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1 – BIOGRAFIA DO AUTOR

José Saramago nasceu em 16 de novembro de 1922,em Azinhaga, uma aldeia na região do Ribatejo, emPortugal, filho de uma família muito simples, a qual semudou para Lisboa em busca de novas perspectivas de vida.

O autor trabalhou, por necessidade econômica, emdiversas funções, como serralheiro mecânico, tradutor erevisor, mas conseguiu ampliar seu repertório cultural apartir de diversas leituras e estudos por conta própria.

Saramago foi militante do PCP (Partido ComunistaPortuguês) de 1969 até sua morte, chegando a se engajarno sistema de reforma agrária, ao integrar uma unidadecoletiva de produção agrícola no Alentejo.

Dedicando-se, depois, exclusivamente à atividadeliterária e a seu amor pela esposa, Pilar del Rio, JoséSaramago deixou um ímpar legado para a História daLiteratura. É o único escritor em Língua Portuguesa areceber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998.

O autor faleceu em 18 de junho de 2010, em sua casa,na ilha de Lanzarote, Espanha, e seu último livropublicado em vida intitula-se O Caderno 2.

2 – RESUMO

No primeiro capítulo de História do Cerco de Lisboa,José Saramago apresenta um longo diálogo entre o revisorRaimundo Silva e o autor do livro que ele revisa, tambémintitulado “História do Cerco de Lisboa”.

Para o historiador, a visão dos fatos obedece à ideiatradicional de História, sendo ela vida real, enquantoRaimundo Silva acredita que a História é complexa demaispara ser reduzida a textos e palavras que a limitam. Eleconsidera o deleatur ( ) elemento importante para quepossíveis erros sejam apagados em relatos inverossímeis.

Raimundo Silva, pela primeira vez em sua carreira derevisor, desinteressa-se tanto pelo livro no qual trabalha,que decide não lhe fazer a última leitura, uma vez queestava farto de encontrar nele muitos erros e absurdos

históricos, decorrentes de o historiador ter se restringidoa compilar textos sobre o cerco de Lisboa de 1147, sem osavaliar criticamente.

Exemplo de um dos disparates encontrados por ele está nodiscurso atribuído ao rei D. Afonso Henriques, o qual, para orevisor, parecia um texto de Shakespeare. No entanto, sabendoque as reais palavras, proferidas por D. Afonso Henriques,jamais serão descobertas, considera Raimundo Silva as fonteshistóricas como únicas possíveis para o relato do discurso dorei, mas ressalta que seria necessário colocar-se à prova esseconteúdo duvidoso presente em livros da História de Portugal.

Assim, discordando também da informaçãoapresentada pelo historiador de que os cruzados teriamauxiliado os portugueses no cerco de Lisboa no séculoXII, o revisor, ousadamente, altera o conteúdo do livro,acrescentando um NÃO à ajuda dos estrangeiros noepisódio histórico.

As implicações dessa alteração são o elemento centralda obra de José Saramago, pois, a partir delas, a vida deRaimundo Silva se modifica por completo.

Nesse ponto do romance, já se encontram duasversões da história do cerco de Lisboa: a oficial, dohistoriador tradicional, e a do revisor, de monótona vidaconvencional. Eis aqui um paradoxo saramaguiano: Comoum homem de vida convencional não aceita asconvenções da História? Surge, então, uma terceirahistória no livro: a de sua própria vida, alterada pelaousadia da mudança feita no livro “História do Cerco deLisboa” e pelas suas consequências no que concerne a seutrabalho na editora.

A metalinguagem é um frequente recurso empregadopor José Saramago nessa obra, já que Raimundo Silva tececomentários sobre o que lê e escreve. O narradoronisciente, autor implícito, também se vale da mesmafunção de linguagem para revelar os pensamentos dorevisor sobre sua escrita ou questionamentos, porexemplo, sobre a palavra e a literatura, resultantes emcomentários por vezes sarcásticos do narrador, quebisbilhota a vida de Raimundo Silva.

HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA

AULAS ESPECIAISAS OBRAS DA UNICAMP

PORTUGUÊS

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O revisor encontra coragem para cometer a alteraçãono livro do historiador, mesmo sabendo das possíveissanções que lhe seriam imputadas por causa da audáciade inserir um NÃO ao auxílio dos cruzados aosportugueses, o que custará à editora a publicação do livrocom uma errata, a qual a colocará em descrédito nomercado editorial.

Raimundo Silva é um revisor exemplar em seutrabalho, e sua rebeldia proporcionará a ele a abertura denovos caminhos, principalmente a descoberta dacriatividade e do amor.

Diante das consequências da alteração, a editoradetermina que Maria Sara será a chefe dos revisores paraque não ocorram mais erros em suas publicações,resultantes de falhas de revisão. Raimundo Silva,imediatamente, sente antipatia por ela, mas serájustamente Maria Sara a estimuladora da mudança de vidado revisor, ao desafiá-lo a escrever sua versão do cerco deLisboa e, posteriormente, apresentar-lhe o amor.

Para escrever sua versão do episódio de 1147, queserá intitulada de Nova História, o revisor pesquisa obrasda História de Portugal e visita os locais onde o cerco foiplanejado e executado, procurando a verdade dos fatos, oque o afasta da vida monótona, regrada e solitária a quallevava na nebulosa Lisboa, névoa semelhante à quecircundava sua vida.

Refazendo o itinerário do cerco e consultando os livros,ele percebe que não conhece bem sua cidade e a históriadela. Resolve fazer, então, uma revisão de seusconhecimentos tal qual a que fazia nos livros em quetrabalhava, sempre com minúcia, cuidado e detalhismo.Raimundo Silva é, assim, o revisor da história de Portugale de sua história de vida.

Ele, portanto, instrui-se sobre a história do cerco deLisboa, como também reaprende a viver, já que, até então,sua existência limitava-se a um cotidiano repetitivo (comosão as informações encontradas nos livros de História quelê) e solitário, centrado apenas no trabalho, seguindo ospropósitos do mundo capitalista.

Incapaz de manter relações duradouras com mulheres,em seus mais de 50 anos de vida, Raimundo Silva terá oamor despertado por Maria Sara, a qual será o caminhopara se revelar no revisor a magia da literatura e do amor.

A liberdade quanto à escrita sobre o cerco de 1147,no entanto, não será total, já que, buscando averossimilhança, Raimundo Silva é obrigado a aceitaralguns fatos como foram estabelecidos pela históriaoficial. O desafio que Maria Sara propõe a ele, de escrevera sua versão sobre o cerco de Lisboa, o intrigainicialmente, mas, diante da necessidade de não

decepcionar Maria Sara, ele começa a escrever a suahistória do cerco e, simultaneamente às pesquisas,aproxima-se de sua chefe em encontros inicialmenteprofissionais, mas que desencadearão um verdadeiroenvolvimento amoroso.

Raimundo Silva questiona os fatos históricos doepisódio de 1147, obrigando-se a fazer um registrotambém da paisagem e dos movimentos da cidade deLisboa do passado e do presente do revisor. Em suasreleituras, principalmente a do discurso de D. AfonsoHenriques, redigido pelo historiador, baseado na traduçãode Osberno, Raimundo Silva, embora duvide da verdadedaquelas palavras ditas pelo rei, mesmo as encontrandoreproduzidas em fontes oficiais, atenua a possibilidade defraude histórica ao mencionar o fato de que o rei pudesseter recebido de seu aio, Egas Moniz, alguns ensinamentospolíticos, bíblicos e de latim.

O revisor vê alguns motivos para os cruzados teremdeixado Portugal: a obtenção de maiores lucros nos barcosa caminho da Síria e os riscos imensos de Lisboa, umacidade fortificada e com muitos habitantes, ser cercada.

Raimundo Silva, então, convence-se definitivamente,ou pelo menos até agora, de que não houve ajuda doscruzados no cerco, mas sabe que a vitória no momentohistórico foi portuguesa. Para comprovar que os cruzadosabandonaram os portugueses em sua Nova História,debruça-se sobre as fontes históricas procurandocomprovações que fundamentem a negação do auxílio,mas se decepciona ao notar que só há repetições em todosos livros sobre o fato de 1147, concluindo que seriamesmo necessária uma nova versão para a história docerco de Lisboa.

Em sua reflexão, o revisor chega a outros três motivospossíveis para os cruzados não auxiliarem os portugueses:o clima, a aridez da terra e alguma peste mortal, masconclui serem justificativas impossíveis, em decorrênciade Lisboa ser uma cidade em que não haveria taisproblemas. Finalmente, ao avaliar a região do Castelo deSão Jorge, onde D. Afonso Henriques teria se encontradocom os cruzados, Raimundo Silva define que o abandonodos estrangeiros se deu por culpa do discurso avarento dorei, no qual afirmou ser o povo português o eleito de Deuse que, por isso, Ele ajudaria a tomada de Lisboa aosmouros.

Uma comitiva enviada à negociação debate com oscruzados e, depois de serem afrontados e ouvirem o relatodo milagre de Ourique, os estrangeiros dizem NÃO aoauxílio ao cerco, embora alguns deles decidam ficar aolado de D. Afonso Henriques.

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O exército do rei recepciona, à beira do Tejo, oscruzados que permaneceram a seu lado. Um dos presentesno arraial era Mogueime, um soldado raso, mas de boaarticulação verbal, o que desperta em Raimundo Silvadúvidas quanto ao caráter dele.

Mogueime é apaixonado por Ouroana e, para vê-la delonge, arrisca-se pelo meio do território mouro, mesmosabendo que ela vive com Henrique de Bona, o qual atinha tomado à força, sendo, por isso, impossível haverum relacionamento entre o soldado e ela.

Conquistar Lisboa exige uma estratégia diferente daempregada na tomada de Santarém e, também, será umaempreitada mais difícil em decorrência da fortaleza docastelo, das condições do terreno e do número de habitantes,fatores estes que exigirão mais esforço do que o uso daescada e o ataque de surpresa empregados em Santarém.

Envia-se, então, uma comitiva para negociar a rendiçãodos mouros, colóquio diplomático que tem registro em livrosoficiais da História de Portugal, retomados por RaimundoSilva. A apresentação de trechos de obras históricas sobre o cerco de Lisboa configura a intertextualidade, da qualSaramago faz uso frequente no transcorrer do romance,havendo passagens intertextuais com Fernando Pessoa,Camões, Shakespeare, Bíblia, dentre outros.

Embora o autor se apoie em textos já existentes sobreo que ocorreu em 1147, estes são reelaborados e diálogosentre mouros e portugueses são criados, dando-se voz afiguras silenciadas pela história oficial.

As negociações com os mouros falham definitiva-mente, e Henrique de Bona propõe a D. Afonso Henriquesa construção das torres de guerra, para se superarem osmuros que guardam a cidade de Lisboa, proposta aceitapelo rei. Como Henrique de Bona desloca-se para o arraialda Porta de Ferro, levando a mulher e o fiel criado dele,Mogueime resolve o problema da distância e do perigopelo qual passava para ver Ouroana, já que, agora,estavam habitando o mesmo espaço.

Embora houvesse alguns discordantes quanto àconstrução das torres, D. Afonso Henriques determina, emprimeiro lugar, o assalto geral, mas, no caso de essaestratégia falhar, elas seriam erguidas e, em últimorecurso, fechar-se-ia o cerco aos mouros até a rendiçãodeles por fome e sede.

Raimundo Silva percebe, então, que, em sua NovaHistória, a recusa total de auxílio por parte dos cruzadosde nada alteraria o final do cerco de 1147.

O ataque simultâneo a todas as entradas de Lisboaocorre quando os muçulmanos estão em oração, havendo,no combate, um grande número de mouros e portuguesesmortos.

As torres são construídas com rapidez, sempre comHenrique de Bona vistoriando a obra e trabalhando nela.Mas, ao serem aproximadas dos muros, o solo cede e aengenhoca inclina. Soldados e estrangeiros cavam emvolta das rodas para desatolarem-nas, momento em queos mouros iniciam um ataque, disparando flechas emchamas na direção dos portugueses.

A torre se incendeia, vários soldados e Henrique deBona morrem. Com Bona morto, Ouroana fica livre eMogueime espera tê-la como mulher. Ela, depois da mortede Bona, lava roupas para sobreviver, e Mogueime, ouMoqueime, ou Mogeima conquista-a finalmente,formando-se um casal feliz. Esse relacionamento entreOuroana e Mogueime, de princípio difícil e quaseimpossível de ocorrer, espelha a relação de Maria Sara eRaimundo Silva em outro tempo, relação essa tambémmarcada pela quase impossibilidade de acontecer pordiferenças entre o par amoroso.

D. Afonso Henriques não desiste de seus propósitos eordena que a vigilância das possíveis saídas da cidade sejaredobrada, impedindo-se, assim, que os habitantes deLisboa solicitem socorro por meio de cartas para osalcaides, o que resulta em êxito, já que um barco quetentou navegar e um mensageiro foram interceptadospelos soldados portugueses. Assim, os mouros de Lisboa,à mercê da própria sorte e abandonados pelosmuçulmanos das proximidades, morrerão ou pelo avançoe ataque cristão, ou por causa da fome.

O cerco já dura sessenta dias e os soldados estão semreceber o soldo há três meses, o que resulta em umamanifestação deles pelos mesmos direitos concedidos aosestrangeiros, na ocasião em que a cidade fosse invadida eos pagamentos e saques realizados.

Ameaçando-se uma possível greve dos soldados, oscapitães levam a D. Afonso Henriques alguns homenspara reivindicarem seus direitos, sendo um delesMogueime, o qual se depara com Mem Ramires, comquem lutou na conquista de Santarém. A negociação éconduzida por D. Afonso Henriques que, diante dairrredutibilidade dos soldados e dos argumentos deMogueime, cede às exigências dos grevistas.

Resolvido o impasse, os soldados retornam com maisempenho ao trabalho e as torres são reconstruídas comrapidez, enquanto os mouros já começam a sedesesperarem, a ponto de alguns deles descerem dos muros,por meio de cordas, pedindo o batismo para se salvarem damorte. No entanto, os cristãos, desconfiados dapossibilidade de haver alguma estratégia inimiga, matamcruelmente os muçulmanos que deles se aproximam.

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O luto inunda Lisboa e a fome impera de tal modo quenem cães, gatos e ratos são poupados. A “Noite doDestino” chega e as torres erguidas desesperam osmouros, os quais, numa última tentativa de resistência,ateiam fogo na torre da Porta de Ferro, mas nessemomento os soldados portugueses já adentravam Lisboa.

O almuadem chama os mouros pela última vez para aoração e é degolado por um soldado. Raimundo Silvaconclui sua Nova História, deita-se ao lado de Maria Sara e,depois de uma breve conversa, os dois adormecem. Sob oalpendre da varanda respirava uma sombra. (HCL1, p. 348)

3 – BREVE ANÁLISE SOBRE A HISTÓRIA DOCERCO DE LISBOA

O romance História do Cerco de Lisboa tem como pontocentral de sua trama um fato ocorrido em 1147, em Lisboa,quando da tomada da cidade pelos cristãos aos mouros.

José Saramago recria o passado português, reescre-vendo-o sem se ocupar com a obrigatoriedade de ser fiel aosacontecimentos estabelecidos como verdadeiros pelas obrascanônicas que oficializam a História de Portugal. Assim,Saramago proporciona ao seu leitor acompanhar, no roman-ce, uma nova versão do episódio de 1147 sob a perspectivade um revisor, Raimundo Benvindo Silva, o qual chega aconstatar a dificuldade de se escrever sobre um fato que atradição histórica eternizou sob um único ponto de vista.

Depara-se o leitor, portanto, com uma obra que partede um fato histórico, mas não deseja ser um romancehistórico, conforme os modelos do século XIX, em que seabordavam os acontecimentos a partir de uma estabelecidaverdade oficial, de visão objetiva e documental,procurando glorificarem-se os heróis envolvidos emgrandes momentos da História do mundo.

Saramago não se propõe a seguir modelos tradicionaisda literatura e, valendo-se da metaficção historiográfica,cria uma nova versão para o cerco de Lisboa. SegundoHutcheon (1988, p. 127-131),

A metaficção historiográfica refuta os métodos naturais, ou desenso comum, para distinguir entre o fato histórico e a ficção.[...] Ela recusa a visão de que apenas a história tem umapretensão à verdade, por meio do questionamento da base dessapretensão na historiografia e por meio da afirmação de que tantoa história como a ficção são discursos, constructos humanos,sistemas de significação, e é a partir dessa identidade que as duasobtêm sua pretensão à verdade.

A referida teórica (1988, p. 131) acrescenta:

A metaficção historiográfica nos lembra que, embora osacontecimentos tenham mesmo ocorrido no passado realempírico, nós denominamos e construímos esses acontecimentoscomo fatos históricos por meio da seleção e do posicionamentonarrativo. E, em termos ainda mais básicos, só conhecemos essesacontecimentos passados por intermédio de seu estabelecimentodiscursivo, por intermédio de seus vestígios no presente.

Para Fernando Segolin (1999, p. 274),

[...] a obra de Saramago nos evoca ainda o velho contador dehistórias, ao pé da fogueira ritual ou da lareira doméstica,... atecer com a voz e o corpo enredos fantásticos sobre seres nãomenos fantásticos ou a transformar, com a magia do verbo e davoz, as miudezas e os pequenos gestos do cotidiano em momentosepifânicos reveladores, pondo a nu heroísmos e fantasmasinsuspeitados e recônditos no âmago do ser humano, deflagrandosonhos, pondo em cena nosso teatro interior, estimulando-nos atrazer à luz os anjos e demônios que nos habitam”.

Esse “velho contador de histórias”, presente na obrasaramaguiana, é frequentemente irônico e, por meio desserecurso, Saramago exercita questionamentos sobre, nocaso do romance História do Cerco de Lisboa, o episódiode 1147 e situações vividas pelo homem do século XX.

Raimundo Silva, assumindo a narração do cerco deLisboa, sabe que sua Nova História precisará se libertar deparadigmas históricos, ocupando-se apenas do que é maisinteressante ao leitor. O revisor vai, então, selecionandosituações sobre o episódio e dando destaque ao que éessencial, conforme sua avaliação.

Na tomada de Santarém, por exemplo, o cerco érevisto por Raimundo Silva para compará-lo às investidasfeitas em Lisboa pelos cristãos, mas uma situação,ocorrida nessa tomada, é motivo de dúvida paraRaimundo Silva: Mogueime, de madrugada, juntamentecom outros soldados, prende uma escada ao muro, mas elacai no telhado de um oleiro. Para resolver o impasse, osoldado sobe no ombro de Mem Ramires, a fim de prenderos degraus de modo que todos consigam subir por eles.

Depois do embate, causador da morte de váriossoldados e mouros, alguns soldados portugueses chegamà ponta do castelo e, ao abri-lo, o Rei entra em Santarém,ajoelha-se e agradece a Deus, mesmo estando diante deuma trágica carnificina.

O relato desse momento é feito por Mogueime,dando-se voz a um soldado raso que, em sua visãosubjetiva do fato, altera a versão oficializada da história datomada de Santarém, segundo a qual Mem Ramires teriasubido aos ombros de um soldado.

1 História do Cerco de Lisboa.

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José Saramago, ao dar ênfase a personagensobscurecidas pela história oficial, movimenta discursosparalelos aos já canonizados como verdadeiros,proporcionando reflexões sobre o estabelecimento de umaúnica versão histórica como a oficial.

Em sua Nova História, Raimundo Silva dá voz apersonagens menores, explorando-se a polifoniabakhtiniana no romance de Saramago. Assim, aperspectiva muçulmana da tomada de Lisboa tambémganha destaque quando o almuadem cego percebe osacontecimentos e para qual caminho era levado o futurodos mouros, prevendo o destino trágico. A cegueira2 doalmuadem é uma metáfora da falta de visão da populaçãode Lisboa quanto ao que realmente estava acontecendo dolado de fora dos muros da cidade.

Para Gobbi (1999, p. 162), na obra de Saramago há a

[...] (con)fusão temporal, a sobreposição de espaços, afamiliarização das personagens, o rompimento das fronteirasentre as vozes das personagens e a do narrador que é, enfim, oresgate dessa (des)ordem.

Assim, o autor vai distribuindo vozes às personagens,ao lado de diversas referências que faz a outros textosliterários, manejando habilmente a intertextualidade.Julia Kristeva (2005), relendo o conceito de Bakhtin,defende que todo texto literário constitui-se de outro textopré-existente, reforçando o que Todorov (2003, p. 258)já afirmava: “Uma obra completa não poderá nunca serlida de maneira satisfatória e esclarecedora se não arelacionarmos com outras obras.”

Em História do Cerco de Lisboa, a intertextualidadeé uma das colunas do enredo, já que as referências a textosde Fernando Pessoa, Shakespeare, Dostoiévski, AlmeidaGarrett, Frei Luís de Sousa, Robert Louis Stevenson,Camões, da Bíblia e do Alcorão, entre outros, sustentamdiversas reflexões do narrador onisciente e, também, deRaimundo Silva.

A fábula da raposa e as uvas é um dos exemplos dareferida intertextualidade, servindo de suporte para areflexão do narrador sobre o olhar:

[...] Foi só um apalpão, senhor revisor, foi apenas um beijo, senhorrevisor, Não importa, foi de mais, em nome da minha própria eincurável inveja vos condeno, nos últimos centímetros da subidaRaimundo Silva colocou-se no meio do elevador, os outros nãocabiam, tiveram de sair, corridos de vergonha iriam se aindahouvesse vergonha nesse mundo, o mais provável é estarem a rir-sedo moralista hipócrita, Estão verdes não prestam, disse a raposa.Olhar, ver e reparar são maneiras distintas de usar o órgão da vista,cada qual com sua intensidade própria, até nas degenerações, porexemplo, olhar sem ver, quando uma pessoa se encontraensimesmada, situação comum nos antigos romances, ou ver e não

dar por isso, se os olhos por cansaço ou fastio se defendem desobrecargas incómodas. Só o reparar pode chegar a ser visão plena,quando num ponto determinado ou sucessivamente a atenção seconcentra, o que tanto sucederá por efeito duma deliberação davontade quanto por uma espécie de estado sinestésico involuntárioem que o visto solicita ser visto novamente, assim se passando deuma sensação a outra, retendo, arrastando o olhar, como se aimagem tivesse de produzir-se em dois lugares distintos do cérebrocom diferença temporal de um centésimo de segundo, primeiro osinal simplificado, depois o desenho rigoroso, a definição nítida,imperiosa de um grosso puxador de latão amarelo, brilhante, numaporta escura, envernizada, que subitamente se torna presençaabsoluta. (HCL, p. 166)

As paráfrases, paródias, citações e intertextualidadessão elementos constitutivos da obra saramaguiana quecaminham ao lado da ousada forma de escrita do autor,desobediente aos padrões da norma culta e, por isso,avançando à pós-modernidade.

O emprego frequente de vírgulas, por exemplo,simula, em História do Cerco de Lisboa, a oralidade,supondo-se uma interação entre o narrador e os seusleitores, assim como também a ruptura com a sínteseconvencional da Língua Portuguesa. O discurso é muitasvezes indefinido quanto a quem o declara: narrador (autorimplícito), historiador, revisor, confundindo frequen-temente o leitor mais distraído ou apressado. Assim,igualando os discursos das personagens aos do narrador,Saramago dá importância equivalente a ambos.

O português arcaico e o latim também ganhamespaço, em História do Cerco de Lisboa, ao seremincorporados à linguagem do século XX sem o empregode aspas ou itálico para diferenciá-los, misturando-se,assim como ocorre com os gêneros discursivos diferentes,que vão se intercalando.

O emprego do discurso direto agiliza a narrativa,sintetizando os fatos. No entanto, a oralidade se destacafrequentemente na ampla referência a provérbios emáximas populares, que aceleram a compreensão do leitorquanto ao que é narrado. Por outro lado, as divagaçõesconstantes emperram a leitura, principalmente quando háuma digressão dentro de outra, mas são elas queproporcionam, na maioria das vezes, grandes reflexõespor parte dos leitores.

A associação habilidosa de novos recursos da escritacom as antigas fórmulas tradicionais dos romanceshistóricos fez também Saramago inventar suas epígrafes, dasquais os questionamentos partem e envolvem todo o livro.Em História do Cerco de Lisboa, a epígrafe é

Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la.Porém, se não a corrigires, não a alcançarás.Entretanto, não te resignes.

2 Saramago desenvolverá semelhante tema em seu livro Ensaio sobre a Cegueira.

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A busca da verdade é o critério escolhido por RaimundoSilva na reescrita do cerco de Lisboa, o que o levará aencontrar também novas representações que envolvem tantosituações da História de Portugal quanto da de sua própriavida.

A verdade é muitas vezes apresentada, no romance,pelo narrador onisciente, bisbilhoteiro, sempre emsentinela, para complementar, palpitar, censurar, julgar asideias e atitudes de Raimundo Silva, como se estivesse alina narrativa repetindo os possíveis comentários feitospelos leitores, os quais, assim como o narrador, autorimplícito, discordam das atitudes e pensamentos dorevisor ou concordam com eles.

Saramago alterna dois tempos narrativos na obra, umreferente ao presente da vida de Raimundo Silva, séculoXX, e outro, ao passado do século XII, precisamente 1147,ano em que ocorre o cerco de Lisboa para a expulsão dosmouros pelos cristãos portugueses do local. Desse modo,o leitor acompanha o momento em tempo real da escrita deRaimundo Silva e dos seus passos diários, isto é, lê-sesobre a vida do revisor em seu cotidiano de homem daLisboa do século XX e também sobre sua dedicação aolivro que escreve, por intermédio do narrador onisciente.Têm-se, desse modo, simultaneamente, as ações diárias deRaimundo Silva entremeadas à sua tarefa de escritor daNova História.

Essa mistura de tempos permite ao leitor comparar opassado ao presente e vice-versa, questionando os doistempos quanto às ideologias vigentes e aoscomportamentos humanos, além de apresentar algunsmomentos surreais, por exemplo, quando do episódio daLeitaria A Graciosa, em que Raimundo Silva dá voz aoproprietário, com a qual ele pronuncia: vêm cruzados pormar (HCL, p. 61), embora a leitaria não existisse em 1147.

Outra situação mágica entre o passado medieval dePortugal e o século XX do país é a presença do cão nessesdois tempos narrativos. Na trajetória de Raimundo Silva e nade Mogueime, o animal surge inesperadamente, como umguia que levará as duas personagens a novos caminhos.

O cão, símbolo de companheirismo, guiamento efidelidade, parece ser, em História do Cerco de Lisboa, umelo criado por Saramago para aproximar os dois planosnarrativos temporais (séculos XII e XX). No final da históriade Mogueime e Ouroana, lá está o animal junto deles:

São três horas da madrugada. Raimundo pousa a esferográfica,levanta-se devagar, ajudando-se com as palmas da mãos assentessobre a mesa, como se de repente lhe tivessem caído em cimatodos os anos que tem para viver. Entra no quarto, que uma luzfraca apenas ilumina, e despe-se cautelosamente, evitando fazerruído, mas desejando no fundo que Maria Sara acorde, paranada, só para poder dizer-lhe que a história chegou ao fim, e ela,

que afinal não dormia, pergunta-lhe, Acabaste, e ele respondeu,Sim, acabei, Queres dizer-me como termina, Com a morte doalmuadem, E Mogueime, e Ouroana, que foi que lhes aconteceu,Na minha ideia, Ouroana vai voltar para Galiza, e Mogueime irácom ela, e antes de partirem acharão em Lisboa um cãoescondido, que os acompanhará na viagem, Por que pensas queeles se devem ir embora, Não sei, pela lógica deveriam ficar,Deixa lá, ficamos nós. (HCL, p. 348)

No percurso de Raimundo Silva, o cão estáabandonado pelas escadas, sem comida e amedrontado,tal qual, talvez, tivessem estado os cães de Lisboa naocasião do cerco. O revisor alimenta o cão das escadinhas,num momento de preocupação com a fome que o mataria,talvez, a mesma que eliminou animais, crianças, homense mulheres em 1147.

Maria Sara e Ouroana são mulheres que, dotadas deum perfil amoroso e solidário, se apresentamdeterminadas e fortes, escolhendo seus caminhos e o amorde dois homens delas dependentes, demonstrando, assim,coragem ao dominarem seu espaço, recusando, na medidado possível, o modelo patriarcal, principalmente Ouroana,que vive no século XII.

Maria Sara é uma mulher moderna, distante de Ouroanaoito séculos, mas semelhante a ela em seu propósito de,depois de livre da união com outro homem, conquistar o querealmente deseja para alcançar a felicidade.

Ouroana é testemunha de um tempo em que a fé éelemento determinante no caminhar da humanidade eSaramago, o qual se declarava um ateu comunistaconvicto, questiona algumas ações que parecemcontraditórias quanto às atitudes de Deus.

No contraste em que Ele, por exemplo, diante de ummilagre de Jesus, mata os porcos, mas mantém vivos osanjos “caídos”, os quais, embora se transformem emdemônios, são apenas expulsos do céu, o narradorconsidera ser este um ato falho de Deus, que, se tivessedestruído tais anjos, teria impedido ao homem osofrimento das tentações demoníacas.

Alá, por sua vez, também é alvo de críticassaramaguianas. Em História do Cerco de Lisboa, porexemplo, ao lado de Deus, Ele será responsabilizado poratitudes nada divinas, sendo ambos vítimas de distraçõesem momentos nos quais seus seguidores, repletos de fé,são esquecidos.

As guerras feitas em nome de Deus e de Alá sãofortemente criticadas por Saramago: Eles, talvez, tivessemtambém acrescentado um NÃO ao homem no momentoem que revisaram suas criações.

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Para Leyla Perrone-Moisés (1999, p. 105),

A intriga de História do Cerco de Lisboa alegoriza a posição dopróprio Saramago com relação à história de Portugal e à históriados homens, em geral Saramago, como Raimundo Silva, nãogosta dessa história na forma como ela ocorreu, ou como osdocumentos atestam ter ela ocorrido. A tentação de alterá-la égrande; mas também é total a consciência de que não se podemalterar fatos passados.

Embora Raimundo Silva negue o passado portuguêsem que os cruzados teriam auxiliado os cristãos, é deleque o revisor se alimenta em suas leituras ou nos passeiospor Lisboa, seja em busca de elementos para o queescreve, seja por simples distração.

O revisor, em quase forma de delírio, vê o passado dePortugal em seu presente, misturando mouros eportugueses modernos, entremeando vozes do século XIIcom do século XX, revisando e relendo as histórias delee de seu país. É um simples advérbio de negação queproporciona a Raimundo Silva criar sua versão dos fatosdo cerco de Lisboa de 1147, o mesmo NÃO que, dado àsua vida monótona e sem emoções, lhe favorecerá asdescobertas da própria escrita e do amor.

4. – BREVE HISTÓRIA DE PORTUGAL3

Sobre os pequenos reinos que existiam na Penínsulasempre pairou o mito de uma monarquia hispânica unida.Bem cônscios deste ideal, os reis de Leão, como herdeirosteóricos dos soberanos visigodos, adoptaram o título deimperador, que começaram a usar, emboraesporadicamente, a partir de começos do século X.Fernando I (1037-65), seu filho Afonso VI (1072-1109) eseu bisneto Afonso VII (1126-57) procuraram impor umaautoridade suserana a todos os soberanos da Espanha,incluindo os muçulmanos, a quem cobraram párias(tributos) sempre que puderam. Como imperadores,podiam e deviam ter reis por vassalos. E foi exactamenteessa relação entre reis e imperador, que contribuiu para onascimento de Portugal como Estado autónomo.

Pelos finais do século XI, e antecedendo o movimentogeral das cruzadas do Oriente, chegaram à PenínsulaIbérica, com o objectivo primacial de combater o infiel eajudar os príncipes cristãos contra a ameaça almorávida,vários contingentes de cavaleiros franceses,acompanhados também de alguma peonagem. A maioriados cavaleiros e dos seus chefes havia sido recrutada entreos filhos-segundos, a quem escasseavam terra e glória.

Um deles era Raimundo, conde de Amous, quarto filho deGuilherme I, o Grande, conde de Borgonha. Comoapanágio, Raimundo tinha um condado muito pequeno ede pouca importância na região do Jura. Veio umaprimeira vez em 1086 ou 1087, sob o comando do duquede Borgonha Eudo I e depois, uma segunda vez, em 1090,agora para ficar. O objectivo da sua nova vinda já não eraprimacialmente militar. Chamaram-no para noivo deUrraca, única filha legítima e herdeira do imperadorAfonso VI, e de Constança, tia do duque Eudo. Estecasamento fora tratado ou, pelo menos, apoiado por estaúltima e pelos beneditinos da congregação de Cluny, cujoabade, Hugo, era também tio da rainha Constança.

Raimundo veio acompanhado por seu primoHenrique, outro filho-família sem apanágio que se visse,a quem foi dada em casamento uma filha bastarda doimperador, de nome Tarasia (Teresa). A ambos concedeuAfonso VI como feudos – à maneira peninsular, commaiores ligações ao poder central – os três territóriosfronteiriços do extremo ocidental, que convinha colocarem mãos aguerridas e experimentadas, pela sua situaçãode risco: a Galiza (a norte do Minho), Portugal (entre osrios Minho e Douro) e Coimbra (a sul do Douro).Raimundo senhoreou primeiro a totalidade, recebendoHenrique, em 1096, os dois condados mais meridionais.

Ao seu suserano, o conde D. Henrique ficava ligadopelos habituais laços de vassalagem feudal: devia ser-lhefiel e leal e prestar-lhe ajuda e conselho quando necessário.Fê-lo sempre, ao que parece, pelo menos até à morte deAfonso VI. Confirmou diplomas imperiais, o que provaque era chamado às cúrias de Afonso e nelas participava.Ajudou o sogro em campanhas militares e ia comfrequência à corte do imperador. Comportava-se, emsuma, como um autêntico senhor feudal.

Raimundo morreu em 1107, e Afonso VI veio a fecharos olhos em 1109. Urraca herdou a coroa mas não o título“imperial”, visto ser mulher. O seu segundo casamento comAfonso I de Aragão (1109) inaugurou um estado de guerracivil quase constante, que iria durar até à sua morte, em1126. Afonso VI investira, conjuntamente, o governo daGaliza em Urraca e em seu filho Afonso Raimundes com acláusula de que este último governaria só se a mãe casasseoutra vez. Afonso era ainda uma criança, mas os nobresexigiram sem demora que fosse respeitada a cláusulatestamentária do imperador, o que lhes dava muito maiorliberdade de movimentos. Estas circunstâncias têm a suaimportância para explicar a definitiva separação de Portugal.Muito habilmente, o conde D. Henrique nunca secomprometeu de todo com qualquer dos partidos, preferindoo lado sucessivamente vencedor e mantendo completaliberdade de acção, bem próxima da independência.

3 O texto, retirado da obra Breve História de Portugal, de A. H. OliveiraMarques, foi reproduzido respeitando-se a norma oficial portuguesa para agrafia das palavras.

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De 1109 até à morte, em 1112 ou 1114, deixou decumprir os deveres feudais, embora sem se revoltarabertamente. Sua viúva D. Teresa herdou tanto o governocomo a política do marido. Conseguiu manter umarelativa independência, mas não com tanto sucesso comoHenrique, visto que foi forçada a acatar os chamamentosda irmã para ir a Oviedo (1115) e teve, mais tarde, de lheprestar expressamente homenagem (1121). Chegou a seratacada pelos exércitos de Urraca e derrotada. Mas, emúltima análise, não só conservou todo o Portugal, comoainda lhe acrescentou alguns pequenos feudos, quer emterra quer em rendas, na Galiza, em Leão e em Castela.

A morte de Urraca pôs Afonso Raimundes no trono(1126) com o nome de Afonso VII. O novo monarca nãotardou a lembrar à tia os deveres feudais a que eraobrigada, levando-a à submissão depois de uma brevecampanha (1127). Pela primeira vez surgiu na história umjovem de dezoito anos, Afonso Henriques, filho de Teresae do falecido conde: cercado em Guimarães pelos exércitosdo primo, teve de se render e prometer vassalagem. Emseu torno reunira um grupo de nobres que se opunham aogoverno de D. Teresa e do seu favorito galego, o condeFernando Peres de Trava. Uma nova rebelião dentro dePortugal deu a Afonso Henriques vitória fácil na batalhade S. Mamede (próximo de Guimarães), em 1128. Teresae Peres de Trava fugiram para a Galiza para não voltar. Aíviria a falecer a condessa destronada, em 1130.

De 1128 a 1137, Afonso Henriques esteve em quasepermanente rebelião contra o primo Afonso VII. Falar deindependência, porém, seria anacrônico. O que AfonsoHenriques provavelmente queria era a expansão territorialdo seu feudo, com base em promessas e pretensões quedatavam dos tempos de Henrique e Urraca. Além disso,aspirava com certeza ao título de rei (rex).

Desejar ser rex não era loucura e tinha precedentesna Península Ibérica desde o primeiro terço do século XI.No período de 1128-37, havia na Espanha cristã, além dorei-imperador de Leão e Castela, dois outros regesgovernantes, o de Aragão e o de Navarra. AfonsoHenriques, cujo Estado era maior do que qualquerdaqueles dois, podia perfeitamente aspirar ao mesmotítulo. Rex não implicava independência no sentido deuma quebra completa dos laços feudais. Para mais,Afonso VII de Leão e Castela fizera-se solenementeproclamar imperador nas cortes de Leão em 1135. Oraum imperador podia e devia ter reis como vassalos. Eracoisa que lhe enaltecia o prestígio e o poder. Assim,Afonso VII não se opôs demasiadamente à ambição doprimo. O que não podia era aceitar um rebelde como rei.Antes de mais, exigia submissão, lealdade e amizade.

Em 1137 alcançou-se uma primeira paz. Foi assinadoem Tui um acordo ou pacto onde se expunham algumascláusulas feudais típicas: Afonso Henriques prometia aoseu senhor fidelidade, segurança, auxílio e conselho. Masdepressa se renovaram as hostilidades. Em 1140 AfonsoHenriques invadiu a Galiza, enquanto Afonso VII entravapor sua vez em Portugal. Parece que, por essa data, jáAfonso Henriques se apresentava como rex, talvez depoisda sua primeira vitória importante sobre os Muçulmanos,conseguida um ano antes. Mas foi só em 1143 que pôdeser negociado um acordo definitivo de paz, com aintervenção de um legado papal. Perdeu-se o texto dotratado ou pacto. Aparentemente, concedia a AfonsoHenriques o título de rei, embora mantendo todas ascláusulas de auxílio militar sempre que necessário. Nãoera ainda a independência. Mas era um enorme passo nasua direcção.

A política externa do novo rei ia agora jogar-se naItália. O seu objectivo consistia em obter reconhecimentoformal do papa, tanto para o título quanto para o reino. Àmaneira feudal, Afonso I encomendou Portugal à SantaSé e considerou-se, com todos os seus sucessores, vassalolígio do papa. Prometeu também pagar, todos os anos, umpequeno tributo de quatro onças de ouro (umas 120 g).Contudo, Afonso Henriques não tinha o direito de disporde Portugal como se de um reino “alodial” se tratasse.Sabia-o perfeitamente, como o sabiam os embaixadoresleoneses que, mais tarde, o iriam contradizer junto dopapa. O Pontífice sabia-o também e respondeu-lhe, semsubterfúgios e correctamente (1144). Não estava napolítica de Roma em Espanha apoiar tentativas deseparação mas antes promover a união política sob chefiasuprema que pudesse facilitar a luta contra o Islam. Alémdisso, Afonso VII de Leão era um filho favorito dopapado, que lhe concedera a rosa de ouro. Portanto,embora louvando Afonso Henriques pelo seu acto eaceitando-lhe o tributo, o papa Lúcio II chamou-lheapenas dux portugalensis e, a Portugal, terra.

Ia levar trinta e cinco anos ao monarca português amodificar a disposição do Papado. Ia-lhe também custarimportantes privilégios a conceder à Igreja. Além disso,teria de pagar quatro vezes mais do que antes, visto que otributo anual foi aumentando de quatro onças para doismarcos (460 g), com uma importante soma pagaadiantadamente. Por este preço, o papa Alexandre IIIsolenemente reconheceu Afonso como rei e o seu Estadocomo reino, em 1179.

Muito mudara, também, na monarquia leonesa. Depoisda morte de Afonso VII, em 1157, seus dois filhosFernando e Sancho dividiram entre si o reino. Fernando

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herdou Leão e a Galiza com o nome de Fernando II,enquanto Sancho conservou Castela como Sancho III. Osdois reinos permaneceriam separados até 1230. O título deimperador foi abandonado. Não havia razão para queAfonso Henriques ou os seus sucessores se sentissemligados a um acto de vassalidade teórica feita para com umimperador já não existente. Não admira que o rei dePortugal, depois de 1157, sentisse os mesmos direitos e osmesmos deveres do que o rei de Leão ou o rei de Castela.

A luta por um Portugal autónomo esteve intimamenterelacionada com certos problemas de administraçãoeclesiástica. Foi acompanhada pela luta entre os arcebisposde Braga e os de Toledo, e pela tentativa de criar umaprovíncia metropolitana portuguesa coincidindo com asfronteiras políticas de Portugal. O arcebispo de Toledo, aquem o papa garantira, nos finais do século XI, o primadosobre toda a Espanha (que remontava ao Estado visigóticounido), deparou com a resistência do de Braga, conscientedos seus privilégios e tradições como metropolita da Galiza(até ao Douro). Quando o conde D. Henrique recebeuPortugal, prontamente compreendeu a importância daspretensões de Braga que, desde logo, apoiou. Conseguiuobter do papa Pascoal II (1100) sentença favorável ao seuarcebispo. Alguns anos mais tarde, o arcebispo Geraldodeu novo passo em frente, conseguindo que o mesmo papalhe reconhecesse o primado, não apenas sobre as antigasdioceses galegas, mas também sobre as de Coimbra, Viseue Lamego (1103).

Querelas entre Braga e Coimbra, a fraqueza dogoverno da condessa D. Teresa e, por fim, a decisão fataldo arcebispo de Braga, Maurício Burdino, de apoiar oimperador da Alemanha Henrique V, aceitando ser eleitocomo antipapa com o título de Gregório VIII (1118),comprometeram toda a situação. Braga perdeu o primadosobre os bispados a sul do Douro. Restaurada a antigametrópole de Mérida, foi a rival de Braga, Compostela,que a recebeu, com autoridade sobre as dioceses queoutrora lhe tinham pertencido.

Levou vários anos a restabelecer as conquistas doarcebispo D. Geraldo. Com Afonso Henriques, todas asdioceses de Portugal se unificaram uma vez mais sob oprimado de Braga. Mas a conquista de Lisboa e doAlentejo veio repor o problema, porque estavam emrestauração bispados que jamais haviam pertencido aBraga. Nem os reis portugueses nem os bisposportugueses conseguiram, em tempos medievais, resolvera questão na medida dos seus desejos. Praticamente,porém, Braga manteve a sua supremacia sobre todo oPortugal, sem que a obediência teórica a Santiago deCompostela ameaçasse a independência do País. Outrotanto acontecia na Galiza e em Leão, onde parte dasdioceses aceitavam Braga como primaz.

O longo reinado do primeiro monarca portuguêsajudou à consolidação do novo Estado. Afonso Henriquesconseguiu largo prestígio interno e externo ao lograr todoo ciclo inicial de vitórias sobre os seus adversários leonesese muçulmanos que fez, mais tarde, esquecer algunsdesastres importantes. Fixou definitivamente a fronteiracristã no Tejo, prote gendo-a com a construção ou a reparaçãode fortificações poderosas. O surto demográfico europeuajudou porventura à prosperidade do reino e à popularidade dosoberano, permitindo migrações internas e os começos de ummovimento mercantil promissor. Os sucessos da Reconquistaencheram provavelmente o erário régio e autorizaram umafarta distribuição de benesses pela nobreza, cimentando o seuapoio ao monarca. Também o clero foi largamentecontemplado, quer o secular quer o regular – mongescistercienses, cónegos regrantes augustinianos – quer aindaas novas ordens militares: Hospitalários e Templários.

Em 1146 o rei casou-se com Matilde, filha de AmadeuIII conde de Saboia, sobrinha-neta do conde D. Raimundo.A ligação quis manter, portanto, os laços tradicionais coma região de Borgonha e foi, provavelmente, negociada pelaIgreja. Em doze anos de matrimónio nasceram, pelomenos, sete filhos, cujos sobreviventes o rei teve apreocupação de casar com governantes ou filhas degovernantes da Península Ibérica ou fora dela, conseguindoassim forjar contactos internacionais que o acreditassem.

Entre Portugal e os vizinhos reinos de Leão e Castelafora possível manter a paz durante quase uma geração. A morte do imperador Afonso VII, todavia, abriu caminhopara uma mudança. Fernando II de Leão e Sancho III deCastela pensaram em travar o avanço português para sul,talhando para si o que obtivessem, num esforço de deter oengrandecimento do novo Estado. A morte de Sancho,deixando filho menor (1158), isolou o irmão e criou querelasque puseram frente a frente as duas facções do ex-império.Afonso Henriques, no seu próprio interesse, imiscuiu-senelas. Uma primeira guerra com Leão (1160-65) saldou-secom vantagens para Portugal, que conseguiu algumasconquistas na Galiza. Fernando II teve de reconhecer, emPontevedra, a personalidade do reino português, casando atécom Urraca, filha de Afonso Henriques. Três anos maistarde, porém, os dois Estados desavieram-se novamente,talvez a pretexto da aliança que Fernando II firmara com osAlmóhadas. Os Portugueses atacaram a Badajozmuçulmana (1169), conseguindo ocupar a cidade baixa masnão a alcáçova. A chegada de reforços sob o comando dopróprio soberano leonês converteu o ataque em debandada.Ao fugir, Afonso Henriques partiu uma perna, caiu do cavaloe acabou por ficar prisioneiro. A obtenção da liberdadecustou-lhe a renúncia às conquistas feitas.

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Impossibilitado de tornar a montar, Afonso Henriquesassociou ao trono, talvez logo em 1170, seu filho e herdeiroSancho, então jovem de dezesseis anos, o que permitiudinamizar a parte final do reinado. Os dois decénios que seseguiram foram assinalados por vigorosas campanhasmilitares, quer de conquista quer de razzia e de defesa,contra os muçulmanos. Em 1178, numa algara digna dememória, o infante herdeiro da coroa penetrou em terrasislâmicas até Sevilha, regressando coroado de prestígio ede despojos. Em 1189, já rei – Afonso Henriques morreraquatro anos atrás – Sancho I esteve prestes a concluir aReconquista portuguesa, ocupando, com o auxílio doscruzados, Silves e todo o Algarve a ocidente. Contudo, aspoderosas e devastadoras contraofensivas de Al-Mansur,sobretudo em 1190 e 1191, fizeram-no de novo perder todoo Além-Tejo, com a única excepção de Évora. No avançode 1190, os muçulmanos passaram mesmo o Tejo echegaram a Torres Novas.

Na segunda fase do seu governo, Sancho I envolveu-seem lutas contra o vizinho reino de Leão e contra o clerosecular do seu país.

A política de relações internacionais, tendente afortalecer o Estado português, continuou durante estereinado. Os contactos de amizade com Aragão, julga-dos fundamentais para conter o expansionismo leonês-castelhano, começaram em 1174 (casamento doentão infante D. Sancho com Dulce, irmã do soberanoreinante de Aragão, Afonso II), prosseguindo comembaixadas portuguesas e com a arbitragem aragonesa noconflito com o rei de Leão. Outras relações diplomáticasforam estabelecidas com a Flandres (casamento da infantaMatilde com o conde Filipe de Alsácia e casamento doinfante Fernando com a condessa Joana), com Castela(casamento do infante herdeiro, Afonso, com Urraca, filhade Afonso VIII), e com Leão também (casamento dainfanta Teresa com Afonso IX, 1191, mas seu repúdiosubsequente, sob pretexto de parentesco).

No plano interno, o reinado de Sancho I caracterizou-sepor tarefas importantes de repovoamento ou de arroteamentode zonas bravias, servidos pelo surto demográfico doperíodo, atingindo praticamente todo o País a norte do Tejo.

É provável que Sancho I, sem esquecer as ordensmilitares surgidas no reinado de seu pai (Hospitalários eTemplários), tenha começado a favorecer com carinho asduas novas milícias de Santiago de Espada e de Calatrava,contribuindo assim para as equilibrar política eeconomicamente. Mostrou-se menos liberal para com asordens religiosas não militares e para com o clero secular,porventura já consciente do seu perigo como forças políticasconcorrentes e influenciado pela acção centralizadora dochanceler Julião Pais, principal “ministro” durante mais detrinta anos.

O prestígio e a capacidade de união interna que a Coroaportuguesa conhecera durante os dois primeiros reinadoschegaram ao fim com o advento de Afonso II (1211). Umestado latente ou declarado de guerra feudal caracterizouos quatro decénios seguintes. Para além de questões deconjuntura e das idiossincrasias dos governantes houveconflitos sociais, ainda hoje mal conhecidos, opondo gruposdentro da nobreza e dentro do clero, e fazendo intervir, pelaprimeira vez, como força de pressão importante, apopulação “urbana” dos cavaleiros-vilãos, mercadores emesteirais. A influência das doutrinas centralizadoras daCoroa tendia a cavar um fosso entre o rei e os grandessenhores, suscitando alianças e formas de luta até entãodesconhecidas. Todo o governo de Afonso II foi marcadopor conflitos e atitudes dessa natureza. Servido porconselheiros firmes e de espírito “avançado” – tais oschanceleres Julião Pais até 1215 e Gonçalo Mendes depoisdessa data – o rei não hesitou em desafiar a nobreza, o cleroe o próprio papa, na afirmação de uma política nova.

Contestando o testamento de seu pai no que respeitavaaos “feudos” concedidos às irmãs, o novo rei provocouuma guerra civil que o ocupou e preocupou durante maisde três anos (1211-14). Contra si, Afonso II viu levantar-seuma forte coligação em que entravam seus irmãos, nobres,clérigos, o rei de Leão Afonso IX e o próprio papaInocêncio III, que lançou o interdito sobre o reino. Depoisde combates vários, em que não levou a melhor, Afonso IIviu-se constrangido a apelar para o Sumo Pontífice e asubmeter-se, aceitando todavia uma solução decompromisso e o pagamento de avultada soma ao Papado.

Readquirido o controle sobre o reino, o monarca atacounovamente os grandes possidentes mediante a imposição deconfirmações gerais aos títulos de propriedade e a realizaçãode inquirições em Entre-Douro-e-Minho e parte da Beira.Já antes promulgara as primeiras leis de desamortizaçãodirigidas contra a Igreja e bem assim as primeiras leis geraisde toda a monarquia portuguesa (1211).

Os últimos três anos de governo foram novamente deconflito violento, embora não armado, entre a Coroa e oalto clero secular. O rei teve por aliada, segundo parece, apopulação de algumas cidades, tais como Coimbra eGuimarães. Excomungado em 1220, ameaçado deanátema pelo Papa, Afonso II ter-se-á reconciliado com aIgreja ao sobrevir-lhe a morte, ainda jovem, em 1223.

Personagem curiosa, mal estudada por deficiência defontes, sofrendo de lepra e de obesidade marcada – o“Gordo” da tradição –, não podendo, porventura, intervirdirectamente em batalhas, cioso das prerrogativas daCoroa, talvez autoritário e conflituoso, Afonso II teve, nãoobstante, os seus aliados e protegidos, até dentro da Igreja.Favoreceu os Cistercienses, as novas ordens mendicantese, possivelmente, os Templários.

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E, embora nelas não participasse, autorizou, todavia,expedições militares de reconquista, como a que se juntouà coligação peninsular vencedora em Las Navas de Tolosa(1212) e a que, com cruzados de passagem, readquiriudefinitivamente Alcácer do Sal (1217).

Se a Coroa conseguiu, apesar de tudo, sair prestigiadae robustecida sob Afonso II, o mesmo não sucedeu já comseu filho e sucessor Sancho II. A fraca personalidade dorei, acaso doente de espírito e impotente, mas, pelo menos,irresoluto e inconstante, contribuiu para o agravamentodas tensões, o descalabro da autoridade central e a quedaúltima do monarca.

Incapaz de prosseguir na política centralizadora queos novos tempos sugeriam – mas com assomos dedirigismo exagerado, como o revelaram as leis dedesamortização que promulgou –, Sancho II, malaconselhado e flutuante nos favoritismos, submeteu-se oraaos ricos-homens da antiga nobreza, ora a representantesde novas categorias senhoriais. Fez grandes concessões àsordens religiosas-militares, entregando-lhes praticamentetodo o Alentejo e parte do Algarve que a viragem daconjuntura lhe entregou em poucos anos e com aparentepouco esforço (campanhas de 1226 a 1242). A abdicaçãodas responsabilidades do poder central face aosenhorialismo mostrou-se também, por exemplo, nastarefas de repovoamento e de arroteia, ante o númeroelevado de forais concedidos por senhorios eclesiásticos elaicos e o número relativamente diminuto de cartas régiasque lhes dissessem respeito.

A anarquia e os desmandos dos senhores, extensivosao próprio rei e a seu irmão Fernando de Serpa,descontentaram, quer a pequena nobreza quer o povo quera Igreja. Isto, mau grado (ou talvez devido) a protecçãodispensada pelo monarca às ordens mendicantes, nessaépoca olhadas com apreensão e inveja por boa parte dasoutras ordens e do clero secular.

Sancho II parece ter enveredado por uma políticainábil de ataques indiscriminados a pessoas e bens daIgreja (se é que não foi induzido a ela pelos partidários deseu irmão Afonso), existentes, segundo se crê, desde oscomeços do reinado. Todo este, aliás, foi ponteado depequenos conflitos, tumultos e arruaças. Os bisposqueixaram-se ao Papa, sucederam-se as admoestações, osinterditos e as reconciliações, e a situação foi-sedeteriorando rapidamente a partir de 1240. O papaInocêncio IV, convencido pelo alto clero português de queSancho II não tinha condições para continuar a governar,acabou por desligar todos os seus súbditos da obediênciadevida, ordenando-lhes que aceitassem D. Afonso como“visitador” ou “curador” do reino. Este aceitou o encargo,depois de solenes promessas feitas ao clero, de que lherespeitaria os privilégios (1245).

D. Afonso, num semiexílio em França desde aadolescência, conde de Boulogne-sur-Mer pelocasamento, desembarcou em Lisboa que, segundo parece,o apoiou sem hesitações. Seguiu-se uma guerra civil entreas duas facções (1246-47) que terminou com a vitória doconde e a fuga de Sancho para Castela, que o ajudara noconflito. Ali veio a morrer, pouco depois (1248).

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GOBBI, Márcia Valéria Zamboni. Assim é se lhe parece: um estudo da História do cerco de Lisboa. In: BERRINI, Beatriz (Org.). José Saramago: uma homenagem. São Paulo: Educ, 1999.HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. História, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1988.KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 2005.MARQUES, A. H. de Oliveira. Breve história de Portugal. 4. ed. Lisboa: Editorial Presença, 2001.PERRONE-MOISÉS, Leyla. Formas e usos da negação na ficção histórica de José Saramago. In: TUTIKIAN, Jane;CARVALHAL, Tania Franco (Orgs.). Literatura e História: três vozes de expressão portuguesa. Porto Alegre: UFRGS, 1999.SEGOLIN, Fernando. O evangelho às avessas de Saramago ou o divino demasiado humano ou o Deus que não sabe oque faz. Cadernos Cespuc de Pesquisa – José Saramago: um Nobel para as literaturas de Língua Portuguesa. BeloHorizonte: PUCMINAS, 1999.TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2003.

Referências

ExercíciosTexto para a questão 1.

De todo o modo, a chuva não o poupou, afinal não sefica mais molhado caindo ao mar oceano do que aorio da nossa aldeia, quer isto dizer que se RaimundoSilva tivesse feito todo o caminho a pé não semolharia mais do que já está, um pinto, uma sopa.

1. No fragmento acima, retirado da obra História doCerco de Lisboa, José Saramago faz uso de umrecurso frequentemente empregado em suas obras.Trata-se daa) Intertextualidade.b) Ironia.c) Antítese.d) Metalinguagem.e) Paródia.

Texto para a questão 2.

O cão tem dúvidas em atravessar, o seu mundo maischegado e conhecido é o das ruas altas, e apesar dever que o homem olha para trás enquanto desce aRua da Padaria, ao longo do que seria, há séculos, opano de muralha que ia até a Rua dos Bacalhoeiros,não se atreve a continuar, talvez o medo de agora setorne insuportável por lembrança dum susto antigo,gato escaldado de água fria tem medo, o cão também.Regressa pelo caminho andado, volta às Escadinhasde S. Crispim, à espera de quem apareça.

2. Na passagem extraída do romance História do Cercode Lisboa, José Saramago refere-se a um cãoabandonado, vagueando pelas ruas da cidade, o qualse apresenta numa inquietude resumida por um ditadopopular. Indique qual a inquietude do animal,explicando-a a partir do provérbio citado pelo autor.

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Texto para a questão 3.

Ora, a prova de que D. Afonso Henriques mereciaverdadeiramente ser rei, e não apenas rei, mas reinosso, está em que soube decidir como Salomão, esseoutro exemplo de despotismo esclarecido, ao fundirnum único plano estratégico as diferentes teses,dispondo-as numa harmoniosa e lógica sucessão.Felicitou em primeiro lugar os partidários do ataqueimediato pelas virtudes de coragem e ousadia queassim provavam, deu depois os parabéns aosengenheiros das torres pelo seu sentido práticoadornado dos dons modernos da invenção e dacriatividade, congratulou-se finalmente com osdemais por neles encontrar o louvável mérito daprudência e da paciência, inimigas de riscosdesnecessários.

3. José Saramago compara, no fragmento, ocomportamento do rei D. Afonso Henriques ao do reiSalomão. Explique por que há essa comparação entreas duas personagens da História.

Texto para a questão 4.

Terceiro, quarto e quinto problemas, ou sexto esétimo, poderíamos nós enunciar ainda se nãofossem, todos eles, efeito mais ou menosmatematicamente decorrente dos dois primeiros, porisso nos limitaremos a mencionar um só pormenor,aliás rico de consequências no que diz respeito àveracidade deste relato em outros particulares, comoa seguir veremos, e vem a ser, o dito pormenor, apequeníssima distância que separa a Porta de Ferroda margem do esteiro, não mais que cem passos, ou,em medida moderna, uns oitenta metros, o queinviabiliza que o desembarque aqui se faça, poisainda a flotilha de canoas viria padejandofatigosamente, por via da carga de homens e armas,a meio do esteiro, e já os muros da cidade, deste lado,estariam guarnecidos de soldados, e outros, a péfirme, rente à água, esperariam a aproximação dosportugueses para os acrivarem de setas.

4. Explique por que, na passagem do romance Históriado Cerco de Lisboa, o narrador refere-se à distância aser percorrida da margem do esteiro até a Porta deFerro de duas maneiras diferentes.

5. No enredo de História do Cerco de Lisboa, ohistoriador, autor de um romance homônimo, confiano trabalho de revisão de Raimundo Silva a ponto dedispensar uma última revisão de seu texto,autorizando, assim, a publicação do livro após asalterações possíveis feitas pelo revisor. No entanto,essa confiabilidade causará danos à obra dohistoriador. Explique como se dá o prejuízo à obra eem que medida ela favorece positivamente a vida deRaimundo Silva.

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1) No fragmento, o autor faz referência à poesia do heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, aomencionar o “rio da aldeia”, ao que se denomina intertextualidade.Resposta: A

2) O cão está temeroso de atravessar um caminho que lhe é desconhecido porque em alguma outra situaçãoocorreu-lhe uma experiência causadora desse medo, o que se deduz pelo emprego do provérbio “gato escaldadode água fria tem medo”, isto é, depois de o animal ter experimentado algo desagradável, no caso do gato seriao contato com a água, ele torna-se cauteloso para não correr o risco de, novamente, sofrer com situações quelhe sejam penosas.

3) Salomão foi um homem reconhecido por sua sabedoria ao fazer julgamentos justos, como no caso de duasmulheres que discutiam por causa de um bebê, do qual ambas diziam ser a mãe. Para resolver o impasse,Salomão ordenou que a criança fosse cortada ao meio para que cada uma das mulheres ficasse com sua metade.Uma das supostas mães aceitou de imediato a decisão salomônica, mas a outra, defendendo a vida do bebê,pediu que ele fosse dado à primeira mulher. Salomão então percebeu que a mãe verdadeira era a mulher quedesistira da divisão e deu a ela a criança. A sábia decisão judicial tomada por Salomão é ironicamente retomadana comparação com a atitude de D. Afonso Henriques, o qual, do alto de sua sabedoria, uniu em sua estratégiade guerra dois planos divergentes, felicitando os que eram favoráveis ao ataque imediato e, também, aquelesque construíram as torres, ordenando que a ação tivesse as duas formas de investida.

4) No romance História do Cerco de Lisboa, José Saramago desenvolve o enredo em dois tempos distintos: o séculoXII, mais precisamente em 1147, e o século XX, quando se passa a aventura do revisor Raimundo Silva, o qualreescreverá o fato histórico do cerco aos mouros pelos portugueses. Assim, a referência à medida de “cempassos” seria a comumente empregada no século XII, enquanto a menção aos “oitenta metros” seria a formahabitual no século XX de se referir à distância percorrida.

5) Raimundo Silva, ao revisar a obra do historiador, não concorda com a afirmação de que os cruzados teriamajudado os portugueses no cerco de Lisboa aos mouros e, por isso, acrescenta um NÃO na afirmação feitapelo autor, alterando o conteúdo original da obra, a qual será lançada pela editora com uma errata, corrigindoo NÃO acrescentado por Raimundo Silva para SIM, quanto ao auxílio cruzado. Tal atitude do revisorproporciona a ele uma radical mudança em sua vida, pois a revisora-chefe propõe-lhe que escreva a sua versãodo cerco de Lisboa, o que, além de despertar em Raimundo Silva a sua capacidade de escritor, também favorecea ele a chance de conhecer melhor Maria Sara e com ela viver seu primeiro amor verdadeiro.

HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA

GABARITOAS OBRAS DA UNICAMP

PORTUGUÊS

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