neodesenvolvimentismo e proteÇÃo social latino...

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1 NEODESENVOLVIMENTISMO E PROTEÇÃO SOCIAL LATINO AMERICANA: NOTAS REFLEXIVAS Heloísa Teles 1 Carlos Nelson dos Reis 2 Mari Aparecida Bortoli 3 Resumo: A América Latina tem vivenciado mudanças significativas no que concerne aos arranjos políticos, econômicos e sociais orquestrados na região. Para refletir a respeito do atual contexto latino americano é míster observar as tendências que pautam o debate sobre o desenvolvimento da região. Nessa perspectiva, detecta-se, o neodesenvolvimentismo enquanto possibilidade de mediação entre o desenvolvimento econômico e social, impulsionado pela crise estrutural do capital na década de 1970 e a necessidade de formulação de estratégias para retomada dos padrões mínimos civilizatórios e garantia para a reprodução do capital. Diante disso a proteção social ganha destaque enquanto mecanismo propulsor do ideário que preconiza a conciliação entre desenvolvimento econômico e social. .Palavras-chave: América Latina, neodesenvolvimentismo, proteção social. 1 INTRODUÇÃO A atual conjuntura latino-americana se apresenta permeada por discussões que remetem a reflexões vinculadas a processualidade histórica e correlação de forças constituintes das particularidades políticas, econômicas e sociais que forjam o cenário da região. A inserção da América Latina, seja como continente ou bloco econômico, no contexto global dos diferentes países apresenta algumas especificidades que demandam uma análise mais aprofundada, no intento de captar o movimento e tendências responsáveis por sua conformação e desdobramentos no tempo presente. Particularmente, tomando os aspectos econômicos, políticos e sociais latino- americanos, torna-se possível apreender, ao longo da história, alterações significativas quanto à conjectura de proposições e projetos que se propõe inquirir sobre as possibilidades para o 1 Assistente Social. Doutoranda integrante do NEPES do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS. Docente do Curso de Serviço Social da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected] 2 Economista e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS. Integrante do Núcleo de Pesquisa em Economia Social NEPES. E-mail: [email protected] 3 Assistente Social. Bolsista PNPD/CAPES junto ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS. Líder do GP Movimentos Sociais, Direitos e Políticas Sociais MOVIDOS/PUCRS. E-mail: [email protected] III Seminário Regional de Políticas Públicas, Intersetorialidade e Família e I Seminário Nacional de Políticas Públicas, Intersetorialidade e Família: crise, conservadorismo e resistência. | 2016 ISBN: 978-85-397-0963-2

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NEODESENVOLVIMENTISMO E PROTEÇÃO SOCIAL LATINO AMERICANA:

NOTAS REFLEXIVAS

Heloísa Teles 1

Carlos Nelson dos Reis 2

Mari Aparecida Bortoli3

Resumo: A América Latina tem vivenciado mudanças significativas no que concerne aos

arranjos políticos, econômicos e sociais orquestrados na região. Para refletir a respeito do

atual contexto latino americano é míster observar as tendências que pautam o debate sobre o

desenvolvimento da região. Nessa perspectiva, detecta-se, o neodesenvolvimentismo

enquanto possibilidade de mediação entre o desenvolvimento econômico e social,

impulsionado pela crise estrutural do capital na década de 1970 e a necessidade de formulação

de estratégias para retomada dos padrões mínimos civilizatórios e garantia para a reprodução

do capital. Diante disso a proteção social ganha destaque enquanto mecanismo propulsor do

ideário que preconiza a conciliação entre desenvolvimento econômico e social.

.Palavras-chave: América Latina, neodesenvolvimentismo, proteção social.

1 INTRODUÇÃO

A atual conjuntura latino-americana se apresenta permeada por discussões que

remetem a reflexões vinculadas a processualidade histórica e correlação de forças

constituintes das particularidades políticas, econômicas e sociais que forjam o cenário da

região. A inserção da América Latina, seja como continente ou bloco econômico, no contexto

global dos diferentes países apresenta algumas especificidades que demandam uma análise

mais aprofundada, no intento de captar o movimento e tendências responsáveis por sua

conformação e desdobramentos no tempo presente.

Particularmente, tomando os aspectos econômicos, políticos e sociais latino-

americanos, torna-se possível apreender, ao longo da história, alterações significativas quanto

à conjectura de proposições e projetos que se propõe inquirir sobre as possibilidades para o

1Assistente Social. Doutoranda integrante do NEPES do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da

PUCRS. Docente do Curso de Serviço Social da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]

2Economista e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS. Integrante do

Núcleo de Pesquisa em Economia Social NEPES. E-mail: [email protected]

3Assistente Social. Bolsista PNPD/CAPES junto ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS.

Líder do GP Movimentos Sociais, Direitos e Políticas Sociais MOVIDOS/PUCRS. E-mail: [email protected]

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desenvolvimento social e o crescimento econômico, buscando, com isso, a diminuição dos

déficits e desigualdades, intrínsecos ao processo de desenvolvimento dessa região.

Nesse contexto, observa-se que o neodesenvolvimentismo tem se apresentado

enquanto estratégia para impulsionar o desenvolvimento social e o crescimento econômico da

região latino-americana, consubstanciado em prerrogativas que sustentam a mediação entre a

satisfação das necessidades e demandas da classe trabalhadora e a expansão e acumulação de

capital.

Em observância a literatura que tem realizado o debate sobre o tema, apreende-se uma

heterogeneidade teórica, incluindo o questionamento sobre a validade da discussão sobre a

existência do neodesenvolvimentismo e sua materialização no cenário latino-americano. Com

isso, os próximos itens objetivarão realizar uma aproximação preliminar com essas diferentes

concepções no intuito de destacar os principais significados e compreensões conferidos ao

neodesenvolvimentismo, no intento de apreender a proteção social inserida nesse contexto.

2 NEODESENVOLVIMENTISMO: DIVERGÊNCIAS CONCEITUAIS

O debate sobre a terminologia “neodesenvolvimentismo”, bem como seus objetivos,

implica na elaboração de diferentes interpretações pelos estudiosos que tem se debruçado

sobre o tema. Essa afirmativa fica evidenciada quando se observa na literatura um dissenso

teórico, abarcando concepções que divergem conceitualmente, pois enquanto alguns

estudiosos afirmam que se refere a uma complementariedade do neoliberalismo (CASTELO,

2012; GONÇALVES, 2012; SAMPAIO JR, 2012) outros entendem como alternativa ao

neoliberalismo (BRESSER-PEREIRA, 2004; CARVALHO, 1999; SICSÚ; PAULA E

MICHEL, 2005).

Partindo da etimologia do termo, verifica-se que o “neo” trata-se de uma atualização

de um conceito anterior, nesse caso o desenvolvimentismo. Contudo, investigando as origens

do termo é possível apreender que além de uma atualização, a conjectura do

neodesenvolvimentismo refere-se a uma adequação da antiga estratégia apropriada aos novos

tempos e a realidade atual.

Em observância a revisão de literatura4, percebe-se que o neodesenvolvimentismo

possui diferentes origens teórico-analíticas, destacando-se entre elas as ideias de Keynes e de

seus seguidores – Paul Davidson; Joseph Stiglitz (SICSÚ; PAULA; MICHEL, 2007), e as

4 A revisão aqui referida constitui-se na elaboração do Estado da Arte sobre o tema que teve enquanto fontes

básicas de referência o Banco de Teses da Capes; o Domínio Público e Biblioteca Digital Brasileira de Teses e

Dissertações.

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produções cepalinas neoestruturalistas. Na literatura econômica brasileira, um dos principais

teóricos que debatem esse tema é o economista Bresser-Pereira (2006, 2007, 2009).

Apesar da existência de diferentes interpretações, apreende-se que a mais difundida é a

definição de um “terceiro discurso” – uma estratégia que revisita e adapta ao contexto atual o

antigo desenvolvimentismo latino americano, apresentando-se como alternativa ao

neoliberalismo.

Na concepção de seus formuladores, esse conceito configura-se como uma alternativa

aos modelos econômicos vigente e uma adequação ao desenvolvimentismo passado. Assim,

defende a premissa de que “as políticas macroeconômicas neoliberais são incompatíveis com

a soberania do Estado para implementar uma política econômica atendendo ao objetivo

nacional de retomada do desenvolvimento com estabilidade macroeconômica e com um

menor custo fiscal” (MORAIS; SAAD-FILHO, 2011, p. 520).

Essa perspectiva vem ganhando destaque nos discursos que pretendem a constituição

de uma nova estratégia para o desenvolvimento, pois “parte do pressuposto de que o

crescimento constitui a chave para o enfrentamento das desigualdades sociais” (SAMPAIO

JR, 2012, p. 679). Observa-se a ampliação de teóricos debatendo esse tema, sendo inclusive,

instigados pelos principais organismos internacionais como a ONU, CEPAL e BM.

Bresser-Pereira conceitua o neodesenvolvimentismo como “um conjunto de propostas

de reformas institucionais e de políticas econômicas, por meio das quais as nações de

desenvolvimento médio buscam, no início do século XXI, alcançar os países desenvolvidos”

(BRESSER-PEREIRA, 2006, p. 12).

Para tanto, sustenta-se a partir de quatro principais teses, sendo elas:

(i) não haverá mercado forte sem um Estado forte; (ii) não haverá

crescimento sustentado a taxas elevadas sem o fortalecimento dessas duas

instituições (Estado e mercado) e sem a implementação de políticas

macroeconômicas adequadas; (iii) mercado e Estado fortes somente serão

construídos por uma estratégia nacional de desenvolvimento; e (iv) não é

possível atingir o objetivo da redução da desigualdade social sem

crescimento a taxas elevadas e continuadas (SICSÚ; PAULA; MICHEL,

2007, p. 509).

Partindo dessas teses, destaca-se a importância conferida ao Estado na efetividade do

desenvolvimento, indicando a necessidade da reformulação de suas funções enquanto

estratégia para o fortalecimento nos âmbitos político, regulatório, financeiro e administrativo.

A centralidade do Estado na condução das políticas que viabilizariam o desenvolvimento é

basilar da perspectiva defendida.

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Em contrapartida, há uma segunda interpretação do termo que o define enquanto uma

“versão do liberalismo enraizado [...], da mesma forma que o Consenso de Washington, o

Pós-Consenso de Washington e as formulações da Nova Cepal” (GONÇALVES, 2012, p.

639). Essa perspectiva advoga que o neodesenvolvimentismo toma para si a pretensão de

“recuperar as promessas civilizatórias não alcançadas pelo processo histórico de

modernização capitalista no Brasil [e América Latina] e que atualmente, segundo os teóricos

que trabalham nessa linha, voltam a figurar como horizonte histórico nacional”

(MARANHÃO, 2014, p. 303).

Ainda nessa linha de pensamento, pontuando uma leitura de corte mais político do que

econômico e focando na realidade brasileira, tem-se que o neodesenvolvimentismo trata-se de

uma nova tendência do pensamento econômico, mas que está “diretamente relacionada às

intrigas e conspirações palacianas entre as duas facções que disputam o controle da política

econômica brasileira: a monetarista [...] e a autoproclamada ‘desenvolvimentista’ [...]”

(SAMPAIO JR, 2012, pg. 678).

Os autores que sustentam essa defesa, afirmam que o neodesenvolvimentismo propõe,

em última análise, uma reversão neocolonial, pois desconsidera o progresso histórico,

aludindo a possibilidade de se realizar uma inversão “do significado do processo histórico em

curso que determina uma relação inescapável entre desenvolvimento capitalista e barbárie’

(SAMPAIO JR, 2012, p. 683).

Essa compreensão encontra-se alicerçada na crítica a corrente que entende o

neodesenvolvimentismo como possível caminho para a superação dos malogros produzidos

pelo capitalismo, numa lógica etapista da história. Sendo assim, a América Latina se

encontraria numa fase de imaturidade econômica, a qual deveria ser superada para, depois,

firmar as bases sólidas no sentido de superação do capitalismo.

a hipótese da imaturidade econômica é desmentida pela conjuntura atual, que

criou um grande dilema quanto a quem se beneficiará do crescimento em

curso. Os novo-desenvolvimentistas tentam canalizar essa melhoria em favor

dos industriais e os neoliberais tratam de preservar os privilégios dos bancos.

(KATZ, 2010, p. 62).

Soma-se a essa perspectiva a interpretação do lugar que as políticas sociais assumem

nesse contexto, pois diferente do que a primeira perspectiva defende, nesse recorte analítico as

“políticas [sociais e indutoras de desenvolvimento] possuem muito mais o caráter de

estratégias para minorar o impacto da crise, que provocar verdadeiramente uma mudança no

‘modelo de desenvolvimento social’” (BOSCHETTI, 2012, p. 37).

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Tendo como referência os posicionamentos anteriormente referidos, fica evidente a

crítica proferida pelos autores filiados a proposição do neodesenvolvimentismo e, com isso,

faz-se necessário explorar melhor esse debate, conforme pretende o próximo item,

explicitando as incidências produzidas junto a proteção social latino-americana.

3 A PROTEÇÃO SOCIAL LATINO-AMERICANA: APROXIMAÇÕES

Para empreender uma análise sobre o “novo” desenvolvimentismo relacionando com a

proteção social latino-americana, faz-se necessário reiterar a divergência conceitual

apreendida na literatura que debate o tema, considerando as contradições e confluências que

se encontram pautadas.

A linha analítica que objurga a proposição do neodesenvolvimentismo pauta-se pela

crítica a própria terminologia “desenvolvimento”, pois retomando as origens conceituais do

termo, fundamentadas pela Teoria Cepalina, assinala o substrato ideológico contido na

mesma, uma vez que “assevera que o desenvolvimento econômico representa um continuum

no qual o subdesenvolvimento constitui uma etapa anterior ao desenvolvimento pleno”

(MARINI, 2010, p. 105).

Um segundo aspecto importante para essa análise reside na proposição de que o

desenvolvimento econômico implica, necessariamente, na modernização das condições

econômicas, sociais, institucionais e ideológicas dos países. Essa ideia reitera a compreensão

sobre a existência de um período de transição o qual os países periféricos teriam que vivenciar

até conseguir atingir as mesmas condições dos países capitalistas centrais, incluindo os

padrões de proteção social. “O processo de modernização, além de trazer consigo a

possibilidade de tensões e crises, iria se manifestar durante certo tempo mediante uma

situação de dualidade estrutural que oporia um setor moderno ao setor tradicional da

sociedade em questão” (MARINI, 2010, p. 105).

Além disso, encontra-se inscrito na teoria do desenvolvimento, a sistematização de um

plano metodológico, capaz de traçar etapas ou níveis de desenvolvimento, oscilando entre o

subdesenvolvimento e desenvolvimento e pautado por critérios quantitativos. Na análise de

Marini (2010) apreende-se que o resultado dessa metodologia é puramente pleonasmo, uma

vez que a interpretação se localiza centrada na análise da economia a partir de determinados

indicadores, que irão conferir a avaliação sobre o seu subdesenvolvimento, “girando em

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círculos, a análise aspira apenas a estabelecer correlações verificáveis que não esclarecem de

nenhuma maneira, por si só, as questões ligadas a causa e efeito” (MARINI, 2010, p. 106).

Considerando as tendências contidas na perspectiva neodesenvolvimentista, importa

refletir sobre a constituição da proteção social latino-americana, uma vez que se forja em um

cenário contraditório, permeado por conflitos no âmbito da defesa da universalização dos

direitos sociais e, de outro lado, a expansão do capitalismo e, consequente, elevação dos

níveis de desigualdade e empobrecimento. Esse quadro suscita a reflexão sobre as incidências

produzidas pelas diferentes forças e atores sociais que atuam no âmbito da sociedade, com

ênfase para o Estado e a instabilidade – estrutural – do capitalismo que condiciona o

direcionamento dos gastos públicos sociais e, consequentemente, da própria proteção social.

A lógica da sociedade do capital é antagônica à proteção social por

considerá-la expressão de dependência, e atribui às suas ações o contorno de

manifestação de tutela e assistencialismo, em contraponto a liberdade e

autonomia que, pelos valores da sociedade do capital, devem ser exercidas

pelo “indivíduo” estimulando sua competição e desafio empreendedor. Nesse

ambiente, a proteção social é estigmatizada no conjunto da ação estatal e, por

consequência, esse estigma se espraia àqueles que usam de suas atenções e,

até mesmo, a quem nela trabalha. (SPOSATI, 2013, p. 656).

Na história dos países latino americanos observa-se que a organização da proteção

social ocorreu, quase em sua totalidade, de forma focalizada e fragmentada, através da

composição de sistemas frágeis e baseados em modelos internacionais que, por vezes, não

davam conta de suprir as necessidades singulares de suas realidades, produzindo como

resultado a constituição de políticas sociais pulverizadas e com pouca eficácia social. Soma-se

a isso a histórica centralização das políticas de proteção social na esfera da produção e

reprodução da força de trabalho, via construção de estratégias reguladoras, capazes de

satisfazer os interesses da acumulação e garantir condições mínimas para a reprodução do

próprio trabalhador, como observado nos itens anteriores.

Essa tendência reitera a tradicional participação massiva do setor privado na

operacionalização da proteção social latino-americana, ficando evidenciada nas ações

particulares e formas específicas da materialização dos direitos sociais.

O lócus intermediário entre público e privado é de difícil caracterização

quanto a responsabilidade para com a atenção a ser prestada e, por

consequência, nele é difícil efetivar a obrigatoriedade da provisão de direitos.

Esse assentamento da proteção social em terreno movediço torna frágil a

efetivação do princípio da universalidade de atenção (SPOSATI, 2013, p.

658).

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Diante disso, considerando que a conformação dos sistemas de proteção social se forja

como “fruto da disputa e da capacidade de mobilização coletivas dos indivíduos nas formas

ampliadas ou reduzidas de relação com o Estado” (COUTO, 2010, p. 02), evidencia-se a

influência que a concepção de proteção social exerce no debate sobre as possibilidades de

implementação de modelos de desenvolvimento econômico na América Latina.

Faz-se imprescindível reconhecer a relação intrínseca estabelecida entre a concepção

de proteção social, materializada pelas políticas sociais, e a luta de classes, demarcando-a

como “fenômeno político corrente, em construção e disputa permanentes [e como] dimensão

constitutiva do Estado capitalista [...]” (PAIVA, CARRARO, ROCHA, 2011, p. 192).

Vinculado a esse prisma, cabe recobrar que na América Latina,

a expansão das garantias e direitos sociais somente, e em última instancia,

são reconhecidas pela intensa e demorada luta política dos trabalhadores, ou

seja, a concreta e mais abrangente intervenção estatal por meio de políticas

sociais se deu apenas quando se evidenciaram inevitáveis e imprescindíveis

(PAIVA, CARRARO, ROCHA, 2011, p. 201).

Diante disso, é possível evidenciar a tensão que permeia a discussão dessa temática e a

complexidade de elementos que conformam as diferentes elaborações teóricas. Soma-se a isso

o possível uso político feito a partir dessas concepções de desenvolvimento que, supostamente

podem indicar uma divergência de projetos societários envolvidos nesse debate. Na

continuidade dessas reflexões, o próximo item tem como objetivo apresentar algumas

reflexões sobre as políticas sociais inseridas no contexto neodesenvolvimentista.

4 POLÍTICAS SOCIAIS NEODESENVOLVIMENTISTAS: PROTEÇÃO SOCIAL OU

REPRODUÇÃO DO CAPITAL?

Considerando as particularidades presentes no processo de constituição da proteção

social latino-americana, torna-se necessário indagar sobre as possibilidades de formulação de

políticas sociais calcadas nos pressupostos neodesenvolvimentistas.

Refletir sobre crescimento econômico vinculado ao desenvolvimento social inserido

em um contexto capitalista não se constitui como tarefa simples, pois em meio a esse tema,

existem diferentes interesses e compreensões envolvidas, uma vez que pensar em

desenvolvimento é também pensar sobre qual direcionamento pretende-se dar para a

sociedade, incluindo nisso concepções de homem e de mundo, cidadania, políticas, culturais,

dentre outras.

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Retomando a intencionalidade atribuída por aqueles que defendem a perspectiva

neodesenvolvimentista, cabe indagar sobre as possibilidades de efetivação de políticas

indutoras do crescimento econômico, mediadas pelo Estado, em paralelo ao desenvolvimento

social em um cenário onde, historicamente, a proteção social assumiu o papel contraditório de

constituir condições mínimas para a reprodução da força de trabalho e, ao mesmo tempo,

garantir a reprodução da acumulação do capital.

Agrava ainda mais esse quadro, se considerada a frágil conformação da cidadania na

América Latina, tendo sido pautada, de forma geral, por valores vinculados ao

patrimonialismo, assistencialismo, clientelismo, responsáveis pelas dificuldades de efetivação

da concepção de direito social.

Em atenção as proposições do neodesenvolvimentismo, infere-se que, apesar de

pretender apresentar-se como nova estratégia para o desenvolvimento, via crescimento, não

apresenta estratégias factíveis para o enfrentamento das contradições constitutivas da América

Latina. Pelo contrário, os teóricos neodesenvolvimentistas retomando a análise sobre o atraso

latino-americano, acabam recuperando a “razão dualista”5, “com o objetivo de sustentar que

os problemas sociais, políticos e econômicos do Brasil estariam relacionados a uma estrutura

‘arcaica’ e ‘atrasada’ que ainda persiste, em contraste com um Brasil ‘moderno’ e

desenvolvido que precisa de incentivos para crescer” (MARANHÃO, 2014, p. 334).

Além disso, apesar de defender o fortalecimento do Estado (BRESSER-PEREIRA,

2006), as sistematizações não apresentam ponderações em relação a mundialização e

financeirização do capital e a incidência sobre a soberania estatal, principalmente nos países

periféricos e dependentes. Isso decorre na dificuldade de pensar a proteção social a partir das

necessidades mais particulares da região e países, uma vez que no contexto de globalização,

os organismos internacionais ganham ainda mais força no que se refere a formulação de

programas e políticas sociais para enfrentamento às expressões da questão social,

compensatórias, focalizadas e de alívio a miséria.

Outra questão crucial para análise refere-se a premissa de fortalecimento do Estado e

mercado, concomitantemente, enquanto estratégia para garantia do crescimento, uma vez que

a acumulação do capital é antagônica a proteção social. Dito em outras palavras, no modo de

5 Francisco de Oliveira em seu livro Crítica à razão dualista (1972) desenvolve uma reflexão no sentido de

criticar o binômio desenvolvimento/subdesenvolvimento e aponta-lo como base da ideologia desenvolvimentista.

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produção capitalista não é possível conciliar os interesses do capital com os da classe

trabalhadora, dado o fundamento que pauta essa relação: exploração e extração de mais valia.

Essa assertiva reitera a base estruturante do capitalismo: a desigualdade e a produção

da barbárie como resultado final de seu processo. Nesse contexto, depreende-se que o

neodesenvolvimentismo, enquanto estratégia de crescimento e desenvolvimento, aparece mais

como estratagema do capital para manutenção de sua hegemonia do que possibilidade para o

avanço civilizatório, expressando “um esforço coletivo das classes dominantes e do Estado

para renovarem as promessas de desenvolvimento econômico e social, reatualizando o

discurso desenvolvimentista, com o claro objetivo de recauchutar consensos políticos em

nome da continuidade da ordem capitalista na periferia do mundo” (MARANHÃO, 2014, p.

326).

Contudo, importa destacar que diante das reivindicações e tensionamentos produzidos

pela classe trabalhadora, via movimentos sociais distintos, a conjuntura atual radicaliza a

questão social em sua contraditória expressão: exploração e resistência. Esse cenário convoca

à reflexão crítica sobre as proposições e conjecturas que intencionam o desenvolvimento, pois

em tempos de crise estrutural do capital, é necessário que se esteja atento a disputa em torno

dos projetos societários que postulam galgar a hegemonia, evitando a incorporação de

discursos que advogam a ampliação de proteção social, mas que, na verdade, apenas reiteram

o padrão de exploração e desigualdade, inerentes ao capitalismo.

5 CONCLUSÃO

Partindo das ideias expostas ao longo do artigo, pode-se inferir que pensar o contexto

latino-americano é desafiador, dada a complexidade da estrutura social, cultural, política e

econômica dos países que conformam a região.

Nesse sentido, refletir sobre as possibilidades para o desenvolvimento social e

econômico da América Latina demanda posicionar a região no cenário global, inserida no

modo de produção capitalista e conformada por características peculiares, vinculadas a

processualidade histórica, política, econômica e social, uma vez que incidem diretamente na

formulação de proposições que intencionam o desenvolvimento dos países.

A crise estrutural do capital, manifesta a partir dos anos 1970, desencadearam na

região a adoção de diretrizes que objetivavam a retomada do crescimento econômico, mas que

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acabaram potencializando ainda mais o “impulso destruidor do capital” (MARANHÃO,

2014) e, consequentemente, agudizando as expressões da questão social.

Com isso, os primeiros anos do século XXI pautaram a radicalização da luta de

classes, evidenciando o esgotamento das políticas neoliberais e demandando a formulação de

novas estratégias que pudessem dirimir os conflitos sociais e retomar a acumulação do capital

em padrões civilizatórios mínimos.

Enquanto perspectivas de desenvolvimento, o neodesenvolvimentismo apresenta-se

como uma terceira via, tanto ao referencial neoliberal, vigente até então, quanto a perspectiva

socialista na região. Os formuladores o justificam enquanto “uma ruptura com o

neoliberalismo por meio de políticas de inserção soberana no mercado mundial, de inclusão

social e de crescimento econômico orientado pelo planejamento estatal” (CASTELO, 2012, p.

626). Essa linha argumenta ainda que o neodesenvolvimentismo seria capaz de promover a

inclusão da população historicamente excluída do acesso aos bens e políticas públicas,

resolvendo o problema secular da desigualdade social e econômica.

Contudo, a perspectiva que analisa de forma crítica o neodesenvolvimentismo, replica

que ele “reduz as lutas de classes ao controle das políticas externa, econômica e social para

operar uma transição lenta e gradual do neoliberalismo para uma quarta fase de

desenvolvimentismo” (CASTELO, 2012, p. 630). Além disso, critica a associação

compulsória entre o desenvolvimento e o crescimento, uma vez que “partem do suposto de

que o crescimento constitui a chave para o enfrentamento das desigualdades sociais”

(SAMPAIO JR, 2012, p. 679).

Em observância as diferentes perspectivas, é possível depreender que o

neodesenvolvimentismo, pregoando a conciliação entre capitalismo e desenvolvimento social,

nega a articulação histórica e inerente ao capitalismo latino americano, mantida entre a

dependência externa e a segregação social. Além disso, obscurece as contradições inerentes

ao modo de produção que se pauta pela produção coletiva da riqueza e apropriação individual,

inviabilizando a possibilidade de incidência sobre os padrões de desigualdade.

Em atenção à proteção social latino-americana, materializada por políticas sociais

focalizadas e compensatórias, infere-se que o neodesenvolvimentismo potencializa a

contradição inerente as políticas sociais, ou seja, ao mesmo tempo em que atende aos

interesses do capital, atende também às necessidades da classe trabalhadora.

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Todavia, são inegáveis os avanços relativos a redução da miséria e pobreza a partir da

adoção de políticas sociais neodesenvolvimentistas, conforme dados produzidos por

diferentes pesquisas6. É necessário reconhecer o impacto na vida material da população, uma

vez que o acesso a alimentação básica e demais direitos sociais têm sido ampliados. A título

de exemplo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicado (IPEA) apresenta dados da Pesquisa

Nacional de Amostra de Domicílios – PNAD 2011, que demostram que entre 2001 e 2011, a

pobreza e a extrema pobreza no Brasil mantiveram uma trajetória decrescente contínua, com

queda de 55%, independente da linha de pobreza e da medida utilizada.

No entanto, importa problematizar sobre esse cenário ascendente no campo da

proteção social, pois, contraditoriamente, se mantem a convivência com um profundo

processo de concentração e centralização da propriedade fundiária e de capitais nacionais e

internacionais, contribuído para a recomposição e aprofundamento da concentração da

propriedade e do poder de classe.

Com base na preliminariedade desta reflexão, aproxima-se, à guisa de conclusão, a

importância de aprofundar estudos sobre essa temática uma vez que se apresenta como

relevante devido a sua densidade e divergências, constituindo-se possibilidade para a

compreensão das discussões, intenções e tensionamentos envoltos ao tema, principalmente no

que concerne à reflexão sobre o desenho de proteção social assumido, ao longo da história,

pelos países latino americanos e as possibilidades inscritas para a consolidação da cidadania e

políticas sociais garantidoras de direitos sociais.

Por fim, salienta-se que essas hipóteses demandam a continuidade da investigação

sobre a origem e significados desses conceitos, uma vez que esse artigo se refere a uma

aproximação preliminar com o tema.

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