por onde passa. Trata-se de um assalto, que nocomeço é ambíguo – o ataque se dá de maneira denotativa(hipótese assustadora) ou conotativa? A partir do oitavoverso, fica claro que se trata de um ataque metafórico, maso sentido literal não é de todo abandona do, pois é a baseque dá força às alegorias que são apresentadas.

É interessante notar que o eu poemático temconsciência de que sua abordagem se dá por meio do queele chama “palavra”, outro termo vindo do universoevangélico e que significa doutrina, conjunto de ideias aserem transmitidas e ensinadas. O uso desse vocábulo semostra coerente com o de outro termo, empregado nomesmo trecho: “missão”. Conclui-se, então, que oRacionais MC’s se comporta como pastores rappers quetêm a função de pregar para a redenção de seu público.

12 OLIVEIRA, Acauam Silvério de. “O evangelho marginal

dos Racionais MC’s”. In: Racionais MC’s. Sobrevivendo noinferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 33-34.

13 Mano Brown. “Capítulo 4, versículo 3”. In: Racionais MC’s.

Op. cit., p. 49.

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A parte mais importante dessa tarefa de salvação éevitar que seu fiel, o receptor da mensagem, da palavra,caia nas tentações do demônio:

Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor

Pelo rádio, jornal, revista e outdoor

Te oferece dinheiro, conversa com calma

Contamina seu caráter, rouba sua alma

Depois te joga na merda, sozinho

Transforma um preto tipo A num neguinho14

A entidade demoníaca configura-se aqui no sistemaconsumista, que confunde cidadão com consumidor. Pormeio de um forte esquema de propaganda, atribui status,respeito e consequentemente felicidade à capacidade deconsumo. As pessoas das classes privilegiadas conseguemdisfarçar até para si mesmas seu vazio existencial entrandonessa ciranda consumista. O problema é que o negropobre morador de periferia, carente de poder aquisitivo,tem a sua autoestima abalada por não poder possuir asmercadorias anunciadas pela publicidade e que sãotratadas como símbolos de realização pessoal.

Tendo vetado o acesso aos objetos que funcionamcomo chave para aceitação social, alguns moradores deperiferia vivem massacrados em empregos que não lhes dãoa dignidade por meio da autonomia sobre a própria vida.Outros, nem emprego têm. Há ainda os que, entrando paraa criminalidade, saem da periferia e vão roubar os bens daclasse alta. E existem aqueles que, como forma de fuga darealidade, entregam-se às drogas. Ainda assim, não tendocondições para sustentar seu vício, apelam também para acriminalidade. No entanto, voltam-se contra sua própriacomunidade, roubando seus semelhantes. Atingem acondição humilhante de furtar até roupa no varal, como seinforma em “Periferia é periferia”. Deixam de ser o “negrotipo A”, um tipo honrado, e se transformam no “neguinho”,o “noia”, que integra a parte mais degradante dosmecanismos do mal do sistema – a outra é o traficante. Um,perde todo o amor próprio e o respeito dos seus iguais aodar lucro para o outro, que não tem escrúpulo em faturarem cima de um viciado, retirando-lhe a dignidade.

Em todos os casos apontados, nota-se a perversidadedo sistema, pois só provoca sofrimento no povo daperiferia. Até mesmo o bandido, que consegue obter nãosó bens de consumo, mas também status e respeito, sai

prejudicado, pois sua atividade o mergulha em umcotidiano de violência do qual nunca sai. E o resultado ésempre o mesmo, como afirma Mano Brown em“Fórmula mágica da paz”:

Mas se liga, olhe ao seu redor e me diga

O que melhorou? Da função15, quem sobrou?

Sei lá, muito velório rolou de lá pra cá

Qual a próxima mãe que vai chorar?

Há, demoro!

Mas hoje eu posso compreender

Que malandragem de verdade é viver16

Esse trecho é suficiente para colocar por terra a críticaque se faz de que os Racionais MC’s realizam apologiaao crime. Os rappers, de fato, sempre se colocaram aolado dos criminosos, procurando entender os motivos queos levaram a cair na ilicitude. Buscaram também defenderum tratamento justo aos bandidos, prerrogativasgarantidas pela lei, principalmente a Constituição Federal.No entanto, estar ao lado dos meliantes não significacompactuar com eles. Prova disso é que todo criminosonas composições de Sobrevivendo no inferno encontra umfim trágico, como o trecho acima deixa claro. O mesmofato pode ser observado em “Tô ouvindo alguém mechamar”, “Rapaz comum” e “Diário de um detento”.

Nesse sentido, a periferia, espaço onde se dá todo essecontexto de opressão, ganha uma conotação ambivalente,coerente com a lógica da obra. Por um lado, o evangélico,esse ambiente, como local de sofrimento, torna-se oinferno, que agora não mais pertence ao outro mundo, masé territorializado no plano terreno. Por outro lado, obélico, torna-se zona de guerra. É por causa dessaconjuntura que Sobrevivendo no inferno assume um tomde afirmação da identidade negra que cria um clima deconfronto, abrindo espaço para uma mistura de ódiodeclarado com inveja quase declarada17 em relação ao quechamam playboy, o branco da classe alta. Assim, oRacionais MC’s procura construir uma política do “nós-negros” que se afasta do sistema dominado pelo “eles-brancos”, agentes do sistema. Assim, a guerra de raça, que

14 Mano Brown. “Capítulo 4, versículo 3”. In: Racionais MC’s.

Op. cit., p. 53.

15 Termo de gíria muito comum entre os rappers. Aqui está

sendo usado no sentido de grupo, de comunidade de manos. 16 Mano Brown. “Fórmula mágica da paz”. In: Racionais

MC’s. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 122-123.17 KEHL, Maria Rita. “Radicais, Raciais, Racionais: a grande

fratria do rap na periferia de São Paulo”. Revista São Paulo emPerspectiva, vol.13, nº 3, 95-106, set. de 1999, p. 97.

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já existia por meio do que passou a ser entendido comoracismo do Estado, constituído pela opressão aosafrodescendentes, ganha um novo matiz, que é moral. Seantes o negro era visto como uma sub-raça humilhada edegradada por uma super-raça, o branco; agora passa a setornar outra super-raça com amor ao seu universo, que éo da periferia, fazendo com que o não-periférico passe aser desvalorizado.

Nesse espírito de embate, cria-se em Sobrevivendo noinferno um conjunto de categorizações que tem como baseuma relação de contrastes. A tradicional oposição entrenegros, negativos por serem pobres, e brancos, positivospor serem ricos, ganhará novas significações: o preto serávisto como moral, enquanto o branco será visto comoimoral; o mano será o contrário do sistema; “a preta [queera buscada] no portão da escola”18 terá como antítese a“mina de elite (...) / puta de butique”19.

No entanto, o Racionais MC’s demonstra consciênciabastante crítica, que possibilita que desenvolva em suaobra uma visão complexa da realidade que analisa,afastando análises ingênuas. Dessa forma, a ideia de uniãodos manos contra os brancos mostrou-se apenas umautopia – a “pacificação das quebradas” ficou só no desejo.É o que se comprova com algumas das composições deSobrevivendo no inferno, como “Capítulo 4, versículo 3”,“Tô ouvindo alguém me chamar” e “Fórmula mágica dapaz”. Nelas, nota-se a violência interpessoal, sinal dafalência definitiva do Estado de Direito. Os inimigospassam a ser os próprios moradores da periferia, quechegam a se matar por causa da criminalidade muitasvezes provocada pelas drogas.

Nesse contexto bélico, portanto, o Racionais MC’s fazde Sobrevivendo no inferno uma obra para afrontar o queentende como um sistema que luta contra o povo pobrepreto. Trata-se de uma postura de revide vista comoperigosa, como confessa KL Jay:

Somos os pretos mais perigosos do país e

vamos mudar muita coisa por aqui. Há pouco

ainda não tínhamos consciência disso.20

Por meio dssa atitude, abre-se caminho para arecomposição da história nacional sob uma outra

perspectiva, em que imperaria uma cons cien tização capazde fazer tanto o rapper quanto o seu público estabeleceremuma ligação entre o momento presente e o passado do nossopaís. É o que declara Mano Brown:

Você já nasceu preto, descendente de

escravo que sofreu, filho de escravo que sofreu,

continua tomando “enquadro” da polícia,

continua convivendo com drogas, com tráfico,

com alcoolismo, com todos os baratos que não

foi a gente que trouxe pra cá. Foi o que colocaram

pra gente. Então não é uma questão de escolha, é

que nem o ar que você respira. Então o rap vai

falar disso aí, porque a vida é assim.21

Enfim, todo o histórico do negro faz com que o rapassuma uma postura política de embate. Por meio dela,constrói-se um lugar para o afrodescendente diferente doque aquele que a tradição lhe dedicou. Valoriza-se suaidentidade étnica, o que o faz agir em seu espaço. Emoutras palavras, a periferia ganha visibilidade. Trata-se deuma atitude perigosa para setores da elite, que preferemver o negro como inferior e subjugado. Mas Sobrevivendono inferno tem declaradamente a proposta de se mostrarcomo “a fúria negra”22 que rompe com a tradiçãoconciliatória entre brancos e pretos brasileiros.

Dessa forma, Sobrevivendo no inferno, por estar natransição entre o rap democratizante e o rap de guerra,veicula uma decepção com relação ao sonho vendido pelaredemocratização brasileira, que prometia uma sociedademais justa e igualitária. O que os autores viam à sua frenteeram os destroços dessa utopia, com o Brasil adotando oque os rappers entenderam como um projeto nacional deaniquilamento do povo pobre. Os fatos que alimentarama tese deles foram amplamente divulgados pela imprensa:Massacre do Carandiru em 2 de outubro de 199223,Chacina da Candelária24 em 23 de julho de 1993, Chacina

18 Mano Brown. “Capítulo 4, versículo 3”. In: Racionais MC’s.

Op. cit., p. 52.19 Idem.20 KEHL, Maria Rita. Op. cit., p. 96.

21 Apud: KEHL, Maria Rita. Op. cit., p. 98.22 Mano Brown. “Capítulo 4, versículo 3”. In: Racionais MC’s.

Op. cit., p. 50.23 Nessa data, a polícia militar do Estado de São Paulo invadiu

a Casa de Detenção de São Paulo (o extinto Carandiru) para

conter uma rebelião de presos. O resultado foi a morte de 111

presos, de acordo com dados oficiais.24 A Chacina da Candelária foi o crime cometido por ocupantes

de dois Chevettes que chegaram na madrugada de 23 de julho de

1993 e atiraram contra dezenas de pessoas que dormiam em

frente à Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro,

deixando oito mortos.

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de Vigário Geral25 em 29 de agosto de 1993. Na visão doRacionais MC’s, o Brasil teria se tornado, pois, um campode extermínio a céu aberto, o que faria parte de um planode gerenciamento da miséria por meio da violência muitasvezes homicida.

Essa política de exclusão e eliminação de pessoas ememórias deveria ser entendida como o combustível quesustentou os cerca de cinco séculos da História do Brasil.Bastaria lembrar que essa forma de administração dapobreza faria parte de um conjunto de mecanismosherdados da escravidão e aperfeiçoados nos diferentesregimes ditatoriais pelos quais nosso país passou. Essaseria a única maneira vista como eficiente para manter aordem social. Plausível, portanto, a transformação doinimigo – no caso de Sobrevivendo no inferno, esse seriao bandido preto pobre – em inumano. Daí a facilidade oua falta de escrúpulo em exterminá-lo: seria meramentevida morta sem homicídio.

Dentro desse espírito de exposição da realidade crua,cada texto de Sobrevivendo no inferno apresenta váriascenas que representam um cotidiano marcado por umaviolência tão extrema que torna a morte onipre sente. Noentanto, a obra não cai no sensacionalismo, com aexploração barata da miséria alheia26 – ou própria. ORacionais MC’s, adotando postura típica da sociologia,apresenta uma visão mais aprofundada e séria desseproblema, o que o capacita a ampliar seu enfoque. É o quese nota no depoimento de Mano Brown:

Qual das violências? A do revólver? Há

vários lados a analisar. Um é o do desemprego. A

tendência é só piorar, ainda mais com tanta

competição. Tem muita arma na rua. Falta

comida, mas não falta arma. É o circo do cão.

Hoje tem um monte de coisas “bala” pra comprar,

mas falta dinheiro. Isso desperta mais cobiça

ainda. Por outro lado tem o dinheiro. Todo mundo

quer ter. E aí o ladrão tem mais respeito que o

trabalhador. Até pra sociedade. Por isso a

molecada, filho daquele pai que já sofreu pra

caralho, que não tem nada, que mora no barraco,

não quer viver igual ao pai... não quer morrer no

anonimato. Ele quer ser alguém. Quer ser notório.

Quer ser notado. Quer seu espaço. Ele não é

ninguém pro governo, não é ninguém pro patrão

dele, não é ninguém pra mulher dele, não é

ninguém pros vizinhos dele, não é ninguém. Mais

um. Aliás, mais um não, ninguém. E aí quem faz

o crime é notório, é alguém. O mundo é violento.

O sistema é violento. Hoje o que manda é o ter.

Quem não tem não é. É isso que o mundo é.

Quem tem é, quem não tem não é. Se você pode

consumir você é. Se não, você não é. As pessoas

veem muita televisão, o que é vendido na

televisão. Você quer ser o cara da TV. Compre o

Startac [aparelho celular desejado por muitos nos

anos 90], se você não tem é vacilão. Falam isso

pra você. Compra a calça tal, se você não tem é

prego [otário]. Ninguém quer ser prego nem

vacilão. Tem que estar a pampa no dia-a-dia,

senão as minas [garota] te veem como um prego.

Você tem que ter e vai ter como?27

Em palavras precisas, Mano Brown põe a nu ofuncionamento de nossa sociedade. Expande a noção deviolência, mostrando que ela não se restringe à provocadapelo revólver. É provocada pela miséria, que exclui dacondição humana o morador da periferia ao torna-loprisioneiro da necessidade. É provocada pelo Estado, queignora um enorme contingente da sociedade, negando-lhecidadania. É provocada pelo sistema, que condiciona aautoestima ao consumo, obtido apenas por meio da possede dinheiro – quem não o tem, não é digno de respeito.

A violência em Sobrevivendo no inferno torna-seentão plausível, pois faz parte do contexto em que osenunciadores se encontram. Além disso, funciona comorecurso de obtenção de visibilidade para a problemáticaenfocada, para, assim, lutar por seu saneamento. Noentanto, o rap não é mero retrato do nó duro da realidade.Na verdade, procura revelar essa situação massacrantecom a utilização de elementos estéticos. Mais uma vez,nada melhor do que aproveitar a explicação de ManoBrown:

O rap tem o poder de fazer o cara se

25 Massacre em que um grupo de extermínio invadiu a Favela

de Vigário Geral, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro,

arrombou diversas casas e assassinou 21 moradores.26 Prova desse escrúpulo foi a hesitação inicial de Mano Brown

em criar “Diário de um detento”, pois chegou a pensar que essa

composição, baseada nas experiências dos presidiários do

Carandiru, estaria se aproveitando do sofrimento deles.

27 Apud: SILVA, Rogério de Souza. A periferia pede passagem:trajetória social e intelectual de Mano Brown (tese de

doutorado). Campinas: UNICAMP, 2012, p. 141.

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inspirar às vezes numa fita ou outra, só que ele

não é realidade pura mano. É como tirar uma

paisagem da vida real e fazer um desenho. Se

você pega um quadro, pinta uma criança catando

lixo, na vida real é feio pra caralho, mas todo

mundo vai querer comprar. Entendeu a diferença?

Aí é que tá o barato do rap. O rap é o retrato do

barato. Se você quiser vender aquilo ali, ninguém

compra, você vai ter que transformar. Por que o

cara gosta e compra o rap? O bagulho rima, tem

a batida, tem balanço... Fala umas palavras que

no dia a dia o cara nunca imaginava que ia virar

um rap. É tudo magia, truta.28

O rap, portanto, estetiza a realidade de maneira atornar o discurso mais eficiente na sua proposta dedenúncia social. Obtém sucesso ao derramar “magia”,“umas palavras que no dia a dia o cara nunca imaginavaque ia virar um rap”, em suma, um trabalho estético quetorna o conteúdo mais chamativo para o receptor, o quefacilita a veiculação da mensagem em defesa de justiçasocial.

No entanto, a solução proposta para os problemasexpostos em Sobrevivendo no inferno não se concentra nocampo político, mas no místico. Apesar de nãomencionarem qualquer instituição religiosa, os rappersadotam um discurso presente na ética protestante, queprega que a salvação é individual. É o que se encontra nouso enfático da primeira pessoa do singular, associado aoda terceira, em “Fórmula mágica da paz”:

MANO BROWN

Se liga, procure a sua paz

(...)

[OUTROS]

Eu vou procurar

Procure encontrar

Eu vou encontrar

A fórmula mágica da paz

MANO BROWN,

Você pode encontrar a sua paz, o seu paraíso

Você pode encontrar o seu inferno29

A mensagem é fácil de ser inferida: cada um deveprocurar a sua salvação. E tal já era anunciada no início doálbum:

Foda é assistir à propaganda e ver

Não dá pra ter aquilo pra você

(...)

Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal

Por menos de um real minha chance era pouca

Mas seu eu fosse aquele moleque de touca

Que engatilha e enfia o cano dentro de sua boca

De quebrada, sem roupa, você e a sua mina

Um, dois, nem me viu, já sumiu na neblina

Mas não...

Permaneço vivo, prossigo a mística

Vinte e sete anos contrariando a estatística

Seu comercial de TV não me engana

Eu não preciso de status nem fama

Seu carro e sua grana já não me seduz

E nem a sua puta de olhos azuis30

A redenção, como o excerto acima demonstra, segueo espírito protestante de busca por um rígido ascetismo, ouseja, por um severo controle moral focado no afastamentodas seduções do mundo consumista. Quem cai natentação, encontra o seu inferno, que é o a subvida(humilhar-se no sinal) ou, pior, o banditismo (assaltar amão armada), caminho sem volta. A salvação, portanto, éobtida por uma verdadeira guerra contra o inimigo, contrao sistema, que não se dá por meio do confronto, mas pormeio da resistência. É sobreviver aos seus ataques, é nãose deixar seduzir pelas delícias das mercadorias ou dasdrogas lícitas ou ilícitas. É valorizar o que realmenteimporta, que é a vida. É aprender que “malandragem deverdade é viver”31. Enfim, é “contrariar a estatística”segundo a qual “a cada quatro horas um jovem negromorre violentamente em São Paulo”32.

28 Apud: TAKAHASHI, Henrique Yagui. Evangelho segundoRacionais MC’S: ressignificações religiosas, políticas eestético-musicais nas narrativas do rap (dissertação de

mestrado). São Carlos: UFSCar, 2015, p. 28.

29 Mano Brown. “Fórmula mágica da paz”. In: Racionais

MC’s. Op. cit., p. 131-132.30 Mano Brown. “Capítulo 4, versículo 3”. In: Racionais MC’s.

Op cit., p. 55-56.31 Mano Brown. “Fórmula mágica da paz”. In: Racionais

MC’s. Op cit., p. 123.32 Mano Brown. “Capítulo 4, versículo 3”. In: Racionais MC’s.

Op cit., p. 49.

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Por fim, há que se destacar a qualidade literária deSobrevivendo no inferno. Sabe-se que a característicaessencial do texto literário é a atenção à função poética dalinguagem, que consiste em destacar os recursosexpressivos utilizados na construção do texto, de forma adestacar a manipulação especial e estética da língua.Assim, a literatura se faz não apenas na transmissão deuma informação, mas também na preocupação com aforma estética, marcada por beleza, por meio da qual amensagem é passada. Tal processo pode ser visto emvários momentos de Sobrevivendo no inferno, como senota, por exemplo, no trabalho com a rima.

Como o rap é primeiramente uma composição que serealiza no plano da oralidade, o emprego da rima obedeceao compasso quaternário, que dificilmente é captado noplano do texto escrito. Mas esse fenômeno conseguedeixar marcas, visíveis principalmente no caráter bináriodo esquema de rimas, que se dá em AABBCCDD...:

Aí, moleque, me diz, então: cê quer o quê?

A vaga tá lá esperando você

Pega todos seus artigos importado

Seu currículo no crime e limpa o rabo

A vida bandida é sem futuro

Sua cara fica branca desse lado do muro33

No trecho, assim como tantos outros do livro, oesquema de rimas se dá, como se disse, binariamente:quê/você, importando/nabo, futuro/muro. No primeiro eno terceiro par a rima se mostra soante, já que se realizapela igualdade em todos os sons a partir da última vogaltônica. No terceiro, ela é toante, pois se faz apenas entreas vogais a partir da última tônica: /a/ e /o/. Mas ela podese desconectar mais ainda da realidade escrita – o quereforça o caráter de oralidade do rap –, como se percebeem outro trecho a mesma canção:

Na última visita, o neguinho veio aí

Trouxe umas frutas, Marlboro, Free

Ligou que um pilantra lá dá área voltou

Com Kadett vermelho, placa de Salvador34

Nota-se que a grafia é diferente (aí/Free,voltou/Salvador); mas o que vale é a sonoridade, que éigual: no primeiro par, o som é /i/; no segundo, /ô/.

O aspecto auditivo é tão fortemente trabalhado emSobrevivendo no inferno que até trechos em que não hárima, o que poderia indicar falha na construção poética,são salvos pelo amplo emprego de figuras de harmonia,como aliterações e assonâncias:

Já ouviu falar de Lúcifer?

Que veio do inferno com moral?

Um dia no Carandiru, não ele é só mais um

Comendo rango azedo com pneumonia35

Nesse excerto, não há rima entre Lúcifer e moral,entre um e pneumonia. No entanto, a musicalidade estágarantida, por exemplo, pelo eco entre “LúciFER” (v. 1)e “inFERno” (v. 2), “dIA” (v. 3) e “pneumonIA” (v. 4),“CarANdiru” (v. 3) e “rANgo”.

Em outro exemplo, dessa vez em “Periferia éperiferia”, a ausência de rima é compensada por umamusicalidade contundente produzida pela utilização dealiterações:

O óDio Toma ConTa De um TraBalhaDor

EsCravo urBaNo, um simples NorDesTiNo

ComProu uma arma Pra se auToDefenDer

Quer enConTrar o vaGaBunDo

Que essa vez Não vai Ter... Boi36

O emprego intenso de consoantes oclusivas (aquelasque se constituem pela interrupção da passagem do ar pelaboca) serve para sugerir o ódio que toma conta do cidadão,que sofre também uma interrupção, mas mental, que fazcom que seu bom senso, com seu jeito civilizado de agir,seja tomado pelo sentimento de vingança contra aqueleque roubou seu salário obtido com muito esforço.

Mas o caráter literário de Sobrevivendo no inferno sedá não apenas pelo trabalho com a tessitura sonora dotexto. É garantido também por outros procedimentos, tãoou mais sofisticados. Vemo-lo, por exemplo, naambiguidade do discurso que abre “Capítulo 4, versículo3”, em que o assalto que ali se configura tanto pode serfísico (ataque para a tomada de bens materiais) quantopsicológico (ataque verbal para intimidar o que outroraera visto superior, o membro da classe alta):

Minha intenção é ruim, esvazia o lugar

Eu tô em cima, eu tô a fim, um, dois, pra atirar

33 Jocenir e Mano Brown. “Diário de um detento”. In:

Racionais MC’s. Op cit., p. 86.34 Idem, p. 87.

35 Idem, p. 86.36 Edi Rock. “Periferia é periferia”. In: Racionais MC’s. Op.cit., p. 93 (o destaque nas maiúsculas é nosso).

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Eu sou bem pior do que você tá vendo

O preto aqui não tem dó, é 100% veneno

A primeira faz bum, a segunda faz tá,

Eu tenho uma missão e não vou parar

Meu estilo é pesado e faz tremer o chão

Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita

[munição37

A ambiguidade é desfeita apenas no último verso dotexto, mas o sentido de assalto continua latente,sustentando a metáfora que representa o espírito de revidedominante tanto na canção quanto na obra a que pertence.

A multiplicidade de sentido também pode serencontrada em “Tô ouvindo alguém me chamar”, em quea frase que serve de título funciona como um refrão queaparece em diferentes momentos do texto. Pode tantosignificar a última frase ouvida antes de o protagonista serbaleado, quanto o desespero de alguém que o chama paraque se mantenha vivo, como também a invocaçãoinevitável do destino, que o convoca para cumprir a suasina – ser punido por seus pecados.

Aliás, a reiteração é um processo marcante em “Tôouvindo alguém me chamar”, pois a frase que abre acanção, “Aí, mano, o Guina mandou isso aqui pra você!”está também presente no desfecho38. Ela é a chave queabre e fecha o monólogo interior em que o protagonistarememora toda a sua vida até o instante em que éassassinado. É por meio dessa introspecção que captamosa agonia do enunciador, que, às portas da morte,transtornado, faz uma fusão de tempos:

O Guina não tinha dó

Se reagir, bum, vira pó

Sinto a garganta ressecada

E a minha vida escorrer pela escada39

As ideias presentes no tempo do enunciado, nopassado – o Guina intolerante contra os que enxerga comoinimigos, o assassinato do opositor (o segurança quetentou impedir um assalto), a garganta ressecada diantedo cotidiano violento, a vida perder o rumo (escorrer pela

escada ) – confundem-se com os fatos do tempo daenunciação, no presente – o Guina intolerante com apresumida alcaguetagem do eu poemático, o assassinatocontra o enunciador, a garganta ressecada pela situaçãoem que o eu lírico se encontra (está morrendo) e o seusangue escorrer pela escada.

7. As canções

“Jorge da Capadócia”

O texto que abre Sobrevivendo no inferno não é deautoria do Racionais MC’s: foi retirado do álbum SoltaPavão (1975), de Jorge Ben Jor. Trata-se de um canto paraSão Jorge, guerreiro da Capadócia (região da Turquia) quefoi marcado por uma fidelidade tão rígida ao cristianismoa ponto de perder a vida em 303 d. C., tornando-se, assim,um dos santos mais populares do catolicismo. O aspectobélico dessa entidade a fez ser associada, no sincretismoreligioso brasileiro, a Ogum, o orixá que chegou a lutarcontra a exploração do pobre pelo rico40. Iniciar a obracom essa canção é uma forma de invocar o santo paraproteção, de maneira a impedir que o inimigo possa feriro eu poemático.

“Gênesis”

O subtítulo desse texto é “Intro”, o que define a suafunção: com sete versos (número bastante pequeno, faceà extensão tipicamente quilométrica do rap), essacomposição41 serve de introdução a Sobrevivendo noinferno. Já a palavra que constitui o título, “Gênesis”,além de estabelecer uma referência ao primeiro livro daBíblia, tem em sua etimologia a ideia de origem, o que defato é o tema do poema, pois nele Mano Brown tanto falada criação do mundo (feita pelas mãos de Deus), quantoda criação da sociedade (feita pelas mãos do homem). Aprimeira obra é marcada pela perfeição, pois possuielementos positivos e paradisíacos: “o mar, as árvore, ascriança, o amor”42. A segunda, pela imperfeição, poispossui elementos negativos e infernais: “a favela, o crack,

37 Mano Brown. “Capítulo 4, versículo 3”. In: Racionais MC’s.

Op cit., p. 49.38 Mano Brown. “Tô ouvindo alguém me chamar”. In:

Racionais MC’s. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 59

e 69.39 Mano Brown. “Tô ouvindo alguém me chamar”. In:

Racionais MC’s. Op. cit., p. 61.

40 PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo:

Companhia das Letras, 2011, p. 101.

41 No álbum, é questionável que os vinte segundos que

compõem essa música apresentem uma canção, pois há apenas

uma nota que se estende por toda a composição, além de efeitos

sonoros como latidos e sirene. O texto que acompanha todo

esse conjunto não é cantado, mas recitado ou simplesmente

falado. Seria mais adequado chamá-los de recitativo.

42 Mano Brown. “Gênesis (Intro)”. In: Racionais MC’s. Op.cit., p. 45.

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a trairagem / As armas, as bebida, as puta”.43 Nesse jogode oposições entre os feitos do Criador e os da criatura,entende-se que a bondade está do lado de Deus, enquantoque a maldade está do lado do homem.

Dessa forma, a primeira faixa autoral de Sobrevivendono inferno (já que “Jorge da Capadócia” não é doRacionais MC’s, mas de Jorge Ben Jor) funciona comouma genealogia do mal, ou seja, a apresentação de umasérie de elementos que relatam a origem da malignidadeque marca a sociedade em que os rappers estão inseridos.

No entanto, até agora tem-se falado da primeirametade do texto. Seu ponto central, seu divisor é o quartoverso, composto apenas por uma palavra, “Eu”, seguidade uma interrogação. Marca a posição que o enunciadortoma diante do contexto que tem à sua frente: adotar trêsguias – a “Bíblia velha” (alusão ao Deus rigoroso do VelhoTestamento), uma pistola automática (referência àdisposição para enfrentar o cotidiano violento da periferia)e o sentimento de revolta (alimento do espírito de revideque sustentará a autoestima dos rappers). Essas serão asdiretrizes que possibilitarão ao eu poemático sobreviverno inferno que é a periferia.

“Capítulo 4, versículo 3”

A genealogia do mal foi apresentada em chave místicano texto anterior, “Gênesis”, por intermédio da oposiçãoentre a obra de Deus e a obra do homem. Agora, amalignidade é mostrada de forma lógica e argumentativapor meio de dados estatísticos anunciados por PrimoPreto, o que coloca o inferno em números:

60% dos jovens de periferia sem antecedentes

[criminais já sofreram violência policial

A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três

[são negras

Nas universidades brasileiras quase 2% dos

[alunos são negros

A cada quatro horas um jovem negro morre

[violentamente em São Paulo44

O final desse discurso, fechando a objetividade dosdados impessoais com a subjetividade de uma experiênciapessoal, estabelece o contraste que vai marcar

Sobrevivendo no inferno, mais destacadamente em“Capítulo 4, versículo 3”, permitindo que o discurso emprimeira pessoa seja representação de uma coletividade.

“Capítulo 4, versículo 3”, por meio da apresentaçãode uma moralidade marginal, que se opõe à moralidadehegemônica, torna-se um manifesto político contra aopressão à periferia. É a defesa do universo do negropobre da periferia e o ataque ao universo da classe alta.

“Tô ouvindo alguém me chamar”

Esse texto, assim como o próximo (“Rapaz comum”),é o relato em primeira pessoa que o protagonista faz desua existência por meio dos últimos pensamentos que temantes de morrer assassinado. É o renomado esquema davida que passa diante dos olhos. Ou melhor, que passapela mente.

O motivo imediato para a violência que o eupoemático acabara de sofrer é a vingança a mando deGuina, que fora, mais do que companheiro, o seuprofessor do crime. Por meio dos ensinamentos, oprotagonista “viu o sistema aos seus pés”. Em outraspalavras, aprendeu com o mestre, que, por meio doassalto, poderia exercer poder sobre aqueles que antes otratavam como inferior. Mas o final trágico é prova de queo caminho da ilicitude é errado.

“Rapaz comum”

Esse texto é irmão do anterior, pois também apresentaelementos temáticos semelhantes: o eu lírico é vítima deum acerto de contas e, assim que é atingido por tiros, fazo depoimento de um sofredor, ou seja, narra a suaexistência no crime, o que também serve para relatar ocotidiano de violência urbana.

No entanto, há diferenças entre as duas composições,o que lhes garante identidade própria. A primeiradessemelhança é que, em “Tô ouvindo alguém mechamar”, após os tiros que atingem o enunciador, este fazum flashback que serve para explicar e contextualizar ocrime de que foi vítima, terminando o relato no momentodo assassinato, garantindo circularidade à narrativa. Em“Rapaz comum”, o trabalho com o eixo temporal édiferente: a partir do ataque, o enunciador conta duashistórias paralelas. Além da sua existência no crime, elenarra o que vai acontecendo logo após ser baleado.43 Idem.

44 Mano Brown. “Capítulo 4, versículo 3”. In: Racionais MC’s.

Op. cit., p. 49.

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“...”

Nesse momento do livro, há somente o título(constituído apenas de reticências), o nome do autor (o DJEdi Rock) e a indicação “[Instrumental]”. Trata-se de umintermezzo, um pequeno intervalo que funciona comopausa necessária, já que as faixas anteriores lidaram comexperiências extremamente negativas. As própriasreticências que compõem o título reforçam essacaracterística, pois esse sinal de pontuação é utilizado paraindicar a interrupção do fluxo de discurso em função deuma sobrecarga emocional.

Outra interpretação possível, que não está distante daprimeira aqui apresentada, é a de que se configura nesseintermezzo uma pausa para velar os mortos dascomposições anteriores (“Tô ouvindo alguém me chamar”e “Rapaz comum”).45

“Diário de um detento”

Feito a partir de um projeto coletivo entre ManoBrown, Jocenir, ex-presidiário do Carandiru, e os demaisencarcerados46, “Diário de um detento” funciona como odepoimento daquele que viveu o Massacre do Carandiru.Para tornar mais vivo o relato, para dar a impressão dealgo retirado no calor do momento, além do uso marcantedo presente do indicativo, o texto toma a forma de umdiário – daí iniciar com uma marcação de data: São Paulo,1º de outubro de 1992, 8h da manhã. E a data está correta:

começa-se a narrar a partir do dia anterior à chacina, paradepois se focar o massacre em si e o que ocorreu depoisdele. Por isso o último verso, que dá certa circularidade aorap, é “Dia três de outubro, diário de um detento”47.

“Periferia é periferia”

Essa composição mostra a faceta mais cruel da lei daselva, a lei diabólica criada pelo sistema: a violênciaprovocada pelo “noia”. Esse indivíduo, para alimentar oseu vício, e sem condições econômicas para arcar com ele,rebaixa-se até à condição desonrosa de roubar roupa emvaral. Mas a situação que ganha destaque em “Periferia éperiferia” é esse drogado roubar um trabalhador,deixando-o sem o salário – que, apesar de ser obtido commuito sacrifício e sofrimento, é insuficiente para garantiruma vida digna. Nota-se, então, que há duas vítimassociais: o assaltante e o assaltado. No fim, o espoliado,dominado pelo sentimento de revolta, compra uma armae faz valer o destino (ou, numa leitura isenta demisticismo, a lógica do sistema):

Olha só como é o destino, inevitável

O fim de vagabundo é lamentável

Aquele puto que roubou ele outro dia

Amanheceu cheio de tiro, ele pedia

Dezenove anos jogados fora

É foda, essa noite chove muito porque Deus

[chora48

Dois elementos chamam a atenção nesse trecho. Oprimeiro diz respeito ao fato de que não se tem informaçãoexplícita de que o trabalhador que foi assaltado é quem,por vingança, deu fim ao seu agressor. Mas não há comonegar que houve uma punição, pois o estilo de vidaadotado pelo meliante significou a tomada de um caminhotão errado que ativou forças contrárias a ele, terminandopor provocar sua morte.

O outro aspecto diz respeito à manifestação de dor deDeus, que se transfere, na visão do eu poemático, para anatureza, que chora por meio da chuva. Dimensiona-se,assim, a tragédia de uma vida jovem desperdiçada, vítimade um sistema social marcado por injustiça edesumanidade.

45 No álbum, esse momento corresponde à parte apenas

instrumental (criada por Edi Rock), que acaba assumindo as

mesmas funções acima arroladas. No entanto, há uma diferença

entre o que ocorre no álbum e o que acontece no livro. Na

versão sonora, “...” é interrompida abruptamente por tiros, que,

além de mostrar que se está retornando ao cotidiano de violência

(a indicar a impossibilidade de se afastar dele), joga o ouvinte

para a faixa seguinte, o momento máximo da obra: “Diário de

um detento”

46 “Diário de um detento” nasceu a partir dos dois cadernos,

um em prosa e outro em poesia, que Jocenir (Josenir Prado)

escreveu sobre o que ele via no tempo em que ficou preso no

Carandiru e que circularam pela casa de detenção. A esse

material se juntou um conjunto de entrevistas que os

presidiários concederam a Mano Brown. Além disso, toda a

construção do texto foi constantemente discutida com os

coautores, produzindo inúmeras reedições. No entanto, o mérito

do rapper deve ser destacado, pois ele lapidou toda essa

matéria-prima e a fez encaixar na batida do rap. Seu trabalho de

excelente burilador é inquestionável, como comprova o fato de

os demais participantes, apesar de atestarem a autenticidade do

relatos que entregaram, não reconhecerem a sua própria

linguagem no produto final, visto por eles como superior.

47 Jocenir e Mano Brown. “Diário de um detento”. In:

Racionais MC’s. Op. cit., p. 89.

48 Edi Rock. “Periferia é periferia”. In: Racionais MC’s. Op.cit., p. 94.

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“Qual mentira vou acreditar”

Esse texto, com seu caráter jocoso, humorístico,destoa do tom predominante em Sobrevivendo no inferno,que é intimidador, amargo e pessimista. Mas essamudança não significaria uma contradição na obra,tampouco uma quebra no seu aspecto conceitual. Emprimeiro lugar, a amenização do espírito de rancor, derevide se dá pela necessidade de aliviar o acúmulo deexperiências negativas dos textos anteriores, que atingeseu ápice, seu ponto máximo em “Diário de um detento”(que escancara, na visão dos rappers, o projeto deextermínio à pobreza incrementado pelo Estado) e“Periferia é periferia” (que mostra duas questões críticas:o clima de guerra entre os próprios moradores dos bairrospobres e a extensão dessa problemática a qualquerperiferia brasileira).

Outro aspecto que justifica a mudança de matiz é acapacidade que o humor tem de mostrar a inteligência e asuperioridade do sujeito crítico. Analisar uma situaçãonegativa e conseguir tirar dela uma faceta cômica édemonstrar capacidade de entender diferentes lados deuma questão. E essa multilateralidade abre caminho paraa ironia, a ambiguidade e a polissemia de muitos trechosda composição, como o seguinte:

Eu me formei suspeito profissional

Bacharel, pós-graduado em tomar geral49

O enunciador expressa sua crítica ao fato de ele, porser negro, rotineiramente tomar geral, ou seja, ser paradopela polícia para verificação de documentação ouaveriguação de posse de substâncias ou produtos ilícitos.Mas, no lugar de um discurso inflamado contra o racismo,dá vazão a uma veia mais galhofeira. É a maneira queencontra para sobreviver sadiamente nesse meioopressivo, conforme o refrão reforça constantemente:

Tem que saber curtir, tem que saber lidar

Em qual mentira vou acreditar

A noite é assim memo, então, deixar rolar

Em qual mentira vou acreditar

Tem que saber curtir, tem que saber lidar

Em qual mentira vou acreditar50

Assim, o enunciador se vale de um discurso em queironia e paradoxo se misturam (já que ele diz que escolheacreditar em uma mentira) para desmontar o mito de queo Brasil é uma democracia racial.

“Mágico de Oz”

Essa composição tem como elemento inicial odepoimento de Pulga do ABC, que fugiu de casa paraparar de sofrer as surras constantes que seu pai, alcoólatra,dava-lhe. Enfrentando a vida difícil de menino de rua,acabou se tornando viciado em crack – era uma válvula deescape diante de um cotidiano massacrante. Ainda assim,alimenta um sonho:

Meu sonho?

É estudar, ter uma casa, uma família

Se eu fosse mágico?

Não existia droga, nem fome e nem a polícia51

A partir desse relato pessoal, Edi Rock age como umsociólogo e insere a dinâmica de vida de Pulga do ABC nalógica social da qual faz parte. Assim, compreende que aperiferia se tornou um inferno, pois não permite que ainfância – o que há de mais precioso na sociedade, pois éo seu futuro – seja respeitada, já que permite que umacriança de doze anos passe por experiências difíceis atépara um adulto. Dessa forma, torna-se até plausível – oque não significa que seja aceitável, muito menos correto– que esse jovem enxergue no ladrão um modelo de vidae, assim, entre no mundo do banditismo. É só mais um amais a tomar essa atitude.

Edi Rock compreende, no entanto, que essa solução éineficaz, pois provoca problemas bastante abordados nosdemais textos de Sobrevivendo no inferno. O primeiro éque a sobrevivência por meio do crime se dáviolentamente à custa de alguém. Além disso, o dinheiroobtido por esse expediente é qualificado pelo enunciadorcomo sujo, pois mergulha o sujeito na ilicitude, que é umcaminho sem retorno para a degradação e morte.

Diante do contexto tão adverso que o eu lírico tem àsua frente, recorre à religião, não de forma cega, mascrítica, o que o faz produzir questionamentos como oseguinte:

Será que Deus deve tá provando minha raça?52

49 Mano Brown e Edi Rock. “Qual mentira vou acreditar”. In:

Racionais MC’s. Op. cit., p. 99.

50 Mano Brown e Edi Rock. “Qual mentira vou acreditar”. In:

Racionais MC’s. Op. cit., p. 100, 106, 109.

51 Edi Rock. “Mágico de Oz”. In: Racionais MC’s. Op. cit., p.

113.52 Edi Rock. “Mágico de Oz”. In: Racionais MC’s. Op. cit., p.

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Essa indagação carrega nas entrelinhas um abalo nacrença que o eu poético possui, pois demonstra adificuldade de compreensão dos planos divinos, já quepermitem a existência de injustiça por tanto tempo. É porisso que ele precisa afirmar com tanta ênfase (duas vezesno início do seu discurso e quatro no final) que tem fé –seria uma forma de convencer a si mesmo.

“Fórmula mágica da paz”

O título desse texto soma dois aspectos aparentementeinconciliáveis. A palavra “fórmula” está ligada a estratégiae ação, o que revela um lado calculista. Já o termo“mágica” vincula-se a milagre, a algo que foge da lógica,o que aponta um lado aberto ao misticismo. Anuncia-se,então, a saída para alcançar a paz em meio ao cotidiano deuma periferia apresentada como campo tão minado, tãoviolento, que faz até o eu poemático entrar em crise eperder a certeza sobre o que considera verdade:

Eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá

Minha ideologia enfraqueceu53

O que incomoda o eu poemático não é a violência quevem de fora por meio da intervenção da polícia ou dodescaso do Estado. O que o constrange é essa guerra serconstruída de forma recíproca entre os próprios moradoresda periferia, por outros seres semelhantes a ele. É nesseponto que faz uma autocrítica:

Eu não tava nem aí, nem levava nada a sério

Admirava os ladrão e os malandro mais velho

Mas se liga, olhe ao seu redor e me diga

O que melhorou? Da função, quem sobrou?

Sei lá, muito velório rolou de lá pra cá

Qual a próxima mãe que vai chorar?

Há, demoro!

Mas hoje eu posso compreender

Que malandragem de verdade é viver54

Ao olhar a sua realidade, o eu lírico percebe que ocaminho da criminalidade é sem retorno – ele tem seusex-companheiros, agora falecidos, como argumento paraessa tese. Tal conscientização o leva a buscar a salvação,que é individual – o que é coerente com a lógica

protestante que domina Sobrevivendo no inferno. Afórmula para esse resgate possui os seguintes postulados:a humildade, que consiste em ter em mente que ninguémé melhor que ninguém; a adoção de uma doutrina ascética,ou seja, de afastamento dos prazeres, sejam os ligados adrogas lícitas ou ilícitas, sejam os ligados ao sexo gratuitoe desenfreado; a submissão à proteção mística, que tantopode ser de Deus quanto dos orixás; o respeito à relaçãocom os semelhantes, os manos, a fratria; a valorização daperiferia, pois nela é que estão as raízes da negritude, aherança cultural dos afrodescendentes – largá-la seriaadotar uma atitude alienante e narcisista. Esses são osingredientes da fórmula para a salvação e paz interior, paraa verdadeira malandragem, que não é ser o criminosopoderoso ou esperto, mas é manter-se vivo em meio àguerra da perife ria. É contrariar a estatística, como declarao eu lírico:

Aqui quem fala é Mano Brown, mais um

[sobrevivente.55

E o instrumento para a conscientização e salvação é orap.

“Salve”

Última canção de Sobrevivendo no inferno, “Salve”funciona como encerramento do culto que foiressignificado por toda a extensão da obra. Trata-se domomento de agradecimento a todos os que participaramdo evento religioso ou que pelo menos estiverampresentes a ele.

Por fim, há que se destacar os seus dois últimosversos:

Aí, ladrão, tô saindo fora

Paz56

Não se trata da incoerência de defender no conjuntoda obra a periferia e nesse momento específico querer sairde tal lugar. Na verdade, o “sair fora”, dirigido a umladrão, significa que se está saindo do universo do crime.Só assim se encontra a paz.

116.

53 Mano Brown. “Fórmula mágica da paz”. In: Racionais

MC’s. Op. cit., p. 128.

54 Mano Brown. “Fórmula mágica da paz”. In: Racionais

MC’s. Op. cit., p. 122-123.

55 Mano Brown. “Fórmula mágica da paz”. In: Racionais

MC’s. Op. cit., p. 131.

56 Idem.

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Textos para a questão 1.

Texto 1

... O céu é belo, digno de contemplar porque asnuvens vagueiam e forma paisagens deslumbrantes. Asbrisas suaves perpassam conduzindo os perfumes dasflores. E o astro rei sempre pontual para despontar-se erecluir-se.

(JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: Diário de

uma Favelada. 10ª ed., São Paulo: Editora Ática, 2014, p. 43.)

Texto 2

Hoje acordei cedo pra verSentir a brisa de manhã e o sol nascerÉ época de pipa, o céu tá cheioQuinze anos atrás eu tava ali no meioLembrei de quando era pequeno, eu e os cara

(Mano Brown. “Fórmula mágica da paz”.

In: Racionais MC’s. Sobrevivendo no inferno.

São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 124.)

1. Os excertos acima pertencem a gênero diferentes: oprimeiro faz parte de um diário e o segundo é trechode um rap. Ainda assim, tendo em vista as obras a quepertencem, assemelham-se no plano temático, poisabordama) o céu como saída mística diante das adversidades

do cotidiano.b) a beleza em meio a uma rotina marcada por miséria

e violência.c) o apego aos valores vindos da infância como

postura idealizadora.d) a recusa às formas civilizatórias do ambiente

urbano moderno.

2. As referências bíblicas que os diferentes enunciadoresde Sobrevivendo no inferno fazem servem paraa) parodiar a linguagem das escritas sagradas para

ressaltar sua inutilidade contra a violência.b) rejeitar os valores judaico-cristãos em nome da

afirmação da cultura afrodescendente brasileira.c) atualizar os mitos hebreus no cotidiano de

sofrimento do povo negro da periferia urbana. d) ressaltar a maneira como a modernidade tecnoló gica

corrompeu o homem e a sua busca por felicidade.

Texto para as questões de 3 a 5.

Ogum livra um pobre de seus exploradores

Um pobre homem peregrinava por toda parte,

trabalhando ora numa, ora noutra plantação.

Mas os donos da terra sempre o despediam

e se apoderavam de tudo o que ele construía.

Um dia esse homem foi a um babalaô(1),

que o mandou fazer um ebó(2) na mata.

Ele juntou o material e foi fazer o despacho,

mas acabou fazendo tal barulho

que Ogum, o dono da mata, foi ver o que ocorria.

O homem, então, deu-se conta da presença de Ogum

[e caiu a seus pés,

implorando seu perdão por invadir a mata.

Ofereceu-lhe todas as coisas boas que ali estavam.

Ogum aceitou e satisfez-se com o ebó.

Depois, conversou com o peregrino,

que lhe contou por que estava naquele lugar proibido.

Falou-lhe de todos os seus infortúnios.

Ogum mandou que ele desfiasse folhas de dendezeiro,

[mariô(3),

e as colocasse nas portas das casas de seus amigos,

marcando assim cada casa a ser respeitada,

pois naquela noite Ogum destruiria

a cidade de onde vinha o peregrino.

Seria tudo destruído até o chão.

E assim se fez.

Ogum destruiu tudo,

menos as casas protegidas pelo mariô.

(PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo:

Companhia das Letras, 2011, p. 101.)

Vocabulário

(1) – Babalaô: sacerdote ou guia espiritual no candomblé.

(2) – Ebó: despacho, oferenda para um orixá, o qual é uma

entidade divina no candomblé.

(3) – Mariô: folha do dendezeiro, planta sagrada no candomblé.

3. A narrativa acima, que integra a mitologia dos orixás,apresenta um comportamento de Ogum que éretomado em Sobrevivendo no inferno. Expliquecomo esse mito é aproveitado na obra.

Exercícios

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4. Na narrativa bíblica do Êxodo, Deus, por meio deMoisés, utiliza pragas para atacar o faraó e o seupovo. Uma delas assemelha-se à forma como Ogumse vinga dos opressores de um trabalhador. Expliqueessa similaridade.

5. Há uma intertextualidade entre o mito de Ogum acimaapresentado, a narrativa bíblica com a qual elemantém semelhança e Sobrevivendo no inferno. Quala intersecção temática entre essas três produções?

6. Sobrevivendo no inferno apresenta um discurso quemuitas vezes assume um tom bélico, o que faz comque a obra estabeleça um universo de oposições entreo “nós”, que pertence ao eixo do bem, e o “eles”, quepertence ao eixo do mal. É por causa dessa índoleguerreira que os rappers fazem um contraste, porexemplo, entrea) São Jorge e Ogum.b) o vocabulário bélico e o vocabulário evangélico.c) capitalismo e consumismo.d) o universo da periferia e o dos bairros privil egiados.

7. Dentro da teologia de Sobrevivendo no inferno, a“fórmula mágica da paz” seriaa) abandonar a periferia, marcada por violência e

opressão.b) desprezar o consumismo, assim como o caminho

do crime. c) adotar outras formas de materialismo diferentes

das do branco.d) acreditar no misticismo como vingança contra o

opressor.

Texto para as questões 8 e 9.

Manda um recado lá pro meu irmão:Se tiver usando droga, tá ruim na minha mãoEle ainda tá com aquela minaPode-crê, o moleque é gente fina

(Jocenir e Mano Brown. “Diário de um detento”. In:

Racionais MC’s. Sobrevivendo no inferno. São Paulo:

Companhia das Letras, 2018, p. 84.)

8. Sobrevivendo no inferno é um álbum conceitual, poisas doze faixas que o compõem mantêm forte ligaçãotemática, dando à obra uma noção de conjunto.Dentro dessa lógica, “Diário de um detento” conecta-se com outros textos, o que torna coerente seu enfoquesocial. Assim, no excerto acima, estabelece-se umcontraste entre o comportamento de dois irmãos queaparece em outro texto de Sobrevivendo no inferno.De qual se trata?

9. A caracterização positiva que é feita do irmão do eupoemático faz lembrar uma categoria positiva denegro apresentada em “Capítulo 4, versículo 3”.Explicite-a.

Texto para a questão 10.

Aí, moleque, me diz, então: cê quer o quê?A vaga tá lá esperando vocêPega todos seus artigo importadoSeu currículo no crime e limpa o raboA vida bandida é sem futuroSua cara fica branca desse lado do muroJá ouviu falar de Lúcifer?Que veio do inferno com moral?Um dia no Carandiru, não ele é só mais umComendo rango azedo com pneumonia.

(Jocenir e Mano Brown. “Diário de um detento”. In:

Racionais Mc’s. Sobrevivendo no inferno. São Paulo:

Companhia das Letras, 2018, p. 86.)

10. Uma acusação que já se tornou recorrente é a de queo rap do Racionais MC’s faz apologia ao crime. Aanálise do trecho acima, assim como da obra da qualfoi extraído, confirmam essa afirmação?

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1. Tanto Carolina Maria de Jesus, moradora daextinta favela do Canindé, na zona norte da cidadede São Paulo, quanto Mano Brown, morador doCapão Redondo, bairro pobre da periferia da zonasul da mesma cidade, interrompem seu relatosobre a miséria e a violência massacrantes em quese encontram para elevar o olhar (tanto conotativaquanto denotativamente) e enxergar beleza poéticano céu. Resposta: B

2. O eu poemático de Sobrevivendo no infernocomporta-se como um pastor rapper, pois suaintenção é resgatar, salvar seu interlocutor docotidiano massacrante da periferia, marcado pelamiséria que causa perda de autoestima, além deprovocar criminalidade. Para tanto, utiliza anarrativa bíblica, principalmente do Êxodo, paraatualizá-la no cotidiano dos afrodescendentes.Assim, o sofrimento do povo hebreu no cativeiroegípcio e o surgimento de Moisés para resgataressa etnia e conduzi-la para Canaã, a terraprometida, serão vistos agora como o padecimentodos afrodescendentes diante do sistema consumistae o surgimento do Racionais MC’s para libertar opovo pobre das armadilhas dessa conjunturacapitalista e levá-lo para a aceitação de sua marcaétnica identitária.Resposta: C

3. Ogum é a entidade divina que, na narrativa emanálise, solidarizando-se com o trabalhadorexplorado, vinga-se contra os opressores. Logo noinício de Sobrevivendo no inferno, esse orixá éinvocado, sofrendo um processo de sincretismocom São Jorge, santo guerreiro do catolicismo. Ochamamento que o Racionais MC’s faz a essa

divindade é para que se obtenha proteção na lutacontra os inimigos, os agentes do sistemaconsumista que oprimem o povo negro daperiferia.

4. Deus determinou (Êxodo, 12) que Moisés marcassecom o sangue de cordeiro (animal sagrado naBíblia) a porta de cada moradia de hebreu no Egitopara, assim, proteger o povo escravizado da últimae mais terrível praga: a morte de todo primogênitoegípcio. De maneira semelhante, Ogumdeterminou que folha de mariô (planta sagrada nocandomblé) fosse colocada na porta das moradasdo trabalhador e de seus semelhantes para, assim,protegê-los da destruição que cairia sobre as casasdos opressores.

5. Os três textos lidam com uma relação bélica entreopressor e oprimido em que o mais fraco éresgatado ou empoderado por meio de sua relaçãocom o divino.

6. Os rappers de Sobrevivendo no inferno expressamem relação aos moradores dos bairrosprivilegiados socioeconomicamente um ódiomisturado a certa dose de inveja, pois essesprivilegiados têm melhores condições de vida emelhor acesso a bens materiais que dão status.Assim, constroem um discurso virulento marcadopela autoafirmação da identidade dosafrodescendentes e pela desvalorização do quechamam de playboy, o branco abonado. Resposta: D

7. O painel social da periferia mostrado emSobrevivendo no inferno permite perceber umcotidiano marcado pela opressão física e

SOBREVIVENDO NO INFERNO

GABARITOAS OBRAS DA UNICAMP

PORTUGUÊS

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Page 22: AULAS ESPECIAIS UNICAMP SOBR NO INFERNO GK.qxp …€¦ · AULAS ESPECIAIS_UNICAMP_SOBR_NO INFERNO_GK.qxp 22/10/2019 13:34 Página 2 – 3 momento atual. No início, o rap brasileiro

psicológica provocada pela sociedade consumistacontra o povo da periferia. Nesse contexto, aobtenção de bens materiais é visto como sucesso.O problema é que essa posse só é garantida pordinheiro, elemento de que os moradores dosbairros pobres não dispõem. Assim, sentem-sedesprestigiados, com autoestima abalada. A saídaprocurada por alguns para a obtenção desses bensé a criminalidade. No entanto, na lógicaapresentada por Sobrevivendo no inferno, todobandido encontra um fim trágico. A solução, a“fórmula mágica da paz”, portanto, é fortalecer aidentidade afrodescendente, sem se deixar seduzirpelo consumismo, para, assim, evitar o caminho dailicitude. Resposta: B

8. O enunciador é um presidiário que menciona umirmão que, além de não estar no caminho dailicitude (provavelmente não está usando droga),tem um relacionamento amoroso estável, já que“ainda tá com aquela mina”. Essa oposição entreum irmão decaído e um que se apega rigidamenteaos valores morais é encontrada em “Tô ouvindoalguém me chamar”, em que o eu poemático, umbandido, fala de um irmão que tem disciplinamoral: estudou, formou-se em Direito e tornou-se

pai de família. A diferença é que em “Diário de umdetento” o enunciador demonstra apoio a esseascetismo, enquanto que em “Tô ouvindo alguémme chamar” essa oposição ética foi motivo deincompatibilidade, mas depois, com a tomada deconsciência, passou a ser valorizada pelo eu lírico.

9. O irmão que não usa drogas e mantém umrelacionamento amoroso estável encaixa-se noperfil de “preto tipo A” de “Capítulo 4, versículo3”: “preto tipo A, (...) / Buscava a preta dele noportão da escola / Exemplo pra nós, mó moral, móibope” (Mano Brown. “Capítulo 4, versículo 3”.In: Racionais MC’s. Op. cit., p. 52.).

10. No trecho em análise, o eu poemático adverte queos objetos furtados, assim como a experiência nomundo do crime, garantem uma vida desofrimento até para Lúcifer, superando, portanto,as condições do inferno. Essa tese está em váriosmomentos de Sobrevivendo no inferno, principal -mente “Tô ouvindo alguém me chamar”, “Rapazcomum” e “Periferia é periferia”: todo bandidoencontra um final trágico. Assim, percebe-se quenão tem fundamento a afirmação de que o rap doRacionais MC’s faz apologia ao crime.

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