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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ TONY SERPA RELIGIÃO E LIBERDADE: a argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54 e a influência da Igreja Católica na liberdade dos não católicos Tijucas 2008

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ

TONY SERPA

RELIGIÃO E LIBERDADE:

a argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54 e a influência da

Igreja Católica na liberdade dos não católicos

Tijucas

2008

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TONY SERPA

RELIGIÃO E LIBERDADE:

a argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54 e a influência da

Igreja Católica na liberdade dos não católicos

Monografia apresentada como requisito parcial para a

obtenção do título de Bacharel em Direito, pela

Universidade do Vale do Itajaí, Centro de Ciências

Sociais e Jurídicas, campus de Tijucas.

Orientador: MSc. Alexandre Botelho

Tijucas

2008

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TONY SERPA

RELIGIÃO E LIBERDADE:

a argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54 e a influência da

Igreja Católica na liberdade dos não católicos

Esta Monografia foi julgada adequada para obtenção do título de Bacharel em Direito e

aprovada pelo Curso de Direito do Centro de Ciências Sociais e Jurídicas, campus de Tijucas.

Área de Concentração/Linha de Pesquisa: Direito Público/Direito Constitucional

Tijucas, 5 de dezembro de 2008.

MSc. Alexandre Botelho

Orientador

Prof. MSc. Marcos Alberto Carvalho de Freitas

Responsável pelo Núcleo de Prática Jurídica

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Este trabalho é dedicado à Iane, minha flor que nunca murcha.

Dedico ainda à minha vó Cota, aos meus sogros seu Altino e dona

Irma, que mesmo sem educação formal reúnem conhecimento sobre a

vida que jamais poderei alcançar.

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Jamais conseguirei retribuir o apoio, a ajuda e o estímulo que me foram proporcionados pela

minha família. Não preciso nominá-los, pois cada um sabe da importância de sua participação

individual – e neste caso o todo é maior que a soma das partes. Sem vocês eu não conseguiria

chegar até aqui, pelo que lhes sou grato. Estou em débito pelo resto de minha vida.

Assim como minha família, meus colegas e amigos desempenharam papel imprescindível na

minha trajetória acadêmica – e na minha formação como um todo. Agradeço-os todos, e já

sinto saudades das aulas. Um agradecimento especial é devido à Fabiana, por todas nossas

discussões e trabalhos juntos. Meu aprendizado com ela superou o de muitas aulas...

Agradeço ao Botelho, meu orientador, que para mim foi e é um modelo de dedicação e

competência a ser seguido.

Agradeço aos professores que me aturaram – não posso deixar de mencionar Adilor Borges,

Aldo Bonatto, Ana Maria Cordeiro, Celso Leal, Clóvis Colpani, Diego Ronconi, Eunice

Pelizzaro, Everaldo Dias, Fernando Fernandez (argentino), Jonas Modesto, Leonardo

Matioda, Marta Deligdisch, Marcos Freitas, Newton Pilau, Pedro Walicoski, Solange Kool e

Vilson Fontana. São todos responsáveis pelo que sou – para o bem ou para o mal.

Estendo o agradecimento aos funcionários do campus de Tijucas da UNIVALI. Devo ainda

dizer que sem a Leila nosso dia-a-dia no NPJ seria terrivelmente mais complicado. Ah se o

professor Marcos soubesse de tudo que ela faz por nós...

Na reta final foram essenciais as contribuições da Pollyana, do Anderson e do seu Aldo (pelos

livros), da Amanda e da Rosângela (pelas bíblias), e da Juliana, do Marcelo, da Michelle

(prenha!) e da Monique (pelos ensaios).

Por último e mais importante, merecem especial agradecimento a Iane, minha mulher, e a

Laura, minha filha. Diariamente as duas me fazem querer ser um homem melhor, e são as

únicas pessoas que temo desapontar.

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Os homens só serão livres quando o último rei for enforcado nas tripas

do último padre.

Diderot

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte

ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí –

UNIVALI, a Banca Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca

do mesmo.

Tijucas, 5 de dezembro de 2008.

Tony Serpa

Graduando

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RESUMO

O tema desta monografia é “Religião e Liberdade: a argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54 e a influência da Igreja Católica na liberdade dos não católicos”. Seu objetivo é descobrir se a atuação da Igreja Católica no processo pode influenciar a liberdade dos não católicos, impondo-lhes alguma parcela da moral católica; o tema foi delimitado à atuação da Igreja Católica naquele processo e suas possíveis implicações. Os questionamentos que guiaram a pesquisa são os seguintes: 1) A Igreja Católica tem condições de influenciar o julgamento da ADPF n. 54? 2) Caso a resposta ao primeiro questionamento seja positiva, essa influência católica alcançaria os não católicos? 3) Caso positiva a resposta ao segundo questionamento, seria afetada especificamente a liberdade dos não católicos? 4) Caso a resposta ao terceiro questionamento seja novamente positiva, a influência da Igreja Católica na liberdade dos não católicos pode ser considerada como atentatória aos direitos fundamentais? As hipóteses consideradas para a resposta dos questionamentos são sempre positivas ou negativas, e admite-se como variável a decisão de mérito no processo que julgue procedente o pedido. O texto foi estruturado em quatro capítulos: no primeiro, trata-se dos direitos fundamentais; no segundo, aborda-se a liberdade; no terceiro trata-se do fenômeno religioso e da Igreja Católica; no quarto e derradeiro capítulo o foco é a atuação da Igreja Católica na ADPF n. 54. Na pesquisa e neste relato o método utilizado é o dedutivo. Nas considerações finais, verifica-se que em todos os questionamentos a hipótese confirmada é a afirmativa.

Palavras-chave:

Direitos fundamentais Liberdade Religião

Igreja Católica

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ABSTRACT

This monograph’s topic is “Religion and Liberty: the accusation of fundamental precept breach (ADPF) 54 and the Catholic’s Church influence in the liberty of non-catholics”. It’s main purpose is to find out if Catholic’s Church role on that trial may influence the liberty of non-catholic individuals by imposing them any portion of catholic morality. The topic’s scope is limited to the Catholic’s Church role on that specific trial and its possible implications. The questions that guided the research are as follows: 1) Is Catholic Church able to influence the ADPF 54 trial? 2) If so, would this influence reach out the non-catholics? 3) In the case of another positive answer, would be specifically affected the liberty of non-catholics? 4) Finally, if the answer to the third question is positive, this influence of Catholic Church on the liberty of non-catholics may be regarded as violation of human rights? The considered hypothesis are always positive or negative, and is accepted as a variable the final decision on the trial wich upholds the request. The final text is divided into four chapters, as follows: the first one addresses the human rights; the second one, liberty as a human right; the third chapter addresses religious phenomenom and the Catholic Church; in the fourth and final chapter the focus is the role of Catholic Church on the ADPF 54. Throughout the research and the report it’s used the deductive methodology. In closing comments it’s stated that all the answers to the proposed questions are affirmative.

Key-words:

Human rights Liberty Religion

Catholic Church

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LISTA DE ABREVIATURAS

§ parágrafo

abr. abril

ago. agosto

art. artigo

coord. coordenador

D. Dom

dez. dezembro

fev. fevereiro

i.e. id est (isto é)

jan. janeiro

jul. julho

jun. junho

mar. março

Msc. Mestre

n. número

nov. novembro

out. outubro

org. organizador

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prof. professor

s.l. sine loco (sem local apontado)

set. setembro

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LISTA DE SIGLAS

AI Ato Institucional

ANC/1986 Assembléia Nacional Constituinte de 1986

CEUB/1937 Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937

CEUB/1946 Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946

CELAM/1968 Conferência do Conselho Episcopal Latino-Americano realizada em

Medellín, Colômbia, no ano de 1968

CLS Critical Legal Studies

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CPIB/1824 Constituição Política do Império do Brazil de 1924

CREUB/1891 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891

CREUB/1934 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934

CRFB/1967 Constituição da República Federativa do Brasil de 1967

CRFB/1988 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

DUDH/1948 Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948

EC/1969 Emenda Constitucional n. 1 de 1969

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

OAB Ordem dos Advogados do Brasil

ONU Organização das Nações Unidas

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STF Supremo Tribunal Federal

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LISTA DE CATEGORIAS E SEUS CONCEITOS OPERACIONAIS

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

Ação constitucional (prevista pelo art. 102, § 1° da CRFB/1988) introduzida no ordenamento infraconstitucional pela Lei n. 9.882/99; tem por objetivo sanar lesão (ou ameaça de lesão) a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público1.

Crença

Representações que exprimem a natureza das coisas sagradas e as relações que elas mantém, seja entre si, seja com as coisas profanas2.

Direitos Fundamentais

Conjunto de direitos constitucionalmente assegurados que tenham por objetivo possibilitar o desenvolvimento do ser humano de forma digna através de condições mínimas de liberdade3.

Direitos Humanos

Conjunto de direitos que tenham por objetivo possibilitar o desenvolvimento do ser humano de forma digna através de condições mínimas de liberdade, assim reconhecidos pela comunidade internacional em documentos da ONU4.

1 BRASIL. Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1° do art. 102 da Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm>. Acesso em: 25 out. 2008. 2 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 24. 3 Conceito operacional proposto por composição de CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 541. DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 1998, p. 7. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 1-12. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1° a 5° da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 39. PEDROSO, Antonio Carlos. A dimensão antropológica dos direitos fundamentais. In: BITTAR, Eduardo C. B.; FERRAZ, Anna Cândida da Cunha (Org.). Direitos humanos fundamentais: positivação e concretização. Osasco: EDIFIEO, 2006, p. 31. 4 Conceito operacional proposto por composição de CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 541. DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 1998, p. 7. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 1-12. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1° a 5° da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 39. PEDROSO, Antonio Carlos. A dimensão antropológica dos direitos fundamentais. In: BITTAR, Eduardo C. B.; FERRAZ, Anna Cândida da Cunha (Org.). Direitos humanos fundamentais: positivação e concretização. Osasco: EDIFIEO, 2006, p. 31.

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Estado

Agrupamento de indivíduos politicamente organizados, ocupando em caráter permanente um território independente de controle externo e possuindo um governo organizado a quem a população deve obediência5.

Igreja

Agrupamento social cujos membros estão unidos por representarem da mesma maneira o mundo sagrado e por traduzirem essa representação comum em práticas idênticas6.

Influência

Ação ou efeito que uma pessoa ou entidade exerce sobre outra. Como ação, no sentido da prática de atos diretos ou indiretos para que um determinado comportamento apareça em outra pessoa (atos diretos são os praticados sobre o destinatário da influência, e atos indiretos são os praticados sobre terceiros). Como efeito, assim entendido o resultado daquela ação, é o surgimento do comportamento do destinatário da influência que se alinhe com a intenção inicial do praticante da ação7.

Liberdade

Soma da capacidade do indivíduo de se auto determinar, assim entendida sua autonomia para decidir de per se seus valores e suas convicções, e da possibilidade de agir conforme sua determinação sem oposição indevida; por oposição indevida se entende toda aquela que não se destine a preservar a liberdade de outrem8.

Liberdade Religiosa

Parcela da Liberdade que diz respeito à capacidade do indivíduo de se auto determinar naquilo que toca a religião9.

Poder

Possibilidade de imposição de arbítrio por parte de um sujeito sobre o comportamento ou a conduta de outros indivíduos membro da sociedade10.

5 BOTELHO, Alexandre. Curso de ciência política. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005, p. 152. 6 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 28. 7 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 3. ed. [S.l.]: Positivo Informática, 2004. 1 CD-ROM. 8 Conceito operacional proposto por composição de BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora da UnB, 1981, p. 136-142. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 267-271. 9 Conceito operacional proposto por composição de BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora da UnB, 1981, p. 136-142. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 267-271. RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Mackenzie, 2002, p. 17-18. 10 BOTELHO, Alexandre. Curso de ciência política, p. 29.

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Política

Relacionamentos entre sujeitos caracterizados pelo interesse11.

Religião

Um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem12.

Sagrado

As coisas sagradas são aquelas que as proibições protegem e isolam, opondo-se às coisas profanas – que por sua vez são aquelas a que se aplicam essas proibições e que devem permanecer à distância das primeiras13.

11 BOTELHO, Alexandre. Curso de ciência política, p. 27. 12 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 32. 13 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 24.

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SUMÁRIO

RESUMO ............................................................................................................................. 7

ABSTRACT ......................................................................................................................... 8

LISTA DE ABREVIATURAS............................................................................................. 9

LISTA DE SIGLAS ........................................................................................................... 11

LISTA DE CATEGORIAS E SEUS CONCEITOS OPERACIONAIS........................... 13

SUMÁRIO.......................................................................................................................... 16

1 INTRODUÇÃO............................................................................................................... 20

2 DIREITOS FUNDAMENTAIS ...................................................................................... 30

2.1 ORIGEM E DESLOCAMENTOS HISTÓRICOS.......................................................... 30

2.1.1 Modelo inglês ............................................................................................................. 32

2.1.2 Modelo estadunidense ................................................................................................. 35

2.1.3 Modelo francês............................................................................................................ 38

2.1.4 O caso brasileiro.......................................................................................................... 40

2.1.4.1 Constituição Política do Império do Brazil de 1824.................................................. 42

2.1.4.2 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891............................ 42

2.1.4.3 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934............................ 43

2.1.4.4 Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937 ................................................. 45

2.1.4.5 Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 ................................................. 46

2.1.4.6 Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 ......................................... 47

2.1.4.7 Emenda Constitucional n.1 de 1969 ......................................................................... 49

2.1.4.8 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ......................................... 49

2.1.5 Processo de universalização: a Organização das Nações Unidas .................................. 52

2.2 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS............................................................................ 56

2.2.1 Conceito...................................................................................................................... 56

2.2.2 Características ............................................................................................................. 62

2.2.2.1 Historicidade............................................................................................................ 63

2.2.2.2 Universalidade ......................................................................................................... 64

2.2.2.3 Limitabilidade .......................................................................................................... 65

2.2.2.4 Concorrência ........................................................................................................... 67

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2.2.2.5 Irrenunciabilidade.................................................................................................... 67

2.2.2.6 Imprescritibilidade ................................................................................................... 67

2.2.2.7 Inalienabilidade ....................................................................................................... 68

2.2.2.8 Interdependência...................................................................................................... 68

2.2.2.9 Complementaridade ................................................................................................. 68

2.3 TERMINOLOGIA E TAXINOMIA .............................................................................. 68

2.3.1 Direitos humanos ou direitos fundamentais?................................................................ 70

2.3.2 Gerações de direitos .................................................................................................... 72

2.3.2.1 Direitos de primeira geração ou de liberdade .......................................................... 74

2.3.2.2 Direitos de segunda geração ou de igualdade .......................................................... 75

2.3.2.3 Direitos de terceira geração ou de fraternidade ....................................................... 76

2.3.2.4 Novos direitos: quarta e quinta gerações.................................................................. 77

2.3.3 Classificação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.................... 78

2.3.3.1 Direitos individuais e coletivos................................................................................. 78

2.3.3.2 Direitos sociais ........................................................................................................ 79

2.3.3.3 Nacionalidade .......................................................................................................... 80

2.3.3.4 Direitos políticos...................................................................................................... 80

2.3.3.5 Partidos Políticos..................................................................................................... 81

2.4 FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ......................................... 82

2.4.1 Teoria naturalista......................................................................................................... 87

2.4.2 Teoria positivista......................................................................................................... 88

2.4.3 Teoria moralista .......................................................................................................... 89

2.4.4 Teoria da solidariedade social...................................................................................... 90

2.4.5 Teoria racionalista e a dignidade da pessoa humana .................................................... 91

2.5 CRÍTICAS E NEGAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.................................. 98

2.5.1 Igreja Católica e a subversão à ordem e à autoridade ................................................... 99

2.5.2 Burke e a negação conservadora................................................................................ 104

2.5.3 Karl Marx e a dominação de classes .......................................................................... 105

2.5.4 Direitos fundamentais como guardiões da delinqüência............................................. 109

3 LIBERDADE ................................................................................................................ 110

3.1 DESLOCAMENTOS HISTÓRICOS ........................................................................... 110

3.2 LIBERDADE POSITIVA E LIBERDADE NEGATIVA ............................................. 119

3.3 LIBERDADE COMO DIREITO SUBJETIVO PÚBLICO........................................... 125

3.4 LIBERDADE COMO CÁLCULO DE RISCO............................................................. 126

3.5 DIMENSÕES DA LIBERDADE ................................................................................. 127

3.5.1 Liberdade da pessoa física......................................................................................... 127

3.5.2 Liberdade de pensamento .......................................................................................... 128

3.5.3 Liberdade de expressão coletiva ................................................................................ 129

3.5.4 Liberdade de ação profissional .................................................................................. 130

3.5.5 Liberdade de conteúdo econômico e social ................................................................ 130

3.6 LIBERDADE RELIGIOSA ......................................................................................... 131

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3.6.1 Liberdade de crença .................................................................................................. 134

3.6.2 Liberdade de culto..................................................................................................... 135

3.6.3 Liberdade de organização religiosa............................................................................ 136

4 RELIGIÃO E IGREJA CATÓLICA........................................................................... 137

4.1 O FENÔMENO RELIGIOSO ...................................................................................... 137

4.1.1 Feuerbach e o indivíduo: a consciência da consciência .............................................. 139

4.1.2 Durkheim e o fato social: o sagrado e o profano ........................................................ 140

4.1.3 Cassirer e o animal simbólico: a mitopoética ............................................................. 144

4.1.4 Deus: hominis delirium?............................................................................................ 149

4.1.5 Religião e ciência ...................................................................................................... 157

4.1.6 Igreja e poder ............................................................................................................ 159

4.1.7 Igreja e Estado........................................................................................................... 160

4.1.8 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a Igreja ............................ 163

4.2 CRISTIANISMO ......................................................................................................... 165

4.3 CATOLICISMO E IGREJA CATÓLICA .................................................................... 168

4.4 IGREJA CATÓLICA NO BRASIL: DESLOCAMENTOS HISTÓRICOS .................. 171

4.4.1 Fase da evangelização: o catolicismo patriarcal ......................................................... 171

4.4.2 Fase da expansão: o padroado ................................................................................... 172

4.4.3 Fase do renascimento: a pluralidade religiosa ............................................................ 174

4.4.4 Fase desenvolvimentista: a doutrina social ................................................................ 175

4.5 IGREJA CATÓLICA NO BRASIL: ATUAÇÃO POLÍTICA ...................................... 177

4.5.1 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ............................................................... 179

4.5.2 Comunidades Eclesiais de Base................................................................................. 180

4.5.3 Teologia da Libertação.............................................................................................. 181

4.5.4 Episódios recentes..................................................................................................... 186

5 A IGREJA CATÓLICA E OS NÃO CATÓLICOS: A ADPF N. 54 .......................... 190

5.1 QUESTÕES PROCESSUAIS RELEVANTES ............................................................ 190

5.1.1 Ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental ................................. 191

5.1.1.1 Pressupostos da ADPF........................................................................................... 193

5.1.1.2 Legitimação ativa................................................................................................... 194

5.1.1.3 Medida liminar e efeitos da sentença...................................................................... 195

5.1.2 Amicus curiae ........................................................................................................... 196

5.1.3 Interpretação conforme à constituição ....................................................................... 197

5.2 ANENCEFALIA E VIDA............................................................................................ 199

5.3 A ADPF N. 54 ............................................................................................................. 203

5.3.1 Causa de pedir e pedidos ........................................................................................... 204

5.3.2 Desdobramentos do processo..................................................................................... 205

5.4 A IGREJA CATÓLICA E OS NÃO CATÓLICOS NA ADPF N. 54 ........................... 212

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 216

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................ 221

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1 INTRODUÇÃO

Com a multiplicidade das profissões de fé que se pode observar em qualquer

sociedade moderna torna-se cada vez mais importante aprender sobre religião de maneira

geral e, de maneira específica, sobre as igrejas que mais proximamente nos cercam, para que

se possa estabelecer e manter contatos com pessoas de outros credos com urbanidade e

respeito às individualidades.

É que para respeitar determinada tradição é imperativo que se conheça, em maior ou

menor grau, seus detalhes; assim o é quando se visita um país de costumes diferentes, e não

poderia se dar de outra maneira quando se trata de lidar com pessoas de religiões diversas.

A tornar ainda mais fascinante esse cenário tem-se o crescimento diário do número de

pessoas que, pelos mais diversos motivos, abandonam qualquer crença religiosa e passam à

condição de ateus – ou em bom português, descrentes de qualquer Deus ou divindade.

Nesse caleidoscópio de relações hetero-religiosas, aí incluídos os não religiosos, surge

a questão da necessidade de afirmação da própria religião, em detrimento de todas as outras,

como a religião verdadeira, a certa, a única que leva à salvação – os adjetivos e predicados são

os mais diversos, mas o objetivo é um só: a, por assim dizer, vitória da religião própria sobre

as demais.

Mas essa busca de afirmação da religião, que passa pela atração do maior número

possível de fiéis, deságua em ações que objetivam o crescimento desse rebanho de maneiras

que nem sempre se revelam apropriadas – mesmo ao olhar não tão crítico do senso comum.

Essas ações ou práticas que demonstram falta de preocupação com os que não

comungam da mesma profissão de fé podem acarretar conseqüências mais sérias e danosas do

que o senso comum deixa perceber: podem mesmo afetar a liberdade dos indivíduos.

Nesse sentido é que o presente trabalho tem por objeto a influência da Igreja Católica

na liberdade dos não católicos. A importância desse fenômeno aumenta na medida em que o

catolicismo vai perdendo seu status de religião dominante no Brasil; em que pese a Igreja

Católica reúna aproximadamente 75% dos brasileiros, como será demonstrado no

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21

desenvolvimento do trabalho, dessa informação decorre logicamente que 25% não são

católicos.

Significa dizer, com base em dados do IBGE14, que somam mais de quarenta e cinco

milhões os brasileiros não católicos – há países, como Argentina, Canadá e Espanha, que não

contam com população total dessa magnitude. A possibilidade de tal número de pessoas

sofrerem interferências em sua liberdade por conta da atuação de Igreja da qual não

compartilham é situação que oferece oportunidades de pesquisa para estudiosos dos mais

diversos ramos da ciência – dos quais não se exclui a ciência jurídica.

Além desse aspecto quantitativo da importância do tema que aqui será abordado, sua

relevância qualitativa pode ser inferida pela notória presença da religião no cotidiano das

pessoas; uma vez que a religião é fator importante da vida humana, como sugere o senso

comum15, surge como questão pertinente a avaliação científica de eventual influência da

Igreja Católica na vida daqueles que não compartilham dessa religião – mais precisamente,

sua influência na liberdade desses não católicos.

O tema adquire excepcional abrangência se apresentado nos termos acima delineados;

para possibilitar abordagem científica visando produção de monografia jurídica se faz

necessária a delimitação do tema.

Pela conexão do tema proposto com a discussão empreendida na ação de argüição de

descumprimento de preceito fundamental que tramita no Supremo Tribunal Federal sob

número 54, considerada ainda a eficácia geral da decisão eventualmente prolatada neste

processo, é que se delimitou o tema à atuação da Igreja Católica nesta ação a aos possíveis

resultados dela provenientes.

O tema é atual – por sua natureza, quiçá nunca deixará de sê-lo – e antigo ao mesmo

tempo: a descrição de fenômenos religiosos é tema que pode ser encontrado nos escritos de

14 Informações da Contagem da População 2007, que “apresenta os totais populacionais provenientes da Contagem da População, com data de referência em 1º de abril de 2007, dos 5.435 municípios brasileiros que foram objetos desse levantamento censitário. Para os demais municípios, em um total de 128, e o Distrito Federal estão apresentadas as estimativas da população residente para a mesma data de referência, totalizando, assim, 5 564 municípios”. Cf. IBGE. Contagem da população 2007. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/contagem2007/default.shtm>. Acesso em: 5 nov. 2008. 15 E não só do senso comum, pois como anota Fábio Konder Comparato, desde o mundo antigo “a religião comanda a vida inteira das pessoas, do nascimento à morte. Ela domina a vida familiar, assim como a vida da cidade, fora do lar doméstico”. Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Ética, p. 50.

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qualquer época que se pesquise; tal característica permite e atribui maior valor à analise dos

deslocamentos históricos do tema – o que será observado ao longo do trabalho.

Em vista das considerações anteriores, o objetivo geral deste trabalho é descobrir se a

atuação da Igreja Católica no referido processo pode, de alguma maneira, influenciar a

liberdade dos não católicos, impondo-lhes alguma parcela da moral católica. Como objetivo

institucional da presente monografia tem-se a obtenção do título de bacharel em Direito pela

Universidade do Vale do Itajaí.

Como objetivos específicos, pode-se enumerar três: 1) compreender o conteúdo, o

sentido e o alcance daquilo que se conhece por liberdade; 2) examinar o fenômeno religioso,

de maneira geral, e particularmente a Igreja Católica; 3) finalmente, analisar a ADPF n. 54 no

que diz respeito à atuação da Igreja Católica e aos possíveis efeitos que do processo podem

surgir na liberdade dos não católicos.

A grande dimensão do conteúdo que deverá ser abordado para se satisfazer o primeiro

objetivo específico impõe a divisão do relato em dois capítulos: primeiro tratar-se-á dos

direitos fundamentais de maneira geral, de modo a possibilitar uma visão ampla; já no

capítulo seguinte o objeto é especificamente a liberdade – que, como se verá, pode ser

entendida como um daqueles direitos fundamentais.

No primeiro capítulo será fornecido ao leitor um panorama, eminentemente teórico,

dos direitos humanos e dos direitos fundamentais – inclusive o motivo pelo qual se diferencia

as duas categorias – com vistas a fornecer uma visão ampla do tema, notadamente no que diz

respeito a seus deslocamentos históricos.

O direito fundamental cujo estudo é preponderante para a consecução dos objetivos

deste trabalho é a liberdade; assim, toda a elaboração acerca dos direitos fundamentais será

feita com mais atenção às questões que a envolvem – assim como será dada especial ênfase às

questões que envolvam Religião, especialmente a professada pela Igreja Católica, já a partir

deste capítulo.

Num primeiro momento serão analisados a origem e os deslocamentos históricos por

que passaram os direitos fundamentais, haja vista a importância do aspecto histórico nas

ciências sociais de maneira geral e, especificamente, no direito – como se verá, a historicidade

é mesmo apontada como um dos principais caracteres dos direitos fundamentais.

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23

São três os modelos históricos identificados como os mais importantes para a análise

histórica dos direitos fundamentais: o modelo inglês, o estadunidense e o francês; o estudo

será conduzido pelas doutrinas de Manoel Gonçalves Ferreira Filho e José Afonso da Silva,

pontuado com algumas observações de Alexandre de Moraes.

Será ainda observado o caso brasileiro, com breve investigação de cada ordem

constitucional desde a Constituição Política do Império do Brazil de 1824 até a Constituição

da República Federativa do Brasil de 1988, observando-se como principais doutrinas a

servirem de norte à pesquisa as de Luís Roberto Barroso e de Newton Cesar Pilau, baseada

esta por sua vez em Thomas Skidmore.

Na seqüência, as atenções serão voltadas para o processo de universalização dos

direitos fundamentais deflagrado pela Organização das Nações Unidas, e neste momento são

doutrinadores importantes para o trabalho Flávia Piovesan e Alexandre de Moraes.

Superada a questão histórica, torna-se foco da investigação o conceito e as

características que assinalam os direitos fundamentais segundo o entendimento dos

doutrinadores contemporâneos – podendo-se apontar como mais importantes neste estudo

Norberto Bobbio, Joaquim José Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes e Antonio Enrique

Perez Luño.

Na seção seguinte, ainda neste primeiro capítulo, os assuntos serão a terminologia e a

taxinomia16 dos direitos fundamentais; como se verá, é controversa a utilização de termos e

expressões para se referir ao conjunto de direitos que se entende por fundamentais – e a

questão é relevante do ponto de vista científico, uma vez que a correta utilização da

linguagem é importante aspecto do método científico. Contribuirão mais expressivamente

para a seção as doutrinas de Fábio Konder Comparato e Ingo Wolfgang Sarlet.

Ainda na mesma seção se examinará a taxinomia dos direitos fundamentais conforme

os critérios mais comumente adotados por doutrinadores como Miguel Reale, Karel Vasak e

Bobbio, através das obras de Newton Cesar Pilau, Ingo Wolfgang Sarlet, José Alcebíades

Oliveira Junior e José Afonso da Silva.

16 Ou ainda “taxonomia”; é a ciência da classificação – que por sua vez corresponde a distribuir em classes ou grupos, segundo sistema ou método pré-definido. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 3. ed. [S.l.]: Positivo Informática, 2004. 1 CD-ROM.

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Analisados o conceito e as classificações dos direitos fundamentais, serão tecidas

breves considerações acerca da fundamentação desses direitos – em outras palavras, o motivo

pelo qual os mesmos devem ser respeitados. Neste momento são de relevo as concepções de

Tomás de Aquino, Duguit, Hans Kelsen, Hugo Grócio, Emanuel Kant, Jürgen Habermas,

Chaïm Perelman e Gregório Peces-Barba, estudadas através de doutrinadores como Norberto

Bobbio, Fábio Konder Comparato, Marcos Leite Garcia, Hannah Arendt e Luiz Moreira.

Finalmente se enfrentará as negações e as críticas aos direitos fundamentais – e mais

detidamente as opostas pela Igreja Católica e por Karl Marx, pois que guardam maior

correlação com o tema deste trabalho; serão investigadas as obras de autores como Edmund

Burke, Friedrich Carl von Savigny, Karl Heinrich Marx e Roberto Mangabeira Unger, além

da doutrina católica baseada no magistério dos papas Gregório XVI, Leão XIII, Pio XI, João

XXIII, Paulo VI e João Paulo II; são ainda doutrinadores importantes ao tema Manuel

Atienza, José Adércio Leite Sampaio, Franco Biffi e Marcos Leite Garcia.

Já no segundo capítulo, num primeiro momento serão analisados os deslocamentos

históricos específicos que tocam à liberdade e, por este motivo, não foram contemplados no

capítulo anterior; alguns eventos serão revistos, com uma releitura de aspectos que ganharão

relevo com a construção elaborada até este ponto. Toda a parte histórica é baseada nas obras

de Tércio Sampaio Ferraz Junior, Norberto Bobbio e Fábio Konder Comparato, doutrinadores

que por sua vez perpassam as idéias de autores como Santo Agostinho, Montesquieu,

Rousseau, Hobbes e Kant.

Logo após examinar-se-ão os aspectos que permitem uma diferenciação entre os

aspectos positivos e negativos da liberdade – sua distinção será feita no momento apropriado,

mas é imperioso notar desde já que os termos positivo e negativo não fazem referência a

juízos de valor acerca da liberdade, mas são assim nominados como manifestações desse

fenômeno. São os mais relevantes doutrinadores a serem investigados nesta seção Isaiah

Berlin, Bobbio, John Rawls e Fábio Konder Comparato.

Na seqüência a liberdade será estudada em sua concepção de direito público subjetivo,

entendido este como a faculdade de que dispõe um indivíduo de acionar mecanismos de tutela

do Estado – como será brevemente delineado no primeiro capítulo; os autores mais

importantes neste momento são Jellinek e Tércio Sampaio Ferraz Junior.

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25

Na terceira seção deste capítulo será apresentada uma visão da liberdade apontada por

Tércio Sampaio Ferraz Junior na qual o indivíduo se comportaria seguindo um raciocínio

quase matemático, avaliando possibilidades de conduta e conseqüências destas condutas para

determinar seu comportamento.

Serão ainda apresentadas as dimensões que a liberdade adquire como direito

individual, manifestando-se de diferentes maneiras no comportamento interno e externo da

pessoa humana – conceitos esses, interno e externo, a serem esclarecidos no momento

adequado. Nesta seção o principal doutrinador abordado será José Afonso da Silva.

É na última seção que se abordará a espécie daquelas dimensões da liberdade que se

mostra mais importante para os objetivos deste trabalho, a saber, a liberdade religiosa – uma

das espécies da liberdade de pensamento.

Dividida ainda em três manifestações – liberdade de crença, de culto e de organização

religiosa, a matéria é analisada sob o prisma dos direitos fundamentais, com base na

construção efetuada no capítulo anterior. Essa análise jurídica da liberdade religiosa é

importante elemento para, adicionado à abordagem do fenômeno religioso, objeto do capítulo

seguinte, oferecer ao leitor fundamentos sólidos para a análise do caso concreto que será

desenvolvida no quinto capítulo. Os principais doutrinadores serão, neste momento, Aldir

Guedes Soriano, Milton Ribeiro e Pontes de Miranda.

No terceiro capítulo, no qual se busca atingir o segundo objetivo específico, opera-se

uma pequena quebra de paradigma: no que diz respeito aos direitos fundamentais e à

liberdade, a abordagem foi eminentemente científica, em que pese os aspectos da liberdade

menos penetráveis à ciência e que exigem alguma reflexão filosófica; no que tange ao

fenômeno religioso, manifestação (como se verá) genuinamente humana, a abordagem mais

apropriada é essencialmente de cunho filosófico, relevando-se à ciência papel secundário –

ainda que importante, uma vez que as regras atinentes à pesquisa e ao relatório serão

observadas.

É que o conteúdo de que se tratará esta parte do trabalho não é integralmente

cognoscível com suporte apenas dos questionamentos científicos: o que se busca é maior

compreensão da religião e do fenômeno religioso.

Num primeiro momento a abordagem será conduzida de forma tão ampla quanto

possível, para que sua utilização como base teórica de interpretação das observações que

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26

serão relatadas no próximo capítulo possibilitem a generalização de suas conclusões às

religiões em sentido mais amplo. A compreensão do fenômeno religioso é pré-requisito para a

análise de como essas manifestações podem – se é que podem – afetar a vida dos não

religiosos.

Num segundo momento se concentrará as atenções na Igreja Católica – profissão de fé

especialmente relevante na sociedade brasileira: segundo Reginaldo Prandi, citado por

Reinaldo Dias17, aproximadamente 75% dos brasileiros são católicos – num distante segundo

lugar, reunindo 10% dos brasileiros, aparece a fé pentecostal, professada pelas Igrejas

conhecidas por Assembléia de Deus, Evangelho Quadrangular, Deus é Amor, Universal do

Reino de Deus e Renascer em Cristo. São ainda 5% os que não têm religião, 4% os

kardecistas, 1% os que praticam as religiões afro-brasileiras (candomblé, umbanda, xangô) e

igualmente 1% os outros religiosos, tais como judeus, testemunhas de Jeová, mórmons,

budistas e outros.

Não bastasse sua representatividade atual, será demonstrado ainda o papel

fundamental da Igreja Católica para a formação do Brasil e do brasileiro, em breves notas que

remontam à época da colonização, chegando aos dias atuais.

Na seção inicial, primeiro momento de dois mais importantes neste capítulo, será

analisado o fenômeno religioso, buscando-se sua compreensão através dos autores mais

importantes ao tema: Feuerbach, Durkheim e Cassirer – a relevância de cada um deles será

apontada ao longo da exposição. Para o enfrentamento das teorias dos citados autores será

utilizada ainda a obra de Brian Morris; no que diz respeito a Émile Durkheim, utilizar-se-á

ainda a lição de Mircea Eliade; a interpretação de Cassirer será auxiliada pelo trabalho de

Franz Josef Brüseke e Carlos Eduardo Sell, bem como de Danièle Hervieu-Léger.

Ainda na primeira seção, será dedicada alguma atenção à questão mais acaloradamente

discutida e que tem mesmo o poder de dividir os homens: a existência – ou a possibilidade da

existência de – Deus. Nesta seção serão utilizados os questionamentos e ensinamentos de

diversos autores, entre os quais Hélio Jaguaribe, Tomás de Aquino, David Hume, Nietzsche e

Freud – com pequenas mas decisivas contribuições de Isaiah Berlin e Amós Oz.

17 DIAS, Reinaldo. Fundamentos de sociologia geral. Campinas: Alínea, 2000, p. 156.

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Após esta investigação serão analisadas as imbricações entre religião e ciência, entre

Igreja e poder e entre Igreja e Estado – no que serão fundamentais as doutrinas de Rubem

Alves, Émile Durkheim, Elías Díaz e José Afonso da Silva. Através da doutrina deste último

analisar-se-á ainda a relação entre a CRFB/1988 e a Igreja.

Na seção seguinte serão apresentados, em breves linhas, os deslocamentos históricos e

a essência da doutrina do cristianismo. Serão importantes obras de Hélio Jaguaribe, Jostein

Gaardner, Victor Hellern e Henry Notaker, bem como o próprio catecismo da Igreja Católica,

obra assinada pela CNBB. Através dos mesmos autores e da contribuição de Rubem Alves

serão analisados, na seção seguinte, o catolicismo e a Igreja Católica.

Nas duas últimas seções se alcançará o segundo momento importante do capítulo: as

relações da Igreja Católica com o Estado brasileiro. Através do estudo dos deslocamentos

históricos e das formas da atuação política da primeira, ter-se-á panorama de eventual

proximidade em que se encontra com o segundo. Serão doutrinadores importantes neste

momento Gisela Anna Bütnner Lermen, Élio Cantalício Serpa, Elza Galdino, Nivaldo Luiz

Pessinati, Reginaldo Prandi, André Ricardo de Souza, Carlos Eduardo Sell e Franz Josef

Brüseke, que analisarão obras como as de Leonardo Boff e as de autoria da CNBB.

No quarto e derradeiro capítulo, com a análise da ADPF n. 54, busca-se o

cumprimento da tarefa proposta pelo terceiro objetivo específico. Faz-se necessário, em

primeiro lugar, rápido exame de aspectos processuais relevantes à espécie – no que serão

importantes doutrinadores como Ivo Dantas e Luís Roberto Barroso, além da legislação

pertinente. Tratar-se-á ainda, brevemente, da anencefalia – estopim da ADPF n. 54, como se

verá. São autores importantes Paulo César Busato e o médico neurologista especialista em

pediatria Luiz Fernando Fonseca.

Na seqüência, ainda no quarto capítulo, analisar-se-ão as movimentações do processo

em questão, com especial atenção àquelas que envolvem a Igreja Católica, para em seguida

voltar-se as atenções às conseqüências dessa atuação da Igreja Católica na liberdade dos não

católicos – no que se utilizará como base toda a investigação dos três primeiros capítulos.

Explicitados os objetivos geral e específicos deste trabalho, impende esclarecer que

não é seu propósito alcançar qualquer conclusão acerca do mérito da discussão da ADPF n.

54; também não se cuida de estabelecer qualquer juízo de valor acerca da Igreja Católica ou

de religião; pretende-se, tão somente, trazer a um assunto já exaustivamente discutido no meio

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jurídico (e mesmo fora dele, dadas suas características) uma nova perspectiva – sem a

pretensão de esgotá-la, mas unicamente de fomentar novas discussões.

A nortear a presente pesquisa foram formulados os seguintes questionamentos:

1) A Igreja Católica tem condições de influenciar o julgamento da ADPF n. 54?

2) Caso a resposta ao primeiro questionamento seja positiva, essa influência católica

alcançaria os não católicos?

3) Caso positiva a resposta ao segundo questionamento, seria afetada especificamente

a liberdade dos não católicos?

4) Caso a resposta ao terceiro questionamento seja novamente positiva, a influência da

Igreja Católica na liberdade dos não católicos pode ser considerada como atentatória aos

direitos fundamentais?

As hipóteses consideradas para a resposta dos questionamentos são sempre positivas

ou negativas, confirmando ou negando as proposições nesses contidas. Admite-se ainda como

variável ao problema proposto a decisão de mérito da ADPF n. 54 que julgue o pedido

procedente, para autorizar às gestantes a interrupção da gravidez.

Na fase de investigação foi utilizado o método dedutivo, assim entendido aquele que,

como quer Pasold, parte de uma formulação geral para, “em seguida, buscar as partes do

fenômeno de modo a sustentar a formulação geral”18. A formulação geral encontra-se

implícita no tema do presente trabalho, e consiste na existência de influência da Igreja

Católica na ADPF n. 54; as partes desse fenômeno são as investigadas ao longo dos quatro

capítulos, quais sejam, a religião, a liberdade e a própria ADPF n. 54.

Também é dedutiva a base lógica do relatório expresso na presente monografia, pois

que se analisa cada uma das partes do fenômeno para, ao final, confirmar-se ou negar-se cada

um dos questionamentos propostos.

Nas diversas fases da pesquisa, foram acionadas as técnicas do referente, da categoria,

do conceito operacional e da pesquisa bibliográfica, propostas por César Luiz Pasold em sua

18 PASOLD, César Luiz. Prática da pesquisa jurídica: idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do direito. 8. ed. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2003, p. 104.

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já citada obra “Prática da pesquisa jurídica: idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do

direito”.

É conveniente ressaltar que, seguindo as diretrizes metodológicas do Curso de Direito

da Universidade do Vale do Itajaí, as categorias fundamentais são grafadas com a letra inicial

maiúscula e seus conceitos operacionais são apresentados em lista específica, ao início do

trabalho. Estes acordos semânticos que procuram preservar a coerência do relatório da

pesquisa são adotados de acordo com a lição de César Luiz Pasold19.

Por outro lado, em função da atenção dedicada ao aspecto histórico tanto dos direitos

fundamentais quanto da religião, é de se anotar que as categorias devem ser entendidas

conforme o contexto em que são utilizadas. Não havendo nenhuma menção específica a

significado diferente daquele proposto na já citada Lista de Categorias e Seus Conceitos

Operacionais, é este a que se refere.

Ainda no que diz respeito à estrutura e técnicas aplicadas neste relatório, busca-se

conformidade com as propostas da obra “Elaboração de trabalhos acadêmico-científicos”, de

autoria da UNIVALI20, bem como socorreu-se das valiosas lições das obras “Guia para

redação do trabalho científico”, de Valdir Francisco Colzani21, e “A monografia jurídica”, de

Eduardo de Oliveira Leite22.

O presente relatório de pesquisa se encerra com as Considerações Finais, nas quais são

apresentados pontos conclusivos que merecem destaque, bem como a análise dos

questionamentos, hipóteses e variáveis propostos.

19 PASOLD, César Luiz. Prática da pesquisa jurídica, p. 45-58. 20 UNIVALI. Pró-reitoria de ensino. Elaboração de trabalhos acadêmico-científicos. Cadernos de ensino. Formação continuada. Ensino superior. v. 2, n. 4, Itajaí: UNIVALI, 2006. Disponível em <http://www.univali.br>. Acesso em: 7 out. 2008. 21 COLZANI, Valdir Francisco. Guia para redação do trabalho científico. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2005. 22 LEITE, Eduardo de Oliveira. A monografia jurídica. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

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2 DIREITOS FUNDAMENTAIS

Neste capítulo pretende-se fornecer ao leitor visão geral do processo de formação, dos

deslocamentos históricos e do panorama atual dos direitos fundamentais. Por outro lado,

como o estudo da liberdade (espécie do gênero direitos fundamentais) é preponderante para a

consecução dos objetivos deste trabalho; assim, toda a construção aqui arquitetada será feita

com mais atenção às questões que a envolvem – bem assim como, desde este primeiro

capítulo, será dada especial ênfase às questões que envolvam Religião, especialmente a

professada pela Igreja Católica.

2.1 ORIGEM E DESLOCAMENTOS HISTÓRICOS

Autores há, como Alexandre de Moraes, que vêem no antigo Egito e na Mesopotâmia

a origem mais remota dos direitos fundamentais, com a previsão de “alguns mecanismos para

proteção individual em relação ao Estado”23, indicando ainda o Código de Hammurabi como

“a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a

vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das

leis em relação aos governantes”24.

Segundo Micheline Ishay, em que pese o Código de Hammurabi realmente consagrar

direitos que socorriam à todos, como a previsão de sanções para juízes corruptos e contra a

calúnia, em outros aspectos a codificação era frontalmente contrária ao princípio da

igualdade; determinava, por exemplo, que a lei do talião25 seria aplicável somente se a vitima

fosse um homem livre – não o fosse, a pena seria o pagamento de uma multa em prata26.

23 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 24. 24 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 24-25. 25 Do latim lex talionis – sistema punitivo no qual a reciprocidade entre o delito e a pena é total, sendo infligido ao delinqüente o mesmo dano ou mal que este praticara. Freqüentemente referido pela máxima olho por olho, dente por dente. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 26 ISHAY, Micheline. The history of human rights: from ancient times to the globalization era. Los Angeles: University of California Press, 2004, p. 28.

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A mesma função de listar direitos atribuíveis a todas as pessoas foi desempenhada pela

Lei das Doze Tábuas – que, para Alexandre de Moraes, consagrava a liberdade, a propriedade

e a proteção aos direitos do cidadão27.

Por outro lado, tanto o Código de Hammurabi quanto a Lei das Doze Tábuas se

abstiveram de atribuir a determinado conjunto de direitos a qualidade de mais importantes que

outros – condição indispensável, como será discutido, para revestir os direitos da qualidade de

fundamentais.

Assim, pode-se dizer que nas referidas codificações havia previsão de direitos de

conteúdo que posteriormente viriam a ser considerados como fundamentais, mas àquela altura

ainda não tinham esse reconhecimento. E é nesse sentido, de consagrar à um conjunto de

direitos a característica de maior importância em relação a outros, que surge o

constitucionalismo.

Cármen Lúcia Antunes Rocha considera que “a Constituição tem alma de direito e

forma de lei, formulando-se como seu coração – órgão dominante e diretor de suas ações – os

direitos fundamentais do homem”28.

Para Alexandre de Moraes,

os direitos humanos fundamentais, em sua concepção atualmente conhecida, surgiram como produto da fusão de várias fontes, desde tradições arraigadas nas diversas civilizações, até a conjugação dos pensamentos filosófico-jurídicos, das idéias surgidas com o cristianismo e com o direito natural. Essas idéias encontravam um ponto fundamental em comum, a necessidade de limitação e controle dos abusos de poder do próprio Estado e de suas autoridades constituídas e a consagração dos princípios básicos da igualdade e da legalidade como regentes do Estado moderno e contemporâneo29.

É a busca dessas várias fontes o objetivo desta seção, a fim de conhecer melhor o

instituto tal qual se apresenta contemporaneamente através da análise de seu comportamento

durante o tempo.

27 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 25. 28 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O constitucionalismo contemporâneo e a instrumentalização para a eficácia dos direitos humanos. In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, 1., 1997, Brasília. Anais... Brasília: OAB, Conselho Federal, 1997 p.364. 29 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 19.

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32

O constitucionalismo tinha como idéia mestra a limitação do poder para assegurar os

direitos do homem – mas não só tinha como ainda tem: Bobbio30 afirma que o mais severo

problema da modernidade é precisamente a proteção dos direitos da pessoa – nesse sentido se

pode dizer que o constitucionalismo é divisor de águas em matéria de direitos humanos e

marco inicial quando se refere a direitos fundamentais.

A doutrina reconhece três principais modelos de constitucionalismo que moldaram a

percepção atual dos direitos fundamentais, a saber: o modelo da Inglaterra, o modelo dos

Estados Unidos da América e o modelo da França – objeto das próximas seções.

2.1.1 Modelo inglês

Merece destaque especial no contexto inglês dos direitos fundamentais a Magna

Charta Libertatum, de 1215, peça básica do constitucionalismo inglês e precursor de todo o

sistema jurídico baseado em constituições31. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, no

documento outorgado por João sem Terra

está a garantia de outros direitos fundamentais: a liberdade de ir e vir (n. 41), a propriedade privada (n.31), a graduação da pena à importância do delito (n. 20 e 21). Ela também enuncia a regra ‘no taxation without representation’ (n. 12 e 14). Ora, isto não só provocou mais tarde a institucionalização do Parlamento, como lhe serviu de arma para assumir o papel de legislador e de controlador da atividade governamental32.

A Magna Charta Libertatum dispunha:

Artigo primeiro – A Igreja da Inglaterra será livre e desfrutará todos os seus direitos e liberdades, sem que nela se possa tocar de qualquer modo. [...] Artigo 2 – Também concedemos a todos os nossos homens livres do Reino da Inglaterra todas as liberdades especificadas abaixo, para serem possuídas por eles e por seus herdeiros como as receberam de nós e de nossos herdeiros. [...] Artigo 49 – Nós não venderemos, não recusaremos nem atrasaremos a justiça a ninguém. [...]

30 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 25. 31 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 11. 32 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 12.

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33

Artigo 52 – A partir de agora será permitido a todas as pessoas sair do Reino e a ele voltar com toda a segurança, ressalvando-se o direito de fidelidade que nos é devido, excetuado contudo em época de guerra e por pouco tempo, quando será necessário para o bem comum do Reino, com exceção ainda dos prisioneiros e banidos segundo as leis do país, dos povos em guerra conosco e dos comerciantes de uma nação inimiga. [...] Artigo 66 – Todas as liberdades, todos os privilégios que concedemos por esta presente Carta, relativamente ao que nos é devido por nossos vassalos serão observados do mesmo modo pelos religiosos e pelos leigos no tocante aos seus rendeiros33.

Com os documentos que se seguiram à Magna Charta Libertatum (com destaque para

o Petition of Rights e o Bill of Rights), a Inglaterra chegou ao rule of law, princípio que

consiste na sujeição de todos ao império do direito – equivalente, no sistema da constituição

não escrita, ao Estado de direito (com limitação de poder)34.

A Petition of Rights, de 1628, segundo Alexandre de Moraes, previa que

Ninguém seria obrigado a contribuir com qualquer dádiva, empréstimo ou benevolência e a pagar qualquer taxa ou imposto, sem o consentimento de todos, manifestado por ato do Parlamento; e que ninguém seria chamado a responder ou prestar juramento, ou a executar algum serviço, ou encarcerado, ou, de qualquer forma, molestado ou inquietado, por causa destes tributos ou da recusa em pagá-los. Previa, ainda, que nenhum homem livre ficasse sob prisão ou detido ilegalmente35.

A requerida manifestação do Parlamento acerca do pagamento de taxa ou imposto,

empréstimo, benevolência ou dádiva é exigência decorrente do princípio da legalidade; a

impossibilidade da prisão ou detenção ilegais é estatuída em homenagem à liberdade

individual, e seria mais tarde regulamentada pelo próprio Parlamento.

O Habeas Corpus Act, de 1679, regulamentou o instituto homônimo:

Seção 3 – Todos os mandados de habeas corpus apresentarão estas palavras: Per stat. Tricesimo primo Caroli secundi regis e serão assinados por aquele que os emite. Se uma pessoa é presa ou detida por crime, ressalvados os crimes de felonia ou de traição constantes nos mandados, durante o período em que os tribunais não estão julgando, ela terá a escolha (a menos que já seja declarada culpada ou condenada), ou alguém em seu lugar, de se dirigir

33 BRANDÃO, Adelino (Org.). Os direitos humanos, p. 65-69. 34 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 12. 35 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 26.

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34

ao lorde chanceler ou a qualquer outro juiz desse ou daquele tribunal ou aos barões do Tribunal do Tesouro; [...] Seção 8 – As disposições dessa lei não são absolutamente aplicáveis para a libertação de uma pessoa numa questão civil36.

Na seção 8 vê-se a aplicação da característica da limitabilidade dos direitos

fundamentais, conforme se verá nas próximas seções, pois que a própria lei prevê sua

aplicação restrita para os casos de prisão civil.

A Bill of Rights, de 1689, para José Afonso da Silva o documento mais importante do

modelo inglês, fez surgir naquele Estado a “monarquia constitucional, submetida à soberania

popular (superada a realeza de direito divino)”37 – e prevê:

[...] Considerando que o mencionado Jaime II abdicou e deixou vago o trono, Sua Alteza o príncipe de Orange (a quem aprouve a Deus todo-poderoso converter no glorioso instrumento que libertaria este reino do papismo e do poder arbitrário) mandou, a conselho dos senhores espirituais e temporais e de várias personalidades notáveis dos Comuns, dirigir cartas aos senhores espirituais e temporais protestantes e outros cartas aos vários condados, cidades, universidades, burgos e aos cinco portos para que escolhessem indivíduos capazes de representá-los no Parlamento que se reuniria e teria sua sede em Westminster no vigésimo segundo dia de janeiro de 1688, com a finalidade de avisar a este que de agora em diante a religião, as leis e as liberdades não poderão mais correr o risco de ser perturbadas; que em virtude de tais cartas realizaram-se as eleições; Nessas circunstâncias, os mencionados senhores espirituais e temporais e os Comuns, hoje reunidos em virtude de suas cartas e eleições, constituindo juntos a representação plena e livre da Nação e considerando gravemente os melhores meios de atingir o fim mencionado, declaram inicialmente (como seus ancestrais sempre fizeram em caso semelhante), para assegurar seus antigos direitos e liberdades: 1°. Que o suposto poder da autoridade real de suspender as leis ou a execução das leis sem o consentimento do Parlamento é ilegal; [...] 8°. Que a liberdade de palavra e dos debates ou procedimentos no interior do Parlamento não podem ser obstadas ou postas em discussão em nenhum Tribunal ou lugar que não seja o próprio Parlamento; [...] 10°. Que não se pode exigir cauções, nem impor multas excessivas e nem infligir penas cruéis e inusitadas38.

36 BRANDÃO, Adelino (Org.). Os direitos humanos, p. 72-75. 37 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 153. 38 BRANDÃO, Adelino (Org.). Os direitos humanos, p. 79-81.

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35

Percebe-se no início e no final do preâmbulo o mais importante aspecto finalístico da

declaração: assegurar as liberdades dos indivíduos; nos três itens apresentados o espírito que

anima a declaração é notadamente o de limitar o poder do Estado.

O Act of Settlement, de 1701, de acordo com Alexandre de Moraes, dispunha:

E considerando que as leis da Inglaterra constituem direitos naturais do seu povo e que todos os reais e rainhas que subirem ao trono deste reino deverão governá-lo, em obediência às ditas leis, e que todos os seus oficiais e ministros deverão servi-los também de acordo com as mesmas leis [...]39.

Novamente é o espírito de submeter o próprio Estado ao direito, limitando seu poder e

a discricionariedade das autoridades por ele constituídas, que permeia o texto do ato legal,

estatuindo a exigência de observação do princípio da legalidade pelo próprio chefe de Estado

e seus auxiliares diretos – os ministros.

José Afonso da Silva ressalta que, apesar de ter relevante valor como precursoras da

formação de regras de proteção aos direitos fundamentais, as declarações inglesas ainda têm

um caráter limitado, as vezes estamental40, que nelas impedem o reconhecimento do princípio

da igualdade41 - o que se verificará nos modelos estadunidense e francês, que se estuda na

seqüência.

2.1.2 Modelo estadunidense

Antes mesmo da independência das treze colônias inglesas da América do Norte em 4

de julho de 1776 (que vieram a formar os Estados Unidos da América), em 12 de junho de

1776 a Virgínia editou a primeira declaração de direitos humanos, como aponta Manoel

Gonçalves Ferreira Filho42 - e que, segundo Alexandre de Moraes, já em sua Seção I

“proclama o direito à vida, à liberdade e à propriedade”43.

39 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 27. 40 Qualidade de dividido, agrupado; uma norma jurídica estamental é aquela que estratifica seus destinatários em diferentes classes, relevando especificidades a cada uma delas. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 41 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 151. 42 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 20. 43 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 27.

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36

Para José Afonso da Silva, a Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776,

“consubstanciava as bases dos direitos do homem”44, prevendo ainda a liberdade religiosa em

sua Seção XVI:

Só a razão e a convicção, não a força ou a violência, podem prescrever a religião e as obrigações para com o Criador e a forma de as cumprir; e, por conseguinte, todos os homens têm igualmente direito ao livre culto da religião, de acordo com os ditames da sua consciência45.

Ainda conforme Alexandre de Moraes, tal declaração contemplou outros direitos

fundamentais, como “o princípio da legalidade, o devido processo legal, o Tribunal de Júri, o

princípio do juiz natural e imparcial, a liberdade de imprensa [...]”46.

Por sua vez, a Declaração da Independência Americana de 4 de julho de 1776 teve

maior repercussão, apesar de não ser propriamente uma carta de direitos47 e tratar, como

sugere seu nome, da independência da nação que viria a formar os Estados Unidos da

América:

sustentamos como evidentes por si mesmas as seguintes verdades: todos os homens nascem iguais e são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis; entre esses direitos estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Os governos são estabelecidos entre os homens para garantir esses direitos, e seu justo poder emana do consentimento dos governados48.

A Constituição dos Estados Unidos da América, aprovada em 1787, não continha

declaração de direitos em seu texto original e sua vigência dependia da ratificação de pelo

menos nove dos treze Estados agora independentes, ex-colônias britânicas49; segundo José

Afonso da Silva, alguns desses Estados impuseram como condição a introdução na

Constituição uma carta de direitos – o que foi feito a partir de enunciados da lavra de Thomas

Jefferson e James Madison e formalizado através das dez primeiras emendas à Constituição

em 179150, cujo conteúdo desta e daquelas relativo aos direitos fundamentais é o seguinte:

44 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 153. 45 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 27. 46 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 27. 47 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 154. 48 BRANDÃO, Adelino (Org.). Os direitos humanos, p. 85. 49 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 155. 50 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 155.

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37

Nós, o povo dos Estados Unidos, prestes a formarmos uma união mais perfeita, a estabelecer a justiça, a assegurar a tranqüilidade interior, a prover a defesa comum, a desenvolver o bem-estar geral e a garantir os benefícios da liberdade a nós mesmos e a nossos descendentes, ordenamos e estabelecemos a presente Constituição para os Estados Unidos da América. [...] 1ª. Emenda – O Congresso não poderá fazer nenhuma lei referente ao estabelecimento de uma religião ou proibindo o livre exercício dela, restringindo a liberdade da palavra ou da imprensa, ou relativa ao direito dos cidadãos de se reunirem pacificamente e de dirigir petições ao governo para a reparação de danos sofridos. 2ª. Emenda – Sendo necessária para a segurança de um Estado livre uma polícia bem organizada, não se poderá atentar contra o direito do povo de ter armas e de levá-las consigo. 3ª. Emenda – Em tempos de paz nenhum soldado poderá se alojar em nenhuma casa sem o consentimento do proprietário, e em tempo de guerra ele só poderá se alojar segundo as normas prescritas pela lei. 4ª. Emenda – O direito dos cidadãos de ter protegidos sua pessoa, sua casa, seus papéis e seus bens pessoais, e de ser posto ao abrigo de todas as buscas e seqüestros de bens desarrazoados não poderá ser violado, e só poderão emitir mandados de busca ou de seqüestro de bens por uma causa plausível, amparada no juramento ou na afirmação dos queixosos; o mandado deverá sempre conter a descrição do lugar onde se deve fazer a busca, assim como a das pessoas ou coisas que devem ser seqüestradas. 5ª. Emenda – Ninguém será obrigado a responder à acusação de crime capital ou outro igualmente infamante, se não for em virtude de denúncia ou diligências provindas de um grande júri, a menos que se trate de casos acontecidos nos exércitos da terra e do mar ou na polícia, quando esta é convocada ao serviço ativo em tempo de guerra ou de perigo público; ninguém poderá pelo mesmo crime ser exposto duas vezes ao risco de perder a vida ou de ter o corpo molestado; em nenhum caso criminal se poderá forçar alguém a testemunhar contra si mesmo e tampouco ser privado da vida, da liberdade ou de seus bens sem um procedimento legal. Nenhuma propriedade privada será tomada para uso público sem uma indenização justa. 6ª. Emenda – Em todas as diligências criminais o acusado desfrutará o direito de ser julgado pronta e publicamente por um júri imparcial do Estado e do distrito onde foi cometido o crime, distrito esse que terá sido previamente determinado pela lei, e de ser informado sobre a natureza e a causa da acusação, de ser confrontado com as testemunhas de acusação, de por todas as vias legais fazer citar testemunhas de defesa e de ter a assistência de um advogado para sua defesa. 7ª. Emenda – Nos processos de direito comum nos quais o valor em litígio for superior a vinte dólares o direito a um julgamento por júri será mantido e nenhum fato julgado por um júri poderá submetido a novo exame por um Tribunal qualquer dos Estados Unidos se não for de acordo com as regras do direito comum. 8ª. Emenda – Não se poderá exigir fiança exagerada nem impor multas excessivas, nem infligir penas cruéis e de um tipo não habitual. 9ª. Emenda – A enumeração de alguns direitos na Constituição não deverá ser interpretada como anuladora ou limitadora de outro direitos conservados pelo povo.

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10ª. Emenda – Os poderes que não são delegados aos Estados Unidos pela Constituição ou que não são recusados por ela aos estados são reservados aos estados respectivamente ou ao povo51.

Cumpre anotar ainda que, segundo Marci Hamilton, a liberdade religiosa ocupa lugar

privilegiado como primeira emenda fruto da experiência dos colonizadores com a perseguição

da coroa britânica aos descrentes e aos falsos crentes de suas gerações52.

2.1.3 Modelo francês

Para Alexandre de Moraes, a consagração normativa dos direitos fundamentais coube

à França, cuja Assembléia Nacional promulgou em 1789 a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, destacando-se a previsão dos seguintes direitos fundamentais:

“princípio da igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação

política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal,

princípio da presunção de inocência, liberdade religiosa, livre manifestação de pensamento”53.

José Afonso da Silva aponta que a declaração francesa é mais “abstrata, mais

universalizante”54 se comparada aos documentos estadunidenses, que eram mais concretos e

dirigidos às situações daquele contexto de independência.

Nesse sentido aponta Jacques Robert, citado por José Afonso da Silva, os três

caracteres fundamentais da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: o

intelectualismo (no sentido de afirmar a construção racional do documento), o mundialismo

(antecipando a característica da universalidade dos direitos humanos) e o individualismo

(consagrando tão somente liberdades específicas do indivíduo)55.

José Afonso da Silva considera o texto da declaração francesa “de estilo lapidar,

elegante, sintético, preciso e escorreito, que, em dezessete artigos, proclama os princípios da

51 BRANDÃO, Adelino (Org.). Os direitos humanos, p. 87-89. 52 HAMILTON, Marci. God vs. the gavel: religion and the rule of law. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2007, p. 254-255. 53 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 28. 54 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 157. 55 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 158.

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39

liberdade, da igualdade, da propriedade e da legalidade”56 – do que não se pode discordar,

senão vejamos:

Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo pelos direitos do homem são a causa das infelicidades públicas e da corrupção dos governantes, resolveram expor numa declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que essa declaração, sempre presente para todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente de seus direitos e deveres; a fim de que os atos do poder legislativo e do poder executivo, podendo ser a todo momento comparados com a finalidade de todas as instituição políticas, sejam mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundamentadas a partir de agora em princípios simples e incontestáveis, voltem-se sempre para a manutenção da Constituição e para a felicidade de todos. Conseqüentemente, a Assembléia Nacional reconhece e declara, perante o Ser Supremo e sob sua proteção, os seguintes direitos do homem e do cidadão. Artigo primeiro – Os homens nascem e permanecem livre e iguais em direitos. As distinções sociais só podem se basear na utilidade comum. Artigo 2 – A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. [...] Artigo 4 – A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudica o outro; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites além dos que garantem aos outros membros da sociedade o desfrute desses mesmos direitos. Tais limites só podem ser determinados pela lei. Artigo 5 – A lei só tem o direito de proibir as ações nocivas à sociedade. Tudo o que não é proibido pela lei não pode ser impedido, e ninguém pode obrigar a fazer o que ela não ordena. [...] Artigo 10 – Ninguém deve ser perturbado por suas opiniões, até mesmo as religiosas, desde que a manifestação delas não conturbe a ordem pública estabelecida pela lei. Artigo 11 – A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; portanto, todo cidadão pode falar, escrever e imprimir com liberdade, salvo quando claramente abusa dessa liberdade nos casos determinados pela lei57.

Alexandre de Moraes58 cita ainda como diplomas relevantes em matéria de direitos

fundamentais as constituições da Espanha de 1812, do México de 1817, da Alemanha

(Weimar) de 1919, Soviética de 1918, de Portugal de 1822 e da Bélgica de 1831.

56 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 158. 57 BRANDÃO, Adelino (Org.). Os direitos humanos: antologia de textos históricos. São Paulo: Landy, 2001, p. 43-45. 58 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 29-30.

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2.1.4 O caso brasileiro

Para Newton Cesar Pilau, é na sociedade brasileira do século XVIII que se pode

identificar o ponto de partida para a análise do processo que culminou no liberalismo;

considera três aspectos como mais importantes para esta investigação:

a) o envio de mais de trezentos estudantes (filhos de famílias com capital) para estudar na universidade de Coimbra, em Portugal, no período de 1772 a 1784, sendo, portanto, colocados em contato com o pensamento francês e as idéias iluministas; b) a inspiração da declaração de independência norte-americana; c) a inconfidência mineira de 1792, movimento desejoso de independência59.

A análise de Pilau é baseada na obra de Thomas Skidmore, historiador estadunidense

especializado em temas brasileiros e assim chamado brasilianista, para quem a reunião dos

três aspectos citados – o desejo de autonomia política com relação à metrópole portuguesa,

inspirado pela independência estadunidense e fortalecido com a educação de jovens

brasileiros – foi determinante para que se criasse o ambiente favorável à independência

brasileira e à instalação do Estado liberal60.

Segundo Cláudio Salvador Lembo, a presença de D. João VI no Brasil, a partir de

1808 criou dois segmentos políticos com pensamentos antagônicos e anseios idem: o partido

brasileiro e o partido português. “O primeiro desejava a permanência da Corte e, o segundo,

lutava pelo regresso a Lisboa do monarca. À margem desses dois segmentos políticos, um

movimento secreto desenvolvia sua luta contra o absolutismo, a maçonaria”61.

Segundo Hamilton Leal, citado por Claudio Lembo, o conflito de interesses leva D.

João VI a adotar a Constituição espanhola de 1812, através da seguinte resolução:

Havendo tomado em consideração o termo de juramento que os eleitores paroquiais desta comarca (Rio de Janeiro), a instâncias e declaração unânime do povo dela, prestaram a Constituição espanhola, e que fizeram subir à minha real presença, para ficar valendo inteiramente a dita Constituição

59 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 94. 60 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 94-98. 61 LEMBO, Cláudio Salvador. Proto-história dos direitos fundamentais no Brasil. In: VELLOSO, Carlos Mário da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues (Coord.). Princípios constitucionais fundamentais, p. 299.

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espanhola desde a data do presente decreto até a instalação da Constituição em que trabalham as Cortes atuais de Lisboa, em que houve por bem ordenar que de hoje em diante fique estrita e literalmente observada neste reino do Brasil a mencionada Constituição até que se estabeleça o que fôr deliberado e decidido pelas Cortes de Lisboa62.

Assim, revela Cláudio Lembo que “a Constituição espanhola de 1812 foi, pois, a

primeira constituição brasileira”63. Porém, logo após a promulgação da referida resolução os

absolutistas, descontentes com as disposições liberais da constituição adotada, exigiram a

revogação do diploma, no que foram atendidos por D. João VI – resultando na vigência da

Constituição espanhola em terras brasileiras por 24 horas64.

Há que se contemporizar, porém, que naquela altura, o que viria a ser o Brasil ainda

não lograra conquistar sua independência; colônia portuguesa que era, ainda que elevada à

condição de Reino dentro do Estado português, não se pode dizer que a constituição vigorou

em terras brasileiras. Ainda que adotada exclusivamente para o território que viria a constituir

o Brasil, a constituição espanhola foi adotada ainda em sede de soberania portuguesa.

Segundo Pilau, somente com a derrota de Napoleão, em 1814, é que

começou a surgir uma situação favorável para o retorno da sede da Coroa. Em Portugal, os notáveis (ricos portugueses) desejavam a volta de dom João VI. Em 1815, o Brasil foi elevado a parceiro igual do Reino Unido (Portugal, Brasil e Algarves), orgulhando alguns que aqui residiam, numa utopia proporcionada pelo sentimento de aspirar a uma condição política elevada65.

Com a partida de D. João VI para Portugal em 1821 e após revoltas populares que

favoreciam os movimentos nativista e emancipacionista, a D. Pedro I só restou seguir o

conselho de seu pai e declarar a independência do Brasil em 1822 – que a este custou dois

62 LEMBO, Cláudio Salvador. Proto-história dos direitos fundamentais no Brasil. In: VELLOSO, Carlos Mário da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues (Coord.). Princípios constitucionais fundamentais, p. 299. 63 LEMBO, Cláudio Salvador. Proto-história dos direitos fundamentais no Brasil. In: VELLOSO, Carlos Mário da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues (Coord.). Princípios constitucionais fundamentais, p. 300. 64 LEMBO, Cláudio Salvador. Proto-história dos direitos fundamentais no Brasil. In: VELLOSO, Carlos Mário da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues (Coord.). Princípios constitucionais fundamentais, p. 300. 65 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 98.

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milhões de libras esterlinas, em empréstimo obtido na Inglaterra e utilizado para compensar

Portugal66 - que culminou na Constituição de 1824 e no Estado monárquico-constitucional.

2.1.4.1 Constituição Política do Império do Brazil de 1824

Luís Roberto Barroso aponta que a primeira ordem constitucional brasileira foi

inaugurada sob o símbolo da outorga, não permitindo que se lhe atribua a distinção da

aprovação popular – ainda que fundada em “certo compromisso liberal”67.

A primeira Constituição brasileira previa extenso rol de direitos fundamentais, como

os princípios da igualdade e legalidade, livre manifestação de pensamento, impossibilidade de

censura prévia, inviolabilidade das correspondências, liberdade religiosa, liberdade de

locomoção, inviolabilidade de domicílio, possibilidade de prisão somente em flagrante delito

ou por ordem da autoridade competente, fiança, princípio da reserva legal e anterioridade da

lei penal, independência judicial, princípio do juiz natural, livre acesso aos cargos públicos,

abolição dos açoites, da tortura, da marca de ferro quente e todas as penas cruéis,

individualização da pena, respeito à dignidade do preso, direito de propriedade, liberdade de

profissão e direito de invenção68.

Segundo Newton Cesar Pilau, “também merece referência o nascimento de um

embrião do que se consideram no século XX os direitos de segunda geração [...], pois, no

artigo 179, inciso XXXIII, era determinada a instrução primária e gratuita a todos os

cidadãos”69.

2.1.4.2 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891

Para Luís Roberto Barroso a inspiração no modelo estadunidense vai além do nome

adotado pela ordem constitucional: “a forma de governo, de monárquica passa a republicana;

66 LEMBO, Cláudio Salvador. Proto-história dos direitos fundamentais no Brasil. In: VELLOSO, Carlos Mário da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues (Coord.). Princípios constitucionais fundamentais, p. 300. 67 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. São Paulo: Renovar, 2006, p. 9. 68 BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 17 out. 2008. 69 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 103.

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43

o sistema de governo, de parlamentar transmuda-se em presidencial; a forma de Estado, de

unitária converte-se em federal”70.

O rol de direitos fundamentais foi repetido na primeira Constituição republicana,

consagrados ainda os seguintes: gratuidade do casamento civil, ensino leigo, direitos de

reunião e associação, ampla defesa, abolição das penas das galés, do banimento judicial e da

pena de morte, reservadas as disposições da legislação militar em tempo de guerra, habeas

corpus, propriedade de marcas de fábrica e a instituição do Júri71.

José Afonso da Silva aponta que o próprio texto constitucional, em seu art. 78,

indicava a não exaustividade do rol de direitos fundamentais, regra que foi mantida pelas

constituições subseqüentes72.

Por sua vez Newton Cesar Pilau destaca que, em que pese a CRUEB/1891 tenha

inovado ao estabelecer a garantia do habeas corpus (que era concedido em qualquer caso de

violência, coação ilegalidade ou abuso de poder), através de reforma em 1926 sua concessão

foi restringida para os casos de prisão ou constrangimento ilegal na liberdade de locomoção73,

evidenciando assim os avanços e retrocessos que o processo de positivação dos direitos

humanos no Brasil enfrentou74.

2.1.4.3 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934

O movimento conhecido por Tenentismo75 logrou êxito na revolução de 1930, levando

ao governo uma Junta Governativa Militar que acabaria transferindo o poder, ainda em 1930,

a um Governo Provisório chefiado por Getúlio Vargas – que, por sua vez pressionado pela

70 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 13. 71 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em: 17 out. 2008. 72 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 170. 73 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 112-113. 74 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 113. 75 Movimento revolucionário no qual uma pequena burguesia em ascensão contrapunha os ideais da nova classe média urbana e industrial aos antigos valores rurais e agrícolas, e tinha como portadores do seu desejo de mudança os jovens oficiais do exército. Cf. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 18-19.

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Revolução Constitucionalista de São Paulo em 1932, acabou por promulgar a nova

Constituição em 193476.

A CREUB/1934 manteve a tradição de reservar aos direitos fundamentais capítulo

próprio, elencando os já previstos pelas duas Constituições anteriores e acrescentando o

respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, objeção de consciência,

direitos autorais em sede de obras literárias, artísticas e científicas, irretroatividade da lei

penal, impossibilidade de prisão civil por dívidas, multas ou custas, impossibilidade de

concessão de extradição de estrangeiro em virtude de crimes políticos ou de opinião e

impossibilidade absoluta de extradição de brasileiro, assistência judiciária gratuita, mandado

de segurança e ação popular77.

José Afonso da Silva identifica a CREUB/1934 como pioneira na incorporação das

disposições de ordem econômica e social no Brasil, “na esteira das constituições de pós-

Primeira Guerra Mundial”78 – no que não diverge Paulo Sarasate, citado por Newton Cesar

Pilau, quando diz que

Ao contrário da anterior (de 1891), que foi eminentemente política, a Constituição de 34, seguindo uma nova concepção do Direito e do Estado, recebeu, de maneira sensível, a influência dos abalos sociais provocados pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e que se havia refletido inicialmente na Constituição do México, com seus postulados econômicos, e na Constituição alemã de Weimar (1919), com seus princípios sobre temas econômicos, família, funcionalismo público e direitos sociais. Foi indisfarçável a ressonância da Constituição de Weimar nos textos brasileiros de 34 e 46, os quais tiveram na mesma um reluzente espelho. O advento de tais direitos – sublinha Prado Kelly – foi um fenômeno da evolução da comunidade, uma conseqüência do grau de desenvolvimento material, logo refletido na estrutura da legislação79.

Pilau anota ainda como direito previsto pela CREUB/1934 o dever do Estado de

prestar assistência social, devendo, “entre outras imposições, assegurar amparo aos

76 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 20. 77 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em: 17 out. 2008. 78 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 171. 79 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 116.

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desvalidos, amparar a maternidade e a infância, socorrer as famílias de prole numerosa,

proteger a juventude contra a exploração e abandono físico, moral e intelectual”80.

2.1.4.4 Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937

José Afonso da Silva caracteriza a Constituição de 1937 como “ditatorial na forma, no

conteúdo e na aplicação, com integral desrespeito aos direitos do homem, especialmente os

concernentes às relações políticas”81.

Vulgarmente conhecida por Polaca, segundo Sarasate citado por Pilau, “por ter

buscado inspiração na Constituição da Polônia”82, a CEUB/1937 prevê em seu texto um

plebiscito (mais propriamente um referendo) para sua aprovação – o que não ocorreu,

restando assim instalado o Estado Novo de Vargas83 e o rompimento da independência e

harmonia entre os poderes, pois que o ditador legislou durante sua permanência no poder por

meio de decretos-lei84.

A Constituição de 1937 importou em perda considerável de direitos – como a

limitação do direito de manifestação através de censura prévia e o regresso da pena de

morte85. Pilau enumera ainda como expurgados da CEUB/1937: “o princípio da legalidade; os

direitos decorrentes da autoria intelectual ou de inventos industriais; a garantia de que a lei

não prejudica a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido; a certeza de não

haver tribunais de exceção; o mandado de segurança e a ação popular”86.

Luís Roberto Barroso aponta que Getúlio Vargas, “rendendo-se aos novos tempos, [...]

deu início a uma série de medidas liberalizantes”87 que culminariam na primeira experiência

80 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 119. 81 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 171. 82 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 120. 83 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 120-121. 84 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 23. 85 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de 1937). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>. Acesso em: 17 out. 2008. 86 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 122. 87 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 24.

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brasileira de organização partidária em âmbito nacional e em eleições gerais; já estando em

curso a campanha presidencial, tomou forma o movimento conhecido por Queremismo88 que

resultou na deposição do presidente Vargas – e na eleição do General Eurico Gaspar Dutra

para ocupar a presidência do Brasil89.

2.1.4.5 Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946

A volta do Brasil à democracia foi consolidada pela Constituição de 1946, antecedida

pelas eleições diretas de 1945, como referido anteriormente, e pela participação do Brasil na

Segunda Guerra Mundial ao lado dos aliados (que tinham como principais potências os

Estados Unidos da América, a França, a Grã-Bretanha e a União Soviética), opondo-se aos

integrantes do Eixo (Alemanha, Itália e Japão).

Em função da recalcitrância inicial, pela ambigüidade e indecisão de Getúlio Vargas, o

Brasil ingressa no conflito somente em 1942 sob forte influência dos Estados Unidos da

América – por sua vez envolvidos no conflito no ano anterior90; Pilau sublinha que, durante

essa participação brasileira na guerra contra às ditaduras nazi-fascistas em terras européias,

houve “diversas manifestações no sentido de reformar a Constituição”91 e que culminaram na

CEUB/1946.

Inspirada nas constituições brasileiras de 1891 e 1934, os constituintes buscaram

novamente incorporar os valores do liberalismo, permitindo assim essa reaproximação do país

com o Estado democrático de direito92. Barroso identifica ainda inspiração nas constituições

estadunidense de 1787, francesa de 1848 e de Weimar de 191993.

Retomando os direitos fundamentais positivados na CREUB/1934, a CEUB/1946

mantém capítulo próprio para os direitos fundamentais, estabelecendo ainda a impossibilidade

de exclusão da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual, o

88 Movimento político pela permanência de Getúlio Vargas no poder. Cf. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 24. 89 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 24-25. 90 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 24-25. 91 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 124. 92 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 124-125. 93 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 26.

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contraditório, a plenitude de defesa nas ações de competência do Tribunal do Júri, o sigilo das

votações, o direito de certidão e reserva legal em matéria tributária94.

Pilau aponta como grande marco no que se refere aos direitos políticos a disposição

que assegura a representação dos partidos políticos nacionais – bem como o alistamento e

voto obrigatórios para ambos os sexos, sufrágio universal e direto, voto secreto e a

impossibilidade de reeleição para a presidência da República95.

2.1.4.6 Constituição da República Federativa do Brasil de 1967

Relata Newton Cesar Pilau que “a partir de 31 de março de 1964, o Brasil viveu sob o

manto da revolução, que, através do comando revolucionário, legislou e disciplinou a

sociedade brasileira por meio de emendas constitucionais e atos institucionais, que têm em

seu conteúdo o império do arbítrio”96.

Thomas Skidmore, citado por Pilau, enumera como defensores da revolução, ou seja,

do golpe militar que depôs João Goulart, jornais importantes como o Jornal do Brasil, Correio

da Manhã, O Globo, Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo – além da Igreja Católica97.

Márcio Moreira Alves, citado por João Francisco Régis de Morais ressalta que a Igreja

católica apoiou o golpe de Estado de 1964 pois “submersa em um grande pavor a uma

revolução comunista”98. Aponta ainda que, logo após a tomada do poder pelos militares,

tentou compor acordos e arranjos com o novo regime – todos em última análise infrutíferos,

pois que os militares iniciaram perseguições a “bispos, padres, leigos militantes e fiéis em

geral”99.

94 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso em: 17 out. 2008. 95 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 125-126. 96 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 129-130. 97 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 130. 98 MORAIS, João Francisco Régis. Os bispos e a política no Brasil: pensamento social da CNBB. São Paulo: Cortez, 1982, p. 27-28. 99 MORAIS, João Francisco Régis. Os bispos e a política no Brasil, p. 28.

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A CRFB/1967 foi promulgada em 24 de janeiro de 1967, após quatro Atos

Institucionais que tolhiam os direitos fundamentais prescritos pela ordem constitucional de

1946; nesse sentido Pilau aponta que a Constituição de 1967, apesar de trazer avanços em seu

texto no que diz respeito aos direitos fundamentais, não merece comemoração – pelo fato de

que seus preceitos era violados sem processos ou julgamentos, de forma arbitrária100.

Mantendo a tradição brasileira, a CRFB/1967 enumerava exemplificativamente os

mesmos direitos fundamentais da Constituição de 1946 adicionando o sigilo das

comunicações telefônicas e telegráficas, a aplicação da lei brasileira à sucessão de bens de

estrangeiros situados no Brasil sempre que mais favorável do que a lei pessoal do de cujus e o

respeito à integridade física e moral do detento e presidiário101.

O Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, é resultado das diversas

crises que o marechal Costa e Silva, na presidência da República, enfrentara no seu governo;

Pilau cita Skidmore, para quem o AI n. 5 é obra de oficiais que

decidiram que havia chegado o momento para medidas mais rigorosas. O presidente emitiu então em dezembro um novo Ato Institucional (n°. 5), que, ao contrário dos anteriores, não tinha data para expirar. O Brasil era agora uma ditadura autêntica. O congresso foi fechado (embora não abolido) e todos os crimes contra a ‘segurança nacional’ passaram a ser doravante da alçada da Justiça militar. A censura foi introduzida, visando especialmente à televisão e ao rádio. Importantes órgãos da imprensa, como o jornal O Estado de São Paulo e o semanário Veja, ficaram sujeitos à censura prévia (o que significava que seus textos deveriam passar por um censor do exército102.

Como apogeu da violação institucionalizada dos direitos humanos, pode-se citar o Ato

Institucional número 13, que previa o banimento de brasileiro que se tornasse “inconveniente,

nocivo ou perigoso à segurança nacional”103. É nesse ambiente que surge a Emenda

Constitucional n. 1, promulgada em 17 de outubro de 1969.

100 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 133-134. 101 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>. Acesso em: 17 out. 2008. 102 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 134-135. 103 BRASIL. Ato Institucional n. 13, de 5 de setembro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-13-69.htm>. Acesso em: 26 out. 2008.

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2.1.4.7 Emenda Constitucional n.1 de 1969

Em que pese a divergência doutrinária acerca da inauguração (ou não) de nova ordem

constitucional em 1969 com o advento da Emenda Constitucional n. 1, faz-se constar neste

trabalho em título separado pois que, independentemente da corrente à qual se filie, referida

emenda substitui integralmente o texto original da Constituição de 1967, lhe dando nova

redação em grande maioria dos dispositivos104.

Por outro lado, no tocante aos direitos fundamentais, não houve qualquer alteração de

caráter formal ou material que implicasse em inclusão, supressão ou alteração de direitos com

relação aos já elencados pelo texto original da Constituição de 1967 – mantendo-se a

possibilidade do presidente ignorar os direitos fundamentais através dos assim denominados

estados de sítio e de emergência.

É em 1985 com a Emenda Constitucional n. 26105, que convocava Assembléia

Nacional Constituinte, eleita em 15 de novembro de 1986, que se abre caminho novamente

para a redemocratização e a busca de respeito aos direitos fundamentais – e que resultaria na

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

2.1.4.8 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

Sobre a atuação da ANC/1986, instalada em 1° de fevereiro de 1987 pelo então

presidente do STF Ministro José Carlos Moreira Alves, Thomas Skidmore, citado por Newton

Cesar Pilau, assinala que

foi preciso um ano para a redação da Constituição de 1988, resultado de um dos mais intensos esforços de lobbying da história do Congresso brasileiro. Os lobistas representando grupos esquerdistas da Igreja, o movimento sindical e a comunidade de direitos humanos foram especialmente ativos.

104 BRASIL. Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em: 17 out. 2008. 105 BRASIL. Emenda Constitucional n. 26, de 27 de novembro de 1985. Convoca Assembléia Nacional Constituinte e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil-03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc26-85.htm>. Acesso em: 27 out. 2008.

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Boa parte de seu conteúdo representava uma vitória para o ideário populista contra muitos dos princípios defendidos pelo governo militar106.

No mesmo sentido é o relato de Paulo Bonavides e Paes de Andrade

A ação partidária foi substituída pela movimentação dos grupos e a imprensa acusou a organização de lobbies de interesses, os mais variados (o lobby

santo, da Igreja Católica; o lobby evangélico das várias ramificações protestantes; [...]), como influenciadores ou deformadores da vontade da Constituinte107.

Pilau ressalta ainda que a CRFB/1988, como resultado da atuação de diversos

segmentos da sociedade e consagrando uma série de direitos fundamentais das mais diversas

espécies, constitui verdadeiro “paradigma de modernidade”108 com o fim de construir um

Estado democrático de direito.

Nesse passo é que Flávia Piovesan aponta que “a Carta de 1988 demarca, no âmbito

jurídico, o processo de democratização do Estado brasileiro, ao consolidar a ruptura com o

regime autoritário militar, instalado em 1964”109. A autora considera ainda a CRFB/1988

como uma das mais avançadas cartas constitucionais do mundo em termos de direitos

fundamentais110.

É que já no seu preâmbulo o constituinte reforça a necessidade de construção de um

Estado democrático de direito:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução

106 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras, p. 136. 107 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. 8. ed. Brasília: OAB Editora, 2006, p. 476. 108 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras, p. 137. 109 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 21. 110 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 25.

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pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL111

Traçando os marcos iniciais do pacto federativo e estabelecendo os fundamentos da

República brasileira, dispõe ainda:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição112.

Vai mais longe, ao apontar os objetivos fundamentais da República:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação113.

José Afonso da Silva aponta que “é a primeira vez que uma Constituição assinala,

especificamente, objetivos do Estado brasileiro, [...] que valem como base das prestações

positivas que venham a concretizar a democracia econômica, social e cultural, a fim de

efetivar na prática a dignidade da pessoa humana”114 – no que não diverge Ingo Wolfgang

Sarlet, quando aponta que, “pela primeira na história do constitucionalismo pátrio, a matéria

foi tratada com a merecida relevância”115.

111 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 16 out. 2008. 112 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 16 out. 2008. 113 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 16 out. 2008. 114 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 105-106. 115 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 75.

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Antônio Enrique Perez Luño, citado por Flávia Piovesan, assevera:

Os valores constitucionais possuem uma tripla dimensão: a) fundamentadora – núcleo básico e informador de todo o sistema jurídico-político; b) orientadora – metas ou fins pré-determinados, que fazem ilegítima qualquer disposição normativa que persiga fins distintos, ou que obstaculize a consecução daqueles fins enunciados pelo sistema axiológico constitucional; e c) crítica – para servir de critério ou parâmetro de valoração para a interpretação de atos ou condutas116.

Privilegiando a compreensão sistemática da Constituição, pode-se concluir que a

mesma eleva o valor da dignidade da pessoa humana à qualidade de princípio informador de

toda a ordem constitucional.

2.1.5 Processo de universalização: a Organização das Nações Unidas

A universalização nesta seção referida deve ser entendida como ideal de abrangência

integral da família humana pelos direitos humanos, independente das limitações políticas

impostas pelos Estados, que se discutirá na seção relativa às características dos direitos

fundamentais.

Segundo Micheline Ishay, nunca mais era o lema dos judeus e ativistas de direitos

humanos após a segunda guerra mundial, evento no qual os horrores perpetrados pelos

nazistas fizeram florescer o sentimento de necessidade de proteção mais abrangente dos

direitos humanos; os julgamentos de Nuremberg e de Tóquio fixaram o entendimento de que

ninguém poderia estar imune à punição de crimes de guerra117.

Francisco Rezek pondera que “até a fundação das Nações Unidas, em 1945, não era

seguro afirmar que houvesse, em direito internacional público, preocupação consciente e

organizada sobre o tema dos direitos humanos”118; assim, para o escopo desse trabalho pode

ser fixado como marco temporal inicial do processo de universalização a criação da

Organização das Nações Unidas.

116 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 27. 117 ISHAY, Micheline. The history of human rights, p. 218. 118 REZEK, Francisco. Direito internacional público. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 218.

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A Organização das Nações Unidas, sucessora da Liga das Nações119, é uma instituição

internacional formada originalmente por 51 Estados soberanos, com origem formal na Carta

das Nações Unidas de 26 de junho de 1945, e reconhecida como entidade máxima de

discussão de direito internacional e de relações supra-nacionais.

Rezek assevera que as organizações internacionais são produto “de uma elaboração

jurídica resultante da vontade conjugada de certo número de Estados”120, no que se revestem

de personalidade jurídica própria mas derivada – em oposição à originária, características dos

próprios Estados121.

O preâmbulo da citada carta declara as intenções da organização:

NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra,que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla122.

Como principal documento elaborado pela organização, pode-se citar a Declaração

Universal dos Direitos Humanos de 1948. Para Alexandre de Moraes, referida declaração

“reafirmou a crença dos povos das Nações Unidas nos direitos humanos fundamentais, na

dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher,

visando à promoção do progresso social e à melhoria das condições de vida em um ampla

liberdade”123.

O preâmbulo com seus sete considerandos e com a proclamação, pela Assembléia

Geral da ONU, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, constitui-se em importante

119 Por sua vez, a Liga das Nações (ou Sociedade das Nações) foi também uma organização internacional idealizada em 1919, em Versalhes na França, pelos assim considerados vencedores da primeira guerra mundial unidos em uma tentativa de acordar a paz mundial. 120 REZEK, Francisco. Direito internacional público, p. 152. 121 REZEK, Francisco. Direito internacional público, p. 151-152. 122 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Carta da Organização das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/documentos_carta.php>. Acesso em: 21 out. 2008. 123 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 36.

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ferramenta de análise e interpretação do conteúdo da declaração e do contexto de seu

sugimento:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos humanos conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração humanos; Considerando que é essencial a protecção dos direitos humanos através de um regime de direito, para que o homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão; Considerando que é essencial encorajar o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações; Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais humanos, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declararam resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla; Considerando que os Estados membros se comprometeram a promover, em cooperação com a Organização das Nações Unidas, o respeito universal e efectivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais; Considerando que uma concepção comum destes direitos e liberdades é da mais alta importância para dar plena satisfação a tal compromisso: A Assembléia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos humanos como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efectivos tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição124.

Consubstanciado em trinta artigos, o corpo da DUDH/1948 consagra direitos como:

direito à vida, à liberdade (de locomoção, de pensamento, de consciência, de expressão e de

religião), à nacionalidade, à propriedade, à segurança pessoal, ao trabalho, ao lazer, ao

repouso, ao acesso ao Judiciário e de reunião; a inviolabilidade à honra, à imagem e à vida

privada; vedação da discriminação de qualquer espécie, da escravidão ou servidão, da tortura,

da crueldade, da prisão arbitrária; contempla ainda os princípios da igualdade e dignidade

124 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/udhr/lang/por.htm>. Acesso em: 16 out. 2008.

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humanas, do juiz natural, da presunção de inocência, do devido processo legal, do

contraditório e da ampla defesa, da reserva legal125.

No dizer de Alexandre de Moraes,

Prevê-se, ainda, que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a sai e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança, em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle (artigo XXV)126.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi formalizada através de resolução da

Assembléia, não revestindo assim seus dispositivos de exigibilidade em face dos Estados

membros da Organização. Hildebrando Accioly e Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva,

citados por Alexandre de Moraes, “relembram que o caráter não vinculativo da Declaração já

era previsto desde a constituição da Comissão inicial”127.

Francisco Rezek pontua que “por mais de uma vez, ante gestões externas fundadas no

zelo pelos direitos humanos, certos países reagiram lembrando a natureza não-convencional

da Declaração”128 – no que surge a crítica de Flávia Piovesan, que atribui à Declaração a

função e o significado de “consagrar o reconhecimento universal dos direitos humanos pelos

Estados, consolidando um parâmetro internacional para a proteção desses direitos”129.

Novamente o mérito da discussão – ainda que extremamente relevante – foge ao

escopo do presente trabalho, pois que a exigibilidade do cumprimento dos dispositivos da

DUDH/1948 em face dos Estados não afetaria diretamente a questão da liberdade na ordem

constitucional brasileira, uma vez que esta, em seu próprio texto, traz a consagração da

liberdade como direito fundamental.

Alexandre de Moraes identifica ainda outros instrumentos da Organização das Nações

Unidas relevantes em matéria de direitos humanos: a Declaração Americana dos Direitos e

125 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/udhr/lang/por.htm>. Acesso em: 16 out. 2008. 126 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 37. 127 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 37. 128 REZEK, Francisco. Direito internacional público, p. 219. 129 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 147.

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Deveres do Homem de 1948, a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de

Genocídio de 1948, a Convenção que aprova o Estatuto dos Refugiados de 1951, a

Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial de 1965, o

Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1966, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e

Políticos de 1966, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de

1966, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica de

1969, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher

de 1979, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou

Degradantes de 1984, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura de 1985, a

Declaração do Direito ao Desenvolvimento de 1986, a Convenção sobre os Direitos da

Criança de 1989, a Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993, a Convenção

Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher de 1994 e a

Declaração de Pequim de 1995130.

2.2 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

Nesta seção serão investigados os conceitos que os principais doutrinadores atribuem

às expressões direitos fundamentais e direitos humanos – de modo que se possa diferenciar as

duas categorias de maneira adequada e entender o sentido e o alcance de cada uma delas. A

análise das características dos direitos humanos e fundamentais é decorrência lógica do estudo

do seu conceito, e será efetuada na seção seguinte.

2.2.1 Conceito

Tupinambá Nascimento131 afirma que a definição daquilo que se entende por direitos

humanos não é tarefa fácil, pois que poder-se-ia não traduzir a especificidade que marca

aquele conjunto de direitos ou, de maneira igualmente temerária, limitar sua abrangência.

Na mesma linha, José Afonso da Silva considera que “a ampliação e transformação

dos direitos fundamentais do homem no evolver histórico dificulta definir-lhes um conceito

130 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 38-39. 131 NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro. Comentários à Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 211.

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sintético e preciso”132, acrescentando ainda que a multiplicidade de expressões utilizadas para

designá-los, como será investigado mais adiante, acaba por aumentar a dificuldade de sua

definição precisa.

Antônio Enrique Perez Luño, constitucionalista espanhol citado por André de

Carvalho Ramos, identifica três tipos de definições de direitos humanos: a) definições

tautológicas, b) definições formais e, finalmente, c) definições finalísticas ou teleológicas133.

As definições tautológicas134 seriam aquelas que não conduzem a qualquer novo

elemento capaz de caracterizar tais direitos; exemplo seriam as definições limitadas a dizer

que são direitos de titularidade dos seres humanos simplesmente pela sua condição de

humanos135.

Ainda segundo o espanhol, as definições formais limitam-se a atribuir aos direitos

fundamentais regime jurídico especial, distinto daquele dos direitos de maneira geral, mas não

especificando – sequer se referindo – ao conteúdo de tais direitos. Estabelecem que os direitos

fundamentais assim o são “em virtude de seu regime indisponível e sui generis”136.

Por fim, a definição teleológica137 dos direitos fundamentais utiliza somente o objetivo

ou a finalidade, assim entendidos os fins ou resultados a que se dispõem os direitos, para

agrupá-los no conjunto que então se denomina fundamentais138.

Buscando definir o conjunto de direitos que ora se investiga, Dalmo de Abreu Dallari

assinala que

A expressão ‘direitos humanos’ é uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são considerados

132 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 175. 133 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 17. 134 A expressão “tautologia” refere-se a um vício de linguagem consistente na afirmação, de formas diversas, da mesma coisa; na acepção da lógica é um raciocínio que repete, com outras palavras, o que se quer demonstrar. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 135 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional, p. 18. 136 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional, p. 18. 137 Teleologia é o estudo da finalidade ou objetivo das coisas. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 138 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional, p. 18-19.

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fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida. Todos os seres humanos devem ter asseguradas, desde o nascimento, as condições mínimas necessárias para se tornarem úteis à humanidade, como também devem ter a possibilidade de receber os benefícios que a vida em sociedade pode proporcionar. Esse conjunto de condições e possibilidades associa as características naturais dos seres humanos, a capacidade natural de cada pessoa e os meios de que a pessoa pode valer-se como resultado da organização social. É a esse conjunto que se dá o nome de direitos humanos139.

Merece destaque que, apesar de utilizar a expressão em sua chamada forma abreviada

“direitos humanos”, Dalmo de Abreu Dallari denomina de “direitos fundamentais da pessoa

humana” o conjunto que descreve.

Não diverge José Afonso da Silva que, utilizando a expressão direitos fundamentais do

homem, conceitua-o como os “princípios que resumem a concepção do mundo e informam a

ideologia política de cada ordenamento jurídico”140, tratando de “situações jurídicas sem as

quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, as vezes, nem mesmo sobrevive”141.

Por sua vez, André de Carvalho Ramos entende por direitos humanos “um conjunto

mínimo de direitos necessário para assegurar uma vida do ser humano baseada na liberdade e

na dignidade”142 – definição baseada, segundo o autor, no constitucionalista alemão Konrad

Hesse.

Gilmar Ferreira Mendes143 atribui aos direitos fundamentais quatro significados, a

saber: a) como direitos de defesa; b) como normas de proteção de institutos jurídicos; c) como

garantias positivas do exercício das liberdades; e d) como dever de proteção.

Como direitos de defesa, “os direitos fundamentais asseguram a esfera de liberdade

individual contra interferências ilegítimas do Poder Público”144, munindo o indivíduo de

pretensão contra o Estado em caso de violação por parte deste de direitos fundamentais

139 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 1998, p. 7. 140 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 178. 141 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 178. 142 RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 11. 143 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 1-12. 144 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 3.

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daquele. É a clássica e principal concepção dos direitos fundamentais, objetivando a limitação

do poder estatal e assegurando uma esfera de autodeterminação do indivíduo145.

Na condição de normas de proteção de institutos jurídicos, os direitos fundamentais

adquirem a característica de garantias, como se verá adiante, e constituem verdadeiro “dever

constitucional de legislar”146, impondo ao legislador a obrigação de estabelecer mecanismos

através dos quais os direitos possam ser efetivados.

No aspecto de garantias positivas do exercício das liberdades Gilmar Mendes ressalta

que a concretização dos direitos fundamentais “exige, não raras vezes, a edição de atos

legislativos, de modo que eventual inércia do legislador pode configurar afronta a um dever

constitucional de legislar”147.

Por fim, como dever de proteção, os direitos fundamentais obrigam não somente o

Estado a observar, de maneira negativa ou positiva, os direitos de determinado indivíduo em

face de violação do Poder Público, “mas também a garantir os direitos fundamentais contra

agressão propiciada por terceiros”148.

Os quatro significados apontados por Gilmar Mendes permitem concluir que o

constitucionalista trata da fundamentalidade material, nos termos propostos por Canotilho e

na sequência analisada.

Tratando especificamente da qualidade de fundamentais do conjunto de direitos que se

analisa, Canotilho investiga o termo sob dois aspectos: a fundamentalidade formal e a

fundamentalidade material, a saber:

A fundamentalidade formal, geralmente associada à constitucionalização, assinala quatro dimensões relevantes: (1) as normas consagradoras de direitos fundamentais, enquanto normas fundamentais, são normas colocadas no grau superior da ordem jurídica; (2) como normas constitucionais encontram-se submetidas aos procedimentos agravados de revisão; (3) como normas incorporadoras de direitos fundamentais passam, muitas vezes, a constituir limites materiais da própria revisão; (4) como normas dotadas de vinculatividade imediata dos poderes públicos constituem parâmetros

145 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 4. 146 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 5. 147 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 6. 148 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 11.

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materiais de escolhas, decisões, acções e controlo, dos órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais149.

Assim, associa-se à fundamentalidade formal dos direitos sua constitucionalização, ou

seja, o reconhecimento pelo Estado, mais propriamente pelo Poder Constituinte, da

superioridade de determinados direitos.

No que diz respeito à fundamentalidade material, sua idéia “insinua que o conteúdo

dos direitos fundamentais é decisivamente constitutivo das estruturas básicas do Estado e da

Sociedade”150. É uma percepção de viés mais político acerca dos direitos fundamentais, a par

da visão de José Afonso da Silva, já apresentada neste trabalho, e que remonta mesmo aos

objetivos de uma constituição, como lembrado por Edson Luiz Sampel:

A constituição federal contém a normativa básica para a implementação da sociedade política. Com efeito, não houvesse o arrolamento dos direitos fundamentais, dificilmente edificar-se-ia uma comunidade operosa e de ingente vitalidade. Pelo contrário, os cidadãos se sentiriam constantemente ameaçados uns pelos outros e, o que é pior, permaneceriam diuturnamente à mercê de eventual despotismo das autoridades151.

Canotilho152 segue dizendo que o aspecto material da fundamentalidade dos direitos é

importante pois mantém a Constituição aberta a outros direitos, igualmente fundamentais, mas

não constitucionalizados153. É assim pois o que reúne os direitos fundamentais em torno da

característica da fundamentalidade material é precisamente o conteúdo desses direitos e a

valoração que lhe atribui a sociedade.

Da análise do aspecto material dessa fundamentalidade é que surge a dimensão

antropológica apontada por Antonio Carlos Pedroso, ao dizer que “a exata compreensão dos

149 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 379. 150 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 379. 151 SAMPEL, Edson Luiz. Os princípios fundamentais da Constituição e os valores da sociedade. In: VELLOSO, Carlos Mário da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues (Coord.). Princípios constitucionais fundamentais. São Paulo: Lex, 2005, p. 354. 152 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 379. 153 Para o aprofundamento na questão da não tipicidade dos direitos fundamentais, que foge ao escopo deste trabalho, Canotilho indica a obra de Jorge Miranda (Manual de direito constitucional, volume IV, 2000), Henrique Mota (“Le principe de la liste ouverte em matiére de droits fondamentaux”, in “La justice constitucionelle au Portugal”, 1989) e Vieira de Andrade (“Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976”, 2001). É certo porém que a própria CRFB/1988 explicita o caráter exemplificativo do rol de direitos fundamentais elencados, como se observa do § 2° de seu art. 5°.

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direitos fundamentais depende da análise prévia das dimensões da pessoa e dos valores que

destas decorrem”154 – e que redundará na característica de historicidade dos direitos

fundamentais, como será visto na seqüência, uma vez que os valores consagrados pelos

homens são reflexo de sua condição atual e de toda sua história.

Para Alexandre de Moraes,

o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direitos humanos fundamentais

155.

Percebe-se que Moraes utilizou a expressão direitos humanos fundamentais,

definindo-o como um conjunto seletivo de direitos, assim agrupados em função de seu

objetivo ou sua finalidade – sem olvidar da necessidade de reconhecimento pelo Estado, o que

chamou de institucionalização.

Robert Alexy, citado por Melina Girardi Fachin, traz definição mais moderna que

contempla mesmo a questão da não tipicidade dos direitos fundamentais:

Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalmente em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retirada da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalmente formal), bem como os que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição Formal156.

No que diz respeito à finalidade impregnada nos direitos fundamentais, Canotilho

assevera que cumprem

a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa

154 PEDROSO, Antonio Carlos. A dimensão antropológica dos direitos fundamentais. In: BITTAR, Eduardo C. B.; FERRAZ, Anna Cândida da Cunha (Org.). Direitos humanos fundamentais: positivação e concretização. Osasco: EDIFIEO, 2006, p. 31. 155 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1° a 5° da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 39. 156 FACHIN, Melina Girardi. Direitos humanos e fundamentais: do discurso à prática efetiva: um olhar por meio da literatura. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2007, p. 69.

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para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)157

Assim, o aspecto teleológico dos direitos fundamentais pode ser traduzido pela

afirmação da necessidade de assegurar uma esfera individual de liberdade mínima capaz de

fornecer condições de dignidade ao indivíduo mas que, ao mesmo tempo, respeite a esfera

individual dos demais seres humanos.

Para enfim se determinar o conceito operacional da categoria direitos fundamentais,

compor-se-ão as definições apresentadas, atentando-se para os quatro significados

identificados por Gilmar Ferreira Mendes, para se concluir que ao conjunto de direitos

constitucionalmente assegurados que tenham por objetivo possibilitar o desenvolvimento do

ser humano de forma digna através de condições mínimas de liberdade é que se denomina

direitos fundamentais.

No mesmo sentido, ao se ampliar a abrangência da definição para incluir direitos não

positivados por determinada ordem constitucional, mas de conteúdo semelhante àqueles

fundamentais e como tais reconhecidos pela comunidade internacional, chega-se aos direitos

humanos. Pode-se entender ainda como reconhecimento pela comunidade internacional sua

indicação em declaração ou carta de direitos da ONU.

Portanto, ao conjunto de direitos que tenham por objetivo possibilitar o

desenvolvimento do ser humano de forma digna através de condições mínimas de liberdade,

assim reconhecidos pela comunidade internacional em documentos da ONU é que se

denomina direitos humanos.

2.2.2 Características

As principais características dos direitos fundamentais mais comumente identificadas

na doutrina são a historicidade, a universalidade, a limitabilidade, a concorrência, a

irrenunciabilidade, a imprescritibilidade, inalienabilidade, interdependência e

complementaridade – individualmente analisadas na seqüência.

157 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 541.

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2.2.2.1 Historicidade

Flávia Piovesan ressalta que “os direitos humanos nascem quando devem e podem

nascer”158, pois que traduzem as reivindicações morais de seus destinatários; Norberto Bobbio

realça que “os direitos do homem são direitos históricos, que emergem gradualmente das lutas

que o homem trava por seu própria emancipação e das transformações das condições de vida

que essas lutas produzem”159.

A expressão direitos humanos fomenta o entendimento de que o rol desses direitos

seja atemporal, pois que baseados exclusivamente na condição humana; mas, ainda no dizer

de Bobbio, “sabemos hoje também os direitos ditos humanos são o produto não da natureza,

mas da civilização humana; enquanto direitos históricos, eles são mutáveis, ou seja,

suscetíveis de transformação e de ampliação”160.

Fustel de Coulanges já identificara no direito a característica da historicidade:

[...] não é da natureza do direito ser absoluto e imutável; modifica-se e evolve como toda obra humana. Cada sociedade tem seu direito, forma-se e desenvolve-se com ela, transforma-se e enfim com ela segue sempre a evolução de suas instituições, costumes e crenças161.

Como demonstração inequívoca da interdependência dos direitos humanos com o

contexto social que se investiga e com os valores que cultiva tal sociedade, pode-se utilizar

relato de Sidney Chalhoub que desnuda o descompasso qualitativo entre a valoração atribuída

à liberdade no período final da escravidão dos negros no Brasil e a que se tem

contemporaneamente.

Chalhoub relata a história da africana Rubina: Custódio, o senhor da escrava, falecera

sem deixar testamento e, segundo Rubina, em seu leito de morte pedira à sua mulher, Rosa,

que concedesse alforria à escrava; no que não foi atendido o último pedido de Custódio,

Rubina entrou normalmente como bem a ser inventariado; após alguns desdobramentos, o

158 PIOVESAN, Fávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais e europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 7. 159 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 32. 160 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 32. 161 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 332.

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caso foi parar nos tribunais da época – que acabaram por sentenciar que Rubina fosse

devolvida à posse de seus proprietários162.

Percebe-se que, confrontados o direito da escrava à sua própria liberdade e o direito da

herdeira do falecido à propriedade daquela escrava, os julgadores houveram por bem

privilegiar o direito à propriedade.

Mesmo aos olhos destreinados no Direito, a decisão prolatada no caso não se

conformaria com a percepção contemporânea atribuída às questões da propriedade e da

liberdade, em demonstração da mutabilidade – e historicidade dos direitos fundamentais.

2.2.2.2 Universalidade

Para André-Jean Arnaud163, o universalismo é fruto da concepção ocidental

etnocentrista de que os valores ocidentais são válidos para toda a humanidade; em que pese o

acerto da análise mais profunda de Arnaud, a universalidade de que se trata e que se pretende

atingir é aquela que se encontra sob a égide de determinada ordem constitucional – aquela

mesma que institui os direitos fundamentais que se analisa.

Segundo Alexandre de Moraes164, a universalidade é que dá a abrangência geral dos

direitos fundamentais: independentemente de sua nacionalidade, sexo, raça, credo, convicção

política ou filosófica, todos os indivíduos da raça humana são titulares dos direitos humanos

fundamentais, de per se.

A independência com relação a nacionalidade pode suscitar algumas dúvidas que

merecem ser afastadas de plano; é que se pode imaginar que, uma vez independentes da

nacionalidade do indivíduo, os direitos fundamentais tocam a toda a humanidade; não é assim,

pois que a delimitação que se impôs ao termo165 requer que o conjunto de direitos em questão

esteja prescrito em determinada constituição.

162 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das letras, 1990, p. 102-107. 163 ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de filosofia do direito e do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 206. 164 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 41. 165 Ver a seção “Terminologia e taxinomia”.

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65

Assim, é correto dizer que todas as pessoas, independente de sua nacionalidade, mas

que estejam sob a égide de ordem constitucional específica, são titulares dos direitos

fundamentais que esta assim reconhece. É este o sentido que deve ser atribuído à

característica da universalidade.

Aos direitos humanos a abrangência será maior: por definição e idealmente a todos os

seres humanos são reconhecidos os direitos que formam aquele conjunto, independente de sua

vinculação a determinada ordem constitucional. Manoel Gonçalves Ferreira Filho vai ainda

mais longe no aspecto geográfico ao dizer que “estendem-se por todo o campo aberto ao ser

humano, potencialmente o universo”166.

Por mais que se busque a universalização geográfica e temporal dos direitos ditos

humanos, esta só poderá ser atingida como ideal de desenvolvimento ótimo, pois que para se

revestirem de exigibilidade os direitos humanos precisarão ser reconhecidos pela ordem

constitucional – momento no qual é fixada a fundamentalidade do direito em questão.

2.2.2.3 Limitabilidade

Segundo Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Junior, não há regra geral

específica sobre eventuais limitações ou restrições que podem ser aplicadas aos direitos

fundamentais que, como quaisquer outros, não são absolutos167.

Canotilho e Vital Moreira definem a limitabilidade dos direitos fundamentais em

função do conflito de normas constitucionais:

No fundo, a problemática da restrição dos direitos fundamentais supõe sempre um conflito positivo de normas constitucionais, a saber, entre uma norma consagradora de certo direito fundamental e outra norma consagradora de outro direito ou de diferente interesse constitucional. A regra de solução do conflito é da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos e da sua mínima restrição compatível com a salvaguarda adequada de outro direito fundamental ou outro interesse constitucional em causa. Por conseguinte, a restrição de direitos fundamentais implica necessariamente em uma relação de conciliação com outros direitos ou interesses constitucionais e exige necessariamente uma tarefa de ponderação ou de concordância prática dos direitos ou interesses em conflito. Não se

166 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 23. 167 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 112.

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pode falar em restrição de um determinado direito fundamental em abstrato, fora da sua relação com um concreto direito fundamental ou interesse fundamental diverso168.

Nesse sentido é que são exemplos da limitação dos direitos fundamentais os estados de

exceção à normalidade previstos e regulados pela própria Constituição: o estado de sítio e

estado de defesa impõem regras expressas relativas à limitação do exercício de determinados

direitos fundamentais.

Alexandre de Moraes reconhece que “o estado de defesa e o estado de sítio

configuram regimes de exceção, mas não de inconstitucionalidade, ilegalidade, arbitrariedade

e anarquia”169, dada sua característica de transitoriedade – no que lhe acompanha Manoel

Gonçalves Ferreira Filho:

o estado de sítio não gera nem permite o arbítrio. De fato, mesmo suspensas garantias constitucionais, o Executivo ainda está sujeito a normas e limites que configuram como que uma legalidade extraordinária, adequada aos momentos de grave crise. Inclusive, se houver abuso, aí cabe a intervenção do Judiciário170.

Alexandre de Moraes conclui então que

os direitos humanos fundamentais não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração do desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito171.

Assim é que os direitos fundamentais encontram seus limites nos demais direitos

igualmente previstos pela Constituição172; Araujo e Nunes Junior ilustram a limitabilidade dos

direitos fundamentais com a eventual colisão entre o direito de informação de um jornalista e

a proteção à privacidade de pessoa que fosse objeto daquela investigação jornalística173.

168 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 134. 169 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 51. 170 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 130. 171 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 46. 172 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 46. 173 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, p. 111.

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67

2.2.2.4 Concorrência

A concorrência dos direitos fundamentais, como está a própria expressão a informar,

trata da condição de acumulação ou existência simultânea dos direitos fundamentais num

mesmo titular174.

Nesse sentido é que determinada situação poderá eventualmente ser protegida por

mais de uma disposição constitucional; em tais casos será determinante a identificação de

cada um dos direitos fundamentais que toquem a cada um dos indivíduos envolvidos, pois que

somente assim é que se poderá observar as conseqüências destas relações175.

2.2.2.5 Irrenunciabilidade

Os direitos fundamentais podem não ser exercidos, mas não podem ser renunciados.

Araújo e Nunes Junior ilustram a situação com o caso de modelo fotográfico que permite a

utilização de sua imagem em determinada campanha publicitária – ocasião em que dessa

permissão não se poderá presumir a renúncia do direito à própria imagem, mas tão somente

sua opção, restrita e precária, em não exercê-lo176.

Rousseau, ao tratar especificamente da liberdade, afirma mesmo “renunciar à

liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e até aos próprios

deveres”177. Assevera ainda que “tal renúncia é incompatível com a natureza do homem”178.

2.2.2.6 Imprescritibilidade

Segundo José Afonso da Silva179, a prescrição é instituto jurídico que atinge a

exigibilidade dos direitos patrimoniais, não se lhe aplicando aos direitos de ordem

personalíssima – ainda que não individuais. Conclui dizendo que “se são sempre exercíveis e

174 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, p. 112-113. 175 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, p. 113. 176 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, p. 113. 177 ROUSSEAU, Jean-Jaques. O contato social. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 15. 178 ROUSSEAU, Jean-Jaques. O contato social, p. 15. 179 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 181.

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exercidos, não há intercorrência temporal de não exercício que fundamente a perda da

exigibilidade pela prescrição”180.

2.2.2.7 Inalienabilidade

José Afonso da Silva assevera: “são direitos intransferíveis, inegociáveis, porque não

são de conteúdo econômico-patrimonial. Se a ordem constitucional os confere a todos, deles

não se pode desfazer, porque são indisponíveis”181.

2.2.2.8 Interdependência

Alexandre de Moraes relembra que os vários direitos fundamentais, em que pese

autônomos, possuem inúmeros pontos de contato para que logrem atingir suas finalidades.

Pode-se elencar como exemplo a liberdade de locomoção, intimamente ligada ao habeas

corpus – e ainda ao requisito da flagrância delitiva ou ordem judicial competente para prisão

de indivíduo182.

2.2.2.9 Complementaridade

Segundo Alexandre de Moraes, “os direitos humanos fundamentais não devem ser

interpretados isoladamente, mas sim de forma conjunta com a finalidade de alcance dos

objetivos previstos pelo legislador constituinte”183.

2.3 TERMINOLOGIA E TAXINOMIA

Para identificar os direitos que ora se investigam são utilizadas diversas expressões,

tais como direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos

públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais –

cabendo mencionar ainda as composições com os citados termos, no que se chega a

expressões como direitos humanos fundamentais, direitos individuais do homem e outros.

180 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 181. 181 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 181. 182 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 41. 183 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 41.

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69

Uma vez definidos o conceito e as características dos direitos objeto deste estudo,

importa identificar a melhor expressão a ser utilizada e situar a matéria na grande árvore do

direito, bem assim como dividi-la e classificá-la para melhor e mais fácil entendimento.

Como já delineado neste trabalho, o tratamento dispensado aos direitos fundamentais é

essencialmente constitucional; assim, é imperioso situar o estudo dos direitos fundamentais no

âmbito da Ciência Jurídica184 conhecido por Direito Constitucional. É nesse sentido que se

manifesta Miguel Reale, ressaltando as características de interesse geral e de relações de

subordinação, típicas dos assuntos de natureza constitucional, especialmente presentes nos

direitos fundamentais185.

Num próximo e conseqüente passo faz-se necessário investigar a acepção devida ao

termo direito, inserto nas expressões direitos humanos e direitos fundamentais; Miguel Reale

aponta que “‘Direito’ significa [...] tanto o ordenamento jurídico, ou seja, o sistema de normas

ou regras jurídicas que traça aos homens determinadas formas de comportamento, conferindo-

lhes possibilidades de agir, como o tipo de ciência que o estudo, a Ciência do Direito [...]”186.

De acordo com a construção das seções anteriores e dos próprios conceitos

operacionais das categorias Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, decorre que se

investiga, neste trabalho, o que Reale identificou como sistema de normas – ou seja, o direito

na sua acepção de direito objetivo187.

Em alguns momentos, porém, utilizar-se-á o termo na sua acepção subjetiva, qual seja,

segundo Miguel Reale, “a possibilidade de exigir-se, de maneira garantida, aquilo que as

normas de direito atribuem a alguém como próprio”188; nessas ocasiões, como na seção em

184 No que diz respeito ao significado da expressão, César Luiz Pasold, citado por Celso Leal da Veiga Junior, propõe que “Ciência Jurídica possa ser considerada como a atividade de investigação que tem como objeto o Direito, como objetivo principal a descrição e/ou análise do direito ou de fração temática dele, acionada metodologia que se compatibilize com o objeto e o objetivo, e sob o compromisso da contribuição para a consecução da Justiça”. Cf. VEIGA JUNIOR, Celso Leal. O direito, a ciência jurídica e a dogmática jurídica: uma questão de política jurídica. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 4, n. 7, p. 27-30, 15 out. 1998, p. 27. 185 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 340-343. 186 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 62. 187 Construção mais profunda acerca do conceito de direito, que foge ao escopo deste trabalho, pode ser encontrada na obra “Filosofia do direito”, de Miguel Reale, na qual define-o como: “realidade histórico-cultural tridimensional de natureza bilateral atributiva”. Cf. REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 697. 188 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 260.

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que trata-se da liberdade como direito subjetivo público, a distinção será notada com a

indicação expressa do termo subjetivo.

2.3.1 Direitos humanos ou direitos fundamentais?

O Título II da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estampa: “Dos

direitos e garantias fundamentais”189. Inicialmente deve-se fazer a disjunção dos dois termos,

direitos e garantias, para se verificar qual deles melhor se ajusta à matéria em apreço.

Um dos pioneiros a tratar do assunto e tentar estabelecer os limites entre direitos e

garantias foi Rui Barbosa, em lição por José Afonso da Silva lembrada como “o que de

melhor se produziu no constitucionalismo brasileiro sobre o tema” 190 – na qual Rui Barbosa

separa

as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias; ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia, com a declaração do direito191

Para melhor entendimento do conceito exposto por Rui Barbosa pode-se dizer que um

direito é um bem prescrito na Constituição, ao passo em que uma garantia seria um

instrumento através do qual se assegura o exercício daquele direito192. Assim, percebe-se que

o termo mais apropriado para o objeto deste trabalho é, em definitivo, direito.

Fábio Konder Comparato193 explica o motivo pelo qual se utilizaria as expressões

direitos humanos ou direitos do homem, em que pese o aparente pleonasmo; é que se trata de

direitos inerentes à própria condição humana, sem conexão com qualquer particularidade ou

condição específica.

189 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 18 out. 2008. 190 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 413. 191 BARBOSA, Rui. Teoria política. São Paulo: W.M. Jackson, 1965, p. 189. 192 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 11. ed. São Paulo: Método, 2007, p. 695. 193 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 58.

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71

Ainda conforme Bobbio, a expressão seria “oportunamente enfática”194 e mereceria ser

utilizada como forma de realçar a característica de universalidade que orienta e imanta o

conjunto de direitos de que se trata.

Ocorre que as expressões humanos ou do homem, além de redundar em tautologia

quando aplicadas ao termo direito, como apontou Peres Luño, é, conforme Ingo Wolfgang

Sarlet195, mais abrangente e portanto menos específica do que fundamentais.

No melhor espírito do método científico é necessário aperfeiçoar a utilização dos

termos e expressões de modo que reflitam da melhor maneira possível sua significação, ainda

que necessária eventual contraposição a doutrinadores como Bobbio e Comparato que, apesar

de reconhecerem relativa impropriedade à expressões do homem ou humanos para qualificar

os direitos fundamentais, persistem utilizando-as.

É que a expressão fundamentais, utilizada pela nossa Constituição, reflete a

fundamentalidade do conjunto de direitos, conforme já demonstrado por Canotilho e Gilmar

Mendes, incluindo de per se a característica da titularidade exclusiva e ampla dos seres

humanos, independente de quaisquer outras condições ou requisitos.

Seria, assim, redundante adicionar à expressão direitos fundamentais o epíteto

humanos ou do homem, pois que aquela implica lógica e necessariamente nesta.

Ingo Wolfgang Sarlet identifica como direitos humanos aqueles atribuídos aos seres

humanos independentemente de sua vinculação (dos direitos) com determinada ordem

constitucional; aspiram, portanto, “à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal

sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional”196.

É a mesma concepção adotada por Antônio Augusto Cançado Trindade, ao afirmar

que “a unidade conceitual dos direitos humanos – todos inerentes à pessoa humana – veio a

transcender as distintas formulações de direitos reconhecidos em diferentes instrumentos”197.

194 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 32 195 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 35-42. 196 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 36. 197 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O sistema interamericano de direitos humanos no limiar do novo século: recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (Coord.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 104.

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É que o doutrinador é juiz e ex-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos e,

por conseguinte, faz a análise do assunto sob a perspectiva supranacional.

As características e os termos não se excluem mutuamente – antes se complementam,

pois que nem todos os direitos humanos serão fundamentais; mas todos os direitos

fundamentais são direitos humanos, daí porque redundante a expressão direitos humanos

fundamentais ou outra que traga as duas expressões combinadas. Percebe-se relação de gênero

e espécie entre os termos: são fundamentais aqueles direitos humanos elencados em

determinada ordem constitucional.

Por outro lado, a expressão direitos humanos não pode ser considerada imprópria de

maneira geral: quando se trate do conjunto de direitos pretensamente universais, seja em

termos geográficos ou temporais, este será a expressão adequada. Para Konrad Hesse, citado

por Paulo Bonavides198, uma vez vinculado a determinada ordem constitucional, vigente ou

não, será mais acertado utilizar direitos fundamentais.

Melina Girardi Fachin anota ainda que “a utilização da expressão direitos

fundamentais remonta à época da Revolução Francesa, cujo marco é a declaração dos Direitos

do Homem e do Cidadão de 1789”199.

Assim, a partir do momento em que se investiga uma das espécies (a liberdade) dos

direitos humanos no Estado brasileiro contemporâneo, ou seja, aqueles elencados na

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, decorre logicamente que se trata, no

âmbito deste trabalho, especificamente de direitos fundamentais.

Superada a questão terminológica, passa-se à análise das classificações dos direitos

fundamentais mais comumente aceitas pela doutrina.

2.3.2 Gerações de direitos

Dentre os vários critérios utilizados para classificar os direitos fundamentais, uma das

que demonstram mais respaldo dos doutrinadores é a proposta pelo jurista francês Karel

198 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 560. 199 FACHIN, Melina Girardi. Direitos humanos e fundamentais, p. 64.

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Vasak em 1979, numa conferência ministrada no Instituto Internacional de Direitos Humanos

em Estrasburgo200.

A noção de Vasak ganhou força com a adesão e o desenvolvimento proporcionado por

diversos doutrinadores, entre os quais o italiano Norberto Bobbio. Muitos chegam a

inadvertidamente creditar a classificação ao próprio Bobbio, tamanha foi sua contribuição

para o tema.

Com base no lema da Revolução Francesa (liberdade, igualdade, fraternidade), Vasak,

citado por Flávia Piovesan, buscou demonstrar a evolução dos direitos fundamentais, no

melhor sentido de sua característica de historicidade; dividiu-os, assim, em direitos de

primeira, segunda e terceira gerações201.

Cançado Trindade critica de maneira contundente a divisão de Vasak, ao argumento

de que a tese das gerações de direitos carece de qualquer fundamento jurídico ou fático, sendo

ainda fragmentadora e atomista, tomando os direitos de maneira estanque e segmentada, sem

correspondência com a realidade202.

Cumpre anotar que a adição da quarta e quinta gerações de direitos à classificação é

obra da doutrina mais atualizada e não se percebe qualquer liame com a idéia original de

Vasak ou Bobbio, como se verá do conteúdo que é abrangido pelas duas espécies

recentemente criadas.

Bobbio desenvolve a classificação proposta por Karel Vasak e esclarece ainda que o

desenvolvimento dos direitos humanos se deu em três fases ou gerações: a) os direitos de

liberdade, b) os direitos políticos e c) os direitos sociais203.

Flávia Piovesan acrescenta que “uma geração de direitos não substitui a outra, mas

com ela interage. Isto é, afasta-se a idéia da sucessão ‘geracional’ de direitos, na medida em

que se acolhe a idéia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos

consagrados, todos essencialmente complementares e em constante dinâmica de interação”204.

200 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos, p. 28. 201 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos, p. 27-28. 202 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Prefácio. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 2-5. 203 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 32. 204 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 28.

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No sentido de afastar a percepção de sucessão temporal rígida causada pela expressão

gerações de direitos é que a doutrina tem apontado a denominação dimensão dos direitos para

melhor referir-se à classificação de Vasak; por encontrar-se a questão fora do escopo deste

trabalho, a mesma é superada sem maiores digressões, acompanhando-se a nomenclatura

tradicional.

2.3.2.1 Direitos de primeira geração ou de liberdade

Segundo Newton Cesar Pilau, os direitos de primeira geração, inerentes ao indivíduo,

correspondem aos direitos civis e políticos, traduzindo o valor da liberdade. São também

chamados de direitos ou liberdades negativas pois que tem o objetivo de proteger o indivíduo

contra a intervenção do Estado, submetendo este ao direito e tornando-se ainda garantias da

democracia205.

No que diz respeito à positivação dos mesmos, Pilau cita Darcísio Corrêa, que remete

às declarações de Virgínia, em 1776, e da França, em 1789 – são, assim, nascidos das

revoluções do século XVIII206. No Brasil, foram positivados já na CPIB/1824.

Gilmar Antônio Bedin, citado por Pilau, elenca os direitos de primeira geração:

a) as liberdades físicas, compostas pelo direito à vida, à liberdade de locomoção, direito à segurança individual, direito à inviolabilidade do domicílio e direitos de reunião e associação; b) as liberdades de expressão, que se compõem dos seguintes direitos: liberdade de imprensa; direito à livre manifestação do pensamento e direito ao sigilo de correspondência; c) a liberdade de consciência; d) o direito de propriedade privada; e) os direitos da pessoa acusada, entre os quais estão o direito ao princípio da reserva legal, o direito à presunção de inocência e o direito ao devido processo legal; f) as garantias dos direitos, atribuindo destaque ao direito de petição, o direito ao habeas corpus, o direito ao mandado de segurança, o direito ao habeas data e o mandado de injunção (os dois últimos integrados pela primeira vez ao texto constitucional brasileiro de 1988)207.

205 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras, p. 85-86. 206 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras, p. 85. 207 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras, p. 85.

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Ainda segundo Bedin, citado por Pilau, integram a primeira geração de direitos os

direitos políticos, consubstanciados estes no direito ao “sufrágio universal, direito de

constituir partidos políticos e direito de plebiscito, de referendo e de iniciativa popular”208.

2.3.2.2 Direitos de segunda geração ou de igualdade

Os direitos de segunda geração, ainda de titularidade do indivíduo, correspondem aos

direitos sociais, econômicos e culturais, que traduzem o valor da igualdade. Configuram as

liberdades positivas, pois que não são oponíveis ao Estado – antes, são exercidos por

intermédio do Estado, que deve proporcionar os meios para sua efetividade. Exigem postura

ativa do Estado, que deve proporcionar oportunidades de trabalho, condições de saúde e

educação, entre outros209.

Segundo Pilau210, são direitos típicos do século XX, caracterizando o Estado Social e

foram inicialmente positivados pelas constituições mexicana de 1917, soviética de 1918 e

alemã de 1919, tendo sido consagrados no Brasil pela primeira vez com a CREUB/1934;

Pilau cita Bedin para exemplificá-los:

1) direitos relativos ao homem trabalhador, integrado pelos: a) direito individuais dos trabalhadores, que são compostos do direito à liberdade de trabalho; direito ao salário mínimo; direito à jornada de trabalho de oito horas diárias; direito ao descanso semana remunerado; direito a férias anuais remuneradas e direito de igualdade de salários para trabalhos iguais; b) direitos coletivos dos trabalhadores, integrados pelo direito à liberdade sindical e direito de greve. 2) direitos relativos ao homem consumidor, composto pelo direito à seguridade social, direito à educação, direito à habitação211.

São ditos positivos no sentido de serem pró-ativos, pois que demandam do Estado uma

conduta de efetiva ação, em contraste aos direitos de primeira geração que lhe exigiam uma

conduta omissiva.

208 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras, p. 85. 209 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras, p. 87-89. 210 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras, p. 87-88. 211 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras, p. 87-88.

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2.3.2.3 Direitos de terceira geração ou de fraternidade

Conhecidos ainda como metaindividuais, de solidariedade, difusos ou coletivos, os

direitos de terceira geração não têm mais como titular um indivíduo – mas uma coletividade,

determinável ou não, de indivíduos, transcendendo a esfera individualista que caracteriza os

direitos de primeira e segunda gerações212.

Cármen Lúcia Antunes Rocha afirma que

se a liberdade (especialmente a individual) marcou o primeiro momento histórico moderno da conquista dos direitos fundamentais (dominando a própria concepção dos direitos de primeira geração) e a igualdade jurídica fecundou a Segunda etapa (direitos de segunda geração), coube ao terceiro mote da trilogia revolucionária setecentista, refeito e rebatizado, assinalar a conquista dos direitos denominados de ‘terceira geração’: a solidariedade social juridicamente concebida e exigida colore o constitucionalismo e tinge com novas tintas o princípio da dignidade humana. Agora, não mais apenas o homem e o Estado, ou o homem e o outro, mas, principalmente, o homem com o outro213.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho enumera quatro como os principais desta categoria:

“o direito à paz, o direito ao desenvolvimento, o direito ao meio ambiente e o direito ao

patrimônio comum da humanidade”214, reconhecendo porém que “muita controvérsia existe

quanto a sua natureza e a seu rol”215.

Para Ingo Wolfgang Sarlet,

A nota distintiva destes direitos de terceira geração reside basicamente na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinida e indeterminável, o que se revela, a título de exemplo, especialmente no direito ao meio ambiente e qualidade de vida, o qual, em que pese ficar preservada sua dimensão individual, reclama novas técnicas de garantia e proteção. A atribuição da titularidade de direitos fundamentais ao próprio Estado e à Nação (direito à auto-determinação, paz e desenvolvimento) tem suscitado sérias dúvidas no

212 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras, p. 90. 213 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O constitucionalismo contemporâneo e a instrumentalização para a eficácia dos direitos humanos. In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, 1., 1997, Brasília. Anais... Brasília: OAB, Conselho Federal, 1997 p.369. 214 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 58. 215 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 57.

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que concerne à própria qualificação de grande parte destas reivindicações como autênticos direitos fundamentais216.

Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, em acórdão que decidiu

mandado de segurança, sublinhou que os direitos de terceira geração

materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade217.

Newton Cesar Pilau aponta a Carta das Nações Unidas de 1945 como o momento em

que surgiram os direitos de terceira geração; no que diz respeito à ordens constitucionais

brasileiras, a inaugurada pela CRFB/1988 foi a que primeiro consagrou-os218.

2.3.2.4 Novos direitos: quarta e quinta gerações

Não bastasse a polêmica que envolve os direitos ditos de terceira geração, o avanço

tecnológico e seus reflexos na sociedade e no direito têm fomentado a discussão doutrinária

acerca de novas gerações de direitos, a saber, a quarta e a quinta.

Os direitos de quarta geração, segundo José Alcebíades Oliveira Junior219,

envolveriam as preocupações éticas acerca da biologia, da medicina e, fundamentalmente, da

vida humana; são direitos complexos de natureza interdisciplinar que nascem das práticas de

reprodução humana assistida, aborto, eutanásia, ortotanásia, cirurgias intra-uterinas,

transplantes de órgãos, genética, contracepção e outros.

Já no que diz respeito aos direitos que eventualmente ocupariam a quinta geração,

igualmente incipientes, Oliveira Junior220 assevera que guardam respeito às relações

216 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 54. 217 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de segurança n. 22.164. Diário da Justiça. Seção I, 17 nov. 1995. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/frame.asp?classe=MS&processo=22164>. Acesso em: 18 out. 2008. 218 PILAU, Newton Cesar. Teoria constitucional moderno-contemporânea e a positivação dos direitos humanos nas constituições brasileiras, p. 91. 219 OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades. Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 165-166. 220 OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades. Teoria jurídica e novos direitos, p. 165-166.

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estabelecidas em realidades virtuais ou ciberespaços – ambientes não físicos criados a partir

de técnicas e tecnologias de computação que permitem a interação humana.

Além da possibilidade de expandir a classificação geracional, resta a alternativa de

identificar o conteúdo de cada um dos novos direitos e sistematizá-los de acordo com as

características das três gerações originais; essa última hipótese se apresenta como mais correta

para preservar o espírito do sistema de Vasak e Bobbio.

Como a opção por qualquer uma das duas possibilidades não alterará de qualquer

maneira o desenvolvimento que neste trabalho se pretende entabular e mormente porque a

discussão foge ao escopo do presente é que se supera a questão sem enfrentá-la.

2.3.3 Classificação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

Alexandre de Moraes221 identifica cinco espécies do gênero “direitos e garantias

fundamentais”, tal qual especificado pelo Título II da Constituição de 1988 e que consistem

nos seus cinco capítulos: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade;

direitos políticos e partidos políticos.

2.3.3.1 Direitos individuais e coletivos

Segundo José Afonso da Silva, são “direitos fundamentais do homem-indivíduo”222,

assegurados tanto aos brasileiros como aos estrangeiros residentes no País – no que lhe

acompanha Alexandre de Moraes, entendendo que “correspondem aos direitos diretamente

ligados ao conceito de pessoa humana e de sua própria personalidade”223.

Para José Afonso da Silva, os direitos ditos coletivos (tais como o “de acesso a todos

ao trabalho, o direito a transporte coletivo, à energia, ao saneamento básico, o direito ao meio

ambiente sadio, o direito à melhoria da qualidade de vida”224, entre outros) foram distribuídos

221 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 43. 222 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 191. 223 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 43. 224 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 195.

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ao longo do texto constitucional, em que pese a rubrica do Capítulo I do Título II ali incluir

esses direitos coletivos225.

José Afonso da Silva anota ainda que “alguns deles não são propriamente direitos

coletivos, mas direitos individuais de expressão coletiva, como as liberdades de reunião e de

associação”226.

2.3.3.2 Direitos sociais

Para José Afonso da Silva, a ordem social adquiriu contornos jurídicos mais relevantes

a partir do momento em que abordada e sistematizada pelas constituições – que tem como

marco inicial a Constituição mexicana de 1917, no Brasil seguido pela CREUB/1934, sob

forte influência da Constituição alemã de Weimar227.

Assim, José Afonso da Silva os define, na qualidade de aspecto dos direitos

fundamentais, como “prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou

indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de

vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais

desiguais”228.

Não é diferente a posição de Alexandre de Moraes, que os caracteriza

como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, que configura um dos fundamentos de nosso Estado Democrático, conforme preleciona o art. 1°, IV229.

São, assim, associados aos direitos de segunda geração, na classificação de Vasak, na

medida em que exigem posicionamento ativo do Estado para a consecução dos fins que se

propõem.

225 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 195. 226 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 195. 227 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 285. 228 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 286. 229 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 43.

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2.3.3.3 Nacionalidade

Para José Afonso da Silva, citando conceito originalmente elaborado por Pontes de

Miranda, “nacionalidade é o vínculo jurídico-político de direito público interno, que faz da

pessoa um dos elementos componentes da dimensão pessoal do Estado”230 – na essência o

mesmo conceito de Alexandre de Moraes, que o verbaliza como “o vínculo jurídico político

que liga um indivíduo a um certo e determinado Estado, fazendo deste indivíduo um

componente do povo, da dimensão pessoal deste Estado”231.

Assim, os aspectos dos direitos fundamentais que tratem deste vínculo do indivíduo

com o Estado, tomado aquele como componente deste, é que serão dos direitos de

nacionalidade. Material e formalmente constitucional em nossa tradição, assim não o são em

países como a França, Japão e Itália, nos quais a matéria é regulada por leis ordinárias232.

2.3.3.4 Direitos políticos

Para Alexandre de Moraes, é o conjunto de direitos públicos subjetivos que

disciplinam as “formas de atuação da soberania popular”233, permitindo ao indivíduo o

concreto exercício da liberdade de participação na atividade política do Estado – conferindo-

lhe os atributos da cidadania234.

Embora o termo política cause, num primeiro momento, a impressão de que se refere

exclusivamente a atividades e interesses partidários, tal concepção é enganosa e não deve

persistir; Alexandre Botelho define política como “os relacionamentos entre sujeitos

caracterizados pelo interesse”235 justamente para desfazer a errônea associação e dar a

abrangência ao termo que as relações da sociedade contemporânea possibilitam.

Cidadania é categoria cuja investigação mais profunda foge do escopo deste trabalho,

ainda que intrinsecamente ligada à idéia de direitos fundamentais. Segundo Botelho “pode-se

230 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 319. 231 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 43. 232 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 319. 233 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 43. 234 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 43. 235 BOTELHO, Alexandre. Curso de ciência política. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005, p. 27.

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dizer que a cidadania compreende um processo, no qual o espaço privado passa a ser

politizado, para, em seguida, deslocar o conteúdo da cidadania para o cotidiano, para a práxis,

moldando uma revolução conceitual sem fim”236.

Os atributos da cidadania são, na óptica de Alexandre de Moraes237, desdobramentos

do princípio insculpido no parágrafo único do art. 1° da CRFB/1988, que dispõe “Todo o

poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos

termos desta Constituição”238.

José Afonso da Silva estabelece ainda caracteres que permitem diferenciar os direitos

políticos positivos dos direitos políticos negativos: os positivos “consistem no conjunto de

normas que asseguram o direito subjetivo de participação no processo político e nos órgãos

governamentais”239 e os negativos correspondem às “determinações constitucionais que, de

uma forma ou de outra, importem em privar o cidadão do direito de participação no processo

político e nos órgãos governamentais”240.

Assim, são políticos os direitos fundamentais destinados a garantir a possibilidade do

indivíduo exercer a representatividade que caracteriza a República, através das várias espécies

de sufrágio e de outras formas de participação do povo, como a propositura de ação popular e

o direito de organizar a participar de partidos políticos241.

2.3.3.5 Partidos Políticos

Para Alexandre de Moraes, a CRFB/1988 conferiu aos partidos políticos importância

na preservação do Estado democrático de direito, consagrando a “liberdade de criação, fusão,

incorporação e extinção de partidos políticos”242; os partidos têm assegurada ainda autonomia

para “definir sua estrutura interna, organização e funcionamento”243.

236 BOTELHO, Alexandre. Curso de ciência política, p. 354. 237 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 43. 238 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 18 out. 2008. 239 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 348. 240 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 381. 241 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 348. 242 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 266. 243 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional, p. 266.

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2.4 FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A redundância no título desta seção é apenas aparente: a expressão direitos

fundamentais já foi devidamente destrinçada, especificamente no que diz respeito ao termo

fundamentais; pela fundamentação deste conjunto de direitos se quer agora investigar o

motivo pelo qual os seres humanos são titulares destes direitos – ou, de outro ponto de vista, o

motivo pelo qual devem obediência a seus preceitos.

Mas esta abordagem será aqui desenvolvida com um cunho mais filosófico, pois que à

ciência jurídica é suficiente qualificar os seres humanos como titulares daqueles direitos pela

previsão constitucional, no melhor estilo do positivismo dogmático – como logo se verá,

ainda nesta seção.

Em definitivo, a se generalizar a questão da fundamentação ao direito de maneira

ampla, chega-se ao problema enfrentado por diversos filósofos do direito, e pelo alemão Hans

Kelsen tratada como a “pureza” do direito, em teoria na qual “já não lhe importa a questão de

saber como deve ser o direito, ou como deve ele ser feito. É a ciência jurídica e não política

do direito”244.

Kelsen luta contra a constatação de que “não há uma única moral, ‘a’ moral, mas

vários sistemas de moral profundamente diferentes uns dos outros e muitas vezes

antagônicos”245, precisamente por este motivo rejeitando, na sua Teoria Pura do Direito, a tese

de que o direito é, na sua essência, moral e por ela pode ser fundamentado246.

Abandonada a possibilidade de fundamentação moral do direito, Kelsen se pergunta:

“Por que é que uma norma vale, o que é que constitui seu fundamento de validade?”247. Uma

vez fundamentada a validade das normas jurídicas de maneira geral sempre numa outra norma

específica e hierarquicamente superior, a Constituição248, no que se constitui um sistema de

244 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 1. 245 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 77. 246 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 78. 247 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 215. 248 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 215-217.

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normas, ou ordem normativa249, resta desvelar o que reveste a Constituição de validade – ou o

que a fundamenta.

Após intrincada investigação teórica, a conclusão que Kelsen parece chegar é a de que

a fundamentação da Constituição é a medida de sua própria efetividade – ou seja, o grau de

correspondência da conduta dos indivíduos vinculados a determinada ordem constitucional

com as prescrições da própria Constituição, conduta esta tomada num sentido transcendental

com relação ao indivíduo e que reflita o comportamento do grupo250.

Segundo José Alcebíades Oliveira Junior, uma das principais críticas recebidas pelo

dogmatismo jurídico de Kelsen foi a de Miguel Reale que, ao elaborar sua Teoria

Tridimensional do Direito, taxava a teoria de Kelsen de reducionista quando não reconhecia a

“ineludível interpenetração do ‘dever ser’ com o ‘ser’”251.

Para Habermas, por sua vez, coube à teoria política dar uma dupla resposta para a

questão da fundamentação do direito, calcada nos princípios da soberania popular e dos

direitos humanos: por um lado, “o princípio da soberania popular fixa um procedimento que

fundamenta a expectativa de resultados legítimos com base nas suas qualidades

democráticas”252; por sua vez, os direitos humanos clássicos – “que garantem aos cidadãos da

sociedade a vida e a liberdade privada, a saber, âmbitos de ação para seguirem os seus planos

de vida pessoais – fundamentam uma soberania das leis legítima a partir de si mesma”253.

Segundo Luiz Moreira, “para que a convivência seja regulada pelos meios do direito

positivo, é preciso que os sujeitos de direito sejam compreendidos, ao mesmo tempo, como

destinatários e autores da ordem jurídica”254.

A fundamentação do direito em Habermas, segundo Luiz Moreira, se dá em dois

aspectos: primeiramente haveria que se compreender que as normas jurídicas destinam-se aos

249 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 217. 250 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 217-246. 251 OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades. Bobbio e a filosofia dos juristas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1994, p. 54. 252 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo: Littera Mundi, 2001, p. 146. 253 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional, p. 146. 254 MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em Habermas. 3. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004 p.167.

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indivíduos por conter garantias e comandos que afirmam e consolidam a autonomia privada

dos próprios indivíduos; assim, nesse aspecto, tem-se:

1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas

de ação. Esses direitos exigem como correlatos necessários: 2) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito; 3) Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de

postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual255.

Como segundo aspecto, Luiz Moreira aponta a norma jurídica como produto dos

próprios sujeitos dos direitos, na qualidade de emanação da vontade e dos valores destes; ter-

se-ia, num segundo momento, “4) direitos fundamentais à participação, em igualdade de

chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua

autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo”256.

Assim, a construção eminentemente política da fundamentação do direito de

Habermas implica em “5) direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica

e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em

igualdade de chances, dos direitos elencados de 1 a 4”257. É que, para Habermas, citado por

Luiz Moreira e Jean-Christophe Merle, “o direito não somente exige aceitação; não apenas

solicita dos seus endereçados reconhecimento de fato mas, também pleiteia merecer

reconhecimento”258.

Nesse sentido concluem Maria da Graça Mello Ferracioli e Maria Fernanda Gugelmin

Girardi: “valorando valores, estabelecendo princípios fundamentais, assegurando direitos

humanos, o aparelho jurídico estatal atinge, assim, a razão primeira de sua existência – a

garantia da paz social”259.

255 MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em Habermas, p. 168. 256 MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em Habermas, p. 168-169. 257 MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em Habermas, p. 169. 258 HABERMAS, Jürgen. Direito e legitimidade. In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003, p. 31. 259 FERRACIOLI, Maria da Graça Mello; GIRARDI, Maria Fernanda Gugelmin. A inter-relação ente princípios jurídicos, legitimidade e direitos fundamentais: reflexões a partir da visão de Robert Alexy. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 10, n. 2, p. 399-416, jul./dez. 2005, p. 411.

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Superando a digressão e retomando a questão do ponto de vista específico dos direitos

fundamentais, é por se tratar do conjunto de direitos aceito como indispensável ao

desenvolvimento do ser humano de forma digna através do respeito à sua condição de

liberdade – aceito de maneira que transcenda as ordens constitucionais – que se passa a

utilizar a expressão direitos humanos em vez de direitos fundamentais.

O próprio Habermas, no que toca especificamente aos direitos humanos, é quem

pondera que estes possuem duplo aspecto no que diz respeito à sua fundamentação, aspectos

estes voltados um para a moral e outro para o direito: “independentemente de seu conteúdo

moral, eles possuem a forma de direitos jurídicos”260. Como normas morais, relacionam-se

com todos os seres humanos; “mas como normas jurídicas protegem as pessoas

individualmente apenas à medida que elas pertencem a uma comunidade jurídica”261.

Segue então Habermas fixando o problema da fundamentação dos direitos humanos:

“existe uma tensão peculiar entre o sentido universal dos direitos humanos e as condições

locais da sua efetivação: eles devem valer de modo ilimitado para todas as pessoas – mas

como pode-se atingir isso?”262.

Alexandre de Moraes263 identifica como três as principais teorias desenvolvidas com o

objetivo de justificar o fundamento dos direitos humanos, conhecidas como a) teoria

jusnaturalista, b) teoria positivista e c) teoria moralista.

O próprio Alexandre de Moraes, na seqüência, reconhece a incapacidade das três

teorias de, individualmente, resolver a questão da fundamentação dos direitos humanos,

apontando sua interdependência como a mais adequada resposta ao problema, dizendo:

Na realidade, as teorias se completam, devendo coexistir, pois somente a partir da formação de uma consciência social (teoria de Perelman), baseada principalmente em valores fixados na crença de uma ordem superior, universal e imutável (teoria jusnaturalista) é que o legislador ou os tribunais (esses principalmente nos países anglo-saxões) encontram substrato político e social para reconhecer a existência de determinados direitos humanos

260 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional, p. 149-150. 261 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional, p. 150. 262 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional, p. 150. 263 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 34.

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fundamentais como integrantes do ordenamento jurídico (teoria positivista)264.

Os três aspectos, jusnaturalista, positivista e moralista podem ser identificados no

preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França de 1789, já citado

na seção que trata do modelo francês nos deslocamentos históricos dos direitos fundamentais.

Darcy Azambuja aponta ainda a teoria da solidariedade social, “cujo intérprete

máximo foi o jurista francês Leon Duguit. Na concepção solidarista, a liberdade-direito

desaparece para dar lugar à idéia de liberdade-dever”265.

Finalmente, para Gregório Peces-Barba, citado por Marcos Leite Garcia, o processo de

formação do ideal dos direitos humanos – ou sua fundamentação – pode ser entendido como a

soma dos processos de “positivação, de generalização, de internacionalização e de

especificação”266.

Marcos Leite Garcia assim resume os quatro processos de Peces-Barba, identificando-

os ainda com as gerações de direito de Vasak:

a. processo de positivação: a passagem da discussão filosófica ao direito positivo (primeira geração, direitos de liberdade); b. processo de generalização: significa a extensão do reconhecimento e proteção dos direitos de uma classe a todos os membros de uma comunidade como conseqüência da luta pela igualdade real (direitos sociais ou de segunda geração); c. processo de internacionalização: ainda em fase embrionária, de difícil realização prática e que implica na tentativa de internacionalizar os direitos humanos e que ele esteja por cima das fronteiras e abarque toda a Comunidade Internacional (tentativa de internacionalização dos direitos humanos). d. processo de especificação: pelo qual se considera a pessoa em situação concreta para atribuir-lhe direitos seja como titular de direitos como criança, idoso, como mulher, como consumidor, etc., ou como alvo de direitos como o de um meio ambiente saudável ou à paz (direitos difusos ou de terceira geração)267.

A soma desses processos é ainda chamada por Peces-Barba de trânsito à modernidade,

consistente na formação de “uma nova mentalidade, impulsionada pelo humanismo e pela

264 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 35. 265 AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado. 44. ed. São Paulo: Globo, 2003, p. 162. 266 GARCIA, Marcos Leite. A contribuição de Christian Thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí, v. 10, n. 2, p. 417-450, jul./dez. 2005, p. 420. 267 GARCIA, Marcos Leite. A contribuição de Christian Thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Novos Estudos Jurídicos, p. 438.

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Reforma”268, que se caracterizará “pelo individualismo, o racionalismo e o processo de

secularização”269.

A teoria de Peces-Barba do trânsito à modernidade é também conhecida como

racionalista – que, como se verá, a partir da consideração de que a razão humana encontra-se

no eixo central da fundamentação dos direitos humanos, plasma uma construção histórica de

valorização da dignidade da pessoa humana.

Em que pese sua interligação e complementaridade, as cinco teorias podem ser

analisadas individualmente – em função de estarem revestidas de caracteres individuais bem

definidos e contextos próprios – o que se faz nas próximas seções.

2.4.1 Teoria naturalista

A teoria naturalista, ou jusnaturalista, é a que fundamenta os direitos humanos “em

uma ordem superior universal, imutável e inderrogável. Por essa teoria, os direitos humanos

fundamentais não são criação dos legisladores, tribunais ou juristas, e, conseqüentemente, não

podem desaparecer da consciência dos homens”270.

Rogério Gesta Leal aponta Tomás de Aquino e sua discussão da lex como expoente da

teoria jusnaturalista:

neste autor, lei o ordem são dois conceitos que se completam e se exigem, entendendo por lei uma ordenação da razão no sentido de atingir o bem comum, promulgada por quem dirige a comunidade. Constrói o autor, ainda, a noção de lex aeterna, expressão da razão divina que governa todo o universo271.

Como fundamentação dos direitos humanos – e do direito de maneira geral – o

jusnaturalismo encontrou terreno fértil na medida em que o Estado e a Igreja confundiam-se

na luta “pelo domínio e controle das ações individuais”272; com a laicização do Estado, nova

268 GARCIA, Marcos Leite. A contribuição de Christian Thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Novos Estudos Jurídicos, p. 421. 269 GARCIA, Marcos Leite. A contribuição de Christian Thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Novos Estudos Jurídicos, p. 421. 270 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 34. 271 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 46. 272 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil, p. 46.

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concepção desta teoria foi construída, de modo a desligar de entidades divinas a origem

daquele conteúdo do direito independente dos homens.

Nesta nova fase o direito natural toma a configuração apontada por Carlos Niño,

citado por Rogério Gesta Leal: há princípios que determinam a justiça das instituições sociais

e estabelecem parâmetros de virtude pessoal universalmente válidos e que independem de

reconhecimento por órgãos ou indivíduos273.

Assim, o entendimento de que os princípios éticos universalmente aceitos é que se

constituem na base e no fundamento do direito passou a ser a tônica dominante dessa segunda

fase da teoria jusnaturalista, desvinculada da ordem divina – e que se aplica aos direitos

humanos. Para Jack Donnelly, os direitos humanos seriam em definitivo classificados como

“direitos morais da mais alta ordem”274.

2.4.2 Teoria positivista

A teoria positivista, por outro lado, reconhece como fundamento único e suficiente dos

direitos humanos sua existência na ordem normativa, na qualidade de manifestação da

vontade popular275.

Assim é pois, para Bobbio, “o positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o

estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características

das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais”276.

Nessa busca da cientificidade amoral, não será condizente estipular juízo de valor

acerca do conteúdo das normas (etapa necessária na concepção da teoria jusnaturalista,

consistente no reconhecimento dos direitos humanos como pertencentes àquela ordem

superior que lhes serve de fundamento), mas tão somente será permitido ao estudioso ou

aplicador do direito tecer juízos de fato, assim entendidos a “tomada de conhecimento da

verdade”277, em busca do conhecimento objetivo da realidade.

273 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil, p. 48. 274 DONNELLY, Jack. Universal human rights in theory and practice. 2. ed. Nova Iorque: Cornell University Press, 2003, p. 11. 275 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 34. 276 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 135. 277 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico, p. 135.

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E a única espécie de juízo de fato aplicável às normas jurídicas para verificar-lhe a

fundamentação ou a legitimidade será aquele que examine sua inserção na ordem normativa

vigente de maneira conforme ao direito.

Para Bobbio,

essa atitude contrapõe o positivismo jurídico ao jusnaturalismo, que sustenta que deve fazer parte do estudo do direito real também a sua valoração com base no direito ideal, pelo que na definição do direito se deve introduzir uma qualificação, que discrimine o direito tal qual é segundo um critério estabelecido do ponto de vista do direito tal qual deve ser278.

Pela contraposição clara e intangível entre as percepções jusnaturalista e positivista da

fundamentação dos direitos humanos é que Alexandre de Moraes, como já citado, apontou a

necessidade de se utilizar das duas teorias, concomitantemente.

2.4.3 Teoria moralista

Diferentemente das duas teorias anteriores, a teoria moralista (também conhecida

como teoria de Perelman279 ou teoria da consciência social) encontra fundamentação dos

direitos humanos “na própria experiência e consciência moral de um determinado povo, que

acaba por configurar o denominado espiritus razonables”280.

Chaïm Perelman critica o dogmatismo (ou positivismo) jurídico por concentrar o

império da lei no poder Legislativo e na sanção, recusando qualquer outro fundamento ao

direito – e aponta os abusos cometidos na Alemanha nazista, que não violaram qualquer lei do

Estado alemão, como fatos que contrapõem de maneira inconciliável a teoria de Kelsen281.

Reputa ainda o renascimento das teorias de direito natural como conseqüência do fracasso do

positivismo282.

Para Perelman,

278 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico, p. 136. 279 Em reconhecimento a Chaïm Perelman, filósofo do direito nascido em 1912 na Polônia, e sua teoria da formação de uma consciência social. 280 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 35. 281 PERELMAN, Chaim. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 394-395. 282 PERELMAN, Chaim. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 395.

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[...] a busca de um fundamento absoluto deve ceder a prioridade a uma dialética, na qual os princípios que se elaboram para sistematizar e hierarquizar os direitos humanos, tal como são concebidos, são constantemente cotejadas com a experiência moral, com as reações de nossa consciência. A solução dos problemas suscitados por esse cotejo não será nem evidente nem arbitrária: será dada graças a um posicionamento do teórico, que resultará de uma decisão pessoal, apresentada, porém, como válida para todas as mentes razoáveis283.

É que para Perelman, uma vez que o direito busca o estabelecimento de uma ordem

estável através da segurança jurídica, da igualdade e da previsibilidade, ele nunca pode ser

isolado do contexto social em que atua – não podendo, portanto, “desprezar os valores que ele

compartilha com a moral e a política, a saber: a justiça e o bem comum ou o interesse

geral”284. Além disso, por ser aplicável a pessoas que atendam concomitantemente a outros

sistemas de conduta, como a religião, não “poderá desprezar-lhes a incidência”285.

Conclui então que, dado o aspecto finalístico do direito, este não pode ser analisado

como sistema rígido e inflexível, como querem os dogmáticos, sob pena de não acompanhar

as mudanças de ordem técnico-culturais que se sucedem na sociedade. Justamente por ter o

aspecto finalístico como sua principal distinção em relação às ciências naturais é que o

resultado e as conseqüências da sua aplicação, diferentemente daquelas ciências naturais,

devem nortear seu desenvolvimento, preservando assim elementos de indeterminação em sua

formulação286.

2.4.4 Teoria da solidariedade social

Para Celso Antonio Pinheiro de Castro, Duguit “associou todo direito à solidariedade

de fato, isto é, com a sociabilidade”287; dada a condição natural do homem, no entendimento

de Aristóteles, citado por Celso Antonio Pinheiro de Castro, “de viver em sociedade”288. No

283 PERELMAN, Chaim. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 398. 284 PERELMAN, Chaim. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 424. 285 PERELMAN, Chaim. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 424. 286 PERELMAN, Chaim. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 424. 287 CASTRO, Celso Antônio Pinheiro de. Sociologia aplicada ao direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 39. 288 CASTRO, Celso Antônio Pinheiro de. Sociologia aplicada ao direito, p. 39.

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mesmo sentido, Darcy Azambuja aponta que “o homem sempre viveu em sociedade e não

pode viver senão em sociedade”289.

É que, na visão da solidariedade social, não há direitos inatos: pela condição de

criatura frágil e dependente da sociedade, o indivíduo, ao nascer, demandará cuidados

extremos dos pais e da família – comportamento e cultura que, transmitidos pelos

antecessores, agora são conduzidos aos sucessores290.

Assim, o ser humano torna-se, no exato instante em que vem ao mundo, devedor da

sociedade – dívida que só faz aumentar – por tudo que recebeu e receberá dessa sociedade.

Assim, revestindo de um caráter de retribuição o comportamento humano, a teoria da

solidariedade social entende fundamentados os direitos humanos nessa resposta individual e

do Estado de “colaborar, na medida de suas forças, para o bem, a ordem e a prosperidade

sociais”291.

2.4.5 Teoria racionalista e a dignidade da pessoa humana

Para Melina Girardi Fachin, os direitos fundamentais podem ser tomados como

“explicitações do princípio da dignidade da pessoa humana”292. Baseia-se na idéia de que a

dignidade da pessoa humana é conteúdo comum a todos os direitos fundamentais, em

expressão utilizada por José Carlos Vieira de Andrade293.

A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada pelo Brasil em 10 de

dezembro de 1948, reconhece a dignidade como fundamento dos direitos humanos no

primeiro parágrafo de seu preâmbulo: “Considerando que o reconhecimento da dignidade

inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis

constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, [...]”294.

289 AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado, p. 162. 290 AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado, p. 162. 291 AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado, p. 162-163. 292 FACHIN, Melina Girardi. Direitos humanos e fundamentais, p. 79-96. 293 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p. 83. 294 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.unhchr.ch/udhr/lang/por.htm>. Acesso em: 16 out. 2008.

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Em que pese ter sua importância reconhecida pelo texto da Organização das Nações

Unidas já em 1948, a primeira ordem constitucional brasileira que expressamente contemplou

a dignidade humana como princípio foi a instalada em 1988, atribuindo-lhe a qualidade de

fundamento da República295 - como já analisado nos deslocamentos históricos dos direitos

fundamentais, em seção anterior neste trabalho.

Constitui-se, no dizer de Alexandre de Moraes296, “valor espiritual e moral inerente a

pessoa, [...] e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”.

Continua dizendo que “o direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, entre outros,

aparece como conseqüência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como

fundamento da República Federativa do Brasil”.

José Afonso da Silva, por sua vez, define a dignidade da pessoa humana como “um

valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o

direito à vida”297.

Ingo Wolfgang Sarlet aponta que, no início da antiguidade clássica298, “verifica-se que

a dignidade (dignitas) da pessoa humana dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo

indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade”299.

Com o estoicismo300, ainda no período da antiguidade clássica, a dignidade humana

passou timidamente à condição de idéia central do pensamento filosófico – ainda que, como

lembra Comparato, “não se trate de um pensamento sistemático”301. Alf Ross assinala que o

estoicismo vê na razão e na natureza humanas “a medida para o comportamento do homem

sábio”302.

295 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 16 out. 2008. 296 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 128-129. 297 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 104. 298 Assim entendido o período situado entre o século VIII a.C. e a queda do Império Romano, já no século V d.C. 299 SARLET, Ingo Wolfgang. A dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 30. 300 Doutrina filosófica caracterizada pela primazia do problema moral e que considera como ideal do sábio a ataraxia (estado de imperturbabilidade, serenidade, no qual o equilíbrio e a moderação informam a escolha dos prazeres sensíveis e espirituais). Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 301 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 16. 302 ROSS, Alf. Direito e justiça. Bauru: EDIPRO, 2003, p. 281.

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Impregnado de valores cristãos e valendo-se de interpretação religiosa mais ampla,

acabou firmando-se em algo mais do que filosofia nos termos estritamente acadêmicos: como

filosofia de vida largamente difundida entre as pessoas educadas, “foi um instrumento de

disseminação do cristianismo”303.

Ainda segundo Comparato304, a segunda fase histórica da elaboração do conceito de

pessoa teve início com Boécio, no início do século VI, com escritos que influenciaram todo o

pensamento medieval305.

O romano Boécio, citado por Comparato, entendia que “diz-se propriamente pessoa a

substância individual da natureza racional”306 – definição adotada por Tomás de Aquino que,

citado por Comparato, definiu o homem como “um composto de substância espiritual e

corporal”307.

Com base nessa concepção de pessoa, já no período medieval, é que se desenvolveu a

elaboração do princípio de igualdade como essência de todo ser humano, inobstante todas as

diferenças de ordem biológica e cultural308.

Para Comparato, “é essa igualdade de essência da pessoa que forma o núcleo do

conceito universal de direitos humanos”309. Assim, pode-se dizer que esta concepção

antropocêntrica medieval permitiu o florescer da idéia de igualdade e, por conseguinte, a

impregnação do pensamento filosófico com a idéia de dignidade.

Ocorre que, conforme aponta Otto Gierke, citado por Manoel Gonçalves Ferreira

Filho, a “concepção de um direito independente da vontade humana perdurou por toda a Idade

Média”310, impossibilitando o desenvolvimento pleno da idéia de igualdade. Afirma Manoel

Gonçalves Ferreira Filho acerca de idéia de um direito superior:

303 ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 281. 304 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 19-21. 305 Para alguns a idade das trevas, pode ser temporalmente situada entre a queda do Império Romano e a queda de Constantinopla, já no século XV. 306 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 19-20. 307 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 20. 308 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 20. 309 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 20. 310 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 10.

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De forma refinada, recoloca-a Tomás de Aquino no século XIII [Suma

Teológica, Ia IIae, qu. 91]. Na Suma Teológica existe, inclusive, uma hierarquia. Suprema é a lei eterna (que só o próprio Deus conhece na plenitude), abaixo da qual estão, por um lado, a lei divina (parte da lei eterna revelada por Deus ou declarada pela Igreja), por outro, a lei natural (gravada na natureza humana que o homem descobre por meio da razão), e, mais abaixo, a lei humana (a lei positiva editada pelo legislador)311.

Alf Ross entende que não foi difícil para os padres da Igreja inserir idéias cristãs na

construção clássica do direito natural, seguindo os passos do estoicismo e assim o levando a

seu próximo estágio – substituindo a idéia de uma razão universal pelo conceito de Deus,

dando início ao que se conhece hoje como a escolástica312.

Assim, somente nos séculos XVII e XVIII, com um maior desenvolvimento do

pensamento jusnaturalista e da teoria do Estado, é que as idéias acerca da dignidade da pessoa

humana ganham maior destaque313, notadamente com os juristas e filósofos Samuel Pufendorf

(alemão), Emanuel Kant (prussiano), Christian Thomasius (alemão), Baruch Espinoza

(alemão) e Hugo Grócio (holandês).

Alf Ross pontua ainda que estes séculos “foram a era do racionalismo e do iluminismo

e, ao mesmo tempo, o período de esplendor dos grandes sistemas de direito natural”314. É que

as escolas de filosofia não se sucedem no tempo com limites precisos e bem definidos, mas se

intercalam numa construção histórica em que os valores de uma servem de base e paradigma

para as próximas.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho credita a Grócio a “laicização do direito natural”315;

Grócio, citado por Manoel Filho, comungava do entendimento que determinados direitos

decorrem da condição humana – direitos que não são criados ou outorgados por qualquer

legislador, mas identificados pela reta razão, avaliada a conveniência em face da

sociabilidade do ser humano316.

311 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 10. 312 ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 283. 313 FACHIN, Melina Girardi. Direitos humanos e fundamentais, p. 84. 314 ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 287. 315 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 10. 316 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 10.

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Marcos Leite Garcia destaca a contribuição de Christian Thomasius na evolução do

modelo jusracionalista, “tanto em sua esquematização e teorização na razão humana como na

transformação do direito natural divino em direito natural secular”317, considerando-o ainda

precursor de Montesquieu, Voltaire e de Beccaria318.

Para Elías Díaz, citado por Marcos Leite Garcia, em função do processo de

secularização, aspecto do trânsito à modernidade de Peces-Barba, na busca de

[...] um conceito unitário de direito natural, aceito por todos os homens, sejam quais foram suas idéias religiosas, fez-se necessário tornar independente aquele de estas. No novo clima de incipiente racionalismo (séculos XVI e XVII) de afirmação da autonomia e independência da razão humana diante da razão teológica, reflete-se que a base e o fundamento desse direito natural não pode ser mais a lei natural, senão que a mesmíssima natureza racional no homem, que corresponde e pertence de igual maneira a todo o gênero humano: a razão, diz-se é o comum a todo homem. Sobre ela se pode construir um autêntico e novo direito natural319

Segundo Gregório Peces-Barba, citado por Marcos Leite Garcia,

a secularização se produz diante das características da sociedade medieval, e suporá a mundanização da cultura, que contrapõe a progressiva soberania da razão e o protagonismo do homem orientado na direção de um tipo de vida puramente terrenal, à ordem da revelação e da fé, baseado na autoridade da Igreja. É conseqüência da ruptura da unidade religiosa, e abarcará a todos os segmentos da vida, desde a arte, a pintura, a literatura, a nova ciência e a política a partir da obra de Maquiavel. Os temas religiosos são substituídos pelos problemas humanos. [...] Em todo esse processo os direitos fundamentais realizarão progressivamente uma tarefa de substituição da ordem medieval, desde o momento em que supõe uma garantia de segurança que o edifício medieval, culminado por Deus, já não podia proporcionar; e que havia que encontrar nos homens mesmos. [...] Na sociedade, progressivamente secularizada se poderá dar releve às necessidades da burguesia para a procura de uma nova ordem baseada na razão e na natureza humana; é a ordem do individualismo e dos direitos naturais320.

317 GARCIA, Marcos Leite. A contribuição de Christian Thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Novos Estudos Jurídicos, p. 418. 318 GARCIA, Marcos Leite. A contribuição de Christian Thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Novos Estudos Jurídicos, p. 418. 319 GARCIA, Marcos Leite. A contribuição de Christian Thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Novos Estudos Jurídicos, p. 422. 320 GARCIA, Marcos Leite. A contribuição de Christian Thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Novos Estudos Jurídicos, p. 440.

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Pufendorf, citado por Sarlet, entende a dignidade da pessoa humana conectada à

“liberdade do ser humano de optar de acordo com sua razão e agir conforme seu entendimento

e sua opção”321; no mesmo sentido estabelece Kant seus imperativos categóricos universais:

“age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer

outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio”322.

Tal liberdade que detém cada indivíduo de optar e agir conforme suas próprias

determinações é denominada livre arbítrio, categoria que será analisada com mais

profundidade na seção que trata dos deslocamentos históricos da liberdade, no próximo

capítulo deste trabalho.

Para Hannah Arendt323, é essa soma de atividades (exercício do livre arbítrio) e de

capacidades (potencialidade de exercício do livre arbítrio) o que corresponde à condição

humana e que nos diferencia de outras espécies.

A esse respeito, merece breve comentário a pesquisa e obra de Charles Darwin, que

situou o ser humano no mesmo patamar de todos os seres vivos no que diz respeito à sua

criação e evolução, naquela que ficou conhecida como a teoria ou princípio da seleção

natural. Em sua principal obra, Charles Darwin conclui:

Em classes inteiras, várias estruturas são formadas seguindo um mesmo padrão, e as espécies, em certa idade embrionária, são muito semelhantes umas às outras. Em razão disso, não posso duvidar de que a teoria da descendência com modificações deva abranger todos os membros da mesma classe. Creio que os animais sejam descendentes de no máximo quatro ou cinco formas primitivas, e os vegetais de um número igual ou mesmo menor. Mediante uma analogia, eu poderia avançar um passo mais, e seria levado a crer que todos os animais e vegetais sejam descendentes de um protótipo. [...] Conseqüentemente, pelo princípio da seleção natural com divergência de caracteres, não parece impossível que os animais e plantas tenham-se desenvolvido partindo dessas formas inferiores e intermediárias; e, se aceitarmos esse ponto, deveremos admitir também que todos os seres

321 SARLET, Ingo Wolfgang. A dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 32. 322 KANT, Emanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. In: Crítica da razão pura e outros textos. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 229. 323 ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 15-26.

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organizados[324] que vivem ou que viveram na Terra podem originar-se de uma só forma principal325.

O próprio Darwin reconheceu que a razão – enquanto elemento que possibilita o livre

arbítrio – é que nos reveste da condição humana:

Não obstante, a diferença de espírito entre o homem e os animais superiores, qualquer que seja sua importância, está somente no grau e não no tipo. Vimos que os sentidos e as intuições, as várias emoções e faculdades, tais como o amor, a memória, a atenção, a curiosidade, a imitação, a razão, etc., das quais o homem se orgulha, podem ser encontradas num estado incipiente, ou mesmo, algumas vezes, bem desenvolvido nos animais inferiores. [...] Se pudéssemos provar que certos elevados poderes mentais como a formação de conceitos gerais, autoconsciência, etc., são exclusivos do homem, o que parece extremamente duvidoso, é provável que estas qualidades nada mais são que o resultado acidental de outras faculdades intelectuais muito desenvolvidas. [...] O senso moral é o que talvez proporciona a melhor e mais elevada distinção entre os homens e os animais inferiores; mas nada é preciso dizer sobre esse assunto, pois que, muito recentemente, procurei demonstrar que o instinto social, - o princípio fundamental da constituição moral humana – auxiliado por poderes intelectuais ativos e pelos poderes do hábito, naturalmente levam à seguinte regra de ouro: ‘fazei aos outros o que desejais vos seja feito’, esta é a base da moralidade326.

É lícito concluir então que, não fôssemos dotados de razão neste grau em que a

evolução nos trouxe, igualarmos-íamos a outros seres vivos, quiçá árvores ou baratas,

orientando nossas ações puramente movidos pelo instinto da sobrevivência. E situados no

mesmo plano existencial de todos os seres vivos, não haveria que se falar nos direitos

humanos em qualquer aspecto diferente dos direitos das outras espécies.

Assim, estabelecida a razão como princípio ontológico do ser humano é que seu livre

arbítrio (ou liberdade) adquire caráter imprescindível à sua dignidade, fundamentando a

titularidade dos direitos humanos precisamente na sua condição de ser racional.

324 Darwin se referia mais propriamente aos seres orgânicos; possivelmente erro de tradução. 325 DARWIN, Charles. A origem das espécies São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 576. 326 DARWIN, Charles. O que pensava Darwin. In: GOMES, Marileide Pereira (Org.). Darwin, p. 113-114.

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Para Flávia Piovesan, do ponto de vista histórico, “a primazia jurídica do valor da

dignidade humana é resposta à profunda crise sofrida pelo positivismo jurídico, associada à

derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha”327.

A imbricação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos

fundamentais desponta cristalina quando se considera que aquele não apenas figura como

elemento de referência destes, mas estes são exigências de concretização daquele princípio328.

2.5 CRÍTICAS E NEGAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Para José Adércio Leite Sampaio, “as críticas aos direitos humanos advêm de muitas

frentes, desde os chamados progressistas e revolucionários aos conservadores, tanto

românticos quanto historicistas, da esquerda e da direita, do centro do sistema globalizado à

sua periferia”329.

Em todos os aspectos e de todas as maneiras os direitos fundamentais são atacados,

pelas diversas frentes citadas, que ora lhes atribuem características de subversividade, ora lhes

têm como guardiões da delinqüência; nega-se os direitos fundamentais ainda com base em seu

etnocentrismo ocidental, em seu fundamento racionalista e na “força alienante de seu

discurso”330.

Os mais importantes aspectos das críticas e negações dos direitos fundamentais serão

apresentados nesta seção, pela sua importância em fomentar a discussão e possibilitar sua

abordagem dialética.

327 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 28. 328 FACHIN, Melina Girardi. Direitos humanos e fundamentais, p. 80-81. 329 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos: retórica e historicidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 37. 330 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 37.

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2.5.1 Igreja Católica e a subversão à ordem e à autoridade

Segundo Marcos Leite Garcia, “a Igreja Católica foi crítica com relação aos direitos

humanos até o Concílio Vaticano II[331] (1962-1965)”332, no que não diverge Manuel Atienza:

“a Igreja Católica foi crítica, radicalmente crítica, a respeito dos direitos humanos e diria a

todos os direitos humanos, incluindo os mais clássicos do liberalismo”333.

Monsenhor Franco Biffi, reitor da Universidade Pontifícia Lateranense, instalada na

cidade-Estado do Vaticano, reconhece que a resposta inicial da Igreja Católica à Revolução

Francesa como um todo e especificamente à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

foi de “completa rejeição”334.

Para José Adércio Leite Sampaio, após a queda de Napoleão Bonaparte na França,

nomes como Joseph de Maistre, Louis Gabriel Ambroise de Bonald, Pierre-Simon Ballanche

e Jean Baptiste Henri Dominique Lacordaire, em coro com o discurso oficial da Igreja

Católica contrário aos direitos humanos, entendiam “que os modernos e sua idéia de direitos

inatos causariam o desprestígio da autoridade”335.

Por sua vez, a Igreja Católica em sua encíclica336 Mirari Vos, promulgada por

Gregório XVI no ano de 1832, em sua cláusula quinta, previa a destruição da autoridade como

conseqüência da liberdade, conduzindo à “ruína da ordem pública, a desonra dos governantes

331 Concílio é um esforço da Igreja Católica (ou parte dela) para sua própria preservação ou defesa, ou guarda e compreensão da fé. 332 GARCIA, Marcos Leite. A leitura de Karl Marx dos direitos do homem e do cidadão e suas conseqüências para a teoria contemporânea dos direitos humanos: diálogo entre o prof. Marcos Leite Garcia e o prof. Manuel Atienza. In: CRUZ, Paulo Márcio; ROESLER, Cláudia Rosane (Org.). Direito e argumentação no pensamento de Manuel Atienza, p. 9. 333 GARCIA, Marcos Leite. A leitura de Karl Marx dos direitos do homem e do cidadão e suas conseqüências para a teoria contemporânea dos direitos humanos: diálogo entre o prof. Marcos Leite Garcia e o prof. Manuel Atienza. In: CRUZ, Paulo Márcio; ROESLER, Cláudia Rosane (Org.). Direito e argumentação no pensamento de Manuel Atienza, p. 8. 334 BIFFI, Franco. From rejection to proclamation: a brief overview of the development of the Catholic Churc`s thinking on human rights. Disponível em: <http://esvc001044.wic026u.server-web.com/CONTENT/PDF/human_rights_thinking.pdf>. Acesso em: 20 out. 2008. 335 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 42. 336 A carta encíclica, ou somente encíclica, é documento de lavra do sumo pontífice da Igreja Católica que, dirigido aos fiéis de todo o mundo, trata da assuntos pertinentes à doutrina daquela religião.

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e a perversão de toda autoridade legítima”337. Segundo Franco Biffi, o Papa Gregório XVI via

a liberdade de opinião e a separação da Igreja e do Estado como absurda loucura, rejeitando

ainda a liberdade religiosa e a liberdade de imprensa338.

Idênticos valores acerca da liberdade eram novamente consagrados pela Igreja

Católica na encíclica Immortale Dei, promulgada pelo papa Leão XIII em 1885:

24. Na ordem política e civil, as leis têm por fim as bem comuns, ditadas não pela vontade e pelo juízo enganador da multidão, mas pela verdade e pela justiça. A autoridade dos príncipes reveste uma espécie de caráter mais sagrado do que humano, e é contida de maneira a não se afastar da justiça, nem exceder o seu poder. A obediência dos súditos corre parelhas com a honra e a dignidade, porque não é uma sujeição de homem a homem, mas uma submissão à vontade de Deus, que reina por meio de homens. Uma vez reconhecido e aceito isso, daí resulta claramente ser um dever de justiça respeitar a majestade dos príncipes, ser submisso com fidelidade constante ao poder político, evitar as sedições e observar religiosamente a constituição do Estado339.

Por outro lado, o mesmo papa Leão XIII, iniciando o que Franco Biffi chamou de

“fase do discernimento”340, promulgou em 1891 a encíclica Rerum Novarum, que de maneira

ainda tímida consagrava direitos como o de propriedade; em texto abertamente contrário ao

socialismo e ao comunismo – que a este último chama de “princípio de empobrecimento”,

assevera que

[...] esta conversão da propriedade particular em propriedade colectiva, tão preconizada pelo socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e

337 PAPA GREGÓRIO XVI. Carta encíclica mirari vos: sobre os principais erros de seu tempo. Disponível em: <http://www.montfort.org.br/index.php?secao=documento&subsecao=enciclicas&artigo=mirarivos&lang=bra>. Acesso em: 20 out. 2008. 338 BIFFI, Franco. From rejection to proclamation: a brief overview of the development of the Catholic Churc`s thinking on human rights. Disponível em: <http://esvc001044.wic026u.server-web.com/CONTENT/PDF/human_rights_thinking.pdf>. Acesso em: 20 out. 2008. 339 PAPA LEÃO XIII. Carta encíclica immortale dei: sobre a constituição cristã dos Estados. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_01111885_immortale-dei_po.html>. Acesso em: 20 out. 2008. 340 BIFFI, Franco. From rejection to proclamation: a brief overview of the development of the Catholic Churc`s thinking on human rights. Disponível em: <http://esvc001044.wic026u.server-web.com/CONTENT/PDF/human_rights_thinking.pdf>. Acesso em: 20 out. 2008.

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101

roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade de engrandecerem o seu património e melhorarem a sua situação341

Segundo Franco Biffi342, o papa Pio XI desenvolveu o pensamento da Igreja Católica

sobre os direitos humanos frente ao Estado; na encíclica Non Abbiamo Bisogno343, de 1931,

defendeu a liberdade de consciência; em Mit Brennender Sorge344, de 1937, dava ênfase ao

livre direito de cada um de professar e viver de acordo com sua própria fé; em Divini

Redemptoris345, também de 1937, recrudescia a oposição ao comunismo.

Segundo Franco Biffi, o papa João XXIII iniciou a chamada fase de diálogo entre a

Igreja Católica e a comunidade internacional no que concerne aos direitos humanos346; na

encíclica Mater et Magistra347

, de 1961, o sumo pontífice da Igreja Católica reconheceu a

dignidade e os direitos dos trabalhadores, das mulheres e das Nações recentemente

independentes.

Por outro lado, para Manuel Atienza “a Igreja Católica não contribuiu positivamente

com os direitos humanos e ao reconhecimento de nenhum direito humano”348, identificando349

341 PAPA LEÃO XIII. Carta encíclica rerum novarum: sobre a condição dos operários. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html>. Acesso em: 20 out. 2008. 342 BIFFI, Franco. From rejection to proclamation: a brief overview of the development of the Catholic Churc`s thinking on human rights. Disponível em: <http://esvc001044.wic026u.server-web.com/CONTENT/PDF/human_rights_thinking.pdf>. Acesso em: 20 out. 2008. 343 PAPA PIO XI. Carta encíclica non abbiamo bisogno: on catholic action in Italy. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_29061931_non-abbiamo-bisogno_en.html>. Acesso em: 20 out. 2008. 344 PAPA PIO XI. Carta encíclica mit brenneder sorge: on the church and the german reich. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_14031937_mit-brennender-sorge_en.html>. Acesso em: 20 out. 2008. 345 PAPA PIO XI. Carta encíclica divini redemptoris: sobre o comunismo ateu. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19370319_divini-redemptoris_po.html>. Acesso em: 20 out. 2008. 346 BIFFI, Franco. From rejection to proclamation: a brief overview of the development of the Catholic Churc`s thinking on human rights. Disponível em: <http://esvc001044.wic026u.server-web.com/CONTENT/PDF/human_rights_thinking.pdf>. Acesso em: 20 out. 2008. 347 PAPA JOÃO XXIII. Carta encíclica mater et magistra: evolução da questão social à luz da doutrina cristã. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_15051961-mater_po.html>. Acesso em: 20 out. 2008. 348 GARCIA, Marcos Leite. A leitura de Karl Marx dos direitos do homem e do cidadão e suas conseqüências para a teoria contemporânea dos direitos humanos: diálogo entre o prof. Marcos Leite Garcia e o prof. Manuel Atienza. In: CRUZ, Paulo Márcio; ROESLER, Cláudia Rosane (Org.). Direito e argumentação no pensamento de Manuel Atienza, p. 13. 349 GARCIA, Marcos Leite. A leitura de Karl Marx dos direitos do homem e do cidadão e suas conseqüências para a teoria contemporânea dos direitos humanos: diálogo entre o prof. Marcos Leite Garcia e o prof. Manuel

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como ponto de inflexão da posição católica a encíclica Pacem in Terris, de 1963, promulgada

pelo papa João XXIII, que em sua primeira parte declarava:

Todo ser humano é pessoa, sujeito de direitos e deveres 8. E, antes de mais nada, é necessário tratar da ordem que deve vigorar entre os homens. 9. Em uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, e inalienáveis. 10. E se contemplarmos a dignidade da pessoa humana à luz das verdades reveladas, não poderemos deixar de tê-la em estima incomparavelmente maior. Trata-se, com efeito, de pessoas remidas pelo Sangue de Cristo, as quais com a graça se tornaram filhas e amigas de Deus, herdeiras da glória eterna350.

E a seguir a encíclica reconhecia os seguintes direitos ao ser humano: direito à

existência e a um digno padrão de vida; direitos que se referem aos valores morais e culturais;

direito de honrar a Deus segundo os ditames de sua reta consciência; direito à liberdade na

escolha do próprio estado de vida; direitos inerentes ao campo econômico; direito de reunião

e associação; direito de emigração e de imigração e direitos de caráter político351.

Para Franco Biffi352, a encíclica Pacem in Terris constitui o que de mais próximo a

uma declaração de direitos a Igreja Católica jamais produziu. Nos documentos do Concílio

Vaticano II, aberto sob o pontificado de João XXIII em 1962 e finalizado em 1965 no papado

de Paulo VI, a Igreja Católica consagrou integralmente os direitos reconhecidos na

Atienza. In: CRUZ, Paulo Márcio; ROESLER, Cláudia Rosane (Org.). Direito e argumentação no pensamento de Manuel Atienza, p. 9. 350 PAPA JOÃO XXIII. Carta encíclica pacem in terris: a paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/j-xxiii_enc_11041963_pacem_po.html>. Acesso em: 19 out. 2008. 351 PAPA JOÃO XXIII. Carta encíclica pacem in terris: a paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/j-xxiii_enc_11041963_pacem_po.html>. Acesso em: 19 out. 2008. 352 BIFFI, Franco. From rejection to proclamation: a brief overview of the development of the Catholic Churc`s thinking on human rights. Disponível em: <http://esvc001044.wic026u.server-web.com/CONTENT/PDF/human_rights_thinking.pdf>. Acesso em: 20 out. 2008.

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Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948, principalmente na constituição

pastoral353 Gaudium et Spes, de 1965, que dizia acerca da liberdade:

17. Mas é só na liberdade que o homem se pode converter ao bem. Os homens de hoje apreciam grandemente e procuram com ardor esta liberdade; e com toda a razão. Muitas vezes, porém, fomentam-na dum modo condenável, como se ela consistisse na licença de fazer seja o que for, mesmo o mal, contanto que agrade. A liberdade verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem. Pois Deus quis ‘deixar o homem entregue à sua própria decisão’, para que busque por si mesmo o seu Criador e livremente chegue à total e beatífica perfeição, aderindo a Ele. Exige, portanto, a dignidade do homem que ele proceda segundo a própria consciência e por livre adesão, ou seja movido e induzido pessoalmente desde dentro e não levado por cegos impulsos interiores ou por mera coacção externa. O homem atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com diligente iniciativa os meios convenientes. A liberdade do homem, ferida pelo pecado, só com a ajuda da graça divina pode tornar plenamente efectiva esta orientação para Deus. E cada um deve dar conta da própria vida perante o tribunal de Deus, segundo o bem ou o mal que tiver praticado354.

No que chama de fase da anunciação, Franco Biffi expõe que o papa João Paulo II

engajou-se em diversas atividades e conferências da Organização das Nações Unidas, fazendo

freqüentes referências positivas à Declaração Universal dos Direitos Humanos355. Pondera

ainda que o referido pontífice contribuiu de maneira expressiva para o desenvolvimento da

doutrina social cristã em encíclicas como Laborem Exercens356, de 1981 e Centesimus

Annus357, de 1991.

353 Por constituição pastoral entende-se documento subordinado às normas teológicas gerais que, apoiando-se em princípios doutrinais, pretende expor as relações da Igreja com o mundo e os homens. 354 PAPA PAULO VI. Constituição pastoral gaudium et spes: sobre a igreja no mundo actual. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html>. Acesso em: 20 out. 2008. 355 BIFFI, Franco. From rejection to proclamation: a brief overview of the development of the Catholic Churc`s thinking on human rights. Disponível em: <http://esvc001044.wic026u.server-web.com/CONTENT/PDF/human_rights_thinking.pdf>. Acesso em: 20 out. 2008. 356 PAPA JOÃO PAULO II. Carta encíclica laborem exercens: sobre o trabalho humano no 90° aniversário da rerum novarum. Disponível em: <http://www.vatican.va/edocs/POR0068/_INDEX.HTM>. Acesso em: 20 out. 2008. 357 PAPA JOÃO PAULO II. Carta encíclica centesimus annus: no centenário da rerum novarum. Disponível em: <http://www.vatican.va/edocs/POR0067/_INDEX.HTM>. Acesso em: 20 out. 2008.

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2.5.2 Burke e a negação conservadora

Edmund Burke, filósofo e político irlandês nascido em 1729, criticava os direitos

humanos com base em sua característica racional; “para ele, os direitos do homem não

passavam de ‘direitos metafísicos’, artificiais e, por isso mesmo, fadados ao fracasso”358.

Para Burke, citado por José Adércio Leite Sampaio, “em seu lugar, existiriam os

direitos reais, frutos das instituições e da história de um povo, os ‘verdadeiros direitos do

homem’”359; é que, contrariando a concepção da teoria jusracionalista, nesse ambiente o

direito era tido como produção da vontade dos povos e sedimentado pelo tempo, “nunca feito

um produto da razão apriorística ou de qualquer princípio jusnaturalista”360.

Segundo Lynn Hunt361, Burke questionava a força coercitiva da declaração francesa

por estar baseada em abstrações metafísicas; como poderiam “tripas de papel borrado sem

sentido”362 se comparar ao amor de Deus?

É que nem o processo de internacionalização, aspecto do trânsito à modernidade, nem

a concepção ontológica da teoria jusracionalista lograram transformar a visão conservadora de

Burke, bem sintetizada nas palavras do francês Michel Villey, citado por José Adércio Leite

Sampaio: “eu não creio no poder nem da ‘lei’ nomeada natural, nem na razão prática do

homem que a substituir para ditar as soluções de direito. A razão dos racionalistas acrescenta

aos sistemas jurídicos modernos apenas falsas justificações ideológicas”363.

Burke, citado por José Adércio Leite Sampaio, questiona para em seguida concluir:

“como pode o homem reivindicar, em nome de convenções da sociedade civil, direitos cuja

existência é questionável? [...] o homem não pode gozar ao mesmo tempo dos direitos da

sociedade civil e dos que teria se vivesse isolado”364;

358 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 38. 359 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 38. 360 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 39. 361 HUNT, Lynn. Inventing human rights, p. 177-178. 362 HUNT, Lynn. Inventing human rights: a history. Nova Iorque: Norton, 2007, p. 177. 363 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 40. 364 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 40.

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Nesse aspecto Burke e os pensadores românticos idealistas alemães, como Schelling,

Hegel e Savigny não reconheciam como legítimo o que neste trabalho se logrou chamar

direitos humanos, mas tão somente aquela parcela positivada destes direitos – os direitos

fundamentais.

2.5.3 Karl Marx e a dominação de classes

Para Manuel Atienza, em diálogo com os professores César Luiz Pasold, Luiz

Henrique Cademartori e Marcos Leite Garcia, citado pelo último, Marx teve uma idéia

equivocada dos direitos humanos – acreditando que os direitos humanos eram ligados ao

capitalismo, por pensar se tratar de ideologia favorecedora da classe burguesa, os renegou365.

Micheline Ishay aponta que para Marx nem a declaração de direitos nem a

constituição francesas lograram elevar a sociedade civil acima do egoísmo – pois que o direito

de propriedade conduz a comportamentos individualistas e egoísticos366.

Para Marx, citado por José Adércio Leite Sampaio, “o reconhecimento dos direitos do

homem pelo Estado moderno tem o mesmo significado do reconhecimento da escravidão pelo

Estado na antiguidade”367.

Manuel Atienza ressalva que, “se Marx é um inimigo dos direitos humanos, o é neste

sentido, um inimigo por razões estratégicas”368, contemporizando que “de fato, as pessoas que

365 GARCIA, Marcos Leite. A leitura de Karl Marx dos direitos do homem e do cidadão e suas conseqüências para a teoria contemporânea dos direitos humanos: diálogo entre o prof. Marcos Leite Garcia e o prof. Manuel Atienza. In: CRUZ, Paulo Márcio; ROESLER, Cláudia Rosane (Org.). Direito e argumentação no pensamento de Manuel Atienza. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 8-10. 366 ISHAY, Micheline. The history of human rights, p. 138. 367 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 44-45. 368 GARCIA, Marcos Leite. A leitura de Karl Marx dos direitos do homem e do cidadão e suas conseqüências para a teoria contemporânea dos direitos humanos: diálogo entre o prof. Marcos Leite Garcia e o prof. Manuel Atienza. In: CRUZ, Paulo Márcio; ROESLER, Cláudia Rosane (Org.). Direito e argumentação no pensamento de Manuel Atienza, p. 11.

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vêm do Marxismo, hoje são os maiores defensores dos direitos humanos”369; Marcos Leite

Garcia complementa que assim o foi pelo contexto histórico que Marx se situou370.

A bem da verdade, Marx, citado por Marcos Leite Garcia, repudia o lema da

Revolução Francesa dizendo que liberté, égalite, fraternité não significam senão “Infantaria,

Cavalaria, Artilharia!”371, entendendo o ideário moderno de direitos do homem “como

instrumento que aprofundava a alienação humana, ao abstrair, pela proclamação de

universalidade e imutabilidade, os direitos e deveres dos homens e relações concretos”372.

José Adércio Leite Sampaio conclui que a crítica marxista aos direitos humanos

consiste na

substituição da metafísica liberal apriorística por uma suposta metafísica ou por um transcendentalismo da transformação a orientar um positivismo teleológico: apenas os direitos garantidos pelo Estado, agora instância apropriada pelo proletariado, podem ser considerados fundamentais, sendo, todavia, o seu exercício dependente do cumprimento de obrigações impostas à sociedade e ao Estado em seu devir socialista373.

Marcos Leite Garcia aponta que, numa segunda fase da vida de Marx, situada entre

1848, ano da edição de sua obra “Manifesto do Partido Comunista”374, e 1852, sua posição

com relação aos direitos humanos deixa de ser eminentemente hostil para passar a ser

ambígua: “por um lado outorga uma grande importância prática à conquista de certos direitos

369 GARCIA, Marcos Leite. A leitura de Karl Marx dos direitos do homem e do cidadão e suas conseqüências para a teoria contemporânea dos direitos humanos: diálogo entre o prof. Marcos Leite Garcia e o prof. Manuel Atienza. In: CRUZ, Paulo Márcio; ROESLER, Cláudia Rosane (Org.). Direito e argumentação no pensamento de Manuel Atienza, p. 12. 370 GARCIA, Marcos Leite. A leitura de Karl Marx dos direitos do homem e do cidadão e suas conseqüências para a teoria contemporânea dos direitos humanos: diálogo entre o prof. Marcos Leite Garcia e o prof. Manuel Atienza. In: CRUZ, Paulo Márcio; ROESLER, Cláudia Rosane (Org.). Direito e argumentação no pensamento de Manuel Atienza, p. 11. 371 GARCIA, Marcos Leite. A leitura de Karl Marx dos direitos do homem e do cidadão e suas conseqüências para a teoria contemporânea dos direitos humanos: diálogo entre o prof. Marcos Leite Garcia e o prof. Manuel Atienza. In: CRUZ, Paulo Márcio; ROESLER, Cláudia Rosane (Org.). Direito e argumentação no pensamento de Manuel Atienza, p. 22. 372 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 44. 373 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 47. 374 Um dos tratados políticos de maior influência mundial, escrito em conjunto com Friedrich Engels – autores que, posteriormente, vieram a ser reconhecidos como teóricos fundadores do socialismo. A obra aponta o caminho da revolução socialista através da conquista do poder pelos proletários.

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humanos por parte do proletariado, mas, por outro lado, os reduz à categoria de meios, não de

fins; concede-lhes um valor mais político do que ético”375.

Ainda segundo Marcos Leite Garcia, a maturidade de Marx (a partir de 1853) é

acompanhada, em que pese ainda presente a ambivalência referida anteriormente, de uma

valorização crescente dos direitos humanos e do abandono da tese de extinção do Estado376.

A crítica marxista aos direitos humanos com o viés de dominação de classe serviu de

base para o que hoje se conhece por “dominação social”377; segundo essa releitura do

pensamento marxista relativo aos direitos humanos,

o discurso dos direitos humanos mascararia para elas [as pessoas] as verdadeiras condições estruturais que levam à desigualdade social, ao mesmo tempo em que se acena ilusoriamente com as suas ‘possibilidades emancipatórias’, pondo a transformação e não a revolução como destino das mudanças378.

Esses críticos, eminentemente adeptos do movimento estadunidense conhecido por

critical legal studies (ou pelo acrônimo CLS; ainda pela forma abreviada Crit)379, engrossam

suas fileiras com nomes como David Kairys, Andrew Altman e Richard Bauman.

O brasileiro Roberto Mangabeira Unger alinhou-se com o movimento no início de sua

carreira, sendo apontado por Calvin Woodward, no jornal estadunidense The New York Times,

como seu principal líder intelectual380; chegou mesmo a publicar a obra The Critical Legal

Studies Movement, em 1986, pela Editora da Universidade de Harvard, instituição na qual

lecionava.

375 GARCIA, Marcos Leite. A leitura de Karl Marx dos direitos do homem e do cidadão e suas conseqüências para a teoria contemporânea dos direitos humanos: diálogo entre o prof. Marcos Leite Garcia e o prof. Manuel Atienza. In: CRUZ, Paulo Márcio; ROESLER, Cláudia Rosane (Org.). Direito e argumentação no pensamento de Manuel Atienza, p. 39. 376 GARCIA, Marcos Leite. A leitura de Karl Marx dos direitos do homem e do cidadão e suas conseqüências para a teoria contemporânea dos direitos humanos: diálogo entre o prof. Marcos Leite Garcia e o prof. Manuel Atienza. In: CRUZ, Paulo Márcio; ROESLER, Cláudia Rosane (Org.). Direito e argumentação no pensamento de Manuel Atienza, p. 39-40. 377 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 47. 378 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 47. 379 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 47. 380 WOODWARD, Calvin. Toward a ‘super liberal state’. The New York Times. Nova Iorque, Seção 7, p. 27, 23 nov. 1986. Disponível em: <http://www.robertounger.com/cls.htm>. Acesso em: 20 out. 2008.

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Em substituição ao discurso de direitos humanos de maneira geral e especificamente

com relação ao direito à liberdade, pois que comprometidos com a dita dominação social,

Mangabeira Unger prescreve o que chamou de direitos de imunidade; assevera, citado por

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy:

O sistema de direitos de imunidade em uma democracia fortalecida difere das salvaguardas individuais correntes, tanto no que toca à amplidão de seu exercício, quanto pelo escrúpulo com que se evita que essas garantias possam ser utilizadas na defesa de ordens de uma política democrática consolidada, a exemplo do que se dá com a propriedade consolidada. De modo a se garantir segurança às pessoas, esses direitos de imunidade estão para os direitos de propriedade na mesma relação com que direitos de propriedade estariam para direitos de um sistema de castas381.

Quando se refere às “salvaguardas individuais correntes” e à “defesa de ordens de uma

política democrática consolidada”, Mangabeira Unger trata justamente da utilização, no seu

modo de ver cínica, da retórica do direito à liberdade como forma de dissimular a real

intenção de perpetuar o domínio social e o status quo, alinhado com o espírito da dominação

de classes de Karl Marx.

Além dos direitos de imunidade, Roberto Mangabeira Unger prescreve ainda os

direitos de desestabilização, direitos de mercado e direitos de solidariedade como alternativa

não somente ao conjunto de direitos fundamentais, mas ao sistema jurídico ocidental como se

conhece atualmente, dando corpo ao que chama teoria ou doutrina desviacionista382

- para

então criar o que chamou de Estado super liberal383. Precisamente pela sua abrangência o

aprofundamento da análise da obra de Mangabeira Unger foge ao escopo deste trabalho.

381 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O "Critical Legal Studies Movement" de Roberto Mangabeira Unger: um clássico da filosofia jurídica e política. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1445, 16 jun. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10008>. Acesso em: 20 out. 2008. 382 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O "Critical Legal Studies Movement" de Roberto Mangabeira Unger: um clássico da filosofia jurídica e política. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1445, 16 jun. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10008>. Acesso em: 20 out. 2008. 383 WOODWARD, Calvin. Toward a ‘super liberal state’. The New York Times. Nova Iorque, Seção 7, p. 27, 23 nov. 1986. Disponível em: <http://www.robertounger.com/cls.htm>. Acesso em: 20 out. 2008.

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2.5.4 Direitos fundamentais como guardiões da delinqüência

Para alguns, em discurso recorrente nos meios de comunicação atuais, a defesa dos

direitos humanos se confunde com a “proteção de bandidos”384; segundo José Adércio Leite

Sampaio, a argumentação reproduz “nossa formação socioeconômica, identificando um

componente classista na perspectiva de naturalização da violência contra os criminosos ou

‘suspeitos por estereótipo’”385.

Nancy Garcia, citada por José Adércio Sampaio Leite, afirma que o discurso procura

impressionar a opinião pública que, pressionada pela criminalidade e neste estado de

desespero, se revela tolerante quanto à violação dos direitos386.

384 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 38. 385 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 38. 386 SAMPAIO. José Adércio Leite. Direitos humanos, p. 38.

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3 LIBERDADE

No capítulo anterior, no qual se tratou dos direitos humanos e fundamentais em

sentido genérico – ou de forma global – pretendeu-se possibilitar ao leitor a compreensão

tanto do comportamento no tempo quanto da concepção atual desse conjunto de direitos para

se fornecer uma visão ampla; busca-se agora, com elementos históricos mais apurados e

maior rigor técnico, uma análise mais detida de um deles em específico, mais importante para

a consecução dos objetivos deste trabalho: a liberdade.

3.1 DESLOCAMENTOS HISTÓRICOS

Tércio Sampaio Ferraz Júnior reputa a liberdade como um dos termos e temas mais

decisivos – e controvertidos – da experiência jurídica. Diz ainda que alguns entendem que a

liberdade precede o direito e mesmo sua possibilidade; para outros, a liberdade decorre do

direito e só pode ser concebida a partir dele387.

Fábio Konder Comparato introduz o problema da definição da liberdade citando

Montesquieu, que assinalou que “não há palavra que tenha recebido mais significações

diferentes, e que tenha marcado os espíritos de tantas maneiras, quanto essa”388, e Hegel, que

afirmou que “não se sabe de nenhuma idéia que seja tão indeterminada, ambígua, suscetível

de tão grandes equívocos e, por isso, efetivamente sujeita a eles, quanto a idéia de

liberdade”389.

Para Tércio Sampaio Ferraz Junior, os gregos entendiam a liberdade como uma

articulação da necessidade, do destino e do acaso390; assinala também que o termo tem, entre

387 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: estudos sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 75. 388 COMPARATO, Fábio Konder. Ética, p. 538. 389 COMPARATO, Fábio Konder. Ética, p. 538-539. 390 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 76.

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os gregos, conotação mais política e jurídica – em detrimento do aspecto ético e em contraste

às “noções subjetivas de ato voluntário em oposição ao involuntário”391.

Em Sócrates é que Tércio Sampaio Ferraz Junior identifica uma conotação ética na

concepção da liberdade, atribuindo-se-lhe a característica subjetiva: “faça o que é melhor

(normativo), o que supõe o conhecimento do melhor no sentido de uma preferência [...],

utilizada pela primeira vez como decisão ou antes como deliberação ética392.

Já para Platão, segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior, o sentido político é dominante:

“livre é o homem cuja ação se dirige ao Bem (não a um bem), pois o Bem conduz à sua

autarquia e, assim, à liberdade”393. Identifica-se ainda importante conseqüência:

a liberdade não é um poder de escolha, mas uma necessidade interna de querer o próprio ser como sua mais alta possibilidade, donde querer algo impossível é ser não-livre; não se pode querer o que não se pode, querer pressupõe poder, liberdade e necessidade convergem394.

Tércio Sampaio Ferraz Junior identifica em Aristóteles uma tomada de rumo diferente

com a oposição entre o homem e demais seres – estes estariam submetidos à necessidade, mas

aquele agiria pautado pelo acaso395. O acaso era por Aristóteles entendido como uma

combinação da pura espontaneidade humana “e a preferência deliberada, em que a vontade

está dirigida a um fim intuído como um bem”396.

Por sua vez os romanos, segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior, assim como os

gregos, não lograram elaborar “conceito de direito que tivesse por essência a liberdade”397,

pois que o termo jus abarcava tanto os elementos objetivos como normas e instituições quanto

os elementos subjetivos como capacidade e poder398.

391 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 77. 392 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 77. 393 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 79. 394 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 80. 395 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 81. 396 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 81. 397 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 84. 398 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 85-86.

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É o advento do cristianismo que, no dizer de Tércio Sampaio Ferraz Junior, “irá trazer

importantes reflexões para o tema da liberdade”399, sucedendo o estoicismo na identificação

da liberdade interna como núcleo de uma antropologia filosófica e descaracterizando a

limitação da liberdade como conceito eminentemente político400.

O exercício ou não do ato voluntário é central para os filósofos medievais da liberdade

que, segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior, “ao assumirem a distinção entre querer e poder,

introduziram na noção de liberdade um elemento inteiramente novo”401. Agora, em oposição

aos gregos, “é possível querer algo que não se pode e vice-versa”402.

Separando o ato voluntário da vontade e considerada esta em si mesma, passa a ser

vista internamente como opção, “donde querer significará exercer o ato (voluntário) ou não

exercê-lo. E essa possibilidade, que lhe é inerente, será o cerne da liberdade”403. Para Tércio

Sampaio Ferraz Junior, foi Agostinho “um dos primeiros a sublinhar essa noção de que querer

é ser livre”404, antecipando-se, para Alf Ross, em muitos séculos à escolástica405.

Com efeito, Santo Agostinho já reconhecia no homem sua qualidade de superioridade

em função da razão, podendo se vislumbrar embrião do racionalismo:

Eis o que eu quero te explicar agora: o que põe o homem acima dos animais, seja qual for o nome com que designemos tal faculdade, seja mente ou espírito, ou com mais propriedade um e outro indistintamente, porque encontramos esses dois vocábulos também nos Livros Sagrados – quando pois esse elemento superior domina no homem e comanda a todos os outros elementos que o constituem, ele encontra-se perfeitamente ordenado. Com efeito, vemos que temos muitos elementos comuns, não somente com os animais, mas também com as árvores e plantas, tais como: ingerir alimento, crescer, gerar, fortificar-se. Vemos que todas essas propriedades são concedidas igualmente às árvores, as quais pertencem a um grau bem ínfimo, entre os seres vivos. Constatamos ainda, e devemos reconhecer, que os animais podem ver, entender e sentir os objetos corporais, por meio do olfato, do gosto, do ato e, freqüentemente, com mais penetração do que nós. Além do que há neles força, vigor, solidez dos membros, rapidez e grande agilidade de movimentos corporais. Em tudo isso, nós somos superiores a

399 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 87. 400 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 87. 401 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 87. 402 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 87. 403 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 88. 404 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 8. 405 ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 283.

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alguns deles, iguais a outros e, a vários dentre eles, inferiores. Sem dúvida, possuímos natureza genérica comum com os animais. Entretanto, a busca dos prazeres do corpo e a fuga dos dissabores constituem atividade da vida animal. Há ainda outras propriedades que não parecem convir aos animais, sem que todavia sejam no homem as mais perfeitas, como, por exemplo, divertir-se e rir. Por certo, são expressões características do homem, mas as menos importantes, no julgamento de quem julga a natureza humana. Vêm a seguir, o amor aos elogios e à glória e o desejo de dominar, tendências essas que também não pertencem aos animais. Contudo, não devemos nos julgar melhores do que eles, por possuirmos essas paixões. Pois tais inclinações, ao se revoltarem contra a razão, nos tornam infortunados. Ora, ninguém jamais se pretendeu superior a outros, por sua miséria. Por conseguinte, só quando a razão humana domina a todos os movimentos da alma, o homem deve se dizer perfeitamente ordenado. Porque não se pode falar de ordem justa, sequer simplesmente de ordem, onde as coisas melhores estão subordinadas às menos boas. Acaso não te parece ser assim?406.

Assim, para Agostinho, citado por Tércio Sampaio Ferraz Junior, Deus criou o homem

“como ser livre ao dotá-lo de livre arbítrio”407. É justamente a graça divina do livre arbítrio

que permite que o homem peque – já que Deus, onipotente e onisciente, tudo podendo e tudo

sabendo, se exime de predestinar os destinos humanos permitindo-lhes o exercício da vontade

livre408. Portanto, é através do próprio livre arbítrio, faculdade outorgada por Deus, que o

homem se potencializa e “conquista sua salvação”409.

Segundo Comparato, os grandes reformadores negaram peremptoriamente a liberdade

humana: para Lutero, antes de livre arbítrio, dever-se-ia “falar de um servo arbítrio, pois a

alma humana é sempre escrava: ou de Deus, pela graça, ou de Satã, pelo Pecado”410; para

Calvino, que desenvolveu a tese de Lutero, “o pecado original tornou o homem um escravo

voluntário, cuja salvação eterna não depende dele, mas inteiramente da graça divina, no

mistério da predestinação”411.

Tércio Sampaio Ferraz Junior sintetiza a importância da noção de livre arbítrio no

sentido de preparador do conceito de liberdade como ausência de necessidade e como

406 AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995, p. 46-47. 407 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 89. 408 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 89. 409 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 89. 410 COMPARATO, Fábio Konder. Ética, p. 539. 411 COMPARATO, Fábio Konder. Ética, p. 539.

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ausência de coação – apontando porém que esta noção demorou a “firmar-se na elaboração

jurídica”412.

Para Tércio Sampaio Ferraz Júnior, as discussões acerca da liberdade e livre arbítrio

através da Idade Média e dos movimentos da Reforma sugeriam problemas de três ordens:

primeiramente a noção de livre arbítrio como “fundamento antropológico essencial”413, graça

divina fundante do homem livre414; em segundo lugar a própria liberdade, tomada no sentido

de faculdade, um poder querer, “passara a significar uma espécie de relacionamento inato do

homem consigo mesmo”415, distinguindo-o dos seres de comportamento involuntário416; em

terceiro e último lugar a liberdade como relacionamento externo do ser humano,

possibilitando-o ou não de agir conforme seus próprios desejos417.

Essas três ordens de problemas propiciaram o fortalecimento de um aspecto

importante da liberdade: “a noção de liberdade de consciência”418 – conceito este, de

consciência, que, segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior não chegara a ser enfrentado na

antiguidade419, mas que com a convergência da consciência no seu sentidos ético e como

consciência de si no centro da subjetividade foi marcante para a teologia da Reforma420.

Essa consideração da consciência como centro da subjetividade, “com a secularização

e dessacralização do sujeito”421, leva à afirmação da autonomia do sujeito dotado de

consciência livre, por si e para si, desvinculando a noção de livre arbítrio da graça divina422.

Anote-se ainda que esta nova concepção da livre consciência fomentou também o

pensamento racional, centrado nesta qualidade do ser humano de consciente – ou, para

Descartes, cogito – e que afirmava a “precedência do indivíduo concreto sobre a essência

412 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 91. 413 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 94. 414 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 94. 415 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 94. 416 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 94. 417 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 94-95. 418 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 95. 419 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 95. 420 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 96. 421 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 96. 422 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 96.

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abstrata e todas as suas manifestações”423. É a nova antropologia, dominada pelo “eu que dá

as normas a si mesmo”424 e calcada na idéia de que qualquer sistema de valores será uma

construção subjetiva com cerne na liberdade.

Para Locke e Rousseau, segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior, “a liberdade é

condição natural do ser humano”425, mas que, apesar de nascido livre, tem sua liberdade

ameaçada – para o primeiro pela introdução do dinheiro e conseqüente luta pela propriedade,

(segundo Bobbio426 a propriedade é ponto característico da doutrina de Locke); para o

segundo, “pela insuficiência dos indivíduos solitários em administrar os equívocos relacionais

entre suas forças naturais e suas necessidades”427.

É que, para Rousseau, “enquanto muitos homens reunidos se consideram como um só

corpo, têm uma só vontade que se refere à conservação comum e ao bem-estar geral”428.

Assim, quando decorrentes da vontade geral, todos os fundamentos do Estado “são vigorosos

e simples, suas máximas são claras e luminosas, não existem interesses confusos e

contraditórios, o bem comum mostra-se por toda parte com evidência e não exige senão bom

senso para ser percebido”429.

Tércio Sampaio Ferraz Junior identifica que para os dois, Locke e Rousseau, a solução

àquelas ameaças é a celebração do contrato social430:

para Locke, o contrato social garante a liberdade para a sociedade natural (que ele descreve num sentido muito próximo de uma sociedade burguesa, já desenvolvida). Para Rousseau, ele garante a liberdade para o indivíduo que passa a viver em sociedade politicamente organizada. Para Locke, a sociedade natural torna-se civil society. Para Rousseau, o indivíduo se torna cidadão. Nessa nova condição, para ambos o indivíduo tem sua liberdade garantida431.

423 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 96. 424 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 96. 425 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 98. 426 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Kant. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992, p. 38. 427 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 98. 428 ROUSSEAU, Jean-Jaques. O contato social, p. 125. 429 ROUSSEAU, Jean-Jaques. O contato social, p. 125. 430 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 98. 431 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 98-99.

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Hobbes, citado por Comparato, aderiu à visão religiosa que repelia o livre arbítrio:

Embora os homens possam fazer muitas coisas, que Deus não ordena nem pode, por conseguinte, ser tido como seu autor, não podem eles, porém, ter paixão nem desejo de coisa alguma, se de tal desejo Deus não for a causa [...]. E se essa vontade (de Deus) não representasse uma necessidade para a vontade humana, da qual toda ela dependesse, a liberdade dos homens seria uma contradição e um obstáculo à onipotência e liberdade de Deus432.

Assim, para Hobbes, ainda citado por Comparato, a liberdade estaria identificada com

o poder de agir, em vez da possibilidade de querer. Seria “a ausência de impedimentos

externos à ação humana, em todos os campos”433. Mas Hobbes, segundo Tércio Sampaio

Ferraz Junior, pondera que essa liberdade atua como fonte de desagregação social, impondo a

necessidade do Estado-Leviatã434 e surgindo o paradoxo da liberdade.

Norberto Bobbio cita Thomas Paine para esclarecer tal paradoxo:

A sociedade é produzida por nossas carências e o governo por nossa perversidade; a primeira promove a nossa felicidade positivamente mantendo juntos os nossos afetos, o segundo negativamente mantendo sob freio os nossos vícios. Uma encoraja as relações, o outro cria as distinções. A primeira protege, o segundo pune. A sociedade é sob qualquer condição uma bênção; o governo, inclusive na sua melhor forma, nada mais é do que um mal necessário, e na sua pior forma é insuportável435.

Assim, o paradoxo da liberdade consiste no fato de que, para assegurar a liberdade

individual em uma sociedade, é necessário a criação de uma entidade (o Estado) com poder

precisamente para limitar essa liberdade – e só assim, com a liberdade limitada, é que poder-

se-á distribuí-la em parcelas iguais a cada um dos indivíduos.

Para Hobbes liberdade significa “a ausência de oposição (entendendo por oposição os

impedimentos externos do movimento), e não se aplica menos às criaturas irracionais e

inanimadas do que às racionais”436. Aplicando o conceito formulado aos seres humanos segue

432 COMPARATO, Fábio Konder. Ética, p. 539. 433 COMPARATO, Fábio Konder. Ética, p. 542. 434 Leviatã é um monstro bíblico, em Isaías (27:1) identificado como serpente, em Jó (41) e Salmos (74:13-14) descrito apenas como monstro marinho. A doutrina cristã entende o Leviatã como um demônio, ou um monstro natural associado com o Diabo. John Milton o utilizou em sua obra “Paraíso Perdido” para descrever o tamanho e a força de Satã. 435 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 21. 436 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 179.

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dizendo que “um homem livre é aquele que, naquelas coisas que graças à sua força e engenho

é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer”437.

Para Locke, com a celebração do contrato social, os homens podem desenvolver suas

liberdades naturais sem alterações em sua essência438; por outro lado, para Rousseau, através

do mesmo contrato social os homens renunciam à sua liberdade natural em favor da

comunidade, construindo então a vontade desta na qualidade de cidadãos439.

Montesquieu, tratando da liberdade do homem no seio social, citado por José Afonso

da Silva, já dizia que “a liberdade política não consiste em fazer o que se quer. Num Estado,

isto é, numa sociedade onde há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que

se deve querer, e a não ser constrangido a fazer o que não se deve querer”440.

Contrapondo a desagregação social vista por Hobbes na liberdade como não-

impedimento, Locke e Rousseau, segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior, percebem que a

nova ordem política exigirá, para a condição de liberdade, tanto um não-impedimento quanto

a participação política441.

Tércio Sampaio Ferraz Junior considera “que o contrato moderno passa a ser um

mecanismo de regulação jurídica das relações de troca, que institucionaliza a liberdade. Ele é,

assim, uma instituição que assume algumas funções básicas na sociedade”442. Conclui dizendo

que “a mesma liberdade que engaja limita a liberdade. Por isso, na base do contrato moderno,

a lei que garante a autonomia garante também a liberdade como não-impedimento, ao

equalizar, para todos, a mesma liberdade”443.

É o caráter relacional da liberdade: “se o limite da liberdade de um estava no ponto em

que se passava a produzir um dano à liberdade do outro, todo exercício da liberdade seria

sempre uma restrição e, simultaneamente, uma resistência”444.

437 HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 179. 438 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 99. 439 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 99-100. 440 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 233. 441 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 99. 442 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 103. 443 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 104. 444 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 104.

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Kant, citado por Bobbio, reconhece este aspecto de dualidade da liberdade para, em

função desta, definir o direito: “o direito é o conjunto das condições, por meio das quais o

arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de um outro segundo um lei universal da

liberdade”445 – definição da qual deriva seu imperativo categórico universal, já brevemente

tratado neste trabalho.

Vai mais longe, ainda segundo Bobbio, estabelecendo como condição da qualidade de

justa da conduta de alguém a preservação da liberdade de outrem: “uma ação é justa, quando,

por meio dela, ou segundo a sua máxima, a liberdade do arbítrio de um pode continuar com a

liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal”446.

Bobbio assinala que “todo o pensamento jurídico de Kant visa a teorizar a justiça

como liberdade”447, atribuindo à concepção do direito de Kant um dos fundamentos teóricos

do Estado liberal – assim entendido aquele que tem como fim precisamente a garantia da

liberdade individual, situação na qual o fim do Estado “coincide com os fins múltiplos dos

indivíduos”448.

No dizer de Bobbio449 esta concepção liberal do Estado choca-se frontalmente com as

mais variadas formas de paternalismo, apontando-o como alvo de Kant, citando-o, para quem

Um governo fundado sobre o princípio da benevolência para com o povo, como o governo de um pai sobre os filhos, isto é, um governo paternalista (imperium paternale), no qual os súditos, tal como filhos menores incapazes de distinguir o útil do prejudicial, estão obrigados a se comportar apenas passivamente, para esperar que o chefe do Estado julgue de que modo devem eles ser felizes e para aguardar apenas da sua bondade que ele o queira, um governo assim é o pior despotismo que se possa imaginar450.

Segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior, Savigny também já apontara a legitimidade

desse duplo aspecto de restrição e resistência na afirmação da vontade individual como livre,

daí seguindo

445 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Kant, p. 70. 446 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Kant, p. 71-72. 447 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Kant, p. 73. 448 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Kant, p. 132-133. 449 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia, p. 22. 450 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia, p. 22-23.

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a concepção do direito subjetivo como o espaço de ação livre (não impedimento) do indivíduo, correlacionado com o reconhecimento intersubjetivo dos demais membros da comunidade. Tratava-se de ‘um poder à disposição de cada pessoa, um espaço em que sua vontade domina – e, com a nossa concordância, domina’ (autonomia)451.

Assim, após a colocação pela era moderna da liberdade como condição natural do

homem, a partir do século XIX, a noção de liberdade foi delineada numa dupla relação entre o

poder restringir de um indivíduo e do poder resistir de outro452.

Nesse sentido é que José Afonso da Silva entende como apropriada a definição de

Rivero para liberdade, citando-o: “a liberdade é um poder de autodeterminação, em virtude do

qual o homem escolhe por si mesmo seu comportamento pessoal”453, para em seguida propor

seu conceito para o termo: “liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos

meios necessários à realização da felicidade pessoal”454.

3.2 LIBERDADE POSITIVA E LIBERDADE NEGATIVA

Isaiah Berlin455, filósofo nascido em 1909 na hoje Letônia, então parte do Império

Russo, na sua aula inaugural na Universidade de Oxford, em outubro de 1958, é quem

primeiramente propôs a diferenciação entre a liberdade negativa e a liberdade positiva, cujas

bases de diferenciação já foram lançadas na seção anterior e cuja construção se analisa agora

com mais detalhe.

Segundo Berlin, “o sentido ‘positivo’ da palavra ‘liberdade’ tem origem no desejo do

indivíduo de ser seu próprio amo e senhor. Quero que minha vida e minhas decisões

dependam de mim mesmo e não de forças externas de qualquer tipo”456.

A liberdade positiva (conhecida ainda como liberdade subjetiva, interna, psicológica,

moral) está assim situada no plano interior do homem – e precisamente por isso é igualmente

conhecida também como liberdade do querer457.

451 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 105. 452 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 106. 453 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 233. 454 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 233. 455 BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora da UnB, 1981, p. 171. 456 BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade, p. 142.

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Bobbio entende o aspecto positivo da liberdade como a “liberdade de (ou para) (do

inglês liberty to)”458; é, enfim, o poder autônomo de escolha ou de decisão do qual dispõe

cada ser humano – em outras palavras, o livre arbítrio, do qual já se tratou na seção anterior e

à qual remete-se o leitor.

Por outro lado, Berlin aponta que “alguém é livre na medida em que nenhum outro

homem ou nenhum grupo de homens interfere nas atividades desse alguém. A liberdade

política nesse sentido é simplesmente a área em que um homem pode agir sem sofrer a

obstrução de outros”459. É o aspecto negativo da liberdade: a ausência de impedimento, tal

qual considerada por Locke e Rousseau.

Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, as liberdades negativas, núcleo dos direitos

fundamentais, são “poderes de agir reconhecidos e protegidos pela ordem jurídica a todos os

seres humanos”460, sendo titulares destes poderes “todo e qualquer um dos seres humanos”461

e exercíveis contra “todos os indivíduos que não o seu titular, a que se acrescentam todos os

entes públicos ou privados, inclusive e especialmente o Estado”462.

As liberdades negativas são conhecidas ainda como liberdades públicas, externas,

objetivas ou de fazer; Bobbio aponta que liberdade negativa “costuma também ser chamada

de liberdade como ausência de impedimento ou de constrangimento”463, sendo ainda chamada

de “liberdade em face de (do inglês liberty from)”464.

Para mais facilmente se distinguir as duas espécies de liberdade, Bobbio aponta a

referência ao sujeito dos quais elas são o predicado:

a liberdade negativa é uma qualificação da ação; a liberdade positiva é uma qualificação da vontade. Quando digo que sou livre no primeiro sentido, quero dizer que uma determinada ação minha não é obstaculizada e, portanto, posso realizá-la; quando digo que sou livre no segundo sentido, quero dizer que meu querer é livre, ou seja, não é determinado pelo querer

457 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 231. 458 BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 4. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 59. 459 BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade, p. 136. 460 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 28. 461 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 29. 462 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 29-30. 463 BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade, p. 49. 464 BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade, p. 59.

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de outro, ou, de modo mais geral, por forças estranhas ao meu próprio querer465.

Bobbio identifica na oposição das noções de liberdade externa e liberdade interna o

principal critério que Kant apontou para a distinção entre moral e direito, puramente formal:

trata-se de direito quando se confronta a conduta do indivíduo com as liberdades externas, e

de moral quando se avalia determinada ação do indivíduo em função de sua liberdade interna

– podendo-se falar mesmo em uma liberdade jurídica, distinta da liberdade moral466.

Para Kant, segundo Bobbio, a liberdade moral pode ser entendida como “a faculdade

de adequação às leis que a nossa razão dá a nós mesmos”467; a liberdade jurídica, por outro

lado, seria a “faculdade de agir no mundo externo, não sendo impedidos pela liberdade igual

dos demais seres humanos, livres como eu, interna e externamente”468.

Nesse mesmo sentido, da liberdade conectada com limitações legais e constitucionais,

o filósofo estadunidense John Rawls a define como “certa estrutura de instituições, um certo

sistema de normas públicas que definem direitos e deveres”469.

Continua dizendo que “as pessoas têm liberdade para fazer alguma coisa quando estão

livres de certas restrições que levam a fazê-la ou a não fazê-la, e quando sua ação ou ausência

de ação está protegida contra a interferência de outras pessoas”470.

A liberdade negativa, para José Afonso da Silva a “expressão externa do querer

individual”471, é a que eventualmente importará no afastamento de obstáculos impostos por

terceiros (entre os quais o Estado) como limitador desse comportamento; naturalmente esse

comportamento, expressão do livre arbítrio, não poderá ser ilimitado – o que, segundo Mossé-

Batisde, citado por José Afonso da Silva, levaria ao “esmagamento dos fracos pelos fortes e

na ausência de toda liberdade dos primeiros”472.

465 BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade, p. 52-53. 466 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Kant, p. 58. 467 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Kant, p. 58. 468 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Kant, p. 58. 469 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 219. 470 RAWLS, John. Uma teoria da justiça, p. 219. 471 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 231. 472 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 232.

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O objeto da liberdade negativa, para Manoel Filho, “é uma conduta. Agir ou não agir,

fazer ou não fazer. Usar ou não usar. Ir, vir ou ficar”473. Percebe-se claramente que o objeto

da liberdade pública é o comportamento (momento posterior ao livre arbítrio, conforme

delineado neste trabalho) individual frente aos outros indivíduos.

Roberto Armando Ramos de Aguiar, entende que

a liberdade, encarada como escolha sem constrangimento, é uma conceituação que até deve ser objeto de reflexão enquanto meta e norte de uma das facetas do ser humano. Mas, na atual ordem de relações entre os seres humanos, é difícil falar-se em liberdade de escolha. Vivemos sob um arbítrio maior que nos tolhe e controla, impondo condutas, padrões, pensamentos e linguagens, o que significa dizer que não escolhemos, somos escolhidos, pois as próprias opções que nos dão se põem entre o pior e o péssimo, porque são escolhas já anteriormente decididas pelos que oprimem474.

A liberdade tem sede no caput do artigo 5° da Constituição e encontra-se também

implicitamente consagrado no inciso II do mesmo artigo, no qual aparece sobreposto com o

princípio da legalidade, tal qual duas faces da mesma moeda. Rogério Gesta Leal e Francisco

Luiz da Rocha Simão Pires, citando Konrad Hesse, Peter Häberle e Canotilho, entendem que

a teoria constitucional contemporânea tem os princípios por “exigências de otimização abertas

às várias concordâncias, ponderações, compromissos e conflitos, como os princípios do

Estado democrático de direito, da igualdade, da liberdade, etc.”475

Para Dalmo de Abreu Dallari,

O direito de ser livre deve existir, portanto, no plano da consciência. Ninguém é livre se não pode fazer sua própria escolha em matéria de religião, de política ou sobre aquilo em que vai ou não acreditar, ou se é forçado a esconder seus sentimentos ou a gostar do que os outros gostam, contra sua vontade. Assim sendo, a liberdade de pensamento, de opinião e de sentimento faz parte do direito à liberdade, que deve ser assegurado a todos os seres humanos. Mas o direito de ser livre não deve ser limitado apenas ao pensamento e ao sentimento das pessoas. É preciso que também em assuntos de ordem prática, naquilo que as pessoas fazem em sua vida diária, esse

473 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 30. 474 AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. O que é justiça: uma abordagem dialética. 5. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1999, p. 106-107. 475 LEAL, Rogério Gesta; PIRES, Francisco Luiz da Rocha Simões. Dimensões eficaciais do direito ao transporte gratuito do idoso no Brasil: estudo de um caso. In: GORCZEVSKI, Clóvis; REIS, Jorge Renato dos (Org.). A concretização dos direitos fundamentais: constitucionalismo contemporâneo. Porto Alegre: Norton Editor, 2007, p. 148.

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direito seja respeitado. Para que uma pessoa tenha o direito de ser livre é necessário que possa escolher uma profissão de acordo com seu gosto e sua capacidade, que possa constituir uma família e viver com ela, que possa, enfim, tomar suas próprias decisões sobre todos os assuntos de seu interesse476.

Georg Simmel, analisando a liberdade a partir dos aspectos sociológicos, identifica

dois elementos que apresentam importância para a própria estrutura da sociedade, além

daquela importância no plano individual, e que configuram o que chamou de díade:

1) para o homem social, a liberdade não é um estado que exista sempre, que possa tomar por assegurado, nem é posse de uma substância por assim dizer material, que se tenha adquirido de uma vez por todas [..] Liberdade não é uma existência solipsista, mas ação sociológica. Não é uma condição limitada ao indivíduo isolado, mas uma relação; uma relação, ainda que do ponto de vista de um dos sujeitos. 2) liberdade é algo de bem diverso, tanto da simples rejeição de relações como da imunidade da esfera individual em face das esferas adjacentes – assim sendo, não apenas de um ponto de vista funcional, mas também de conteúdo. O que nos sugere o acima dito é a verificação do fato de que o homem não somente deseja ser livre, mas deseja usar sua liberdade para alguma coisa477.

John Rawls entende que a liberdade pode ser limitada somente em nome da própria

liberdade, caso em que resultaria uma liberdade menor, mas igual478. É o caso em que a

liberdade de um indivíduo sofre restrição em função da preservação da liberdade de outro

indivíduo, restando aos dois uma parcela equivalente, não absoluta, de liberdade – por Rawls

chamada de princípio de liberdade igual.

A prioridade da liberdade sobre os outros princípios é, em definitivo, um dos três

pilares da teoria de justiça de John Rawls, assentada esta ainda sobre os princípios da

diferença (que trata da distribuição igual da riqueza479) e da igualdade de oportunidades (que

liga as desigualdades sociais a postos e posições acessíveis a todos480).

476 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania, p. 29. 477 SIMMEL, Georg. O indivíduo e a díade. In: CARDOSO, Fernando Henrique; IANNI, Octávio (Org.). Homem e sociedade: leituras básicas de sociologia geral. 11. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977, p. 131-132. 478 RAWLS, John. Uma teoria da justiça, p. 267-271. 479 RAWLS, John. Uma teoria da justiça, p. 79-89. 480 RAWLS, John. Uma teoria da justiça, p. 89-95.

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Para Comparato, “é praticamente impossível separar a liberdade da segurança,

entendida em seu sentido pleno, ou seja, não apenas a segurança física, mas também a

econômica e a social”481. Cita Montesquieu, que assinalou que “a liberdade política consiste

na segurança, ou pelo menos na opinião que se tem da segurança”482, para concluir que o

mesmo pode ser alargado às outras espécies de liberdade:

tudo isso demonstra que liberdade, igualdade e segurança encontram-se, pela sua própria essência, numa relação de implicação recíproca, e só podem existir e prosperar no quadro de um altruísmo solidário [...] por força do qual todos se respeitam e se ajudam, como partes integrantes de um mesmo organismo vivo, segundo os ditames da verdade, da justiça e do amor483.

Cotejando os aspectos positivo e negativo da liberdade, Isaiah Berlin propõe a

liberdade positiva numa concepção mais ampla, que envolva não somente a possibilidade de

um indivíduo agir de determinada maneira, mas no efetivo oferecimento pelo Estado àquele

indivíduo da oportunidade para fazê-lo484, ponderando que

propiciar direitos o salvaguardas políticas contra a intervenção por parte do Estado no que diz respeito a homens que mal têm o que vestir, que são analfabetos, subnutridos e doentes, é o mesmo que caçoar de sua condição: esses homens precisam de instrução ou de cuidados médicos antes de poderem entender ou utilizar uma liberdade mais ampla. O que é a liberdade para aqueles que não podem dela fazer uso? Sem as condições adequadas para o uso da liberdade, qual é o valor da liberdade485?

Mas nesse sentido Berlin alerta ainda para o fato de que a liberdade tomada apenas

pelo lado positivo, como uma ação do Estado para propiciar aos indivíduos oportunidades,

pode ser utilizada como discurso para encobrir abusos da atividade dos governantes e levar ao

tolhimento das liberdades negativas486 - no exercício do paternalismo tão combatido por Kant,

e por Roberto Aguiar desenvolvido sob a óptica da dominação.

Assim é que não se pode tratar os dois aspectos da liberdade como se mutuamente

exclusivos fossem, porque não o são: trata-se apenas de ângulos distintos de um mesmo

481 COMPARATO, Fábio Konder. Ética, p. 537. 482 COMPARATO, Fábio Konder. Ética, p. 537. 483 COMPARATO, Fábio Konder. Ética, p. 537. 484 BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade, p. 167-138. 485 BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade, p. 138. 486 BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade, p. 163-170.

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fenômeno – a liberdade individual, que pode então ser enunciada como a soma da capacidade

do indivíduo de se auto determinar, assim entendida sua autonomia para decidir de per se seus

valores e suas convicções, e da possibilidade de agir conforme sua determinação sem

oposição indevida; por oposição indevida se entende toda aquela que não se destine a

preservar a liberdade de outrem.

3.3 LIBERDADE COMO DIREITO SUBJETIVO PÚBLICO

Com o fim de atribuir ao indivíduo a possibilidade de ativar mecanismos de proteção à

sua liberdade esta haveria de ser consubstancializada num direito subjetivo487. A elaboração

dogmática de Jellinek acerca do conceito de direito subjetivo público e em paralelo ao

conceito de direito subjetivo real, citado por Tércio Sampaio Ferraz Junior, revela as

dificuldades decorrentes do conceito moderno de liberdade:

Do mesmo modo que o dever negativo das pessoas de não perturbar o titular de um direito, com que, eventualmente, entrem em contato, corresponde ao direito real, assim também corresponde ao status negativus o análogo dever de todos os órgãos administrativos que entrem em relação com o indivíduo488.

Jellinek, segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior, entende por status a qualidade do

indivíduo de cidadão, na qualidade de membro do Estado reconhecido por este e dotado de

direitos e deveres em face dele e submetido à sua soberania489.

A liberdade tem que ser tomada, além de seu conteúdo axiológico, como direito

subjetivo dos indivíduos para adquirir sua exigibilidade e conseqüente efetividade; como

aponta Rogério Gesta Leal, por conta do processo de constitucionalização o que não estiver

positivado, ou reconhecido pelo Estado como direito fundamental, não será matéria passível

de proteção ou implementação por este mesmo Estado490

E assim, por serem expressão do status negativus, dos direitos subjetivos públicos

decorrem que sua estrutura não contém apenas um dever de omissão, mas um conteúdo

487 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 106-107. 488 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 109. 489 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 109. 490 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil, p. 51.

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positivo que consiste no bem ou interesse, definidos “conforme as avaliações subjetivas das

finalidades humanas”491; esse espaço de omissão da autoridade pública e dos outros

indivíduos é a “esfera de liberdade do indivíduo”492.

Esse espaço de omissão que pode ser exigido do Estado é o que a doutrina entende por

eficácia vertical dos direitos fundamentais; por outro lado, a exigência desse direito subjetivo

público em face dos particulares (outros indivíduos), é a medida da eficácia horizontal dos

direitos fundamentais493.

3.4 LIBERDADE COMO CÁLCULO DE RISCO

Após entender o contrato social moderno como um distribuidor de riscos, por conta da

desvinculação crescente dos indivíduos entre si baseada no compromisso moral e livre para

sua substituição por uma atitude engajada de admitir comportamentos baseados na análise de

seu custo/benefício494, Tércio Sampaio Ferraz Junior elabora a liberdade como

uma espécie de atividade calculista enquanto uma capacidade suposta e pressuposta de fazer apostas com riscos mínimos. Não se trata de uma vontade de escolher que se guia pela razão, mas um conjunto de opções de cálculo, que pode ser implementado (e até substituído por um computador). Como essa liberdade – calculista – não está distribuída, igualmente, entre todos os sujeitos, sua uniformização passa a ser legalmente garantida, o que explica a proteção aos hipossuficientes495.

Trata-se na verdade de abordagem não propriamente nova, com deslocamento do

conteúdo racional da liberdade para um segundo momento: a análise do referido

custo/benefício por parte do indivíduo e sua ação que, confrontado com as opções que se lhe

permite a esfera de liberdade dos outros indivíduos, acaba por reintroduzir no conceito de

liberdade como cálculo de risco o caráter metafísico e valorativo que Tércio Sampaio Ferraz

Junior julgou perdido, com conseqüente esvaziamento substancial da liberdade496.

491 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 109. 492 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 110. 493 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 603. 494 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 124. 495 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 124-125. 496 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de filosofia do direito, p. 119.

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3.5 DIMENSÕES DA LIBERDADE

Para Comparato, a idéia central de Locke acerca da liberdade religiosa, inovadora à

época, é de que esta liberdade é de ordem privada: “a tolerância invocada por Locke não é

uma simples virtude moral, mas, antes, um dever jurídico, que incumbe, tanto aos governantes

quanto aos particulares, uns perante os outros, dever esse correspondente a um direito natural

de todos: o de professar livremente suas convicções religiosas”497.

José Afonso da Silva identifica que as liberdades, no plural entendidas como formas

da liberdade, podem ser agrupadas em núcleos, e cita Pimenta Bueno:

A liberdade é sempre uma e a mesma, mas como ela pode ser considerada em diferentes relações, por isso costuma-se dividi-la ou classificá-la como liberdade do pensamento e sua comunicação, de consciência ou religião, de locomoção, viagem ou imigração, de trabalho ou indústria, de contratar e de associação498.

Como espécies do gênero liberdade propõe as seguintes: da pessoa física (como

locomoção, circulação); de pensamento (incluindo a opinião, religião e conhecimento, entre

outras); de expressão coletiva (como reunião e associação); de ação profissional (escolha e

exercício de trabalho ou ofício); e de conteúdo econômico e social (livre iniciativa, livre

comércio, autonomia contratual)499.

3.5.1 Liberdade da pessoa física

Primeira forma de liberdade que o homem teve de conquistar, opõe-se em sua

concepção clássica à escravidão e à prisão500. José Afonso da Silva aponta como exemplos

desta luta pela liberdade a revolta de Espártaco501, na Grécia, e a Guerra dos Palmares502 no

Brasil.

497 COMPARATO, Fábio Konder, Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 212. 498 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 235. 499 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 235. 500 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 236-237. 501 Do latim Spartacus, gladiador líder de uma revolta que acabou conhecida por seu nome e chegou a contar com exército de aproximadamente cem mil ex-escravos.

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Aponta ainda como noção de liberdade da pessoa física a “possibilidade jurídica que

se reconhece a todas as pessoas de serem senhora de sua vontade e de locomoverem-se

desembaraçadamente dentro do território nacional”503; termina por incluir ainda a

“possibilidade de sair e entrar no território nacional”504.

Assim, em função de se ter colocado a questão da vontade no plano da liberdade

subjetiva, e a liberdade da pessoa física tratar da liberdade objetiva, pode-se limitar o conceito

proposto por José Afonso da Silva e enunciá-lo como a possibilidade jurídica que se

reconhece a todas as pessoas de locomoverem-se desembaraçadamente dentro do território

nacional, bem assim como nele entrar e dele sair.

3.5.2 Liberdade de pensamento

Sampaio Dória, citado por José Afonso da Silva, entende a liberdade de pensamento

como “o direito de exprimir, por qualquer forma, o que se prensa em ciência, religião, arte, ou

o que for”505 – também pode ser referida como liberdade de consciência, assim tornada

inviolável pelo inciso VI do art. 5° da CRFB/1988506.

É a “exteriorização do pensamento no seu sentido mais abrangente”507, resumida como

liberdade de opinião508 e que resulta pode ser assim subdividida nas seguintes liberdades: de

comunicação (“conjunto de direitos, formas, processos e veículos, que possibilitam a

coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão do pensamento e da

informação”509); religiosa (que será mais detalhadamente investigada neste trabalho, mais

adiante), de expressão intelectual (aí compreendidos os aspectos artístico e científico).

502 Assim denomina-se o conjunto de ações militares que culminou na erradicação do Quilombo dos Palmares, na segunda metade do século XVII, localizado em região hoje pertencente ao estado de Alagoas. Quilombo era um local de refúgio dos escravos – notadamente os afro-descendentes. 503 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 237. 504 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 237. 505 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 241. 506 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 18 out. 2008. 507 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 241. 508 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 241. 509 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 243.

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Segundo José Afonso da Silva é da liberdade de pensamento que deriva o direito

individual da escusa de consciência, também conhecido como objeção de consciência,

consubstanciado no “o direito de recusar prestar determinadas imposições que contrariem as

convicções religiosas ou filosóficas do interessado”510 – e que tem na prestação alternativa ao

serviço militar obrigatório seu melhor e mais notório exemplo.

3.5.3 Liberdade de expressão coletiva

A locução liberdade de expressão coletiva é apropriada pois trata-se de direitos

individuais, “porque imputáveis aos indivíduos como tal, e não a uma coletividade de

indivíduos”511, mas decorrentes “de uma pluralidade de pessoas entre si vinculadas dentro de

uma coletividade”512.

Nesta espécie, segundo José Afonso da Silva513, se incluirá o direito à informação,

assim entendido o direito do indivíduo de “receber dos órgãos públicos informações de seu

interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral”514, na redação do inciso XXXIII do art.

5° da CRFB/1988.

Como liberdade individual de tomar parte em uma coletividade, José Afonso da

Silva515 aponta os direitos de participação, que podem ser vistos por dois aspectos: de cunho

político, que confere aos indivíduos a possibilidade de tomar parte no processo político e

decisório (neste trabalho já tratados em seção anterior como os direitos políticos) ou orgânico,

forma de participação dos trabalhadores na defesa de seus interesses junto aos órgãos públicos

e empresas516; enumera517 ainda os direitos de reunião, assim entendido um agrupamento

temporário de pessoas com o fim de trocar ou receber idéias; de associação, no sentido de

uma coligação de pessoas que se prolonga no tempo a perseguir algum objetivo definido; e

510 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 242. 511 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 259. 512 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 259. 513 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 261-262. 514 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 18 out. 2008. 515 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 262. 516 Nos termos dos artigos 10 e 11 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 517 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 263-268.

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finalmente os de representação coletiva, que conferem legitimidade às entidades associativas

para representar seus associados judicial ou extrajudicialmente.

Incluem-se518 ainda como espécies da liberdade de expressão coletiva as decorrentes

dos direitos relativos aos consumidores, coletividade que com a expansão da atividade

econômica mereceu reconhecimento e proteção a ponto de se ver elevado seu direito à

especial proteção à categoria de fundamentais.

3.5.4 Liberdade de ação profissional

Para José Afonso da Silva, é a “liberdade de escolha do trabalho um de seus aspectos.

É mais que isso, porque também é liberdade de exercício de ofício e de profissão”519.

Uma de suas manifestações mais importantes é a acessibilidade aos cargos e funções

públicas – assim definidos por Hely Lopes Meirelles como, respectivamente, “lugar instituído

na organização do serviço público, com denominação própria, atribuições e responsabilidades

específicas”520 e “atribuição ou o conjunto de atribuições que a Administração confere a cada

categoria profissional ou comete individualmente a determinados servidores para a execução

de serviços eventuais”521.

3.5.5 Liberdade de conteúdo econômico e social

Para José Afonso da Silva522 os direitos sociais são ligados ao princípio da igualdade,

pois que conferem condições materiais para obtenção da igualdade real; define-os, na

qualidade de dimensão dos direitos fundamentais, como

prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais523.

518 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 262-263. 519 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 257. 520 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 395. 521 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, p. 395. 522 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 286-287. 523 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 286.

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São divididos por José Afonso da Silva em seis classes:

a) direitos sociais relativos ao trabalhador; b) direitos sociais relativos à seguridade, compreendendo os direitos à saúde, à previdência e assistência social; c) direitos sociais relativos à educação e à cultura; d) direitos sociais relativos à moradia; e) direitos sociais relativos à família, criança, adolescente e idoso; f) direitos sociais relativos ao meio ambiente524.

Segundo José Afonso da Silva os direitos econômicos são espécie dos direitos sociais

e estão revestidos de caráter institucional (em oposição aos sociais lato sensu, de dimensão

pessoal), e cita Geraldo Vidigal para definir direito econômico: “é a disciplina jurídica de

atividades desenvolvidas nos mercados, visando a organizá-los sob a inspiração dominante do

interesse social”525.

3.6 LIBERDADE RELIGIOSA

Micheline Ishay pondera que a intolerância religiosa tem desde sempre suplantado as

promessas de caridade e universalidade do evangelho526; segundo a autora, a intolerância

específica da Igreja Católica é resultado das Cruzadas527 e tem origem no preconceito que ali

surgiu em face dos turcos528. Sérgio Victor Tamer aponta nas cruzadas mesmo a “primeira

grande forma de terrorismo religioso”529.

Milton Ribeiro atribui à Declaração de Direitos de Virgínia e à Constituição dos

Estados Unidos da América o pioneirismo no alojamento formal do direito à liberdade

religiosa530, no que se seguiu a França com sua Revolução e a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão531.

524 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 287. 525 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 286. 526 ISHAY, Micheline. The history of human rights, p. 75. 527 Movimentos militares de caráter cristão que buscavam o domínio da Terra Santa (Palestina e Jerusalém), libertando-a do islamismo. Estendeu-se pelos séculos XI e XIII, quando a Palestina estava sob controle dos turcos muçulmanos. 528 ISHAY, Micheline. The history of human rights, p. 75. 529 TAMER, Sérgio Victor. Religião x Estado: a intolerância está de volta. Consulex, Brasília, v. 6, n. 120, p. 28-29, 15 jan. 2002, p. 29. 530 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa, p. 49-50. 531 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa, p. 51.

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Tamanha é a relevância da liberdade religiosa que Jellinek, entre outros filósofos,

segundo Milton Ribeiro, vão “ao ponto mesmo de operar uma curiosa inversão conceitual:

vêem na luta pela liberdade religiosa a verdadeira origem dos direitos fundamentais”532.

Nesse sentido Lynn Hunt aponta que o termo direitos humanos foi pela primeira vez

utilizado por Voltaire em sua obra Treatise on the Occasion of the Death of Jean Calas,

panfleto elaborado por ocasião da condenação do protestante francês Jean Calas à morte na

roda de Catherine533 por ter ele mesmo assassinado seu filho para evitar a conversão deste ao

catolicismo534.

No que diz respeito ao Brasil, Milton Ribeiro aponta o Tratado do Comércio e

Navegação, de 19 de fevereiro de 1810, como o precursor do reconhecimento formal do

direito à liberdade religiosa535; cita ainda determinação do Príncipe Regente, consubstanciada

em Ato de 23 de maio de 1822 subscrito por José Bonifácio de Andrada e Silva, com o

seguinte teor:

Tendo Alexandre Cuningham, deputado cônsul-geral de Sua Majestade Britânica, participado que no domingo 26 do corrente pretendiam os ingleses aqui estabelecidos abrir a sua capela na conformidade do art. XII do tratado de 1810 que lhe faculta dar princípio ao seu culto religioso, e sendo esta a primeira vez que se abre nesta cidade uma Igreja Protestante, podendo por isso acontecer que haja tal afluência popular, que mereça a atenção da polícia, que deve prevenir as perturbações que resultam dos ajuntamentos: manda o Príncipe Regente pela Secretaria do Estado dos negócios do Reino e dos Negócios estrangeiros, que o intendente-geral da polícia tome as medidas necessárias para se conservar a boa ordem e sossego público nesse dia, mandado para a rua dos Barbonos, onde está situada a dita capela, patrulhas rondantes da guarda da polícia encarregadas de manter a tranqüilidade536.

532 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa, p. 19. 533 A roda de Catherine era, segundo Lynn Hunt, forma de aplicação da pena capital na qual o condenado era amarrado a uma roda de madeira e, após ter quebrados tantos ossos quanto possível pelo espancamento com bastões ou tacos de madeira ou ferro, a roda era então fixada horizontalmente no chão, através de haste perpendicular, com o condenado abandonado à morte lenta em sua parte superior. Utilizava-se também a expressão “morrer na roda” para a condenação. Cf. HUNT, Lynn. Inventing human rights, p. 72. 534 HUNT, Lynn. Inventing human rights, p. 70. 535 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa, p. 55-56. 536 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa, p. 57-58.

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A CPIB/1824 já trazia um abrandamento da imposição de religião oficial, permitindo a

liberdade de crença e limitando a liberdade de culto ao lar do indivíduo ou templos

específicos, sem marcas exteriores:

Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo537.

Segundo Elza Galdino, Rui Barbosa já aos vinte e sete anos de idade sustentava a

“bandeira da liberdade religiosa em três frentes: nas colunas do Diário da Bahia, na tribuna

dos comícios e na extensa Introdução de O Papa e o Concílio, livro por ele diretamente

traduzido do alemão e com enormes dificuldades editado em 1877538.

Para Milton Ribeiro, “a liberdade religiosa possui inúmeras facetas circunstanciadas, e

nelas as identificações podem ser tornar mais claras”539. Cita Georges Burdeau que reconhece

“que a liberdade religiosa, muito mais que o direito de crença, consiste na liberdade de se

praticar essa crença, exteriorizá-la e, dessa forma, se expor”540.

Exemplifica que a liberdade religiosa no aspecto de liberdade de culto envolve de

maneira mais acentuada o aspecto social do direito, bem como os limites dessa liberdade

religiosa em face de outrem; no sentido de liberdade de crença adquire ligações com a esfera

privada e íntima dos indivíduos, não revelando a mesma abrangência na possibilidade de

regulamentação jurídica por parte do Estado541 - lembrando que alguns doutrinadores

consideram que “a liberdade religiosa mais interna – a da consciência – é inatacável pelo

Estado, pelo direito ou mesmo por qualquer poder externo à individualidade”542.

537 BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 17 out. 2008. 538 GALDINO, Elza. Estado sem Deus: a obrigação da laicidade na Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 25. 539 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Mackenzie, 2002, p. 17. 540 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa, p. 34. 541 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa, p. 17-18. 542 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa, p. 18.

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134

Adir Guedes Soriano543 e José Afonso da Silva544 reconhecem como espécies da

liberdade religiosa (lato sensu), precedida pela liberdade de consciência, as liberdades de

crença (ou religiosa strictu sensu), de culto e de organização religiosa, todas protegidas pela

CRFB/1988 no inciso VI do art. 5°: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença,

sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a

proteção aos locais de culto e a suas liturgias”545.

3.6.1 Liberdade de crença

Para Celso Ribeiro Bastos, citado por Milton Ribeiro, a liberdade de crença é

precedida pela liberdade de consciência, consistente esta na possibilidade de acreditar ou não;

assim, a liberdade de crença “gera a possibilidade de escolha daquilo em que se acredita”546;

no mesmo sentido, para Aldir Guedes Soriano, a liberdade de crença (ou liberdade religiosa

strictu sensu) é mais restrita que a liberdade de consciência, compreendendo o direito de

escolher (ou aderir) a uma crença ou religião547.

Pontes de Miranda, citado por José Afonso da Silva, assinala que a “liberdade de

crença compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter crença”548, revelando assim

acertada a redação do já citado inciso VI do art. 5° da CRFB/1988 – é que a liberdade de

consciência é inconfundível com a de crença, sendo aquela muito mais abrangente do que

esta, conforme já visto antes.

Como condição íntima e imperscrutável do indivíduo, não permite ao Estado – ou

outra instituição – um ataque ou violação direto; por outro lado, no melhor modelo do

paternalismo kantiano, da dominação de classes de Karl Marx ou da dominação social de

Roberto Mangabeira Unger, através de políticas públicas que (ainda que veladamente)

limitem o pleno exercício da liberdade de crença, será possível ao Estado de certa maneira

543 SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 10. 544 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 248. 545 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 18 out. 2008. 546 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa, p. 37. 547 SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional, p. 11. 548 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 249.

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135

conduzir as convicções religiosas da população, interferindo nesta esfera íntima do

indivíduo549.

3.6.2 Liberdade de culto

A liberdade de culto difere da liberdade de crença pois que envolve a exteriorização da

fé e das crenças do indivíduo, podendo se manifestar “através de ritos, cerimônias ou

reuniões, em público ou particular”550.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho atribui acentuada relevância à liberdade de culto,

ponderando que

A liberdade de consciência e de crença, porém, se extroverte, se manifesta na medida em que os indivíduos, segundo suas crenças, agem deste ou daquele modo, na medida em que, por uma inclinação natural, tendem a expor seu pensamento aos outros e, mais, a ganhá-los para suas idéias. As manifestações, estas sim, pelo seu caráter social valioso, é que devem ser protegidas, ao mesmo tempo em que impedidas de destruir ou prejudicar a sociedade551.

Para Pontes de Miranda, citado por José Afonso da Silva, “compreendem-se na

liberdade de culto a de orar e a de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em

casa ou em público, bem como a de receber contribuições para isso”552.

Nossa Constituição do Império, de 1824, em seu art. 5° somente reconhecia a ampla

liberdade de culto para a Igreja Católica, limitados os adeptos das outras apenas ao “seu culto

doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de

Tempo”553.

549 RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa, p. 37-42. 550 SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional, p. 11. 551 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 248. 552 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 249. 553 BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 17 out. 2008.

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3.6.3 Liberdade de organização religiosa

Segundo José Afonso da Silva, “diz respeito à possibilidade de estabelecimento e

organização das igrejas e suas relações com o Estado”554. Para Aldir Guedes Soriano, a

liberdade de organização religiosa decorre do Estado laico e encontra-se positivada em termos

de legislação civil e penal555.

554 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 250. 555 SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional, p. 12.

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4 RELIGIÃO E IGREJA CATÓLICA

Neste capítulo, conforme já mencionado na Introdução, trata-se de um tema mais

avesso à sistematizações e classificações, motivo pelo qual se lança mão de uma análise

filosófica – naturalmente sem a pretensão de se observar os fenômenos aqui investigados sob

todos os ângulos que a filosofia permite. Trata-se tão somente de possibilitar ao leitor maior e

melhor compreensão do fenômeno religioso e do catolicismo.

Nesse passo é que num primeiro momento a abordagem é da manifestação da religião

no ser humano, independentemente de quaisquer aspectos próprios de determinada religião. É

a abordagem que, segundo Émile Durkheim e como se verá, permite a maior aproximação

com aquilo que se entende pela essência da religião.

Num segundo momento se concentrará as atenções na Igreja Católica – não sem antes

breve incursão pelo cristianismo, gênero do qual a primeira é espécie. No final deste capítulo

a abrangência será reduzida ainda mais, para tornar-se foco da investigação a Igreja Católica

no Brasil.

4.1 O FENÔMENO RELIGIOSO

O fenômeno religioso, manifestação interna e externa do ser humano, é capaz mesmo

de ser utilizado para diferenciar o homem das outras espécies de seres vivos – como será visto

ao longo deste capítulo. Sua importância para a formação da sociedade como é conhecida

atualmente não pode ser superestimada, como também se verá. Como já visto, a liberdade

para se expressar no que diz respeito à religião foi a mola propulsora para a própria

construção do ideal de direitos humanos – o que pode ser tomado como demonstração da

importância desse fenômeno essencialmente humano.

Sua definição, ou a definição de seu sentido e alcance, é objetivo perseguido por

diversos autores ao longo do tempo – uma vez que o fenômeno religioso sempre acompanhou

o homem e suas relações em sociedade e com a própria natureza. Nesse sentido é a

constatação de Mircea Eliade, historiador romeno naturalizado estadunidense:

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Não há homem moderno, seja qual for o grau de sua irreligiosidade, que não seja sensível aos ‘encantos’ da natureza. Não se trata unicamente dos valores estéticos, desportivos ou higiênicos concedidos à natureza, mas também de um sentimento confuso e difícil de definir, no qual ainda se reconhece a recordação de uma experiência religiosa degradada556.

Mircea Eliade assevera que não se encontrará, por ateu557 que seja o indivíduo, certo

assombramento com as coisas da natureza. Assim o é porque a religião não se resume tão

somente a uma forma de se limitar ou adequar a conduta humana em torno de um padrão

aceito – a moral, mas também uma forma de se explicar ou de se entender o porquê das

coisas, atribuindo-se à essência de algumas dessas coisas a intervenção divina – o que acaba

por lhes transformar em sagradas; Mircea Eliade novamente apresenta característica como

intrínseca do fenômeno religioso:

Para o homem religioso, a natureza nunca é exclusivamente ‘natural’: está sempre carregada de um valor religioso. Isto é facilmente compreensível, pois o cosmos é uma criação divina: saindo das mãos dos deuses, o mundo fica impregnado de sacralidade. Não se trata somente de uma sacralidade comunicada pelos deuses, como é o caso, por exemplo, de um lugar ou um objeto consagrado por uma presença divina. Os deuses fizeram mais: manifestaram as diferentes modalidades de sagrado na própria estrutura do mundo e dos fenômenos cósmicos558.

Para melhor compreensão da religião autores dos mais diversos ramos do saber

debruçaram-se sobre suas manifestações, elaborando teorias acerca de suas características,

origens e fundamentos; nesse processo de investigação chega-se a elementos como mito,

sagrado e profano, símbolo e outros; todos serão analisados conforme a visão dos autores

considerados mais importantes para o estudo esse fenômeno tão comum e ao mesmo tempo

tão refratário à investigação científica.

Foram identificados como concepções mais representativas das visões acerca do

fenômeno religioso as do filósofo e antropólogo alemão Ludwig Andreas Von Feuerbach, do

sociólogo francês Émile Durkheim e do filósofo judaico-alemão Ernst Cassirer; as três são

apresentadas e brevemente analisadas nas próximas seções.

556 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, p. 126. 557 Característica de não acreditar em Deus ou nos deuses. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 558 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, p. 99.

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4.1.1 Feuerbach e o indivíduo: a consciência da consciência

Feuerbach entende que a religião não pode ser interpretada como um fenômeno

independente do homem, pois que este precede o pensamento; citado por Brian Morris, afirma

que “a religião é a mais antiga e indireta forma de auto-conhecimento. Assim, a religião em

qualquer lugar precede a filosofia”559.

Segundo Brian Morris, Feuerbach estabelece uma quebra de paradigma com o

pensamento religioso da época560, o considerando uma forma de alienação que transforma os

ideais humanos em mitos associando-os a um ser supremo. A concepção de Feuerbach é de

que o fenômeno religioso está circunscrito ao ser humano, e independe de mitos561 - como se

verá na seqüência, opinião controversa e contraposta pela maioria dos estudiosos.

Para Feuerbach, “a religião se baseia na diferença essencial entre o homem e o animal

– os animais não têm religião”562, essência essa que entende a

razão, a vontade, o coração. Um homem completo possui a força do pensamento, a força da vontade e a força do coração. A força do pensamento é a luz do conhecimento, a força da vontade é a energia do caráter, a força do coração é o amor. Razão, amor e vontade são perfeições, são os mais altos poderes, são a essência absoluta do homem enquanto homem e a finalidade da sua existência563.

Feuerbach entende a religião como “a cisão do homem consigo mesmo: ele estabelece

Deus como um ser anteposto a ele”564; Se para Feuerbach a essência do homem é a razão, a

essência da religião é a “consciência que a inteligência ou a razão têm da sua própria

perfeição”565. E essa autoconsciência da inteligência é a “essência divina pura, perfeita e

acabada”566.

559 MORRIS, Brian. Anthropological studies of religion: an introductory text. Nova Iorque: Cambridge Press University, 1987, p. 21. 560 Feuerbach publicou sua principal obra, “A essência do cristianismo”, em 1841. Cf. MORRIS, Brian. Anthropological studies of religion, p. 19. 561 MORRIS, Brian. Anthropological studies of religion, p. 21-23. 562 FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo, p. 35. 563 FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo, p. 36. 564 FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo, p. 63. 565 FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo, p. 63. 566 FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo, p. 63.

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Assim, para Feuerbach, “a fé não é nada mais que a inabalável certeza da realidade,

i.e., da validade e verdade incondicional da subjetividade em oposição às limitações, i.e., às

leis da natureza e da razão”567. Continua dizendo que,

quando então creio em Deus, tenho um Deus, i.e., a fé em Deus é o Deus do homem. Se Deus é aquilo e assim que e como eu creio, o que é a essência de Deus senão a essência da fé? [...] Que Deus seja um outro ser é apenas ilusão, fantasia. Que ele é a tua própria essência, declaras com o fato de ser Deus um ser para ti. O que é então a fé senão a certeza do homem, a indubitável certeza de que a sua essência própria e subjetiva e a essência objetiva, absoluta, a essência das essências568?

Da construção de Feuerbach permite-se concluir então que, para o filósofo alemão,

Deus é o próprio homem, numa projeção ideal da natureza humana em sua própria

consciência – projeção esta qualificada pela fé569.

4.1.2 Durkheim e o fato social: o sagrado e o profano

Considerado um dos pais da sociologia moderna, Durkheim publicou sua obra “As

formas elementares da vida religiosa” em 1915, ao final de sua vida; para Brian Morris, a obra

fez surgir tamanha abundância de interpretações e críticas que tornou difícil sua abordagem

sem a influência destas570.

Durkheim, citado por Brian Morris, colocou a questão da essência da religião na forma

de buscar discernir “as causas sempre presentes das quais dependem as mais importantes

formas de pensamento e práticas religiosas”571, para logo em seguida constatar que “na

realidade não há religiões falsas. Todas são verdadeiras em seus próprios estilos, todas

respondem, ainda que de diferentes maneiras, às condições de existência humana”572.

Durkheim constata que, havendo ritos sem deuses – e mesmo ritos dos quais os deuses

são conseqüência, “nem todas as virtudes religiosas emanam de personalidades divinas, e há

567 FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo, p. 142. 568 FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo, p. 143. 569 FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo, p. 69-71. 570 MORRIS, Brian. Anthropological studies of religion, p. 113-114. 571 MORRIS, Brian. Anthropological studies of religion, p. 114. 572 MORRIS, Brian. Anthropological studies of religion, p. 114.

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relações culturais que visam outra coisa que não unir o homem a uma divindade”573. Assim

conclui que “a religião vai além da idéia de deuses ou de espíritos, logo não pode se definir

exclusivamente em função desta última”574.

No que diz respeito às crenças, Durkheim assinala que as propriamente religiosas

são sempre comuns a uma coletividade determinada, que declara aderir a elas e praticar os ritos que lhe são solidários. Tais crenças não são apenas admitidas, a título individual, por todos os membros dessa coletividade, mas são próprios do grupo e fazem sua unidade. Os indivíduos que compõem essa coletividade sentem-se ligados uns aos outros pelo simples fato de terem uma fé comum. Uma sociedade cujos membros estão unidos por se representarem da mesma maneira o mundo sagrado e por traduzirem essa representação comum em práticas idênticas, é isso a que chamamos uma igreja575.

Ainda sobre as crenças religiosas, Durkheim as entende como “representações que

exprimem a natureza das coisas sagradas e as relações que elas mantém, seja entre si, seja

com as coisas profanas”576.

Uma vez que o sagrado, segundo Durkheim, é característica comum de todas as

crenças religiosas, simples ou complexas, a definição da religião haverá de ser formulada em

função daquilo que qualifica o sagrado577.

Para Durkheim, “as coisas sagradas são aquelas que as proibições protegem e isolam;

as coisas profanas, aquelas a que se aplicam essas proibições e que devem permanecer à

distância das primeiras”578. Finalmente, a maneira como os homens devem comportar-se

frente às coisas sagradas, ou seja, as regras dessa conduta humana, é o que Durkheim entende

como rito579.

A partir do sagrado é que Émile Durkheim chega então à sua clássica definição de

religião, propondo-a como “um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas

573 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 18. 574 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 18. 575 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 28. 576 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 24. 577 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 19. 578 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 24. 579 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 24.

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sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma

comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem”580.

Dessa definição se pode inferir que Durkheim entende a religião como fato social, em

clara oposição ao individualismo de Feuerbach; enquanto este situa o conteúdo da religião na

idealização da própria razão, Durkheim o apresenta em termos da contraposição entre o

sagrado e o profano.

Mas Durkheim não elimina o aspecto individual da religião, entendendo que este pode

ser entendido como a particularização da força religiosa que alimenta a igreja, no que chama

de criação de “seres sagrados secundários; cada indivíduo tem os seus, feitos à sua imagem,

associados à sua vida íntima, solidários de seu destino: a alma, o totem individual, o

antepassado protetor, etc.”581.

Contudo, esse aspecto individual é de menor relevo para Durkheim, pois que é na

sociedade – ou mais propriamente na igreja – que o indivíduo encontrará a fonte da qual se

alimenta a religião582.

É nesse sentido, de estar assentado no seio social, que os conceitos mais modernos têm

se firmado para dar novas visões da religião, como o filósofo estadunidense Daniel Clement

Dennett que a define como “um sistema social cujos participantes confessam a crença em um

agente ou agentes sobrenaturais cuja aprovação eles buscam”583 – que acrescenta, como se vê

do enunciado de sua definição, um fim ou objetivo que reúne os religiosos: a aprovação do

agente ou agentes sobrenaturais.

Merece destaque ainda a concepção de Mircea Eliade, acerca do sagrado, entendendo

que este “manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades

‘naturais’. [...] O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra

580 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 32. 581 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 469. 582 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 470. 583 DENNETT, Daniel Clement. Quebrando o encanto: a religião como fenômeno natural. São Paulo: Globo, 2006, p. 19.

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como algo absolutamente diferente do profano”584. Ressaltando a importância acerca dos

conceitos do que é sagrado e do que é profano, diz que

[...] o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história. Esses modos de ser no mundo não interessam unicamente à história das religiões ou à sociologia, não constituem apenas o objeto de estudos históricos, sociológicos, etnológicos. Em última instância, os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou no cosmos e, conseqüentemente, interessam não só ao filósofo mas também a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana585.

Eliade, citada por Ana Cláudia Delfini Capistrano de Oliveira, aponta que

[...] o homem ocidental moderno experimenta um certo mal-estar diante das inúmeras formas de manifestações do sagrado: é difícil para ele aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa manifestar-se em pedras ou árvores, por exemplo. [...] A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque revelam algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere

586.

Segundo Oliveira, hierofanias são “as ‘coisas’ pelas quais o sagrado se manifesta

[...]”587 e que conectam o homem ao sagrado; nas palavras de Eliade, citado por Oliveira, as

hierofanias qualificam o sagrado como “a manifestação de algo de ordem diferente, de uma

realidade que não pertence ao nosso mundo, em objetos que fazem parte integrante do nosso

muno natural, profano”588.

Para Rubem Alves, “sagrado e profano não são propriedades das coisas. Elas se

estabelecem pelas atitudes dos homens perantes[589] coisas, espaços, tempos, pessoas,

584 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 16-17. 585 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, p. 20. 586 OLIVEIRA, Ana Cláudia Delfini Capistrano de. Além da razão ou razão do além?: reflexões sociológicas sobre o sagrado. Itajaí: Editora da UNIVALI, 2007, p. 117. 587 OLIVEIRA, Ana Cláudia Delfini Capistrano de. Além da razão ou razão do além?, p. 117. 588 OLIVEIRA, Ana Cláudia Delfini Capistrano de. Além da razão ou razão do além?, p. 117-118. 589 Provável erro de tipografia, em respeito à concordância deveria ler-se “perante” onde se lê “perantes”.

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ações”590; continua dizendo que “o mundo do sagrado não é uma realidade do lado de lá, mas

a transfiguração daquilo que existe do lado de cá”591.

Da análise mais detida dos conceitos de Rubem Alves e Mircea Eliade se pode

perceber que, apesar de num primeiro momento parecerem contrapostos entre si e à

concepção de Durkheim, na verdade os autores convergem. Todos reconhecem o fundamento

do sagrado no reconhecimento pelo homem como tal – ou seja, na razão humana. Assim é

quando Durkheim quando diz que as coisas sagradas são protegidas pelas proibições; Eliade

quando se refere às situações existenciais do homem; e Alves quando menciona as atitudes

humanas perante o sagrado.

4.1.3 Cassirer e o animal simbólico: a mitopoética

Por sua vez, Cassirer vê na linguagem e no simbolismo as características essenciais da

cultura humana; desenvolveu o que se tornou conhecido como a filosofia da cultura em sua

obra “Filosofia das formas simbólicas”, publicada em três volumes entre 1923 e 1929; em

“Ensaio sobre o homem”, de 1944, Cassirer apresenta suas reflexões em vários aspectos da

cultura humana: linguagem, arte, história, ciência e religião592.

Cassirer593 aponta que no mundo humano encontra-se uma característica nova com

relação aos outros animais, numa tentativa de adaptar-se ao ambiente: além dos sistemas que

Cassirer denominou receptor e efetuador, através dos quais, respectivamente, o homem recebe

estímulos externos e reage a estes, observa-se exclusivamente no homem um terceiro elo,

descrito como “sistema simbólico”594.

Através desse sistema exclusivamente humano, vive-se um uma nova dimensão de

realidade, pelo qual a resposta aos estímulos é diferida: “é interrompida e retardada por um

lento e complicado processo de pensamento”595.

590 ALVES, Rubem. O que é religião, p. 59-60. 591 ALVES, Rubem. O que é religião, p. 99-100. 592 MORRIS, Brian. Anthropological studies of religion, p. 218-219. 593 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 46-47. 594 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 47. 595 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 48.

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Cassirer afirma então que, “não estando mais num universo meramente físico, o

homem vive em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes

desse universo”596. Continua dizendo que

a realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as próprias coisas o homem está, de certo modo, conversando constantemente consigo mesmo. Envolveu-se de tal modo em formas lingüísticas, imagens artísticas, símbolos míticos ou ritos religiosos que não consegue ver ou conhecer coisa alguma a não ser pela interposição desse meio artificial. Sua situação é a mesma tanto na esfera teórica como na prática. Mesmo nesta, o homem não vive em um mundo de fatos nus e crus, ou segundo suas necessidades e desejos imediatos. Vive antes em meio a emoções imaginárias, em esperanças e temores, ilusões e desilusões, em suas fantasias e sonhos. ‘O que perturba e assusta o homem’, disse Epíteto, ‘não são as coisas, mas suas opiniões e fantasias sobre as coisas’597.

A partir desse ponto de vista, Cassirer amplia a definição clássica do homem: “em vez

de definir o homem como animal rationale, deveríamos defini-lo como animal symbolicum.

Ao fazê-lo, pode-se designar sua diferença específica, e entender o novo caminho aberto para

o homem – o caminho para a civilização”598.

Cassirer entende que, dentre os fenômenos culturais humanos, o mito e a religião são

os que mais resistem a uma análise puramente lógica599. Argumenta que

com base apenas na razão, não podemos penetrar os mistérios da fé. No entanto, esses mistérios não contradizem, mas completam e aperfeiçoam, a razão. Apesar disso, sempre houve pensadores religiosos profundos que discordavam de todas essas tentativas de reconciliar as duas forças opostas. Sustentavam uma tese muito mais radical e inflexível. O dito de Tertuliano, credo quia absurdum

[600], nunca perdeu sua força. Pascal declarou que a obscuridade e a incompreensibilidade eram os próprios elementos da religião. O verdadeiro Deus, o Deus da religião cristã, nunca deixa de ser um Deus absconditus, um Deus oculto601.

596 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 48. 597 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 48-49. 598 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 50. 599 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 121. 600 Em português, “creio por ser absurdo”. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 601 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 121-122.

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Ainda expondo as dificuldades de uma abordagem filosófica do fenômeno religioso,

Cassirer afirma que

a religião é um enigma não só teórico, mas também no sentido ético. Está repleta de antinomias teóricas e contradições éticas. Promete-nos uma comunhão com a natureza, com os homens, com os poderes sobrenaturais e com os próprios deuses. No entanto, o seu efeito é precisamente o oposto. Em sua aparência concreta ela se torna a fonte das mais profundas dissensões e lutas fanáticas entre os homens. A religião alega estar de posse de uma verdade absoluta; mas a sua história é uma história de erros e heresias. Oferece-nos a promessa e a perspectiva de um mundo transcendente – bem além dos limites de nossa experiência humana – e permanece humana, demasiado humana602.

Segundo Cassirer, a filosofia da cultura humana não faz a mesma indagação que um

sistema metafísico ou teológico: não se pergunta sobre o tema da imaginação mítica ou

conteúdo do pensamento religioso, mas acerca da sua forma603. Cita as palavras de John

Milton para definir a extensão dos temas e motivos religiosos: “um negro oceano ilimitável,

sem confim, sem dimensão, em que comprimento, largura e altura, e tempo e lugar se

perdem”604.

É que não há sequer um único fenômeno natural ou humano que não permita

interpretação mítica. Mas uma teoria do mito já nasce carregada de dificuldades, pois que sua

lógica não pode ser mensurada por qualquer concepção de verdade empírica ou científica605.

Para Cassirer, “o mito combina um elemento teórico e um elemento de criação

artística”606. Mas mito e arte não se confundem: diferencia-os citando Kant, para quem a

contemplação estética é “inteiramente indiferente à existência ou não-existência do seu

objeto”607; essa indiferença, típica da arte, é estranha ao mito – no qual “sempre está

implicado um ato de crença”608.

602 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 122. 603 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 122. 604 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 123. 605 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 123-124. 606 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 126. 607 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 126. 608 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 126.

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Crê-se no objeto do mito. Excluído do mito o aspecto da crença, aquele perderia seu

fundamento e seria mais propriamente um fenômeno artístico ou científico. Para Mircea

Eliade, o mito pode ser definido como um relato de “uma história sagrada; ele relata um

acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’”609.

Segundo Eliade, mito pode ainda ser definido no sentido de uma narrativa de

como, graças às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser610.

Cassirer diferencia o mito do pensamento científico através da nota da experiência

sensorial como fundamento do segundo, da qual prescinde o primeiro, impregnado de

qualidades emocionais – por sua vez ausentes no pensamento científico611. É que, segundo

Morris, a religião combina o símbolo e seu significado, ao passo em que a ciência os

diferencia, criando “sistemas de relações”612.

Assim é que, “se quisermos dar conta do mundo da percepção mítica e da imaginação

mítica, não deveremos começar com uma crítica de ambas do ponto de vista dos nossos ideais

teóricos de conhecimento e verdade”613. Cassirer cita Durkheim, para quem “não poderemos

explicar adequadamente o mito enquanto procurarmos suas fontes no mundo físico, em uma

intuição dos fenômenos naturais”614. Aponta na tese de Durkheim e na elaboração do filósofo

e sociólogo francês Lucien Lévy-Bruhl a descrição do pensamento mítico como “pensamento

pré-lógico”615.

Para Cassirer, “o verdadeiro modelo do mito é a sociedade, não a natureza. Todos os

seus motivos fundamentais são projeções da vida social do homem”616. Cassirer aponta que

609 ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 11. 610 ELIADE, Mircea. Mito e realidade, p. 11. 611 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 127-129. 612 MORRIS, Brian. Anthropological studies of religion, p. 219. 613 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 132. 614 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 133. 615 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 133. 616 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 133.

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não há qualquer diferença radical entre o pensamento mítico e o religioso. Ambos têm origem nos mesmos fenômenos fundamentais da vida humana. No desenvolvimento da cultura humana, não podemos fixa um ponto em que o mito acaba ou começa a religião. Em todo o curso de sua história, a religião permanece indissoluvelmente ligada a elementos míticos, e impregnada deles. [...] Desde o início, o mito é religião em potencial617.

Cassirer afasta a confusão entre religião e magia ao argumento de que o caminho para

a ascensão da primeira foi pavimentado pela queda da segunda618; aponta ainda que

“pensamos na religião como a expressão simbólica de nossos mais altos ideais morais;

pensamos na magia como um agregado grosseiro de superstições. A crença religiosa parece

tornar-se mera credulidade supersticiosa se admitimos qualquer relação com a magia"619.

Na transformação da interpretação ética que a religião dá à vida Cassirer vê o

surgimento do conceito de tabu – e o próprio surgimento do pensamento religioso; o tabu

pode ser definido como aquilo que é “intocável, uma coisa que não pode ser abordada com

ligeireza”620; por sua vez, uma vida pautada pelo ideal de pureza, sem contato com os tabus,

pode fazer da existência humana uma carga ao fim e ao cabo insuportável621.

É precisamente neste ponto que a religião intervém, com a tarefa de aliviar “o peso

intolerável do sistema de tabus”622 – no que chamou de nova dinâmica de religião, na qual se

abre uma nova perspectiva à vida moral e religiosa baseada na predominância da liberdade,

quebrando-se o “feitiço de um tradicionalismo rígido”623.

A socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger, citada por Franz Josef Brüseke e Carlos

Eduardo Sell, compartilha da concepção de Cassirer quanto ao sistema simbólico, mas

procura estabelecer o conceito de religião sem colocar ênfase no conteúdo das crenças, mas

nas características imanentes da fé – que por ela é definida como

O conjunto de convicções, individuais e coletivas, que não tratam do domínio da verificação, da experimentação ou, de forma mais ampla, dos modos de reconhecimento e controle que caracterizam o saber, mas que

617 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 145-146. 618 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 152-155. 619 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 154. 620 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 176. 621 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 176-178. 622 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 178. 623 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 367.

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acham sua razão de ser no fato de que elas dão sentido e coerência à experiência subjetiva dos que a possuem624.

Conclui então Hervieu-Léger que “uma religião é um dispositivo ideológico, prático e

simbólico pelo qual é constituída, mantida, desenvolvida e controlada a consciência

(individual e coletiva) de pertencimento a uma linhagem de crença particular”625.

A construção de Cassirer é então pautada pela concepção de que o homem, ser

racional que é, tem capacidade de tomar decisões e suportar suas conseqüências – atuando a

religião não no sentido de impor ao indivíduo o medo, mas de fomentar-lhe o conhecimento

necessário para que pratique a virtude – naquilo que chamou de tríade de “bons pensamentos,

boas palavras e boas ações”626.

4.1.4 Deus: hominis delirium?

As construções de Durkheim e Cassirer, embora não se baseiem expressamente numa

figura divina, permitem uma redução que levaria ambas a um tipo semelhante de entidade: na

primeira, caberia a Deus estabelecer as coisas sagradas, através das proibições que as

protegem; já na segunda, Deus seria a origem dos tabus e dos mitos que ativariam o sistema

simbólico humano.

Por sua vez, a teoria de Feuerbach expõe com clareza a presença do ente divino, ou de

Deus, consubstanciado este na projeção ideal do próprio indivíduo; ideal no sentido de ser

portadora de toda a virtude possível de ser experimentada pela razão humana.

Apresenta-se então a antiga questão acerca da existência ou não de Deus, que tem

contraposto há séculos teístas e ateístas – e que apesar das particularidades de cada religião

pode ser discutida em âmbito genérico, pois que dotada de um caráter universal atribuído pela

exigência comum de todas as religiões, em última análise, de uma entidade superior.

O psicólogo Alfred Adler, citado por Hainchelin, pondera que

624 SELL, Carlos Eduardo, BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade. Itajaí: UNIVALI; São Paulo: Paulinas, 2006, p. 189. 625 SELL, Carlos Eduardo, BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 189. 626 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 367-368.

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O problema do ateísmo e do teísmo não é um problema científico, mas religioso e metafísico. A ciência exige, apenas, a pureza do método, ou seja, não permite que, em seus juízos, se imiscuam conceitos religiosos ou metafísicos. Assim, por si mesmas, as ciências naturais não são a favor, nem contra o ateísmo. Repete-se, com facilidade, o grande pensamento crítico de Kant, de que é impossível demonstrar a existência de Deus. Apenas, a segunda parte deste pensamento crítico deveria ser tão popular quanto a primeira, a saber: que a demonstração contrária, isto é, da inexistência de Deus também é impossível cientificamente, pois Deus é um conceito que não pertence, nem à experiência, nem ao conhecimento, mas à fé627.

Apesar de situar-se fora do plano das possibilidades de investigação proporcionadas

pelo método científico, permitir-se-á breve incursão nesta seara, a fim de proporcionar ao

leitor panorama geral da discussão – que em si mesma é importante para uma análise mais

profunda do fenômeno religioso, como demonstrado antes.

Hélio Jaguaribe628 faz uma rápida leitura histórica das diversas propostas de provas da

existência de Deus. Reduz as provas a três modalidades: a) com argumentos a priori629; b)

com argumentos a posteriori630; e c) as de manifestações empíricas da divindade.

Como argumentos a priori apresenta631 a construção de Santo Anselmo em sua obra

Proslogion, de 1078: fundamentalmente, ao se conceber Deus como o ser mais perfeito e mais

absoluto, sua existência deve ser reconhecida pelo simples fato de se ter concebido-o como

um ser perfeito; porque esta seria a melhor idéia possível desse ente.

Hélio Jaguaribe632 aponta que Tomás de Aquino, além de contestar Santo Anselmo,

ponderando que a existência só pode ser baseada em dados da experiência, apresentou

argumentos mais representativos, todos a posteriori.

Num primeiro momento, em construção apodítica633, a existência de Deus é afirmada

em função de que no mundo tudo tem causa – e Deus seria causa primeira de tudo; é

627 HAINCHELIN, Charles. As origens da religião. São Paulo: Hemus, 1971, p. 44. 628 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos. São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 66-68. 629 Diz-se de conhecimento que é condição de possibilidade de experiência, e que independe dela quanto à sua própria origem. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 630 Diz-se de conhecimento proveniente da experiência, ou que dela depende. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 631 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 66. 632 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 66.

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argumento contingencial, pois que se na natureza tudo depende de algo, é necessário admitir

algo na cadeia inicial de contingentes – posição esta reservada a Deus.

Como argumentos tomistas634 não apodíticos, Jaguaribe635 aponta três: os que se

fundam na concepção teleológica do mundo, na ordem moral e na experiência religiosa. Para

Aquino, o encadeamento finalístico não pode decorrer do acaso, pela precisão dos processos

existentes: dispomos de boca para comer, olhos para ver; existe água para bebermos, ar para

respirarmos. Assim, a existência de todas as coisas só pode se justificar por um projeto divino.

Do mesmo modo também é com a ordem moral que disciplina a conduta do homem; por ser

algo superior aos homens não pode ser natural, mas igualmente de procedência divina. Enfim

as manifestações da presença de Deus, através de milagres, aparições e experiências místicas

demonstram empiricamente a existência de Deus.

Por sua vez, a hipótese de Deus como ser supremo, criador do céu e da terra,

infinitamente bom, onipotente e onisciente, que há de julgar os homens por seus atos

praticados em vida – construção de Tomás de Aquino e que depende, segundo Hélio

Jaguaribe, “de uma concepção do mundo como algo que foi criado a partir do nada”636 – é

concepção que tem sido duramente questionada por filósofos e cientistas ao longo dos

tempos; apresenta-se nas próximas linhas alguns desses questionamentos, sem qualquer

pretensão de análise mais profunda, pois que fora do escopo do presente trabalho.

Deus, como ser supremo criador do céu e da terra, é conceito que encontra severas

objeções impostas por duas teorias: no plano cosmológico, envolvendo mesmo a criação do

universo, a teoria do big bang637, proposta pelo padre belga Georges Henri Joseph Édouard

Lemaître baseada por sua vez na teoria da relatividade geral de Albert Einstein, e

desenvolvida pelos físicos George Gamov, russo, e Ralph Adler, estadunidense, é explicação

de apelo científico forte que se contrapõe à possibilidade do Deus criador.

633 Diz-se do que é demonstrável ou do que é evidente, valendo, pois, de modo necessário; irrefutável, evidente. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 634 Relativo à doutrina de Tomás de Aquino. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 635 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 66-67. 636 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 67. 637 OLIVEIRA FILHO, Kepler de Souza.O universo como um todo. Porto Alegre, 19 jun. 2008. Disponível em: <http://astro.if.ufrgs.br/univ>. Acesso em: 30 out. 2008.

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No plano orgânico, dos seres vivos, o Deus criador638 encontra resistência na teoria da

seleção natural de Darwin, já rapidamente discutida neste trabalho; se por um lado a evolução

das espécies permite o estágio atual de desenvolvimento, através da seleção natural, a mesma

tem como ponto de partida um único organismo vivo; mas, de acordo com Jerry Carvalho

Borges639, a lacuna é suprida pela assim conhecida teoria da sopa primordial, do russo

Alexsandr Oparin e do britânico John Burdon Sanderson Haldane, e que ganhou força com os

experimentos de Harold Urey e Stanley Miller, consistentes na simulação em laboratório do

ambiente da Terra em épocas remotas, através do qual obtiveram êxito na criação de um ser

vivo simples a partir de matéria inorgânica.

Por seu turno, o finalismo enxergado por Aquino é extrapolação humana: “não se

criaram planejadamente pernas para andar, mas se anda porque se tem pernas”640. Nesse

sentido é a crítica do biólogo francês Jacques Lucien Monod, para quem “a natureza é

objetiva e não projetiva”641.

No tocante às manifestações divinas através de milagres, Hélio Jaguaribe pondera que

os relatos destes são, em sua maioria, antigos e ocorridos em culturas permeadas pela crença

no sobrenatural642 – o que retira do argumento a objetividade exigida para o caracterizar de

prova da existência de Deus. Os milagres mais recentes, por outro lado, “se referem todos à

cura de moléstias psicossomáticas, como certas formas de cegueira, surdez, mudez e paralisia.

Nenhum milagre documentado se refere à criação de um dedo ou de uma perna, por pessoas

que os tivessem perdidos”643. Jaguaribe conclui afirmando que “todos os milagres

psicossomáticos são explicáveis pelos poderosos efeitos somáticos decorrentes de um

profundo impacto psicológico”644.

No que diz respeito às experiências místicas, como epifanias ou revelações, Jaguaribe

aponta a impossibilidade de separação do conteúdo supostamente divino de tais eventos do

638 Teoria também conhecida por criacionismo. 639 BORGES, Jerry Carvalho. Vida, marco zero. Ciência Hoje. Por dentro das células. Rio de Janeiro, 2 mar. 2007. Disponível em: < http://cienciahoje.uol.com.br/67153>. Acesso em: 30 out. 2008. 640 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 67. 641 MONOD, Jacques. O acaso e a necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 23. 642 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 67. 643 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 67. 644 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 67.

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fenômeno psicológico de transe experimentado pelo indivíduo como suficiente para invalidar

o pretendido valor probante do argumento645.

Deus, tomado como entidade infinitamente bondosa, onisciente e onipotente, não se

sustenta frente às indagações de David Hume, filósofo e historiador escocês: “Ele quer

impedir o mal mas não é capaz? Então Ele é impotente. Ele é capaz, mas assim não deseja?

Então Ele é malévolo. Ele tanto é capaz quanto deseja? Então por quê existe o mal?”646.

Finalmente, a atribuição de Deus de julgar os homens após sua morte, premiando os

justos e punindo os injustos, é baseada nas idéias socráticas, que Platão647 levou a termo em

Fédon, de que o homem é composto de duas substâncias: o corpo (perecível) e a alma

(imortal). Hélio Jaguaribe pondera que “a convicção na imortalidade da alma se baseou na

presunção de que os atos intelectivo-volitivos do homem não podem ser explicados sem apelo

a uma substância espiritual, a alma, necessariamente imortal, alma essa que determinaria a

liberdade humana”648.

Ocorre que, com o desenvolvimento das ciências da biologia e da psicologia, a

explicação dos fenômenos intelectuais foi trazido ao plano corpóreo, com a atividade cerebral

em particular e do sistema nervoso central em geral649; assim a atividade intelectual-volitiva

humana se esgota com o esgotamento de seu corpo, não restando qualquer entidade para

sofrer julgamento post mortem.

No que diz respeito ao julgamento divino da conduta humana na terra, a secularização

da moral e da ética, fenômeno concomitantemente observado no que diz respeito ao Estado,

tem suplantado a necessidade do Deus julgador e colocado em seu lugar a noção de liberdade

como um direito universal dos homens.

A esse respeito, o filósofo estadunidense Daniel Clement Dennett não descobriu

“nenhuma evidência que sustente a alegação de que as pessoas, religiosas ou não, que não

acreditam na recompensa no céu e/ou não punição no inferno têm mais propensão a matar,

645 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 68. 646 HUME, David. Dialogues concerning natural religion. 10. ed. Disponível em: <http://www.gutenberg.org/dirs/etext03/dlgnr10.txt>. Acesso em: 22 out. 2008. 647 PLATÃO. Phaedo. Disponível em: <http://classics.mit.edu/Plato/phaedo.1b.txt>. Acesso em: 28 out. 2008. 648 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 69. 649 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 69.

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estuprar, roubar ou quebrar suas promessas do que as pessoas que acreditam”650. Afirma que

“a população carcerária nos Estados Unidos é formado651 por católicos, protestantes, judeus,

muçulmanos e outros – inclusive os sem afiliação religiosa –, representados mais ou menos da

mesma proporção eu na população em geral”652.

À esses argumentos contrários a existência de qualquer ente divino, Hélio Jaguaribe653

adiciona o problema da incompatibilidade entre o homem e Deus; é que, admitida a existência

deste, incorpóreo que é, como essa entidade se relacionaria com o corpo? Não resta dúvida,

pela já mencionada situação atual da psicologia e da biologia, que o fenômeno da consciência

e da atividade intelectual encontra suporte no meio material corpóreo, o qual não se presta a

receber informações que não através dos sentidos.

Para Jaguaribe654, em solução a este problema é que os gregos conceberam aquilo que

ficou conhecido como psyché – a alma, que possuiria alguma substância material e que

interagiria com o corpo humano. Mas apenas transfere-se o problema: como a psyché se

comunicaria com Deus?

Jaguaribe vê ainda algo de contraditório na natureza absoluta de Deus; afirma que “um

ser absoluto só pode atuar se auto-contemplando”655, de modo que a criação de um mundo

contingente “equivale, para Deus, a fabricar um brinquedo para se divertir” – em frontal

descompasso com essa condição divina de ser absoluto. Seria ainda contrária à onipotência e

onisciência de Deus a criação de seres que sabidamente cairão em “danação eterna”656, como

argumentado por Hume.

Vê-se que as características de Deus são incompatíveis com o mundo, com os homens

e com a natureza. Nesse sentido é que o alemão Ludwig Feuerbach assevera que Deus é

650 DENNETT, Daniel Clement. Quebrando o encanto, p. 296. 651 Possivelmente erro de tradução, onde se lê “formado” leia-se “formada” 652 DENNETT, Daniel Clement. Quebrando o encanto, p. 296. 653 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 70-72. 654 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 70. 655 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 71. 656 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 71.

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somente uma “concepção histórica”657, mera criação do homem, e que não pode ter lugar

senão na consciência humana.

Assim é que se apresenta o problema da existência ou mesmo da necessidade de Deus,

uma vez que a religião “[..] não pode nos oferecer nem a verdade real, que depende do

reconhecimento das determinações estabelecidas pela natureza, nem a boa convenção, que

deriva da afirmação do poder da autonomia humana”658.

Entre os teístas e os ateístas pode-se localizar ainda situação intermediária, na qual o

indivíduo, se não pode provar a existência de Deus, tampouco pode provar sua inexistência. É

o agnosticismo, movimento a que se perfilham os agnósticos, e que prescreve posição na qual

se refutam argumentos que não podem ser adquiridos e demonstrados pela razão, sem se

perquirir as questões de natureza metafísica – inúteis, pois que tratam de realidades

incognoscíveis659.

Alguns, por outro lado, são tão ou mais fervorosos defensores da inexistência de Deus

do que aqueles que o aceitam; pode-se citar como exemplo o filósofo alemão Friedrich

Wilhelm Nietzsche, para quem, “em qualquer lugar em que até agora se tenha manifestado na

terra a neurose religiosa, vamos encontrá-la ligada a três perigosas prescrições dietéticas: a

solidão, o jejum e a castidade”660; continua dizendo que a religião atua através do que chamou

de “a escada da crueldade religiosa”661, exigindo sacrifícios que classificou em degraus:

primeiro eram objeto de sacrifício os próprios homens, depois seus sentimentos ou instintos –

e agora é chegada a hora de sacrificar-se o próprio Deus662.

Para Espinosa, na visão de Marilena Chauí, é a carência do conhecimento que resulta

na aceitação da religião, por ele identificada através do milagre:

simplesmente porque algo lhe parece insólito, por não tê-lo visto antes e por trazer-lhe algum benefício, o apetite do vulgar transforma sua própria ignorância em prova do potencial providencial, mormente se o

657 FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 208. 658 GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião, p. 418. 659 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 660 NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 75. 661 NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal, p. 80. 662 NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal, p. 80.

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acontecimento parecer uma ruptura da ordem natural. Assim, a crença no milagre põe no exterior o que é apenas experiência interior do não identificado, transformando em fato o que é carência de conhecimento663.

Olga de Sá revela que para Freud a crença religiosa era interpretada como “uma

espécie de neurose social. Seria a sobrevivência, na vida adulta, do sentimento de desamparo

da criança, uma ilusão muito próxima ao delírio”664. Continua dizendo que, para Freud, três

poderes sempre se opuseram ao poder da ciência: “a arte, a filosofia e a religião. Mas só a

religião representa um perigo real. A arte é inofensiva, a filosofia não atinge as grandes

massas humanas. A religião, porém, age poderosamente sobre as emoções. E embora todas

sejam ilusão, a pior delas é o Catolicismo”665.

Para Freud, segundo Olga de Sá, a religião era ilusão – não um erro, pois insuscetíveis

de provas: “ninguém pode provar que sejam verdadeiras, nem falsas. Também não pode ser

refutadas. Como ninguém pode ser forçado a crer, também ninguém pode ser forçado a não

crer”666.

A visão de Freud, apesar de crítica com relação à Igreja Católica, deixa transparecer a

preocupação com a liberdade religiosa do indivíduo, contrapondo-se à qualquer idéia de

imposição de crença – ou mesmo da ausência de qualquer crença. Contrapõe-se frontalmente

ao fanatismo religioso, justamente por reconhecer que não se pode, através de simplificação

maniqueísta inaplicável ao fenômeno de que se trata, qualificar as religiões como certas ou

erradas.

Fanatismo religioso, na concepção do escritor israelense Amós Oz, é característica dos

religiosos “que acreditam que o fim, qualquer fim, justifica os meios”667. Pondera ainda que

“apenas os moderados de cada sociedade são capazes de conter os fundamentalistas. O Islã

moderado é a única força que pode conter o Islã fanático. O nacionalismo moderado é o único

poder capaz de frear o nacionalismo fanático, no Oriente Médio e em qualquer lugar”668.

663 CHAUÍ, Marilena de Souza. Nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 195. 664 SÁ, Olga de. Freud, “um judeu sem Deus”. In: ANSPACH, Sílvia (Org.). A religião e a psique: psicanálise, psicologia analítica, psiquiatria x religião e teologia. Belo Horizonte: Tânia Diniz, 2005, p. 39. 665 SÁ, Olga de. Freud, “um judeu sem Deus”. In: ANSPACH, Sílvia (Org.). A religião e a psique, p. 39. 666 SÁ, Olga de. Freud, “um judeu sem Deus”. In: ANSPACH, Sílvia (Org.). A religião e a psique, p. 44. 667 OZ, Amós. Contra o fanatismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 14. 668 OZ, Amós. Contra o fanatismo, p. 17.

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Na mesma senda dos religiosos fanáticos que não aceitam e não entendem posições

que não se alinhem com as suas, baseadas no ser supremo, parecem estar se encaminhando

alguns ateus fanáticos, que por sua vez refutam quaisquer condutas ou convicções daquela

maneira formadas. Tanto um aspecto do extremo quanto o outro são indesejáveis na medida

em que não conduzem à uma situação na qual se preza a liberdade.

Para Boris Fausto, “ter ou não ter fé são decisões igualmente respeitáveis, sem

superioridade de uma em relação à outra”669. Essa situação de respeito é por Isaiah Berlin

definida em sua obra “Limites da Utopia”, citado por Fausto, que consiste na evolução da

tolerância: é o pluralismo, conseqüência da liberdade religiosa, que consiste no

reconhecimento de que indivíduos diversos podem ter opiniões diferentes acerca do mesmo

assunto e, ainda assim, estarem todos certos.

Bobbio, em se tratando de respeito e tolerância, já assinalava: “creio firmemente em

minha verdade, mas penso que devo obedecer a um princípio moral absoluto: o respeito à

pessoa alheia”670.

4.1.5 Religião e ciência

Das concepções analisadas nas seções anteriores, a referência à investigação da

religião pela ciência e mesmo a diferenciação das duas encontrou lugar mais de uma vez;

trata-se, na verdade, de questão que se apresenta com grande freqüência e com diversas

perspectivas; Émile Durkheim é quem coloca de maneira mais apropriada a questão que se

impõe quando confrontadas religião e ciência:

A maioria dos homens continua a crer que existe nele [no mundo da vida religiosa] uma ordem de coisas na qual o espírito só pode penetrar por vias muito especiais. Daí as fortes resistências encontradas sempre que se tenta tratar cientificamente os fenômenos religiosos e morais. Mas, a despeito das oposições, as tentativas se repetem e essa persistência mesma permite prever que essa última barreira acabará por ceder e que a ciência se estabelecerá soberana mesmo nessa região reservada. Nisso consiste o conflito da ciência e da religião. É comum fazer-se uma idéia inexata a respeito. Diz-se que a ciência nega a religião em princípio. Mas a religião existe, é um sistema de fatos dados; em uma palavra, é uma realidade. Como poderia a ciência negar uma realidade? Além do mais, enquanto a religião é ação, enquanto é um

669 FAUSTO, Boris. A ditadura do relativismo. Folha de São Paulo. Opinião. São Paulo, 12 maio 2005. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1205200509.htm>. Acesso em: 30 out. 2008. 670 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 208.

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meio de fazer viver os homens, a ciência não poderia ser considerada tal, pois, mesmo exprimindo a vida, na a cria; ela pode perfeitamente procurar explicar a fé, mas, por isso mesmo, a supõe. Assim, não há conflito a não ser num ponto limitado. Das duas funções que a religião primitivamente cumpria, existe uma, mas uma só, que tende cada vez mais a lhe escapar: a função especulativa. O que a ciência contesta à religião não é o direito de existir, é o direito de dogmatizar sobre a natureza das coisas, é espécie de competência especial que ela se atribuía para conhecer o homem e o mundo. Na verdade, a religião não conhece a si mesma. Não sabe do que ela é feita, nem a quais necessidades responde. Longe de poder ditar a lei à ciência, ela própria é objeto de ciência671!

Segundo Rubem Alves672, a distanciação entre o conhecimento científico e a

experiência religiosa se dá pelo fato de que não é necessário que o cientista tenha

envolvimento com o objeto de seu estudo para que possa compreendê-lo – sendo para tanto

suficiente a aplicação do método científico.

A partir da questão proposta por Durkheim e da ponderação de Rubem Alves, pode-se

concluir que a utilização da sociologia ou de qualquer outro ramo do conhecimento científico

para a investigação da religião deve ser baseada em duas proposições:

Num primeiro momento, não pode o cientista olvidar do fato que o fenômeno religioso

e todas as suas características como a fé, a crença, os coisas sagradas e os mitos de fato

existem como manifestação cultural humana, não se lhes cabendo juízos de valor – ou seja,

não cabe ao investigador científicos buscar descobrir qual a religião por assim dizer certa ou

mesmo se existirá tal religião, pois que para cada indivíduo religioso existirá uma e somente

uma religião certa: a sua própria. Não fosse assim, não seria esse um indivíduo propriamente

religioso; cada uma das diferentes religiões pressupõe a aceitação de seus dogmas

particulares, ainda que não expresse tal fato de maneira clara, caso do espiritismo kardecista e

da maçonaria.

Por outro lado, e num segundo momento, deve ser enfatizado que as meditações e

construções religiosas, que culminarão em suas visões de mundo e em seus dogmas, são

baseadas quase em sua totalidade em fenômenos que não podem ser satisfatoriamente

explicados ou descritos pela ciência – pelo menos no estágio em que se encontra a ciência.

671 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 476-477. 672 ALVES, Rubem. O que é religião, p. 10.

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Detalhes que outrora não podiam ser explicados pela investigação científica já foram

questões religiosas fundamentais– mas que com a evolução daquela e sua desmistificação

perderam essa relevância para o fenômeno religioso, numa construção cultural em que o

conteúdo dos mitos, ou daquilo que e sagrado, vai sendo substituído na medida em que os

paradigmas da religião vão sendo superados. Precisamente por esse motivo, ao tentar

desqualificar a religião pela tentativa de descrever cientificamente todos os fenômenos que

fazem parte da religiosidade, a ciência fatalmente sucumbirá.

É que a ciência não é uma panacéia através da qual o homem pode prescindir do

conteúdo das experiências artísticas, religiosas ou afetuosas para preservar sua existência

como ser humano; a ciência ou a filosofia podem explicar como se manifesta a arte, a religião

ou o amor, mas não podem substituir sua manifestação em si.

Nesse sentido é a conclusão de Hervieu-Léger, citada por Giumbelli: “[...] em um

certo sentido, a ciência social seria sempre ‘contra a religião’”673 – é que a sociedade depende

cada vez menos da religião, por conta do avanço do conhecimento científico e a conseqüente

suplantação da religião, lenta e gradual. Perspicaz, o filósofo e poeta estadunidense Ralph

Waldo Emerson, citado por Richard Dawkins, aponta: “a religião de uma era é o

entretenimento literário da seguinte”674.

4.1.6 Igreja e poder

Rubem Alves não concebe a idéia ou a razão como essência da religião, mas a força

que o religioso adquire com sua experiência religiosa; para Rubem Alves, “o fiel que entrou

em comunhão com o seu Deus não é meramente um homem que vê novas verdades que o

descrente ignora. Ele se tornou mais forte. Ele sente, dentro de si, mais força, seja para

suportar os sofrimentos da existência, seja para vencê-los”675.

Com essa potencialidade de imprimir força no indivíduo religioso, Rubem Alves vê

algo de ambivalente na religião: “ela se presta a objetivos opostos, tudo dependendo daqueles

673 GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião, p. 425. 674 DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 55. 675 ALVES, Rubem. O que é religião, p. 64.

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que manipulam os símbolos sagrados. Ela pode ser usada para iluminar ou para cegar, para

fazer voar ou paralisar, para dar coragem ou atemorizar, para libertar ou escravizar”676.

Precisamente pela ambivalência da religião é que essa torna-se terreno fértil para

manipulações e paternalismo – fenômeno apontado por Kant e Isaiah Berlin no que diz

respeito ao Estado – que tomam tanto mais vulto quanto maior a Igreja em questão, haja vista

tratar-se de fenômeno de massa.

Karl Marx vai mais longe quando, citado por Rubem Alves, “antevê o fim da

religião”677. Segundo Marx, a religião só prospera em ambiente marcado pela alienação. E

segue dizendo: “Desaparecida a alienação, numa sociedade livre, em que não haja opressores,

não importa que sejam capitalistas, burocratas ou quem quer que ostente algum sinal de

superioridade hierárquica, desaparecerá também a religião. A religião é fruto da alienação”678.

Nesse sentido é que a religião desponta como importante fator de poder, entendido

este como, de acordo com Botelho, a “possibilidade de imposição de arbítrio por parte de um

sujeito sobre o comportamento ou a conduta de outros indivíduos membro da sociedade”679.

Justamente por se tratar da relação de poder entre indivíduos, relação na qual alguns

determinam o comportamento de outros, é mais apropriado se falar em Igreja e poder – em

contraposição ao uso de Religião e poder.

4.1.7 Igreja e Estado

Foge ao escopo deste trabalho a investigação mais detalhada acerca do que

compreende o termo Estado, motivo pelo qual adota-se a proposição de Alexandre Botelho,

para quem aquele pode ser definido como “o agrupamento de indivíduos politicamente

organizados, ocupando em caráter permanente um território independente de controle externo

e possuindo um governo organizado a quem a população deve obediência”680.

676 ALVES, Rubem. O que é religião, p. 106. 677 ALVES, Rubem. O que é religião, p. 82. 678 ALVES, Rubem. O que é religião, p. 82. 679 BOTELHO, Alexandre. Curso de ciência política, p. 29. 680 BOTELHO, Alexandre. Curso de ciência política, p. 152.

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Percebe-se que a relação entre Igreja e Estado tem um universo de investigação menor

do que aquele compreendido no estudo da relação entre Igreja e poder; aquele limitará a

investigação a um Estado determinado, ao passo em que esse possibilita sua expansão a todos

os seres humanos objeto da influência da Igreja em questão.

Os deslocamentos do Estado no tempo681 permitem concluir que a concepção

contemporânea do termo importa no reconhecimento de uma característica importante: a

sujeição do Estado ao direito; segundo Botelho, “Estado de Direito é o que se subordina ao

direito, vale dizer, que se sujeita às normas jurídicas reguladoras de sua ação”682.

Elías Díaz vê quatro caracteres ou elementos do Estado que o qualificam como

submetido ao direito, ou seja, quatro características do Estado de Direito: a) o império da lei,

aplicável a governantes e governados; b) a divisão ou diferenciação dos poderes, em

executivo, legislativo e judiciário; c) a fiscalização da administração; e d) proteção dos

direitos fundamentais683.

É de se mencionar ainda que, como quer Habermas684, é na proteção dos direitos

fundamentais que se legitima o próprio Estado, na sua concepção política da fundamentação

do direito.

No que diz respeito à relação entre o Estado e a Igreja, José Afonso da Silva685

observa três sistemas: a confusão, a união e a separação.

Na confusão, Estado e Igreja não se distinguem, são a mesma coisa; é o Estado

teocrático, como o Vaticano e os Estados islâmicos” 686. Os representantes do Estado são, ao

mesmo tempo, os representantes da Igreja, no que toda a atividade política do governo é

orientada pela visão da Igreja, suplantando qualquer possibilidade de liberdade religiosa.

Rui Barbosa colocava-se como feroz crítico dessa influência recebida pelo Estado da

Igreja: “o catolicismo romano inverte, subverte essa noção essencial do Estado, sua situação,

681 BOTELHO, Alexandre. Curso de ciência política, p. 153-175. 682 BOTELHO, Alexandre. Curso de ciência política, p. 169. 683 DÍAZ, Elías. Estado de derecho y derechos humanos. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 11, n. 1, p. 09-25, jan.-jun. 2006, p. 14-15. 684 Ver seção “Fundamentação dos direitos fundamentais”, neste trabalho. 685 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 249. 686 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 250.

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suas funções, seus direitos. Sotopõe-no à Igreja, como uma esfera inferior, subordinada, o que

o molde eclesiástico impõe a forma, os limites, o movimento”687; ao mesmo tempo opunha-se

à proteção de uma Igreja específica pelo Estado: “A história dos dezoito séculos cristãos é

uma longa demonstração do maléfico efeito da protecção do Estado sobre o cristianismo”688.

Já na relação entre Estado e Igreja pautada pela união, há relações jurídicas que

mantém as duas entidades ligadas, mas com relativa independência – é o caso do Brasil na

época do Império, situação na qual, por exemplo, representantes do Estado designavam

ministros religiosos689.

Luís Mir, com uma leitura bastante crítica, vê tanto na confusão quanto na união

fenômenos a serem evitados:

As duas instituições religiosas monoteístas milenares, catolicismo e islamismo, foram, são, serão enquanto durarem instrumentos do exercício da força. Ora ligadas ao Estado, ora se interpondo como Estado, continuamente vistas como consortes na posse dos corpos e mentes. Essa religiosidade materializada em Estado molda toda a identidade do povo (étnica, social e cultural), criando um mundo monista e amorfo. Faz com que este se sinta portador da verdade única, do deus único, da salvação. Essa leitura exclusiva da verdade leva ao confronto entre os povos, entre crenças, guerras religiosas sangrentas, uma constância nos fenômenos religiosos. É uma vulgata interrogar-se sobre alguma catástrofe da história ocidental onde não esteja presente o cristianismo ou em que ele não tenha sido o coração da vicissitude totalitária690.

Finalmente, no sistema da separação entre Estado e Igreja, um não logra interferir nos

assuntos do outro, com total independência entre as instituições. É, nas palavras de Rui

Barbosa, o único capaz de permitir ao Estado a consecução de seus fins: “a autonomia do

Estado, no seio da civilização progressista e leiga do ocidente, é, nas constituições políticas

hodiernas, a idéia prima, a lei fundamental. Acima dele não existe, não deve existir nenhum

poder”691. É exemplo deste sistema o inaugurado pela Constituição de 1891, com o advento

da República, e mantido até a ordem constitucional vigente.

687 BARBOSA, Rui. Teoria política, p. 17. 688 BARBOSA, Rui. Teoria política, p. 214. 689 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 250. 690 MIR, Luís. Partido de deus: fé, poder e política. São Paulo: Alaúde, 2007, p. 33-34. 691 BARBOSA, Rui. Teoria política, p. 16.

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Para Chaïm Perelman, esse processo de separação entre Estado e Igreja, ou de

secularização do Estado, que “propõe como finalidade do direito o estabelecimento de uma

ordem social que assegure aos membros da comunidade política uma coexistência pacífica,

sejam quais forem suas concepções religiosas”692, é fundamento do pluralismo religioso e,

assim, da própria liberdade religiosa.

Para Emerson Giumbelli, “o prestígio das teses da ‘secularização’ parece ter se

acompanhado da idéia ou da impressão de que religião e modernidade são essencialmente

opostas. Devido a isso, a modernidade tende a ser vista como um período ou como um

imperativo de limitação da religião, cujo auge encontraremos outrora ou alhures”693.

Assim, no mesmo passo da visão de Luís Mir, Emerson Giumbelli vê na sociedade

contemporânea o ápice da valorização da separação entre Estado e Igreja; ainda que tenham

objetivos semelhantes, o primeiro deve, para preservar a dignidade da pessoa humana,

oferecer aos indivíduos a possibilidade de optar pela religião que melhor lhe aprouver.

Se o indivíduo é dotado da liberdade de escolha da sua fé, possibilitando-lhe mesmo a

negação de qualquer fé religiosa, qualquer interferência da Igreja que venha a impor a todos

os indivíduos do Estado determinado preceito da fé que professe, feriria a liberdade religiosa

na qual se funda o próprio Estado.

4.1.8 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a Igreja

Na linha da separação identificada por José Afonso da Silva, a CRFB/1988 dispõe:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público694.

692 PERELMAN, Chaim. Ética e direito, p. 315. 693 GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo: Attar Editorial, 2002, p. 413. 694 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 16 out. 2008.

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Pontes de Miranda, citado por José Afonso da silva, é quem esclarece os núcleos das

prescrições do referido inciso:

Estabelecer cultos religiosos está em sentido amplo: criar religiões ou seitas, ou fazer igrejas ou quaisquer pontos de prática religiosa, ou propaganda. Subvencionar cultos religiosos está no sentido de concorrer, com dinheiro ou outros bens da entidade estatal, para que se exerça a atividade religiosa. Embaraçar o exercício dos cultos religiosos significa vedar, ou dificultar, limitar ou restringir a prática, psíquica ou material, de atos religiosos ou manifestações de pensamento religioso695.

Nesse sentido, de evitar embaraços infligidos por via tributária, é que a Constituição

prevê, na alínea b do inciso VI do art. 150, a imunidade tributária aos templos de qualquer

culto696.

Para promover a colaboração de que trata o artigo 19 da Constituição de 1988, esta

prevê ainda, em seu artigo 213, a possibilidade de destinação de recursos públicos à escolas

confessionais, desde que comprovadas sua finalidade não lucrativa (com aplicação de

eventual excedente financeiro em educação) e assegurada a destinação de seu patrimônio à

entidades de mesma natureza, no caso de encerramento de suas atividades697.

É assegurada ainda, por força do inciso VII do artigo 5° da Constituição de 1988, “nos

termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação

coletiva”698. Assim, no dizer de Alexandre de Moraes, cabe ao Estado, “nos termos da lei, a

materialização das condições para a prestação dessa assistência religiosa, que deverá ser

multiforme, ou seja, de tantos credos quanto aqueles solicitados pelos internos”699.

O ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental, por sua vez, será de

oferecimento obrigatório, mas de matrícula facultativa, nos termos do § 1° do artigo 210 da

Constituição de 1988700; José Afonso da Silva aponta que não é matéria que demande provas

695 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 252. 696 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 16 out. 2008. 697 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 16 out. 2008. 698 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 16 out. 2008. 699 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 77. 700 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 16 out. 2008.

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ou possa causar reprovação dos alunos, ressaltando ainda que as escolas privadas podem

adotar o ensino religioso da maneira que melhor lhes aprouver – “desde que não imponham

determinada confissão religiosa a quem não o queira”701.

No que diz respeito ao casamento, ao qual se lhe atribui natureza civil, se confere

efeito civil ao casamento religioso, a teor dos parágrafos 1° e 2° do art. 226 da Constituição

de 1988, ressalvadas as disposições legais702.

4.2 CRISTIANISMO

Nas seções anteriores deste capítulo o objeto do estudo era a religião como fenômeno

humano, suas manifestações e suas interações com outras formas de organização, como o

Estado – mas analisados de maneira geral, sem a observação de uma religião ou igreja em

particular.

Na medida em que objeto de análise do próximo capítulo é a influência da Igreja

Católica em determinado processo tramitando no STF, cabe agora investigar essa religião

específica de que se trata para que o leitor possa, com base teórica sólida, acompanhar a

construção que será erguida em torno do problema que se põe. Num primeiro momento se

analisa o cristianismo de maneira geral, para depois se analisar a Igreja Católica em particular.

Segundo a própria doutrina católica703, o cristianismo é religião baseada na doutrina de

Jesus de Nazaré, doutrina esta contida nos evangelhos704 reunidos no Novo Testamento;

surgiu no século I como uma seita do judaísmo – com a qual partilha ainda textos sagrados,

reunidos estes no Antigo Testamento. À união dos dois textos dá-se o nome de Sagrada

Escritura705.

701 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 252. 702 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 16 out. 2008. 703 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 27-46. 704 De forma geral, pode ser entendido como uma doutrina ou um conjunto de preceitos por que se regula uma seita. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0. 705 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 43-46.

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O cristianismo não foi uma religião imediatamente revelada, como ocorreu com as

outras grandes três monoteístas, aponta Hélio Jaguaribe706; Jesus não se apresentou

anunciando uma nova religião. Pregava uma nova “prática ética”707, ou uma “doutrina

independente”708 com relação às escrituras judaicas; na única passagem em que ele mesmo

abordou sua qualidade de Cristo, interrogado por Caifás, tergiversou: “E o sumo sacerdote

disse-lhe: Eu te conjuro por Deus vivo que nos dias se tu és o Cristo, o Filho de Deus. Jesus

respondeu-lhe: Tu o disseste”709.

Jesus utilizava a palavra hebraica aba, ou pai, para se referir a Deus – em uso não

comum nos círculos judaicos da época710. Segundo Gaardner, “Jesus se refere a si mesmo

como Filho, ou Filho de Deus, em particular no Evangelho de São João. É bem claro que aqui

esse nome tenciona conotar a unidade entre Jesus e Deus”711.

Em que pese sua auto proclamada condição divina, e “embora, segundo os evangelhos,

em várias ocasiões Jesus tenha admitido ser o Messias, há provas de que ele não usava esse

título para falar de si mesmo”712. Somente após a ressurreição de Jesus é que Pedro e os

apóstolos se convenceram que se tratava de Cristo, filho de Deus, enviado para revelar uma

nova religião713.

O passo decisivo para a formação do cristianismo como religião, segundo Hélio

Jaguaribe714, seria a conversão de Paulo, homem de excelente formação cultural que enfim

apontou o cristianismo como proposta religiosa, ao passo que sua adoção por Constantino,

através do édito de Milão em 313, equivalia a lhe tornar a religião do Império Romano – o

que aconteceria somente em 380, com édito de Teodósio.

706 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 82. 707 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 82. 708 GAARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 154. 709 BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de Padre Matos Soares. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 1.092-1.093. 710 GAARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, p. 156. 711 GAARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, p. 156. 712 GAARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, p. 155. 713 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 280-285. 714 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 83.

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Hélio Jaguaribe aponta três fatores como preponderantes para a consolidação do

cristianismo como religião: “(1) a imensa e amplíssima demanda, na Antigüidade Tardia[715],

de um princípio de salvação pessoal, (2) a reestruturação dogmática do Cristianismo pela

patrística[716] e (3) as circunstâncias externas que favoreceram a religião”717.

Segundo Hélio Jaguaribe, “o cristianismo contemporâneo se encontra repartido entre

três grandes ramos: o Ortodoxo, o Protestante e o Católico”718. O Ortodoxo, surgido de

disputa de poder entre o Patriarca de Constantinopla719 e o Bispo de Roma, foi ainda levado

por missionários para os povos eslavos. É a religião dominante hoje em países como Grécia,

Finlândia e Rússia, além da quase totalidade dos que se situem no leste europeu, área de

influência da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas720.

Para Jaguaribe, “o ramo protestante, nascido da reforma de Lutero, se subdividiu em

numerosas seitas e se tornou predominante nos mundos germânico e britânico e, por

decorrência, nos Estados Unidos”721. Continua dizendo que “o protestantismo apresenta

poucas diferenças em relação ao catolicismo, a principal sendo a substituição da autoridade do

papa pela do Rei da Inglaterra, desde Henrique VIII”722, e que o protestantismo britânico é

conhecido ainda como anglicanismo.

Por sua vez, o Cristianismo Católico “manteve posições importantes no mundo

germânico e no sul dos Países Baixos, hoje Bélgica, sendo massivamente predominante em

todos os países latinos e tendo significativa presença da África”723. Apresenta ainda como

nota distintiva em relação aos outros, atualmente, “uma crescente preocupação com as

questões sociais. Em alguns casos, como na Teologia da Libertação, na América Latina, é

significativa a influência do marxismo e uma certa fusão com este”724.

715 Período de transição entre a antigüidade clássica e a idade média, usualmente aceito como entre 300-600. 716 Movimento de interpretação do Cristianismo segundo conceitos da filosofia grega e que teve como principais expoentes São Justino Mártir, Santo Agostinho, Clemente Alexandrino e Boécio. Seu legado foi a escolástica. 717 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 87. 718 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 89. 719 Hoje Istambul, na Turquia. 720 GAARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, p. 180. 721 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 89. 722 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 89. 723 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 90. 724 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 90.

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Para Hélio Jaguaribe, “o cristianismo é uma das mais inacreditáveis ocorrências da

história. A partir de um conjunto de premissas teleológica e filosoficamente absurdas

emergiram essa extraordinária religião, que é o Cristianismo e essa extraordinária civilização,

que á a Ocidental”725. Sustenta como racionalmente absurdas os dogmas da Santíssima

Trindade, que concebe em um único Deus três pessoas distintas, e do Cristo, que atribui a

Jesus natureza concomitante de humano e divino.

Jaguaribe nota que “as outras três religiões monoteístas, a Persa, de Zaratustra, a

Judaica, de Moisés e a Muçulmana, de Maomé, não contém inerentemente premissas

absurdas”726, exceto pela infinita bondade, onisciência e onipotência de Deus, compartilhadas

com o cristianismo e que já foram objeto de rápida análise nas seções anteriores.

Ainda no que diz respeito à crítica ao cristianismo, “a mais funesta das presunções”727,

Nietzsche aponta que tem por valores “quebrar os fortes, debilitar as grandes esperanças,

tornar suspeita a felicidade da beleza, converter tudo o que é soberano”728, até tornar o homem

num “sublime aborto”729.

4.3 CATOLICISMO E IGREJA CATÓLICA

Segundo a própria doutrina da Igreja Católica,

A palavra ‘Igreja’ significa ‘convocação’. Designa a assembléia daqueles que a Palavra de Deus convoca para formarem o Povo de Deus e que, alimentados pelo Corpo de Cristo, se tornam Corpo de Cristo. A Igreja é ao mesmo tempo caminho e finalidade do desígnio de Deus: prefigurada na criação, preparada na Antiga Aliança, fundada pelas palavras e atos de Jesus Cristo, realizada por sua Cruz redentora e por sua Ressurreição, ela é manifestada como mistério de salvação pela efusão do Espírito Santo. Será consumada na glória do céu como assembléia de todos os resgatados da terra. A Igreja é ao mesmo tempo visível e espiritual, sociedade hierárquica e Corpo Místico de Cristo. Ela é uma, formada de um elemento humano e um elemento divino. Somente a fé pode acolher este mistério. A Igreja é no

725 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 81. 726 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 82. 727 NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal, p. 87. 728 NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal, p. 87. 729 NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal, p. 87.

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mundo presente o sacramento da salvação, o sinal e o instrumento da comunhão de Deus e dos homens730.

No que diz respeito à sua denominação completa, qual seja, Igreja Católica Apostólica

Romana, a Igreja é católica em duplo sentido, pois enviada por Deus, através do Cristo, à

universalidade do gênero humano e “porque nela Cristo está presente”731; é apostólica “por

ser fundada sobre os apóstolos”732; e é romana pois tem sede no Vaticano, cidade-Estado

circunscrita em Roma.

Segundo Gaardner733, a Igreja Católica é uma organização com estrutura rígida e cuja

hierarquia é formada pelo papa, pelos bispos e pelos padres; é ainda a maior de todas as

igrejas do ocidente, reunido mais de um bilhão de fiéis pelo mundo, em dados de 2004734

publicados pela Santa Sé735.

Hélio Jaguaribe atribui à Igreja Católica dupla função: “por um lado, de portadora do

dogma e dos instrumentos da Graça, que são os sacramentos e, por outro lado, de agência

temporal do Cristianismo”736.

O papa, sumo pontífice da Igreja Católica, ocupa a mais alta posição hierárquica de

sua igreja baseado no reconhecimento que tem pelos fiéis de que se trata do sucessor de

Pedro, o apóstolo737.

Rubem Alves aponta como erro fundamental da Igreja Católica o deslocamento da

autoridade do texto sagrado (princípio protestante conhecido como sola scriptura) para a

pessoa do sumo pontífice, atitude na qual os católicos reconhecem a infalibilidade papal como

730 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica. 9. ed. São Paulo: Loyola, 1999, p. 223-224. 731 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 239. 732 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 246. 733 GAARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, p. 181-182. 734 SANTA SÉ. Annuarium Statisticum Ecclesiae 2004. L’Osservatore Romano. Vaticano, 14 jul. 2005. Disponível em: <http://www.ewtn.com/library/CHISTORY/annu2004.htm>. Acesso em: 31 out. 2008. 735 O cânone n. 361 do Código de Direito Canônico de 1983, promulgado pelo Papa João Paulo II, trata da Santa Sé: “Com o nome de Sé Apostólica ou Santa Sé designam-se neste Código não só o Romano Pontífice, mas ainda, a não ser que por natureza das coisas ou do contexto outra coisa se deduza, a Secretaria de Estado, o Conselho para os negócios públicos da Igreja, e os demais Organismos da Cúria Romana”. É a Santa Sé o sujeito de direito internacional que estabelece relações com os Estados. Cf. SANTA SÉ. Código de Direito Canônico. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/cdc/index_po.htm>. Acesso em: 5 nov. 2008. 736 JAGUARIBE, Hélio. Breve ensaio sobre o homem e outros estudos, p. 88. 737 GAARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, p. 182.

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dogma738. Aponta ainda o que considera erros secundários da Igreja Católica e conseqüentes

daquele erro fundamental questões como a mediação dos santos, o uso idólatra de imagens, a

mediação sacerdotal, a confissão auricular, a frouxidão moral e outros – todos resultado “de

um único passo em falso: subordinação das Escrituras às mediações da tradição e do

magistério eclesial”739.

Segundo Gaardner, os bispos, nos passos do papa, seguem os apóstolos; sua ordenação

pela imposição das mãos é tradição que se mantém até hoje. Suas principais funções são

auxiliar o papa – ele mesmo um bispo, o bispo de Roma – na direção da Igreja e a ordenação

dos padres740.

Os padres, uma vez investidos dos poderes próprios pelos bispos – ou assim ditos

ordenados, dirigirão suas paróquias, administrando os sacramentos e pregando a palavra de

Deus aos fiéis, devendo dedicar suas vidas a “Deus, à Igreja e à humanidade”741.

Os sacramentos, por sua vez, “são os sinais visíveis de que Deus concede sua graça

aos humanos”742. A Igreja Católica é a portadora de sete sacramentos743: 1) o batismo, através

do qual a criança recebe a graça e inicia nova vida744; 2) a confirmação ou crisma, pelo qual a

pessoa que já detém maior conhecimento acerca da doutrina católica reafirma sua fé e torna

mais sólida sua vinculação com a Igreja745; 3) a eucaristia, parte do serviço divino no qual o

comungante recebe pão e vinho (modernamente substituídos pela hóstia) transubstanciados no

corpo e sangue de Cristo746; 4) a penitência, consistente na confissão, absolvição e atos de

contrição747; 5) a unção dos enfermos, destinada a prover aos enfermos força espiritual748; 6) a

738 ALVES, Rubem. Religião e repressão. São Paulo: Loyola, 2005, p. 291. 739 ALVES, Rubem. Religião e repressão, p. 291. 740 GAARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, p. 182. 741 GAARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, p. 183. 742 GAARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, p. 185. 743 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 314. 744 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 354. 745 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 364. 746 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 389-390. 747 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 410. 748 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 419.

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ordenação, pelo qual a pessoa que o recebe pode administrar os sacramentos749; e 7) o

matrimônio, união indissolúvel de noivo e noiva em votos mútuos para uma vida comum750.

Há ainda os sacramentais, meios não introduzidos por Jesus dos quais lança mão a

Igreja para implorar as bênçãos de Deus: são símbolos, cerimônias ou objetos sagrados, tais

como rosários, crucifixos, água-benta, velas e outros751.

4.4 IGREJA CATÓLICA NO BRASIL: DESLOCAMENTOS HISTÓRICOS

Segundo a teóloga católica Gisela Anna Büttner Lermen, Dom João III rei de Portugal

escreveu ao primeiro governador-geral do Brasil Tomé de Souza: “a principal causa que me

levou a povoar o Brasil foi que a gente do Brasil se convertesse a nossa santa fé católica”752.

Segundo Lermen, essa “conquista da America para a fé cristã se caracteriza pela

mentalidade das cruzadas”753, tomando os reis portugueses as navegações como cruzadas, os

índios como gentios e sua conversão como a guerra santa, iniciando o que a autora chama de

primeira fase, evangelizadora754.

4.4.1 Fase da evangelização: o catolicismo patriarcal

Estabeleceu-se assim no Brasil o que Lermen chama de catolicismo patriarcal, criado

“em torno da pessoa do senhor de engenho [...]. O sacerdote lhe era obediente e tornou-se um

padre-capelão a serviço da casa-grande, sem muita ligação com seu bispo nem com seu

povo”755.

Segundo Lermen, nessa fase inicial do catolicismo no período do Brasil colônia, a

religião católica era a oficial e obrigatória para quem quisesse aqui vir morar – somente

católicos poderia possuir terras; “os índios eram ‘pacificados’ pelo batismo e os escravos

749 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 436-437. 750 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da Igreja Católica, p. 454. 751 GAARDNER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, p. 187. 752 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão. Campinas, v. 10, n. 31, p. 113-137, jan./abr. 2005, p. 117. 753 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 117. 754 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 117. 755 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 119.

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africanos era batizados logo após sua chegada”756. A inquisição portuguesa, através do

Tribunal do Santo Ofício de Lisboa velava pela unidade católica do país, tendo condenado

aproximadamente quinhentos brasileiros durante o século XVIII757.

Ante a esse clima de medo, a reação dos brasileiros foi de criar um catolicismo

ostensivo, praticado principalmente em público, de modo a não restar suspeito de qualquer

heresia – o que, somado ao sincretismo oriundo das práticas de cultos africanos, deu origem

ao formalismo típico do catolicismo brasileiro e que tende a tornar a crença católica em

religião esvaziada758.

A obrigatoriedade da fé católica não perdurou somente no período colonial brasileiro:

a esse propósito, a Constituição de 1824 estabelecia em seu artigo 5°: “A Religião Catholica

Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão

permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma

alguma exterior do Templo”759. É exemplo, no dizer de José Afonso da Silva, em

classificação já analisada neste trabalho, de união do Estado e da Igreja.

4.4.2 Fase da expansão: o padroado

A segunda fase do catolicismo no Brasil, para Lermen760, iniciou-se com o Marquês de

Pombal, secretário de Estado do Reino de Portugal durante o reinado de D. José I, e se

estende até a separação entre a Igreja e o Estado em 1890, caracterizando-se pelo regime do

padroado761 e pela expansão da fé católica.

José Afonso da Silva aponta que a separação da Igreja e do Estado deu-se logo antes

da nova ordem constitucional, com o Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, subscrito por

Rui Barbosa. Relata ainda Emanuel de Kadt que tal evento tomou corpo em função de que “as

756 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 120. 757 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 120. 758 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 120-121. 759 BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 17 out. 2008. 760 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 116. 761 Tratado entre os reinos de Portugal e Espanha e a Igreja Católica através do qual esta delegava aos monarcas daqueles a administração e organização da Igreja Católica nos seus respectivos domínios. Seus últimos resquícios foram eliminados pelo Concílio Vaticano II, em 1965.

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novas lideranças do país, quanto isso muito influenciadas pelas idéias positivistas, não viam

utilidade para o Padroado e para tudo o que ele acarretava”762.

Referido Decreto tinha o seguinte teor:

Art. 1º. E' prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas. Art. 2º. a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o exercicio deste decreto. Art. 3º. A liberdade aqui instituida abrange não só os individuos nos actos individuaes, sinão tabem as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituirem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder publico. Art. 4º. Fica extincto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerogativas. Art. 5º. A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade juridica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes á propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o dominio de seus haveres actuaes, bem como dos seus edificios de culto. Art. 6º. O Governo Federal continúa a prover á congrua, sustentação dos actuaes serventuarios do culto catholico e subvencionará por anno as cadeiras dos seminarios; ficando livre a cada Estado o arbitrio de manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes763.

É curioso notar que o Decreto n. 119-A foi expressamente revogado pelo Decreto n.

11 de 18 de janeiro de 1991764, subscrito pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso,

para depois ter sua vigência restabelecida pelo Decreto n. 4.496 de 4 de dezembro de 2002765,

da lavra do mesmo Presidente.

762 KADT, Emanuel de. Católicos radicais no Brasil. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003, p. 87. 763 BRASIL. Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890. Prohibe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em materia religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providencias. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D119-A.htm>. Acesso em: 24 out. 2008. 764 BRASIL. Decreto n. 11, de 18 de janeiro de 1991. Aprova a Estrutura Regimental do Ministério da Justiça e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0011.htm>. Acesso em: 24 out. 2008. 765 BRASIL. Decreto n. 4.496, de 4 de dezembro de 2002. Exclui o Decreto no 119-A, de 7 de janeiro de 1890, do Anexo IV do Decreto no 11, de 18 de janeiro de 1991. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4496.htm>. Acesso em: 24 out. 2008.

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A Constituição de 1891, além de prever as liberdades religiosas já estudadas,

consagrou a separação entre a Igreja e o Estado:

Art. 11 - É vedado aos Estados, como à União: [...] 2 º ) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; [...] Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 4º - A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita. § 5º - Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. § 6º - Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. § 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados766.

Para José Afonso da Silva767, em que pese a separação entre a Igreja e o Estado

constitucionalmente assegurada desde 1891, a relação entre as duas instituições sofreu

pequenos ajustes com a sucessão das ordens constitucionais, passando de uma separação

rígida para uma espécie de colaboração mútua para a consecução dos fins comuns às duas

entidades – como será visto mais adiante neste capítulo na seção que trata da CRFB/1988.

4.4.3 Fase do renascimento: a pluralidade religiosa

Segundo Lermen, a terceira fase, que inicia-se em 1890 com a referida separação da

Igreja e do Estado perdura até o Concílio Vaticano II (1962-1965), caracterizada pelo

renascimento católico e os movimentos de conscientização, tais quais as Juventude Agrária

Católica, a Juventude Estudantil Católica e a Juventude Universitária Católica – assim como

também foi marcada pelo início do pluralismo religioso, em função da incipiente laicidade do

Estado768.

766 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em: 17 out. 2008. 767 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 251. 768 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 116.

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Para Élio Cantalício Serpa, a “implantação do regime republicano, que se dizia laico,

colocou para a Igreja a problemática da sua separação do Estado”769. Nesse sentido, buscando

se fazer presente em toda a federação, a Igreja Católica criou dioceses em todo o país durante

o período de 1889 a 1920770.

Para João Francisco Régis de Morais, o Concílio Vaticano II “procura redefinir a

noção da presença da igreja, entendendo esta última como: a) realidade teológica de salvação

e sinal de Deus no mundo; b) presença visível entre os homens, que assume dimensão

sociológica”771.

4.4.4 Fase desenvolvimentista: a doutrina social

A quarta fase da Igreja Católica no Brasil, iniciada de maneira geral com o Concílio

Vaticano II e em específico com a Conferência do Conselho Episcopal Latino-Americano em

Medellín, no ano de 1968 é de um cunho mais social, de preocupação maior com a pobreza e

o desenvolvimento da América Latina772 - na linha do que havia sucedido, segundo Kevin

Philipps, com o assim chamado Evangelho Social nos anos 1890 nos Estados Unidos773

Para Monsenhor Guerry, a doutrina social da Igreja é

um conjunto de idéias ou concepções (feitas de verdades, de princípios e de valores), que o Magistério vivo fundamenta na lei natural e na Revelação, e que adapta e aplica aos problemas sociais do nosso tempo, a fim de, segundo a maneira própria da Igreja, ajudar os povos e os governantes a organizar uma sociedade mais humana e mais conforme aos desígnios de Deus sobre o mundo774.

Lermen cita documentos publicados pela CELAM/1968, que denunciavam

as imensas injustiças que existem na América Latina e que mantêm a maioria de nossos povos numa dolorosa pobreza, pobreza que, em

769 SERPA, Élio Cantalício. Igreja e poder em Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UFSC, 1997, p. 18. 770 SERPA, Élio Cantalício. Igreja e poder em Santa Catarina, p. 18-19. 771 MORAIS, João Francisco Régis. Os bispos e a política no Brasil, p. 22. 772 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 116-117. 773 PHLLIPS, Kevin. American theocracy: the peril and politics of radical religion, oil, and borrowed Money in the 21st century. Nova Iorque: Penguin, 2007, p. 100. 774 GUERRY, Monsenhor. A doutrina social da igreja: sua actualidade, suas dimensões, sua irradiação. 3. ed. São Paulo: Herder, 1963, p. 18.

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numerosíssimos casos, constitui verdadeira miséria humana [... afirmando] a necessidade de uma mudança global das estruturas latino-americanas [... afirmando ainda que] tal mudança traz como exigência a reforma política775.

Para Lermen776, enquanto o Concílio Vaticano II proclamava os novos rumos da

Igreja, baseados no otimismo desenvolvimentista, o Papa Paulo VI ratificava essa assim

chamada Teologia do Desenvolvimento na encíclica Populorum Progressio777, de 1967.

A tônica da CELAM/1968 foi transformação e desenvolvimento, com fins à

libertação, como se infere dos documentos publicados pelos bispos, citados por Lernem:

A Igreja da atualidade descobriu o ‘exodus’ da ‘terra da escravidão’ para a ‘terra da promessa’, para a qual Deus quer conduzir o seu povo. E descobriu, também, seu papel neste plano de Deus: ‘a Igreja Latino-Americana tem uma mensagem para todos os homens que neste continente têm fome e sede de justiça778.

Segundo Lernem, o tema da libertação, central na CELAM/1968, foi abordado no

capítulo quatro do documento “Conclusões de Medellín”, publicado pelos bispos reunidos, e

que traçava princípios para que a educação fosse libertadora:

ela deve ser criadora e aberta ao diálogo, ela deve afirmar as peculiaridades locais e nacionais e integrá-las na unidade pluralista do continente e do mundo. Finalmente, ela deve capacitar as novas gerações para a mudança permanente e orgânica que o desenvolvimento supõe779.

É nesse contexto que as Comunidades Eclesiais de Base adquirem importância,

utilizando a metodologia do “ver, julgar e agir”780, consistente, segundo Nivaldo Luiz

Pessinati, em diagnosticar a realidade, identificando suas debilidades e potencialidades

através de análise conscientizadora; após esse diagnóstico, aporta-se a reflexão teórica de

775 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 117. 776 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 124-125. 777 PAULO VI. Carta encíclica populorum progressio: sobre o desenvolvimento dos povos. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/encyclical/documents/hf_pvi_enc_26031967_populorum_po.html>. Acesso em: 29 out. 2008. 778 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 126. 779 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 127. 780 PESSINATI, Nivaldo Luiz. Políticas de comunicação da Igreja Católica no Brasil. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Editora da UNISAL, 1998, p. 80.

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177

conteúdo cristão para possibilitar decisões concretas781. As Comunidades Eclesiais de Base

serão mais detalhadamente estudadas na próxima seção.

4.5 IGREJA CATÓLICA NO BRASIL: ATUAÇÃO POLÍTICA

A noção do sentido e alcance do termo política já foi explicitada no capítulo que trata

dos direitos fundamentais, em seção específica dos direitos políticos, à qual se remete o leitor;

porém, é importante e suficiente lembrar, neste momento, que política foi definida por

Alexandre Botelho como “os relacionamentos entre sujeitos caracterizados pelo interesse”782.

Nesta seção, tratar-se-á de casos concretos que podem ser tidos como exemplos da

influência da Igreja Católica no Estado brasileiro, além dos meios que a Igreja Católica lança

mão para exercer essa influência.

Nesse sentido, Darcy Ribeiro já identifica influência ou ação política da Igreja

Católica no plano ideológico da formação da cultura das comunidades brasileiras, consistente

na existência de

uma Igreja oficial, associada a um Estado salvacionista, que depois de intermediar a submissão dos núcleos indígenas através de catequese impõe um catolicismo de corte messiânico e exerce um rigoroso controle sobre a vida intelectual da colônia, para impedir a difusão de qualquer outra ideologia e até mesmo do saber científico783.

Boris Fausto, tratando do governo do Estado Novo de Getúlio Vargas e seu governo

ditatorial, revela que

Uma importante base de apoio do governo foi a Igreja Católica. A colaboração entre a igreja e o Estado não era nova, datando dos anos 20, especialmente a partir da presidência de Artur Bernardes. Agora ela se tornava mais estreita. Marco simbólico da colaboração foi a inauguração da estátua do Cristo Redentor no Corcovado, a 12 de outubro de 1931 – data do descobrimento da América. Getúlio e todo o ministério concentraram-se na estreita plataforma da estátua, pairando sobre o Rio de Janeiro. Aí o Cardeal Leme consagrou a nação ‘ao coração santíssimo de Jesus, reconhecendo-o para sempre seu rei e senhor’. A Igreja levou a massa da população católica

781 PESSINATI, Nivaldo Luiz. Políticas de comunicação da Igreja Católica no Brasil, p. 80. 782 BOTELHO, Alexandre. Curso de ciência política. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005, p. 27. 783 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 69.

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a apoiar o novo governo. Este, em troca, tomou medidas importantes em seu favor, destacando-se um decreto, de abril de 1931, que permitiu o ensino da religião nas escolas públicas784.

Paulo Victorino, citado por Elza Galdino, relata ainda passagem emblemática da

relação entre os poderes constituídos brasileiros e a Igreja Católica:

Conta-se que, tal qual o gênio da lâmpada, Eurico Gaspar Dutra conceda à sua esposa, Carmela Leite Dutra (Dona Santinha) o direito à três desejos, que lhes serão atendidos. Católica, devota, ligada à ala mais conservadora da Igreja, Dona Santinha pede: primeiro,o fechamento de todos os cassinos e a proibição dos jogos de azar; segundo, a extinção do Partido Comunista Brasileiro; terceiro, a construção de uma capela no Palácio Guanabara, residência oficial do Presidente e sua família. O primeiro desejo é o mais fácil de realizar. A 30 de abril de 1946, três meses após a posse, um decreto proíbe os jogos de azar em todo o território nacional. O segundo demora um pouco mais, mas em 7 de maio de 1947, o PCB é posto fora da lei e, em 7 de janeiro de 1948, são cassados os mandatos de todos os seus representantes. Por último, a capela, o terceiro voto de Dona Santinha, lá se encontra, até hoje, nos jardins do Palácio Guanabara785.

São três singelos exemplos que ilustram de maneira clara os dois modos de ação da

Igreja Católica: num primeiro momento, exposto por Darcy Ribeiro, age de maneira ostensiva

e arbitrária – já que se lhe possibilitou tal ação; num segundo momento, em exemplos de

Boris Fausto e Paulo Victorino, já em sede de Estado laico, a Igreja demonstra seu poder de

penetração nos círculos do poder a ponto de eliminar partido político e obter a permissão para

que ministre sua fé no ensino público.

Esse poder da Igreja Católica é manifestado de diferentes formas, através de diferentes

entidades. Despontam como mais importantes a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil,

ou simplesmente CNBB, e as Comunidades Eclesiais de Base – que serão abordadas nas

próximas seções, seguidas ainda por uma investigação da Teologia da Libertação.

784 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora da USP, 1995, p. 332-333. 785 GALDINO, Elza. Estado sem Deus, p. 53.

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4.5.1 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

Reginaldo Prandi e André Ricardo de Souza remontam a 1952 o surgimento da

CNBB, sob a iniciativa de Dom Hélder Câmara786. Apoiada por reformistas do Vaticano, o

principal objetivo formal da CNBB era mudar a Igreja no Brasil “fomentando o surgimento e

expansão de um novo reformismo católico”787.

Surgiu, segundo Paulo Krischke, citado por Márcio Roberto Pereira Tangerino, com a

confluência de três fatores: “[..] a emergência de uma intelectualidade renovadora dentro da

instituição eclesiástica nacional, o apoio do Vaticano a essa liderança, e as transformações por

que passava a política brasileira do pós-guerra”788.

Segundo a própria entidade,

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) é a instituição permanente que congrega os Bispos da Igreja católica no País, na qual, a exemplo dos Apóstolos, conjuntamente e nos limites do direito, eles exercem algumas funções pastorais em favor de seus fiéis e procuram dinamizar a própria missão evangelizadora, para melhor promover a vida eclesial, responder mais eficazmente aos desafios contemporâneos, por formas de apostolado adequadas às circunstâncias, e realizar evangelicamente seu serviço de amor, na edificação de uma sociedade justa, fraterna e solidária, a caminho do Reino definitivo789.

Para Elza Galdino, “a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil é a voz da Igreja

Católica no País e sua intervenção em todos os assuntos de Estado tem sido manifesta”790,

como se verá nas seções seguintes. É nesse sentido que Krischke, citado por Tangerino, se

refere à CNBB como “o organismo representativo fundamental da Igreja nas suas relações

com o Estado”791.

786 PRANDI, Reginaldo; SOUZA, André Ricardo de. A carismática despolitização da Igreja Católica. In:

PIERUCCI, Antônio Flávio; PRANDI, Reginaldo (Org.). A realidade social das religiões no Brasil: religião, sociedade e política. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 60. 787 PRANDI, Reginaldo; SOUZA, André Ricardo de. A carismática despolitização da Igreja Católica. In:

PIERUCCI, Antônio Flávio; PRANDI, Reginaldo (Org.). A realidade social das religiões no Brasil, p. 60. 788 TANGERINO, Mário Roberto Pereira. A política na igreja do Brasil. Campinas: Alínea, 1997, p. 25. 789 CNBB. Natureza e fins. Disponível em: <http://www.cnbb.org.br/ns/modules/mastop_publish/?tac=162>. Acesso em: 05 nov. 2008. 790 GALDINO, Elza. Estado sem Deus, p. 54. 791 TANGERINO, Mário Roberto Pereira. A política na igreja do Brasil, p. 24.

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É que com o processo de secularização do Estado brasileiro, que na visão de Júlia

Miranda pode ser definido como “a perda significativa de espaço da Igreja Católica no

controle de instituições sociais”792, à Igreja Católica não restou opção senão criar um

mecanismo de influenciar este Estado agora laico, por via legítima.

No final da década de 50, a partir da efervescência social o movimento leigo católico

passou a atuar mais à esquerda, com ênfase na luta por justiça social, operando através da

Ação Católica Brasileira e da Juventude Universitária Católica793.

Segundo Prandi e Souza, com o advento do golpe militar, os movimentos de esquerda

foram relegados à clandestinidade – mesmo os ligados a Igreja. Com essa clandestinidade é

que se iniciou a formação do que viria a ser um grande movimento católico popular, com

orientação da Teologia da Libertação – a igreja que “optava pelos pobres” e “se dizia ‘a voz

dos que não têm voz’”794.

4.5.2 Comunidades Eclesiais de Base

Segundo Lermen, as Comunidades Eclesiais de Base são organizações católicas

destinadas principalmente à educação popular e à luta contra a opressão e injustiça, através da

organização das comunidades em grupos solidários, buscando a libertação795 - e que

culminaram com o aparecimento do catolicismo popular, assim definido pelos bispos na

CELAM/1968, citados por Lermen:

Entendemos por religião do povo [...] o conjunto de crenças profundas marcadas por Deus, das atitudes básicas que derivam dessas convicções e as expressões que as manifestam. Trata-se da forma ou da existência cultural que a religião adota em um povo determinado. A religião do povo latino-americano, em sua forma cultural mais característica, é expressão da fé católica. É um catolicismo popular796.

792 MIRANDA, Júlia. Carisma, sociedade e política: novas linguagens do religioso e do político. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 87. 793 PRANDI, Reginaldo; SOUZA, André Ricardo de. A carismática despolitização da Igreja Católica. In:

PIERUCCI, Antônio Flávio; PRANDI, Reginaldo (Org.). A realidade social das religiões no Brasil, p. 60. 794 PRANDI, Reginaldo; SOUZA, André Ricardo de. A carismática despolitização da Igreja Católica. In:

PIERUCCI, Antônio Flávio; PRANDI, Reginaldo (Org.). A realidade social das religiões no Brasil, p. 61. 795 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 128-130. 796 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 130.

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Pessinati797 aponta que a atuação através das Comunidades Eclesiais de Base foi a

mais eficiente estratégia que a Igreja encontrou para comunicar-se com o povo, tendo se

espalhado pelo Brasil principalmente durante a ditadura militar, nos anos 70 e 80, pois que

influenciada pela teologia da libertação.

4.5.3 Teologia da Libertação

Com a encíclica Quadragésimo Anno798, de 1931, o Papa Pio XI introduziu o conceito

de justiça social na doutrina social da Igreja. Segundo Ubiratan Borges de Macedo, essa

justiça social tem funções diversas: “é distributiva, é princípio geral econômico e de ação

social, preside salários, função da justiça cumulativa e deriva de princípios anteriores à

Lei”799.

Lermen aponta que o movimento da teologia da libertação, alimentado pela ideologia

do desenvolvimento, confirmada esta oficialmente pela encíclica Populorum Progressio – na

qual o papa mesmo afirmou que “desenvolvimento é o novo nome da paz”800 – surgiu no

mesmo contexto da CELAM/1968 e do Concílio Vaticano II – a forte corrente

desenvolvimentista surgida no mundo após a Segunda Guerra Mundial801.

Ligada à situação da América Latina daquela época, que definia como de dependência

e dominação, a Teologia da Libertação, segundo Lermen, aponta as questões políticas,

econômicas, pedagógicas e culturais brasileiras como conformadas ao padrão europeu de

elite, no que assume o compromisso de libertação através de nova interpretação da fé cristã, se

auto-denominando portadora mesmo da Revolução Cristã802.

797 PESSINATI, Nivaldo Luiz. Políticas de comunicação da Igreja Católica no Brasil, p. 80-81. 798 PAPA PIO XI. Carta encíclica quadragesimo anno: sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social em conformidade com a lei evangélica no XL aniversário da encíclica de Leão XIII rerum novarum. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo-anno_po.html >. Acesso em: 26 out. 2008. 799 MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e justiça social. São Paulo: IBRASA, 1995, p. 95. 800 PAULO VI. Carta encíclica populorum progressio: sobre o desenvolvimento dos povos. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/encyclical/documents/hf_pvi_enc_26031967_populorum_po.html>. Acesso em: 29 out. 2008. 801 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 132. 802 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 133.

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Para Lermen, a Teologia da Libertação utiliza método primitivo de ensino teológico,

através do qual os aspectos religiosos e possibilidades de salvação são discutidos a partir de

situações e eventos concretos – tal qual os profetas do Antigo Testamento803.

Expoente da Teologia da Libertação no Brasil, Leonardo Boff (pseudônimo de

Genézio Darci Boff) procurou explicitar o mote do movimento através da metáfora da águia e

da galinha, que pode ser assim resumida, em apertada síntese: uma águia criada entre as

galinhas comportar-se-á como as últimas; somente separando delas a águia é que essa, sem os

parâmetros limitadores das galinhas, poderá se comportar como águia. Para Boff, “recusamo-

nos a ser somente galinhas. Queremos ser também águias que ganham altura e que projetam

visões para além do galinheiro”804.

Para Macedo, em que pese as controvérsias acerca da definição e interpretação da

justiça social, “os católicos, em sua imensa maioria, pelos autores mais significativos,

consideram a justiça social uma virtude, isto é, um hábito afetando os atos livres do homem,

uma regra interna de perfeição moral”805. Assim, o entendimento doutrinário da Igreja

Católica é que a justiça social é uma norma em respeito à qual as pessoas têm obrigação de se

guiar em suas escolhas. É uma regra de conduta, e não um estado de coisas.

Contestam essa visão os simpatizantes da Teologia da Libertação, que entendem a

justiça social

como um estado futuro da sociedade (utopia) em função do qual deve-se criticar e questionar a ordem vigente para transformá-la revolucionariamente, sem se excluir a violência ou o respeito aos procedimentos democráticos, aliás apresentados como formais, sem conteúdo, necessitando a liberdade ser complementada pela igualdade, sem estabelecer uma hierarquia maior para a liberdade e ignorando que a busca da igualdade sem limites na liberdade acaba por sacrificar esta, na advertência clássica de Tocqueville806.

Os adeptos da Teologia da Libertação apresentam a doutrina cristã apoiada na idéia de

justiça social como verdadeira ideologia, constituindo-se numa terceira via – opção entre o

capitalismo liberal e o socialismo marxista.

803 LERMEN, Gisela Anna Bütnner. A formação cultural do homem brasileiro religioso. Reflexão, p. 133. 804 BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 176. 805 MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e justiça social, p. 98. 806 MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e justiça social, p. 99.

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Esta interpretação foi expressamente rechaçada pelo Papa João Paulo II em suas

encíclicas Centesimus annus807, de 1991, e Sollicitudo rei socialis

808, de 1987, nas quais

explicita que “doutrina social da Igreja não é uma ideologia, mas uma reflexão à luz da fé e da

tradição eclesial, é teologia, não sistema ou programa econômico ou político, nem manifesta

preferências por uns ou por outros”809.

Para Sell e Brüseke810, a Teologia da Libertação pode ser analisada sob três aspectos

básicos: na dimensão teórica é um novo método teológico, político e voltado para a práxis; na

dimensão eclesial, propõe uma reorganização institucional da igreja – que perderia o caráter

de hierarquia rígida para um modelo mais democrático, como o das Comunidades Eclesiais de

Base; na dimensão social, a Teologia da Libertação propõe a inserção da igreja católica na

sociedade de maneira que opte pelos pobre, em detrimento das camadas dirigentes.

Para Libânia, citado por Sell e Brüseke, o movimento da Teologia da Libertação pode

ser dividido em quatro fases: “gestação (1962-1968), gênese (1969-1971) e consolidação

(1979-1987)”811, além de uma quarta fase, de crise, iniciada em 1989 com a queda do muro de

Berlim e o fim do socialismo – eventos que abalaram sua proposta político-social812.

Segundo Sell e Brüseke813, nesse processo de renovação e ressurgimento a Teologia da

Libertação tem avançado principalmente no tema da espiritualidade, baseada em quatro fontes

principais: a mística oriental, através da qual os teólogos da libertação assimilam as

concepções holistas814; a mística secular, tendo como base a física e a psicologia; a mística

católica clássica, revisitada através das duas primeiras fontes no sentido de oposição da

807 PAPA JOÃO PAULO II. Carta encíclica centesimus annus: no centenário da Rerum novarum. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_01051991centesimus-annus_po.html>. Acesso em: 26 out. 2008. 808 PAPA JOÃO PAULO II. Carta encíclica sollicitudo rei socialis: pelo vigésimo aniversário da Populorum

Progressio. Disponível em: <http://www.vatican.va/edocs/por0070/_index.htm>. Acesso em: 26 out. 2008. 809 MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e justiça social, p. 99. 810 SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 203. 811 SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 203. 812 SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 203. 813 SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 203. 814 Relativo ao holismo - teoria segundo a qual o homem é um todo indivisível, e que não pode ser explicado pelos seus distintos componentes (físico, psicológico ou psíquico), considerados separadamente. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio 5.0.

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hierarquia tradicional; e a mística católica contemporânea, valorizados os místicos que

concebem visão não dualista da realidade815.

Para Sell e Brüseke816, a obra “Igreja, carisma e poder” por Leonardo Boff publicada

em 1981 é a que gerou maiores polêmicas na Igreja Católica. Boff trata da eclesiologia817 e

“defende seu modelo de Igreja a partir dos pobres”818. Segundo Sell e Brüseke819, os teólogos

da libertação concebem a manifestação religiosa como exclusivamente católica; sobre essa

igreja que nasce da fé do povo, citado por Sell e Brüseke, Boff assevera

É aqui que se faz importante a verificação de como o povo faz a passagem do religioso ao político. Geralmente pra ele as duas realidades vêm unidas. Começa pelo religioso. Aí ele se dá conta das injustiças que são pecado que Deus não quer. Depois passa para a compreensão das estruturas reais que produzem as injustiças. Importa mudá-las para que não produzam mais o pecado social820.

E em seguida Leonardo Boff, citado por Sell e Brüseke, profetiza:

A sociedade futura latino-americana terá uma presença estrutural dos elementos cristãos e evangélicos, graças à Igreja que está ajudando a gestar o futuro. Esta verdade é tão forte que analistas já ponderam: uma sociedade latino-americana que não incluir em seu processo, em grau elevado, elementos cristãos se mostra antipopular. A matriz do povo é cristã; esta matriz está sendo expressa dentro de uma codificação que responde às demandas históricas. É a chance de mostrar todo o seu vigor e sua verdade. É nesta direção que caminha a esperança e se define o futuro mais promissor da Igreja latino-americana821.

Com a crise da teologia da libertação e a mistificação do seu discurso, Sell e Brüseke

apontam que Leonardo Boff e Frei Betto reconhecem os dois elementos mais importantes da

religião brasileira contemporânea: “1) a subjetivação do comportamento religioso e, 2) a

secularização das instituições religiosas”822.

815 SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 205. 816 SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 207. 817 Estudo teológico da Igreja. Cf. SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 207. 818 SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 207. 819 SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 207. 820 SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 207. 821 SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 208. 822 SELL, Carlos Eduardo, BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade, p. 208.

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Mas a Igreja Católica foi refratária às idéias de Boff: pelos questionamentos em

“Igreja, Carisma e Poder”, foi condenado em 1985 à um ano de silêncio obsequioso823 pela

Congregação para a Doutrina da Fé, então sob a direção de Joseph Ratzinger; mantido sob

severa vigilância desde 1986, quando recuperou algumas funções, desligou-se da Igreja

Católica em 1992, ameaçado de nova punição824.

Carlos Graieb aponta mesmo que Joseph Ratzinger, nas funções que exerceu desde sua

época de cardinalato, mormente como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, no

papado de João Paulo II, até sua atual posição de sumo pontífice da Igreja Católica, foi o

“responsável pelo desmonte doutrinário da Teologia da Libertação, que turvava a pregação e a

prática da Igreja com interpretações marxistas, em que o conceito de luta de classes se

sobrepunha aos ensinamentos cristãos”825.

João Paulo II, por seu turno, manteve a justiça social em um segundo plano, uma vez

que suas encíclicas a fazem perder seu caráter político e voltam a priorizar a teologia, ou

reflexão ética e religiosa acerca dos problemas sociais826; no que diz respeito à Igreja Católica

no Brasil, minou as pretensões do clero simpatizante à Teologia da Libertação com

reestruturações diocesanas, mantendo ainda os cardeais com ela alinhados à margem do

poder827.

A Teologia da Libertação, no que diz respeito à política, influenciou pessoas como

Fernando Lugo, ex-bispo católico e presidente do Paraguai828 e Jean-Bertrand Aristide, ex-

823 Importava em perda de sua cátedra, perda da condição de editor da Vozes, da redação da Revista Eclesiástica Brasileira e proibição de falar, dar entrevistas, escrever e publicar sobre qualquer assunto. Cf. BOFF, Leonardo. Bento 16 e a guerra na Igreja. Folha de São Paulo. São Paulo, 13 maio 2007. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1305200711.htm>. Acesso em: 30 out. 2008. 824 GRAIEB, Carlos. Nem política, nem espetáculo. Veja. São Paulo: Abril, n. 1.902, 27 abr. 2005. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/270405/p_084.html>. Acesso em: 30 out. 2008. 825 GRAIEB, Carlos. Nem política, nem espetáculo. Veja. São Paulo: Abril, n. 1.902, 27 abr. 2005. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/270405/p_084.html>. Acesso em: 30 out. 2008. 826 MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e justiça social, p. 100. 827 GRAIEB, Carlos. Nem política, nem espetáculo. Veja. São Paulo: Abril, n. 1.902, 27 abr. 2005. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/270405/p_084.html>. Acesso em: 30 out. 2008. 828 CANTANHÊDE, Eliane. Lugo assume e promete combater pobreza. Folha de São Paulo. São Paulo, 16 ago. 2008. Mundo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1608200801.htm>. Acesso em: 30 out. 2008.

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padre de esquerda e ditador deposto do Haiti829; na própria Igreja Católica, atingiu os cardeais

D. Pedro Evaristo Arns e D. Ivo Lorscheider830.

Ao fim e ao cabo, como bem aponta Luis Mir, “ao exigir uma só verdade libertadora, a

cristã, os teólogos da Libertação replicam as verdades dogmáticas cristãs, inconciliáveis

integralmente com transformação, avanço, progresso social e científico”831.

4.5.4 Episódios recentes

Para Elza Galdino, no governo do Presidente Lula a atuação da Igreja Católica tem

recrudescido; cita Declaração da CNBB intitulada “A CNBB diante da vitória do novo

Presidente do Brasil”, na qual se lê:

A CNBB acompanhou com interesse e responsabilidade o processo eleitoral, com grande esperança de novos rumos para o nosso País. [...] A vitória de um novo Presidente do Brasil representa o encontro com os sonhos de novos tempos. Não podemos, no entanto, alimentar ilusões. Estamos conscientes dos inúmeros problemas a serem enfrentados pelos novos governantes, sobretudo no campo da economia. Vivemos uma política internacional instável e complexa, um Estado fragilizado, uma dívida externa e interna incontrolável, desemprego em crescimento... [...] O Partido dos Trabalhadores, vitorioso, recolhe, desde suas origens, a presença e a atuação também de grupos cristãos das nossas Igrejas locais. Os valores do Reino de Deus de que são eles portadores oferecerão, certamente, subsídios para a construção de uma sociedade justa e solidária. Ficamos em vigília de oração pedindo a Deus que ilumine os passos e as orientações dos novos dirigentes832.

Elza Galdino relata que, “em agosto de 2005, em meio aos episódios das denúncias de

corrupção envolvendo o Partido dos Trabalhadores e seus principais dirigentes”833, o

Presidente Lula enviou à CNBB, reunida na 43ª Assembléia-Geral, carta na qual, segundo

Daniel Sarmento, citado por Elza Galdino, afirma sua “‘identificação com os valores éticos do

829 MAGNOLI, Demétrio. Dialética da servidão. Folha de São Paulo. São Paulo, 13 abr. 2004. Opinião. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1304200409.htm>. Acesso em: 30 out. 2008. 830 GRAIEB, Carlos. Nem política, nem espetáculo. Veja. São Paulo: Abril, n. 1.902, 27 abr. 2005. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/270405/p_084.html>. Acesso em: 30 out. 2008. 831 MIR, Luís. Partido de deus, p. 33-34. 832 GALDINO, Elza. Estado sem Deus, p. 54. 833 GALDINO, Elza. Estado sem Deus, p. 55.

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Evangelho’ e [que] pela fé que recebeu de sua mãe, não tomará ‘nenhuma iniciativa que

contradiga os princípios cristãos’”834.

Ao final da Assembléia-Geral a CNBB, por sua vez, emitiu declaração intitulada

“Declaração sobre Exigências Éticas em Defesa da Vida” com o seguinte teor:

Causa-nos repúdio e inquietude uma série de iniciativas do Executivo (distribuição maciça de preservativos, além de produtos abortivos como o DIU e as assim chamadas ‘pílulas do dia seguinte’); de decisões do Judiciário (como foi o caso da cautelar concedida na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54, no Supremo Tribunal Federal, permitindo o aborto de fetos portadores de anencefalia) e de projetos do Legislativo tais como Lei de Biossegurança, já aprovada, que permite a utilização de embriões para a pesquisa com células-tronco e várias tentativas de revisão da legislação punitiva sobre o aborto, propondo a sua descriminalização e ampliando os prazos e condições para sua prática. [...] Recordamos a carta do Sr. Presidente da República ao Presidente da CNBB e a nós bispos reunidos em Assembléia, na qual reafirma sua ‘posição em defesa da vida em todos os seus aspectos e em todo o seu alcance’ e assume o compromisso de que seu Governo ‘não tomará nenhuma iniciativa que contradiga os princípios cristãos’. Conseqüentemente, confiamos que tais propósitos sejam traduzidos em gestos concretos, inclusive quando isso exigir o exercício de seu poder de veto, seja de projetos de lei, seja de destinação de recursos financeiros835.

Têm-se assim demonstração da potencial influência da Igreja Católica nas decisões

políticas que atingem todo o povo brasileiro, indistintamente. São exemplos que surgem desde

o período colonial até o governo petista atual, passando por Getúlio Vargas e Gaspar Dutra.

Já no âmbito do Poder legislativo, no Regimento Interno da Câmara dos Deputados,

aprovado pela Resolução n. 17 de 1989, encontra-se, tratando do pequeno expediente836, as

seguintes disposições:

Art. 79. À hora do início da sessão, os membros da Mesa e os Deputados ocuparão os seus lugares.

834 GALDINO, Elza. Estado sem Deus, p. 55. 835 CNBB. Declaração sobre Exigências Éticas em Defesa da Vida. Zenit, Nova Iorque, 16 ago. 20065 Disponível em: <http://www.zenit.org/article-8404?l=portuguese>. Acesso em: 22 out. 2008. 836 Primeira parte da sessão ordinária do Plenário, tem duração máxima de 60 minutos e é destinado à abertura da sessão, à leitura e aprovação da ata da sessão anterior, à leitura do expediente e às breves comunicações de deputados previamente inscritos. Cf. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Glossário do Brasil. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/portal_glossario/brasil/verbete.2006-09-26.5700235601>. Acesso em: 20 out. 2008.

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§ 1°. A Bíblia Sagrada deverá ficar, durante todo o tempo da sessão, sobre a mesa, à disposição de quem dela quiser fazer uso. § 2°. Achando-se presente na Casa pelo menos a décima parte do número total de Deputados, desprezada a fração, o Presidente declarará aberta a sessão, proferindo as seguintes palavras: “Sob a proteção de Deus e em nome do povo brasileiro iniciamos nossos trabalhos”837.

Não é diferente com o Senado Federal, que em seu Regimento Interno, aprovado pela

Resolução n. 93 de 1970, prevê acerca das sessões públicas:

Art. 155. A sessão terá início de segunda a quinta-feira, às quatorze horas, e, às sextas-feiras, às nove horas, pelo relógio do plenário, presentes no recinto pelo menos um vigésimo da composição do Senado, e terá a duração máxima de quatro horas e trinta minutos, salvo prorrogação, ou no caso do disposto nos arts. 178 e 179. §1°. Ao declarar aberta a sessão, o Presidente proferirá as seguintes palavras: “Sob a proteção de Deus iniciamos nossos trabalhos”838

Com relação à Assembléia Legislativa de Santa Catarina, o funcionamento é

semelhante ao da Câmara dos Deputados; a casa legislativa catarinense prevê em seu

Regimento Interno, aprovado pela Resolução n. 1 de 2004, acerca das sessões ordinárias:

Art. 96. À hora do início da sessão, os membros da Mesa e os Deputados ocuparão os seus lugares, devendo permanecer na direção dos trabalhos, no mínimo, o Presidente e um Secretário. § 1º. Não se encontrando presente outro membro da Mesa, o Presidente convidará um Deputado para exercer a função de Secretário, § 2°. A Bíblia Sagrada deverá ficar durante todo o tempo da sessão em local designado, à disposição de quem dela quiser fazer uso. § 3°. Achando-se presente, no mínimo, um quinto dos Deputados, o Presidente declarará aberta a sessão, proferindo as seguintes palavras: ‘Sob a proteção de Deus, declaro aberta a sessão’839.

Elza Galdino pergunta: “para quê a Bíblia – o livro sagrado dos cristãos – fica à

disposição durante toda a sessão? Para algum tipo de consulta? Para inspirar os parlamentares

em seu trabalho legiferante?”840.

837 BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Resolução n. 17, de 1989. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/legislacao/regimento_interno/RIpdf/RegInterno.pdf>. Acesso em: 20 out. 2008. 838 BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. SENADO FEDERAL. Resolução n. 93, de 1970. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/legislacao/regsf/RegSFVolI.pdf>. Acesso em: 20 out. 2008. 839 SANTA CATARINA. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. Resolução n. 1, de 2004. Disponível em: <http://www.alesc.sc.gov.br/al/regimento/regimento2006_241006.pdf>. Acesso em: 20 out. 2008. 840 GALDINO, Elza. Estado sem Deus, p. 57.

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189

Galdino invoca ainda o exemplo do “bispo-bomba”841 Luiz Flávio Cappio que,

contrário ao projeto de transposição das águas do rio São Francisco, iniciou greve de fome

como forma de manifestar sua contrariedade; o projeto beneficiaria mais de doze milhões de

pessoas, mas o Poder Executivo atuou de maneira atípica: enviou Ministro de Estado ao

encontro do religioso e “apresentou-lhe um compromisso que o fez suspender a greve”842.

A força da Igreja pode ser ainda medida pela exteriorização, pelo próprio Estado,

através da ostentação de crucifixos que notoriamente ornamentam ambientes do Poder

Público, “de uma opção religiosa, inaceitável no Estado laico”843.

Finalmente, e como a mais emblemática demonstração da interferência da Igreja

Católica na vida dos brasileiros, tem-se a Lei n. 6.802/80, que dispõe em seu artigo 1°: “É

declarado feriado nacional o dia 12 de outubro, para culto público e oficial a Nossa Senhora

Aparecida, Padroeira do Brasil”844.

No que diz respeito à ocupação das cargos eletivos com representantes de Igreja, Elza

Galdino pondera que “a ocorrência de sacerdotes e bispos ocupando cargos eletivos nos

Poderes Constituídos em nosso país, se é fenômeno que merece atenção, só deve ser

destacado se os objetivos seculares do Poder forem subordinados aos ditames religiosos”845.

841 TOLEDO, Roberto Pompeu. O duplo estrago do bispo-bomba Veja. São Paulo, 12 out. 2005. Disponível em <http://veja.abril.com.br/121005/pompeu.html>. Acesso em: 30 out. 2008. 842 GALDINO, Elza. Estado sem Deus, p. 84. 843 GALDINO, Elza. Estado sem Deus, p. 85. 844 BRASIL. Lei n. 6.802, de 30 de junho de 1980. Declara Feriado Nacional o Dia 12 de outubro, Consagrado a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil-03/Leis/L6802.htm>. Acesso em: 20 out. 2008. 845 GALDINO, Elza. Estado sem Deus, p. 51.

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5 A IGREJA CATÓLICA E OS NÃO CATÓLICOS: A ADPF N. 54

Discussão inédita, a considerar-se, como se verá, o caráter geral do feito, está sendo

travada no Supremo Tribunal Federal: a possibilidade de antecipação terapêutica do parto, ou

interrupção da gravidez, ou ainda do aborto dos fetos assim considerados anencefálicos. Tal

possibilidade é objeto de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta

pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde e patrocinada pelo advogado Luís

Roberto Barroso, tramitando sob número 54 naquela corte.

Para se possibilitar melhores condições de analisar o feito, algumas questões atinentes

ao processamento da ADPF são abordadas no início deste capítulo, bem como se apresenta

breve relato de pesquisa acerca da anencefalia. Já na análise da ADPF n. 54, serão objeto de

maior atenção os deslocamentos processuais e extra-processuais que dizem respeito à Igreja

Católica.

5.1 QUESTÕES PROCESSUAIS RELEVANTES

Antes de se proceder à análise da ação de ADPF que tramita sob número 54 no STF,

se afigura importante traçar algumas considerações acerca deste instituto previsto já na

redação original da CRFB/1988 em seu parágrafo único do art. 103, renumerado pela Emenda

Constitucional n. 3 de 1993846 para parágrafo primeiro.

Impende ainda tecer alguns comentários acerca de institutos não afetos exclusivamente

à ADPF, como o amicus curiae e a interpretação conforme à Constituição, mas que estão

presentes no caso concreto analisado ao fim deste capítulo.

846 BRASIL. Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc03.htm>. Acesso em: 17 out. 2008.

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5.1.1 Ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental

A ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental foi introduzida no

ordenamento jurídico infraconstitucional brasileiro com o advento da Lei n. 9.882, de 3 de

dezembro de 1999; para Ivo Dantas, a edição da referida lei “não tem merecido a devida

atenção por parte da doutrina nacional”847, em que pese suas inovações no sistema pátrio de

controle de constitucionalidade. Referida lei dispõe:

Art. 1°. A argüição prevista no § 1° do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público848.

Uadi Lâmmego Bulos, citado por Ivo Dantas, aponta que

a argüição de descumprimento de preceito fundamental enriqueceu o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, considerado um dos mais evoluídos do mundo. Pode ser considerado uma ponte de ligação entre os métodos difuso e concentrado de fiscalização da supremacia da Lex Mater. Através do uso da argüição de descumprimento de preceito fundamental, é possível suspender-se, liminarmente, ações judiciais ou processos administrativos em curso, os quais deverão acatar o decisum da Corte Suprema, a ser proferido no fim do processo. A argüição de descumprimento de preceito fundamental constitui, portanto, um mecanismo inovador na fiscalização de constitucionalidade. possibilita, dentre outros aspectos, o controle de constitucionalidade concentrado de leis municipais, que, pela sistemática tradicional, só se fazia possível pela via difusa. Permite, também, o controle de constitucionalidade dos atos não normativos, bem como de atos anteriores à promulgação do Documento Supremo849.

Controvérsia há sobre o caráter da ADPF: trata-se de ação ou recurso processual? A

questão foge ao escopo deste trabalho, mesmo porque sua caracterização como um ou outro

instituto não alteraria em qualquer maneira a análise que aqui se faz do caso concreto.

Cumpre anotar, porém, que segundo Ivo Dantas, é majoritária a opinião de que se trata

efetivamente de ação propriamente dita850.

847 DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2002, p. 238. 848 BRASIL. Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1° do art. 102 da Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm>. Acesso em: 25 out. 2008. 849 DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro, p. 239. 850 DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro, p. 240.

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No que tange ao conceito de preceito fundamental, Ivo Dantas cita definição de

Clèmerson Merlin Clève:

os preceitos fundamentais são aquelas normas constitucionais que garantem a identidade da Constituição. Sem sombra de dúvida, é possível afirmar que as cláusulas pétreas, mormente as consignadas no art. 60, § 4°, são preceitos fundamentais. Com efeito, se a norma constitucional violada não tem natureza de preceito fundamental, não há margem de escolha: não é possível ajuizar argüição851.

André Ramos Tavares não diverge, afastando de imediato o entendimento de que no

conceito de preceito fundamental se inclua todas as disposições constitucionais; justamente

por tratar de preceitos ditos fundamentais, é que decorre que esta qualidade de

fundamentalidade os diferencie852.

José Afonso da Silva, citado por Ivo Dantas, afasta possível confusão entre as

expressões preceitos fundamentais e princípios fundamentais, reconhecendo naqueles maior

amplitude, abrangendo estes “e a todas as prescrições que dão o sentido básico do regime

constitucional, como são, por exemplo, os que apontam para a autonomia dos estados, do

Distrito Federal e especialmente as designativas de direitos e garantias fundamentais”853.

Araujo e Nunes Junior entendem que, uma vez que a orientação do constituinte foi no

sentido de estabelecer como preceitos fundamentais as normas que caracterizam uma

constituição como tal, trata-se especifica e unicamente das normas de conteúdo materialmente

constitucional – e as elencam em rol exaustivo:

a) as que identificam a forma e a estrutura do Estado [...]; b) o sistema de governo; c) a divisão e o funcionamento dos poderes; d) os princípios fundamentais; e) os direitos fundamentais; f) a ordem econômica; g) a ordem social854.

851 DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro, p. 241. 852 TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei 9.882/99. São Paulo: Atlas, 2001, p. 51. 853 DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro, p. 243. 854 ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, p. 57.

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Percebe-se assim que, independentemente de eventual controvérsia acerca da natureza

de ação da ADPF, seus objetivos são precisos e bem delimitados. Trata-se de meio para sanar

lesão (ou ameaça de lesão) a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público.

5.1.1.1 Pressupostos da ADPF

Nos termos do caput do art. 1° e do § 1° do art. 4° da Lei n. 9.882855, a ADPF somente

poderá ser ajuizada quando, concomitantemente, houver: a) lesão (ou ameaça de lesão) a

preceito fundamental resultante de ato do Poder Público e b) não houver outro meio eficaz de

sanar a lesividade do ato em questão.

Pela exigência contida no primeiro pressuposto da ADPF se afasta, a princípio, a

possibilidade de ajuizamento da ação com base em ato de natureza privada – Eduardo Rocha

Dias, citado por Ivo Dantas856, aponta como exemplo eventual política discriminatória para

admissão de trabalhadores adotada por empresa privada. Vale lembrar ainda que restará, neste

caso, a utilização de outras vias compatíveis com a espécie.

O entendimento do STF acerca do conteúdo e do alcance da expressão ato do Poder

Público ainda não foi totalmente delineado, mas já impende notar que também será

interpretado de maneira restrita: na ADPF número 1, o ato que em tese lesionava preceito

fundamental consistia em veto do chefe do poder executivo municipal do Rio de Janeiro à Lei

aprovada pela Câmara Municipal; o Tribunal Pleno do STF, em acórdão de lavra do Ministro

Néri da Silveira857, entendeu incabível na espécie a ADPF pois que o veto constitui ato

político do Poder Executivo que não se enquadra como ato do Poder Público para os fins

específicos da Lei n. 9.882/99.

É de se notar ainda que, ainda que não tenha sido efetivada a lesão (alcançadas assim

as situações de ameaça de lesão), o ato do Poder Público haverá de já estar concretizado, de

855 BRASIL. Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1° do art. 102 da Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm>. Acesso em: 25 out. 2008. 856 DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro, p. 245. 857 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 1. Brasília, DF, 3 de fevereiro de 2000. Diário da Justiça. Brasília, p. 82, 7 nov. 2003. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?numero=1&classe=ADPF-QO>. Acesso em: 25 out. 2008.

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modo que a ADPF não se presta “para a realização de controle preventivo desses atos”858. A

lesão pode não estar consolidada, mas o ato do Poder Público já deve ter ocorrido.

No que tange ao segundo pressuposto elencado pela Lei n. 9.882, se percebe o caráter

subsidiário da ADPF: sendo atacável o ato que viole (ou ameace) preceito fundamental por

meio de outra ação ou recurso, não será cabível a ADPF. Sobre esta excepcionalidade do

instituto, Zeno Veloso aponta:

A nossa argüição é, também, um remédio excepcional, último, extremo. O descumprimento de preceito fundamental não poderá ser corrigido, em princípio pelo STF. Este só está autorizado a intervir quando concluída a atuação judicial ordinária, quando não houver qualquer outro meio (outro meio eficaz, diz a lei) de sanar a lesividade. Este requisito de admissibilidade funciona como um limite para a competência do Supremo Tribunal. A argüição só é cabível quando não existir qualquer outro meio processual, ou seja, seja ele carente, insuficiente, ineficaz859.

Assim é que o STF não tem apreciado o mérito de argüições de descumprimento de

preceito fundamental quando há outra medida eficaz para sanar a lesividade do ato, como se

pode ver na ADPF número 3, não tendo sido a mesma conhecida por conta da possibilidade

de se atacar o ato questionado por meio de Agravo Regimental ou Mandado de Segurança,

nos termos do acórdão de lavra do Ministro Sydney Sanches860.

5.1.1.2 Legitimação ativa

Nos termos do art. 2° da Lei n. 9.882/99861, podem propor argüição de

descumprimento de preceito fundamental todas aquelas pessoas que detenham legitimação

para propositura da ação direta de inconstitucionalidade – por sua vez elencadas nos incisos I

a IX do art. 103 da CRFB/1988, com as alterações da Emenda Constitucional n. 45, de 2004:

858 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional, p. 665. 859 VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 306. 860 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 3. Brasília, DF, 18 de maio de 2000. Diário da Justiça. Brasília, p. 20, 27 fev. 2004. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?numero=3&classe=ADPF-QO>. Acesso em: 25 out. 2008. 861 BRASIL. Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1° do art. 102 da Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm>. Acesso em: 25 out. 2008.

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I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional862.

No que tange às legitimação para ajuizamento de ADPF, há que se notar ainda para a

pertinência temática – exigência não expressamente prevista na legislação mas, segundo Ivo

Dantas863, já consagrada na jurisprudência do STF e que consiste na demonstração, por aquele

que intenta a ADPF, de seu interesse jurídico na matéria objeto de discussão.

5.1.1.3 Medida liminar e efeitos da sentença

Nos termos do art. 5° da Lei n. 9.882/99864, caberá deferimento de medida liminar em

sede de ADPF; de acordo com o § 1° do referido artigo, poderá ainda o relator, em casos de

urgência, perigo de lesão grave ou em período de recesso, deferir de per se o pedido liminar, a

ser referendado pelo Tribunal Pleno do STF.

No que diz respeito à sentença com resolução do mérito, o § 3° do art. 10 da Lei n.

9.882/99865 lhe atribui eficácia contra todos e efeito vinculante com relação aos demais órgãos

do Poder Público; por outro lado, no que se conhece por modulação dos efeitos da decisão, o

art. 11 do mesmo diploma legal permite que o STF, por deliberação de maioria de dois terços

de seus membros, restrinja os efeitos de eventual declaração de inconstitucionalidade de lei ou

ato normativo – como também permite, nas mesmas condições, efeitos ex nunc ou mesmo a

partir de outro momento a ser fixado.

862 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao_Compilado.htm>. Acesso em: 16 out. 2008. 863 DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro, p. 261. 864 BRASIL. Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1° do art. 102 da Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm>. Acesso em: 25 out. 2008. 865 BRASIL. Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1° do art. 102 da Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm>. Acesso em: 25 out. 2008.

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Pela eficácia contra todos pode se entender a aplicabilidade da sentença a todas as

pessoas, independentemente de terem participado da relação processual. Assim, sem

necessidade de qualquer outro ato, a decisão do STF terá validade para todos os

jurisdicionados do Estado brasileiro.

5.1.2 Amicus curiae

A figura do amicus curiae866

foi criada pelo art. 7°, § 2° da Lei n. 9.868/99, que dispõe

acerca das ações direta de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade perante

o STF – e utilizada também, por analogia, nas argüições de descumprimento de preceito

fundamental. Dispõe a referida lei:

Art. 7°. Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade. [...] § 2°. O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades867.

Ao mesmo tempo em que impede a atuação de terceiros sob a forma de intervenção,

referido dispositivo legal permite que outros órgãos ou entidades (que não as partes) se

manifestem acerca de matéria relevante ao processo; não será admitido como parte, pois que

não postula nem defende interesse próprio; tampouco será terceiro interessado, pela ausência

de interesse jurídico na causa; é um terceiro desinteressado, tão somente fornecendo

informações relevantes ao juiz – assemelhando-se a um auxiliar868.

Para Rodrigo Strobel Pinto869, o amicus curiae torna o debate mais amplo, trazendo

ponto de vista livre da parcialidade das partes. Sua participação torna o processo socialmente

866 Em tradução livre, amigo da corte. 867 BRASIL. Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9868.htm>. Acesso em: 25 out. 2008. 868 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manuel do processo de conhecimento. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 170. 869 PINTO, Rodrigo Strobel. Amicus curiae: atuação plena segundo o princípio da cooperação e o poder instrutório judicial. Revista de Processo, São Paulo, v. 32, n. 151, p. 131-139, set. 2007, p. 132.

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efetivo, assim entendido aquele “capaz de veicular as aspirações da sociedade como um

todo”870.

5.1.3 Interpretação conforme à constituição

É no cenário de necessidade de solução das incompatibilidades das leis com a

Constituição, preservando a intenção do legislador, que nasce a interpretação conforme à

Constituição; segundo Luís Roberto Barroso871, ela pode ser analisada sob dois primas:

A um, como princípio de interpretação: decorre da aplicação dos princípios da

supremacia da Constituição e da presunção de constitucionalidade das leis, determinando que

o hermeneuta, “dentre mais de uma interpretação possível, deverá buscar aquela que a

compatibilize com a Constituição, ainda que não seja a que mais obviamente decorra de seu

texto”872.

A dois, como técnica de controle de constitucionalidade: “consiste na expressa

exclusão de uma determinada interpretação da norma, uma ação ‘corretiva’ que importa em

declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto”873.

Rui Barbosa assevera: “toda medida, legislativa, ou executiva, que desrespeitar

preceitos constitucionais, é, de sua essência, nula”874. A interpretação conforme à

Constituição assegura que as interpretações inconstitucionais sejam preteridas em favor

daquelas em consonância com a Constituição, sem alteração formal no ordenamento jurídico.

Norberto Bobbio já chamava de eliminação da incompatibilidade a presente forma de

interpretação, revelando-a como aquela que “pretende conciliar duas normas aparentemente

incompatíveis para conservá-las ambas no sistema, ou seja, para evitar o remédio extremo da

ab-rogação”875.

870 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Por um processo socialmente efetivo. Revista de Processo, São Paulo, v. 27, n. 105, p. 175-184, jan./mar. 2002, p. 181. 871 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 371-372. 872 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 372. 873 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 372. 874 BARBOSA, Rui. Atos inconstitucionais. Campinas: Russel, 2003, p. 43. 875 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: da UnB, 1997, p. 103.

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198

É que o texto cuja constitucionalidade se investiga há de ser preservado, pois que

emanado de órgão competente e dotado da presunção de constitucionalidade. A importância

do texto haverá de ser mensurada a fim de se reconhecer o interesse em preservar uma ou

algumas de suas interpretações. Chaïm Perelman aponta o órgão competente para decidir a

importância de um texto: “aquele que é competente para dizer o direito na espécie que lhe é

submetida”876.

Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes anotam ainda que “a

interpretação conforme à Constituição conhece limites”877, sendo aplicável tão somente

quando não viole expressão literal do texto e não altere seu significado de forma radical.

No mesmo sentido de limitar sua admissibilidade, Canotilho e Moreira ponderam que

“a interpretação conforme à Constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão

(= espaço de interpretação) aberto a várias propostas interpretativas, umas em conformidade

com a Constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela”878.

Dessa maneira, revestido de incontornável inconstitucionalidade, o diploma legal não

poderá ser reformado pelo poder judiciário a fim de que obtenha a validade perante a

Constituição; deverá ser pronunciado como inconstitucional. No mesmo sentido, texto que

não apresente interpretação contrária à Constituição não pode ser submetido à interpretação

conforme, devendo ser declarado constitucional.

Alexandre de Moraes vislumbra três hipóteses de admissão da interpretação conforme

à Constituição, a saber:

Interpretação conforme com redução de texto: essa primeira hipótese ocorrerá quando for possível, em virtude da redação do texto impugnado, declarar a inconstitucionalidade de determinada expressão, possibilitando, à partir dessa exclusão de texto, uma interpretação compatível com a Constituição Federal. [...] Interpretação conforme sem redução de texto, conferindo à norma impugnada uma determinada interpretação que lhe preserve a constitucionalidade: nessas hipóteses, salienta o Pretório Excelso, “quando, pela redação do texto no qual se inclui a parte da norma que é atacada como

876 PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 624. 877 MARTINS. Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade: comentários à Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 414. 878 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 136.

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inconstitucional, não é possível suprimir dele qualquer expressão para alcançar essa parte, impõe-se a utilização da técnica de concessão da liminar para a suspensão da eficácia parcial do texto impugnado sem a redução de sua expressão literal, técnica essa que se inspira na razão de ser da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto em decorrência de este permitir interpretação conforme à Constituição” (STF – Pleno – ADIN n. 1.344-1/ES – medida liminar – Rel. Min. Moreira Alves, Diário da Justiça, Seção I, 19 abr. 1996, p.12.212); [...] Interpretação conforme sem redução do texto, excluindo da norma impugnada uma interpretação que lhe acarretaria a inconstitucionalidade: nesses casos, o Supremo Tribunal Federal excluirá da norma impugnada determinada interpretação incompatível com a Constituição Federal, ou seja, será reduzido o alcance valorativo da norma impugnada, adequando-o à Carta Magna879.

As três hipóteses consideradas pelo constitucionalista permitem conferir validade ao

texto confrontado com a Constituição, em respeito aos princípios da supremacia da

Constituição e da presunção de constitucionalidade das leis.

A primeira hipótese evita a declaração de inconstitucionalidade do texto legal com a

suspensão de eficácia de determinada expressão, sem contudo suprimi-lo do ordenamento

jurídico; dependendo do caso, julgar-se-ia procedente a Ação Declaratória de

Constitucionalidade ou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade, com a redução

do texto.

Na segunda hipótese, à norma em análise é emprestada determinada interpretação que

não viole a Constituição, mantido o texto original. Declara-se a constitucionalidade da norma

com a única interpretação compatível com a Constituição.

Finalmente, na terceira hipótese levantada por Alexandre de Moraes, exclui-se uma

das possíveis interpretações do texto legal, pois que inquinada de inconstitucionalidade.

Igualmente não se reduz o texto legal, e ter-se-ia uma declaração de inconstitucionalidade da

interpretação, em vez de declaração de inconstitucionalidade da norma.

5.2 ANENCEFALIA E VIDA

Como se verá na análise da ADPF n. 54 na próxima seção, a má-formação fetal

conhecida como anencefalia é o elemento que deflagrou a ação em questão. Nesta seção

879 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional, p. 48-49.

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procura-se trazer ao leitor elementos essenciais que permitam um entendimento, ainda que

superficial do ponto de vista médico, suficiente à abordagem jurídica da questão envolvida.

Para tanto se fará uso eminentemente de estudos da anencefalia perpetrados por

juristas, evitando-se o uso de termos e expressões médicas que, se mais precisos, tornariam a

questão ainda mais árdua.

Concluir-se-á ainda que a discussão central da ADPF n. 54 é a oposição entre o direito

de liberdade da gestante e o direito a vida do feto; nesse sentido é que se deduzem ainda nesta

seção algumas linhas acerca da vida e da morte – novamente sob o ponto de vista jurídico,

sem muito rigor médico.

Pelo tratamento dispensado à matéria poder-se-á ainda avaliar a impropriedade de que

se revestem os argumentos religiosos para esclarecer os fenômenos da vida, da morte e da

anencefalia – esclarecimentos que cabem à ciência. Nesse sentido é que Luís Corrêa Lima

lembra que, “desde o Concílio Vaticano II, nos anos 1960, a Igreja reconheceu a legítima

autonomia da ciência. Portanto, a última palavra sobre questões científicas pertence aos

cientistas. Se um religioso entrar neste campo, será avaliado pelos critérios da ciência880.

Warley Rodrigues Belo assim define a anencefalia:

É uma má-formação estrutural, consubstanciada na ausência da calota cerebral. A anencefalia, ou ausência dos dois hemisférios cerebrais, é a ausência de função total e definitiva do tronco cerebral[881]. Em alguns casos, o feto poderá sobreviver poucos dias fora do claustro materno. A afecção impede de forma definitiva qualquer tipo de consciência e de relação com outro882.

Paulo César Busato pondera que

o anencéfalo, ao nascer, está em estado vegetativo, ou seja, sua respiração e batimento cardíaco estão associados ao tronco, que permite a ele estas ações mecânicas. Não há, entretanto, atividade cerebral propriamente dita, por falta

880 LIMA, Luís Corrêa. Políticas públicas e conflito moral: a Igreja Católica e a camisinha. Disponível em: <http://www.diversidadecatolica.com.br/Igreja%20e%20Camisinha.pdf>. Acesso em: 22 out. 2008. 881 Tronco cerebral é a parcela do sistema nervoso central que conecta o cérebro à medula espinhal; por sua vez, o sistema nervoso central – referido na literatura médica simplesmente pela sigla SNC – é formado pela soma dos três elementos: cérebro, tronco cerebral e medula espinhal. Cf. FONSECA, Luiz Fernando; PIANETTI, Geraldo. Manual de neurologia infantil. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006, p. 322. 882 VELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 83.

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201

do cérebro. Assim, este ser está condenado perenemente a esta condição vegetativa, sem qualquer possibilidade de desenvolvimento dos sentidos, de uma vida, afinal, tal qual se espera883.

Segundo Paulo César Busato, não há no ordenamento jurídico brasileiro conceito

preciso sobre a vida, em que pese existam “conceitos a ela relacionados, como, por exemplo,

o reconhecimento de personalidade jurídica e outros correlatos à sucessões no âmbito

civil”884.

Por outro lado, a Lei n. 9.434/97, que trata da remoção de órgãos humanos para fins de

transplante, fixa o conceito de morte quando dispõe:

Art. 3º. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina885.

Por seu turno, o Decreto n. 2.268/97, que regulamenta a referida lei, dispõe:

Art. 16. A retirada de tecidos, órgãos e partes poderá ser efetuada no corpo de pessoas com morte encefálica. § 1º. O diagnóstico de morte encefálica será confirmado, segundo os critérios clínicos e tecnológicos definidos em resolução do Conselho Federal de Medicina, por dois médicos, no mínimo, um dos quais com título de especialista em neurologia reconhecido no País. § 2º. São dispensáveis os procedimentos previstos no parágrafo anterior, quando a morte encefálica decorrer de parada cardíaca irreversível, comprovada por resultado incontestável de exame eletrocardiográfico886.

O Conselho Federal de Medicina, por sua vez, definiu os critérios para confirmação do

diagnóstico de morte:

883 BUSATO, Paulo César. Tipicidade material, aborto e anencefalia. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 10, n. 2, p. 577-606, jul./dez. 2005, p. 588-589. 884 BUSATO, Paulo César. Tipicidade material, aborto e anencefalia. Novos Estudos Jurídicos, p. 590. 885 BRASIL. Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm>. Acesso em: 29 out. 2008. 886 BRASIL. Decreto n. 2.268, de 30 de junho de 1997. Regulamenta a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fim de transplante e tratamento, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1997/D2268.htm>. Acesso em: 29 out. 2008.

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Art. 1º. A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias. [...] Art. 3º. A morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida. Art. 4º. Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia. Art. 5º. Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para a caracterização da morte encefálica serão definidos por faixa etária, conforme abaixo especificado: a) de 7 dias a 2 meses incompletos - 48 horas b) de 2 meses a 1 ano incompleto - 24 horas c) de 1 ano a 2 anos incompletos - 12 horas d) acima de 2 anos - 6 horas Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: a) ausência de atividade elétrica cerebral ou, b) ausência de atividade metabólica cerebral ou, c) ausência de perfusão sangüínea cerebral. Art. 7º. Os exames complementares serão utilizados por faixa etária, conforme abaixo especificado: a) acima de 2 anos - um dos exames citados no Art. 6º, alíneas "a", "b" e "c"; b) de 1 a 2 anos incompletos: um dos exames citados no Art. 6º , alíneas "a", "b" e "c". Quando optar-se por eletroencefalograma, serão necessários 2 exames com intervalo de 12 horas entre um e outro; c) de 2 meses a 1 ano incompleto - 2 eletroencefalogramas com intervalo de 24 horas entre um e outro; d) de 7 dias a 2 meses incompletos - 2 eletroencefalogramas com intervalo de 48 horas entre um e outro887.

Paulo César Busato conclui então que pode se considerar morto o indivíduo que,

cumprido o protocolo médico, não revelar condições de sobrevivência888. Vai mais longe,

definindo a morte – e conseqüentemente a vida – em termos jurídicos como “a ausência de

vida, representada esta pela atividade cerebral da qual depende a realização de todas as

funções do encéfalo (tronco mais cérebro) e por conseguinte, de todo o corpo humano”889.

A literatura médica brevemente consultada890 aponta como critério para diferenciação

entre os estados de vida e morte humanas a inexistência irreversível de atividade cerebral e do

887 BRASIL. Conselho Nacional de Medicina. Resolução n. 1.480, de 8 de agosto de 1997. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1997/1480_1997.htm>. Acesso em: 29 out. 2008. 888 BUSATO, Paulo César. Tipicidade material, aborto e anencefalia. Novos Estudos Jurídicos, p. 591. 889 BUSATO, Paulo César. Tipicidade material, aborto e anencefalia. Novos Estudos Jurídicos, p. 591. 890 Cf. FONSECA, Luiz Fernando; PIANETTI, Geraldo. Manual de neurologia infantil, p. 320. DIAMENT, Aron. Neurologia infantil. São Paulo: Atheneu, 1996, p. 1.293. CICIARELLI, Marcelo. Neurologia para o não-especialista. Santos: Livraria Santos, 2003, p. 470.

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tronco cerebral – critério médico compatível como o legal, consubstanciado este nos referidos

atos legais: Lei n. 9.434/97, Decreto n. 2.268/97 e Resolução CFM n. 1.480/97.

Pode-se concluir então que a vida humana, do ponto de vista jurídico (informado pela

ciência médica), pode ser definida em função da existência de atividade cerebral; não havendo

tal atividade, a pessoa haverá de ser considerada morta – ainda que seu corpo, auxiliado por

máquinas, possa executar atividades como a respiratória e circulatória sangüínea.

Paulo Cesar Busato pondera que

A morte do anencéfalo deriva justamente da falta de atividade cerebral, tal qual o doador de órgãos. Logo, se morte – para efeito da lei de doação de órgãos – é a cessação completa da atividade cerebral, vida é a existência, por tênue que seja, de atividade cerebral. O diagnóstico da anencefalia é, portanto, um diagnóstico a respeito da certeza da morte imediata ou, na melhor das hipóteses, iminente e que ademais, equivale, precisamente, à morte diagnosticada pelo protocolo superado com vistas ao transplante. Tanto é assim, que a anencefalia é considerada, nos tratados médicos, como ‘uma deformação incompatível com a vida’891.

Nesse sentido, pode-se concluir também que a anencefalia é condição absolutamente

incompatível com a vida humana, pois que sua constatação será confirmada precisamente pela

impossibilidade do cérebro de realizar suas funções típicas – seja pela ausência do tecido

cerebral ou por sua má-formação.

5.3 A ADPF N. 54

Nessa seção o objeto da investigação é, finalmente, a ADPF n. 54 – seus pedidos e sua

causa de pedir. O relato desses aspectos da ação é baseado na petição inicial892 do processo,

de lavra do advogado Luís Roberto Barroso, no qual figura como autor a Confederação

Nacional dos Trabalhadores na Saúde, entidade sindical de âmbito nacional que tem entre

suas finalidades a substituição e representação perante as autoridades judiciárias e

administrativas os interesses individuais e coletivos da categoria profissional dos

trabalhadores na saúde – categoria na qual se incluem, entre outros, médicos e enfermeiros.

891 BUSATO, Paulo César. Tipicidade material, aborto e anencefalia. Novos Estudos Jurídicos, p. 592. 892 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Petição inicial. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/fazerDownload.asp?classe=ADPF&processo-54>. Acesso em: 8 jun. 2008.

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5.3.1 Causa de pedir e pedidos

O pedido principal consignado na petição inicial, ajuizada em 17 de junho de 2004, é

que o STF declare inconstitucional, com eficácia contra todos e efeito vinculante, a

interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal893 que impeça a antecipação

terapêutica do parto em casos de gravidez de feto com anencefalia; como pedido alternativo

consta o recebimento da ADPF como ação direta de inconstitucionalidade, pretendendo a

interpretação conforme à Constituição dos referidos artigos do Código Penal, sem redução de

texto894.

Requer ainda em sede de medida liminar a suspensão do andamento de processos e

dos efeitos de decisões judiciais que apliquem os dispositivos penais em tela nos casos de

antecipação do parto de anencéfalos, bem como o reconhecimento do direito da gestante de se

submeter ao procedimento do parto antecipado895.

Os preceitos fundamentais violados pelos dispositivos penais seriam, em tese, o

princípio da dignidade da pessoa humana (disposto no art. 1°, IV da CRFB/1988), a liberdade

individual (prevista de maneira oblíqua, conforme já analisado neste trabalho, pelo art. 5°, II

da CRFB/1988) e o direito à saúde (arts. 6° e 196 da CRFB/1988)896; por seu turno, o ato do

Poder Público que viola os preceitos elencados anteriormente é a interpretação inadequada

dos dispositivos penais que impedem a antecipação do parto de anencéfalos, consubstanciado

em múltiplas decisões judiciais que impedem a realização de tal procedimento897.

Dos argumentos aduzidos pela autora, se extrai o seguinte trecho:

893 BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 21 out. 2008. 894 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Petição inicial. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/fazerDownload.asp?classe=ADPF&processo-54>. Acesso em: 8 jun. 2008. 895 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Petição inicial. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/fazerDownload.asp?classe=ADPF&processo-54>. Acesso em: 8 jun. 2008. 896 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Petição inicial. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/fazerDownload.asp?classe=ADPF&processo-54>. Acesso em: 8 jun. 2008. 897 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Petição inicial. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/fazerDownload.asp?classe=ADPF&processo-54>. Acesso em: 8 jun. 2008.

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Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica898.

Pode se vislumbrar assim a conexão que a autora estabelece entre ato do Poder Público

que não autoriza a antecipação do feto e a lesão de preceito fundamental – consistente esse na

violação dos direitos fundamentais da gestante: sua liberdade e sua própria vida.

5.3.2 Desdobramentos do processo

A CNBB, já em 25 de junho de 2004, ajuizou requerimento de admissão no processo

na qualidade de amicus curiae – pedido que restou indeferido dois dias depois pelo relator do

processo, Ministro Marco Aurélio Mello. Postulada a reconsideração em 06 de julho de 2004,

sua admissão no processo foi novamente indeferida pelo relator com base na seguinte

fundamentação: “Nada há a reconsiderar no caso. A atuação de terceiro pressupõe

convencimento do relator sobre a conveniência e a necessidade da intervenção”899.

Em 1º de julho de 2004 o Ministro relator do processo deferiu os pedidos liminares

deduzidos pela autora, em decisão com o seguinte teor:

[...] há, sim, de formalizar-se medida acauteladora e esta não pode ficar limitada a mera suspensão de todo e qualquer procedimento judicial hoje existente. Há de viabilizar, embora de modo precário e efêmero, a concretude maior da Carta da República, presentes os valores em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se-ão não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo

898 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Petição inicial. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/fazerDownload.asp?classe=ADPF&processo-54>. Acesso em: 8 jun. 2008. 899 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Andamentos. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero-54&classe=ADPF&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 5 nov. 2008.

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médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie900.

No mesmo dia, 1° de julho de 2004, em nota assinada pelo seu Presidente, o Cardeal

Geraldo Majella Agnelo, pelo vice-presidente Dom Antônio Celso de Queirós e pelo

secretário-geral Dom Odilo Pedro Scherer, a CNBB assim se manifesta:

A Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil foi surpreendida pela decisão solitária do Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal que, nos Autos de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, entendeu que não há crime de aborto nos casos de interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Desta forma, autorizou a interrupção voluntária da gestação de uma vida humana. Dada a gravidade do caso, a CNBB julga oportuno que tal decisão tivesse sido tomada após ampla reflexão por parte da sociedade e a participação do Plenário da Suprema Corte. A CNBB confia que o senso de Direito e de Justiça dos Membros do Supremo Tribunal Federal fará reverter a decisão ora tomada. De fato, a Vida humana, que se forma no seio da mãe, já é um novo sujeito de direitos e, por isso, tal vida deve ser respeitada sempre, não importando o estágio ou a condição em que ela se encontre901.

Em 19 de agosto de 2004, em função das negativas do relator em admitir a CNBB no

processo como amicus curiae, a entidade enviou aos Ministros do STF um memorial,

acusando o relator de usurpar função do Congresso Nacional e argumentando a importância

da fé na formação cultural dos brasileiros e pedindo novamente para ser ouvida:

Com essa decisão, o Ministro Marco Aurélio, com todo o respeito, usurpou função exclusiva do Congresso Nacional: legislar positivamente. Em verdade, diz a nossa Constituição que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (Inciso II, Art. 5º). Sucede que essa decisão criou uma nova hipótese legislativa e em matéria de direito penal, gravada pela cláusula da estrita legalidade, em face dos valores sociais protegidos. [...] Excelências, o Evangelho de Jesus Cristo é parte das concepções de Mundo há mais de 2.000 (dois) mil anos. No Brasil, o cristianismo se confunde com a nossa história. Daí que os valores cristãos fazem parte da formação cultural de nossa sociedade. Um Estado laico respeita os valores religiosos de uma sociedade e os considera na formulação de suas decisões. Os Poderes do Estado, e o Judiciário é um deles, decidem em nome e para o povo, daí que

900 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Andamentos. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero-54&classe=ADPF&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 5 nov. 2008. 901 CNBB. A reação: CNBB quer que STF reveja decisão sobre feto sem cérebro. Consultor Jurídico, Brasília, 2 jul. 2004. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/static/text/25927,1>. Acesso em: 21 out. 2008.

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não podem desprezar ou ignorar esses valores em suas decisões. A República deve ser laica, democrática, plural e aberta. Todavia, isso não implica ou impõe uma indiferença ou desconsideração aos aspectos espirituais ou às convicções das pessoas. O Estado não tem fé, as pessoas sim. Daí, indaga-se: deve o Judiciário ignorar a religiosidade dos jurisdicionados? Entendemos que não. Na verdade, deve velar na proteção desse bem jurídico – as crenças religiosas. Afinal, sabemos todos que religiosidade é uma das mais belas manifestações culturais de um povo. A sociedade brasileira tem nas suas religiões um dos seus elementos de identidade902.

Ante a manifestação da CNBB e aos requerimentos que se avolumavam de entidades

diversas pela admissão na qualidade de amicus curiae, o relator decidiu pela realização de

audiência pública para ouvir as referidas entidades, no que exarou o seguinte despacho em 30

de setembro de 2004:

[...] a matéria em análise deságua em questionamentos múltiplos. A repercussão do que decidido sob o ângulo precário e efêmero da medida liminar redundou na emissão de entendimentos diversos, atuando a própria sociedade. Daí a conveniência de acionar-se o disposto no artigo 6º, § 1º, da lei nº 9882, de 3/12/99 [...] então, tenho como oportuno ouvir, em audiência pública, não só as entidades que requereram a admissão no processo como 'amicus curiae', [...] como também as seguintes entidades: Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Sociedade Brasileira de Genética Clínica, Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, Conselho Federal de Medicina, Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sociais e Direitos Representativos, Escola de Gente, Igreja Universal, Instituto de Biotécnica, Direitos Humanos e Gênero [...] Deputado Federal José Aristodemo Pinotti903.

Em 20 de outubro de 2004, o pleno do STF revogou parcialmente a liminar, no que

toca à possibilidade das gestantes procederem à antecipação do parte de anencéfalos, com o

seguinte despacho:

[...] após o voto do senhor Ministro Marco Aurélio, relator, resolvendo a questão de ordem no sentido de assentar a adequação da ação proposta, pediu vista dos autos o senhor ministro Carlos Britto. Em seguida, o Tribunal, acolhendo proposta do senhor ministro Eros Grau, passou a deliberar sobre a revogação da liminar concedida e facultou ao patrono da argüente nova oportunidade de sustentação oral. Prosseguindo no

902 CNBB. Pano pra manga: CNBB diz que ministro usurpou função do Congresso Nacional. Consultor Jurídico, Brasília, 19 ago. 2004. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/static/text/29249,>. Acesso em: 21 out. 2008. 903 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Andamentos. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero-54&classe=ADPF&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 5 nov. 2008.

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julgamento, o Tribunal, por maioria, referendou a primeira parte da liminar concedida, no que diz respeito ao sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, vencido o senhor ministro Cezar Peluso. E o Tribunal, também por maioria, revogou a liminar deferida, na segunda parte, em que reconhecia o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, vencidos os senhores Ministros relator, Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence904.

No dia seguinte, Silvana de Freitas noticia no jornal Folha de São Paulo:

O plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) derrubou a liminar do ministro Marco Aurélio de Mello que havia liberado a interrupção da gravidez nos casos de fetos com anencefalia (ausência de cérebro) sem autorização judicial específica. Houve sete votos contrários à liminar e quatro favoráveis. Além de Marco Aurélio, Carlos Ayres Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence foram a favor de manter a decisão. O advogado Luiz Roberto Barroso, que preparou a ação pedindo a autorização para realizar este tipo de aborto em nome da CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde), criticou a pressão da Igreja Católica sobre os 11 ministros, dizendo que ela foi ‘indescritível’. ‘Em um Estado laico, os dogmas da fé não podem subordinar a interpretação do direito.’ Barroso criticou particularmente o envio de protestos por meio eletrônico. ‘Os computadores dos ministros foram inundados de mensagens’905.

O Ministro Marco Aurélio Mello, em artigo publicado pela mesma Folha de São Paulo

de 29 de outubro de 2004, pondera:

Anuí à lógica irrefutável da conclusão sobre a dor, a angústia e a frustração experimentadas pela mulher grávida ao ver-se compelida a carregar no ventre, durante nove meses, um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá. Para qualquer pessoa nesse situação, ficar à mercê da permissão do Estado para livrar-se de semelhante sofrimento resulta, para dizer o mínimo, em clara violência às vertentes da dignidade humana – física, moral e psicológica. Não tive como aquiescer à ignomínia de condenar-se a gestante a suportar meses a fio de desespero e impotência, em frontal desrespeito à liberdade e à autonomia da vontade, direitos básicos, imprescindíveis, consagrados em toda sociedade que se afirme democrática. Ao fim e ao cabo, a pergunta que não quer calar é: quem poderá, efetivamente, dimensionar a dor alheia? Quem poderá condenar outrem por querer, antes de tudo, preservar a si mesmo, colocando à margem outros valores? Por que se deve respeitar os valores de quem tem fé e olvidar as convicções de quem ignora dogmas religiosos ou trajetórias espirituais? Em nome de que deus ou sob a égide de que premissas humanitárias defende-se

904 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Andamentos. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero-54&classe=ADPF&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 5 nov. 2008. 905 FREITAS, Silvana de. Cai liminar do aborto de feto sem cérebro. Folha de São Paulo. São Paulo, 21 out. 2004. Cotidiano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2110200401.htm>. Acesso em: 20 out. 2008.

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o direito à efêmera sobrevivência de um em detrimento do risco e do padecimento, sabe-se lá a gravidade das conseqüências, de outro? No cerne da questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. São muitos e de crucial importância os valores em jogo. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana906.

Em 28 de abril de 2005, foi acatada a admissibilidade da ADPF, anteriormente

questionada pelo Procurador-Geral da República, bem como foi confirmada a realização de

audiência pública para manifestação daquelas entidades referidas:

[...] prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, entendeu admissível a argüição de descumprimento de preceito fundamental e, ao mesmo tempo, determinou o retorno dos autos ao relator para examinar se é caso ou não da aplicação do artigo 6º, § 1º da lei nº 9.882/1999, vencidos os senhores ministros Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Carlos Velloso, que não a admitiam. Votou o Presidente, ministro Nelson Jobim907.

Em 31 agosto 2007 foi publicado acórdão com as seguintes ementas:

ADPF – ADEQUAÇÃO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – FETO ANENCÉFALO – POLÍTICA JUDICIÁRIA – MACROPROCESSO. Tanto quanto possível, há de ser dada seqüência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de preceito fundamental. ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – PROCESSOS EM CURSO – SUSPENSÃO. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal. ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – AFASTAMENTO – MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar

906 MELLO, Marco Aurélio Mendes de Farias. A dor a mais. Folha de São Paulo. São Paulo, 29 out. 2004. Cotidiano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2910200409.htm>. Acesso em: 20 out. 2008. 907 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Andamentos. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero-54&classe=ADPF&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 5 nov. 2008.

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no sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez no caso de anencefalia908.

Em 7 de agosto de 2008 foram convidados a participar da audiência pública: dez dos

onze Ministros do STF909, o Procurador-Geral da República, o Deputado Federal José

Aristodemo Pinotti, e as entidades Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, Conferência

Nacional dos Bispos do Brasil, Igreja Universal do Reino de Deus, Associação de

Desenvolvimento da Família, Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos

Reprodutivos, Associação Escola da Gente, Conselho Federal de Medicina, Federação

Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, Sociedade Brasileira de Medicina

Fetal, Sociedade Brasileira de Genética Clínica, Sociedade Brasileira para o Progresso da

Ciência, Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero, e a organização não-governamental

"Católicas Pelo Direito de Decidir"910.

Em 22 de agosto de 2008 foram ainda admitidos a participar da audiência pública o

Deputado Federal Luiz Bassuma, a titular do Departamento de Biologia Celular da

Universidade de Brasília Lenise Aparecida Martins Garcia e o presidente do Movimento

Nacional da Cidadania em Defesa da Vida – Brasil sem Aborto, além da entidade Associação

Médico-Espírita do Brasil; em 2 de setembro de 2008 foi convidado ainda o Ministro de

Estado da Saúde José Gomes Temporão; em 4 de setembro de 2008, foram aceitas as

entidades Conectas Direitos Humanos, Centro de Direitos Humanos e o Conselho Nacional

dos Direitos da Mulher911.

A audiência pública, desdobrada em quatro sessões, foi realizada nos dias 26/08/2008,

28/08/2008, 04/09/2008 e 16/09/2008. Algumas manifestações são relevantes, pelo que

merecem reprodução: o padre Luiz Antônio Bento, que falou em nome da CNBB, reiterou os

argumentos já deduzidos pela entidade, defendendo ainda

908 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Andamentos. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero-54&classe=ADPF&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 5 nov. 2008. 909 Celso de Mello, Gilmar Mendes, Ellen Gracie Northfleet, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Menezes Direito, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia; o relator do processo, Marco Aurélio Mello conduziria a audiência, sendo desnecessário o convite. 910 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Andamentos. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero-54&classe=ADPF&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 5 nov. 2008. 911 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Andamentos. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero-54&classe=ADPF&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 5 nov. 2008.

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Que a prática de interrupção da gravidez, de uma criança normal ou de um bebê sem cérebro, é um ato de morte deliberado. [...] Ninguém pode autorizar que se dê a morte a um ser humano inocente, seja ele embrião, feto, ou criança sem ou com má-formação, adulto, velho, doente, incurável ou agonizante912.

Luís Roberto Barroso, por sua vez, argumentou que “A interrupção de gravidez de

fetos anencéfalos não configura aborto. [...] O aborto pressupõe uma potencialidade de vida, o

que não é o caso [em fetos anencéfalos]”913.

A Igreja Universal do Reino de Deus manifestou-se no sentido de apoiar a antecipação

terapêutica do parto de fetos anencéfalos. O bispo Carlos Macedo de Oliveira, que falou em

nome da Igreja, ponderou que a questão diz respeito à saúde e à liberdade individual da

mulher – cabendo, portanto, exclusivamente a ela decidir sobre o parto antecipado. Asseverou

o Bispo que “talvez nenhum de nós consiga dimensionar os agravos de uma gravidez

acometida de anencefalia. Descriminalizar o aborto é diferente de torná-lo obrigatório”914.

Maria José Fontelas Rosado Nunes, professora da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, e presidente da organização não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir

manifestou-se no sentido de que às mulheres deve ser reservada a escolha do destino de sua

gravidez em casos de comprovada anencefalia. Maria José consignou que a permissão com

eficácia geral para interrupção da gravidez de feto anencefálico é questão de justiça social,

beneficiando principalmente as mulheres pobres, que nem sempre dispõem de recursos para

provocar a tutela do Estado915.

A professora encerrou sua manifestação com a leitura de uma carta de moradora de

Teresópolis/RJ endereçada aos Ministros do STF, na qual relata a gravidez que enfrentou de

feto portador de hidrocefalia, que levou até o final na esperança de que vivesse; grávida

912 BENTO, Luiz Antônio. Fetos sem cérebro: STF ouve argumentos sobre interrupção de gravidez. Consultor Jurídico, Brasília, 26 ago. 2008. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/static/text/69263,1>. Acesso em: 21 out. 2008. 913 BARROSO, Luís Roberto. Fetos sem cérebro: STF ouve argumentos sobre interrupção de gravidez. Consultor Jurídico, Brasília, 26 ago. 2008. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/static/text/69263,1>. Acesso em: 21 out. 2008. 914 OLIVEIRA, Carlos Macedo de. Religiosos discutem aborto em caso de anencefalia no STF. O Globo Online. Rio de Janeiro, 26 ago. 2008. País. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/mat/2008/08/26/religiosos-discutem-aborto-em-caso-de-anencefalia-no-stf-547951423.asp>. Acesso em: 20 out. 2008. 915 NUNES, Maria José Fontelas. Fetos sem cérebro: STF ouve argumentos sobre interrupção de gravidez. Consultor Jurídico, Brasília, 26 ago. 2008. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/static/text/69263,1>. Acesso em: 21 out. 2008.

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novamente e constatada novamente a malformação, recorreu à Justiça para interromper a

gravidez, mas teve seu pedido negado em primeira instância; já na segunda instância o

processo perdeu o objeto com o parto e morte do bebê. Pede a mãe: “viver uma gravidez sem

esperança é acordar e dormir no desespero. Nunca vou esquecer do caixão com a filha que me

obrigaram a enterrar. Não escolhemos essa tragédia, mas gostaríamos de ter o direito de não

prolongá-la”916.

Superada a etapa da audiência pública, em 03 de novembro de 2008, às 15h57min, o

processo foi apresentado para julgamento pelo pleno, não tendo ainda sido designada data

para apreciação pelo Tribunal917.

5.4 A IGREJA CATÓLICA E OS NÃO CATÓLICOS NA ADPF N. 54

Para Flávia Piovesan, “o Estado laico é garantia essencial para o exercício dos direitos

humanos, especialmente nos campos da sexualidade e da reprodução”918; a confusão do

Estado com a religião resulta na adoção por aquele dos dogmas desta, impondo moral única e

inviabilizando qualquer traço de pluralidade em uma sociedade – que como já foi

demonstrado, constitui-se em fundamento e objetivo da República brasileira.

Elza Galdino pondera que

o povo brasileiro já demonstra maturidade para não ser tutelado em sua fé, e para tanto o Estado deve-se abster de toda e qualquer opção religiosa, seja ela materializada através de símbolos afixados em paredes ou apostos em mesas de trabalho, seja ela por palavras impressas em expedientes oficiais, seja ela gravada em cédulas de dinheiro ou, ainda, concretizada pela autoridade de qualquer de seus prepostos919.

Especificamente no que diz respeito à tradição e aos dogmas católicos, o advogado

Zanon de Paula Barros assevera, com certa dose de ironia:

916 NUNES, Maria José Fontelas. Fetos sem cérebro: STF ouve argumentos sobre interrupção de gravidez. Consultor Jurídico, Brasília, 26 ago. 2008. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/static/text/69263,1>. Acesso em: 21 out. 2008. 917 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 54. Andamentos. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero-54&classe=ADPF&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 5 nov. 2008. 918 PIOVESAN, Fávia. Direitos humanos e justiça internacional, p. 20. 919 GALDINO, Elza. Estado sem Deus, p. 111.

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Em primeiro lugar, é de lembrar-se que, apesar do feriado inconstitucional de 12 de outubro, o Brasil é, graças a Deus, um estado laico, em que todas as religiões são permitidas, mas só produzem regras para seus adeptos. Em segundo lugar, se fôssemos acreditar nas verdades da Igreja Católica, somente quinhentos anos depois de Galileu aceitaríamos que a Terra é redonda e que gira em torno do Sol. Além disto, acreditaríamos até hoje que a humanidade teve origem incestuosa, pois como Adão e Eva só tiveram (segundo a Igreja) filhos homens, estes só poderiam ter dado origem à humanidade se tivessem relação com sua mãe Eva, e depois com as eventuais filhas delas -- irmãs e filhas deles. Em terceiro lugar, como o Estado brasileiro não pode privilegiar uma determinada religião. Se atender à CNBB terá que atender também às testemunhas de Jeová e proibir a transfusão de sangue nos hospitais. E teríamos ainda que reconhecer a validade dos preceitos judaicos, proibindo, para tristeza dos mineiros, o consumo da carne de porco. Ora, religião segue quem quer e nenhuma organização religiosa tem o direito de intervir nas coisas do Estado. Aliás, Cristo, que os religiosos teimam em ignorar, já dizia: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Meu reino não é deste mundo.”920

Para André Petry, ao revogar a liminar que anteriormente concedera, o STF acabou

por provocar atraso na laicização do Estado e na secularização das instituições:

Atraso porque, além de tudo, o STF deu guarida ao autoritarismo religioso pelo qual todos têm de viver sob os ditames da fé – queiram ou não, sejam crentes, sejam ateus. Afinal, a liminar não obrigava mulher alguma a interromper a gravidez de um feto sem cérebro. Apenas autorizava o aborto às mulheres que, torturadas pela dor psicológica de gerar um filho que morrerá ao nascer, quisessem fazê-lo. A idéia, generosamente humana, era conceder a elas o direito de fugir do suplício de dar à luz um filho que, já em sua primeira noite, em vez do berço, deita no caixão. Não obrigava ninguém a abortar nem a levar a gravidez até o fim. Dava às mulheres o direito de fazer uma escolha numa situação já dolorosa o bastante. Mas a tirania religiosa não admite que apenas seu rebanho viva segundo sua fé. Todos os demais também devem fazê-lo. É outra tortura. E outro retrocesso921.

O Ministro Marco Aurélio Mello ressalta a natureza opcional do aborto de anencéfalo

que autorizara, a depender das convicções da gestante. Questionado se, pelo fato de ser ele

próprio católico, não entra em conflito por suas convicções, respondeu: “Nenhum [conflito].

920 BARROS, Zanon de Paula. Anencefalia em questão: somente pessoas sem cérebro aceitam procuradores de Deus. Consultor Jurídico, Brasília, 13 jul. 2004. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/static/text/26424,1>. Acesso em: 21 out. 2008. 921 PETRY, André. Sem aborto. Com dor. Veja. São Paulo, 27 out. 2004. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/271004/andre_petry.html >. Acesso em: 20 out. 2008.

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214

Não potencializo a religião a ponto de colocar em segundo plano a razão. Tenho consciência

de que exerço a missão sublime de julgar conflitos que envolvem meus semelhantes”922.

No que diz respeito à eventual usurpação de função do Congresso Nacional,

declarando o motivo pelo qual o STF deverá se pronunciar acerca da questão que se lhe

propôs, assevera: “porque o Supremo Tribunal Federal é a última trincheira do cidadão”923.

Não se pode olvidar o fato de que aqueles que chegam às portas do Poder Judiciário no

intuito de ter autorizado o procedimento de aborto de anencéfalo já superaram as questões

íntimas que lhe dizem respeito, religiosas ou não, e que poderiam afetar sua decisão.

A partir do momento em que se veda determinada conduta indiscriminadamente a

todos os indivíduos, vedação esta baseada em doutrinas religiosas, sejam elas quais forem,

viola-se a liberdade dos que não aderem àquela religião – eventualmente impondo-lhes

conduta que não condiz com sua própria determinação.

Viola-se a liberdade individual, mais precisamente a liberdade negativa do indivíduo,

pois que em função de limitação de conduta imposta pelo Estado, influenciado por

determinada crença religiosa, este impedirá todos os indivíduos, mesmo aqueles que daquela

crença não compartilham, de atuar segundo suas próprias convicções.

Tanto o processo legislativo quanto a prestação do serviço público e a prestação

jurisdicional, mormente neste último no caso de decisão com eficácia erga omnes, haverão de

ser informados pela preservação do direito fundamental da liberdade; sem a observância desse

aspecto qualquer declaração de garantia da liberdade será inócua e qualquer atividade estatal

será atentatória aos próprios princípios e bases fundantes do próprio Estado.

Assim é que, ainda que se tenha estabelecido como limite da liberdade as

determinações legais, na busca da preservação equânime da liberdade de todos os indivíduos,

eventual norma jurídica que atente contra esta capacidade de determinar-se de acordo com

suas convicções não poderá ser reconhecida como adequada frente aos preceitos da

CRFB/1988 ou de qualquer outra ordem constitucional que assegure a liberdade como direito

fundamental.

922 MELLO, Marco Aurélio. Pelo fim da hipocrisia. Veja. Brasil. n. 2.076, São Paulo, 3 set. 2004. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/271004/andre_petry.html>. Acesso em: 20 out. 2008. 923 MELLO, Marco Aurélio. Pelo fim da hipocrisia. Veja. Brasil. n. 2.076, São Paulo, 3 set. 2004. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/271004/andre_petry.html>. Acesso em: 20 out. 2008.

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É ainda curioso que o próprio Papa Bento XVI, em entrevista à Rádio Vaticano e ao

canal de televisão alemão Deutsche Welle, em 5 de agosto de 2006, quando confrontado com

a questão de ser objetivo do pontificado anunciar a fé ou agir como apóstolo da moral,

sentenciou: “O Cristianismo, o Catolicismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção

positiva. E é muito importante que evidenciemos isso novamente, porque essa consciência,

hoje, desapareceu quase que completamente”924.

Quando confrontada a declaração do sumo pontífice católico com a atuação da própria

Igreja Católica, através de suas entidades e representantes, frente ao Estado brasileiro como

um todo e especificamente no que diz respeito à ADPF n. 54, pode-se concluir que a prática

da Igreja Católica se distancia de seu discurso; é que o Papa Bento XVI reafirma a natureza

opcional do catolicismo mas atua com todas suas forças para impor sua fé através do Estado.

924 PAPA BENTO XVI. Entrevista de Bento XVI em previsão de sua viagem à Baviera. Zenit, Nova Iorque, 16 ago. 2006. Disponível em: <http://www.zenit.org/article-12110?l=portuguese>. Acesso em: 22 out. 2008.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como ficou demonstrado pelos dois primeiros capítulos desta monografia, à liberdade

pode se atribuir a característica de pilar central e mesmo a de elemento deflagrador de toda a

construção acerca dos direitos fundamentais da maneira como se os conhece atualmente.

Pode-se ainda atribuir à liberdade, em seu duplo aspecto positivo-negativo, um ideal

de comportamento do ser humano perante a si próprio e perante os outros. À soma da

capacidade do indivíduo de se auto determinar, assim entendida sua autonomia para decidir de

per se seus valores e suas convicções, e da possibilidade de agir conforme sua determinação

sem oposição indevida de quem quer que seja é que se chama de liberdade, como quer Isaiah

Berlin. Note-se que esse direito de agir conforme sua determinação comporta limitação desde

que para preservar o mesmo direito de outrem, conforme lição de John Rawls.

De acordo com a pesquisa realizada e neste trabalho relatada, pode-se concluir que a

liberdade é condição sine qua nom para o exercício de todos os outros direitos, fundamentais

ou não – inclusive para o direito à vida.

Não necessita de maiores divagações o fato de que a vida é condição de existência do

próprio sujeito de direito, de modo que a aquisição ou incorporação do direito à liberdade só

pode lhe ser posterior; mas partindo de toda a construção histórica acerca da dignidade da

pessoa humana é imperioso concluir que, para a ciência do direito, a vida não se resume tão

somente a respirar; é preciso fazê-lo tendo asseguradas condições de desenvolvimento do

potencial humano – que é o que, em definitivo, lhe confere a titularidade destes direitos ditos

humanos ou fundamentais.

Assim, o conteúdo da liberdade como direito fundamental será sempre orientado no

sentido de permitir ao indivíduo tome suas próprias decisões e que de acordo com essas se

comporte; tal comportamento somente poderá impedido quando não for compatível com o

mesmo grau de liberdade de outrem, não comportando essa limitação julgamentos de valor

acerca do que se teria por mais apropriado para um comportamento ético – haja vista que esse

julgamento é a própria essência de “tomar suas próprias decisões”, ou do livre arbítrio.

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217

Com essas breves conclusões, baseadas nos dois primeiros capítulos deste relato,

pode-se ter por cumprido o primeiro objetivo específico, que cuida da necessidade de

compreensão do conteúdo, do sentido e do alcance da liberdade.

Já no que diz respeito ao segundo objetivo específico, o exame do fenômeno religioso

de maneira geral e da Igreja Católica em particular, pode-se considerá-lo como alcançado pelo

conteúdo do terceiro capítulo desta monografia.

Tomando-se como conceito de religião o proposto por Durkheim, qual seja, um

sistema de crenças e práticas relativas a coisas sagradas, e como Igreja uma comunidade

moral formada pelos indivíduos que aderem àquela religião, já se pode deduzir o caráter

volitivo ou não compulsório de uma religião.

Identificado como a religião inaugurada pela pregação de Jesus Cristo, através do

relato dos apóstolos, e consolidada pelo magistério do pontífice romano, o catolicismo e seus

deslocamentos históricos foram investigados principalmente no que diz respeito à seu

crescimento no Brasil.

Desde a época do descobrimento até os dias atuais, passando pela alternância de

períodos de democracia com períodos de ditadura, se pôde vislumbrar a presença da Igreja

Católica no Estado brasileiro – ora em atitudes que vão frontalmente se chocar com os anseios

da sociedade, ora em movimentos que se alinham à vontade popular.

O que se observa é que, independentemente de estar ou não ao lado dos anseios

sociais, a Igreja Católica sempre defendeu – como ainda defende – a sua visão de mundo, a

sua moral e as suas concepções nos mais diversos aspectos da vida humana.

Se percebeu ainda, já por conta da abordagem do quarto capítulo, que no caso

específico da interrupção do parto de anencéfalos a posição da Igreja Católica é contrária à

expressiva parcela da sociedade, considerando-se tão somente os que tem parte no processo

analisado.

Independentemente da quantidade de indivíduos que não compartilhem da posição

católica de clara contrariedade à interrupção do parto, é incontroverso que a atuação da Igreja

Católica na ADPF, pela própria natureza da ação, tem o condão de afetar a todos os

jurisdicionados brasileiros, sem qualquer distinção de seu credo religioso.

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Nesse passo, caso os Ministros do STF acatem os argumentos deduzidos naquela

processo pela Igreja Católica, estarão impondo aos brasileiros moral única, religiosa e, a partir

de então, incontornável – em claro confronto com o processo de secularização a que se

submete o próprio Estado, no objetivo de tornar-se laico.

Ocorre que, na qualidade de preceito religioso, tal limitação não pode ser imposta aos

indivíduos através do Estado – justamente pela característica desse de ser laico e assim

objetivar a preservação da liberdade de todos os indivíduos independentemente de suas

convicções religiosas

Por outro lado, não se vislumbra a que outro indivíduo se estaria garantido a liberdade

impedindo à gestante de feto anencéfalo a conduta de abortá-lo, caso assim deseje. É que o

feto anencefálico, pela própria definição da malformação conhecida por anencefalia, não é e

nunca se tornará um ser humano: pela impossibilidade de se dotar de razão, traço distintivo

dos homens, é que não se lhe pode atribuir direitos.

Dessa maneira, sem o requisito necessário da garantia da liberdade de outrem, não há

viabilidade jurídica, à luz dos direitos fundamentais, de se impedir à gestante de feto

anencéfalo que proceda, caso assim o queira, à interrupção da desafortunada gravidez.

É com toda a análise da ADPF n. 54 desenvolvida no quarto capítulo deste relato e as

considerações anteriores acerca dos possíveis resultados da influência da Igreja Católica no

referido processo que se conclui a investigação necessária ao cumprimento do terceiro

objetivo específico.

A partir do cumprimento dos objetivos específicos decorrem logicamente as respostas

aos questionamentos formulados no início da pesquisa. Passa-se à breve análise individual dos

quatro questionamentos:

1) A Igreja Católica tem condições de influenciar o julgamento da ADPF n. 54? A

hipótese que melhor responde à pergunta é a afirmativa; em que pese o requerimento ainda

não aceito para tomar parte no processo como amicus curiae, a Igreja Católica, através da

CNBB, participou de recente audiência pública na qual externou sua posição e se fez ouvir

pelos Ministros do STF; o advogado Luís Roberto Barroso denunciou ainda, através da

imprensa, a pressão que a Igreja Católica tem exercido nos Ministros.

2) Caso a resposta ao primeiro questionamento seja positiva, essa influência católica

alcançaria os não católicos? Novamente, a hipótese que responde à pergunta, conforme se

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demonstrou, é a afirmativa. A decisão que aprecie o mérito da questão, nos termos em que foi

proposta, terá eficácia contra todos.

3) Caso positiva a resposta ao segundo questionamento, seria afetada especificamente

a liberdade dos não católicos? Pela definição que se obteve de liberdade, a hipótese que

responde a essa questão é também a afirmativa. A liberdade dos não católicos – bem assim

como a dos católicos – seria afetada pela influência da Igreja Católica. Menos relevante para

os católicos, para quem se presume comungar da posição oficial da Igreja e portanto não

resultem impedidos de se auto-determinar, aos não católicos seria tolhida a liberdade de

dispor do próprio corpo, impossibilitando a decisão de continuidade ou não da gestação de

feto malformado. Todas as gestantes haveriam de levar sua gravidez ao final para, após o

parto, ver o recém nascido sucumbir à inexorabilidade anunciada da morte prematura.

4) Caso a resposta ao terceiro questionamento seja novamente positiva, a influência da

Igreja Católica na liberdade dos não católicos pode ser considerada como atentatória aos

direitos fundamentais? Mais uma vez, a hipótese que se impõe é a afirmativa. Não

vislumbrado outro indivíduo a quem se preserve a liberdade em nome da restrição da gestante

de feto anencéfalo, clara é a violação da liberdade como direito fundamental dessa gestante.

Por outro lado, a variável definida para o problema teria a faculdade de modificar de

maneira substancial toda a exegese anterior. Com o deferimento do pedido da ADPF n. 54 e a

possibilidade aberta às gestantes de que interrompam, caso queiram, a gravidez de anencéfalo,

aos questionamentos propostos caberiam as seguintes hipóteses:

1) A Igreja Católica tem condições de influenciar o julgamento da ADPF n. 54?

Continuariam com resposta afirmativa, pois que se trata de “condições de influenciar”, ou

seja, a possibilidade de; o fato de que não tenha logrado êxito não permite que se conclua que

não poderia ter influenciado.

2) Caso a resposta ao primeiro questionamento seja positiva, essa influência católica

alcançaria os não católicos? Identicamente, a hipótese cabível ainda seria a afirmativa; a

possibilidade de alcançar a todos é decorrente da natureza intrínseca do processo da ADPF.

3) Caso positiva a resposta ao segundo questionamento, seria afetada especificamente

a liberdade dos não católicos? A esse questionamento a resposta haveria de ser oposta: com a

verificação da variável em análise, a hipótese cabível seria a negativa. Uma vez que o STF

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não tenha cedido à influência da Igreja Católica, decidindo pela possibilidade de antecipação

do parto de feto anencéfalo, não há que se falar em afetação da liberdade dos não católicos.

4) Caso a resposta ao terceiro questionamento seja novamente positiva, a influência da

Igreja Católica na liberdade dos não católicos pode ser considerada como atentatória aos

direitos fundamentais? Questão prejudicada pela resposta negativa à terceira proposição; não

havendo violação da liberdade, não há que se falar também em violação de direito

fundamental.

Em conclusão pode-se apontar que, caso prevaleça a concepção religiosa da Igreja

Católica e o STF, por aquela influenciado, decida no sentido de não permitir que as gestantes

de fetos anencéfalos decidam pela manutenção ou não da gravidez, ter-se-á flagrante violação

dos direitos fundamentais daquela parcela de gestantes que interromperiam a gravidez no caso

especificado.

Com as considerações acima deduzidas, pode-se então concluir pelo cumprimento do

objetivo geral a que se propôs na presente pesquisa, que era descobrir se a atuação da Igreja

Católica na ADPF n. 54 poderia, de alguma maneira, influenciar a liberdade dos não

católicos.

Tão importante quanto atingir os objetivos previamente definidos será fomentar a

discussão científica acerca da relação entre religião e liberdade, árdua mas gratificante seara

que permite ao pesquisador dedicado desvelar pontos de proximidade e de distanciamento

entre as duas categorias.

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