escrita e reescrita de textos: anÁlise da...

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Anais do SITED Seminário Internacional de Texto, Enunciação e Discurso Porto Alegre, RS, setembro de 2010 Núcleo de Estudos do Discurso Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS: ANÁLISE DA INTERSUBJETIVIDADE CONSTITUTIVA DO PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA Aline Juchem 1 Introdução “Quando escrevo uma redação, não consigo me ver nela; mas quando escrevo no MSN, todos meus amigos sabem que sou quem estou escrevendo”. Esse dizer, de um aluno de graduação, no primeiro dia de aula do Projeto de Leitura e de Produção de Textos 2 , traduz a cultura que carrega de determinados textos e a necessidade de se reconhecer em sua escrita. Isso tem a ver com dois aspectos: a intersubjetividade e o ato individual de utilização da língua, que constituem o processo de apropriação da língua pelo sujeito. Para abordar essas questões teóricas, parto da teoria da enunciação de Émile Benveniste. A escolha desse autor se justifica porque a intersubjetividade é o fundamento de sua teoria semântica sobre a língua, para o qual a enunciação é esse ato individual de apropriação da língua pelo sujeito que possibilita singularizar-se no que é comum a todos. O objeto deste trabalho é discutir, pela análise da reescrita de um texto, a passagem de locutor a sujeito pela condição de intersubjetividade, constitutiva do processo de apropriação da língua pelo sujeito/aluno, e como este se utiliza do aparelho formal da língua para se marcar e constituir o outro em seu dizer. Considerando que Benveniste não propôs nenhum modelo de análise uma vez que se trata da enunciação, cada vez única e que este depende do ponto de vista adotado pelo linguista, a metodologia deste trabalho se faz pela observação das categorias linguísticas que compõem o quadro enunciativo da língua, que versa sobre o próprio ato da enunciação, a situação, ou “cena enunciativa”, e os instrumentos de sua realização. O corpus de análise é composto por dois textos escritos pelo mesmo aluno, numa situação de escrita e reescrita, como produtos da enunciação. O que está em questão, fique claro, são as marcas deixadas pelo sujeito; não o sujeito em si. Conforme Flores e Silva (apud Flores, 2008, p.94), é preciso considerar em cada enunciado, nesse caso, em cada texto produto da enunciação os seguintes princípios: a) os recursos linguísticos que permitem ver as marcas da enunciação, b) a situação espaço-temporal com relação à enunciação que produz o enunciado e c) a categoria de pessoa como centro de referência do discurso. De Benveniste tomo como texto-base para dar luz a essas questões O aparelho formal da enunciação 3 , de Problemas de lingüística geral II, em que o autor apresenta a 1 Mestranda em Estudos da Linguagem: Teorias do Texto e do Discurso do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista CAPES/REUNI pelo Programa de Apoio à Graduação (PAG), no qual atuo como professora, sob a coordenação da Profa. Dra. Carmem Luci da Costa Silva. E-mail: [email protected] 2 Projeto de Língua Portuguesa do Programa de Apoio à Graduação (PAG), oferecido pela UFRGS a alunos de graduação de diferentes cursos. 3 Tomo esse texto como base não no sentido de base teórica, mas como a síntese dos conceitos desenvolvidos ao longo da teoria enunciativa benvenistiana. Por essa razão, determinadas noções pedem que se recorra a textos anteriores para ilustrá-las. 25

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ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS:

ANÁLISE DA INTERSUBJETIVIDADE CONSTITUTIVA

DO PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA

Aline Juchem1

Introdução

“Quando escrevo uma redação, não consigo me ver nela; mas quando escrevo no

MSN, todos meus amigos sabem que sou quem estou escrevendo”. Esse dizer, de um aluno de graduação, no primeiro dia de aula do Projeto de

Leitura e de Produção de Textos2, traduz a cultura que carrega de determinados textos e a necessidade de se reconhecer em sua escrita. Isso tem a ver com dois aspectos: a intersubjetividade e o ato individual de utilização da língua, que constituem o processo de apropriação da língua pelo sujeito.

Para abordar essas questões teóricas, parto da teoria da enunciação de Émile Benveniste. A escolha desse autor se justifica porque a intersubjetividade é o fundamento de sua teoria semântica sobre a língua, para o qual a enunciação é esse ato individual de apropriação da língua pelo sujeito que possibilita singularizar-se no que é comum a todos.

O objeto deste trabalho é discutir, pela análise da reescrita de um texto, a passagem de locutor a sujeito pela condição de intersubjetividade, constitutiva do processo de apropriação da língua pelo sujeito/aluno, e como este se utiliza do aparelho formal da língua para se marcar e constituir o outro em seu dizer.

Considerando que Benveniste não propôs nenhum modelo de análise – uma vez que se trata da enunciação, cada vez única – e que este depende do ponto de vista adotado pelo linguista, a metodologia deste trabalho se faz pela observação das categorias linguísticas que compõem o quadro enunciativo da língua, que versa sobre o próprio ato da enunciação, a situação, ou “cena enunciativa”, e os instrumentos de sua

realização. O corpus de análise é composto por dois textos escritos pelo mesmo aluno, numa situação de escrita e reescrita, como produtos da enunciação. O que está em questão, fique claro, são as marcas deixadas pelo sujeito; não o sujeito em si.

Conforme Flores e Silva (apud Flores, 2008, p.94), é preciso considerar em cada enunciado, nesse caso, em cada texto – produto da enunciação – os seguintes princípios: a) os recursos linguísticos que permitem ver as marcas da enunciação, b) a situação espaço-temporal com relação à enunciação que produz o enunciado e c) a categoria de pessoa como centro de referência do discurso.

De Benveniste tomo como texto-base para dar luz a essas questões O aparelho

formal da enunciação3, de Problemas de lingüística geral II, em que o autor apresenta a

1 Mestranda em Estudos da Linguagem: Teorias do Texto e do Discurso do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista CAPES/REUNI pelo Programa de Apoio à Graduação (PAG), no qual atuo como professora, sob a coordenação da Profa. Dra. Carmem Luci da Costa Silva. E-mail: [email protected] 2 Projeto de Língua Portuguesa do Programa de Apoio à Graduação (PAG), oferecido pela UFRGS a alunos de graduação de diferentes cursos. 3 Tomo esse texto como base não no sentido de base teórica, mas como a síntese dos conceitos desenvolvidos ao longo da teoria enunciativa benvenistiana. Por essa razão, determinadas noções pedem que se recorra a textos anteriores para ilustrá-las.

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noção de enunciação como ato individual de utilização, sob o qual se instaura um quadro formal a que subjazem as demais noções teóricas necessárias à compreensão da questão posta aqui.

Na primeira parte, procuro discutir como se constitui, segundo a perspectiva enunciativa benvenistiana, a estrutura enunciativa que permite instanciar a intersubjetividade e instaurar o processo de apropriação da língua. Na segunda parte, desloco essas questões teóricas para o processo de escrita do aluno a fim de demonstrar como elas explicam a passagem de locutor a sujeito possível pelo aspecto intersubjetivo constitutivo da enunciação. Intersubjetividade e apropriação da língua

Quando Benveniste (2005, p.285) observa que “é um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem”, ele significa a intersubjetividade como constitutiva da linguagem, uma vez que ela se dá numa relação dialética. Essa relação subtende três instâncias simultâneas de intersubjetividade, segundo Silva (2009, p.158 et seq.): intersubjetividade cultural, intersubjetividade da alocução ou dialógica e intersubjetividade linguístico-enunciativa. A primeira se refere à relação homem/homem, imersos na cultura que subjaz à linguagem. Se o homem se constitui na e pela linguagem, então se constitui pela cultura, cujo simbolismo significa a relação do homem com a própria língua. A segunda instância implica a relação locutor/alocutário, sob a condição de que “eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém que será na minha alocução um tu” (Benveniste, op. cit., p.286), ou seja, essa polaridade e reciprocidade são pressupostos fundamentais para a intersubjetividade, que torna possível a comunicação linguística:

Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade – que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa por eu [...] A linguagem só é possível porque cada locutor se propõe como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa, aquela que, sendo embora exterior a ´mim`, torna-se o meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu. A polaridade das pessoas é na linguagem a condição fundamental. (Benveniste, 2005, p.286, grifos do autor)

Essa condição é possível porque o locutor e o alocutário dispõem de índices específicos que permitem ocupar esse lugar no ato enunciativo. Esse lugar é marcado pela instância intersubjetiva linguístico-enunciativa, isto é, pela relação “eu-tu”, onde é

“´ego` quem diz ego”. O simples fato de “eu” dizer “eu” já estabelece uma relação

intersubjetiva, porque “falar sempre é falar de” e falar a, e é nessa relação que locutor e

alocutário se atualizam e se alternam. Lembro aqui que todas as instâncias intersubjetivas se dão simultaneamente e

são elas que disponibilizam, pela subjetividade das formas disponíveis na língua, que o locutor se proponha como sujeito. Essas formas fundamentam a noção de pessoa, formas “vazias” que só significam na e pela enunciação. O “eu” e o “tu”, categorias de

pessoa, só se preenchem por aqueles que tomam a palavra no momento da enunciação. Sem enunciação, essas categorias são apenas possibilidades da língua.

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Nesse contexto, Benveniste esclarece que o emprego da língua subtende um fenômeno muito maior ao emprego das formas, porque concebe uma atualização – uma enunciação: “este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (2006, p.82). O autor chama a atenção para um fato: a enunciação é o próprio ato de produzir um enunciado, a sua origem, e não o seu fim.

Esse ato individual de utilização permite a conversão da língua em discurso – uma “semantização” –, que possibilita tornar singular aquilo que é comum a todos, ou seja, possibilita dar sentido às formas preexistentes da língua, as quais só significam na e pela enunciação. Para explicar esse mecanismo em que as formas linguísticas manifestam uma atualização, Benveniste instaura o quadro formal da enunciação, considerando: o ato, a situação e os instrumentos de sua realização.

No que diz respeito ao ato, considerado sob as instâncias de intersubjetividade, este depende eminentemente de um locutor que se apropria do aparelho formal da língua para constituir o outro diante de si e se constituir como sujeito de seu dizer.

A apropriação da língua pelo sujeito está nessa necessidade de atribuir referência à sua enunciação, significada somente na instância de discurso, ou seja, na situação enunciativa, e que se justifica pelo fato de que, repito, “falar é sempre falar de” (ibid., p.63), logo a língua é empregada para expressar “uma certa relação com o mundo”

(ibid., p.84). Essa referência é marcada no uso da língua, construída numa alocução “eu -tu”, que permite ao “eu” enunciar sua posição de locutor e se referir pelo discurso, e ao “tu” co-referir, constituindo, desse modo, um centro de referência interno.

Isso se explica pelos instrumentos de sua realização, ou melhor, os índices específicos abordados por Benveniste: “índices de pessoa” (eu-tu) e “índices de

ostensão” (este, aqui...), manifestados em um tempo sempre “presente”, designando a

cada vez um “eu-tu-aqui-agora”, uma vez que a enunciação é ato novo e irrepetível.

Segundo o autor, “o homem não dispõe de nenhum outro meio de viver o ´agora` e de torná-lo atual senão realizando-o pela inserção do discurso no mundo” (ibid., p.85). Como tempos linguísticos, o passado e o futuro são projeções subjetivas, porque somente num tempo presente a estrutura enunciativa se preenche.

Além desse aparelho de formas, a língua disponibiliza ao locutor, para se propor como sujeito, um aparelho de funções: de “interrogação”, de “intimação” e de

“asserção”, que permitem ao locutor exprimir sua posição no discurso e instaurar o

outro diante de si, co-referindo numa dada situação enunciativa. Esse aparelho ainda comporta um aspecto maior, o de modalização, como os pronomes, ou categorias de pessoa; os tempos verbais; os advérbios etc. No sentido de funções, essas formas linguísticas instanciam aquele que fala em sua fala e convocam o outro a participar também do instante de enunciação.

É partindo do aparelho formal da língua que o locutor busca significar e singularizar o seu ato individual de utilização da língua, construindo a referência no discurso, constituindo-se assim como sujeito ao mesmo tempo em que constitui o outro em seu dizer. A apropriação da língua depende, então, de dois aspectos intrinsecamente ligados: a intersubjetividade, que está para a linguagem, e a subjetividade, que está para a língua. É de uma relação intersubjetiva que emerge a subjetividade.

O corpus e a metodologia

Esta parte se destina à análise de dois textos de um mesmo aluno: a primeira escrita e a reescrita (anexos).

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Antes de mais nada, vejo a necessidade de uma explicação: para Benveniste a “frase” é a unidade do discurso. Essa noção não encerra literalmente um conjunto limitado, pelo contrário, abre para outra concepção: de “enunciado”, isto é, o produto da

enunciação. Sendo assim, “a frase ou enunciado não tem sua extensão limitada por nenhum critério que seja ´externo` à enunciação”, conforme Flores (2008, p.67, grifos do autor). Sob a “frase”, ou “enunciado”, repousa uma dupla significação, pois ao mesmo

tempo em que se reconhece sua significação como sistema coletivo, semiótico, compreende-se sua significação como o uso singular desse sistema, nesse caso, semântico. É sobre este que repousa especialmente a análise a ser feita aqui. Sendo a escrita e a reescrita produtos da enunciação, únicas e irrepetíveis, a análise leva em conta as marcas enunciativas que a concretude desses enunciados revela. Para isso partirá das questões definidas anteriormente: a) o ato individual de utilização, b) a situação de referência e c) os instrumentos de sua realização, baseadas nos princípios de análise quanto a) aos recursos linguísticos, b) à situação espaço-temporal e c) à categoria de pessoa como centro de referência do enunciado.

Os textos são adotados integralmente, uma vez que a enunciação atravessa todo o texto, para que depois sejam delimitados os enunciados que mais parecem relevantes para a análise.

As perguntas que antecedem são: Como o sujeito/aluno se marca nos discursos? Quais são as marcas de intersubjetividade? O que se passa entre a primeira escrita e a reescrita no que diz respeito à relação intersubjetiva? O que se marca especialmente na reescrita? O que constitui essa diferença? E quais são os índices da língua que permitem identificá-la? A análise

Antes de mais nada, levo em conta o título da proposta de produção textual: “Minha presença na universidade”. Ele mesmo já convoca o locutor a se enunciar, pois

ao dizer “minha” o locutor já fala de si. O primeiro texto do aluno inicia com “oi, meu nome é (nome completo)”, o que,

ao meu ver, denota explicitamente o estabelecimento de uma relação intersubjetiva numa necessidade de constituir um outro a quem fala e de, através do seu nome completo, marcar como seu o dizer. Lembro aqui de sua fala inicial sobre não ver, na redação, possibilidades de sua enunciação, o que determina sua relação com a língua e afeta o discurso inteiro, uma vez que a enunciação atravessa todo o texto. Com relação ao ato individual de utilização da língua, considerado sob as instâncias de intersubjetividade, o locutor/aluno instaura um diálogo com o alocutário nas formas em que diz “eu” de forma explícita: “a primeira impressão que eu tive”, “os

professores que eu tenho”, “eu acredito”, “eu não quero”, e de forma implícita, através

da modalização pelo aspecto verbal: “vou falar um pouco do que acho”, “quando fui

fazer minha matrícula”, “não participo de nenhuma bolsa” etc., além de marcar sua

posição como sujeito pela forma de asserções. Ainda quanto ao diálogo, o locutor instaura o outro diante de si ao enunciar “você pode almoçar bem por apenas R$ 1,60” e “um diploma não serve para nada se tu realmente não aprendeu o que lhe foi ensinado”, em que “você” e “tu” ocupam a

posição de alocutário, ao mesmo tempo em que ocupam a posição do locutor, pois através dessas formas ele também fala de si. Ao assumir essas formas, o locutor permite

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que elas sejam preenchidas pela enunciação, dando as condições da intersubjetividade: uma polaridade e uma reciprocidade que estruturam a interlocução. Dessa forma, o locutor passa a sujeito no instante em que se apropria da língua para constituir-se como o centro de referência do discurso. Outros recursos, como as modalizações por advérbios, pronomes e artigos emergem dos enunciados para marcar a posição do sujeito: “vou falar um pouco”, “a

primeira impressão que eu tive”, “você pode almoçar bem por apenas”, “e também

ela ajuda muito”, “esse foi um dos motivos”, “além de ser de graça”, “não quero ser apenas um engenheiro com um diploma, mas acima de tudo um bom engenheiro”,

“afinal não participo”, “quero com certeza”, “uma coisa que gostei (muito)”. Este

último exemplo se destaca pela exclusão do pronome “muito”. Em relação aos pronomes e aos advérbios, eles marcam ainda a situação espaço-temporal, determinante da estrutura enunciativa. São os casos: “foi minha presença

dentro dela até agora”, “gostei que os professores aqui da universidade”, “por

enquanto não participo”, “esse foi um dos motivos”, “ajudar essa instituição”, “no

futuro” (nesse caso, locução adverbial). Essas formas só se preenchem pelo ato de enunciação, pelas quais o locutor refere ao seu discurso e permite que o alocutário co-refira, instituindo, assim, um centro de referência interno extensivo à instância de discurso. Feita a primeira análise, cabe explicar o processo de reescrita antes de passar à análise do segundo texto: a primeira escrita é lida em aula pelo aluno, sobre a qual são feitas considerações pela equipe docente e pelos colegas; depois o aluno fica responsável por reescrevê-la levando em conta essas considerações e os aspectos teóricos discutidos ao longo das aulas4. Passo, agora, ao segundo texto. No início do primeiro parágrafo, o locutor estabelece de imediato a relação intersubjetiva: “oi pessoal, meu nome é (só o primeiro

nome)”, “vocês já me conhecem”, “eu sou aquele cara louco da engenharia que não conseguiu entrar no curso de cálculo”, onde constitui o outro diante de si e se constitui,

pela categoria de pessoa, como o centro de referência do enunciado. A forma “aquele”,

considerada sob a noção de não-pessoa5 por Benveniste, remete ao próprio sujeito, pois a forma aqui objetiva de “ele” preenche-se pelo sentido de “eu”. Com relação à estrutura do diálogo, outros períodos a revelam pelas pessoas do discurso: “eu entrei este ano na UFRGS”, “eu estudava na Feevale”, “isso que eu queria e é exatamente isso que eu estou encontrando aqui”, “porque eu percebi”, “não adianta

tu se formar”, “tu não exercer a tua profissão, “tu tem que estudar”, “se não tu não consegue”, “onde tu tem várias atividades para te ajudar”, “eu já conheci muita gente”.

Aqui o “tu” assume tanto a posição de alocutário quanto a de locutor, uma vez que essa

forma se reverte. Ao mesmo tempo em que o locutor fala ao outro, fala de si, incluindo-se nesse “tu”. Essas formas subjetivas também aparecem pela modalização: “passei na minha

segunda tentativa”, “ainda não sei ao certo”, “não me preocupo com isso agora”, “é

exatamente isso que eu estou encontrando aqui”, “tenho certeza”, “já almocei”, “já

4 A reescrita geralmente não é lida em aula, somente entregue, porém, nesse caso, o aluno pediu para ler sua reescrita a fim de modificar o que ainda fosse necessário (por isso suas rasuras). Observo que, ao final desse texto, o aluno anota essas considerações. Uma delas será retomada adiante. 5 Para Benveniste (2005), os pronomes que indicam as “pessoas do discurso” são as formas subjetivas “eu/tu”, ou “signos vazios”, que só se atualizam na enunciação; enquanto “ele” é a não-pessoa, pois é forma objetiva, ou “signo pleno”, pertencente à sintaxe da língua.

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conheci”, “além é claro”, “estou gostando muito”, “quero participar e ajudar cada dia mais”. Essas marcas, pelas formas de asserção, constituem a posição do sujeito no

discurso. Já com relação à situação, esta é construída pelas formas linguísticas espaço-temporais que atribuem referência à instância enunciativa: “entrei este ano na UFRGS”,

“ano passado tentei”, “não sei se vou continuar”, “não me preocupo com isso agora”,

“ano passado eu estudava na Feevale”, “isso que eu queria e é exatamente isso que eu estou encontrando aqui”, “minha presença ainda não é grande, ela será maior daqui

pra frente”, “em dois meses eu já conheci muita gente”, “daqui pra frente quero participar mais”. Essa referência só é possível porque a língua enquanto aparelho formal da enunciação dispõe da subjetividade de suas formas para atualizá-la na situação de discurso. É através da escolha das formas da língua que o locutor se situa em sua fala, situa o outro e constrói a referência no seu dizer, em suma, é no quadro enunciativo que a intersubjetividade constitui o processo de apropriação da língua. Considerações finais

Feitas as análises, volto então a algumas questões: o que se passa entre a

primeira escrita e a reescrita no que diz respeito à relação intersubjetiva? O que se marca especialmente na reescrita? O que constitui essa diferença? E quais são os indícios da língua que permitem identificá-la? Empiricamente, considerando os dois textos sob a transversalidade da enunciação, há em relação ao primeiro um certo distanciamento do locutor sobre sua enunciação, isto é, sobre sua presença na universidade se comparado ao segundo, no qual a enunciação, transversal ao discurso, marca mais subjetivamente a presença do sujeito e do outro no seu dizer. Isso tem a ver com a posição que ocupa como enunciador e aquela esperada pelo outro. Por procurar o projeto de Leitura e Produção de Textos, este aluno busca um lugar de enunciação e, no momento em que é dado e reconhecido esse lugar, o sujeito se apropria de sua nova posição como enunciador e, consequentemente, da língua para marcar esse lugar. Sob meu ponto de vista, a intersubjetividade que permeia o percurso entre escrita e reescrita salta aos olhos especialmente pela comparação do primeiro parágrafo de cada enunciado. No segundo texto, o locutor estabelece uma relação dialógica de “maior

proximidade” com o alocutário, instaurando-o diante de si e convocando-o a enunciar e a co-referir nesse discurso. Ao longo do texto existem ainda mais formas subjetivas de “eu” e “tu” do que no primeiro e mais recursos linguísticos que permitem o sujeito emergir em seu dizer. Ainda no que diz respeito ao primeiro parágrafo: no primeiro texto, o locutor se apresenta pelo nome completo como uma necessidade de marcar seu dizer, enquanto, no segundo, se apresenta somente pelo primeiro nome ao mesmo tempo em que se marca de forma mais subjetiva ao longo deste mesmo enunciado. Se a intersubjetividade é condição para a subjetividade, conforme Benveniste, então é possível perceber na transversalidade do segundo enunciado uma marca mais assinalada da relação intersubjetiva entre locutor e alocutário, isso por um duplo movimento: na reescrita o locutor/aluno volta ao seu dizer para produção de uma nova enunciação. Esse processo é construído pela interferência do outro, por uma intersubjetividade que constitui uma nova apropriação da língua pelo sujeito para o seu

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dizer. Dessa forma, a reescrita é uma nova enunciação, o que corrobora a teoria enunciativa da irrepetibilidade mesmo que sob a repetição da experiência – e se há a interferência do outro, o sujeito também já não é mais o mesmo. Esse fato se afirma pela observação que o aluno registra da fala de um colega sobre seu segundo texto: “Divertido, bem (nome do aluno) mesmo”. Ao meu ver, essa fala não leva em consideração o sujeito em si, mas como esse sujeito se marca e se revela em seu discurso, diferentemente do primeiro. E mais: considera com isso que as marcas estão em relação ao enunciador, o que torna possível marcar-se em qualquer gênero de texto que venha a escrever, ou mesmo na fala. Isso parece demonstrar a construção intersubjetiva entre a escrita e a reescrita, refletida tão bem no segundo texto. Nele há uma relação mais íntima – ou subjetiva –, do locutor com a língua, visto que “a relação do locutor com a língua determina os

caracteres lingüísticos da enunciação” (Benveniste, 2006, p.82). Enfim, é pela busca de significar e singularizar seu discurso que o locutor, na condição intersubjetiva, apropria-se do aparelho formal da língua e se constitui como sujeito de seu dizer. Ao final do primeiro semestre, a autoavaliação do aluno corrobora esse processo e essa análise: “aprendi a me colocar e a me perceber na escrita

6”.

Referências

BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I. Trad. Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. São Paulo: Pontes, 2005. BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral II. Trad. Eduardo Guimarães et

al. São Paulo: Pontes, 2006. FLORES, Valdir do Nascimento; SILVA, Silvana; LICHTENBERG, Sônia; WEIGERT, Thaís. Enunciação e gramática. São Paulo: Contexto, 2008. SILVA, Carmem Luci da Costa. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. São Paulo: Pontes, 2009. Anexo I: Primeira escrita

6 Não entra em discussão se o texto está adequado ao padrão do gênero textual em questão, pois o único propósito é dar conta da relação do locutor com a língua sob as condições da enunciação.

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Fig.1a

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Fig.1b

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Anexo II: Reescrita

Fig. 2a

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Fig. 2b

*Esses textos, produzidos no Projeto de Leitura e Produção de Textos, do Programa de Apoio à Graduação (PAG), foram cedidos e autorizados pelo aluno como corpus para este artigo.

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