as polÍticas sociais brasileiras e o impacto das...
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AS POLÍTICAS SOCIAIS BRASILEIRAS E O IMPACTO DAS REFORMAS
ESTRUTURAIS EM SUA CONFORMAÇÃO
Gissele Carraro 1
Ana M. P. Camardelo 2
Mara de Oliveira 3
Resumo: Trata-se de um ensaio teórico produzido a partir da leitura de textos de analistas,
pesquisadores e estudiosos de políticas sociais no Brasil. Busca-se, identificar o impacto das
reformas estruturais efetuadas, a partir da década de 1990, na configuração e no
desenvolvimento das políticas sociais. Assim, indicam-se as principais alterações
constitucionais referentes ao sistema de proteção social brasileiro e neste os avanços e limites
que impedem as políticas sociais de concretizar direitos sociais na ótica da universalidade em
uma sociedade capitalista.
Palavras-Chave: Políticas Sociais. Reformas Estruturais. Direitos Sociais.
1 INTRODUÇÃO
A partir de 1990, com as reformas estruturais colocadas em marcha nos países latino-
americanos, as políticas sociais, foram, ao longo dos anos, assumindo configurações que
transitaram da universalização dos acessos e da responsabilidade estatal para a focalização e
transferência das atribuições ao setor privado, lucrativo (mercado) ou não (“terceiro setor”),
via privatização das políticas sociais públicas. Em vista disso,
[...] cada Estado [...] estrutura um conjunto de leis e normas concretas
destinado a definir as fronteiras de acesso, o nível e a qualidade das
provisões, bem como estabelecer instituições capazes de pôr em prática tais
políticas, em termos de ação normativa ou executiva. (VASCONCELOS,
1998, p. 30).
Logo, a constituição e o desenvolvimento de políticas sociais resultam de um conjunto
de processos decisórios que envolvem “[...] duas dinâmicas distintas e, às vezes
contraditórias, de articulação de interesses: entre o ‘pessoal do Estado’ [...] e os interesses de
grupos e organizações sociais” (MINCATO, 2012, p. 82). Somam-se a isso as condições
1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected];
2 Universidade de Caxias do Sul/ UCS. E-mail: [email protected];
3 Universidade de Caxias do Sul/ UCS. E-mail: [email protected].
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histórico-estruturais e conjunturais que interferem nas opções políticas e econômicas dos
governos em implementar políticas sociais de carácter universal, focalizado ou seletivo.
Sendo assim, ao se tratar de políticas sociais, como um fenômeno social, deve-se “[...]
considerar sua múltipla causalidade, as conexões internas, as relações entre suas diversas
manifestações e dimensões” (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 43) histórica, econômica,
política e cultural.
No que tange à dimensão histórica, “é preciso relacionar o surgimento da política
social às expressões da questão social que possuem papel determinante em sua origem (e que,
dialeticamente, também sofrem efeitos da política social).” (BEHRING; BOSCHETTI, 2007,
p. 43). Pois, as políticas sociais constituem-se em respostas e formas de enfrentamento,
adotadas pelo Estado, às diversas manifestações da “questão social” – que assumem novas
configurações em conjunturas históricas diversas.
Com relação à dimensão econômica, “faz-se necessário estabelecer relações da política
social com questões estruturais da economia e seus efeitos para condições de produção e
reprodução da vida da classe trabalhadora” (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 43). Pois, as
políticas sociais e sua conformação na sociedade encontram-se imbricadas com o processo
mundial de reestruturação capitalista, em marcha desde 1970, guardadas as particularidades
de cada país e a inserção de suas economias no plano internacional.
A dimensão política reconhece e identifica “[...] as posições tomadas pelas forças
políticas em confronto, desde o papel do Estado até a atuação de grupos que constituem as
classes sociais e cuja ação é determinada pelos interesses da classe em que se situam.”
(BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 43). O Estado e as características por ele assumido por
definem sua intervenção tanto na viabilização de interesses de acumulação do capital, como
na direção de interesses populares como respostas às necessidades sociais.
No que concerne à dimensão cultural, intimamente tangenciada à política, é certo
considerar que os
sujeitos políticos são portadores de valores e do ethos de seu tempo. Se
relacionarmos as políticas sociais às estratégias de hegemonia, isso significa
sua configuração a partir de uma direção intelectual e moral, que está
imbricada aos projetos societários com implicações para a concepção e
legitimidade de determinados padrões de proteção. (BEHRING;
BOSCHETTI, 2007, p. 45):
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Ou seja, as lutas travadas por sujeitos sociais que representam interesses de classes
distintos e grupos sociais particulares, influenciam na configuração das políticas sociais, em
cada conjuntura histórica, que poderão implicar na regulação e ampliação (ou não) de direitos
sociais.
Em síntese, tais dimensões (histórica, econômica, política e cultural), mutuamente
imbricadas, são essenciais para apreender as configurações assumidas pelas políticas sociais
em um determinado contexto histórico.
2 POLÍTICAS SOCIAIS NA SOCIEDADE CONTEMPORANEA BRASILEIRA:
AVANÇOS E LIMITES
Nas últimas décadas, especialmente a partir de 1990, presencia-se a uma série de
transformações societárias – sob o domínio do capitalismo financeiro e sua afirmação
enquanto sistema hegemônico –, que têm impactado sobre as estruturas e os poderes
institucionais, as relações estruturais da força de trabalho, as relações sociais, a concretização
de direitos, o cotidiano da vida privada e coletiva dos sujeitos sociais, alterando formas de
pensar, falar, sentir e agir na sociedade. Logo, tem conduzindo a um processo de
naturalização de meios e situações de dominação, das desigualdades sociais, da pobreza, da
banalização da vida humana perante a violência, o preconceito, a discriminação, a
intolerância, a indiferença perante o outro, da submissão das necessidades humanas ao
consumo supérfluo de mercadorias.
Assim, estimula-se “atitudes e condutas centradas no indivíduo isolado, em que cada
um ‘é livre’ para assumir riscos, opções e responsabilidades por seus atos em uma sociedade
de desiguais.” (IAMAMOTO, 2008, p. 144). Reitera-se, com isso, a responsabilização dos
indivíduos e/ou famílias – tomados isoladamente do coletivo, negligenciando-os de sua
inserção classista – por sua condição social sob “[...] um discurso ético universalizante, [que]
fragmenta as necessidades das classes trabalhadoras, transformando seus direitos em
benefícios do Estado, subordina os indivíduos a várias formas de discriminação, [...]
despolitiza[ndo] suas lutas.” (BARROCO, 2008, p. 87, complementações entre colchetes
nossa).
Tais transformações, em curso, além de ocasionar rebatimentos na sociedade como um
todo, também incidem nas relações entre Estado/sociedade/mercado e na configuração e no
desenvolvimento das políticas sociais. Logo, através de um conjunto de medidas de ajuste
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estrutural e reformas institucionais orientadas para o mercado, privilegia-se o atendimento das
necessidades do capital em detrimento das necessidades humanas básicas da coletividade.
Sendo assim, vê-se, “na dinâmica do funcionamento do Estado capitalista, a existência de
contradições, [...] a máquina estatal serve amplamente aos interesses da classe dominante, mas
sua própria universalização exige que dê atenção à sociedade como um todo.” (PEREIRA,
2008, p. 123).
Com isso, verificam-se mudanças substanciais nos fundamentos, na conformação e no
processo de desenvolvimento das políticas sociais na sociedade brasileira contemporânea, que
precisam ser analisadas em sua totalidade concreta, “como fenômeno social dotado de
propriedades essenciais, nexos internos, determinações históricoestruturais, relações de causa
e efeito, vínculos orgânicos com outros fenômenos e processos” (PEREIRA, 2001, p. 217).
Pois, estão sujeitas às determinações derivadas de uma dada configuração do modelo de
sistema econômico, político e social constituído, neste caso capitalista, assim como das ações
de sujeitos políticos, grupos de interesses, movimentos de pressão e negociação, partidos
políticos, legisladores, entre outros.
Mais um aspecto fundamental a ser considerado é o de que em cada sociedade a
concepção de direitos sociais e política social e seu reconhecimento legal por parte do Estado
se dá em momentos históricos diversos. No caso do Brasil, isso ocorre no último quartil do
século XX, ao final da ditadura militar, em pleno processo de restauração da democracia e do
Estado de Direito, ao mesmo tempo em que, a exemplo de outros governos latino-americanos,
o governo adere às reformas estruturais4, iniciadas a partir de 1990, como resposta dada pelo
grande capital para o enfrentamento à crise econômica.
Quanto às reformas estruturais, estratégias político-econômicas tradutoras do
neoliberalismo, essas
4 O significado da palavra reforma, ´[...] na tradição filosófica ocidental, sempre teve uma conotação de caráter
progressista, em uma direção de maior igualdade e liberdade. O termo começa a ser usado a partir da reforma
Protestante, que foi considerada um enorme avanço às liberdades individuais, uma vez que possibilitou o diálogo
direto dos crentes com seu deus. Desde então, na tradição política ocidental, falar de reformas sempre significou
um processo de troca para uma sociedade mais igualitária, uma sociedade mais justa, uma sociedade
potencialmente mais democrática. Sem dúvida, as reformas [...] que tiveram lugar na América Latina se
moveram exatamente em direção contrária. Por isso, mais que reformas, o termo mais correto seria dizer que
foram processos de contrarreforma, processos de destruição, processos que tiveram como consequência
processos de des-cidadanização’. (BÓRON, 2003, p. 33-34, tradução e grifo nosso)”. (OLIVEIRA, 2005, p. 32,
tradução e grifo da autora).
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referem-se àquelas contidas nos planos de ajuste estrutural que marcaram a
proposta de implementação de um novo modelo de desenvolvimento
econômico efetivado pelos governos da América Latina, sobretudo a partir da
década de 90. A orientação político-econômica dessa proposta de ajuste para
a América Latina está bem representada no intitulado Consenso de
Washington, ‘Um consenso construído durante a década de 1980 e que
condensava e traduzia as ideias neoliberais [...] já hegemônicas nos países
centrais, na forma de um pacote terapêutico para a ‘crise econômica’ da
periferia capitalista’ (FIORI, 2002). Consenso com aprovação e respaldo do
Tesouro dos EUA e de instituições com sede em Washington. Instituições
com reconhecimento público quanto ao seu vínculo ao capital hegemônico
internacional (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Banco
Interamericano de Desenvolvimento e Organização Mundial do Comércio). A
implementação das reformas estruturais na região ocorreu a partir das
mudanças no contexto internacional, expressando um novo ciclo de expansão
do capitalismo, tendo como resultado a globalização do capital. (OLIVEIRA,
2005, p. 32-33).
Como síntese acerca da ofensiva capitalista neoliberal, suas propostas de reformas
(nova ordem) aderidas pelos governos latino-americanos e reproduzidas ideologicamente pela
população em geral (aliando a cultura política do não direito e a cultura da nova ordem) tem-
se “profundas repercussões na órbita das políticas públicas, em suas conhecidas diretrizes de
focalização, descentralização, desfinanciamento e regressão do legado dos direitos do
trabalho”. (IAMAMOTO, 2008a, p. 118).
Além disso, presencia-se uma crescente mercantilização dos serviços vinculados a
diferentes políticas sociais (como educação e saúde), que acabam por negar direitos aos
transformá-los em mercadorias, uma vez que é “vista como ‘natural’: as pessoas devem pagar
pelos serviços para que sejam ‘valorizados’. E quanto as pessoas que não podem pagar? Cabe
a elas ‘comprovar’ suas pobreza, e só então o Estado deve intervir”. (SOARES, 2003, p. 12).
Isso significa ações focalizadas apenas aos considerados “miseráveis”. Nessa direção, “a
filantropia substituiu o direito social. Os pobres substituem os cidadãos”. (SOARES, 2003, p.
12).
Agrega-se ao exposto, a descentralização das políticas sociais, efetuada em duas
direções básicas. De um lado, o repasse de responsabilidade de execução dos serviços
sociais para os municípios sem o devido repasse de verbas. Por outro lado, a
desresponsabilização do Estado na garantia de direitos, reforçando a atuação das instituições
do “terceiro setor”, “[...] não lucrativas, empresariais ‘responsáveis’ e no voluntariado, todos
situados no campo da sociedade civil, suposto território da virtude, da eficácia e da
solidariedade, num contraponto ao Estado ineficiente, perdulário e paternalista.”
(BEHRING, 2008a, p. 48).
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Com isso, as respostas dadas em atendimento às necessidades sociais da população
dada pelo Estado capitalista conjugam “[...] políticas seletivas e focalizadas para a ‘horda’ [...]
combinadas à transformação em mercadoria de determinados serviços, pela via da
privatização, voltados aos que podem pagar”. (BEHRING, 2008a, p. 47-48).
No entanto, mesmo diante dos limites, dada a conjuntura e estrutura, em que se
conformam, em seu percurso histórico, as políticas sociais vão encontrar avanços substanciais
na Constituição Federal de 1988. Sendo que esta, é resultado de lutas entre divergentes
projetos, apontava para uma possibilidade de alteração do sistema de proteção social seletivo,
centrado apenas naqueles inseridos no mercado de trabalho via do seguro social, para um de
cunho universal – dentro do que é possível universalizar na sociedade capitalista – todavia,
não foi o que ocorreu. Entre as alterações constitucionais relativas ao sistema de proteção
social que merecem ênfase, estão:
a centralidade da responsabilidade do Estado na regulação, normatização,
proposição e implementação das políticas públicas no âmbito da proteção
social e a proposta de descentralização e participação da sociedade no
controle das políticas sociais. A perspectiva de articular e integrar políticas
também emerge nesse contexto. Para estudo do Ipea a Constituição de 1988
redesenha ‘de forma radical o sistema brasileiro de proteção social,
afastandoo do modelo meritocrático-conservador e aproximando-o do modelo
redistributivista, voltado para a proteção de toda a sociedade, dos riscos
impostos pela economia de mercado’. (YAZBEK, 2012, p. 302).
Nessa direção, é pertinente destacar que na perspectiva de um Estado Social a política
social
atende as necessidades do capital e, também, do trabalho, já que para muitos
trata-se de uma questão de sobrevivência – configura-se, no contexto da
estagnação, como um terreno importante da luta de classes. Trata-se da
defesa de condições dignas de existência, em face do recrudescimento da
ofensiva capitalista [...]. (BEHRING, 1998, p. 175).
Nesse sentido, as políticas sociais e o
conjunto de direitos que elas asseguram, [são] frutos de conquistas
importantes da classe trabalhadora frente à exploração da sua força de
trabalho. [Portanto], a política social encerra essa dialética entre a conquista
do trabalho [...] e sua funcionalidade para o capital. (BOSCHETTI et al 2008,
p. 7-8, complementações entre colchetes nosso).
Isso possibilitaria, em um mundo de tantas incertezas, incluindo as conceituais, terse
uma certeza: as políticas sociais, na sociedade capitalista não conformam uma via de solução
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da desigualdade social, uma vez que essa é produzida pelo próprio sistema do capital5,
destarte, não se suprime a desigualdade conservando-se o capitalismo. Contudo, pode-se
minimizá-la.
Logo, contrariamente ao que é muito amiúde repassado como aspecto ideológico,
direitos e políticas sociais de cunho universalizantes não têm vinculação com o socialismo ou
comunismo, pois independente do modelo de sistema econômico, político e social
estabelecido elas são necessárias e indispensáveis para viabilizar o atendimento de
necessidades sociais da população.
Mas, retornando a discussão sobre o proposto na Constituição Federal e a afirmação de
que a universalização pretendida não ocorreu, é importante indicar alguns de seus motivos: i)
“A Constituição brasileira é promulgada em uma conjuntura dramática, dominada pelo
crescimento da pobreza e da desigualdade social no país, que vê ampliar sua situação de
endividamento (que cresce 61% nos anos 1980)” (YAZBEK, 2012, p. 302), sendo
privilegiado na destinação do fundo público o pagamento de juros e amortização da dívida
pública ao capital financeiro; ii) a crise econômica mundial e as propostas do Fundo
Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial de enfrentamento a mesma, via reformas
estruturais, aderidas pelos governos brasileiros (como mencionado anteriormente), que
centraram-se na desregulamentação dos mercados, na abertura comercial financeira, na
privatização do setor público e na intransigente defesa da redução da intervenção do Estado
na área social ao mínimo e implementação de políticas focalizadas de “combate” à pobreza.
Fica claro, assim, que
é na ‘contramão’ das transformações que ocorrem na ordem econômica
internacional, tensionado pela consolidação do modelo neoliberal, pelas
estratégias de mundialização e financeirização do capital, com a sua direção
privatizadora e focalizadora das políticas sociais, enfrentando a ‘rearticulação
5 Sistema do capital, também denominado sistema de metabolismo social do capital, é uma expressão utilizada,
em várias de suas produções, por István Mészáros. “[...] para Mészáros, capital e capitalismo são fenômenos
distintos, e a identificação conceitual entre ambos fez com que todas as experiências revolucionárias vivenciadas
neste século [...] de constituição socialista, se mostrassem incapacitadas para superar o sistema de metabolismo
social do capital, isto é, o complexo caracterizado pela divisão hierárquica do trabalho, que subordina suas
funções vitais ao capital. Este segundo o autor, antecede o capitalismo e é a ele também posterior. O capitalismo
é uma das formas possíveis da realização do capital, uma de suas variantes históricas, presentes na fase
caracterizada pela generalização da subsunção real do trabalho ao capital. Assim como existia capital antes da
generalização do sistema produtor de mercadorias (de que é exemplo o capital mercantil), do mesmo modo pode-
se presenciar a continuidade do capital após o capitalismo, por meio daquilo que Mészáros denomina ‘sistema de
capital pós-capitalista’, que teve vigência na URSS e demais países do Leste europeu, durante várias décadas
[do] século XX. Esses países, embora tivessem uma configuração pós-capitalista, foram incapazes de romper
com o sistema de metabolismo social do capital”. (ANTUNES, 2000, p. 23).
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do bloco conservador’ com a eleição de Fernando Collor que busca de
diversas formas obstruir a realização dos novos direitos constitucionais (cf.
Ipea, 2009) que devemos situar o início do processo de construção da
Seguridade Social brasileira. E, como não poderia deixar de ser, a emergente
proposta de Seguridade Social, não se consolida e mostra-se incapaz de,
naquele momento, realizar suas promessas. (YAZBEK, 2012, p. 302-303,
grifo nosso).
Destaca-se que o governo Collor de Mello (1990-1992) buscou tratar de forma
fragmentada as políticas sociais que compunham a seguridade social e na ótica de seguro,
alterou a configuração e a implementação do orçamento referente à previdência social, vetou
artigos da Lei Orgânica da Saúde sobre financiamento e participação popular e parte do
conteúdo do projeto da Lei Orgânica de Assistência Social, entre outros. (PEREIRA, 2012).
Em continuidade a isso, em seus dois mandatos (1995-1998; 1999-2002), o presidente
Fernando Henrique Cardoso efetuou uma série de ações que não favoreceu a concretização
dos direitos sociais conquistados formalmente na Constituição de 1988. Destaca-se dos
mandatos de Cardoso, a criação do Comunidade Solidária, que serviu de base para a
elaboração de leis direcionadas às organizações sociais (OS), organizações filantrópicas (OF)
e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP), visando a instituição de “[...]
um marco legal e regulador [...] das ações entre Estado e organizações da sociedade civil
prestadoras de serviços sociais [...]” (SILVA, 2007, p. 141) – que contribuiu, em certa
medida, para a privatização dos serviços sociais (tais como: saúde, educação, assistência
social, entre outras) e alterando e restringindo o papel do Estado na condução das políticas
sociais.
E, o governo Lula, que iniciou seu mandato em 2003,
De par com esse processo, ao optar pelo não rompimento com os
fundamentos da política neoliberal, o governo Lula, no seu primeiro mandato
(2003-2006), não só continuou com a política de ajuste macroeconômico do
governo FHC, como a intensificou; e, ao lado do reforço à estabilização
econômica, realizou uma minirreforma tributária para elevar a receita da
União e uma nova reforma da Previdência para estabilizar o déficit do regime
previdenciário dos servidores públicos em relação ao PIB (Nakatani e
Oliveira, 2010), na qual os aposentados voltaram a contribuir com 11%. Isso
repercutiu desfavoravelmente nas políticas sociais e nas condições de vida da
classe trabalhadora (e dos aposentados) porque, junto com essas medidas, a
concentração de riquezas manteve-se intocada; ou melhor, a hegemonia do
capital financeiro, o monopólio da terra e os fundos privados de pensão foram
preservados e incentivados. (PEREIRA, 2012, p. 744-745).
Nessa direção, observa-se que nas duas últimas décadas, onde houve uma combinação
entre “rupturas e continuidades e, portanto, preservando ranços conservadores — e, agora,
transformistas [...]” (PEREIRA, 2012, p. 931) nas transformações realizadas. Dentre as
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mudanças que podem ser identificadas na institucionalidade das políticas sociais públicas,
destaca-se: a constituição de um conceito de seguridade social, incluindo a assistência social
como direito social e dever do Estado; a criação de sistemas únicos, descentralizados e
participativos (na área da saúde e assistência social); a instituição de mecanismos de
participação da população (tais como Conselhos e Conferências) na definição de políticas e no
controle das ações governamentais nas três esferas da Federação; a estruturação de fundos
setoriais.
Tais mudanças, ao longo dos anos, tem convivido com as constantes ameaças às
políticas sociais publicas, tais como:
(1) a ausência de ruptura lógica focalista e fragmentada das políticas
sociais; a persistência dos contravalores do clientelismo, elitismo a
obscurecerem e exclusão das massas populares;
(2) o não reconhecimento dos direitos sociais universais, mas a
priorização de serviços fragmentados e de ações focalizadas;
(3) gestões resistentes ao controle social, nas quais o espaço dos
conselheiros com poder de direcionar o planejamento das políticas é limitado;
(4) a participação social ainda ocorrendo através de ações
corporativistas e instrumentais, as quais acabam legitimando as próprias
ações não universalistas do Poder Executivo;
(5) o financiamento do sistema social aquém das demandas e com
regressividade diante de um quadro de crescimento das receitas da União;
(6) falta de uma política adequada de recursos humanos que trate de
planos de carreira, cargos e salários, capacitação nas diversas esferas relativas
à política social. (PAIVA; MATTEI, 2009, p. 177).
Por fim, frisa-se que embora as políticas sociais sejam regulamentadas e de certa
forma providas pelo Estado, permanecem subordinadas e submetidas aos interesses
econômicos e políticos dominantes do grande capital, seja no cenário internacional, seja no
cenário nacional.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atual conjuntura mundial e brasileira, intensificada desde o início dos anos 1990
pelas reformas estruturais advindas da ofensiva neoliberal como resposta à crise do capital,
aponta para uma sobreposição de desafios com relação às conquistas alcançadas no que tange
ao reconhecimento e à afirmação dos direitos na sociedade capitalista contemporânea. Soma-
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se a isso, a cultura política brasileira “baseada na lógica patrimonialista e privatista, produtora
de relações clientelistas, nas quais o favor, a benesse e a caridade (premissas do não direito)
influenciaram as definições e ações das diferentes políticas sociais públicas [...]” (SILVA,
2010, p. 12). Logo, no modelo societário capitalista o caráter contraditório da política social
revela-se na medida em que
as políticas sociais ora são vistas como mecanismos de manutenção da força
de trabalho, ora como conquista dos trabalhadores, ora como arranjos do
bloco no poder ou bloco governante, ora como doação das elites dominantes,
ora como instrumento de garantia do aumento da riqueza ou dos direitos do
cidadão. (FALEIROS, 1991, p.8).
De fato, tem se verificado, é que as reformas estruturais efetuadas ao longo dos anos,
alteraram estruturas econômicas, políticas e sociais, que implicaram em sucessivas tentativas
de destituição, desmonte e desregulamentação dos direitos sociais. Por conseguinte, assistiu (e
assiste-se) a uma crescente subordinação das políticas sociais às políticas de ajuste da
economia “sob o argumento de que o Estado é ineficiente, corrupto e custa caro” (SOARES,
2003, p. 29), e, além disso, estimula o desemprego e alimenta a “[...] ‘preguiça’, impedindo
uma saudável competitividade entre as pessoas.” (SOARES, 2003, p. 11-12). Ao mesmo
tempo, o mercado e a iniciativa privada são exaltados como lócus de realização da
efetividade, eficiência, da probidade e da austeridade.
Nessa direção, observa-se ainda, a um amplo e contínuo processo de transferência das
atribuições do ente estatal para o setor privado, lucrativo (mercado) ou o “terceiro setor”, via
privatização, terceirização e mercantilização das políticas sociais. Por outro lado, constata-se
o retorno do conservadorismo no social, à medida que se naturalizam as manifestações da
questão social ou se aceita sua existência como algo inevitável e inerente ao desenvolvimento
do modo de produção capitalista, responsabilizando as pessoas, famílias e comunidades pelas
causas e soluções das situações vivenciadas.
Isso é reforçado através da adesão ideológica, contribuidora da reprodução da lógica
dominante da nova ordem e liga-se: i) ao predomínio contemporâneo da ideologia da
antipolítica (apatia, indiferença, hipocrisia e cinismo, descompromisso político e técnico), que
perversamente faz com que as pessoas confiem mais no mercado, no sistema financeiro, no
setor privado do que no setor público; ii) a desumanização, “que ou nos torna panfletários na
mentalidade ou nos torna indiferentes em relação aos seus indícios visíveis no sorriso pálido
dos que não tem teto, não tem trabalho, sobretudo, não têm esperança”. (MARTINS, 2003, p.
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21); c) a consciência estamental onde diferenças sociais encontram-se calcadas na premissa da
diferença de qualidade social das pessoas. (MARTINS, 2003, p. 21).
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