as religiões em hume e kierkegaard [finalizado]

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As religiões em Hume e Kierkegaard Filipe Völz – Doutorando PPGF-UFRJ Resumo: Em que consiste a relação entre religiosidade e moralidade? Essa questão movimenta a obra História Natural da Religião, do escocês David Hume. A posição do filósofo será determinada pelas suas impressões tiradas dos fatos históricos e das experiências concretas que constituem o fenômeno religioso. Outra posição, divergente e às vezes até antagônica, encabeçada pelo dinamarquês Søren Kierkegaard, terá, no entanto, um efeito complementar às reflexões de Hume, e nos mostrará que é necessário que as percepções sobre a religião variem de acordo com o caso a que queremos aplica-las. “A assembleia de Areopagus baniu Stílpon por afirmar que a Minerva que estava na cidadela não era uma divindade, mas uma obra do escultor Fídias”. David Hume, História Natural da Religião, p. 57. Hume religioso? A História Natural da Religião não deixa claro se Hume é um cristão protestante, um religioso sem religião específica ou um ateu empirista. O texto é bastante claro em suas alusões ao progresso que o monoteísmo (principalmente cristão) representa para o espírito humano, mas ao mesmo tempo faz críticas duras ao sistema religioso monoteísta, 1

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Page 1: As religiões em Hume e Kierkegaard [finalizado]

As religiões em Hume e Kierkegaard

Filipe Völz – Doutorando PPGF-UFRJ

Resumo: Em que consiste a relação entre religiosidade e moralidade? Essa questão

movimenta a obra História Natural da Religião, do escocês David Hume. A posição do

filósofo será determinada pelas suas impressões tiradas dos fatos históricos e das

experiências concretas que constituem o fenômeno religioso. Outra posição, divergente

e às vezes até antagônica, encabeçada pelo dinamarquês Søren Kierkegaard, terá, no

entanto, um efeito complementar às reflexões de Hume, e nos mostrará que é necessário

que as percepções sobre a religião variem de acordo com o caso a que queremos aplica-

las.

“A assembleia de Areopagus baniu Stílpon por afirmar que a Minerva

que estava na cidadela não era uma divindade, mas uma obra do

escultor Fídias”.

David Hume, História Natural da Religião, p. 57.

Hume religioso?

A História Natural da Religião não deixa claro se Hume é um cristão protestante, um

religioso sem religião específica ou um ateu empirista. O texto é bastante claro em suas

alusões ao progresso que o monoteísmo (principalmente cristão) representa para o

espírito humano, mas ao mesmo tempo faz críticas duras ao sistema religioso

monoteísta, que inclusive excederia em prejuízos morais (na mesma proporção em que

supera) as antigas religiões politeístas. A ideia é resumida pela máxima corruptio

optima pessima, ou seja, das coisas mais elevadas nascem as mais baixas, o que no final

do livro se desenvolverá no conceito de existência como algo híbrido, uma coalizão e

colisão de elementos opostos (bem, mal, liberdade, necessidade, etc.).

Ao texto se soma o cenário histórico em que a obra foi escrita e publicada, em

uma nação anglo-saxã cristã que pré-estabelecia para cada nova reflexão sobre a religião

a fôrma do dogma teológico e da superstição, que taxava o pensamento que a excedia de

ímpio e o autor que o pensou tornava alvo de perseguição política. Tomando-se outras

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obras sobre religião de Hume, é difícil aceitar alguns pressupostos admitidos

axiomaticamente em História Natural da Religião como sendo de fato fruto legítimo do

pensamento do filósofo escocês, e não um recurso retórico, parecido com aquele usado

por artistas populares durante ditaduras, visando viabilizar a publicação do livro.

Diversos exemplos dados no livro podem ser interpretados como analogias de

Hume à sua própria condição de pensador livre imerso em um cenário de censura. Os

exemplos de pensadores como o filósofo romano Cícero, Sócrates, Newton e outros tem

a função de representar a situação de irracionalidade que se instaura em uma

comunidade quando a religião e a moral são trocadas pela superstição conservadora que

serve de instrumento para a manutenção do poder de indivíduos interessados. Em

História Natural da Religião especificamente, parece que Hume vive nessa condição,

como um pensador que é adepto do monoteísmo, mas de uma forma tão própria (ou tão

imprópria para o seu lugar e momento históricos) que precisa sublimar e escamotear seu

verdadeiro posicionamento com jogos de linguagem e comparações indiretas.

Mas qual é a comprovação, no texto, desse monoteísmo de Hume? E, mais

importante, para quê se perguntar qual é a sua verdadeira posição em relação à religião e

mesmo qual sua inclinação religiosa?

A interpretação de que Hume é de fato monoteísta (e cristão) encontra como

obstáculos os outros momentos da filosofia da religião de Hume. Em outros textos sobre

o tema, Hume parece ter uma posição diferente, por exemplo, em relação ao argumento

do desígnio divino – que diz que a ordem natural das coisas já é uma prova da

existência de uma consciência criadora que a pensou. Aqui, no entanto, ele aceita de

pronto essa ideia, e ainda considera lógica e fruto de uma inteligência evoluída a

concepção monoteísta do mundo.

O ponto principal aqui não é a aceitação imediata da doutrina monoteísta em si

mesma. O motivo dessa aceitação é que nos interessa. Hume vê uma evolução natural

do politeísmo para o monoteísmo, uma evolução que não é só natural como também, e

por isso mesmo, racional. Vamos ver como ocorre esse desenvolvimento, sabendo que

aqui o cerne está na ideia de evolução natural/racional, ou seja, na visão da religião

como sendo essencialmente algo do nível da racionalidade humana, e não, como se

convencionou pensar, algo irracional.

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A idade da inocência

A introdução de História Natural da Religião já realiza uma distinção

imprescindível para a classificação da filosofia da religião de Hume. Sobre a

investigação religiosa, diz o empirista,

“há duas questões, em particular, que chamam nossa atenção, a saber:

a que se refere ao seu fundamento racional e a que se refere à sua

origem na natureza humana” (2004, p.21).

Quanto à primeira questão, a resposta aqui é ligeira e contundente, como em

outros textos de Hume não será: é facilmente provável, segundo o filósofo, o argumento

do desígnio divino como criador de toda a existência. O monoteísmo do Deus criador do

céu e da terra é, pois, racionalmente evidente, mesmo que Hume não se explique aqui,

mas deixe como certo que, “após uma séria reflexão”, é impossível não concordar com

sua evidência. Já no que diz respeito à origem da religião na natureza humana, a questão

ganha contornos mais complexos1, que serão preenchidos ao longo das 15 sessões da

obra. O ponto de partida de Hume é a constatação de que os “primeiros princípios

religiosos devem ser secundários” (2004, p.22), já que a religião, na história humana,

não é universal (não está em todos os povos) e nem coesa em suas manifestações

(apresenta diferenças bastante significativas nos povos e nas épocas em que foi

encontrada). São princípios secundários, os religiosos, porque os primários devem ser,

segundo Hume, a atração sexual, o amor-próprio, o amor pelo próximo e outras do

mesmo tipo, pois essas características podem ser encontradas em qualquer povo e em

qualquer tempo, e mantêm-se mais homogêneas em suas diferentes manifestações (Cf.

p.22).

Essa constatação na introdução nos diz que Hume está interessado em entender a

religião através dos fatos e acontecimentos históricos e concretos que se apresentam à

razão. A abordagem humeniana distingue-se da maior parte dos estudos teológicos de

sua época e épocas passadas no geral, se aproximando dos tratados iluministas. O que

Hume parece apontar já na introdução é que as qualidades intrínseca e explicitamente

conectadas às religiões são menos próximas daquilo que o homem realmente é (aqui o

conceito de homem não é definido propriamente, mas subentende-se indiretamente dos

1 Podemos supor que, em outros textos, principalmente em Diálogos sobre a religião natural (como nos conta na nota 1 o tradutor e comentador Jaimir Conte), Hume opta por deixar a 2ª questão anunciada na introdução intocada em detrimento da primeira, enquanto aqui ele age de modo inverso.

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argumentos da obra, de uma forma geral) do que aquelas que podemos chamar de

“morais” e até mesmo “naturais”. Estas por si só não se filiam a nenhuma religião e nem

a própria religiosidade, não obstante ainda poderem (e para Hume deverem) ser tema e

objeto de uma consciência religiosa. A partir dessa determinação do que é natural e

mais essencial para o homem, Hume procurará definir historicamente as condições que

deram origem à religião.

A história mostra até de uma forma um tanto clara que o politeísmo foi a primeira

religião do homem. Começando pelo politeísmo, Hume procura entender como se

originou na história humana a apreciação do homem pela visão religiosa da natureza e

de si mesmo, qual era a sua função na vida do homem antigo e como a sua

caracterização específica era moldada por essa função. O objetivo aqui é abrir caminho

e fornecer uma base para a explicação do monoteísmo e da própria religiosidade.

Também já é possível vislumbrar nos exemplos dados e no conceito de politeísmo a

tentativa humeniana de desvincular as superstições da questão da moralidade, retirando

esta de uma submissão à aquela.

O politeísmo é a primeira forma de religião, como nos mostra a observação da

história humana a partir de fatos documentados e hipóteses plausíveis, que se

comprovam ou fortalecem quando respaldados por uma explicação suficiente da origem

desses fatos. Segundo Hume, faz sentido que o politeísmo tenha sido a primeira religião

em si mesmo, ou seja, para além do fato de ela ter sido efetivamente anterior ao

monoteísmo. O argumento primário é que o politeísmo é ainda pouco racional, como

seriam pouco racionais os primeiros homens. Sua apreensão do que é o cosmos é

imediatista, sem muita capacidade de abstração, e se baseia em dados coletados direto

da experiência pessoal de cada povo de onde nasce uma religião. Num proto-politeísmo

que poderia ser chamado de pan-politeísmo, o germe da religião politeísta seguindo as

ideias do historiador francês do século XIX Fustel de Coulanges, os deuses seriam

tantos quanto seriam as coisas. Na antiguidade pré-politeísmo grego, segundo o

historiador, haveria um deus-fogo na lareira de cada casa, um deus familiar composto

das forças naturais e das “almas” dos antigos membros da família que foram mortos e

sepultados. Já no politeísmo grego, o número de deuses é reduzido no mesmo nível em

que a habilidade do homem de abstrair da realidade se desenvolve, deixando divinos

apenas alguns conceitos gerais que tem repercussão concreta na vida antiga (Guerra,

Morte, Justiça), e dando-os nomes e personalidades, criando de fato um personagem

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coletivo que se alimenta da adoração e dos sacrifícios prestados pelos homens, dando

em troca a possibilidade de o homem sobreviver e viver de uma forma digna em sua

relação com a natureza e os outros povos.

A sina do politeísmo ainda é, não obstante, representar a natureza como algo que

não é em si mesmo, mas é intimamente conectado – quase que como uma mera

continuação – com aquilo que acontece na história pessoal de cada cidade. Cada cidade

possui o seu deus protetor, padroeiro, fundador, algo a que atentaram os romanos

conquistadores, que tomavam o cuidado (mesmo sendo tão brutais em outros aspectos)

de prestar respeito a cada deus citadino que encontravam, e de adaptar a sua estratégia

de dominação às religiões dos povos dominados. Por isso Hume escreve que

“as primeiras ideias da religião não nasceram da contemplação das

obras da natureza, mas de uma preocupação em relação aos

acontecimentos da vida” (2004, p.31).

Essa visão é, para Hume, “atrasada” porque mimetiza deuses e natureza, tornando

assim o divino, que deveria ser, por definição, perfeito e único, em algo variável, tão

instável quanto um ser humano (os deuses se zangam e se regozijam, são invejosos,

carentes, passíveis de engano e enganadores, assim como seus fiéis). Os

“acontecimentos da vida” de algum modo “sujam” a observação imparcial do fenômeno

do divino, submetendo e reformulando à sua maneira, de acordo com seus preceitos, a

forma do divino. A religião assim é “menos racional” do que deveria ser, e se torna um

modo não de entender a realidade, mas de adaptá-la aos desejos da vida pessoal de cada

povo ou pessoa. Isso afastaria o homem do verdadeiro sentido da religiosidade,

configurando um mau uso da religião, aqui um instrumento para a propagação e

conservação de preconceitos irrefletidos e não para a busca do sentido do homem e para

a construção, nessa busca, de uma ética comprometida com a questão da felicidade.

Nas primeiras cinco sessões Hume vai tentar mostrar que o politeísmo é a

primeira religião do homem exatamente pelo seu grau menor de exigência racional. Isso

faz com que a busca por causas supra-humanas para aquilo que não foi criado pelo

homem ou aquilo sobre o que ele não exerce controle seja respondida, terminada por

explicações pouco evidentes, baseadas no falatório impessoal produzido historicamente

por cada povo. O “erro lógico” aqui seria o de pretender, com esse falatório, adquirir de

fato poder soberano sobre a própria vida, em todas as suas instâncias, algo que seria

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sempre impossível, sendo a sua pseudo-realização obviamente danosa para a

humanidade, já que promete algo que não pode de fato cumprir. Fica claro como isso

pode se transformar em (se já não nasce como) instrumento de poder2. A dicotomia a ser

observada aqui é a entre certeza e dúvida. É a ela que devemos prestar atenção para

entendermos qual é a questão humeniana com a religião.

Corruptio Optima Pessima

A partir da seção 6, Hume começa a comparar politeísmo e monoteísmo,

evidenciando a continuidade e a ruptura entre um e outro. No entanto, já no início da

seção 1, o cerne dessa relação é estabelecido, e um termo importante para este artigo

(que subscrevo em itálico na citação a seguir) é, ocasionalmente, utilizado:

“O espírito se eleva gradualmente do inferior para o superior: por

abstração, forma, a partir do imperfeito, uma ideia de perfeição, e

lentamente, distinguindo as partes mais nobres de sua própria

constituição das mais grosseiras, aprende a atribuir à sua divindade

somente as primeiras, as mais elevadas e puras. Nada poderia

interromper esse processo natural do pensamento, exceto um

argumento evidente e invencível, que pudesse conduzir imediatamente

o espírito aos genuínos princípios do monoteísmo, fazendo-o transpor,

num salto, o amplo espaço intermediário que separa a natureza

humana da natureza divina” (2004, p.25, nosso grifo).

Hume diferencia a mera acepção racional do argumento que “prova” o

monoteísmo e o seu aprendizado histórico. Este “argumento invencível” nunca foi dado

de imediato para os homens antigos, de modo que a história humana da religião é este

“processo natural” descrito por Hume. Qual é o super-argumento não importa aqui3. O

que é digno de nota é a expressão “um salto”, que serve para delimitar a diferença

essencial entre, não só, como aponta Hume, as naturezas divina e humana, mas também

entre as religiões que notam essa distinção essencial entre divino e humano

(monoteísmo) e as que não notam propriamente (politeísmo). A diferença entre elas não

seria só referente ao número de deuses ou a criação do mundo, mas, principalmente, a

sua relação própria com o divino4. Monoteísmo e politeísmo se diferenciam, podemos

2Aqui a proximidade de Hume com Spinoza e Nietzsche, além dos iluministas, é difícil de não ser mencionada.3É o argumento do desígnio, explicado em linhas gerais na nota 8 da edição de História Natural da Religião que utilizo. O conteúdo da nota é do tradutor Jaimir Conte.4Por isso não deixo de suspeitar, como coloquei no início, que Hume possa ser, ou ao menos defender nesse texto, de fato, o monoteísmo. Ela dá argumentos bons favoráveis ao monoteísmo ao mesmo tempo

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pensar tendo em vista a expressão “salto”, de uma forma não somente hierarquizada

(apesar de haver uma hierarquia), mas também qualitativa.

“Salto” é um conhecido conceito do pensador cristão dinamarquês Søren

Kierkegaard. Não queremos dizer aqui que o termo casual de Hume tem a conotação de

um conceito filosófico: é apenas uma palavra que nos chama a atenção. Sua semelhança

com o conceito kierkegaardiano é só vocabular: salto é um movimento de um lugar para

outro que não se utiliza de uma ligação entre os dois pontos (salta-se sempre sobre um

vazio). No entanto, como dissemos, serve para indicar que estamos falando de uma

diferença qualitativa, o que é imprescindível.

Possivelmente, o pensamento teológico e filosófico sobre a religião a que Hume

estava acostumado em seu tempo não fazia essa distinção qualitativa quando falava do

pagão e do cristão. A diferença entre um e outro é tão somente a de um progresso e uma

primitividade. Hume, não obstante não abandone essas noções, acrescenta, talvez de

uma forma quase subliminar, indireta, algo importante, que também é acrescentado por

Kierkegaard: uma relativização do primitivo com o evoluído, de modo que agora se

pode observar com maior veracidade o que cada um representa em si mesmo, sem

antepor a observação a parcialidade dogmática do ponto de vista dito evoluído. De todo

modo, ainda são, Kierkegaard e o Hume de História Natural da Religião, monoteístas.

O que acontece aqui é que o monoteísmo deles vai, por essa relativização, se diferenciar

e colocar-se mais próximo da filosofia do que da superstição.

A defesa do monoteísmo (em Kierkegaard cristão e protestante, em Hume de uma

forma mais generalizada) não será levada de modo igual ao que se habitualmente fazia.

A melhor forma de entender essa abordagem é a partir do princípio exposto na máxima

em latim corruptio optima pessima, transcrita por Hume “a corrupção das melhores

coisas engendra as piores”:

“Ouso afirmar que poucas corrupções da idolatria e do politeísmo são

mais perniciosas para a sociedade do que essa corrupção [a

intolerância] do monoteísmo, quando chega à sua máxima expressão.

Os sacrifícios humanos dos cartagineses, dos mexicanos e de muitas

em que o difere suficientemente e de forma bastante particular da mera “religião popular” monoteísta, o descrevendo de modo racional e explicando sua melhor relação com a moralidade humana, antagonizando com a superstição. À frente será evidenciado como isso não significa que não há superstição monoteísta (é exatamente o contrário).

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nações bárbaras raramente superaram a Inquisição e as perseguições

de Roma e de Madri” (HUME, 2004, p.79).

Na palavra “monoteísmo” Hume põe um asterisco que contextualiza a passagem

com a frase latina. A mensagem é muito simples: paralelamente ao grande avanço do

ponto de vista moral que, para o filósofo, dá-se à vida humana com o pensamento

religioso monoteísta, nasce junto uma nova qualidade, muito mais danosa à esta mesma,

de mal. Ou seja: a história não passou para um estado melhor simplesmente, ela passou

para um estágio que é qualitativamente diferente. Para Hume, os aspectos positivos da

vida humana religiosa e moral foram avançados com o monoteísmo ao mesmo tempo

em que avançaram os aspectos mais negativos. Isso quer dizer simplesmente que o

monoteísmo e o politeísmo se diferenciam de modo qualitativo mais do que hierárquico,

não obstante Hume ainda prefira (não em todos os aspectos, mas como um todo) o

monoteísmo e o coloque como superior.

Essa “superioridade” do monoteísmo pode ser mais bem explicada pela visão de

Kierkegaard da relação entre paganismo e monoteísmo, mas mais especificamente

cristianismo. No “Exórdio” (ou “Preâmbulo”, dependendo da tradução) de O Desespero

Humano, Kierkegaard escreve que:

“A diferença que há entre o homem natural [pagão] e o cristão é

semelhante à da criança e do adulto. O que faz tremer a criança nada é

para o adulto. A criança ignora o que seja o horrível, o homem sabe e

treme” (1984, p.191).

O conhecimento que o cristão possui o dá coragem, de acordo com Kierkegaard,

para enfrentar todos os outros medos do mundo natural (onde poderíamos colocar as

superstições), ao mesmo tempo em que o faz reconhecer sua imperfeição como um

aspecto essencial de sua existência. Esse conhecimento é a consciência da vida como

uma doença mortal, algo em que não me deterei. O que é digno de nota na passagem é

que o adulto ao mesmo tempo em que é um estágio desenvolvido de uma criança, tem

seu pensamento sobre o mundo e a vida edificado em uma base significativamente

diferenciada. Quer dizer: por um ângulo, adultos e crianças são comparados em um uma

escala progressiva, por outro eles são incomparáveis, posto que não partilham de uma

base comum, de uma medida que sirva de igual modo aos dois. São simplesmente duas

formas distintas de ver as coisas.

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Outro modo de explicar essa diferença está em O Conceito de Angústia, também

de Kierkegaard. O tal conceito do título é o da angústia como rememoração do pecado

original, consciência da hereditariedade do pecado e, nesse nível, uma volta ao mesmo

sentimento que teve Adão ao ser tentado com a promessa do fruto proibido da árvore do

conhecimento, como conta a história bíblica.

“A proibição o angustia porque desperta nele a possibilidade da

liberdade. O que tinha passado desapercebido pela inocência como o

nada da angústia, agora se introduziu nele mesmo, e aqui de novo é

um nada: a angustiante possibilidade de ser-capaz-de”

(KIERKEGAARD, 2010, p. 48).

Por isso Kierkegaard e Hume, não obstante qualifiquem como essencialmente

diferentes, preferem ainda o monoteísmo ao politeísmo: a ignorância pode ser uma

benção, como no ditado, mas uma vez não mais ignorante é impossível e mesmo não

preferível voltar ao estágio “abençoado”.

Porém a história será, para Hume, um “constante fluxo e refluxo do politeísmo e

do monoteísmo” (título da seção 8), de modo que a humanidade troca entre as duas

posições continuamente (é o tema de toda a seção), enquanto para Kierkegaard o mesmo

pode ser dito não só da história (como no início de Temor e Tremor), mas também do

próprio indivíduo, que transita, em sua famosa tese, entre três estágios na sua existência,

um estético um ético e um pós-ético, teleológico (a relação entre os dois últimos é o

tema de Temor e Tremor). Estas ideias de comunhão intrínseca e circularidade histórica

nos dois pensadores servem para ratificar a posição religioso-filosófica que eles

partilham aqui como sendo conciliadora desses dois aspectos religiosos,

circunscrevendo para cada um seu âmbito próprio, ao mesmo tempo em que os vê como

inseparáveis e compreende a realidade como algo híbrido (veremos isso adiante).

Se o monoteísmo representa um afastamento em relação às superstições (que são

problemas para a moralidade) ele também pode produzir (e produziu) superstições

maiores do que jamais houve. O problema que sobra para Hume e, no século seguinte,

para Kierkegaard, é o de resolver esses “danos morais” causados a partir do

monoteísmo, que sobrepõe em desvantagens os do politeísmo. Veremos adiante alguns

exemplos desses danos.

A dúvida como caminho

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Para Hume essa unidade comum entre politeísmo e monoteísmo se dá, como

vimos, pela diferença qualitativa entre eles, o que por sua vez só é possível por uma

hibridez essencial da realidade. “O bem e o mal se misturam e se confundem

universalmente”, de modo que “quanto mais excelente é um bem (...), mais agudo é o

mal que o acompanha” (2004, p. 124). A essas considerações sobre a natureza das

coisas, Hume afixa um encaminhamento ético que em muito lembra o velho ascetismo

socrático-aristotélico:

“E, em geral, nenhuma existência oferece tanta segurança (pois não é

preciso sonhar com a felicidade) quanto à existência temperada e

moderada que se atém, tanto quanto possível, a uma mediocridade e a

uma espécie de insensibilidade em todas as coisas”(Idem, Ibidem).

É claro que esse ascetismo também em muito foi assimilado pelo cristianismo,

principalmente pela igreja. Mas seu apelo à mediocridade é mais socrático que cristão,

pois se apoia na racionalidade, e não na humildade. Ser medíocre aqui é ser moderado, é

ponderar entre os excessos as melhores soluções, de acordo com os problemas em

questão. É não buscar demasiado longe para não sofrer a agonia do fracasso. Talvez

tenha sido essa lição humeana que serviu para Kant de solvente de dogmas5. O projeto

crítico de Kant não seria a ordem racional de não tornar objeto do pensamento aquilo

que não pode ser, em sua essência, tal objeto? Dar a cada ente seu devido lugar e sua

devida proporção, sua devida ciência e seu devido rigor. Ao pensamento racional o que

é do pensamento racional, como a César o que é de César. E, de igual modo, a Deus, o

que é de Deus, e não pode ser de homens (padres) ou instituições (igrejas). Parece ser

esse o monoteísmo de Hume: não esperar da religião uma ciência, não esperar do divino

uma objetificação e, em última instância, um controle humano.

A posição de Hume pode parecer em diversos momentos do livro e,

especificamente, na conclusão onde ele fala da hibridez da realidade e da opção pela

“mediocridade racional”, ou ateísta ou politeísta. A mim continua parecendo

monoteísta. O primeiro motivo para isso é a própria teoria do ininterrupto câmbio

histórico entre politeísmo e monoteísmo. Hume, em uma época monoteísta (pode-se

supor: assim como Sócrates em seu contexto), se volta para características do politeísmo

como forma de descontaminação dos excessos da corrupção do monoteísmo. Quando

este último, na busca pelo bem supremo, acaba por trazer um grande mal, é necessário

5Em famosa frase, Kant diz que Hume o despertou do “sono dogmático”.

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que se observem algumas características das buscas por bens menores das outras formas

religiosas. Por exemplo, o politeísmo será muito mais tolerante em relação a outras

religiões que o cristianismo – exatamente por ter como objeto da busca espiritual deuses

que são imperfeitos, e por definição comportam a possibilidade de não serem os únicos.

A mesma relação pode ser feita com os outros excessos monoteístas: o deus onipresente

se torna em dado momento um constante vigilante que olha todos os homens ao mesmo

tempo e os julga do ponto de vista da perfeição. A representação de um deus altíssimo

que excede a razão cai numa louvação do obscurantismo, e pela falta de boas

explicações sobre as coisas os homens se veem rendidos aos pressupostos da tradição

que nos são doados de imediato. A resignação perante o “poder máximo de deus” torna-

se resignação perante qualquer poder.

Assim, me parece que o monoteísmo ainda pode ser de fato defendido no texto

de Hume, não apenas por motivos meramente retóricos, mesmo com as críticas a ele

feitas e com os “elogios” ao politeísmo. Se for possível que haja monoteísmo, resta

saber se efetivamente há, mas tal já foi discutido aqui, quando se disse que Hume via

uma progressão, no nível da racionalidade, do politeísmo para o monoteísmo. Esta

progressão é acompanhada pela sua corrupção, mostrada no parágrafo anterior, o que

não retira ainda o fato de ser um desenvolvimento bom e racional do pensamento

humano, para o filósofo. O cerne disto é a ideia monoteísta, que aqui recapitulo e agora

desenvolvo, de que o divino é algo de todo modo abstrato e não humano (não reduzível

ao e nem controlável pelo homem), ao mesmo tempo em que significa, além de deus ou

o que quer que seja, simplesmente a origem de tudo e o sentido de tudo o que é. Em

outras palavras, menos obscuras: o monoteísmo é a constatação de que o máximo grau

de verdade e o sentido do real (deus) não são uma coisa entre as outras coisas,

distinguida apenas em relação à quantidade de poder que possui (por isso os reis e

imperadores pagãos eram semidivinizados), mas sim algo qualitativamente diferente, e

por isso impossível de ser objetificado pela razão e tornado base supostamente racional

para afirmações sobre a moralidade.

A ética religiosa humeniana (e por que não supor a ética em geral) que se extrai

de História Natural da Religião pode ser compreendida plenamente em sua interessante

conclusão, de onde saíram também as ideias de hibridez do mundo e de moderação. Ela

é uma “ética da dúvida”. Com um parágrafo sobre a dúvida é que Hume conclui sua

pequena obra sobre a religião:

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“O único resultado de nossas investigações mais meticulosas sobre

esse assunto parece ser a dúvida, a incerteza e a suspensão do juízo.

Mas tal é a fraqueza da razão humana e tal é o irresistível contágio da

opinião que dificilmente poderíamos manter essa dúvida deliberada, se

não ampliássemos nossa visão e, opondo uma espécie de superstição à

outra, as colocássemos em disputa, enquanto de nossa parte, durante

essa fúria e controvérsia, felizmente escapássemos para as regiões

calmas, ainda que obscuras, da filosofia” (HUME, 2004, p. 126).

A “dúvida deliberada” é uma postura voluntária do intelecto que, entretanto, é

posta em ato exatamente por uma exigência dos próprios objetos da razão. Duvidar não

é agir de modo irracional, mas o contrário. É, frente às questões mais nebulosas para o

entendimento, não disfarçar nem ignorar essa obscuridade, mas aceita-la como o único e

legítimo resultado alcançado pela razão (ao menos por ora) em relação à estas questões.

É suspender o juízo, ao modo cartesiano. A especificidade da temática religiosa para

Hume talvez seja a de existir uma suspensão que pode não ser temporária, mas essencial

a este objeto específico. A não ser que o próprio Deus se revelasse aos homens e à

realidade de modo explícito (assim provavelmente alterando suas leis naturais e

consequentemente a própria estrutura da racionalidade), não haveria razão para

acreditarmos que a dúvida pudesse ser abandonada como única forma racional de lida

com os temas centrais das religiões e da religiosidade.

A dúvida também é uma característica essencial do existencialismo

kierkegaardiano. O caminho com que Kierkegaard chega à dúvida é, no entanto, inverso

ao de Hume. A religião monoteísta-cristã que Kierkegaard prega/argumenta é também

um estágio posterior ao politeísmo e mais elevado, porém a medida desse

desenvolvimento é a maior capacidade que o cristão possui de superar os pressupostos

da razão para se relacionar com o divino e consigo mesmo. Em uma passagem de Temor

e Tremor, Kierkegaard compara o heroísmo pagão com o “heroísmo” cristão

exemplificado na figura central do livro, Abraão. Para Kierkegaard, Abraão, ao decidir-

se por sacrificar seu filho por ordem divina, expõe uma relação isolada com o sagrado,

que não se adequa a qualquer instância exterior a ela mesma (o que Kierkegaard chama

de “suspensão teleológica da moralidade”). É por isso que ele pode romper uma lei dos

homens (ou para os homens, já que da vontade do próprio deus) em nome de uma

revelação divina. A “moral da história” é uma só: a relação do homem com o sagrado é

de um nível diferente da relação do homem com a moralidade.

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“O paganismo ignora este gênero de relação com a divindade; o herói

trágico não entra em relação privada com ela; para ele a moral é o

divino, donde se conclui que então o paradoxo se refere ao geral por

mediação” (KIERKEGAARD, 1984, p.145).

Mas “Abraão recusa essa mediação”, e é heroico, no sentido cristão, exatamente

por recusá-la. A mediação, segundo Kierkegaard, é a linguagem, é toda a tentativa de

transposição representativa da lei divina privada para uma esfera geral, pública. É por

isso que Abraão é “herói”, e não herói. Diferente do herói trágico, Abraão não tem nada

a dizer, ou seja, sua história não contém nenhum ensinamento moral, ela não pode

ensinar nada sobre a vida virtuosa do homem em sociedade, pois “não é o que me

sucede que me eleva, mas aquilo que faço” (Idem, p.147). Para um cristão, tudo é

preceito para a edificação6, diz Kierkegaard, mas essa edificação não é mais do que a

ilustração e a constante repetição da ilustração da diferença entre homem e deus. A

história bíblica não ensina nada sobre a vida social do homem e seu comportamento

com seus semelhantes, mas fala apenas da relação homem-deus (crença). O Abraão

kierkegaardiano, longe do heroísmo como comumente compreendemos, é moralmente

ineficiente, podendo ser entendido inclusive como imoral. Sua ação é uma só, e só pode

ser contada da mesma maneira: ele mata seu filho sem motivo algum, já que o deus que

o comanda não dá justificativas. A história, que deve ser entendida em um sentido

alegórico, e não literal (ela não é uma apologia do fundamentalismo religioso

alucinante), nos conta a natureza paradoxal de deus (logo, a natureza paradoxal do

homem), e a relação do homem com essa natureza.

Esta relação é a de dúvida, ou, em outras palavras, a de temor e tremor. Esta é a

grande disparidade entre Abraão e o herói moral, e aquilo que poderia ser chamado de

“resposta kierkegaardiana” à virtude grega. Ambos se mantêm os mesmos frente às

variações que os afetam. Porém o herói o é por que é sempre reto em suas decisões, é

inflexível em seus preceitos éticos (esse é o seu método de ensinar), enquanto que

Abraão é uma constância da dúvida. O título da obra de Kierkegaard faz referência ao

grande “anti-ensinamento” de Abraão: tremer frente ao absurdo do nosso

desconhecimento das causas primeiras de nossa existência. O herói que ensina dando o

exemplo de virtude, chama o homem a imitá-lo, o particular à generalidade, enquanto

6 Cf. “O Desespero Humano”, Prefácio.

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que Abraão chama o homem em geral a sair da generalidade, a ir para si mesmo, e

assim nada ensina, mas edifica, mesmo que seja a absurda edificação de um tremor7.

É possível notar que a escrita sofre uma variação quando o assunto passa a ser

Kierkegaard. Não deixemos, contudo, que isso obscureça o eixo central do texto, que é

ainda Hume. A filosofia existencial de Kierkegaard serve para dar um outro foco sobre

a “conclusão duvidosa” do ensaio humeano. Por uma via inversa, mas não oposta,

Kierkegaard chega numa conclusão parecida: a dúvida é a chave para a superação da má

relação com a religião. A dúvida é o modo essencial de comportamento do homem no

âmbito da religiosidade. Pela dúvida, o homem pode separar a religião da moralidade,

colocando cada uma em seu espaço apropriado. Só há relação se existe diferença, logo

só com a diferença entre moralidade e religião é possível que elas se relacionem de fato.

A dúvida religiosa pode assim servir de modo profícuo para delimitar o campo de ação

da moralidade: sempre que a moral ameaça tomar para si uma legitimidade em si

mesma, que escapa de um envolvimento com a história e as situações que compõe a

vida humana concretamente, a dúvida, já posta no campo religioso, que é exatamente

esse campo transcendental que a moral quer chegar quando se excede, impossibilita tal

erro.

Gostaria ainda de acrescentar mais uma aproximação entre Hume e Kierkegaard

no que diz respeito à ideia do monoteísmo como algo qualitativamente diferente do

politeísmo. Escreve Kierkegaard, ainda na comparação entre o herói trágico e Abraão:

“O herói trágico, favorito da ética, é o homem puro; também posso

compreendê-lo e tudo o que ele faz passa-se me plena claridade. Se

vou mais longe tropeço sempre com o paradoxo, quer dizer, com o

divino e o demoníaco porque o silêncio é um e outro”(1984, p.163).

O silêncio de Abraão não é algo como uma virtude, já que pode significar tanto

uma proximidade com o divino, como algo demoníaco no sentido cristão, ou seja, algo

qualitativamente pior que qualquer mal que possa ser compreendido dentro do

paganismo. Estamos ainda sob o princípio da corruptio optima pessima. O mesmo se

destaca nesta passagem de O Desespero Humano:

7 Cf. “O Desespero Humano”, Prefácio. “Ousarmos ser nós próprios, ousar-se ser um indivíduo, não um qualquer, mas este que somos, só face a Deus, isolado na imensidade do seu esforço e da sua responsabilidade: eis o heroísmo cristão”. “Todo o conhecimento cristão, por estrita que seja de resto a sua forma, é inquietação e deve sê-lo; mas essa mesma inquietação edifica”.

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“Também o egoísmo pagão, apesar de tudo o que dele pode ser dito,

estava longe de ser tão qualificado como o egoísmo que podemos

encontrar num cristão; porque o eu do pagão não estava perante Deus.

O pagão e o homem natural só têm como medida o homem humano”

(1984, p.242).

E, na sequencia desta citação, Kierkegaard ainda afirma que o pecado do pagão

ou não pode ser considerado pecado ou é o pecado da “ignorância desesperada de

Deus”. De fato, o conceito de pecado pagão está formulado com base na contradição

pecado-virtude, enquanto que o pecado cristão é baseado na oposição pecado-fé, para

Kierkegaard. Dependendo do que se opõe, o conceito de pecado muda seu sentido.

Quando o pecado antagoniza com a fé ele passa a ser compreendido como algo que

figura além da razão, e esse novo campo trás simultaneamente a possibilidade da

moralidade ser pervertida (o pecado é suprarracional, de modo que a razão agora não

pode dizer nada sobre a moral) ou desenvolvida (o pecado é suprarracional, de modo

que a razão agora não pode dizer tudo sobre a moral8), no sentido humeano.

Pode-se objetar que o mesmo resultado poderia ser alcançado na aqui chamada

visão pagã/politeísta. Por que esse espírito crítico que é conciliador e que procura um

“caminho do meio” entre o excesso da razão e da irracionalidade tem de ser

cristão/monoteísta se os resultados não são incompatíveis com nenhuma característica

essencial do paganismo e mesmo do ateísmo? É simplesmente uma posição racional e

boa, não se exceder em nenhum desses aspectos. Um cristão poderia dizer, como vimos,

que o monoteísmo possui um deus muito mais abstrato, e por isso muito mais apto a ser

distinguido dos homens, e, assim, de se eximir de se posicionar politicamente ou

eticamente (como o obrigam a fazer boa parte das igrejas). Mas a relação aí não passa

da medida da aptidão: nada impede que outras posições religiosas ou mesmo não

religiosas também o façam. E assim um pagão ou ateu ainda poderia dizer que é

preferível não ter um deus monoteísta, pois sua capacidade de abstrair da moral é igual a

sua capacidade de interferir nela, e seria preferível não ter um grande bem para não ter

um grande mal. Um ateu radical poderia dizer que é melhor não haver religião alguma,

ou tornar a fé equivalente ao gosto estético e resumir os dois ao âmbito privado.

8 Espero que tenha ficado clara a diferença. Se o pecado, e consequentemente o contrário do pecado, passa a ser algo para além da razão, isso pode ser interpretado de uma forma total – o bem e o mal não podem ser medidos racionalmente – ou de uma forma crítica – o bem e o mal podem ser medidos racionalmente, mas não inteiramente. A segunda posição é a de Hume, e parece ser a mais correta.

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Minha posição é de que a crença no deus encarnado não é condição hoje para se

pensar nesse preferível “caminho do meio” que foi apontado aqui. No entanto,

historicamente o homem se condicionou a pensar deus de um modo abstrato e extra-

moral via cristianismo/monoteísmo, e isso em nada impede que um seguidor de

religiões similares possa pensar deste modo. O que me parece é que o cristianismo e o

monoteísmo em geral hoje representam boa literatura para se pensar essa medida certa

da “ação divina” nos “assuntos terrenos”. Não quero diminuir sua função com isso: essa

medida certa é facilmente constatável, mas dificilmente seguida, de modo que se

queremos vê-la ser aplicada, devemos viabilizar em práticas essas ideias, propósito a

que serve muito bem qualquer escrito que seja capaz de cativar o leitor a não apenas

entender, mas efetivar concretamente (no limite de suas possibilidades) isso que

entende. Os textos cristãos e monoteístas, como influência maior, mesmo que

indiretamente por vezes, do pensamento contemporâneo, tem especial capacidade para

isso. Não é necessário ser cristão ou religioso para ver neles grande valor.

No que diz respeito à ideia de se liquidar com as religiões (seja literalmente, seja

“estetizando-as”), acho precipitada. Um dos motivos pode ser encontrado no parágrafo

anterior: o cristianismo explica bem o que é o homem, de modo geral (com os dogmas

sendo interpretados de modo não literal, ou sendo interpretados de um modo literal

quando isso não afeta o âmbito moral), e tem alto valor histórico. O mesmo pode ser

dito de todas as outras grandes religiões, de acordo com cada povo, mas também como

um todo. Além disso, as pessoas seguem muitas dessas religiões até hoje. Como dizer

que seu sentimento religioso, uma consideração sobre o todo da realidade e o próprio

sentido da vida, é equivalente ao gozo ensimesmado da fruição? Não quero dizer,

obviamente, que devemos teocratizar os Estados. Novamente, busquemos uma medida

entre a religiosidade que é só estética com a religiosidade que é só ética, que sobrepõe e

dita valores morais. Talvez o problema do conservadorismo religioso seja mais um

problema do conservadorismo do que da religião.

E aqui chegamos a uma parte mais conclusiva do artigo, onde considerei

permitido fazer algumas considerações mais abrangentes. As relações entre Hume e

Kierkegaard me parecem terem ficado claras. Acredito que suas diferenças podem ser

localizadas em diferenças históricas e de objetivos filosóficos: Hume queria criticar a

intervenção da igreja no livre pensamento e os excessos do pensar que se baseava em

dogmas inalcançáveis para a razão para fazer colocações que deveriam ser da alçada da

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razão; Kierkegaard criticava a igreja siamesa do Estado que obrigava o homem a ser

algo que ele só pode ser de modo livre, e o pensamento religioso que achava que podia

explicar o divino de forma sistemática e racional, o que é, já em si mesmo, uma prática

irracional. É como se os dois pensadores agissem de modos inversos, mais uma vez:

Hume ataca o excesso de irracionalismo, Kierkegaard o de racionalismo; não estariam

os dois, afinal, enfrentando a mesma coisa?

Por fim, gostaria de voltar à epígrafe deste artigo e explica-la melhor:

“A assembleia de Areopagus baniu Stílpon por afirmar que a

Minerva que estava na cidadela não era uma divindade, mas uma

obra do escultor Fídias”.

Essa citação faz parte de uma série de menções feitas por Hume em História

Natural da Religião, muitas delas cômicas (há inclusive uma piada sobre católicos),

exatamente por que, para citar Henri Bergson, “o riso se dirige à inteligência pura”. As

citações revelam diversas situações absurdas causadas pela interpolação de religião e

moralidade. Quando há essa confusão, como quer nos mostrar Hume, nada bom pode

vingar.

O drama de Stílpon é uma boa imagem do grande erro de interpretação sobre o

que é o divino. A assembleia que o baniu considerou divina a imagem da deusa, e

blasfema a sua confecção humana. Decidiu-se que se o estatuto da obra era divino, logo

não era possível que Fídias, um homem, tivesse algo a ver com aquilo. Este “logo” é no

que consiste o erro interpretativo da assembleia. Assim como a estátua foi feita,

logicamente, pelo homem, assim também o foi a própria religião. E assim como a

gênese “profana” da estátua não representa a negação da possibilidade da criação divina

por trás de si (pois nada pode negar, ou afirmar, racionalmente, essa possibilidade),

também a constatação da real natureza da religião, analisada historicamente, não

representa o seu fim, e nem deve servir para abalar a crença daqueles que creem do

mesmo jeito que não é confirmação de nenhuma “falsidade” da religião em si – apesar

de poder nos mostrar como atualizar as crenças e flexibilizar os dogmas.

Bibliografia

DE COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2001.

HUME, David. História Natural da Religião. São Paulo: Unesp, 2004.

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KIERKEGAARD, Sören. O Conceito de Angústia.

_________. O Desespero Humano in: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

_________. Temor e Tremor in: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

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