as representaÇÕes do sagrado na obra do mÚsico regionalista goiano joÃo caetano

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AS REPRESENTAÇÕES DO SAGRADO NA OBRA DO MÚSICO REGIONALISTA GOIANO JOÃO CAETANO Victor Creti Bruzadelli, Maria Amélia Garcia de Alencar [email protected] , [email protected] Faculdade de História, FH Palavras-chave: Música regionalista, religiosidade e natureza. “A música baseia-se na harmonia entre o céu e a terra, na concordância do sombrio e do luminoso” (Lü Bu We, Primavera e Outono) A música é provavelmente uma presença constante entre todos os povos em todos os tempos; por mais distintas que sejam as matrizes culturais, sempre teremos a música como representação e/ou expressão da experiência cotidiana de um determinado povo, em determinado espaço e tempo. Benjamin chama a atenção para a ‘aura’ que a revestiu até a era da reprodutibilidade técnica (1955). Tame, trabalhando com as culturas pré-cristãs, analisa a aura sagrada atribuída às manifestações musicais naquelas culturas e como este fato se reproduzirá, ou não, no imaginário de alguns músicos, sobrevivendo até a atualidade (1993). Wisnik revela que a música, por não ser da ordem nem do tato nem da visão, sentidos nos quais baseamos nossa realidade, é alçada à arte do espírito por excelência, conservando “as próprias propriedades do espírito” (2007: p. 28). O som seria, portanto, o elo comunicador entre os dois mundos: visível e invisível, terreno e espiritual, entre outros. Na maioria das antigas civilizações, se reforça a idéia de que “Sempre que

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AS REPRESENTAÇÕES DO SAGRADO NA OBRA DO MÚSICO REGIONALISTA

GOIANO JOÃO CAETANO

Victor Creti Bruzadelli, Maria Amélia Garcia de Alencar

[email protected], [email protected]

Faculdade de História, FH

Palavras-chave: Música regionalista, religiosidade e natureza.

“A música baseia-se na harmonia entre o céu e a terra, na concordância do sombrio

e do luminoso” (Lü Bu We, Primavera e Outono)

A música é provavelmente uma presença constante entre todos os povos em todos

os tempos; por mais distintas que sejam as matrizes culturais, sempre teremos a

música como representação e/ou expressão da experiência cotidiana de um

determinado povo, em determinado espaço e tempo. Benjamin chama a atenção para

a ‘aura’ que a revestiu até a era da reprodutibilidade técnica (1955). Tame, trabalhando

com as culturas pré-cristãs, analisa a aura sagrada atribuída às manifestações

musicais naquelas culturas e como este fato se reproduzirá, ou não, no imaginário de

alguns músicos, sobrevivendo até a atualidade (1993).

Wisnik revela que a música, por não ser da ordem nem do tato nem da visão,

sentidos nos quais baseamos nossa realidade, é alçada à arte do espírito por

excelência, conservando “as próprias propriedades do espírito” (2007: p. 28). O som

seria, portanto, o elo comunicador entre os dois mundos: visível e invisível, terreno e

espiritual, entre outros. Na maioria das antigas civilizações, se reforça a idéia de que

“Sempre que estivermos no campo do audível da música, sua influência atuará

constantemente sobre nós” (TAME, 1993: p.13). Como se percebe, para estes povos,

a música – ou seja, o som organizado – tem influência direta nos humores dos seres

humanos e, conseqüentemente, na sociedade da qual ele faz parte.

Muitas das antigas civilizações (entre as orientais e ocidentais, passando pela

tradição hebraico-cristã) trazem, em seus mitos, ideários, preceitos religiosos e/ou

filosofias, alguma referência a um provável poder do som e de sua influência direta

sobre mundo material e espiritual. Nas ciências humanas, esse ideário persiste porque

sabemos do poder dinamogênico da música como aponta Gatto: “A realização da

poesia, sem a linguagem das palavras, implica um poder dinamogênico, rítmico,

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pulsional, sedutor, capaz de empolgar o corpo e a mente. A música é poder” (2006: p.

5). Assim sendo, o estudo do documento-canção revela-se instrumento importante

para o desvendamento de sociabilidades e sensibilidades de outros tempos e espaços.

Porém, é necessário perceber que o fator sagrado tem cada vez mais se

transformado na atualidade – dentre outras conjecturas que podem ser feitas, é certo

que a expressão do misterioso cedeu espaço à razão, sem desaparecer por completo.

Após o desenvolvimento dos processos de gravação no fim do século XIX e sua

grande difusão durante o século XX, uma nova maneira de se relacionar com a música

se edifica. Ela, que antes era inapreensível, agora é gravada e fixada em uma mídia. A

partir daí, são atribuídos a ela novos papéis como o de produtor de fruição estética,

entretenimento através de espetáculos e da dança e, até mesmo, mercadoria. Neste

contexto, seu caráter divino tem se diluído; sua ‘aura’, como quer Benjamin, tem se

perdido. Chamaremos a esta nova relação que se estabelecerá entre o homem e a

música de ‘desencantamento da música’.

Contudo, num país de espaços-tempos diferenciados como o Brasil, o arcaico e o

moderno coexistem, mesclando-se e gerando novas formas de cultura, arte e

representações. Portanto, o relacionamento com a música, em terras tupiniquins,

preserva aspectos do sagrado, ao mesmo tempo em que a indústria fonográfica e toda

a estrutura de um mercado de canções promovem seu desencantamento. Todavia,

faz-se necessário ressaltar que existem lócus onde estes dois fatores se estabelecem

de forma mais arraigada: o arcaísmo do sertão (e sua respectiva sacralização da

música) e a modernidade urbana – e o conseqüente desencantamento. Desta forma, o

sertão terá lugar privilegiado quando se trata das representações do sagrado na

música.

A música caipira, um dos gêneros musicais produzidos nos sertões brasileiros, de

acordo com Martins (1974), está sempre associada a rituais religiosos, de trabalho ou

lazer, afinal ela permeia as festas religiosas, os velórios e vários outros momentos de

contato entre o mundo espiritual e o físico. Os instrumentos desses músicos também

são revestidos dessa ‘aura’ sagrada, tanto que se fazem muitas simpatias para

proteger a viola e seu ‘tocador’, por exemplo (CORREA, 2000: 46).

A importância desses gêneros musicais se expande ao percebermos que a

categoria sertão é essencial para se pensar a cultura brasileira. Ora tomado como

referência espacial, ora como referência mítica, o sertão se estabeleceu como um

lócus privilegiado para se compreender as identidades brasileiras através dos tempos.

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Marcado pela baixa densidade populacional e, em alguns lugares, pela aridez da

vegetação e do clima, o sertão assinala a fronteira entre dois mundos, o ‘atrasado’ e o

‘civilizado’. Mancha imprecisa que recobre o interior do Brasil, melhor seria a

referência a ‘sertões’, no plural. Pode-se afirmar que, relativo ao espaço geográfico ou

ao imaginário social, sertão é sempre plural (ALENCAR, 2004).

Para este trabalho amparamo-nos na proposta de Pimentel, para o qual existem

duas categorias para se entender o sertão, principalmente nas Ciências Sociais. A

primeira, já encontrada em escritos do início da colonização, é a mais difundida e o vê

como um lugar distante de centros urbanos, espaço não-civilizado, onde há um vácuo

de moral e inteligência, categoria denominada “sertão-coisa”. A segunda não o vê com

algo concreto ou palpável, aqui ele é uma “idéia ou um conjunto de idéias sobre que se

fala de fora, mas como se o dono da fala se expressasse de dentro”, este é o “sertão-

idéia”. Nessa última perspectiva, o sertão “assume uma diversidade que não possuía

antes” (2006: p. 11-12). Ainda na última acepção, ele pode ser considerado um

conjunto de símbolos, de costumes, de modos de falar, entre outros. É a partir do

sertão-idéia que se estruturará nosso corpo teórico.

Se o sertão é essencial para se entender a identidade nacional (nem que seja para

destacar o que deve ser esquecido no processo de construção identitária moderna),

essa concepção se reforça quando se observa a arte produzida no Brasil, no nosso

caso a música. Desde o início do século XX, os gêneros ligados ao sertão permeiam o

cancioneiro brasileiro. Ora em evidência, ora relegados aos seus ambientes de

produção, esses gêneros nunca deixaram de existir e dialogar com outros que

compõem o conjunto de músicas no Brasil. Quando se fala de canção sertaneja,

muitos são os estilos que nos ocorrem. Dentre eles, destacamos três.

O primeiro é aquele mais ligado às tradições dos cantos de trabalho do universo

rural e das festas religiosas, originário do interior do estado de São Paulo. Essa é a

conhecida música caipira que, mesmo quando gravada (a partir dos anos 1920), busca

fazê-lo mantendo uma certa “autenticidade”, ou seja, uma “raiz”. Outro, que se

diferencia radicalmente deste, é o chamado sertanejo romântico. Tem sua origem nas

inovações feitas pela dupla Léo Canhoto e Robertinho, na década de 1970, e se

encaixa na produção de bens culturais e de consumo da indústria fonográfica.

Segundo Vicente, “até pelo menos o final dos anos 1970, a música sertaneja

[romântica] foi praticamente ignorada pelas gravadoras internacionais aqui instaladas”,

sendo comercializada de forma efetiva somente na década de 1990 (2008: 114). Ainda

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nessa década, “Musicalmente, o segmento passará por significativas mudanças,

sofisticando-se e abandonando ritmos como a guarânia e o bolero, com seus arranjos

de metais característicos, em benefício da música romântica de andamento lento, da

influência da música country e de arranjos instrumentais mais sofisticados, com

predominância das cordas” (Op. Cit.: 115). A partir de então, as gravadoras tornar-se-

iam responsáveis por forjar um público cativo que aprecia este universo musical no

mundo urbano. Portanto, a chamada música sertaneja romântica traz muito pouco de

referência ao sertão, sendo mais uma construção mercadológica (ULHÔA, 1993).

O terceiro estilo, a música regionalista, apesar de também tensionar-se entre a

inovação e a preservação de uma “tradição”, diferencia-se de forma radical do

sertanejo romântico. Ela se utiliza das formas musicais da MPB, do universo simbólico

sertanejo, das formas de escrita consagradas pelos festivais da canção e de um modo

muito peculiar de se relacionar com o mundo, dando origem a uma música ao mesmo

tempo cosmopolita e “tradicional”. Esse gênero também surge no início da década de

1970 com composições como as de Renato Teixeira. Romaria, em gravação de Elis

Regina, estabeleceu-se como cânone do gênero.

A expansão da música sertaneja romântica (e mais recentemente da música

country), a atualidade do que chamamos música regionalista e as constantes

regravações e reinterpretações de gêneros caipiras apontam para uma ruralidade

ressignificada, numa sociedade em que a transição do rural para o urbano é ainda

muito recente e até mesmo inconclusa (ALENCAR, 2004).

Nossa pesquisa se detém na música regionalista produzida no estado de Goiás,

particularmente suas representações sacralizadas da natureza. De um modo geral, os

compositores regionalistas têm experiências de vida, sobretudo na infância, em

cidades do interior de Goiás e também experiências na cidade (a maioria ia à capital

para fazer curso superior), como fica patente nas entrevistas1. Essa tensão entre

mundo rural e urbano, que se processa na vida desses cancionistas2, se reafirma no

conjunto de suas obras. Para este trabalho escolhemos a obra do cantor e compositor

João Caetano como ponto de partida. Sua escolha se justifica pelo grande

reconhecimento desse junto ao público e à crítica. Além disso, o conjunto de suas

1 Entrevistas feitas pela Profª Drª Maria Amélia Garcia de Alencar, em 2002, para sua Tese de doutoramento pela Universidade de Brasília (UnB). Todas as entrevistas citadas neste texto fazem parte desta pesquisa.

2 “O compositor traz sempre um projeto geral de dicção que será aprimorado ou modificado pelo cantor e, normalmente, modalizado e explicitado pelo arranjador. Todos são, nesse sentido, cancionistas” (TATIT, 2002: 11).

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músicas é uma ótima amostragem das canções regionalistas produzidas no estado,

porque, apesar do sucesso que tem alcançado fora de Goiás – gravando músicas até

para trilhas de novelas de circulação nacional, tendo, inclusive, um disco produzido

pelo famoso músico Ivan Lins –, Caetano mantém ainda alguns dos aspectos

composicionais característicos de sua região de origem.

Para chegar a Goiás e seus compositores, o regionalismo musical se expandiu a

partir do Sudeste e aqui encontrou terreno fecundo, já que, mesmo com o processo de

urbanização e modernização imposto pela Marcha para o Oeste, a “tradição” goiana

está muito ligada ao campo. Segundo Marshall Berman, viver na modernidade é viver

num ambiente que nos promete uma transformação que “ameaça destruir tudo o que

temos, tudo o que sabemos, tudo que somos” (1986: 15). Ou seja, é cair num turbilhão

de descaracterização do que se toma como a “cultura nacional e regional”. Este novo

ambiente causa um verdadeiro espanto nos recém chegados à urbanização,

produzindo um “banzo peculiar”, uma vontade de dar um passo atrás, de voltar às

suas origens: o campo. Tal sentimento é expresso nas canções destes músicos, como

demonstra a canção Doçura (1982). A letra da canção remete a um conjunto de

símbolos e elementos do sertão, como o araçá, a moda de viola, entre outros. O

sentimento de saudade é reforçado pela interpretação vocal de João Caetano e Ivan

Lins, intérpretes da música, que cantam alguns dos versos de forma a aproximar a

letra de suspiros.

Doçura (João Caetano/ Ivan Lins/ Vitor Martins)

Oh! Doçura!Fruta escondidaQuero uma mordida do araçáOh! Ventura!Travesseiro e cama de algodão e paina Vou sonharQuero meu cateretê

Catiras, moda de violaZóio cheio d’águaTô pra endoidecerOh! LoucuraQuando a gente canta,Cria na garganta sabiásOh! FarturaTô sentindo o cheiroDo feijão tropeiroOh! Goiás

A música regionalista ainda inclui um diálogo com as formas eruditas de música,

muitas vezes adquiridas através da educação formal – como fica claro no caso das

composições do maestro e músico regionalista José Eduardo de Morais. As

diferenciações entre a música caipira de “raiz” e a regionalista se dão no âmbito das

práticas de seus cancionistas. As primeiras são composições simples, ligadas à vida

cotidiana do homem do campo, como afirmamos acima, enquanto o regionalismo se

origina nas camadas médias urbanas letradas – assim como seu público. A diferença

entre os dois estilos ocorre ainda na interpretação vocal: a música regionalista, na

tradição da MPB, é cantada normalmente em solo, enquanto a caipira e o sertanejo

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romântico são entoados por duplas. Há também uma maior quantidade de ritmos nas

gravações regionalistas e uma ampliação dos instrumentos musicais – algumas

gravações comportam até contrabaixo elétrico, teclado, bateria e outros instrumentos

modernos, tudo sob a “batuta” da MPB. Nesse sentido, os músicos regionalistas

podem ser vistos como mediadores culturais, porque tem a capacidade de colocar “em

contato mundos culturais bem diversos ou, pelo menos, de transitar por vários

mundos, deixando suas marcas em cada um deles, nem que fosse a marca de torná-

los expostos ao que vem ‘de fora’.” (VIANNA, 2007: p. 52)

No que diz respeito à espiritualidade, os compositores regionalistas se relacionam

com a música de forma muito peculiar, já que também recebem grande influência da

religiosidade sertaneja. Excetuando-se o compositor e produtor musical José Eduardo

Morais, todos os entrevistados revelaram ter tido contato com a música feita em festas

religiosas do interior do estado. Outros revelaram uma aproximação ainda mais íntima

com a religiosidade católica, como o letrista Hamilton Carneiro, que foi seminarista, e o

cantor e compositor Fernando Perillo, que foi coroinha. Nars F. Chaul, letrista, lembra-

se bastante das festas religiosas em Corumbaíba, no interior goiano, e ao se referir às

Folias de Reis, diz:

Então isso, isso parte muito fortemente do meu, da minha formação visionária de criança, né? Era uma coisa extremamente natural, ela não tinha um simbolismo diferenciado de nada por aquilo ser uma coisa cotidiana para eles, anual ou em datas consagradas, efetivadas. Então eu cresci muito nesse contexto. Isso muda muito quando vou estudar, fazer o 2º grau em Brasília (Goiânia, realizada em: 04/07/2009).

Esse trecho da entrevista é revelador em variados aspectos: primeiramente, e mais

importante, é que Chaul vê muito da sua gênese como artista e ser espiritual, bem

como a dos códigos que utilizará em seus escritos, no período em que participava das

festas religiosas em Corumbaíba. Outra questão perceptível é o choque que há entre

essa visão de mundo e a que ele percebe na cidade grande, tanto é assim que essa

relação “muda muito” quando ele vai estudar em Brasília.

Quase todos esses cancionistas tiveram contato com o catolicismo popular do

sertão goiano, como supracitado. Essa religiosidade terá papel central na formação

dos referidos músicos e sua compreensão será de essencial importância para o

desvendamento do universo composicional dos mesmos.

Chauí caracterizou as religiões populares como ‘extra-oficiais’, isto é fora do controle eclesial, praticadas por leigos, em oposição a [sic] religiosidade clerical. Conceito esse bastante discutível pelas dificuldades de se encontrar um conjunto de rituais que se caracterize pela presença exclusiva de uma só camada populacional. A polissemia acompanha, portanto, o termo popular (GAETA, 2000: 14).

Ou seja, a religiosidade popular, ainda que traga em si muitos aspectos populares,

permite a participação de elementos e de indivíduos de outros grupos sociais,

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caracterizando-se pelo dialogismo bakhtiniano (BRAIT, 2005). João Caetano, na

canção Ajutório, de 1982, percebe a tensão entre o catolicismo praticado no mundo

rural e o institucional, e a conseqüente coexistência dos dois no estado de Goiás. O

compositor diferencia, num canto e num ritmo alegre das festas religiosas do interior,

os dois catolicismos que habitam o sertão dos Guayazes. O imediatismo e o

utilitarismo dos milagres do catolicismo rústico também são representados nesta

canção, porém tudo isso sob a tutela da Igreja institucionalizada que cobra a doação

de dízimos dos fiéis participantes da festa. Como demonstra a letra da música:

Ajutório(João Caetano/Otávio Daher)

Minha gente, todo mundo em fila Que a coleta vai passarVocês sabem, qualquer tanto valePr’esse santo abençoarA festa é grandeTem milagre até

Sermão de padreBriga de mulherLeilão de frangoE casamento aos montes pra fazerMas a coleta passaE quem quiser a graçaFaça um ajutórioPra valer

Em Goiás, este catolicismo rústico representado na canção tem seu princípio ainda

nos setecentos, pois os religiosos paulistas “Ao fundarem associações ou agremiações

religiosas, adaptaram-nas, em conformidade com a realidade cultural que aí

encontraram, incorporando aspectos de origem indígena e africana” (MORAES, 2008:

49) através de processos transculturais3.

Segundo o historiador Eduardo Hoornaert, o século XIX pode ser considerado o

século das “Santas Missões no sertão”, caracterizado pela presença de diversos

grupos religiosos católicos nos sertões brasileiros, ajudando a gestar uma religiosidade

bastante peculiar na região (1991: 50). Nesse período, o fascínio que os missionários

católicos terão com a música era evidente, sendo ela utilizada como uma das

principais táticas de conversão dos ‘gentios’. “Os missionários usavam de forma

impressionante a arte para seduzir a alma sensível dos indígenas e conseguir um

consenso mais emocional. [...] Sobretudo a música exercia um poder grande sobre as

pessoas, conforme relataram muitos missionários”4 (Op. Cit.: 58, grifo nosso). Tal

3 A transculturação pode ser definida com um “processo [cultural] no qual sempre se dá algo em troca do que se recebe; é um ‘toma y daca’, como dizem os castelhanos. É um processo no qual ambas as partes da equação resultam modificadas. Um processo no qual emerge uma nova realidade, composta e complexa, uma realidade que não é uma aglomeração mecânica de caracteres, nem um mosaico, mas um fenômeno novo, original e independente” (MALINOWSKI apud VIANNA, 2007: 171). Entretanto, Vianna ainda nos alerta da necessidade de “tornar bem explícita a idéia de que o transcultural não é a combinação de elementos que antes eram puros; esses elementos (as duas partes da equação de Malinowski), já são produtos transculturais, e nunca – na história cultural do mundo – pode ser encontrado um elemento que já não tenha passado por algum processo transcultural.” (2007: 172).4 É necessário ratificar que a música foi utilizada anteriormente a este século como instrumento de catequização dos índios, ainda no período jesuítico. A sua utilização por parte dos missionários no XIX, é, portanto, a retomada de uma prática já existente entre os religiosos do XVI.

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constatação reforça a nossa compreensão de que a música terá papel central nesta

religiosidade peculiar que irá se edificar nos sertões brasileiros ao longo dos séculos,

sendo o cerne de sua estruturação junto a grupos étnicos distintos.

Esta religiosidade, no início deste século, em Goiás, é muito bem caracterizada por

Araújo, o que justifica a longa citação:

Rezas, benzeduras e cumprimento de promessas revelavam uma prática religiosa sincrética. Era a junção da pajelança indígena, dos cultos afros, do catolicismo lusitano e das experiências que surgiam no cotidiano – como a tentativa de eliminar o infortúnio ou de dar sentido às situações inexplicáveis de acordo com o instrumental religioso que os habitantes desse lugar dispunham – que se manifestava nesse catolicismo interiorano, diferenciado do catolicismo das regiões litorâneas, mais próximas do olhar controlador do clero.A prática religiosa vivenciada nessa região constituiu-se, ao longo do tempo, sob as condições socioeconômicas e geográficas presentes em Goiás tais como: ausência clerical, distâncias e rarefação demográfica, defasagem cultural com graves conseqüências na criação e manutenção de dioceses, na formação e distribuição do clero e nas manifestações da religiosidade popular. A carência de atendimento contínuo por parte do clero abria espaço para a formação de lideranças leigas cujos resultados culminavam numa espécie de religiosidade autônoma.

[...] Em termos gerais, essa religiosidade basicamente definida como católica, exprimia utilitarismo, ausência de intelectualismo, imediatismo, podendo ser caracterizada dentro do conceito de religiosidade mágica (2008: 110).

Esse catolicismo rural foi, ao longo do tempo, se diferenciando de forma bastante

demarcada do catolicismo institucional, dificultando sua compreensão por parte de

uma elite branca e letrada dos centros urbanos, como aponta Montes (1998: 116), já

que muitos dos códigos religiosos de suas práticas advêm de outras matrizes culturais.

O catolicismo barroco que serviu de matriz à formação das religiosidades populares no Brasil, com seu etos festivo, sem nunca separar o público do privado, o sagrado do profano, não obstante a violência para a qual serviu de instrumento de legitimação, na ordem social escravocrata, ou a constante perseguição a que submeteu a feitiçaria dos negros, fora, apesar de tudo, capaz de permitir a incorporação, em um universo comum de sentido, de muitas crenças e práticas rituais outras, afro-ameríndias, teimosamente sobreviventes nas formas de devoção desse catolicismo negro que dá lugar aos batuques e candombes ou se expressa nas congadas e moçambiques do Rosário e são Benedito. Este seria também o espaço em que, penosamente, fragmentos de cosmologias africanas seriam preservados e ressignificados, para mais tarde reorganizar-se (MONTES, 1998: 136-137, grifo do autor).

No mesmo sentido, encontramos a interpretação de Hoornaert, que acredita que o

“principal mérito do cristianismo moreno no Brasil consiste em [...] resistir a um tipo de

evangelização que na realidade significa uma morte cultural” (1991: 73). Ou seja,

ambos os autores compreendem a existência do catolicismo popular nos sertões do

Brasil como resistência cultural, ainda que transcultural, já que através da

incorporação de elementos das distintas cosmologias indígenas e africanas, esses

povos possibilitaram a subsistência de suas visões de mundo e seus rituais, numa

outra matriz cultural e religiosa.

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Ao longo do tempo, esse catolicismo peculiar – já bastante diferenciado do

eclesiástico – vai contaminando a vertente institucional e se consolidando no

imaginário popular goiano e na relação que a população terá com o sagrado. Assim,

sobreviverá às investidas do catolicismo ultramontano5. Tanto é assim que “Em Goiás,

vários padres foram Imperadores do Divino, atores de teatro, compositores e

possivelmente incentivadores dessas práticas populares” (SILVA, 2008: 155). Para

Araújo,

Em virtude do contexto sociocultural, político e geográfico, pode-se afirmar também que a religiosidade goiana não participava das teorizações intelectuais representantes do pensamento católico, visto que sua prática se originava a partir da experiência leiga que a difundia e reproduzia (2008: 113).

Ainda no intuito de caracterizar tal religiosidade, podemos classificá-la como

santorial revelando um colorido politéico pela presença de numerosos santos de devoção regional, familiar e pessoal, tendo, como pano de fundo, a crença cristã institucionalizada no ‘deus único e verdadeiro’. Enfim, era uma religiosidade prática e utilitária, que buscava um relacionamento direto e pessoal entre o devoto e o santo (Op. Cit.: 116).

Essa relação mais próxima entre o devoto e o santo de devoção traz uma

“informalidade, distante dos rituais formalizados e rígidos da religião oficial, mas por

ela legitimado, tinha sua expressão máxima nas festas religiosas que o catolicismo

interiorano empreendia” (Op. Cit.:117). Nesse tipo de religiosidade, é importante que

se revele a relação estabelecida entre a divindade e a natureza. “Ao não conceber a

diferenciação entre o mundo profano do ‘ser’ e o sagrado ‘deve ser’, esses indivíduos

perpetuam uma imagem de mundo essencialmente colada aos acontecimentos

naturais” (ARAÚJO, 2008: 115), ou seja, a natureza é divinizada como algo criado por

Deus, adquirindo, muitas das vezes, características da própria divindade.

Essa cosmologia religiosa guarda em si, ainda, aspectos definidores da conduta

moral: cuidar da natureza e do espaço sertanejo seria cuidar do próprio legado divino,

isso graças aos processos de hibridização entre o catolicismo institucional e as

crenças indígenas e africanas. Para algumas tribos, por exemplo, a “terra é sagrada,

ela merece o respeito que se deve ao sagrado. A famosa distinção entre profano e

sagrado se dilui diante de uma sensibilidade religiosa muito afinada, pois o sagrado

penetra em tudo, nas plantas, nos animais, na natureza em geral” (HOORNAERT,

1991: 77, grifo nosso). De acordo com esta visão, temos a música Vida (Na terra, nos

mares), de 1989.

Vida (Nas Terras, Nos Mares) (João Caetano/ Otávio Daher)

Eu sou de todos lugaresVivo na terra, nos maresO derradeiro suspiro que te descansar

5 “Doutrina ou sistema dos que são favoráveis ao poder absoluto do papa, quer espiritual, quer temporal” (SILVA, 2008: 157).

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Sou o barulho das ruasA solidão das prisõesSou o primeiro suspiro que te despertarEu sou a esperançaQue move todos os passos das revoluçõesEu sou a chuva esperada Que salva a colheita

Sou a queimadaQue mata as pragas do chãoSou o melhor dos lugaresSeja nas terras, nos maresEu sou a vida que bate No teu coração

A canção relata essa compreensão na qual o sagrado penetra em tudo no sertão

goiano. Tendo como eu lírico a própria divindade, a canção comenta a ubiqüidade de

Deus, um deus cristão e católico, ainda que traga em si muitos elementos advindos de

outras matrizes culturais, tal qual a indígena, como se pode perceber. É importante

ressaltar o verso em que o eu lírico afirma “Eu sou a chuva esperada/ Que salva a

colheita/ Sou a queimada/ Que mata as pragas do chão”. Nele, a natureza se

transforma em providência divina, auxiliando o homem sertanejo a lidar com as

intempéries impostas pelo cerrado goiano, onde a subsistência através da agricultura é

sempre dificultada devido às características desse bioma. A voz doce e suave de Kika

Tristão, fazendo vocalizações durante todo o percurso da canção, reforça o tom divinal

da música que é ratificado pela interpretação delicada de João Caetano e pela

instrumentação minimalista, contando apenas com baixo, piano, teclado e bateria

eletrônica.

Quando transportado para as cidades, já no processo de urbanização brasileira do

século XX, o catolicismo popular se transformaria radicalmente, como quer o sociólogo

chileno Parker que

entendeu que na medida em que o mundo aparecia como obra do homem, iria se perdendo o caráter de criação e, nesse caso, o próprio homem assumiria o lugar do criador. Para ele o mundo urbanizado iria rompendo com seu caráter de mistério, ocorrendo uma ruptura com o transcendental, secularizando-se (apud GAETA, 2000: 17).

Contudo, isso não ocorre de fato – como se pode perceber com a canção acima – já

que

Ressemantizando ou reinventando suas práticas religiosas os fiéis buscam também redefinir o sentido de seu cotidiano a partir das novas condições sócio culturais. Há uma re-significação existencial. Ao mesmo tempo em que os valores urbanos vão se introjetando a religiosidade tradicional vai se transformando, sem configurar em rupturas.Nas cidades, as antigas tradições se reatualizam, num processo de recriação de laços comunitários dentro de um mundo urbano onde os cenários simbólicos recriados devem ser entendidos como produtores de significados, criadores de espaços sociais com valores culturais específicos. Entendemos que não se trata, portanto, de um retorno do sagrado, pois ele nunca desapareceu e sim uma redefinição do campo religioso. Nesse caso, a urbanização em vez de acelerar o processo de perda de sentido religioso o reformula e revitaliza, orientando-o para fora dos padrões convencionais e racionais. Elementos culturais que pareciam arcaicos são reatualizados dentro de um sistema cognitivo próprio. Apesar da força de seu impacto as transformações urbanas interagem com tradições culturais diversas, dando margens à [sic] sincretismos, combinações, recriações e hibridagens (Op. Cit.: 17-18).

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No mesmo sentido, vão as afirmações de Eliade, que aponta para a permanência de

“situações religiosas” arcaicas no universo mental do homem religioso, integrando ao

“cristianismo uma grande parte de sua herança religiosa pré-cristã, de uma Antigüidade

imemorial”. Essa herança inclui o sentimento de santidade da Natureza, da qual o

homem faz parte, como elemento da criação (1992: 134). É preciso, portanto, enfatizar

que a religiosidade que se estrutura nesse processo de trânsito entre campo e cidade

não é nem uma religião rural, nem urbana. É algo transcultural, como aponta Vianna

(2007), distinta das duas anteriores, indo muito além de um aglomerado de caracteres

advindos das duas antigas formas de religiosidade. Dessa forma, a religiosidade

expressa no conjunto de canções regionalistas goianas é algo novo, único e

independente, distinto das religiões anteriores. A obra de João Caetano, assim, é um

indício de uma religiosidade transcultural. As canções Tá na Terra, Colheita e Um Rio,

podem ser vistas como exemplo de tal expressão, sobretudo no que tange à

sacralização da natureza. Tá na Terra, 1982, expressa a relação direta entre a vida do

homem no sertão e a própria natureza, nesse caso a terra. Tal relação já pode ser

percebida na música Vida (Nas Terras, Nos Mares), supracitada.

Tá na terra (João Caetano/ Otávio Daher)

Tá na terra o cheiro de suorTá na terra o dia de colherBem plantado, não dá nem pra ver O arrozal foi se espalhando,Cheio de esperançasVerde dobrado no vento, amarelouNoutra quinzena, outra luaDá pra colherPegando os cachos na mão

Cortando os pés rente ao chãoNa madrugada que forNão há família ou mulherTraz esse almoço, oh! MeninoVamos comerVamos vender essa fomeVamos colherVamos ganhar desse solVamos perder, vamos verSempre se paga o que temSempre se paga pra ver

A introdução da canção é marcada por um barulho semelhante ao de águas e um

som que parece ser originário das matas, dando uma tônica mística à canção, que é

reforçada pelo coro fazendo vocalizações. O misticismo da canção é quebrado pela

voz do compositor e pela conseqüente aceleração no andamento, evidenciando a

integração entre divindade (o místico), homem e natureza tão propalada por João

Caetano e os demais regionalistas, de acordo com esta religiosidade híbrida que se

constrói no trânsito entre sertão e cidade. A unidade é ainda reforçada nos primeiros

versos da canção, já que o verso “Tá na terra o cheiro de suor” integra o homem à

terra, sua fonte de alimento, ou seja, a própria fonte de vida do sertanejo. Num

processo de aliteração – aqui entendida como “aproximações sonoras que, quando

bem sucedidas no plano da expressão (significante) desimpedem o caminho para as

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associações no plano do conteúdo (significado)” (TATIT, 2002: 268) – as palavras

comer, vender (essa fome) e colher, se aproximam semanticamente, reforçando a

idéia da natureza como fonte de subsistência do homem no campo, exposta acima.

Outro fator interessante é a utilização da prosopopéia para se referir a alguns

elementos naturais, tais como o arrozal que se torna capaz de sentir esperanças.

Na canção Colheita, 1989, a terra é novamente vista como fonte de subsistência do

homem do campo. Entretanto, aqui, o sertão idílico representado no fonograma acima

é contraposto, na primeira estrofe, a um sertão mais próximo às interpretações que

foram feitas ao longo dos séculos, ou seja, mais afeito ao que Pimentel denominou de

“sertão-coisa” (2006: 11).

Colheita (João Caetano/ Otávio Daher)

A pressa da colheitaTe doeu nas pernasTe marcou o corpo todo de suorE te doeu nas mãosE te doeu no chãoEstá rasgado,

Que virou teu ganha pão

Mas foi bonito ver o campo responderAo grito surdo da semente pra nascerE o sol não castigou,A chuva não falhouMeu Deus do céu, A nossa reza te agradou

Essa diferenciação entre as interpretações que se fazem do sertão encontradas

entre a primeira e a segunda estrofe é também feita na parte propriamente musical da

canção e na interpretação vocal. A voz de João Caetano, na primeira parte, apresenta-

se de forma mais embargada, concordando com um ritmo também tristonho que é

quebrado pela introdução da segunda estrofe. Enquanto a primeira estrofe enuncia a

dificuldade de sobrevivência no cerrado, marcado pela pressa de colher frente ao

período de seca e a temperatura escaldante imposta pelo sol, entre outros, a segunda

estrofe exprime a alegria e a beleza da vitória do homem frente às intempéries

impostas pelo clima do sertão goiano. Nessa segunda parte, a voz e o ritmo também

se tornam mais alegres e festivos, em acordo com a letra.

Ainda na segunda estrofe, a imagem de Deus é invocada porque, através dos

pedidos feitos por meio de orações, tornou-se possível que a plantação gerasse frutos.

Aqui, a divindade auxiliou para que o sol não fosse forte em demasia e que nem a

chuva fosse escassa, possibilitando a colheita que se transformaria em “ganha pão” do

sertanejo. Dessa maneira, a religiosidade expressa na canção se aproxima, de forma

bastante contundente, da religiosidade popular exposta anteriormente, já que a relação

com a divindade é estabelecida através de uma necessidade imediata do homem.

Por fim, a canção Um Rio, 1989, traz novamente a concepção de que a natureza é

a fonte da subsistência humana, entretanto, o principal elemento originário de vida não

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é a terra e sim a água. Tal concepção também pode ser percebida na canção acima

quando se afirma a necessidade de chuvas para nutrir a plantação.

Um Rio (João Caetano/ Otávio Daher)

Minhas águas vão lavarSuas terras, suas mãosE vou matar a sede do seu gadoE vou correr em frente até chegarVou passar em muitas plantaçõesE se chover, vou transbordarQuanto tempo eu percorriOutras terras, outras mãosE fui atrás do mar, do oceano

E me espero o tempo que eu quiser, Pra desovar os peixes que eu tiver Pra me estreitarPra desaguar Ah! Eu adoro o mar,Ah! Eu abraço o marEle que sabe me esperarE deixa eu me espalhar sem fimAh! Eu adoro o mar,Ah! Eu adoço o marEle que sabe me abraçarE deixa eu descansar assim

Nesta canção, a água que corre nos rios e vai desaguar no mar é a responsável por

alimentar tanto o gado quanto as plantações. Sua importância é, portanto, ampliada

devido a atividade agropecuária ser a principal força econômica de Goiás, mesmo

após a Marcha para o Oeste e a crescente urbanização do estado. Se a água permite

estas atividades econômicas e de subsistência e se os sertanejos têm sua visão de

mundo colada aos acontecimentos naturais, a água é vista como a própria fonte da

vida, como a própria divindade. Tal fator justifica a utilização da prosopopéia para

representar a natureza.

Como se pode perceber, a obra de João Caetano é uma ótima amostragem das

canções regionalistas produzidas em Goiás. Essas canções constituem e expressam

um projeto identitário – e é por isso que elas também o realimentam. Ao mesmo tempo

em que buscam demonstrar e fortalecer o que seria o homem nascido em Goiás,

também servem “como forma de fortalecimento dos laços afetivos com o Estado”

(DIAS; RONSINI, 2008: 2). São ainda Dias e Ronsini que nos chamam a atenção para

que “Conforme Trotta, a música se desenvolve de formas distintas em todos os grupos

sociais, de acordo com seus rituais simbólicos e seu conjunto de saberes e crenças.

Isso significa que ela entra em contato com esses códigos culturais, valores sociais e

sentimentos compartilhados que fornecem elementos para a construção de

identidades sociais e laços afetivos” (2008: 4).

Como se percebe, as músicas regionalistas trazem, em muitos casos, referências

diretas ao universo religioso. Essa religião, entretanto, se distingue do catolicismo

urbano, quase sempre institucionalizado e bastante teorizado pelos teólogos da Igreja

Católica, ao mesmo tempo em que se distingue do catolicismo rural, já que essa,

quando transportada para os centros urbanos, se funde e produz um fenômeno

distinto. Esse fenômeno transcultural possibilitará desvendar melhor as identidades

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híbridas do homem em transição entre campo e cidade, além de auxiliar no

desvendamento de sociabilidades e sensibilidades de outros tempos e espaços.

A natureza, como lócus do homem do campo e paisagem transformada

radicalmente pela modernização e pela urbanização do mundo, se tornará pedra

fundamental para se entender as transformações nas identidades e visões de mundo.

Ela poderá ser alçada à categoria principal no que tange às mudanças impostas pelo

deslocamento do homem do campo. Quando cantado, o mundo do sertão (e sua

natureza) é reencantado pelas musas da poesia e da música; o sertão é tornado mito,

sucedâneo do paraíso perdido. Afinal, os mitos da natureza nunca desapareceram,

permanecem à nossa volta como um antídoto aos venenos da sociedade industrial e

urbana (SCHAMMA: 1996).

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