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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM DEPARTAMENTO DE TEORIA E HISTÓRIA LITERÁRIA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO RICARDO ANDRÉ FERREIRA MARTINS ATENIENSES E FLUMINENSES A Invenção do Cânone Nacional CAMPINAS 2009

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

DEPARTAMENTO DE TEORIA E HISTRIA LITERRIA FUNDAO DE AMPARO PESQUISA DO ESTADO DE SO PAULO

RICARDO ANDR FERREIRA MARTINS

ATENIENSES E FLUMINENSES

A Inveno do Cnone Nacional

CAMPINAS 2009

Livros Grtis

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Milhares de livros grtis para download.

Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp M366a

Martins, Ricardo Andr Ferreira.

Atenienses e fluminenses : a inveno do cnone nacional / Ricar-do Andr Ferreira Martins. -- Campinas, SP : [s.n.], 2009.

Orientador : Francisco Foot Hardman. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto

de Estudos da Linguagem. 1. Romantismo. 2. Historiografia. 3. Literatura brasileira. 4. Mara-

nho. 5. Rio de Janeiro (Estado). I. Hardman, Francisco Foot. II. Uni-versidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.

tjj/iel Ttulo em ingls: Athenians and man of letters of Rio de Janeiro: the invention of national canon. Palavras-chaves em ingls (Keywords): Romantismo; Historiography; Brazilian Literatu-re; Maranho; Rio de Janeiro (Estado). rea de concentrao: Histria e Historiografia Literria. Titulao: Doutor em Teoria e Histria Literria. Banca examinadora: Prof. Dr. Francisco Foot Hardman (orientador), Prof. Dr. Luiz Roberto Velloso Cairo, Prof. Dr. Marcus V. Freitas, Prof. Dr. Carlos Eduardo Ornelas Berriel, Prof. Dr. Jefferson Cano, Prof. Dr. Jaime Ginzburg (suplente), Prof. Dr. Antonio Alcir Bernrdez Pcora (suplente), Profa. Dra. Maria Betnia Amoroso (suplente). Data da defesa: 08/07/2009. Programa de Ps-Graduao: Programa de Ps-Graduao em Teoria e Histria Literria.

RICARDO ANDR FERREIRA MARTINS

ATENIENSES E FLUMINENSES

A Inveno do Cnone Nacional

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito pa-ra a obteno do ttulo de Doutor em Teoria e Histria Literria. Orientador: Prof. Dr. Francisco Foot Hardmann

CAMPINAS 2009

VII

Dedico esta tese minha esposa, Tas Sobrinho Barrenha, pe-

la infinita compreenso e pacincia, sobretudo nos momentos

mais difceis e ausentes, e pelo estmulo constante para que

este trabalho chegasse a um bom termo.

Aos nossos filhos, Guilherme e Leonardo, verdadeiras exten-

ses de nosso amor pela vida e um pelo outro.

VIII

IX

AGRADECIMENTOS

A realizao deste trabalho somente foi possvel graas colaborao direta ou indireta de

muitos amigos e pessoas de nossa mais sincera considerao e alta estima. Manifesto aqui a

minha gratido e o meu afeto a todos eles, e, de forma bem particular:

minha mulher, esposa, amiga e companheira de todos os segundos, minutos e horas con-

sumidas para que este trabalho conseguisse sair das elucubraes, Tas Sobrinho Barrenha,

pelo seu amor, carinho e apoio incondicional e paciente em todos os momentos;

Ao meu grande irmo e melhor amigo Fbio Martinelli Casemiro, pela nossa cumplicidade

e pela disposio em seguirmos juntos pelo espinhoso caminho das letras;

Ao Seu Casemiro e Dona Eloina, por abrigarem mais um filho no seio de sua famlia;

Ao meu orientador, Francisco Foot Hardman, pela acolhida, pelo respeito, pela amizade,

estmulo e orientao;

Aos professores Antnio Arnoni Prado e Carlos Eduardo Ornelas Berriel, pelas preciosas

sugestes e comentrios durante a Banca de Qualificao, que aprimoraram em muito o

contedo e a qualidade final da redao da presente tese;

Aos professores Jefferson Cano, Carlos Eduardo Ornelas Berriel, Marcus Vinicius de Frei-

tas, Luiz Roberto Velloso Cairo, pelas inexcedveis e importantssimas contribuies duran-

te a argio de minha defesa de Tese de Doutorado, com as quais a viso sobre o meu

prprio trabalho iluminou-se e completou-se;

Aos amigos Mariana Senzi, Rodrigo Cerqueira, Benilton Cruz, Paula Vermeersch, Fabiana

Bigaton Tonin, Olvia Garcia, Fbio San Juan, Catarina Landim e Renato Rezende, que

X

tornaram as horas e os minutos fora de casa vivos, humanos, interessantes, inteligentes,

aprazveis, magnficos, gratificantes, inspiradores, risonhos e, sobretudo, felizes;

Aos eternos amigos e companheiros do Maranho, Hagamenon de Jesus, Antnio Aton,

Bioque Mesito, Nilson Campos, Jorgeana Braga, Dyl Pires, Nilsen Costa, Fernando Reis,

Ricardo Lins, Csar William, Binho Dushinka, Bruno Azevedo, Gilberto Goiabeira, Geral-

do Iensen, Paulo Melo Souza, Riba, Eduardo Jlio, Couto Filho, Dylson Jnior, Luciano

Nascimento, Mateus Gatto, Rosemary Rgo, Marco Plo Haickel, Gissele Soares, Catarina

Santiago, Mauro Ciro Falco, Samarone Marinho, Rose Vianna;

Dona Graa Falco, Seu Gojoba, Patrcia Falco, Mauro Falco, Maurcio Falco e a

toda a famlia Falco, saudades das gostosas e inesquecveis reunies na Radional;

Aos amigos fraternos Anbal Lins, Solange Lins, Heraldo Gouveia, Andra Reis, Ximendes

e Jlia Constana, pelos grandes e capitais momentos vividos juntos;

s minhas queridssimas e adoradas amigas Josenilma Dantas e Joseane Dantas, pelo amor,

pela amizade e pelo carinho;

Aos meus primeiros e eternos companheiros de viagem rumo Meca dos ttulos acadmi-

cos, Ilza Cutrim, Karina Mualem, Dino Cavalcante, Elessandro Rodrigues, Neres, Maria

Aracy, Manuel Rosa, Niedja Moraes, Ricarda Mendes, Raimundo Marreiros, Eduardo Car-

doso, amigos para sempre;

Aos grandes amigos paulistas, entre prximos e distantes, Adriana Vidotti, Lencio Brito,

Ivone Rosa, Alexandre de Quadros, Jos Estevam Gava, Anselmo Ceregatto, Odair Favari

Filho, Loureno Favari, Michelle Rebustini, J. Costa Jr., Jos Roberto Sechi, Jaime Leito,

Sandra Baldessin, Sandra Bretas, Tiago Buoro, Letcia Tonon, Lara Yatkoske Lazo, Paulo

Porto, irmos de uma famlia espiritual h muito reconhecida;

XI

Aos amigos Slvio Ricardo Demtrio, Atlio Butturi, Marlia Pires, Lenidas Pellegrini,

irmos paranaenses;

A Carlos Besen, Maria Helena Nvoa, Clotilde Zingali, Maria Pia Tedesco, amigos de en-

contros virtuais, mas reais em afeto;

famlia Rotondo: Rubens, Rosngela, Itanielle, Rafaella e Felipe;

Ao meu grande amigo francs, Daniel Feuillet, em memria;

minha grande amiga sua, Anne-Marie Calame, onde esteja;

A Nauro Machado e Arlete Nogueira da Cruz, pelos laos de admirao, respeito mtuo e

sincera amizade e irmandade que nos unem;

A Jos Chagas, Lus Augusto Cassas e Sebastio Moreira Duarte, por confiarem desde o

primeiro momento em meu talento;

A Alberico Carneiro e Josilda Boga, pelo reconhecimento e estmulo aos talentos mais

jovens de nossa querida e muitas vezes malfadada terra;

A Erasmo Campello, por abrir-me as portas da realizao pessoal;

Aos meus ex-professores de graduao, Rita Santos, Snia Almeida, Graa Corra, Eva

Nunes, Teresinha Baldez, Mrcia Manir, Marcos Catunda, Ftima Sopas, Demtrio Sacco-

mandi, Maria Elza Bello, e aos funcionrios do Departamento de Letras, Jos Costa e Deja-

nira;

XII

Aos meus professores de Mestrado, Raul Henriques Maimone, Antnio Celso Ferreira, u-

reo Busetto, Tnia Regina de Luca e, especialmente, ao meu ex-orientador, Valdevino Soa-

res de Oliveira;

A Hlio Rebello Cardoso Jnior, pela amizade e pela preciosa orientao durante o meu

malogrado doutorado em Histria, cujo projeto foi desenvolvido ao longo desta tese;

A Jean Marcel Carvalho Frana, amigo e guru intelectual, que com seus conselhos e re-

primendas providenciais, sinceros e estimados, ajudou-me a superar a ingenuidade e debili-

dades de minha primeira formao intelectual, a gratido e amizade eternas;

admirvel Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo/FAPESP, cujo apoio

financeiro, necessrio e imprescindvel, garantiu a infra-estrutura sem a qual este projeto

jamais seria possvel no espao de tempo em que foi realizado;

Ao meu parecerista da FAPESP, que com suas observaes, crticas, correes e sugestes

iluminou todo este trabalho, tornando-o mais fcil e permitindo que seus resultados finais

fossem mais brilhantes e conclusivos;

A todos que, de um modo ou de outro, contriburam para a finalizao da tese;

vida, o nico milagre que realmente me comove todos os dias;

s minhas irms, pelo dom do sangue e da beleza;

Aos meus pais, pelo dom da vida.

XIII

Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi; Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo tupi. Da tribo punjante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci: Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi.

GONALVES DIAS (I-JUCA-PIRAMA )

XIV

XV

RESUMO

ESTE TRABALHO tem por objetivo o estudo da formao do cnone dentro do campo liter-

rio brasileiro durante o sculo 19 e sua vinculao poltica ao projeto de literatura nacional,

considerando a literatura como a manifestao mais visvel e sintomtica de um verdadeiro

discurso da nacionalidade entre os primeiros escritores romnticos oitocentistas (mara-

nhenses e fluminenses), igualmente no sentido de chegarmos a identificar a prpria inven-

o do cnone literrio brasileiro. nossa inteno apontar as manifestaes de nativismo

e nacionalidade que perpassou boa parte da literatura do oitocentos, analisando como se

porta o campo literrio como epifenmeno do campo do poder. Embora tais manifestaes

ocorram mais em determinados tipos de intelectuais e literatos, pois os grupos citados apre-

sentam traos distintos, ao longo de toda a produo literria brasileira do sculo 19 pode-

mos contemplar o fio que vai dos primeiros escritos gerados pelos respectivos grupos em

questo at o fim do oitocentos, quando se encerra, por assim dizer, o perodo ateniense da

literatura maranhense e conclui-se, da mesma maneira, o raio de influncia do nacionalismo

do grupo fluminense. O presente texto visa, portanto, produzir uma nova descrio do pro-

cesso de construo da nacionalidade e da civilizao, bem como da construo da or-

dem, em seus diversos nveis e aspectos scio-histricos, utilizando o estudo do cnone e

de sua gnese como instrumento para detectar a historicidade da formao de nossa histria

literria, seus processos de seleo e excluso e suas motivaes de ordem ideolgica e

estrutura discursiva. Deste modo, adotamos tambm, em paralelo ao estudo das fontes do-

cumentais e literrias, o procedimento de uma anlise das prticas sociais e artsticas do

campo literrio durante o oitocentos, tomando por base a viso que o campo literrio e o

campo do poder (poltico e econmico) tinham da nacionalidade recm-inventada e como

reagiram diante das transformaes polticas e sociais que agitaram a vida brasileira do

perodo, cujos reflexos podem ser sintomaticamente percebidos atravs do cnone em for-

mao. Desta forma, pretende-se suscitar uma discusso em torno do que o campo literrio

pensava do processo de emancipao do pas e qual era o seu projeto de nacionalidade atra-

vs do cnone. Trata-se, pois, de saber como o campo pensou e forjou os seus prprios va-

lores atravs do tempo, como edificou os seus mitos, como fixou o seu habitus coletivo,

como viu e fez o seu passado, como se portou no seio das prticas sociais e culturais na

XVI

regio e resto do pas e, sobretudo, como desenvolveu e formou seu ideal de nao, de cul-

tura e, particularmente, de literatura.

XVII

ABSTRACT

THIS WORK INTENDS to investigate the formation of the Brazilian literature canon in the 19

century and intends to comprehend how this process is politically entailed to a nationality

project. Assured that the literature is the most visible and symptomatic manifestation of

nationality speeches among the first romantics writers (grouped in maranhenses and

fluminenses), this study identify the invention of the brazilians literary canon itself. Our

purpose is identify the manifestations of nativism and nationality that passed trought great

part of our 19 centurys literature, analyzing the behavior of this literary field as an epiphe-

nomenon of the field of power. Otherwise, these political manifestations may happen diffe-

rently in each group of intellectuals and writers: following the whole 19 century we can see

the developing and decadence of the both groups, while the athenians period is inter-

rupted in the middle of the 19 century, the fluminenses period will try an overliving

among the 19 and 20 centuries. This text wants to produce a new description of the building

process of the Brazilian civilization, as well as seeks the construction of the order in its

various levels and social-historical aspects, taking the investigation of the canon, and its

genesis, as an instrument to detect the historicity of the conformation of our literary history,

observing its processes of selection and exclusion, the ideological motivations and the

structures of its speeches. In this way, we also study, simultaneously with the literary and

historical sources research, the analysis of the socials and artistics practices that belongs

to the 19 centurys literary field. We consider that the literary field and the field of power

(political and economical) they had the conception of recently created nationality. At the

same time, we comprehend the way that this both groups reacted before the social and po-

litical transformations that mobilized the Brazilian life in this period: this transformations

can be symptomatically conceived when we observe the formation of the canon. In this

way, we intend to stimulate a discussion about the meanings of Brazilians process of

emancipation, and about its own project of nationality expressed beyond the canon. The

objective is understanding the way that the literary field understood and merged its own

values beyond the time, the way that its created its proper myths, how it marked its own

collective habitus, how this field watched and constructed its own past, how it carried itself

XVIII

in the middle of the socials and culturals practices in the north of Brazil (and among all

the country). Otherwise, we due to understand how the literary canon constructed its own

idea of nation, its own idea of culture, and particularly, of literature.

XIX

RSUM

CE TRAVAIL A POUR OBJECTIF l'tude de la formation du canon l'intrieur du champ

littraire brsilien pendant le 19me sicle et son attachement politique au projet de

littrature nationale, en considrant la littrature comme la manifestation la plus visible et

symptomatique d'un vrai discours de la nationalit parmi les premiers auteurs romantiques

du 19me sicle (maranhenses et originaires de Rio de Janeiro), galement dans le but

d'arriver identifier la propre invention du canon littraire brsilien. C'est notre intention

d'indiquer aussi les manifestations de nativisme et nationalit que ont pass auprs dune

bonne partie de la littrature du 19me sicle, en y analysant comme se porte le champ

littraire comme epiphnomne du champ du pouvoir. Bien que telles manifestations se

produisent plus dans de certains types d'intellectuels et dhommes de lettres, car les groupes

mentionns prsentent des traces distinctes, au long de toute la production littraire

brsilienne du 19me sicle nous pouvons envisager le fil qui va des premiers crits produits

par les respectifs groupes concerns jusqu' la fin du huit cents, quand il se ferme, pour

ainsi dire, la priode athnienne de la littrature du Maranho et se conclut, de la mme

manire, le rayon d'influence du nationalisme du groupe dhommes de lettres du Rio de

Janeiro. Ce prsent texte vise, donc, produire une nouvelle description du processus de

construction de la nationalit et de la civilisation, ainsi que de la construction de l'ordre ,

leurs divers niveaux et aspects socio-historiques, en utilisant l'tude du canon et de sa

gense comme un instrument pour y dtecter lhistoricit de la formation de notre histoire

littraire, de leurs processus d'lection et d'exclusion et de leurs motivations d'ordre

idologique et de structure discoursive. De cette manire, nous adoptons aussi, en parallle

l'tude des sources documentales et littraires, la procdure d'une analyse des pratiques

sociales et artistiques du champ littraire pendant le huit cents, en prenant par base la vision

que le champ littraire et le champ du pouvoir (politique et conomique) avaient de la

nationalit rcemment invente et comment ils ont ragit devant les transformations

politiques et sociales qui ont agit la vie brsilienne de la priode, dont les rflexes peuvent

symptomatiquement tre perus travers du canon en formation. De cette forme, on

prtend susciter une discussion autour de ce que le champ littraire pensait du processus

XX

d'mancipation du pays et quel tait son projet de nationalit travers du canon littraire. Il

se traite, donc, de savoir comment le champ a pens et a forg leurs propres valeurs

travers le temps, comment il a construit leurs mythes, comment il a fix son habitus

collectif, comment il a vu et a fait son pass, comment il s'est port dans le sein des

pratiques sociales et culturelles dans la rgion et le reste du pays et, surtout, comment il a

dvelopp et a form son idal de nation, de culture et, particulirement, de littrature.

SUMRIO INTRODUO ................................................................................................................. 1 1. ORIGENS DA CRTICA ROMNTICA ................................................................... 51

1.1. Um programa para a crtica e para a histria ..................................................... 51 1.1.2. Bouterwek e a histria da poesia e da eloqncia portuguesa .............. 72 1.1.3. Sismondi, Romantismo e a nacionalidade das literaturas meridionais europias .......................................................................................................... 92 1.1.4. Ferdinand Denis e a inveno da literatura brasileira: indianismo e nacionalismo .................................................................................................. 113 1.1.5. Almeida Garret e a originalidade da literatura brasileira .................. 142 1.1.6. Schlichthorst: a literatura e os costumes nacionais ............................. 155 1.1.7. Carl Friedrich P. von Martius e a inveno da histria nacional ...... 169

2. OS ATENIENSES E A FORMAO DA CIDADE LETRADA ........................... 201

2.1. Os estados do Maranho e Gro-Par e do Brasil: duas naes? .................... 201 2.2. O roteiro ednico, a prodigalidade da terra e a prodigalidade da gente ......... 210

2.1.2. A transculturao e a fundao da cidade letrada na Amrica portuguesa ......................................................................................................................... 240 2.1.3. O algodo e a idade do ouro: prosperidade, decadncia e fundao de um mito ................................................................................................................. 273

2.1.3.1. O passado como alegoria do presente e inveno do futuro .... 287 2.1.4. A internalizao da metrpole e o aportuguesamento da cultura ....... 309 2.1.5. O levantamento das letras: a formao da indstria tipogrfica e editorial ......................................................................................................................... 318 2.1.6. O jornalismo poltico e literrio e a consolidao das letras .............. 360 2.1.7. As instituies de difuso da cultura letrada no Maranho: teatros, bibliotecas, livrarias ....................................................................................... 456 2.1.8. Uma ilha de letrados em um mar de analfabetos: a instruo pblica e o monoplio das almas ...................................................................................... 483

3. A INVENO DO CNONE NACIONAL: ATENIENSES E FLUMINENSES ... 531 CONSIDERAES FINAIS: AS PILHAGENS DA HISTRIA ............................... 743

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 761

1. Textos seiscentistas, setecentistas e oitocentistas ...................................... 761 2. Jornais e peridicos ................................................................................... 770 3. Apoio bibliogrfico e terico geral ............................................................ 772

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

1

INTRODUO

OUCAS TEORIAS tero entusiasmado tanto o pensamento e a cultura ocidentais,

em particular a Europa, quanto a teoria dos climas. A hiptese de que os costu-

mes, os hbitos, os temperamentos, a cultura e a civilizao como um todo eram

resultado da influncia direta dos climas sobre o psiquismo das pessoas, cruzou sculos,

atravs da obra de literatos, filsofos, cientistas e esteve presente at mesmo no senso co-

mum popular. A referncia mais antiga que se conhece sobre a teoria dos climas aparece na

obra de Aristteles, A poltica, mas encontram-se tambm menes em Poseidonios e Hi-

pcrates como os primeiros pensadores ocidentais a enfatizar a influncia dos elementos

climticos sobre os caracteres humanos; mas sem dvida devido a uma suposio popular

que a idia se disseminou entre os diferentes povos do mundo, talvez em razo das incont-

veis correntes migratrias de lado a lado, at se tornar um lugar comum ao longo de vrios

milnios e vrias civilizaes depois. Contudo, tudo indica que foi Aristteles o pensador

que mais contribuiu para a disseminao do interesse pelo estudo dos climas sobre a cultura

dos povos e sua organizao social, a partir de sua tentativa de explicar a estrutura poltica

da civilizao grega:

On peut dj sen faire quelque ide en jetant les yeux sur les cits les plus clbres de la Grce, et sur les diverses nations qui se partagent la terre. Les peuples qui habitent les climats froids, mme dans LEurope, sont en gnral pleins de courage. Mais ils sont certainement infrieurs en intelligence et en industrie; aussi conservent-ils leur libert; mais ils sont politiquement indisciplinables, et nont jamais pu conqurir leurs voisins. En Asie, au contraire, les peuples ont plus dintelligence, daptitude pour les arts ; mais ils manquent de coeur, et ils restent sous le joug dun esclavage perptuel. La race grecque, qui topographiquement est intermdiaire, runit toutes les qualits des autres. 1

A evoluo da teoria dos climas, entretanto, no terreno da filosofia e da histria, vai

dar saltos at encontrar uma linha de tradio durante a Idade Mdia, sobretudo a partir do

sculo 14, com a obra de Ibn Khaldoun, que em seus Prolegmenos da histria universal

(1377) consagra seu terceiro discurso preliminar, entre outros, influncia exercida pela

1 ARISTOTE. Politique. Traduite en franais par J. Barthlemy Saint-Hilaire. Sconde dition. Paris : Du-mont, lInstitut, 1848, pp. 217-218.

P

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

2

atmosfera sobre a pele dos homens e sobre o seu estado em geral, alm de dedicar o quarto

influncia exercida pelo ar sobre o carter dos seres humanos:

Nous venons dexposer que la portion habitable de la terre commence au milieu de lespace que la mer a laiss dcourvert et qui stend vers le nord ; les contres du midi prouvent trop de chaleur, celles du nord, trop de froid, pour tre habitables. Comme ceux deux extrmits de la terre diffrent compltement sous le rapport du chaud et du froid, les caractres qui les distinguent doivent se modifier graduellement jusquau milieu du monde habit, o ils atteignent leur terme moyen. Le quatrime climat est donc le plus tempr ; le troisime et le cinquime, qui y confinent, jouissent peu prs dune temprature moyenne. Dans le sixime et le second climat, qui avoisinent ceux-ci, la temprature seloigne considrablement du terme moyen ; puis, dans le premier et le septime, elle sen carte bien davantage. Voil pourquoi dans les sciences, les arts, les btiments, les vtements, les vivres, les fruits, les animaux et tout ce qui se produit dans les trois climats du milieu, il ny a rien dexagr. On retrouve ce juste milieu dans les corps des hommes qui habitent ces rgions, dans leur teint, dans leurs dispositions naturelles et dans tout ce qui les concernent. Ils observent la mme moderation dans leurs habitations, leurs vtements, leurs aliments et leus mtiers. Ils construisent de hautres maisons en pierre et les ornent avec art ; ils rivalisent entre eux dans la fabrication dinstruments et dutensiles, et, par cette lutte, ils arrivent la perfection. [...] Tels sont les habitants du Maghreb, de la Syrie, des deux Iracs, du Sind, de la Chine. Il en est de mme des habitants le lEspagne et des peuples voisins, tels que les Francs, les Galiciens et les gens qui vivent ct ou au milieu deux, dans ces rgions tempres. 2

Na realidade, at a reflexo do filsofo magrebino, a crena de que a sabedoria das

naes dava-se na mesma proporo em que habitavam terras e climas salubres j tinha

entrado no domnio de uma tese oficial para a fixao dos traos definidores de uma cultura

e de um povo, atravs de suas relaes com o ambiente natural e as conseqentes influn-

cias sobre a civilizao e os traos peculiares do comportamento social. Claro, nesse filo

do pensamento ocidental encontra-se a base para muitos preconceitos e empirismos sem

qualquer fundamento, mas a teoria dos climas acabou sendo aceita em decorrncia talvez

do fatalismo ou da resignao, onde sem dvida possvel por em relevo as suas origens e

vnculos com a astrologia e o determinismo geogrfico, que alcanam o sculo 18, particu-

larmente com a obra do conde Henri de Boulainvilliers. 3

2 KHALDOUN, Ibn. Les prolgomnes. Traduits en franais et comments par M. de Slane. Premire Partie. Paris : Imprimerie Impriale, 1863, pp. 168-169. 3 Henri de Boulainvilliers (1658-1722) foi autor de numeroras obras histricas. Em 1711 comps uma Astro-logie mondiale: Histoire du mouvement de l'apoge du soleil; ou, Pratique des rgles d'astrologie pour juger des vnements gnraux, onde apresenta uma teoria da influncia dos astros sobre o destino das naes.

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

3

Aps Khaldoun, o fascnio pela teoria dos climas, devido sua aparente e extraordi-

nria eficcia para a explicao de certos fenmenos sociais e culturais entre diversos po-

vos, alcana um ponto alto de desenvolvimento na obra de europeus como Jean Bodin

(1530-1596), que em sua obra Les six livres de la Rpublique (1576), particularmente no

captulo Du reiglement quil faut tenir pour accommoder la forme de Republique la di-

versit des hommens, et le moyen de cognoistre le naturel des peuples, descreve como de-

ve-se proceder, de acordo com a natureza e o carter de cada povo segundo o clima em que

desenvolveu sua civilizao e cultura, para adaptar a organizao da repblica de acordo

com os costumes, o temperamento psquico e o comportamento social. Na realidade, Bodin

expe a teoria dos climas em trs textos: no captulo V de Methodus ad facilem historiarum

cognitionem; accurate denuo recusa (1591), intitulado De recto historiarum judicio; no

captulo I do Livro V de Les six livres de la Rpublique, citado acima, e em diversas passa-

gens do Universae Naturae Theatrum (1605), notadamente no captulo V. sobretudo no

Methodus que realiza a exposio mais completa, que os demais textos retomam sem alterar

essencialmente a tese, apesar de objetivos diferentes quanto sua aplicao e mtodo. De

qualquer modo, a sobrevivncia da teoria dos climas na obra de Jean Bodin o sintoma de

sua atualidade e vivacidade na cultura medieval, uma vez que atende s demandas filosfi-

cas da poca em explicar pela determinao do lugar e das foras do ambiente natural cir-

cundante as qualidades fsicas, morais e polticas dos diversos povos e culturas neles mani-

festadas. Nas concepes de Bodin, o lugar dever ser entendido na acepo de posio so-

bre a terra e sob o cu e as qualidades como invariantes que o autor define como o carter

natural dos diferentes povos. 4

A teoria dos climas, como possvel verificar atravs dos contemporneos de Jean

Bodin e os demais autores citados em suas obras, est situada ao longo de muitos conheci-

mentos e disciplinas, tais como a geografia de Ptolomeu, a medicina de Hipcrates, alm da

poltica em Csar, Tito Lvio e Tcito. No decorrer de Les six livres de la Rpublique, no

entanto, Bodin menciona apenas duas vezes o termo clima, e para critic-lo. Segundo o

autor, a diviso dos povos atravs do parmetro climtico insuficente, na medida em que

4 COUZINET, Marie-Dominique. Histoire et mthode la Renaissance : une lecture da la Methodus de de Jean Bodin. Collection Philologie et Mercure. Paris : Vrin, 1996, p. 172.

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

4

no considera as variaes entre o Ocidente e o Oriente. Contudo, a diviso por climas

adotada como concepo geral e essencial para a compreenso do carter dos povos, a qual

Bodin procura refinar em suas teses da Rpublique. Alm disso, a diviso efetuada por Bo-

din repousa em critrios astronmicos, nos quais a noo de clima obedece ao clculo da

latitude e da durao do dia na parte correspondente da terra, dividida em regies de acordo

com os paralelos, entre Norte e Sul:

Jusques ici nous avons touch ce qui concernoit lestat universel des Republiques, disons maintenant ce qui peut etre particulier qualques unes pour la diversit des peuples, fin daccommoder sa forme de la chose publique la nature des lieux, & les ordonnances humaines aux lois naturelles. A quoy plusieurs nayans pris garde, & sefforans de faire servir la nature leurs edicts, ont troubl & souvent ruin de grands estats : Et toutefois ceux qui ont escrit de la Republique nont point trait ceste question. Or tout ainsi que nous voyons en toutes sortes danimaux une variet bien grande, & en chacune espece quelques differences notables, pour la diversit des regions : aussi pouvons-nous dire quil y a presque autant de variet au naturel des hommes, quil y a de pas, voire mesmes climats, il se trouve que le peuple Oriental est for different lOccdiental : & en mesme latitude, & distance de lequateur, le peuple de Septentrion est different du Meriodional. Et, qui plus est, en mesme climat, latitude, & longitude, & sous mesme degr, on apperoit la difference du lieu montueux la plaine : de sorte quen mesme ville, la diversit de hauts lieux aux vallees, tire apres soy variet dhumeurs, & de moeurs aussi, qui fait que les villes assises en lieux inegaux sont plus subiectes aux seditions & changements, que celles qui sont situees en lieu du tout egal. [...]

[...] ... Ces poincts arretez, il ser plus ais de faire jugement de la nature des

peuples : car ce nest pas assez de dire, que les peuples de Septentrion ont la force, grandeur & beaut de corps, & peu desprit, & au contraire que les peuples Meridionaux sont foibles, petits, noirauts, & quils ont la vivacit desprit grande : veu que lexperience nous apprend, que les peuples qui sont bien fort Septentrionaux, sont petits, maigres, & balannez de froid : ce que mesme Hippocrate confesse [...]

[...] Donques les peuples des regions moyennes ont plus de force que ceux de

Midy, & moins de rufes : & plus desprit que ceux de Septentrion, & moins de force : & font plus propres commander & gouverner les Republiques, & plus justes en leurs actions. [...], on trouvera que tout ainsi que les grandes armees & puissances sont venues de Septentrion : aussi les sciences occultes, la Philosophie, la Mathematique, & autres sciences contemplatives sont venues du peuple Meridional [...]. 5

As divises mais gerais efetuadas por Bodin dizem respeito, em particular, s seg-

mentaes pela latitude entre o Norte e o Sul, que leva em conta o diminuto mundo civili-

5 BODIN, Jean. Les six livres de la Republique. [ ?] : Gabriel Cartier, 1608, pp. 663, 667 e 671.

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

5

zado e conhecido pelos europeus at ento, onde o hemisfrio norte comea a partir de um

ngulo de 45, compreendendo tudo que est entre o plo norte e o quadragsimo quinto

grau, e o Sul, que abrange tudo a partir do grau 45 at o equador. 6 Bodin abandona, ento,

distino entre o Ocidente e o Oriente e a reduz distino entre o Norte e o Sul, subli-

nhando o mtodo da diviso por latitude e longitude, observando a diversidade dos povos

medida que os paralelos avanam para o Norte ou para o Sul. Esta uma diviso importan-

te para compreendermos a evoluo da teoria dos climas ao longo do sculo 17 e do sculo

18, sobretudo na alvorada do Iluminismo. Com efeito, a concepo de que os diferentes

climas exercem diferentes influncias sobre diferentes povos foi completamente aceita e

admitida no crculo intelectual de todos os pases europeus e por numerosos escritores do

sculo 17, tais como Fnelon, La Bruyre e Boileau, que em sua Art potique (1674) faz

uma rpida meno teoria dos climas: Des sicles, des pays, tudiez les moeurs/Les cli-

mats font souvent les diverses humeurs. 7

A tese do determinismo climtico retorna com pujana durante o Iluminismo, especi-

almente sob a influncia de uma abundante produo no gnero da literatura de viagem,

que vai desembocar mais tarde, no sculo 19, na curiosidade cientfica de muitos botnicos

e naturalistas como Humboldt, Spix e Martius, e nos relatos de viajantes curiosos com o

exotismo da natureza dos trpicos. Mas no apressemos o desfile dos fatos histricos. Com

efeito, a literatura de viagem, muitas vezes bastante fragmentria e confusa em seus relatos

que beiram a fico e o exagero, comeou uma copiosa e incessante coleta de dados e deta-

lhes sobre os costumes e hbitos de diversas culturas e povos em todo o mundo. Esta enor-

me produo de relatos de viagem gerou um contnuo interesse antropolgico dos europeus,

uma vez que descortinou ao Velho Mundo uma diversidade virtualmente infinita de lnguas

e culturas, ao mesmo tempo em que uma profuso vertiginosa de diferenas surpreendentes

e importantes entre as instituies e a organizao social destes povos estranhos e singula-

res revelados aos olhos ocidentais.

Nas mais diversas reas do pensamento e do conhecimento cientfico europeu, um

novo espectro de possibilidades interpretativas abriu-se com a utilizao da teoria dos cli-

6 COUZINET, Marie-Dominique. Op. cit., p. 173. 7 BOILEAU, Nicolas. Lart potique. Paris: Imprimerie dAug. Delalain, 1815, p. 20.

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

6

mas. Alm de Henri de Boulainvilliers, que a utiliza em suas obras astrolgicas, outros inte-

lectuais vo faz-la avanar sobre os mais diversos domnios, como o abade Jean-Baptiste

Dubos, que publica em 1719 as Rflexions critiques sur la posie et sur la peinture, um

tratado de esttica que sustenta a tese de que determinados povos, especialmente os france-

ses, os gregos e os italianos, do provas de possuir um melhor gosto, produzem um grande

nmero de artistas, cujas criaes so de qualidade superior. O abade demonstra uma acen-

tuada propenso em demonstrar suas teses atravs da teoria dos climas, uma vez que defen-

de a tese da existncia de vantagens geogrficas para a manifestao de talentos superiores

entre os povos mais cultivos da Europa, o que no deixa de ser um patente eurocentrismo.

O abade Dubos trata especificamente dessa tese na Section XVII do segundo volume, intitu-

lada De ltendue des climats plus propres aux arts & aux sciences que les autres. 8 Des

chagements que surviennent dans ces climats. J na medicina, particularmente na Inglater-

ra, as propriedades do ar so postas em correlao com a propagao das epidemias atravs

do trabalho do escocs John Arbuthnot, contemporneo de Alexander Pope e Johnathan

Swift, que publica em Londres, no ano de 1733, An essay concerning the effects of air on

human bodies. Em Bruxelas, o abade francs Ignace dEspiard de La Borde d a lume seus

Essais sur le gnie et le caractre des nations (1743), depois reimpressos sob o ttulo de

LEsprit des nations (1753), obra na qual o autor postula que of a Nations Genius, the

fundamental Cause is the Climate, with many other subordinate and consecutive, [...]. The

Climate is the most universal, most intimate physical Cause, 9 afirmao que est em plena

conexo com os debates contemporneos sobre a origem da espcie humana, particular-

mente divididos entre o monogenismo e o poligenismo, e entre a oposio civilizao e

estado selvagem. A teoria dos climas, em meio a tendncias e horizontes tericos diversos e

disparatados, atinge o seu ponto de cristalizao ideolgica mxima e ultrapassa o simples

conceito e a hiptese inicial, transformando-se em um verdadeiro determinismo.

O determinismo climtico, portanto, havia alcanado o seu apogeu e comeava a ge-

rar uma pletora de reflexes com os mais distintos propsitos. As conseqncias de tais

8 DUBOS, Jean-Baptiste. Rflexions critiques sur la posie et sur la peinture. Septime dition. Seconde partie. Paris: Pissot, 1770, p. 304. 9 BORDE, Franois-Ignace Espiard de la. The spirit of nations. Translated from the french. London: Printed for Lockyer Davis, at Lord Bacons in Fleet-street; and R. Baldwin, in Pater-noster Row. 1753, p. 4.

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reflexes vo desembocar na obra de Montesquieu que, influenciado pelas teses mdicas de

seu tempo, consagra o Livro XIV de De lesprit des lois (1748) a uma explicao fisiolgica

dos efeitos do frio e do calor sobre os corpos e as atividades humanas:

Lair froid resserre les extrmits des fibres extrieures de notre corps; cela augmente leur ressort, et favorise le retour du sang des extrmits ver le coeur: il diminue la longueur de ces mmes fibres; il augmente donc encore par l leur force. Lair chaud au contraire relche les extrmits des fibres et les allonge; il diminue donc leur force et leur ressort.

On a donc plus de vigueur dans les climats froids. 10

Contudo, o objetivo de Montesquieu dotar a teoria dos climas de um poder expres-

sivo aplicando-a somente ao domnio poltico, em virtude de sua concepo de que o tem-

peramento dos homens e povos determinado pela situao geogrfica dos lugares onde

vivem e desenvolveram suas sociedades e respectivas culturas. Destarte, as instituies e a

organizao social de cada povo encontram seus fundamentos nos climas sob os quais cada

cultura descobriu suas prprias solues para a civilizao: Ce sont les diffrents besoins

dans les diffrents climats qui ont form les diffrentes manires de vivre; et ces diffrents

manires de vivre ont form les diverses sortes de lois. 11

Desse modo, a nova acepo de clima associa-se ao conceito de temperatura, con-

forme o respectivo verbete da Enciclopdia organizada por Diderot et DAlembert:

CLIMAT, (Med.) Les Medecins ne considerent les climats que par la temprature ou le degr de chaleur qui leur est propre : climat, dans ce sens, est mme exactement synonyme temprature ; ce mot est pris par consquent dans un sens beaucoup moins vaste que celui de rgion, pays ou contre, par lequel les Medecins expriment la somme de toutes les causes physiques gnrales ou communes, qui peuvent agir sur la sant des habitants de chaque pays ; savoir la nature de lair, celle de leau, du sol, des alimens, [...]. Toutes ces causes sont ordinairement si confusment combines avec la temprature des diverses contres, quil est assez difficile de saisir quelquers phnomenes de loeconomie animale, qui ne dpedent uniquement que de cette derniere cause. Ce ne sera pas cependant une inexactitude blmable, que de lui atribuer certains effets dont elle est vraissemblablement la cause prdominante. Ainsi on peut avancer avec beaucoup de fondement, que cest du climat que dpendent les diffrences des peuples, prises de la complexion gnrale ou dominante de chancun, de sa taille, de la vigueur, de la couleur de sa peau & de ses cheveux, de la dure de sa vie, de

10 MONTESQUIEU, Charles de. De lesprit des des lois. Tome Premier. Paris : P. Pourrat Fres., diteurs, 1831, pp. 419-420. 11 Idem, ibidem, p. 434.

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sa prcocit plus ou moins grande relativement laptitude la gnration, de sa vieillesse plus ou moins retarde, & enfin de ses maladies propres ou endmiques.

On ne sauroit contester linfluence du climat sur le physique des passions, des gots, des murs. Les plus anciens medecins avoient observ cette influence ; & les considrations de cette classe sont des objets si familiers aux Medecins, que-si lauteur de lesprit des lois avoit p supposer que leur doctrine sur cette matiere ft assez rpandue, il auroit p se contenter dassrer que les lois, les usages, le genre de gouvernement de chaque peuple, avoient un rapport ncessaire avec ses passions, ses gots, ses murs, sans se donner la peine de dterminer le rapport de ces passions, de ces gots, de ces murs, avec sa constitution corporelle dominante, & linfluence du climat. Les lumieres suprieures de lauteur lont pourtant sauv de lcueil presque invitable, pour les talens mme les plus distingus qui sexercent sur des sujets qui leur sont trangers. La partie mdicinale des observations de lauteur de ce livre sur les climats, mrite lloge des Medecins. Voyez le XIV. livre de lesprit des lois. 12

Como se v, o pensamento iluminista havia incorporado completamente a teoria dos

climas, mas sob a perspectiva de reconhecimento do fenmeno natural de adaptao ao

ambiente circundante. Contudo, a noo mais especfica de temperatura, introduzida pela

medicina, conduz clivagem entre calor/cansao e frio/vigor, de onde deriva uma outra,

entre preguia/calor e vitalidade/frio. Tais noes sero muito importantes ao longo do s-

culo 18 para a evoluo de uma concepo de civilizao como resultante das coeres

climticas s quais os povos dos pases mais frios estavam submetidos, e, portanto, a uma

relao entre processo civilizatrio e clima. Os habitantes de climas mais amenos seriam

mais vigorosos para o trabalho, e isto explicaria o fato de que as naes europias mais

frias ou amenas eram mais industriosas que as demais naes do resto do mundo, sobretudo

as localizadas nas regies mais quentes da terra.

, contudo, em Johann Gottfried von Herder (1744-1803) e sua obra filosfica que a

teoria dos climas vai adquirir uma feio completamente nova e revolucionria. Na linha de

ruptura com a tradio criada em torno do determinismo climtico, Herder vai conceber e

propor uma nova filosofia que impe novos rumos e interpretaes tese de que os climas

e a natureza circundante so fatores de determinao absoluta para o surgimento e flores-

cimento de uma civilizao. Apesar de, no fundo, estar preocupado com as questes relati-

vas unificao da cultura alem em torno do projeto de uma nao, Herder, com uma no-

12 DIDEROT; DALEMBERT (org.). Encyclopdie, ou dictionnaire raisonn des sciences, des arts et des mtiers. Par une societ de gens de lettres. Tome Troisime. Paris: Imprimerie de Le Breton, s/d, p. 534.

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va teoria sobre a influncia do clima e da natureza sobre os povos, e sua teoria da lingua-

gem, estabelece um vnculo indissocivel e fundamental entre natureza, raa e cultura, onde

a lngua estabelecia o elo e o amlgama identitrio. O que Herder deseja provar com a sua

filosofia, apesar de seu universalismo patente, era a existncia da nao alem, constante-

mente negada pelas elites germnicas. Contudo, antes disso, foi necessrio demonstrar que

a influncia dos climas sobre os povos no era uma condio de necessidade ou impedi-

mento para a marcha da civilizao. A obra que consagra para realizar este objetivo foi,

sobretudo, Idias para uma filosofia da histria da humanidade (1784-1791), em que pro-

cura explanar o sentido que a palavra clima assume em sua obra e quais seriam efetivamen-

te os efeitos e as influncias exercidas sobre os corpos e o pensamento do homem. O ponto

de partida para essa reflexo afirmao de que, qualquer que seja a diversidade ou varie-

dade das formas humanas e suas diferentes culturas e civilizaes, sobre toda a face da terra

h apenas uma espcie humana, e no vrias. A humanidade, portanto, forma uma nica

raa, apesar das variaes tnicas, sociais, culturais e governamentais de cada povo. No

obstante, Herder no nega a singularidade de cada indivduo na coletividade humana, razo

pela qual chaque homme est donc en dernier rsultat un monde, qui das ss phnomnes

externes presente des ressemblaneces avec ceux dont il est entour, mais qui intrieurement

est un tre individuel avec lequel aucun autre ne concide de toutes parts. 13

A questo de Herder comprovar que, a despeito da diversidade existente e inegvel

entre as diversas manifestaes da espcie humana, que eram reputadas como um resultado

direto das coeres e foras exteriores exercidas pelos diferentes climas, existia uma unida-

de dentro da variedade, em virtude de que a multiplicidade tinha o selo da unidade do pen-

samento divino, de modo que no seio da diversidade e da mudana visvel em todas as cul-

turas, povos e regies, il ny a sur la terre quune seule et mme espce dhommes. 14

Ao contrrio do que a evoluo da teoria dos climas sempre apontou, aps o advento

do Romantismo, cuja expresso filosfica mais acabada encontra em Herder o expoente

mximo da singularidade de cada nao, as sociedades, os grupos, as raas e as culturas,

anteriores s civilizaes, podiam realmente ser agrupadas em mundos peculiares, no in- 13 HERDER, Johann Gottfried von. Ides sur la philosophie de lhistoire de lhumanit. Traduit par Edgar Quinet. Paris : Imprimerie de F. G. Levrault, 1827, p. 2. 14 Idem, ibidem, p. 5.

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

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dividuais, enquanto coletividades singularizadas por uma identidade especfica, diversa de

qualquer outro povo, ao mesmo tempo em que formava dentro da singularidade caracters-

tica uma unidade com todo o resto da humanidade, cujas diferenas derivantes dos elemen-

tos externos, como o clima, eram apenas sintomas da adaptao da humanidade ao meio. O

pensamento de Herder sugere um novo entendimento da individualidade orgnica da natu-

reza com a individualidade singular do homem, atravs de formas de vida e cultura mais

complexas e abrangentes do que a restrita concepo do determinismo climtico. Os povos

e as civilizaes, segundo Herder, teriam que aprender a valorizar os seus traos distintivos

e, portanto, absolutamente originais e nicos, decorrentes da situao privilegiada de suas

condies peculiares de existncia e desenvolvimento, entretanto sempre singulares no es-

pao e sempre variveis no tempo: 15

[...] nous ignorons encore la loi fondamentale des climats [...]. Les rvolutions de notre globe sur son axe et autour du soleil peuvent nous

fournir des explications moins vagues des climats ; mais encore ici lapplication des lois gnralement admises est difficile et sujette nous garer. Les znes des anciens nont point t confirmes par les dcouvertes des modernes, puisqu le considrer sous le rapport physique, ce systme de division ne reposait que sur lignorance o lon tait des pays nouvellement reconnus. [...] Des expriences rcentes ont dailleurs dmontr que tous les tres vivans ont chacun une manire propre de recevoir et de renvoyer la chaleur, et que plus dorganisation de la crature est parfaite, plus sa force vitale est active, et plus elle a la proprit de produire la chaleur ou le froid. La fausset de cette ancienne opinion, suivant laquelle lhomme ne peut vivre que dans un climat dont la chaleur ne surpasse pas celle du sang, a t prouve par le fait. Dune autre part, les systmes des modernes sur lorigine et les effets de la chaleur animale sont loin davoi atteint un caractre sufissant de certitude pour que nous soyons encore en droit desprer, nons pas une climatologie des facults morales de lhomme et de leurs applications libres, mais seulement de sa conformation organique. [...]

La chaleur et le froid ne sont pas les seuls principes qui agissent sur nous par le milieu de latmosphre [...]. 16

Com efeito, as teorias herderianas, apresentadas opinio pblica a partir do final do

sculo 18, rapidamente se difundiram por toda a Europa, defendendo abertamente uma forte

oposio ao domnio cultural francs e ampliando, pela primeira vez, os debates intelectuais

sobre a questo da identidade e da nacionalidade para todos os povos. Com isto, Herder

15 NUNES, Benedito. A viso romntica. In: GUINSBURG, Jac (org.). Romantismo. Organizao de Jac Guinsburg. Editora Perspectiva: So Paulo, 2002, p. 59. 16 HERDER, Johann Gottfried von. Op. cit., pp. 21-25.

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funda uma filosofia da histria de feies tipicamente romnticas, exercendo influncia

reconhecida sobre o Romantismo europeu, sobretudo a proposio de que a literatura de

uma nao tem que ser to verdadeira e original em relao natureza, quanto com as tra-

dies e a ndole peculiar de seu povo. Por esta razo, Herder rejeita o determinismo clim-

tico que inviabiliza o surgimento de naes cultivadas e civilizadas somente pelo critrio da

temperatura, partindo da compreenso de que a parte habitvel do planeta se estende pelas

regies onde o maior nmero de seres vivos agem da maneira mais conveniente em con-

formidade com sua natureza. Ou seja, a humanidade no est dividida em espcies segundo

os climas e a natureza, mas a natureza dividiu a humanidade em diversos povos, mais ou

menos prximos uns dos outros, e que, apesar das diferenas e da diversidade cultural, co-

municam-se entre si avec les maladies et la chaleur de leurs climats, les vertus et les vices

quils font natre. 17

Na viso de Herder, portanto, a natureza providenciou a disseminao da espcie hu-

mana pelo globo, de forma que cada uma encontrasse o estilo de expresso mais convenien-

te para sua cultura e civilizao de acordo com as influncias e coeres exercidas pelo

clima e pelo ambiente geogrfico, o que constitui um determinismo relativo. A finalidade

desse procedimento efetuado pelas mos da natureza, segundo Herder, possibilitar que a

humanidade encontre na diversidade dos climas e do meio geogrfico a possibilidade de

perpetuao e desenvolvimento de sua prpria espcie, de modo que todos os povos e cul-

turas tm a mesma chance de florescimento e de permanncia sobre a face do globo.

Quanto maior a diversidade, maiores sero as chances da humanidade formar um todo,

atravs de suas partes separadas pelos diversos climas, raas, regies e paisagens: Non-

seulement les ondulations du sol et les chanes de montagnes ont contribu varier les

climats proportion de la foule des tres vivans qui les habitent, mais encore elles ont

autant que possible empch lespce humaine de dgnrer. 18

Portanto, a natureza e o clima assumem, para Herder, um papel fundamental na vida

humana, que em sua viso est intimamente conectada ao seu lugar no mundo natural. A

concepo herderiana que o mundo compe, com a humanidade, um organismo destinado

17 Idem, ibidem, p. 29. 18 Idem, ibidem.

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

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ao desenvolvimento e prosperidade, realizao de uma teleologia em que humanidade e

natureza caminham juntas para formas de vida e expresso cada vez mais complexas e su-

periores. Deste modo, todas as manifestaes do mundo natural e da humanidade sobre a

terra so o que puderam ser de acordo com a situao e necessidade do ambiente, as cir-

cunstncias e o carter do tempo, o gnio nativo ou acidental dos povos. Neste sentido, a

concepo herderiana de natureza de matriz essencialmente teolgica. Cada uma das eta-

pas da evoluo, segundo Herder, est destinada a sempre preparar a seguinte, 19 mas ne-

nhuma constitui um fim em si mesmo, ao contrrio do homem, que um fim em si mesmo

em razo de sua vida racional e moral, que a prpria razo de sua existncia. A questo

que Herder considera o homem como o propsito final da natureza que, ao cri-lo e hu-

manidade, tinha como objetivo um ser racional, cuja natureza humana s poder alcanar o

seu pleno desenvolvimento medida que mantiver um horizonte de expectativa contnuo na

direo de si mesmo. Em virtude disso, o homem, como um ser natural, 20 encontra-se di-

vivido em diversas raas que formam o conjunto mais amplo da humanidade, cada uma em

ntima correlao com o meio geogrfico e climtico, mas expressando atributos fsicos,

mentais e culturais absolutamente originais, acomodados e amoldados pelo ambiente natu-

ral circundante. Cada raa, adaptada e amoldada pelo meio em que se encontra, desenvolve

portanto um tpico especfico de expresso da humanidade, com caractersticas peculiares e

constantes, que, entretanto, no so diretamente dependentes de sua relao com o ambien-

te natural, o clima, a atmosfera, o meio geogrfico, mas de sua ndole inata e especfica.

Assim, o tempo, o lugar, o carter nacional, ou, nos termos de Herder, o sistema universal

das foras ativas em sua individualidade mais determinada, orienta todos os eventos huma-

nos, bem como todos os fenmenos naturais, constituindo uma lei fundamental da criao. 21 Portanto, cabe a cada raa, como expresso variante da humanidade, encontrar a sua pr-

pria concepo de felicidade, perfeio e civilizao, uma vez que possui, conforme o cli-

ma, a fauna, a flora, o espao e o tempo, todos os meios necessrios manifestao de suas

faculdades de sensibilidade e imaginao, que so diferentes em todas as raas e em todos

os meios naturais aos quais elas se amoldaram: 19 Idem, ibidem. Tome Premier, p. 264s. 20 COLLINGWOOD, R. G. A idia de histria. Lisboa: Editorial Presena, 1994, p. 126. 21 HERDER, Johann Gottfried von. Op. cit., Tome Second, p. 414.

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Les forces actives de lhumanit sont les mbiles de lhistoire humaine; et comme lhomme descend dune seule et mme famille, sa figure, son ducation, ses opinions dpendent de son origine. De l ce gnie national qui, profondment marqu chez les anciens, se manifeste dans toute la suite de leurs actions para des traits si frappans. Comme une source deau tire ses parties composantes, ses proprits et son got des matires quelle traverse dans son cours, de mme le caractre primitif dune nation drive de ses traits de famille, de son climat, de son genre de vie, de son ducation, des premiers efforts, de ses occupations habituelles. Les moeurs des anctres jettent de profondes racines et servent de modles leur postrit. Ici, le gnie des Juifs, qui nous est le mieux dvoil tant par leurs livres que par leur conduite, peut nous servir dexemple. Dans la terre de leurs pres, comme au milieu des nations trangres, ils continuent dtre ce quils ont t dabord, et mme quand ils se mlent dautres peuples, leur trace est encore reconnaissable pendant plusieurs gnrations. Il en est de mme de tous les peuples de lantiquit, des gyptiens, des Chinois, des Arabes, des Hindous, etc. Isols et opprims leur caractre en prit dautant plus de consistance ; si donc chacun des ces peuples tait rest attach au sol qui la vu natre, on pourrait considrer la terre comme un jardin o fleurirent et l, avec des attitudes et des proprits diverses, une foule de plantes humaines, en mme temps que de nombreuses espces danimaux, rparties avec art, animaient ce spectacle de varit de leurs instincts et de leus caractres. 22

Herder conseguiu, a partir de seus conceitos de humanidade, raa e clima, remodelar e

relativizar por completo a concepo em torno do determinismo climtico, influenciando

com suas teses o nacionalismo romntico emergente. A metfora utilizada por ele, de que

as culturas e as civilizaes so resultado direto de um crescimento orgnico e de uma flo-

rao espontnea vo influir na compreenso de que cada raa, como manifestao e ex-

presso do todo da humanidade, um produto do clima, das circunstncias temporais e,

portanto, com virtudes prprias nacionais e seculares, flores que crescem sob determinado

cu onde prosperam custa de quase nada, mas morrem e murcham miseravelmente em

outro lugar.... 23 Em conseqncia de tais idias, a atuao de Herder como pensador e

agitador poltico foi fundamental na Alemanha do final do sculo 18 e princpios do sculo

19, porque permitiu a emergncia de uma identidade alem, singular, prpria e intransfer-

vel, a partir da concepo de que as culturas e civilizaes delas resultantes so como plan-

tas que se adaptam ao meio circundante e que, mesmo quando trasnplantadas, preservam os

22 Idem, ibidem, p. cit. 23 HERDER, Johann Gottfried von Herder. Filosofia de la historia para la educacin de la humanidad. Trad. Elsa Tabernig. Edit. Nova, p. 55. Citado NUNES, Benedito. A viso romntica. In: GUINSBURG, Jac (org.). Op. cit., p. 59.

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

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seus traos distintivos, embora amoldando-se s novas coeres, mas preservando as suas

aptides e atributos inatos. Suas teses vo influenciar profundamente, em decorrncia disso,

os escritores romnticos no apenas da Alemanha, mas de toda a Europa e, particularmente,

da Frana. Atravs de sua filosofia da histria, retorna o interesse europeu pelo perodo

medieval, pelo Oriente como outro modelo civilizatrio alternativo ao europeu, pelo estudo

da linguagem e da literatura comparada, por uma concepo de poesia como veculo de

transmisso da educao nacional e, portanto, como instrumento civilizatrio e formador da

identidade local. 24

Uma pletora de pensadores e literatos segue o rastro das reflexes de Herder, permi-

tindo o florescimento do romantismo: Hlderlin, Jean Paul, Novalis, os irmos Schelegel,

Schelling, Hegel, Schleiermacher, Humboldt e Madame de Stal, todos profundos admira-

dores e leitores vorazes da obra de Herder. O caso particular de Mme. de Stal chama aten-

o porque, apesar de ser conhecida como a mais notvel difusora das idias do romantis-

mo alemo pelo mundo, o seu pensamento pouco ou nada tem de original e suas idias no

so prprias, pois so, em muitos pontos, apenas uma resenha do pensamento herderiano e

dos autores que o inspiraram, na linha de tradio da teoria dos climas e reflexo sobre o

processo civilizatrio:

Les hommes de lettres, en Allemagne, sont beaucoup dgards la runion la plus respectable que le monde clair puisse offrir, et parmi ces hommes, Herder mrite encore une place part : son me, son gnie et sa moralit tout ensemble, ont illustr sa vie. Ses crits peuvent tre considrs sous trois rapports diffrents, lhistoire, la littrature et la thologie. Il stait fort occup de lantiquit en gnral, et des langues orientales en particulier. Son livre intitul : la Philosophie de lHistoire, est peut-tre le livre allemand crit avec le plus de charme. On ny trouve pas la mme profondeur d'observations politiques que dans l'ouvrage de Montesquieu, sur les Causes de la grandeur et de la dcadence des Romains ; mais comme Herder s'attachait pntrer le gnie des temps les plus reculs, peut-tre que la qualit qu'il possdait au suprme degr, l'imagination, servait mieux que toute autre les faire connatre. Il faut ce flambeau pour marcher dans les tnbres. C'est une lecture dlicieuse que les divers chapitres de Herder sur Perspolis et Babylone, sur les Hbreux et sur les gyptiens; il semble qu'on se promne au milieu de l'ancien monde avec un pote historien, qui touche les ruines de sa baguette, et reconstruit nos yeux les difices abattus. 25

24 CASANOVA, Pascale. A repblica mundial das letras. Traduo de Marina Appenzeller. So Paulo: Esta-o Liberdade, 2002, p. 103. 25 STAL-HOLSTEIN, Madame la Baronne. Oeuvres compltes. Tome Deuxime. Paris: Typographie de Firmin Didot Frres, 1861, pp. 156-157.

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

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At mesmo a sua mais propalada diviso, entre literaturas do Norte e do Sul, extra-

da de antigas concepes da teoria dos climas em diversos autores, particularmente em Ibn

Khaldoun e Jean Bodin, seguindo os passos da tradio. O pensamento de Herder, apesar

de no ter influenciado diretamente as literaturas nascentes de jovens naes como o Brasil,

entretanto alcanou os intelectuais e literatos brasileiros atravs de Mme. de Stal, embora

alguns tenham se dado ao trabalho de cit-lo na aurora da definio da identidade cultural

da nao, como o caso de Joo Manuel Pereira da Silva:

O nosso seculo considera a historia de duas maneiras, ou particular, ou universal. A primeira consiste em escrever, segundo o[s] grandes modelos, os acontecimen-tos, com toda a verdade, e critica, em marcar cada povo seu typo peculiar, a marcha da civilisao, o estado da industria, e o avanamento e progresso das na-oens. A esta escola pertencem Thierry, Lingard, Sismondi, e Muller, historiado-res modernos. A segunda maneira de considerar a historia, philosophica e ideal. Giambatista Vico no seculo passado estabelece leis universaes da humanidade, eleva-se da representao ideia, dos phenomenos essencia; attendendo ao principio da natureza idntica em todas as naoens, forma uma historia abstracta, no pertencendo nenhuma; Herder e Hegel continuam no nosso seculo esta tare-fa, e consideram a humanidade, como marchando um fim, isto , perfectbili-dade, s sendo o que podia ser, e nada seno o que ella podia ser... 26

Atravs, portanto, a influncia das idias de Herder e Pereira da Silva, um dos fun-

dadores da revista Niteri, d demonstraes de t-lo lido, ao menos em algum ponto ,

foram decisivas para que os intelectuais brasileiros se empenhasssem em dotar o Brasil de

uma literatura reconhecida e independente, a partir da convico herderiana de que toda

nao constitui um organismo vivo e autnomo, cuja finalidade desenvolver o seu gnio

particular e prprio, mas que, tal como a Alemanha, precisava olhar para a lngua e as tra-

dies nacionais a fim de encontrar o trao distintivo que permitiria a fundao de uma

nova forma de produo literria. A utilizao, portanto, dos preceitos herderianos, direta

ou indiretamente, permitiu que a nao brasileira entrasse no vestbulo da comunidade lite-

rria internacional, afirmando a sua indentidade peculiar apesar do atraso em que se encon-

trava, um feito que se adiantou em muito prpria Alemanha, cuja construo e definio

26 SILVA, J. M. Pereira da. Estudos sobre a litteratura. In: NITHEROY: REVISTA BRASILIENSE; SCI-ENCIAS, LETRAS E ARTES. Tomo Segundo, n. 1. Paris: Dauvin et Fontaine, Libraires, 1836, pp. 341-342.

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

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de nacionalidade arrastou-se por muitas dcadas aps o falecimento de Herder, o inventor

filosfico da nacionalidade alem. Esse descompasso compreensvel em razo das pr-

prias caractersticas da filosofia herderiana, que concedia a cada povo, a cada cultura, a

cada pas, a cada nao o preceito de uma individualidade singular e uma existncia prpria

que, a priori, eram iguais aos demais povos, culturas, pases e naes de todo o mundo, j

que todos tinham direito a uma expresso original e peculiar da humanidade, da qual todos

faziam parte no tempo e no espao. Desse modo, concebendo a origem de toda cultura nas

tradies populares de uma nao e seu desenvolvimento histrico como conseqncia da

alma ou do gnio nacional de cada povo, que a fonte legtima e original de toda criativi-

dade artstica e cientfica, as proposies de Herder provocam uma revoluo que, partindo

do sculo 18, arrastou-se por todo o sculo 19 e plasmou-se at na filosofia de certas mani-

festaes do nacionalismo do sculo 20, desbaratando as velhas concepes e pressupostos

clssicos da cultura, considerados at o advento do romantismo como inalcanveis, o que

permitiu s literaturas subordinadas s metrpoles intelectuais do mundo desvencilharem-se

da noo de nobreza literria e lingstica e adotarem a sua prpria expresso. 27

, pois, neste sentido que a evoluo das idias, originrias da teoria dos climas, cuja

expresso e desenvolvimento mximo foram alcanados por Herder em outro sentido e te-

los, atravessam todo este trabalho. Longe de ser simplesmente uma metfora, a exaltao da

natureza tornou-se um tpico, para no dizer um trpico, muito importante do pensamento

oitocentista em todo o mundo, e as idias de Herder, remodelando o antigo determinismo

climtico que sempre orientou a tentativa europia de compreender a alteridade, plasma-

ram-se na tradio ocidental recente e determinaram um novo rumo para a noo de pro-

cesso civilizatrio e de cultura. O termo cultura, de problemtica e controversa definio, 28 tomado aqui, no entanto, a partir da acepo latina de cultivo, tem inclusive um papel

fundamental nas concepes herderianas sobre os traos peculiares da formao cultural de

cada povo; a idia de florao espontnea tambm se conecta com a tese de que cada cultu-

ra uma planta que precisa ser cultivada e desenvolvida pelo solo que a adotou, de modo

que, como organismo natural, em direta correlao com o ambiente natural e o humano, ela 27 CASANOVA, Pascale. Op. cit., p. 102. 28 BURKE, Peter. O que histria cultural? 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, pp. 42-43.

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

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poderia atingir o seu grau mximo de expresso e desenvolvimento, ao encontro da huma-

nidade.

Passemos agora explanao dos procedimentos metodolgicos que atravessam todo

este trabalho, a fim de esclarecer a adoo de determinados conceitos e teorias.

Na segunda parte de As regras da arte, intitulada Fundamentos de uma cincia das

obras,29 Pierre Bourdieu declara que jamais teve grande gosto pela grande teoria, abju-

rando os trabalhos que podem ou pretendem entrar nesta categoria, experimentando assim a

irritao diante de um modelo que considera hipcrita, ao realizar uma combinao para ele

abominvel, tpica da realidade acadmica ou escolar, de falsas audcias e prudncias ver-

dadeiras.30 De igual forma, realizar uma enumerao heterclita de nomes prprios se-

guidos de uma data, em uma obedincia talvez cega procisso de conceitos extrados em

forma de sntese das imensas bibliografias seria um fastidioso exerccio de disposio e

sacrifcio. Contudo, adaptar-se ao esforo, em muitos casos, de mero copista ou intrprete

das teses, investigaes e idias alheias, no havendo muita sada seno encontrar uma que

servisse ao menos aos intentos de uma tica indecisa e fluida, parece desde sempre um pre-

o muito pequeno a pagar por uma srie de leituras fundantes, que ampliam o impalpvel

horizonte terico, mas igualmente tico, uma vez que a produo de conhecimento no

um monlogo, e pressupe o coro de muitas vozes que, s vezes, formam uma harmonia

aprazvel, em outros, uma completa dissonncia e atonalismo. Deste modo, por uma ques-

to de mtodo, a teoria, utilizada de uma forma meramente repetitiva, sem haver um mer-

gulho hermenutico at mesmo em questes epistmicas que nada solicitam de hermenuti-

ca, no havendo nenhuma convico, seria apenas uma tabula rasa sobre a qual se aplica

indiscriminadamente o discurso acadmico. Ainda por uma questo de mtodo, deve-se

olhar para um corpo terico como uma viso de mundo a ser entendida, igualmente procu-

rar, tais quais seus autores, uma teoria ou vrias teorias afins entre si - com pontos de conta-

to que permitissem a coerncia epistemolgica, claro - que pudessem servir s causas, s

idias e, portanto, estivessem como um problema existencial, no qual se deposita o calor de

uma f cientfica, com tudo o que de aparentemente contraditrio e paradoxal isto possua. 29 Em BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gnese e estrutura do campo literrio. Trad. de Maria Lcia Machado. So Paulo: Companhia das Letras, p. 200. 30 Idem, ibidem, p. cit.

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

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A teoria, o mtodo, ou ainda os procedimentos de pesquisa, devem, ou deveriam, es-

tar silenciados, presentes na sua ausncia, ou seja: prefervel que nenhum procedimento

terico ou metodolgico estivesse explcito, fosse atravs de uma enumerao ou listagem,

fosse atravs da simples nomeao. Neste sentido, todo captulo terico intil, porque a

teoria deve ser o ar que respira: invisvel, inodoro, imperceptvel at mesmo ao tato, mas

presente, vital. Realizemos, porm, o mais sumariamente possvel, o inventrio de todos os

procedimentos a ser adotados e as principais leituras utilizadas para chegar atual concep-

o de texto e pesquisa no presente trabalho, uma vez que no possvel criar um discurso

coerente sem a devida fundamentao que lhe permite a existncia. Para tanto, preciso

revisitar um conjunto de conceitos fundamentais.

A primeira questo diz respeito ao clssico problema dos grandes perodos adotados

em uma determinada forma de historiografia, literria ou no. claro que no adotamos um

dilatado perodo cronolgico como uma continuidade ou uma srie ininterrupta, na qual as

rupturas, acolhendo aqui a recomendao foucaultiana, sejam elas de ordem poltica ou

qualquer natureza, no aparecem por sob toda uma densa camada de acontecimentos 31

que a narrativa historiogrfica tradicional tende a suprimir. possvel perceber isto quando

se realiza o dilogo comparativo e crtico com as fontes. Ademais, a recomendao de Fou-

cault obriga o historiador a pensar que, por maior ou menor que seja a largueza de um

grande perodo e o desfile de seus episdios, no se deve negligenciar questionamentos nos

quais os estratos, as sries, os critrios de periodizao, as relaes de hierarquia, dominn-

cia, interao, causalidade so problematizados em relao direta com um objeto. Em nosso

caso, o campo literrio e intelectual oitocentista em contraponto ao projeto de formao da

nacionalidade brasileira estaria no centro de toda construo discursiva, como tambm a

posio deste mesmo campo no campo do poder. Desta forma, no devemos pensar o pas-

sado ou o objeto em questo sob o prisma das grandes pocas ou sculos, nem tampou-

co deslocar nossa ateno apenas para os chamados fenmenos de ruptura, quais sejam: no

pensar uma poca ou, em nosso caso, o campo literrio maranhense, como uma grande se-

qncia de pensamentos ou prticas sociais, evitando assim interpretaes que caiam na

31 FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Traduo de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2004, p. 3.

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simples e pura anlise das manifestaes macias e homogneas de um esprito ou de uma

mentalidade coletiva, 32 procurando, no lugar da persistncia de um determinado gnero

ou atividade intelectual, a incidncia das interrupes, ou as descontinuidades possveis

de ser detectadas a partir do confronto entre o projeto de nacionalidade brasileira do oito-

centos e o campo literrio. Com isto, a tendncia ser, em no mais ver a obra de um inte-

lectual ou produtor cultural como um acontecimento isolado, mas v-la em funo dos des-

locamentos e transformaes pelas quais aquele perodo passou; trata-se aqui de no ver a

histria da literatura como a simples descrio das influncias, da tradio, do legado ou

das continuidades culturais, nem como um sucedneo de grupos, escolas, geraes,

movimentos, autores e suas respectivas obras conceitos todos que aqui estaro em

suspenso. Trata-se, de igual forma, de no ver as obras e seus respectivos autores co-

mo meras personagens no jogo de trocas e transferncias simblicas que mantm direta

relao ou no com suas vidas ou biografias, nem de ver apenas a estrutura prpria de uma

obra, de um livro, de um texto, de uma idia, de um mito, na perspectiva estenogrfica de

Bourdieu. Como sugere Foucault, o problema aqui no saber os caminhos ou as perip-

cias das continuidades ou das homogeneizaes culturais, nem estabelecer uma perspectiva

nica para todas as digresses, retomadas, afastamentos, descolamentos, perdas, rupturas.

Portanto, o problema no mais a tradio e o rastro, mas o recorte e o limite; no mais

o fundamento que se perpetua, e sim as transformaes que valem como fundao e reno-

vao dos fundamentos. 33

Desta forma, as questes tambm devem ser direcionadas no sentido da descontinui-

dade, do corte, da ruptura, da mutao, da adaptao, da transformao, estando Foucault

nisto em pleno acordo com o pensamento de Bourdieu, em As regras da arte. Trata-se, por-

tanto, de seguir as recomendaes de Le Goff e Foucault de realizar a abordagem do texto

como monumento, literrio ou no; trata-se, ainda, no de analisar tais textos ou documen-

tos produzidos pelo campo literrio como um simples conjunto de indcios, pistas ou sinais

para que sejam inseridos em uma interpretao capaz de delinear o rosto de uma poca.

Est claro, todavia, que com esta postura no estamos a procurar a verdade e tampouco o

32 Idem, ibidem, p. 4. 33 Idem, ibidem, p. 6.

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

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real atravs dos textos e documentos a ser analisados, mas o processo histrico iniciado

pela Independncia do Brasil e a conseqente inveno de uma nacionalidade brasileira e

do discurso sobre o campo literrio brasileiro e seus efeitos discursivos e culturais sobre a

sociedade oitocentista e, mais especificamente, sobre o campo literrio e intelectual deste

perodo.

Entretanto, qualquer empreendimento de natureza cientfica tem como resultado a

produo de artefatos lingsticos autnomos lnguas, linguagens ou discursos prprios

que aspiram ao carter de objetividade ou positividade, nos termos de um Foucault de As

palavras e as coisas atinge um ponto crucial da discusso mais atual sobre a teoria, mto-

do e epistemologia da disciplina histogrfica. Claro que tal reflexo contribui para assentar

conhecimentos sobre a questo metodolgica da historiografia, ou de como a escrita nela

desempenha a engrenagem central de toda produo de objetividade ou conhecimento. Des-

te modo, a reflexo de Foucault torna-se clara quando sua discusso atinge a diferena entre

discurso e corpo social, como a opacidade silenciosa da realidade, no sentido de tentar

apreend-la atravs da linguagem e da escrita, impede muitas vezes o historiador da litera-

tura de construir vises coerentes do passado que, quando o so, ainda assim continuam

lacunares e parciais, pois a escrita no preenche os vazios deixados pelos vestgios huma-

nos e pela documentao, que no raro desenganam a inquirio intelectual da investigao

historiogrfica. Assim, a noo de lugar de produo do discurso historiogrfico funda-

mental na medida em que isto nos coloca diante do eterno paradoxo das humanidades: o

conflito, talvez insolvel, entre distanciamento do objeto e um certo envolvimento afetivo

com o mesmo, de tal modo que a subjetividade, por mais imparcial que seja, sempre im-

prime a sua marca ao longo de toda escrita. Com efeito, as questes levantadas sobre as

produes de lugar, de como os problemas de mtodo refletem sobre a construo do senti-

do, ou como a histria uma prtica intelectual que resulta sempre em um discurso passvel

de ser desconstrudo, ou ainda como a prpria disciplina historiogrfica se vale disto para

reelaborar-se metodologicamente, constituem contribuies cabais no sentido de nos fami-

liarizarmos com a historiografia e suas prticas discursivas. De qualquer modo, a disciplina

historiogrfica apenas, entre tantas, mais uma prtica discursiva. Sua finalidade, em ter-

mos gerais, interpretar, no decerto como a hermenutica, mas igualmente no muito lon-

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

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ge dela; seu produto final um discurso, cujo impacto sobre o real , quando nada, relativo.

De resto, se partimos da iluso de que o historiador age como um transformador de mat-

rias primas, como uma informao primria obtida em uma fonte, em produtos standard

as informaes secundrias -, ele o faz unicamente porque transporta tais informaes de

uma regio aparentemente morta da cultura os arquivos, documentos, curiosidades,

dentre outras para uma outra: a histria. Tais operaes, contudo, ocorrem apenas ao

nvel da escrita, do discurso, e so mais fruto da presuno que a escrita nos empresta que

de uma prtica que possa realmente ser chamada de objetiva. A levar em considerao esta

postura, no se escreveria, no se realizaria pesquisas, e a disciplina historiogrfica seria,

quando nada, um anedotrio difuso e controverso. No seria possvel, ento, chegar a este

texto.

Porm, interessa-nos especialmente a relao possvel entre literatura e histria. Com

efeito, a primeira delas, que tambm desejamos, uma plena aproximao histrica com os

textos, lembrando que nossa perspectiva contempornea no pode ser vista como invariante

ou como universal. Desta forma, no devemos partir do espontanesmo da suposio que

todos os textos, obras, escritos em todos os gneros, foram originalmente compostos, publi-

cados, lidos e recebidos pelo pblico de sua poca em conformidade com os juzos e crit-

rios que tipificam a nossa atual relao com o escrito, ou, em nosso caso, com a literatura.

Sendo assim, necessrio identificar e isolar histrica e morfologicamente as diversas for-

mas da inscrio e transmisso dos discursos, no sentido de reconhecer a multiplicidade das

operaes formais e dos atores envolvidos tanto na produo e na publicao de qualquer

texto, da mesma forma que buscando compreender historicamente os efeitos produzidos

pelos aspectos formais dos discursos sobre a construo do sentido que transmitem atravs

da histria. Em funo disso, necessrio considerar o sentido dos textos historicamente,

ou seja, historicizar a produo do sentido como resultante de uma operao situada entre a

inveno literria e os discursos, ou a prxis social que d o fundamento material e a estru-

tura da criao esttica, bem como possibilitar as condies materiais e sociais de sua re-

cepo, compreenso e leitura. Deste modo, utilizam-se os fundamentos para o entendimen-

to histrico de uma funo-leitor, ou seja, uma derivao conceitual das condies histri-

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

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cas necessrias para a recepo crtica de um texto, muito prxima das concepes tericas

da esttica da recepo.

Uma segunda forma de avaliar a relao entre histria e literatura considera alguns

textos literrios pela sua aguda originalidade quanto representao dos prprios mecanis-

mos materiais digamos, lingsticos que regem a produo e transmisso do sentido

esttico, ou seja, a questo da metalinguagem literria. Em tais textos, impe-se a necessi-

dade aos historiadores da literatura de pensar de outra forma as categorias que do forma e

existncia instituio literria. Contudo, a abordagem suscitada em relao a estes tex-

tos parece-nos impertinente, em razo da natureza dos textos literrios usados nesta pesqui-

sa, bem como em funo da poca a que nos propomos avaliar. Nossa reflexo parte de

textos oitocentistas, sobretudo do perodo romntico de nossa literatura e, portanto, a identi-

ficao de um texto literrio, para esta poca, ainda parte de noes estabelecidas desde a

Antigidade para o discurso literrio, ou seja: a) o texto um escrito fixo, estvel, analis-

vel e manipulvel em funo mesmo de sua permanncia fsica; b) o texto uma obra pro-

duzida para um leitor, que a l em silncio, para si mesmo e sozinho, mesmo em meio da

multido; c) a leitura uma atribuio do texto a um determinado autor e tambm como

uma decifrao do sentido. Contudo, h igualmente a necessidade de se por em suspenso ou

operar um afastamento em relao a estes trs pressupostos no sentido de compreender as

razes da produo, as formas de realizao e os modos de apropriao das obras do passa-

do. Neste ponto, os conceitos histricos de obra, autor e comentrio so fundamentais para

a elaborao de nossa viso quanto noo, entre os produtores culturais do perodo a ser

analisado, destes trs elementos discursivos, isto , como resultados de um discurso e sua

prxis social.

Primeiramente, no h hierarquia entre as instncias econmica, social e cultural, da

mesma forma que no h relao de determinao ou de prioridade entre elas; todas so

campos de prtica e produo cultural. Com efeito, todas as prticas sociais, econmicas

e culturais dependem das representaes manipuladas pelos homens que conferem senti-

do ou significado ao seu mundo, o que tambm caracteriza, em ltima instncia, uma prxis

social. Porm, no realizamos a defesa da cientificidade do discurso histrico ou mesmo da

disciplina histrica. Ponto pacfico o fato de a escrita da histria sempre uma narrao,

ATENIENSES E FLUMINENSES: A INVENO DO CNONE NACIONAL

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porm no est radicalmente distanciada do gnero literrio ou da fico, uma vez que, para

a sua construo, a disciplina histrica se vale de estruturas narrativas que a aproximam

demasiado da literatura, no sentido mesmo da utilizao de tropos discursivos, e tambm

no sentido do relato verdico. Alm de tudo, a defesa da histria como conhecimento cient-

fico segundo o modelo das cincias lgicas e biolgicas ou da natureza jamais con-

vincente, uma vez que, na tentativa de por fim querela sobre a natureza cientfica do dis-

curso histrico, o historiador acaba por ceder idia de que no h sada para o discurso

historiogrfico a no ser postular duas alternativas: ou o relativismo de uma histria en-

quanto fico, ou a iluso de uma histria enquanto cincia positiva. Com efeito, h a im-

possibilidade concreta de uma definio cientfica do conhecimento histrico, da mesma

forma que cede natureza discursiva deste conhecimento. Portanto, fica-se em uma encru-

zilhada epistemolgica insolvel, um caminho que acaba por ser difcil, complicado, ins-

tvel. 34

O livro, no fluxo da histria da cultura, , de qualquer modo, o elo principal de regis-

tro e transmisso de valores e sentidos, ator principal na questo da recepo de uma obra,

no sentido de instaurar uma ordem discursiva da cultura, a qual subsiste no tnue espao de

atuao tensional que se estabelece entre as capacidades criativas individuais ou coletivas e

as imposies, normas ou contraintes que as cercam histrica e socialmente. Por esta razo,

a postura que adotamos parte do pressuposto de que h uma ordem do discurso ao longo de

uma determinada bibliografia historiogrfica, motivo que nos levou a questionar as fontes,

em diversos momentos, como elos que se articulam entre si, formando, para alm da mera

questo documental, uma discursividade que produz um representativo agrupamento de

sentidos e, portanto, abre a possibilidade para um campo de representaes e lutas simbli-

cas, articuladas tambm discursivamente. E j que se chegou questo da representao, o

conceito operacional quando se queira trabalhar com uma histria da leitura ou da funo-

leitor sugerida por Roger Chartier, porm quando de se trata de analisar as disposies da

prxis social em relao s disputas de poder em um determinado campo em nosso caso,

literrio as noes de habitus e campo em outros momentos nos parecero mais adequa-

das, uma vez que o objetivo no analisar os mecanismos e a prxis social que permitiu a

34 CHARTIER, Roger. Literatura e histria. In: Revista Topi. Rio de Janeiro, n. 1, p. 212.

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recepo de uma determinada obra ou conjunto de obras, mas sim a dinmica das trocas

simblicas entre agentes culturais de um determinado perodo e suas relaes com o poder

e o projeto histrico de nacionalidade que se agitava no Brasil do sculo XIX, em confor-

midade como uma elite local, agrria e oligrquica, desejava pensar-se em termos histri-

cos, articulando para tanto um conjunto expressivo de representaes ensejada por uma

historiografia repleta de recursos alegricos. Neste sentido, o pensamento de Chartier, em A

histria cultural, no deixa de ser um recurso atraente para esta finalidade, sobretudo quan-

do fala de estratgias, prticas sociais e lutas de representaes35, no sentido de compreen-

der os mecanismos pelos quais um grupo tentar impor ou impe a sua concepo sobre o

mundo social e sobre si mesmo, seus valores e seu domnio ou quando trata do aspecto

simblico das representaes coletivas36, quando os grupos constroem uma viso ou or-

ganizao conceitual do mundo social ou ainda a sua prpria realidade apreendida no terre-

no das lutas simblicas. Utilizaremos este conceito em diversos momentos para chegar a

apreender a forma como a sociedade oitocentista, principalmente seus literatos, criam estra-

tgias que organizam o real, de modo que possamos apreend-las igualmente na ordem dis-

cursiva j referida em linhas anterio