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FOLHAS POLÍTICAS 1976-1998 José Saramago

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o escrito de origem Portugues fala-nos das sua opinões pessoais enquanto a política e os sistemas sociais

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  • FOLHAS POLTICAS

    1976-1998

    Jos Saramago

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    WWW.SABOTAGEM.REVOLT.ORG

    Esta obra foi digitalizada, formatada, revisada e liberta das

    excludentes convenes do mercado pelo

    Coletivo Sabotagem. Ela no possui direitos autorais pode e deve

    ser reproduzida no todo ou em parte,

    alm de ser liberada a sua distribuio, preservando seu contedo

    e o nome do autor.

    Caixa de texto: Autor: Jos Saramago

    Ttulo: Folhas Polticas 1976-1998

    Ano da Publicao Original: 1999

    Ano da Digitalizao: 2005

  • INDICE

    Introduo

    Breve

    Biografia.........................................................

    ..................................................................

    .....03

    Bibliografia......................................................

    ..................................................................

    ..............08

    Folhas Polticas

    A Questo a do Socialismo.......................09

    Reforma Agrria e Outros Assuntos.......... 13

    Preldio e Marcha...................................... 16

    Portugal, ou Porto Rico? ........................... 19

    O Gosto de Bater ....................................... 22

    A Verdade e a Mentira............................... 25

    A Mo do Finado ...................................... 28

    Furtiva lgrima .......................................... 31

    Constituio e Palavra de Honra ............... 34

    Recado para Joo Basuga, alentejano........ 37

    Pas Real, Real Pais.................................... 40

    Vou Amotinar-me...................................... 43

    Os Independentes ...................................... 46

    O Independente Extra ................................ 48

  • As Rosas .................................................... 50

    O Rs-do-cho............................................ 53

    Adeus, Adeus ............................................ 54

    O Sinal Contrrio ...................................... 57

    O que Somos ............................................. 60

    A Cozinha .................................................. 62

    O Tempo do Rato....................................... 64

    Como bvio?.......................................... 66

    A Mesa Deles............................................. 68

    A Banha da Cobra ..................................... 70

    As (In)coerncias ...................................... 72

    A cabea .................................................... 74

    O Terceiro Governo................................... 77

    A Transfuso.............................................. 79

    A outra Secousse.................................... 81

    O Nome Dele.............................................. 84

    Como ia Dizendo........................................ 87

    Toms, O Recuperado ............................... 89

    Papis de Identidade .................................. 91

    Sena ...........................................................

    94

    Unir a Esquerda, Defender a Democracia . 96

    Dos Intelectuais Desanimados ................ 100

    Cultura: Um Consenso Impossvel .......... 102

    Discurso do Prmio Cidade de Lisboa .....106

    Fogos-de-Artficio.................................... 109

  • Questo de Caras ..................................... 111

    Dos Leitores e dos Gatos ........................ 113

    Lio de vontade ..................................... 117

    Esta Mal Dita Lngua Portuguesa ............120

    A Paz uma Militncia ........................... 123

    Antigamente ............................................ 126

    A Qualidade dos Vivos ........................... 128

    Paris, Portugal ......................................... 131

    Atrasados, Felizmente............................. 134

    A Rainha do Alentejo ..............................137

    Da Democracia e Da Cultura .................. 140

    Herculano e o 25 de Abril........................ 144

    A Difcil Conversa .................................. 147

    Uma Pessoa da Famlia ........................... 150

    Democracias e Demagogias .................... 153

    Os Sujeitos Normais ................................156

    Amlcar Cabral Descobriu o Brasil ......... 158

    Histria Antiga, Caso Moderno .............. 161

    O Planeta dos Macacos ........................... 163

    Que Voltem os Gregos! .......................... 165

    Sobre o Derrube do Muro de Berlim ...... 167

    A Clula de Crise .................................... 168

    Querida, Maltratada Lisboa .................... 171

    Palavras para uma Cidade ....................... 174

    Amrica vista da Europa ......................... 178

    A ETA Continuar a Matar ..................... 180

  • Ai do Lusada, Coitado!....................... 183

    O Velho, o Rapaz e o Burro..................... 185

    Troca de Galhardetes .............................. 187

    De Cabea Perdida .................................. 189

    A Rainha Vai Nua ................................... 191

    Chiapas ................................................... 193

    A Mo que Embala o Bero .................... 195

    Um Carro sem Traves ........................... 197

    A Guerra do Desprezo ............................ 199

    A Ala dos Demorados.............................. 201

    Chiapas, Nome de Dor e de Esperana ... 203

    A Soberania Deles .................................. 208

    Os Referendos ......................................... 210

    frica ...................................................... 212

    Alegra-te, Esquerda................................... 214

  • INTRODUO

    Breve Bibliografia

    Jos de Sousa Saramago nasceu a 16 de Novembro de 1922, em

    Azinhaga (Goleg),

    no Ribatejo, embora a sua certido de nascimento aponte a data de

    18. A razo para a

    discrepncia a habitual: o registo foi feito fora do prazo legal

    e para no pagarem a multa,

    os pais alteraram a data.

    O menino estava destinado a ser "Jos de Sousa", como o pai, j

    que a me, Maria da

    Piedade, no possua nenhum apelido que pudesse deixar de herana

    ao filho.

    Por motivos nunca esclarecidos, o funcionrio do registo civil

    enganou-se e

    acrescentou a alcunha familiar ao nome do pequeno Jos

    "Saramago", designao de

    uma variedade de ervas daninhas. Com freqncia acontecia isto: a

    alcunha de um

    indivduo colava-se famlia e, no poucas vezes, era aceite como

    apelido. Graas a esse

    desleixo burocrtico, o pequeno Jos pde enfrentar a vida, no

    com um annimo "de

    Sousa", a pedir uma operao de pseudonmia urgente, mas com um

    sonoro e inconfundvel

    "Saramago".

    Aos dois anos a famlia transferiu-se para Lisboa, procura de

    melhores condies.

    nessa altura que o pai ingressa na Polcia de Segurana Pblica,

    mas as dificuldades

    econmicas permanecem. Pouco depois, o seu nico irmo, Francisco,

    dois anos mais

    velho, morreu em conseqncia de uma broncopneumonia.

    Em 1929 iniciou a escola primria, matriculando-se depois no Liceu

    Gil Vicente.

    Vem-lhe dessa altura o gosto pela leitura: sem acesso a livros,

    passava a pente fino s

    pginas do "Dirio de Notcias". Em 1934 as dificuldades

    econmicas fazem-se sentir e

    Jos transita para a Escola Industrial Afonso Domingues,

    concluindo o curso de Serralharia

    Mecnica em 1939.

  • Logo de seguida, obtm o primeiro emprego nos Hospitais Civis de

    Lisboa. Por meio

    da leitura, procura melhorar a sua formao intelectual,

    freqentando a biblioteca do

    palcio das Galveias. a que inicia o seu contacto com a

    literatura.

    Em 1942 transferido para os servios administrativos do Hospital

    Civil de Lisboa e

    no ano seguinte passa a trabalhar na Caixa de Abono de Famlia da

    Indstria da Cermica.

  • Casou em 1944 com a pintora Ilda Reis, de quem se divorciaria em

    1970. Anos

    depois, em 1947, nasce filha Violante e publica a primeira

    novela, Terra do Pecado.

    Saramago havia-lhe atribudo outro ttulo A Viva mas o editor

    props "Terra do

    Pecado" e assim ficou. Naturalmente o livro passou despercebido e

    foi esquecido; o prprio

    autor retirou-o da sua bibliografia e s em 1997 ele voltar a ser

    lembrado.

    Outra novela, Clarabia, escrita posteriormente, permanece

    indita; o manuscrito,

    entregue a uma editora para apreciao, por l ficou perdido e s

    em 1990 reapareceu.

    Depois dessa primeira experincia, Saramago interrompe a escrita,

    que s retomar em

    1966, ao publicar Os Poemas Possveis.

    Em 1949, o apoio campanha de Norton de Matos Presidncia da

    Repblica leva-o

    a perder o emprego na caixa de Abono de Famlia da Indstria da

    Cermica. No ano

    seguinte conseguiu ingressar na Caixa de Previdncia da Companhia

    Indstrias Metlicas

    Previdente, onde permanecer at 1959. Em 1955 comeou a colaborar

    com a Editorial

    Estdios Cor, qual se dedicou em exclusivo desde 1959 at 1971,

    como editor literrio.

    Em 1966 retomou a atividade literria, publicando o seu primeiro

    livro de poesia, Os

    poemas possveis. Da em diante a escrita tornou-se uma atividade

    permanente. Em 1968

    iniciou a atividade jornalstica, publicando textos de crtica

    literria na revista "Seara Nova"

    e, em 1972, comeou a trabalhar no "Dirio de Lisboa", passando,

    no ano seguinte, a dirigir

    o suplemento literrio do jornal. Colaborou tambm com a revista

    Arquitetura (1974).

    Entretanto, em 1969, aderiu ao Partido Comunista Portugus, ao

    qual permaneceu fiel at

    hoje. No entanto, em 1988 foi um dos subscritores do "documento da

    terceira via".

    Aps o 25 de Abril chegou a trabalhar no Ministrio da Comunicao

    Social, como

    assessor. Tambm nessa altura chegou a coordenar uma equipa de

    dinamizao cultural no

    Fundo de Apoio aos organismos Juvenis (FAOJ). Em 1975 nomeado

    director-adjunto do

  • "Dirio de Notcias", mas dispensado aps o 25 de Novembro. A

    partir desta altura

    dedica-se exclusivamente escrita e procura subsistir fazendo

    tradues. Durante alguns

    meses de 1976 convive com os trabalhadores da Unio Cooperativa de

    Produo Boa

    Esperana, em Lavre, Montemor-o-Novo, saindo dessa experincia o

    livro Levantados do

    Cho, publicado em 1980.

  • Fez parte da primeira direo da Associao Portuguesa de

    Escritores (APE) e, entre

    1985 e 1994, foi presidente da Assemblia Geral da Sociedade

    Portuguesa de Autores

    (SPA).

    Nos anos seguintes vai construindo a sua obra literria e ganhando

    projeo, nacional

    e internacional, acumulando prmios e homenagens:

    1979 - Prmio da Associao de Crticos Portugueses

    1980 - Prmio Cidade de Lisboa

    1982 - Prmio do Pen Clube Portugus e Prmio Literrio do

    Municpio de Lisboa

    1984 - Prmio do Pen Clube Portugus; Prmio D. Dinis; Prmio da

    Associao Portuguesa

    de Crticos

    1985 - Comendador da Ordem Militar de Santiago de Espada; Prmio

    da Crtica pelo

    conjunto da obra

    1987 - Prmio Grinzane-Cavour (Itlia), pela obra O Ano da Morte

    de Ricardo Reis;

    Doutor honoris causa pela Universidade de Turim

    1991 - Grande Prmio de Novela da Associao Portuguesa de

    Escritores; Prmio Bracati

    (Itlia); Doutor honoris causa pela Universidade de Sevilha;

    Cavaleiro da Ordem das Artes

    e das Letras Francesas

    1992 - Prmio Internacional Ennio Faiano (Itlia), por Levantados

    do Cho e Prmio

    Internacional Literrio Mondello (Itlia); Prmio Literrio

    Brancatti (Itlia)

    1993 - Grande Prmio de Teatro da Associao Portuguesa de

    Escritores; Membro do

    Parlamento Internacional de Escritores, em Estrasburgo; Prmio The

    Independent (Reino

    Unido) e Prmio Vida Literria da APE

    1994 - Membro da Academia Universal das Culturas (Paris); Scio da

    Academia Argentina

    de Letras

    1995- Doutor honoris causa pela Universidade de Manchester (Reino

    Unido); Prmio

    Consagrao da Sociedade Portuguesa de Autores

    1996 - Prmio Cames

    1998 - Prmio Nobel de Literatura

  • ainda membro honoris causa do Conselho do Instituto de Filosofia

    do Direito e de

    Estudos Histrico-Polticos da Universidade de Pisa.

    O romance Memorial do Convento inspirou uma pera (Blimunda),

    escrita pelo

    compositor italiano Azio Corghi e estreada em 1990, em Milo. Mais

    tarde, em 1993,

    Corghi escreveria uma outra pera (Divara), com libreto extrado

    da pea de Saramago In

    Nomine Dei, levada cena em Munster (Alemanha). E em 1995

    encenada no palco da

    Igreja de S. Marco, com msica de Azio Corghi, a pea La Morte de

    Lzaro, inspirada em

    obras de Saramago (In Nomine Dei, Evangelho segundo Jesus Cristo e

    Memorial do

    Convento).

    Em 1991 publicou o Evangelho segundo Jesus Cristo, obra incmoda

    para os sectores

    mais tradicionais da sociedade portuguesa, tendo o Subsecretrio

    de Estado da Cultura,

    Sousa Lara, vetado em 1992 a sua candidatura ao Prmio Literrio

    Europeu.

    Em 1988 casou com a jornalista espanhola Pilar del Rio e desde

    1992 reside em

    Lanzarote, nas Ilhas Canrias.

    A 8 de Outubro de 1998, a Academia Sueca atribuiu-lhe o Prmio

    Nobel de

    Literatura. A 3 de Dezembro desse ano, o Presidente da Repblica,

    Jorge Sampaio,

    concedeu-lhe, a ttulo excepcional, o Grande Colar da Ordem de

    Santiago da Espada,

    distino reservada tradicionalmente a chefes de estado.

  • Bibliografia

    Terra do Pecado (romance), Lisboa, 1947

    Os Poemas Possveis (poesia), Lisboa, 1966

    Provavelmente Alegria (poesia), Lisboa, 1970

    O Embargo, Lisboa, 1973

    A bagagem do viajante (crnicas), Lisboa, 1973

    As Opinies que o DL teve, Lisboa, 1974

    O Ano de 1993 (poesia), Lisboa, 1975

    Manual de Pintura e Caligrafia (romance), Lisboa, 1976

    Os Apontamentos (crnicas), Lisboa, 1976

    Objeto Quase (contos), Lisboa, 1978

    A Noite (teatro), Lisboa, 1979

    O Ouvido (conto), in "Potica dos Cinco Sentidos", 1979

    Que Farei com este Livro? (teatro), Lisboa, 1980

    Levantado do Cho (romance), Lisboa, 1980

    Viagem a Portugal (viagens), Lisboa, 1981

    Memorial do Convento (romance), Lisboa, 1982

    O Ano da Morte de Ricardo Reis (romance), Lisboa, 1984

    Deste Mundo e do Outro (crnicas), Lisboa, 1985

    A Jangada de Pedra (romance), Lisboa, 1986

    A Segunda Vida de Francisco de Assis (teatro), Lisboa, 1987

    Histria do Cerco de Lisboa (romance), Lisboa, 1989

    Canto ao romance, romance ao canto, in Vrtice. II Srie, Lisboa,

    n21 (Dez.1989)

    O Evangelho Segundo Jesus Cristo, (romance), Lisboa, 1991

    In Nomine Dei, (teatro), Lisboa, 1993

    Cadernos de Lanzarote (dirio I), Lisboa, 1994

    Ensaio sobre a Cegueira, (romance), Lisboa, 1995

    Cadernos de Lanzarote (dirio II), Lisboa, 1995

    Moby Dick em Lisboa, (crnicas), Lisboa, 1996

    Cadernos de Lanzarote (dirio III), Lisboa, 1996

    O Conto da Ilha Desconhecida (conto), Lisboa, 1997

    Todos os Nomes, (romance), Lisboa, 1997

    Cadernos de Lanzarote (dirio IV), Lisboa, 1997

    Cadernos de Lanzarote (dirio V), Lisboa, 1998(?)

    Uma voz contra o silncio, Lisboa, 1998

    Discursos de Estocolmo, Lisboa, 1999

    Folhas polticas 1976-1998, Lisboa, 1999

    A caverna, (romance), Lisboa, 2000.

  • FOLHAS POLTICAS

    A Questo a do Socialismo

    (1976)

    Do alto da sua tribuna, o presidente da Assemblia da Repblica

    no v a Nao: v

    (quando esto todos) 263 deputados que, pela graa da aritmtica,

    a representam. Est a

    Direita, est o Centro, est a Esquerda. Ningum precisa de (se)

    interrogar sobre o que seja

    a Direita, ningum acha oportuno averiguar se o Centro o de

    fato, mas todos nos

    inquietamos com a Esquerda, com o passado, o presente e o futuro

    da Esquerda. Falta saber

    (o tempo o vir a dizer, por fora) se essa inquietao sinal de

    sade ou de doena, da

    Esquerda e de quem para ela se volta interrogativo, com uma

    preocupao porventura

    autntica, mas no destituda de algum comprazimento. Outra vez em

    Portugal se tornou

    mais fcil falar das coisas do que faz-las, outra vez (passe a

    banalidade da aluso)

    cuidamos mais de discutir o sexo anglico do que de investigar os

    modos de levar os anjos

    a fazer filhos, sejam os ditos anjos machos ou fmeas.

    A questo que importaria pr (segundo entendo) no a da

    Esquerda, mas a do

    Socialismo. E isto sabendo que mesmo a troca no esclareceria

    radicalmente o objeto em

    anlise: afinal, se sobre a Esquerda muito se borda, sobre o

    Socialismo muito se remenda.

    Mas, neste nosso caso portugus, obrigados que fomos, durante duas

    geraes, a falar de

    Esquerda por no poder dizer Socialismo, mal me parece que

    voltemos a hbitos antigos:

    h aqui um (decerto) involuntrio escamoteamento do problema

    central, talvez um gosto

    (escolstico?) de sabatina, um jogo floral que no ser para

    passar o tempo, mas durante o

    qual o tempo passar irremediavelmente. Ora, se somos pobres de

    muita coisa, tambm o

    somos de tempo. E se no temos sido brilhantes administradores de

    divisas, pior o teremos

    sido dos nossos minutos.

    A questo, insisto, a do Socialismo. E o Socialismo, dizem-no os

    manuais, e no

  • poderia ser seno isso, a propriedade coletiva dos meios de

    produo, e o mais que

    politicamente, ideologicamente e economicamente da decorre, ou

    entretanto para a

    concorreu. Posto o que (linear ser, mas exato) comea a tornar-se

    claro que a linha que

    separa a Esquerda da Direita, isto , a fronteira que divide o

    campo poltico que quer o

  • Socialismo do campo que o no quer, passa pelo interior do Partido

    Socialista. No isto

    novidade para ningum, mas o inqurito obriga a repeti-lo.

    Desta maneira creio que se torna evidente um dos motivos da

    dificuldade de

    encontro e dilogo das foras polticas que se reclamam de

    Esquerda, e portanto de

    Socialismo: interclassista, como declaradamente o e com algum

    oportunismo se gaba, o

    Partido Socialista nunca poderia ser, todo ele, socialista. A

    questo do socialismo

    democrtico, to agitada para lucros de propaganda eleitoral e

    proveitos de batalha

    ideolgica, uma falsa questo: juntar a socialismo o adjetivo

    democrtico no

    representa nem esclarecimento nem rigor nem adicionao de

    qualidade: puro

    compromisso, plataforma intima, tentativa de conciliao entre

    classes dentro de um

    partido que, por isso mesmo, exibe ou esconde o seu programa

    consoante a parte do

    eleitorado a que se dirige.

    Por aqui se concluir que, segundo entendo, a questo da Esquerda,

    logo a questo

    do Socialismo, tem de passar por uma definio do Partido

    Socialista no que toca ao lugar

    que ocupar (ou no) na futura luta, ou, se a linguagem parecer

    demasiado blica, no futuro

    empenhamento das foras de Esquerda. A grande responsabilidade do

    Partido Socialista

    tem sido a de paralisar, pela sua mesma contradio intima, a

    irrecusvel definio:

    possvel, por isso, afirmar que, no sentido mais rigoroso do

    termo, o Partido Socialista

    adiou o Socialismo, Porque o adiou dentro de si prprio.

    Imaginemos, porm, que a definio se faz, que coeso ou aps

    diviso um Partido

    Socialista emerge, e o desenho poltico da Esquerda ganha nitidez

    suficiente e contorno

    organizvel. Imaginemos, tambm, que, pelo contrrio, todo o

    Partido Socialista se desloca

    para a direita, deixando, como pontualmente j deixou, nesse

    movimento, algumas franjas

    competentes mas sem relevncia bastante para constiturem, elas, o

    Partido Socialista. No

    primeiro caso, teremos diante dos olhos, pela primeira vez desde

    Abril de 74, a expresso

    poltica real da vontade socialista global, conservando-se o

    esquema organizacional

  • partidrio nascido com a revoluo; no segundo caso, veremos

    melhor e avaliaremos o

    tempo perdido, e tambm a dimenso do equvoco que foi a vida

    poltica portuguesa:

    saberemos que andamos a viver de palavras quando nos deveramos

    ter alimentado muito

    mais de atos. Num caso e noutro, o relgio marcar a hora das

    decises: definida a

  • Esquerda (no fixada para o resto dos sculos, mas coerente e

    coincidente nas linhas

    bsicas de um projeto comum), definir-se- como fora(s)

    poltica(s) para o Socialismo.

    Comearemos ento a saber (ou saberei eu, se outros j o sabiam

    antes) do que andamos a

    falar.

    Mas uma coisa possvel adiantar desde j, e essa no nova nem

    sequer especfica

    do nosso Pas: a questo da hegemonia poltica partidria. O

    argumento j clssico entre

    ns (extensivo, at, ao sector sindical) o duma pretensa

    hegemonizao que o Partido

    Comunista procuraria estabelecer em todas as formas de aproximao

    com outras foras

    polticas. A afirmao faz-se uma e muitas vezes, e fica no ar,

    condiciona os juzos e,

    portanto as decises: um sintoma da insegurana de quem assim se

    queixa ou acusa, de

    falta de confiana nos recursos prprios ou na sua consistncia

    ideolgica. Enquanto o

    fantasma da hegemonizao no for afastado, a Esquerda (tomada,

    repito, como vontade

    socialista conjunta) no se aproximar, no ser frente, no se

    empenhar conjuntamente

    como tal. Viver dispersa como convm Direita e, como Direita

    convm, lutar entre si.

    Profundamente, essa a crise da Esquerda, e o advrbio significa,

    neste lugar, que muito do

    que se passa na poltica portuguesa do foro psicolgico: andam

    por a abundantes

    complexos de dipo, frias assassinas contra o Pai, e frustraes

    de toda a ordem (no por

    acaso que o processo poltico tem atrado tanto a ateno de

    psicanalistas, mas talvez no

    seja tambm por acaso que os prprios psicanalistas tm passado ao

    lado da questo

    essencial, que , para o caso, e neste meu ver de leigo, a do

    Partido Comunista como agente

    de produo psicolgica, quer individualmente quer

    coletivamente).

    Mas existe de fato uma crise da Esquerda? bvio que sim. Porm,

    no se trata de

    uma crise mrbida, efeito de bactria ou vrus introduzido num

    corpo saudvel, e agora

    febril, tambm no uma crise de crescimento, ou melhor, para o

    crescimento - a

    perturbao, o desconcerto, a desarmonia do corpo que invade cada

    vez mais o espao e

  • tem de adaptar-se a ele e a si prprio; ser antes uma crise no

    de identidade, mas para a

    identidade. A Esquerda portuguesa, como um todo, no se conhece

    entre si, nem se

    reconhece no conjunto. Este o obstculo imediato, barreira que

    necessrio ultrapassar,

    sob pena grave: a de atirar para muito longe, por nossas prprias

    e inbeis mos, a

    esperana do Socialismo.

  • Encontremo-nos, pois, e confrontemos. Sabendo cada um o lugar que

    ocupa, agora,

    no sector da Esquerda que for o seu, sem sobrevalorizao nem

    subvalorizao do que,

    efetivamente, esse sector representar como expresso coletiva. E

    tenhamos em vista que o

    objetivo o Socialismo. A Esquerda no um fim em si, um modo

    vitimizante ou

    triunfalizante de estar no mundo: uma estrutura, um instrumento,

    uma organizao. Que,

    como todas as coisas, sero julgados pelos resultados. E ns de

    caminho.

  • Presidente, Reforma Agrria e Outros Assuntos

    (Dirio de Lisboa, 29 de Dezembro de 1976).

    No que o caso tenha muita importncia. Se a televiso e a

    rdio, nosso visvel e

    audvel de todos os dias, usaram o Natal no bom estilo passado

    para cultivar em prosa,

    verso e imagem o sentimentalismo mais dessorado que imaginar se

    pode; se o primeiro-

    ministro considerou generosa benesse ir de viagem a Linh e Tires

    para levar o conforto da

    sua governamental presena a homens e mulheres que de tcticas

    polticas nada entendem,

    no h de espantar ningum que o presidente da Repblica tenha

    decidido chamar a

    convvio de almoo e conversa trs casais de emigrantes. Estas

    coisas fazem-se por toda a

    parte, calam fundo no corao popular, sempre sensvel e

    agradecido a quem o trata bem.

    Porm, mesmo no tendo o caso assim tanta importncia, merece que

    lhe demos

    uma volta a ver que isto que foi, para que serve e por que se

    faz. No falo da rdio e da

    televiso, incapazes de novidar ( palavra inventada, minha) seja

    o que for, to curtas de

    imaginao, to cnticos natalcios, to noite silenciosa, to

    fraternidade postia. No

    falo do primeiro- ministro, que homem viajado, viu muito disto

    l fora, e sabe como se

    ganham votos, sem se interrogar muito sobre as razes por que os

    vai perdendo. Falo, sim,

    do presidente da Repblica, cujos ditos e feitos ainda so do

    pouco capaz de interessar esta

    nossa fatigada terra.

    Vossa Excelncia, provavelmente, lembra-se de mim. No passou

    assim tanto

    tempo desde aqueles dias em que nos sentvamos ao redor duma mesa,

    no ltimo andar da

    televiso, Vossa Excelncia, dois funcionrios da casa e mais uns

    tantos tarefeiros, entre os

    quais eu estava. Vossa Excelncia no era, como no hoje, um

    rosto aberto, mas aquelas

    reunies foram desde o comeo levadas com algum humor que no

    prejudicou, creio bem, a

    eficcia. Honra nos seja feita a todos e sobretudo a mim, que no

    me conformava com a

    severidade de feio e trato que est no carter de Vossa

    Excelncia.

  • E honra a Vossa Excelncia, que foi capaz de sorrir algumas vezes.

    Mas o tempo

    passa. Vossa Excelncia hoje presidente da Repblica, o Artur

    Ramos foi saneado, o

    Prado Coelho foi diretor-geral da Ao Cultural e saiu desgostoso,

    o Carlos Porto l vai

    continuando as suas crticas de teatro, o Fonseca e Costa decerto

    gostaria de filmar mais, e

    eu, senhor presidente, depois de algumas andanas, escrevo este

    artigo. Assim passam as

  • glrias do mundo. Cada um, se h justia, ter o que profundamente

    merea: isto me

    ensinaram em criana. Vossa Excelncia, pela justia dos votos,

    presidente: resta saber se

    toda a outra gente ter merecido o que tem. Destrinar isso,

    porm, levar-me-ia para longe

    do meu objetivo, cujo precisamente o almoo que Vossa Excelncia

    deu e j referi.

    E por que falo eu dele? Por inveja? Quem sabe, senhor presidente,

    quem sabe?

    Permita que imagine, d-me essa licena, o que seria um almoo que

    tornasse a reunir

    aqueles homens do ltimo andar da televiso. Teria a mesma

    eficcia? Teria o mesmo

    humor? Talvez no, mas Vossa Excelncia ficaria a saber alguma

    coisa das nossas vidas e

    ns teramos o gosto de v-lo como presidente e a aventura de

    procurar descobrir o homem

    que no presidente h.

    Esqueamos, porm, esta to humana inveja. E diga eu j que nada

    me move contra

    os casais de emigrantes que Vossa Excelncia chamou sua mesa.

    Gente emigrada gente

    sacrificada, merece tudo, at um almoo na Presidncia da

    Repblica. Vossa Excelncia

    ter-se- figurado (e acho que fez bem em figurar-se tal) almoando

    com todo o Povo

    Portugus, nada preocupado ali em querer saber o que

    partidariamente esse povo fosse.

    Vossa Excelncia, que na televiso se sentava mesa com

    comunistas e no mostrava mais

    reserva do que julgo ser-lhe prpria, tambm no h de ter querido

    saber em que partido

    votaram os seus convidados, nem ter curado de averiguar se foram

    todos eleitores seus.

    Penso eu, porm, que Vossa Excelncia escolheu a soluo mais

    fcil, ou algum lha

    aconselhou.

    Almoar com emigrantes , logo se v, um ato neutral. Quem v o

    emigrante, no

    v seno o emigrante. Por aqui se observa como logo fica

    descomprometido o gesto.

    Voltem esses emigrantes terra donde saram por razes de

    penria, e no tero mais lugar

    mesa de Vossa Excelncia. Entram no estatuto corrente do cidado

    a quem se pede o

    imposto e o voto. No verdade, senhor presidente?

  • Agora imagine Vossa Excelncia que tinha resolvido chamar sua

    mesa no o povo

    de fora, mas o povo de dentro, no trs casais de emigrantes, mas

    trs casais ali do

    Alentejo, da Reforma Agrria. A seria um ato poltico que os seus

    conselheiros e

    assessores (para j no falar do governo) firmemente lhe

    desaconselhariam. Mas, ah, senhor

    presidente, que salto para a frente teria dado este pas se Vossa

    Excelncia tem cometido o

  • rasgo de chamar um casal da Lobata, um casal da Benavila, um casal

    da Comenda! Estou

    que seria uma revoluo.

    No foi assim, pacincia. Uma esperana, no entanto, me anima: a

    de que trs casais

    do Alentejo convidem Vossa Excelncia a ir almoar l a casa. Se

    tal acontecer, aceite. No

    queira saber nem consinta que os seus conselheiros tentem

    averiguar se todos esses casais

    votaram em si. Nesta altura, se Vossa Excelncia vota neles, isso

    tem pouca importncia.

    Mas, vota?

    Desculpe Vossa Excelncia estas ousadias. Faz de conta que ainda

    estamos no

    ltimo andar da televiso. E o que tm estes hbitos democrticos:

    Vossa Excelncia

    presidente da Repblica - e eu escrevo este artigo.

  • Preldio e Marcha

    (23 de Julho de 1977)

    Diante desta primeira folha, pergunto-me: valer a pena? Valer a

    pena retomar uma

    interveno que em seu tempo teve sem dvida desacertos, mas a que

    no faltou limpeza de

    inteno e alguma prescincia? Valer a pena lanar outras

    palavras nesta fogueira nacional

    em que muito mais se v de fumo do que de lume verdadeiro? Valer

    a pena aumentar as

    nutridas fileiras dos comentadores polticos nacionais com algum

    que no faz vida de

    bastidores ministeriais nem de passos perdidos? E, sobretudo,

    valer a pena anunciar isto

    assim to solenemente, como quem esperasse duma ao individual,

    sem recados de fora, a

    salvao ou a ressurgncia disso que teve nome de revoluo?

    Provavelmente, vale a pena. Por vrias razes: porque oito meses

    de trabalhos

    dirios e nenhuma traio me ho de ter conferido autoridade e

    responsabilidade

    suficientes; porque dentro do fumo que outros espalham que nos

    vamos cegando e

    perdendo; porque at ainda h pouco tempo no havia portugus que

    no fosse, por gosto e

    vontade, comentador poltico, ao menos na sua rua, e isso era bom;

    porque j h demasiado

    silncio em Portugal, e isso bom no , pois no silncio se

    aproveitam uns e acabaro por

    padecer quase todos; porque no pode fazer mal um pouco de

    solenidade numa democracia

    que no tem a coragem de se tomar a srio. E tambm porque se me

    tornou insuportvel a

    parte de silncio que me tem cabido.

    Assim preludiados estes novos apontamentos, por onde comear? Por

    um Partido

    Socialista que faz to pouco caso da Constituio que votou como

    do programa poltico que

    apresentou aos eleitores? Pelo avano duma direita insolente e

    eufrica que de tudo vem

    beneficiando, desde a indeciso do governo at cumplicidades de

    alto coturno? Pelos novos

    senhores do saber velho que pretendem abrir nas escolas o caminho

    da recuperao

    ideolgica burguesa? Por uma poltica de trabalho que serve os

    interesses do patronato

    nacional e internacional e inventa ou favorece conceitos de

    representatividade sindical que

  • tm tanto de ofensivo como de hipcrita? Pela Lei Barreto, com a

    qual se quer segurar

    debaixo da regressada bota do latifundirio, ajudado por outras

    botas, o espezinhado

    trabalhador rural? Por essa nova e vida classe poltica onde no

    faltam os traidores e os

  • oportunistas, empenhados em asfixiar a gente honesta que foi para

    a poltica para servir o

    povo e no para servir-se dele?

    A procisso ainda agora vai na praa, o caminho longo e o tempo

    tem muita

    pacincia. Destas e mais coisas correlativas viremos a falar nas

    prximas semanas.

    Hoje, j que, escritor sendo, por tabela apanho, a guerra outra.

    Uma guerra que

    alguns de ns, nesta inocncia de que no nos curamos, julgvamos

    acabada e enterrada

    para sempre. Uma pobre, triste e lamentvel guerra que vem de um

    equvoco nacional, um

    dos muitos que ho de comprometer, se no lhes for dado remdio, o

    lugar da inteligncia

    neste pas, sobretudo daquela que se esfora e desde sempre se

    esforou por chegar ao que

    chamarei a inteligncia do lugar, o entendimento da terra e do

    povo que somos.

    Entendimento s alcanvel, seria bom que se percebesse, se no

    nos abrigarmos sombra

    da bananeira dos mitos, em nome dos quais h o risco de serem

    postos de conserva e em

    conservao valores de ideologia por natureza provisrios, como

    todos so e a histria dos

    povos, incluindo a nossa, abundantemente prova. Por muito que a

    tentao imobilista

    deseje o contrrio, nenhum valor intocvel. No h

    infalibilidades, no h nenhum modo

    pacfico de impedir as pessoas de refletir sobre o que foram ou

    esto sendo, trajadas elas ou

    no civil, autorizadas elas ou no por qualquer forma de poder.

    Esta guerra (to pouco santa) recrudesceu agora, teve um fogacho,

    lanou uma

    salva. , afinal, a guerra da incompreenso e (por que no dizer

    as palavras todas?) de um

    certo desprezo pela inteligncia e pela cultura. No melhor dos

    casos no se tem sabido

    muito bem o que fazer com uma e outra. Baste o exemplo de lembrar

    como, sem maus

    desgnios, s por inabilidade, foi pouco estimada a inteligncia

    durante o perodo em que a

    revoluo avanou. E agora que a revoluo est como se v,

    ressurgem os ressentimentos,

    os antigos rancores, as contas em aberto, as feridas que o amor-

    prprio no deixa fechar.

    Tudo, j se deixa ver, em nome de valores decretados intocveis e

    que tm muito mais que

  • ver com um esprito de casta sobrevivo do que com um inteligente

    e, portanto, crtico

    sentido das realidades.

    Os intelectuais no tm, claro est, o privilgio da

    inteligncia,mas compete-lhes

    us-la de uma maneira que lhes prpria, tambm necessariamente

    ligada a uns tantos

  • valores de ideologia que seu primeiro dever analisar e pr em

    causa. Esta a diferena,

    ou uma delas. E a guerra, infelizmente, est muito longe do fim.

    No se veja aqui gratuito desrespeito pelas instituies

    militares. Dizer estas

    palavras at sinal de considerao. Saber de armas e de

    balstica, de tcticas e de

    estratgia, de certeza uma excelente coisa. Mas saber ler, saber

    ler-nos, coisa tambm

    excelente e de que o poder militar tiraria algum proveito.

  • Portugal, ou Porto Rico?

    (29 de Julho de 1977)

    Aos que por tudo e por nada deitam as mos cabea e se lastimam

    do mal que as

    coisas correm, aconselharia eu a leitura da Constituio: quer-se

    tnico melhor do que

    aquele primeiro artigo que, solenemente, entre palmas e abraos,

    proclama que Portugal

    uma nao soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na

    vontade popular e

    empenhada na sua transformao numa sociedade sem classes? Mas

    queles que, por

    verdura dos anos ou exuberante florescncia da sade, tendem a ver

    tudo cor-de-rosa, o

    mesmo conselho daria. Ento veramos a que alturas subiriam as

    esperanas dos primeiros,

    veramos como trambulhariam ao rs da terra os exageros dos

    segundos. A panacia, a cura

    universal , afinal, barata, custa na minha edio umas

    pouqussimas dezenas de escudos, e

    bem tolo afinal este povo portugus que no percebe a que

    extremos chega a sua

    felicidade, abenoada por uma Constituio assim.

    Simplesmente, tambm em abundncia no falta quem custa do mesmo

    povo se v

    divertindo, ou se diverso no , ento pior, porque propsito,

    plano e sua fria realizao.

    Olhe-se para este governo que socialista se diz e tem no rtulo,

    obrigado a respeitar

    escrupulosamente a Constituio e tratando-a como mero farrapo de

    papel. Olhe-se para

    a idia e a prtica que o dito governo tem do que seja sociedade

    sem classes e transio

    para o socialismo: repare-se nas leis que os ministros produzem e

    que adequadas maiorias

    parlamentares tm vindo a aprovar, esquerda e direita, segundo

    a antiqssima tctica de

    jogar com os temores mtuos e obedecendo habilidade elementar de

    fazer poltica vista.

    Olhe-se, enfim, para no continuar uma enumerao que seria longa,

    e abandonando por

    hoje essas ninharias que para os senhores governantes so

    socialismo e classes, transio

    para ele e abolio delas, olhe-se no j citado primeiro artigo as

    palavrinhas que afirmam

    ser a Repblica Portuguesa soberana e baseada na dignidade da

    pessoa humana e na

    vontade popular: sorria pois quem tiver vontade de chorar,

    carregue o sobrolho quem tenha

  • o sestro de andar de caninha na gua.

    Sem dvida que foi a vontade popular, tomada em termos

    aritmticos, voto por

    voto, que fez do Partido Socialista (continuemos, para sua

    vergonha, a escrever a palavra

    por extenso) partido de governo e governo: mas contra o povo e,

    portanto, contra a

  • vontade dele (a no ser que os portugueses sejam irremediavelmente

    masoquistas) que o

    governo do Sr. Mrio Soares tem vindo a governar, praticamente

    desde que este celebrado

    socialista se sentou na principal cadeira do conselho de

    ministros. J foi mil vezes escrito,

    j foi mil vezes denunciado que o Partido Socialista est a

    governar contra especificaes

    essenciais da Constituio, e portanto contra o povo que elegeu os

    que a redigiram:

    evitemos, portanto, as repeties. Quando na semana passada falei

    de oportunismo e

    traio, no estava com certeza a pensar no PPD e no CDS,

    coerentssimos partidos que

    sabem to bem o que querem, que at sabem levar o Partido

    Socialista a fazer o que a eles

    convm, cada um na sua altura e segundo o seu interesse. Nisso, o

    Partido Socialista tem

    tima boca.

    Mas onde as coisas atingem o delrio, onde as palavras, coitadas

    delas, so

    magnificamente conspurcadas, quando se fala de dignidade da

    pessoa humana e de

    soberania. As palavras, meu carssimo e nico leitor, so

    infelizes, no podem defender-se

    de quem lhes troca o sentido, de quem no se sente obrigado a

    respeit-las, precisamente

    porque mnimo ou nulo o seu respeito pela pessoa humana. Falar

    em dignidade em

    Portugal, quando todos os dias se aprovam leis contra o povo,

    quando a polcia espanca e

    vem depois esconder a mo, negar que tivesse espancado, quando a

    subservincia se

    instalou nos corredores do poder, comea por ser indignidade e

    acaba por ser perda de

    sentido moral. O nosso pas atravessa uma crise econmica

    gravssima, toda a gente o sabe.

    E tambm vive uma profunda crise moral, mas essa crise, ao

    contrrio do que se quer fazer

    acreditar, no tem os seus mais elevados expoentes nem na droga,

    nem na criminalidade,

    nem na prostituio: paira mais alto e tem piores conseqncias.

    E agora a soberania. Sim, realmente no somos Porto Rico. Tirando

    alguns lugares

    prprios onde naturalmente flutua, drapeja, paira e faz sombra a

    bandeira norte-americana -

    esta a nossa bandeira portuguesa, verde, encarnada, armilada,

    acastelada e, se a tradio

    verdadeira, chagada, que nos cobre a todos, mesmo quando em rigor

    nos no protege.

  • Porm, a poltica nem sempre tem a cor das bandeiras. E toda a

    gente que no quer fechar

    os olhos ao que evidente ou no aceita que lhos fechem, sabe que

    h em Portugal uma

    eminncia parda que segura no poucos fios da vida portuguesa,

    aqueles fios com que se

    tem vindo a tecer, com mos de Washington e Duque de Loul, a rede

    principal que nos

    atou os movimentos libertados no 25 de Abril e no Primeiro de

    Maio. Essa eminncia

  • parda o embaixador Carlucci, o homem mais livre que existe em

    Portugal, se poder

    sinnimo de liberdade, se liberdade isto de dar ordens em

    Portugal como quem as desse

    em Porto Rico. Mas a Constituio continua a dizer que somos uma

    Repblica soberana.

  • O Gosto de Bater

    (5 de Agosto de 1977)

    Irmos, tive um, e morreu cedo. No sobrou tempo, nem a mim nem a

    ele, para

    praticar aquele gosto da agresso fraternal que transforma o mais

    novo em caixa de rufo do

    mais velho, quando no este, precisamente porque mais forte, que

    se guarda de usar os

    msculos e atura com pacincia. Se excetuarmos as saudosas prrias

    de bairro suburbano

    que em alguma coisa contriburam para a minha educao, nada

    aprendi das artes blicas,

    tanto mais que a tropa me veio a rejeitar na hora importantssima

    da inspeo militar, com

    fundamento numa clamorosa falta de proporo entre peso e altura.

    O caso, se bem entendi,

    tinha que ver com um tal ndice de Pignet, ou coisa parecida.

    Porm, paguei pontualmente e

    em paz a taxa, embora com alguns remordimentos de conscincia e o

    despeito de quem se

    viu repelido.

    Quer isto dizer que, no tendo eu feito recruta e havendo antes

    solenemente

    embirrado com a instruo de espingarda e metralhadora que

    pressurosos oficiais me

    pretendiam inculcar durante os ftuos recreios da Mocidade

    Portuguesa, no cheguei a

    acordar e muito menos alimentei aquelas tendncias agressivas que

    nos lugares de parada e

    quartel se espevitam e fomentam. O que, dito fica, no

    incompatvel com o meu grande

    respeito pela instituio: como qualquer burgus sentimental,

    sinto os arrepios da ordem ao

    ver passar tropa, bandeira, terno de cornetins e, nos tempos mais

    modernos, chaimites.

    Posso mesmo acrescentar que lhes devo, tomados em conjunto ou

    isolados, alguns

    momentos de compensadora comoo depois do 25 de Abril. Como

    tantos outros

    portugueses, tambm eu acreditei que em Portugal acontecera o

    grande milagre da histria

    dos povos: a abolio das barreiras entre o povo fardado e o povo

    paisano. Claro est que

    nos enganamos todos. Tudo ento parecia igual, belssima a nossa

    lio ao mundo, e eis que

    hoje por muito felizes nos devemos dar quando os militares

    consentem em ficar-se por um

    paternalismo condescendente, pelo arde quem deixa brincar as

    crianas, ao mesmo tempo

  • que vo reivindicando papis de rbitro que no seguro sejam

    realmente merecidos, ou

    justificveis por razes de mera autoridade.

    Porm, considerando o que se vai vendo, ouvindo e lendo, at o

    paternalismo

    passou histria. Agora, na conversa de um s que a relao

    entre militares e civis, a

  • ameaa tornou-se to fcil como uma ordem de sentido, a promessa

    repressiva to

    desenvolta como uma continncia. Curioso que, perseverantes na

    imemorial tradio que

    sempre viu o poder das armas ao lado de quem detinha as armas do

    poder, represso e

    ameaa sejam dirigidas apenas e sempre contra um sector da

    populao: as classes

    trabalhadoras. Quanto a capitalistas, latifundirios, exploradores

    diversos, gente pelo

    contrrio benquista e conviva de banquetes, benesses, comendas e

    geral concrdia, esses

    esto e sempre estiveram a salvo de coronhadas e mais agresses.

    Fez parte do que pareceu

    milagre ver durante alguns meses o poder militar ao lado do povo,

    tentando compreend-lo,

    tentando compreender-se a si prprio, duas ignorncias postas

    frente a frente procura de

    remdio. Vivemos o milagre, sonhamos, acordamos, e no era dia.

    Noite ainda no ser,

    pois no, mas estas sombras parecem-se muito com o crepsculo da

    tarde.

    Acerca do gosto de bater que ornamenta Polcia e Guarda

    Republicana, no h

    quem duvide. Foram treinadas para isso, condicionadas, manipuladas

    ideologicamente,

    Depois do breve eclipse do 25 de Abril, a esto elas outra vez,

    fresqussimas e sabedoras,

    com mais dio no corao e uma grande vontade de desforra.

    Julgadas pelos seus atos,

    polcia e guarda no servem para muito mais do que isto, ou pelo

    menos nada h que

    paream fazer com tanto gosto. o nosso fado.

    Mas, pelos vistos, uma represso assim no bastava. Terceira fora

    promete agora

    entrar na competio da violncia, armadssima, eficaz,

    operacional. essa fora, se

    tomarmos como boas e ss as recentes declaraes do comandante da

    Regio Militar

    Centro, essa fora, repito, o Exrcito.

    Gravssimas palavras foram ditas, talvez ainda involuntariamente

    paternalistas (se

    admitirmos que os portugueses so todos uns garotos e o brigadeiro

    pai de ns todos), ou

    perigosamente conscientes: Se nos obrigarem a bater, temos mesmo

    de bater, embora

    contrariados. Mas estou convencido que, se bater a primeira vez,

    ou at a segunda vez, no

  • ser preciso chegar terceira. Seremos, quando muito, obrigados a

    faz-lo uma ou duas

    vezes e no mais. Este recado brigadeiral, assim displicente,

    assim sobranceiro, com o seu

    ar contabilizante, para os trabalhadores do Alentejo e do

    Ribatejo, para a Reforma

    Agrria.

  • Leio e no acredito. Espero um desmentido, e ele no vem. Aguardo

    um toque de

    bom senso, um sinal de inteligncia, e o silncio que sempre

    precedeu as cargas da

    brigada ligeira. Este pas, oua quem tiver ouvidos, est

    assombrado por uma gigantesca

    palmatria, uma nacional menina-de-cinco-olhos, suspensa sobre

    cabeas que querem

    pensar, sobre mos que querem trabalhar. Bater uma vez? Duas

    vezes? Quem sabe se trs

    sero suficientes. Ou trinta. Ou trezentas.

    Ao menos, o meu irmo no me bateu. Nem eu a ele.

  • A Verdade e a Mentira

    (12 de Agosto de 1977)

    Isto de liberdade de expresso tem muito que se lhe diga. No

    antigamente fascista,

    quando no venerveis mas graduados ancios nos liam a prosa, e de

    lpis azul e carimbo

    esfacelavam as idias, a nossa grande satisfao acontecia se, por

    distrao do veterano de

    servio ou sua menor inteligncia, o recado passava, meio nas

    entrelinhas, meio no

    intervalo das letras, quantas vezes acordando depois frias na

    hierarquia. Ento tnhamos a

    inocncia de acreditar que, chegando o dia em que a mordaa

    casse, a reencontrada fora

    da verdade bastaria para tirar aos futuros senhores a tentao do

    abuso de poder, e, melhor

    ainda, os acautelaria no simples uso dele. Hoje j sabemos muito.

    Aprendemos, por

    exemplo, que a democracia burguesa a mais hbil forma de

    esvaziar, na prtica, a

    liberdade de imprensa: conserva-lhe a aparncia e anula-lhe os

    efeitos. Veja-se como o

    regime absorve, digere e neutraliza impavidamente quantas

    acusaes lhe faam, quantas

    denncias de conciliao, quantas desistncias, quantas servides.

    Veja-se como, sendo

    possvel dizer que o rei vai nu, diz-lo no chega para que o rei

    se tape ou tenha a simples

    decncia de pedir desculpa. Veja-se, enfim, como no faltando em

    Portugal os Watergates,

    o poder os vai ocultando aos nossos olhos, no por obra da censura

    que no h, mas do

    impudor que prolifera.

    A poltica portuguesa realmente original. Uma cadeira no poder

    quanto basta

    para irresponsabilizar quem l se senta, um servio prestado

    logo retribudo com

    padrinhos e protees. A imprensa protesta (aquela que no perdeu

    a vergonha, aquela que,

    pelo contrrio, a declara), e de que serve? O poder, se est de

    boa mar, encolhe os ombros;

    caso no, dispara a nota oficiosa, o inqurito, o improprio, e

    pe os seus serventurios da

    comunicao social em linha de trombones para abafar a pequena

    guitarra que se atreveu a

    perturbar o grande silncio do jogo de dados que hoje o

    exerccio do poder em Portugal.

    Jogo em que so os portugueses a massa do negcio, o rebanho a

    esfolar.

  • Tem muito que se lhe diga a liberdade de expresso. Por exemplo:

    vamos imaginar

    que eu penso escrever aqui que o secretrio -geral do PS

    mentiroso. Vamos mesmo mais

    longe: vamos supor que j o escrevi. Que poder acontecer-me?

    Serei preso? Serei julgado?

    Terei de enfrentar a polcia de choque? Vo cercar-me como se eu

    fosse uma unidade

  • coletiva de produo? Cortam-me a gua e a luz? Ameaam-me pelo

    telefone? E se eu

    apresentar testemunhas, milhares de testemunhas presenciais, se eu

    juntar ao processo

    fotografias de todos os ngulos e distncias? Absolve-me o juiz?

    Condecora-me o governo?

    Faz-me continncia a tropa? Ou, ao contrrio de tudo isto, chamar

    mentiroso ao secretrio-

    geral do PS ousadia to pequena como afirmar que ele penteia o

    cabelo para trs? Pois

    verdade: o secretrio-geral do PS isso mesmo que eu pensava

    escrever e escrevi, no uso

    da liberdade de expresso de que gozo e sujeitando-me s

    conseqncias que a lei de

    Imprensa prometa para estes casos. Porque, no podendo haver duas

    verdades

    contraditrias entre si, no sendo possvel que uma coisa seja e

    ao mesmo tempo no, ou as

    testemunhas me confirmam e o Sr. Mrio Soares dever pedir

    desculpa por ter mentido em

    pblico com fins partidrios, ou ter de reconhecer que lhe

    indiferente: a) dizer a verdade

    ou mentir; b) a opinio que o povo tenha de um primeiro- ministro

    que, na melhor das

    hipteses, se no mente de caso pensado, incapaz de medir as

    palavras que lhe saem pela

    boca fora, nisso se mostrando bom continuador do almirante

    Pinheiro de Azevedo.

    A verdade, senhor secretrio-geral, que o Pavilho se encheu sem

    dificuldades.

    Por duas razes principais: primeiro, porque no assim to

    difcil; segundo, porque os

    militantes e simpatizantes do Partido Comunista so uma gente

    endiabrada que vai a todas e

    que acredita nos seus dirigentes, muito mais quando tomam decises

    de to meridiana

    clareza e de to insofismvel oportunidade. Aquela direo, a quem

    uma sumidade j

    classificou de aterosclertica, tem um excelente crebro. gente

    de muito saber e

    experincia, com quem se pode por vezes no estar de acordo, mas

    que respeita o programa

    poltico do Partido e a meta da sua existncia. Quem me dera dizer

    o mesmo dos actuais

    dirigentes do PS, esse grupo apoplctico de caciques provisrios,

    gente de to pouco futuro

    poltico que j se v o fim do seu tempo, depois de terem adiado

    ( a sua responsabilidade

    histrica) as esperanas de socialismo em Portugal.

  • Afinal, nem sequer a verdade revolucionria. Acabo de escrever a

    bvia verdade

    de que o secretrio-geral do PS mentiu, e onde est a revoluo?

    Onde est a revoluo,

    quando verdade que o governo constitucional desrespeita a

    Constituio? Onde est a

    revoluo, quando verdade que num juramento de bandeira um

    oficial foi impedido de ler

    artigos da Constituio? Onde est a revoluo, quando verdade

    que a Assemblia vota

    leis inconstitucionais, que no encontram reservas na apreciao e

    na promulgao? Onde

  • est a revoluo deste pas quando os governantes obedecem no

    Constituio que temos,

    mas quela cujo terreno ajudam a preparar?

    Enfim, h compensaes. Perde valor a moeda? Isso que importncia

    tem? Est a o

    impudor, que agora a moeda forte portuguesa.

  • A Mo do Finado

    (19 de Agosto de 1977)

    Levantar o brao e fechar o punho, pode ser um gesto de ameaa.

    No falta a quem

    desta nica maneira o veja e entenda, sobretudo quando so

    floresta os punhos levantados,

    quando certas palavras de ordem os movem, quando sobre as cabeas

    se apertam os ns

    duma vontade comum. Os tmidos, os assustadios, mas muito mais os

    que em tudo

    comandam imperativos de egosmo pessoal e de classe, vem no gesto

    a promessa de um

    juzo final, de um cataclismo, de um terremoto de 1977. Enganam-se

    os assustadios e os

    tmidos: um punho fechado no pode tanto, apenas sinal de mtuo

    reconhecimento,

    expresso de uma unidade, forma de jurar um compromisso. Quanto

    aos outros, reagem ao

    estmulo por uma espcie de reflexo condicionado que literalmente

    os lana na salivao do

    dio. lstima chegar-se a um tal ponto, no s de manipulao

    das conscincias dos

    primeiros, mas tambm de automistificao dos segundos.

    Porm, importa fazer desde j uma ressalva. Gestos como estes, de

    sinal ou festa

    coletiva, no esto livres de transformaes do seu sentido, de

    completas inverses. Basta

    recordar que a saudao nazifascista, de brao estendido e mo

    aberta, com a palma para

    baixo, a ver se chove, foi nos tempos romanos a saudao dos

    escravos. E os dedos postos

    em V, herana churchiliana que o PPD aprovou em sinal partidrio

    exclusivo, s no do

    vontade de rir porque a vitria, nestes dias, anda realmente

    comprometida com a direita, e

    as coisas srias no so para brincar. Sem contar que o prprio

    PPD j vai desleixando o

    gesto, e estende a pgina branca em que, com os parceiros da

    direita e da esquerda, se

    definir o novo sinal grfico da servido que para os portugueses

    se prepara.

    Est em curso a grande barrela. Gente paisana e militar, que

    durante meses basofiou

    de revolucionarssima, anda hoje a regenerar-se discretamente,

    apostando na fraca memria

    dos povos e na geral fragilidade dos telhados de vidro. Rasgam-se

    promessas de fidelidade

  • e pergaminhos mais ou menos honrosos de servios prestados.

    Acertam-se faturas,

    combinam-se cotaes, regulamenta-se a traficncia - em cima das

    costas do povo, no

    lombo do povo, joga-se a banca francesa, a roleta, o pquer. A

    canastra vir mais tarde,

    quando as novas senhoras comearem a receber a visita das senhoras

    velhas.

  • Assim sendo, por que no haveria o Partido Socialista, no rasto do

    seu homlogo

    francs, de pensar meter uma rpida rosa na mozinha do seu

    emblema? O que conta o

    disfarce, e agora tornou-se urgente. Depois de se fazer grotesca

    distino entre mo

    esquerda e mo direita, vai a esquerda mascarar-se de rosa, para

    num terceiro tempo ficar

    apenas a flor, enquanto, envergonhada, a mo se esconder no

    bolso. Amanh, os dirigentes

    do PS alinharo, ao lado doutros seus pecados de juventude, este

    outro a que levaram uma

    boa parte do pas, contribuindo com a sua quota de logro para que

    milhes de portugueses

    andassem por ai de punho levantado, a querer fazer revolues.

    Estas coisas no acontecem por acaso. Rasgado o programa, trados

    os

    compromissos assumidos boca das urnas perante o povo portugus,

    que andava ali a fazer

    aquela mo crispada, aquele punho de trabalhador? Venha pois a

    florzinha, a rosa-ch, o

    amor-perfeito - e por que no o trevo de quatro folhas como

    smbolo da sorte que o povo

    teve quando, ensinado a temer o comunismo do PC, lhe puseram

    diante o socialismo do PS,

    sob a paternal bno do MFA, enquanto ao fundo,

    disciplinadamente, as Foras Armadas

    inteiras batiam a pala? Agora s falta ouvir as razes que o PS

    dar quando renunciar ao

    smbolo. Dir talvez que um punho assim fechado assustava as

    pessoas pacficas, que os

    tempos so de concrdia, no so de revoluo, que a rosa que

    sim, muito melhor do que

    o cravo, cujo apenas tem vinte ptalas, quando a rosa tem vinte e

    uma, e que portanto flor

    h s uma, a rosa e mais nenhuma. E os seus poetas cantaro a

    rosa, e este Portugal, que j

    era jardim beira-mar plantado, ser roseiral e jardim infantil.

    O punho cerrado do PS fica

    na simples memria das recordaes, algumas vezes espinho fundo a

    picar conscincias

    adormecidas ou acordadamente ocupadas na contabilizao dos seus

    ganhos e das nossas

    perdas.

    Tornou-se hoje claro que aquela mo naquela bandeira era um

    equvoco. Ou talvez

    um pressentimento. Mo cortada, mo decepada, com o seu jeito

    catalptico ou de troo

    embalsamado, mo de finado que acompanha o seu prprio enterro ei-

    la em vsperas de ser

  • atirada para o caixote do lixo da Histria, ao som da ria Europa

    connosco em ritmo de

    Stars and Stripes. Na grosseira encenao que o Partido

    Socialista montou em Portugal,

    este no o nmero mais trgico, mas d a chave de muita coisa s

    vezes difcil de

    entender.

  • Estamos no tempo das facturas, mas tambm estamos no tempo das

    clarificaes. O

    PS avana, de cabea baixa e bandeira de rastos, para o lugar de

    convergncia onde se far

    a sua execuo. Vai passar pela grande provao da sua ainda to

    curta existncia, ele que

    j se gabou falsamente de centenrio. Morrer? Ter de morrer, ou

    no viver.

    Morreu o Partido Socialista! Viva o Partido Socialista! Mas onde

    est esse de que o

    Socialismo precisa?

  • Furtiva Lgrima

    (26 de Agosto de 1977)

    Um homem um homem, e no consta que um primeiro-ministro seja um

    bicho. E

    se verdade que vrias geraes de barba dura criaram e

    prolongaram o mito de que os

    homens no choram, parceira verdade que os vares portugueses,

    quando se lhes aflora a

    corda sensvel, lagrimejam como qualquer herona de fotonovela ou

    soluam

    profundamente como um heri camiliano. Fraquezas assim atacam-nos,

    no geral, entre

    quatro paredes, sem testemunhas, ou no outras alm das que

    meream o privilgio. Posto o

    que o leno ou as costas da mo apagam os vestgios, e a vida

    continua.

    O pior quando a objetiva fotogrfica ou a cmara de filmar fixam

    o instante,

    registram a seqncia: a fica um primeiro-ministro desarmado, com

    o papel a tremer-lhe na

    mo, os culos a escorregar para a ponta de um nariz que

    subitamente se congestiona,

    enquanto l em cima os olhos procuram uma fresta na pelcula da

    lgrima, os msculos se

    contraem para reter a comoo que ameaa desmanchar a fatigada

    composio do rosto, e a

    voz enrouquece e tem de suspender-se e dominar-se para que dois

    milhes de

    telespectadores no vejam um primeiro-ministro a chorar. Assim eu

    vi o Sr. Mrio Soares

    h oito dias na televiso, quando era mostrada a entrega da casa

    de Manuel Mendes ao

    Estado, e uma parte (oh, to pequena!) da intelectualidade

    portuguesa fazia cortejo e

    cercadura. Nesse momento, apesar de saber inconciliveis aquilo

    que penso e aquilo que o

    primeiro-ministro faz, no pude eu deixar de enternecer-me. Ali

    estava um homem aflito, a

    tropear na lgrima, a tentar disfar-la como um menino, e eu a

    olhar, respeitosamente a

    olhar, e depois a pensar como que a esquerda deste pas chegou a

    isto, a procurar

    descobrir as culpas e a desesperar das solues. Ponto este sobre

    que no vale a pena falar:

    o governo socialista vai to longe no seu mercadejar e na sua

    alienao, que o melhor no

    lhe mexer muito agora, no venha a a nusea.

  • Mas o diabo da imagem perturba-me, confunde esta minha ira

    semanria, esta

    indignao. Est ali a imagem do Sr. Mrio Soares, primeiro-

    ministro por obra de votos que

    foram muitos e agora so muito menos, est ali um homem a recordar

    outro homem e a

    comover-se com isso, s porque o homem recordado foi um

    antifascista, um lutador, um

  • democrata. E tambm um escritor, um homem da cultura. At parece

    que Portugal de

    repente se reencontrou.

    Porm, que lgrimas reprimidas so essas? Mera fadiga nervosa?

    Sensibilidade

    fragilizada pelas tenses polticas, pelos acidentes da

    convergncia, pelas negociaes com

    o Fundo Monetrio Internacional? Manejo poltico muito a frio para

    envolver os ossos de

    Manuel Mendes no regao de um partido um pouco deserdado de

    intelectuais vivos? Ou,

    pelo contrrio, emoo real, sentidssima, de amigo? Decida quem

    puder, A mim s me

    cumpre refletir sobre o acaso ou a fraqueza que fez comover-se o

    Sr. Mrio Soares naquele

    momento, naquele lugar, ele to prtico, ele to estadista

    internacional, ele, enfim, to certo

    do seu lugar na Histria. Porque isso me d pretexto para o

    convidar, se e enquanto tiver

    tempo para isso, a virar um pouco os seus agora nublados olhos c

    para os lados onde se

    extenuam e j se vo extinguindo os artistas e os escritores desta

    terra, mal empregados e

    mal empregues, to desdenhados como no tempo do fascismo, to mal

    queridos como

    Manuel Mendes foi para os senhores que ento governavam. Deste

    lado de c ( em meu

    nome que falo agora) admite-se a sinceridade da comoo, mas h

    razo para suspeitar do

    que ela realmente cobre.

    Este governo tem uma secretaria de Estado da Cultura, dependente

    da presidncia

    do Conselho de Ministros, unha com carne, plano e prtica, flor e

    fruto. Que faz, porm,

    essa secretaria, essa presidncia, esse conselho, esse ministrio

    todo? Pela cultura, que se

    aproveite, nada. Inaugura um museu do trajo, vai Venezuela,

    corta subsdios, quebra a

    espinha ao teatro independente, ri-se do teatro amador, no d um

    suspiro sobre os

    problemas gravssimos do livro portugus, ignora as traficncias

    do papel e da pasta com

    que ele se faz ou que vem a render, despreza a imprensa

    progressista, promete os mundos e

    subtrai os fundos, repete, enfim, ponto por ponto, a costura

    cultural do marcelismo.

    Assim sendo (porque assim ) de que serve receber o primeiro-

    ministro a casa que

  • foi de Manuel Mendes, comover-se ao ler palavras que provavelmente

    no ter escrito - se

    a cultura viva, que neste Pas retoma o caminho das antigas e

    sabidas penas, lhe estranha,

    alheia, tratada como inimiga? De que serve ter ficado eu prprio

    impressionado, quase a

    reconciliar-me com a imagem (s a imagem) do primeiro-ministro se

    tudo isso , afinal,

  • dramaturgia poltica sem conseqncias, modos de levar o caldo da

    cultura ao moinho da

    secretaria, fantasias de telejornal em que o mais certo s eu

    ter reparado?

    E, alm disso, se o Sr. Mrio Soares j perdeu tantos amigos, tem

    a certeza de que o

    fala-direito que foi Manuel Mendes lhe estenderia hoje a mo?

  • Constituio e Palavra de Honra

    (1o de Setembro de 1977)

    Ns, portugueses, de constituies sabiamos pouco. Atiraram-nos

    com a de 1933

    cabea, e por quarenta anos vivemos literalmente debaixo dela, por

    fim to alheados que

    era duvidoso ter o cidado corrente uma idia medianamente clara

    sobre o que Constituio

    era e para que servia. Sabiamos pouco, e hoje no seguro que

    saibamos muito mais.

    certo que a imprensa progressista faz da Constituio de agora o

    seu cavalo-de-batalha, vai

    com ela s lutas que pode, convoca e mobiliza leitores, gasta

    papel e tinta, insistindo,

    desesperando. Porm, sem efeitos: a mais avanada constituio

    deste lado da Europa,

    nosso orgulho e bandeira, vai sofrendo o destino de tantas outras

    grandes idias: fica a

    palavra que a diz, e o resto quase nada. Muita da mala-arte

    poltica consiste na utilizao de

    palavras que foram esvaziadas do seu sentido original: com papas,

    bolos e palavras dessas

    que se vo enganando os tolos na sua inocncia e o geral das

    pessoas na sua boa-f.

    E, contudo, no nos faltam autoridades e instituies cujo

    primeirssimo dever

    justamente defender a Constituio. Tantas so, em to diversos

    pontos da escala se

    arrumam, que se diria impossvel o menor atentado, a menor falta

    de respeito, a mais

    insignificante beliscadela. Desde as Foras Armadas ao presidente

    da Repblica, passando

    pela Administrao Pblica, pelos Tribunais, pelo Governo, pela

    Comisso Constitucional,

    pela Assemblia da Repblica e pelo Conselho da Revoluo, no

    faltam no papel e na letra

    dele defensores e promotores do acatamento constitucional. De tal

    maneira que os outros

    portugueses, assim protegidos, e sabendo proteger-se, poderiam,

    sem piores cuidados, tratar

    da vida, porque estariam alerta os basties da defesa dos direitos

    e liberdades. Sonhar to

    fcil que s precisa que nos deitemos a dormir.

    C no meu fraco entender, melhor seria acordarmos, porque isto, se

    alguma vez foi

    sonho, hoje pesadelo. Melindroso o tema, no haja dvida. Vai-

    se de degrau em degrau,

  • do fcil para o difcil, e em dada altura no se pode evitar a

    vertigem: Vou dizer? No vou

    dizer? Pergunto? No pergunto? E esta perplexidade mostra-me a

    fora coerciva que o

    poder tem, mesmo quando no exerce, mesmo quando se limita a estar

    a, na solenidade da

    funo, na distncia que nunca se anula, mesmo, ou sobretudo,

    quando condescende: a

    realeza no se extinguiu com as monarquias.

  • Acordemos, ento, e ponhamos o dedo na ferida que di. Se pedra

    fossem

    chamadas, uma por uma as instituies citadas responderiam que a

    Constituio a menina

    dos seus olhos, vivem para ela, no pensam noutra coisa. Ser,

    porm, assim? Cumprem

    sempre os Tribunais e a Administrao Pblica a Constituio?

    Esto a os fatos para dar a

    resposta: julgamentos inquos, abusos de autoridade, agresses. E

    o governo? Este governo

    , simultaneamente, constitucional (pela via da eleio que o ps

    no poder) e anti-

    Constituio (por obra do que contra o que nela se consigna tem

    feito).

    Quanto Assemblia da Repblica, o menos que se dir que ali se

    tm cozinhado

    maiorias parlamentares que, na filosofia e na prtica, parecem

    observar, ou j um texto

    constitucional diferente, ou uma inteno dele para experimentar

    foras. Aqui haveria de

    valer-nos a Comisso Constitucional, mas no vale, to benvola e

    boa senhora se tem

    mostrado com os atropelos perpetrados pelo governo e pela

    Assemblia. H, pelo que se v,

    dois entendimentos do que seja cumprir e respeitar a Constituio:

    impor o seu estrito

    respeito, ou contentar-se com a manuteno das frmulas.

    E agora, que vem a seguir? Vem o Conselho da Revoluo, vem o

    presidente da

    Repblica. O Conselho da Revoluo aquele rgo militar, ou

    constitudo por militares,

    que transporta o seu nome de batismo desde que nasceu, ao sabor

    dos seus e dos nossos

    altos e baixos, de no poucas vicissitudes e inverses de marcha,

    sempre com o nome de

    revoluo, mas no necessariamente a mesma. Tem o Conselho

    (funes de garante do

    cumprimento da Constituio), frmula excelente que no difere da

    declarao do

    presidente da Repblica quando jura defender e fazer cumprir a

    Constituio da Repblica

    Portuguesa. Se as palavras obrigam, estas obrigam tanto que se

    diria absurda esta geral

    inquietao (e em muitos casos inquietao nenhuma, antes

    reacionria contentamento) de

    ver todos os dias a Constituio ludibriada, escamoteada, e sempre

    de igual maneira e com

    igual objetivo: liquidar a grande libertao do 25 de Abril,

    empurrar o povo (por jeito e

  • fora) para um regime democrtico e orgnico assaz para reservar o

    governo aos polticos e

    o trabalho aos trabalhadores, isto , cada um no seu lugar, no

    lugar que convier a quem de

    lugares julga poder decidir para sempre.

    Temos uma Constituio que aponta para o socialismo, no falta

    quem haja ofcio e

    benefcio de a cumprir e fazer respeitar. Ento, por que no ela

    escrupulosamente

  • respeitada e cumprida? Que foras so essas que paralisam a

    vontade daqueles cujo

    primeiro dever comparar as leis com a Constituio e rejeit-las

    quando Constituio

    no obedeam?

    So perguntas que eu fao. A resposta esperam-na aqueles para quem

    a Constituio

    to importante como a palavra de honra. Pelo menos.

  • Recado para Joo Basuga

    (8 de Setembro de 1977)

    Se o tempo no fosse isto que , talvez em lugar de recado te

    escrevesse uma carta

    aberta. Era o que dantes se usava, um fingimento de tratar

    assuntos privados na praa

    pblica, quando, pelo contrrio, nem eram privados os assuntos nem

    mais o eram os

    destinatrios do que a pequena conta j de antemo conhecida.

    Agora, a carta aberta outra

    coisa, usa maisculas e vai mesa do rei, quero eu dizer que vai

    aos gabinetes dos

    ministros, sempre aberta e, salvo seja, cada vez mais descomposta.

    V l se eu ia cair em

    confuses, pr um ttulo, por exemplo, Carta Aberta para Joo

    Basuga, como se tu tal

    carta quisesses ou eu me atrevesse a sup-lo. Mais certo era ter

    eu perdido o juzo do que tu

    teres mudado em tuas opinies. Por estes motivos que o recado

    recado mesmo, como

    em portugus se diz e se usa comunicar entre amigos.

    Amigos somos, Joo Basuga, amigos de uma amizade que certa gente

    em Portugal

    tudo fez para que no existisse nunca: a amizade que, com uma

    simplicidade que a essa

    mesma

    gente tira o sono, liga o intelectual e o trabalhador, o escritor

    que em Lisboa vive e o

    operrio agrcola nascido, criado e amargado no Alentejo, o eu que

    ns somos aqui, o tu

    multiplicado em rostos de homens e de mulheres, firmeza vossa e

    nossa aprendizagem.

    Durante quase dois meses me sentei tua mesa, comi do que tu

    comias, o po e a azeitona,

    o peixe do rio, o porco, a acorda e as migas. Falamos muito, mas

    no tudo, porque dois

    meses quase nada e incrivelmente longa a histria dos vossos

    trabalhos. Contigo, com a

    Mariana Amlia tua mulher, com os teus filhos, aprendi ou

    confirmei duas ou trs coisas

    fundamentais: o parentesco essencial de quem no tem laos comuns

    de sangue, e tambm

    que na partilha da inteligncia nem sempre o melhor quinho cabe

    aos que tm ofcio de

    utiliz-la o dessa utilizao tiram proveito: debaixo do teu teto

    vivem alguns dos espritos

  • mais agudos que alguma vez conheci.

    Porm, no posso esquecer que este recado para ser lido por

    outras pessoas. E se

    quanto ficou escrito era necessrio para que ficassem a conhecer-

    te um pouco aqueles que

  • no jornal me lem, importa que falemos agora de outras matrias.

    Aqui, na cidade, a Lei

    Barreto desanimou muitos de ns, mas hoje, decorridas essas

    semanas, podemos dizer que

    tnhamos razo e ao mesmo tempo no a tnhamos. Razo, porque tal

    lei uma iniqidade,

    e a nossa estpida confiana se recusava a acreditar que

    desvergonhas assim ainda fossem

    possveis num pas que fez uma revoluo, provou a liberdade,

    avanou uma constituio.

    Sem razo, porque provavelmente havamos esquecido, ou alguns no

    o sabiam sequer, a

    rijeza de pedra que sois, que partir poder, mas amolecer no. E

    porque no nos lembramos

    desta verdade que se mete pelos olhos dentro: a terra que o

    governo quer esquartejar e

    tornar a dar est a, no pode ser trazida ao Terreiro do Pao ou

    a S. Bento para ser

    submetida a trabalhos de alfaiate que rouba na fazenda; e se a

    terra est a e da no pode

    sair, so vossos os ps que caminham nela, so vossas as mos que

    a trabalham, so dos

    vossos pais e avs os ossos que esto debaixo dessa terra, depois

    de terem trabalhado e

    sofrido o que os filhos ainda hoje trabalham, mas, sofrido, basta.

    Ora, tendo com mais

    calma assim pensado, logo vimos que diminua o nosso desnimo na

    proporo da vossa

    serenidade, e que era outra lio que da recebamos. E agora que

    a violncia regressou ao

    Alentejo, no por vossa mo, mas pelas armas de quem to mau uso

    delas faz, viu-se que

    no possvel esperar de vs qualquer forma de traio ou de

    subservincia. A esta hora, h

    gente que nesta terra deita contas vida, ao ver que os tiros

    esto a sair pela culatra, que

    no basta fazer leis para que as leis sejam, e que a histria

    nestes ltimos anos portugueses

    andou mais depressa do que os polticos julgavam faz-la.

    Por minha parte, mesmo que a situao mais se agrave, estou

    sereno. Estarei sereno

    pelo tempo da vossa serenidade, promessa que fao, e quando

    breve a voltar, falarei

    contigo, Joo Basuga, e com os amigos, sobre estas coisas que vo

    acontecendo. E

    certamente no deixaremos de comentar um episdio que a mim me tem

    feito espcie: vai

    tu pensando nele e enquanto arrancas a cortia do sobreiro, entre

    dois golpes de machado,

    na pausa do almoo, na hora de pensar.

  • De certeza deste f de que o presidente da Repblica no se tem

    poupado viagem:

    ele no Norte, ele no Centro, ele nas Ilhas, por toda a parte

    visto, sisudo, grave como

    convm ao seu modo de encarar a funo e lhe est no feitio. Todos

    andvamos

    preocupados com o abandono a que o Alentejo estava votado nisto de

    visitas presidenciais,

    e eis que num repente a visita se fez: no ir, foi. Mas v l tu,

    Joo Basuga, que, em terra

  • to cheia de homens, o presidente da Repblica apenas foi descer a

    Alter do Cho para ver

    os cavalos e o resto sobrevoou.

    No sei se viste passar o helicptero e se adivinhaste quem l ia.

    Nem sei se deves

    ter pena de no ter visto o presidente da Repblica: afinal, ele

    quem mais perde por no te

    conhecer a ti.

  • Pas Real, Real Pas

    (22 de Setembro de 1977)

    A paisagem poltica portuguesa deprimente. No vivo em S. Bento

    nem em

    Belm, no sou deputado ou ministro, nem casa civil ou militar:

    estou portanto fisicamente

    impedido de saber, desses altos pontos e postos, como se vem a si

    prprios os habitantes.

    Imagino que andam contentes, que dormem bem, que no perderam o

    apetite, adivinho que

    cada um deles, na hora do espelho, sorri complacente para a imagem

    fardada ou paisana

    que lhe sorri, e que, na mesma e noutras horas, julga mais do que

    merecido o seu destino ou

    a parte dele que por agora o lisonjeia. Os homens polticos (e

    isto vai dito sem malcia ou

    presuno) costumam ser duma fatuidade sem limites: tomam por

    justia imanente o que

    acidente fortuito ou fruto de intriga de gabinete, crem slido o

    que est em vsperas de

    cair, e, sobretudo, aprendem depressa o mau hbito de ter razo

    sempre, se que no se

    limitam a herd-lo como atributo corriqueiro do poder. So animais

    interessantes, de

    catlogo: dizem, escrevem, proclamam, variando pouqussimo, cheios

    de medo de que os

    no tomem a srio, que o sinal mais certo da mediocridade. Com

    perdo de quem do

    teatro fez amor e profisso, o poltico corrente como um ator

    mascarado de ator, com

    todos os remendos vista, salta-pocinhas de ministrio e rbula

    cmica. Como no haveria

    de ser deprimente esta paisagem, esta comdia, este desgosto?

    Nos trs anos e meio decorridos desde o 25 de Abril aprendemos

    estas e outras

    elementaridades. Aprendemos, por exemplo, que uns queimaram os

    dedos, mas que as

    castanhas as comem os outros. Aprendemos a reconhecer em alguns

    sorrisos e gravidades

    da democracia nova os traos recompostos do fascismo velho.

    Aprendemos que as boas

    constituies fazem ainda melhores vtimas quando os conceitos da

    constitucionalidade e

    inconstitucionalidade so pau para toda a obra, sobretudo

    clandestina. Aprendemos a srio

    o que o Ea j tinha avisado a sorrir: que os Raposes no

    triunfam sem uma descarada

    coragem de afirmar, e estas raposas tm-na toda. E aprendemos,

    tambm, uma dolorosa

  • evidncia: que afinal no prestam para nada muitos dos homens que

    foram esperana do

    povo no tempo do fascismo. Essa foi a grande derrota portuguesa.

    Significa isto que o ganhar ou o perder nacional haveriam de ser

    obra de pessoal

    poltico e ningum mais? No significa tal. Mas significa que

    muitas vezes os povos

  • perdem nos corredores do poder aquilo que ganharam luz do dia em

    revolues e

    trabalho. Significa que isso se v hoje em Portugal: uma ou duas

    centenas de polticos

    gozam a vida e afagam a sua pequena glria em cima do cansado

    lombo portugus, lugar

    excelente para cavalarias que j de longe vm. Que Carneiros e

    Amarais cultivem de gosto

    esse desporto, est-lhes na educao e na massa do sangue. Outros,

    s por traio.

    Anda agora muito na boca dos polticos o pas real. Os polticos

    tm destas

    habilidades: substituem o que no compreendem pelo que apenas

    repetem. E como aquilo

    que muito se repete, fora que se decore, no raro que fale

    fluente quem daquilo que diz

    pouco sabe. Introduz-se no discurso psitcico a frmula pas

    real e espera-se que

    acreditemos na sabena do orador, na compreenso mstica da vida

    do povo, fenmeno

    osmtico e simblico aqui nado e criado para o bem geral, com

    absoluta inveja das naes.

    Ora, o dito apenas cantiga, ria de pera, toada para adormecer.

    Na boca desses senhores,

    o pas real uma gazua, e nada mais. Invariavelmente

    demaggica. Se o povo votou com

    generosidade e segundo a convenincia, por isso mesmo pais

    real, mas, se est contra,

    se protesta, inventa-se rapidamente um pas real novo, de sinal

    contrrio, agora sim cofre

    de virtudes, de vocao sacrificial. Neste estilo poltico, o

    pas real no vale muito mais

    do que a maioria silenciosa. O resto so truques de linguagem.

    Est a o povo portugus. Chamem-lhe o que quiserem de bom ou de

    mau consoante

    os humores, mandem-no emigrar ( dispora!) e transferir dinheiro,

    ponham-no a formar

    alas, a bater palmas e a impelir criancinhas com flores frente e

    beijo ensinado, faam-no

    pagar impostos e ver televiso. Digam-lhe que o pas real,

    lisonjeiem-no quando

    precisarem de votos para as urnas eleitorais, agora que j as

    urnas africanas o no

    requerem. Ele far tudo isso. Foi habituado desde sempre a algumas

    coisas destas, outras

    aprendeu depressa durante o tempo da sua confiana.

    Mas de nojo o tempo que vivemos hoje, grave sinal este,

    senhores da governana

  • de S. Bento ou de Belm. Uma coisa a crise, outra coisa o

    nojo; uma coisa a vida cara,

    outra coisa a repugnncia do povo por quem fez do ludbrio a

    grande arma poltica. E eu

    no sei tudo, longe disso, no tenho helicpteros nem automveis

    s ordens para percorrer

    os montes e as plancies. Mas pasmo diante da cegueira j

    incurvel de quem manda: para

    um povo em mudana no servem polticas paralisantes nem polticos

    de passo curto. Este

  • pas real est, por seu p, a transformar-se num real pas que

    aprende, na experincia,

    como se fazem, para que servem e a quem servem os polticos da

    hora. E quando deixam de

    servir.

  • Vou Amotinar-me

    (29 de Setembro de 1977)

    Ttulos como este, tm o pior dos defeitos: dizem logo tudo, e

    avisam as

    autoridades, precisamente o que nesta altura menos me conviria.

    Porm, no se me deve

    censurar o excesso de franqueza: vivemos num pas tolerantssimo,

    o mais de liberdade que

    possvel, e, sendo assim, no me ficaria bem estar com arcas

    encoiradas, a esconder um

    projeto que nem sequer traz novidade merecedora de patente. Quanto

    s autoridades, estou

    que no daro por este escrito: umas andam pelo Alentejo a sovar

    alegremente os

    trabalhadores, com apoio areo e canino; outras, remansosas, param

    solenes diante dos

    automveis mal estacionados, e em canhenhos adrede registram a

    matrcula para a multa,

    embora sejam tambm muito senhoras de seus bastes eltricos,

    viseiras, elmos e cargas a

    matar. Vai a vida de tal maneira que comea a ser tempo de abrirem

    os jornais, ao lado da

    pr-histrica seco dos acidentes de viao, uma outra,

    modernssima, para a qual, j que

    estou com a palavra, posso dar eu o ttulo: acidentes de

    represso. Pelo andar da carruagem,

    podemos apostar que em pouco tempo os acidentes na estrada faro

    triste figura ao lado da

    nova rubrica. Ser uma originalidade do processo.

    Que tem outras. Uma delas o direito a conferncia de imprensa de

    que passaram a

    usufruir os amotinados. uma grande conquista. J se pensou o que

    ser amanh (admita-

    se esta singela extrapolao) amotinarem-se os doentes nos

    hospitais e reclamarem

    conferncia de imprensa para dizerem, por palavras suas, que vida

    e que morte tm? E as

    crianas asiladas, se resolvem amotinar-se? E os reformados, com

    mais re-fome do que re-

    forma? Tantas conferncias de imprensa quantos os motins, tudo a

    amotinar-se e a dar

    notcias, e os rgos de comunicao social, ali, atentos e de

    vontade, bebendo as palavras

    do doente mais perdido, da criana mais torturada, do reformado

    mais msero.

    Por mim, o que vou exigir. Tenho tudo combinado e garantido:

    armas recebidas

  • do exterior, contatos via telefone e via rdio assegurados, e,

    mais importante do que tudo

    isto, a conivncia do meu vizinho. Garanti-lhe que no havia

    perigo, s uma bala perdida, e

    ele ps-se s minhas ordens para refm, com a mulher, a sogra e

    quatro filhos. J me disse

    que onde comem sete bocas, comem oito, e, pelo tempo que durar o

    motim, eu que no me

    aflija. Portanto, mal me apanhe em casa dele, de arma engatlhada,

    tudo encostado parede,

  • a primeira coisa que fao pedir a conferncia de imprensa.

    Quero-os todos ali, sentados

    nos degraus da escada, com os gravadores e as esferogrficas,

    quero as cmaras de

    televiso e os projetores. Ento direi quais so as minhas

    exigncias.

    No vou reclamar a liquidao do Partido Comunista. Isso no fao.

    C por coisas:

    uma gente com quem me tenho dado bem, conheo-os h muito tempo,

    e, para trabalhos,

    j lhes basta. Mas, fora isso, vou exigir tudo. cabea, exijo um

    governo socialista. Tenho

    andado a ler a Constituio e se as palavras no me enganam, se os

    mestres me ensinaram a

    soletrar em termos, diz-se ali que o Estado Portugus tem por

    objetivo assegurar a transio

    para o socialismo. Logo, preciso um governo socialista. Nada

    mais claro. Depois, e na

    passada, exijo a criao de uma comisso constitucional para

    fiscalizar as leis, porque nisto

    de governos e assemblias no h que fiar, apanham-se no poleiro e

    logo esquecem o que

    prometeram. Eu que no vou esquecer-me de exigir que os embros

    da dita comisso

    constitucional sejam a favor do socialismo, porque tolo seria se

    me contentasse com uma

    comisso qualquer, s por ter o nome de constitucional.

    Outra coisa que eu exijo um conselho da revoluo. J falei

    deste assunto com os

    meus vizinhos, e eles concordam. Esto at prontos a dar-me uma

    mozinha quando for da

    conferncia de imprensa. Dizem eles que isso da Constituio est