as novas tendÊncias do direito administrativo, sua

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ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA VIVIANE ALONSO ALKIMIM AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE E AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E UM BREVE PANORAMA SOBRE O PAPEL REGULADOR DO ESTADO Rio de Janeiro 2012

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Page 1: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA

VIVIANE ALONSO ALKIMIM

AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE E AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E UM BREVE PANORAMA SOBRE O

PAPEL REGULADOR DO ESTADO

Rio de Janeiro 2012

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ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA

VIVIANE ALONSO ALKIMIM

AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE E AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E UM BREVE PANORAMA SOBRE O

PAPEL REGULADOR DO ESTADO

Rio de Janeiro 2012

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VIVIANE ALONSO ALKIMIM

AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE E AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E UM BREVE PANORAMA SOBRE O PAPEL REGULADOR DO ESTADO

Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia/CAEPE.

Orientador: CMG RM1 Guilherme Sandoval Góes

Rio de Janeiro 2012

Page 4: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

C2012 ESG Este trabalho, nos termos de legislação que resguarda os direitos autorais, é considerado propriedade da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG). É permitido a transcrição parcial de textos do trabalho, ou mencioná-los, para comentários e citações, desde que sem propósitos comerciais e que seja feita a referência bibliográfica completa. Os conceitos expressos neste trabalho são de responsabilidade do autor e não expressam qualquer orientação institucional da ESG _________________________________

Biblioteca General Cordeiro de Farias

Alkimim, Viviane Alonso As Novas Tendências do Direito Administrativo, sua Vinculação à Juridicidade e aos Direitos Fundamentais e um Breve Panorama sobre o Papel Regulador do Estado/Juíza de Direito do TJ/RJ, Mestre Viviane Alonso Alkimim. Rio de Janeiro: ESG, 2012. 75 fl.

Orientador: CMG RM1 Guilherme Sandoval Góes Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE), 2012. 1. Novas Tendências e Transformações do Direito Administrativo. 2. Vinculação à Juridicidade e aos Direitos Fundamentais. 3. Papel Regulador do Estado. 4. Agências Reguladoras. I.Título.

Page 5: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

À minha família que durante o período

de formação contribuiu com amor,

incentivos e ensinamentos. A minha

gratidão, em especial aos meus filhos

e marido pela compreensão, como

resposta aos momentos de minhas

ausências e omissões, em dedicação

às atividades da ESG.

Page 6: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

AGRADECIMENTOS

A todos que estimo e admiro.

A todos que têm por mim apreço.

Ao meu orientador, CMG RM1 Guilherme Sandoval Góes, pelas orientações

pertinentes, perspicazes e objetivas na elaboração deste trabalho e aos

ensinamentos que me foram transmitidos.

Page 7: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

“O futuro dependerá daquilo que fazemos no presente.”

Mahatma Gandhi

“O Estado existe para realizar o que é útil. O indivíduo para realizar o que é belo.”

Oscar Wilde

Page 8: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

RESUMO

A presente monografia, sem pretensões de originalidade, se destina à análise de algumas mutações vivenciadas pelo direito administrativo e pela Administração Pública, especificamente o surgimento do fenômeno da regulação pelo Estado de algumas atividades econômicas desenvolvidas pelos entes privados, sendo estas consideradas de interesse público. Pretende-se dissertar sobre as consequências que a maior intervenção estatal, através da regulação da atividade privada, acarreta aos administrados, titulares de direitos fundamentais e ao próprio ramo da atividade econômica regulada. Considerando estes novos fenômenos de mutação do direito administrativo e do próprio Estado, ante a ordem econômica e social que surgiu nas últimas décadas do século XX, fenômeno conhecido como neoliberalismo, devemos estar atentos e não nos esquecer que o Estado e todos os demais os entes privados estão vinculados aos direitos fundamentais. Também se mantém presente a noção da constitucionalização de todos os ramos do direito e também do direito administrativo, com a observância de princípios publicistas e regras de ordem pública, mesmo em ramos do direito considerado privado. Por fim, devemos encarar que o direito administrativo e a Administração Pública se mantêm vinculados à juridicidade de uma forma ampla, assim entendida como aos direitos fundamentais, princípios e às normas insculpidas na Constituição, bem como a toda legislação infraconstitucional vigente. O tema apesar de já ter sido amplamente debatido pela doutrina estrangeira e nacional ainda carece de novos estudos e análise, face ao recuo do referido fenômeno conhecido como neoliberalismo no Brasil, bem como redução das privatizações de setores e empresas estatais. Palavras chave: Novas Tendências e Transformações do Direito Administrativo. Vinculação à Juridicidade e aos Direitos Fundamentais. Papel Regulador do Estado. Agências Reguladoras.

Page 9: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

ABSTRACT

This monograph, with no pretensions to originality, is intended for analysis of some mutations experienced by administrative law and public administration, specifically the emergence of the phenomenon of some state regulation of economic activities by private entities, particularly the roles considered of public interest and state grants to private entities. It is intended to discuss about the consequences of state intervention in regulated economic activities and their impacts to the citizens, and holders of fundamental rights. Considering these new phenomenon of mutation of administrative law and the state itself, against the economic and social order that has emerged in the last decades of the twentieth century, a phenomenon known as neoliberalism, we must be vigilant and not forget that the state and all the other private entities are tied to the fundamental rights. Also keep in mind the notion of constitutionalization of all branches of law and also of administrative law, with the observance of publicist principles and rules of public order, even in areas of law that are considered private. Finally, we must assume that the administrative law and the public administration remain bound to the jurisdicity in a general way, as well as to the fundamental rights, principles and standards declared in the Constitution, and also to the constitutional legislation in force. Even though this subject has already been widely debated by national and foreign doctrine , it still requires further research and analysis, due to decline of the phenomenon known as neoliberalism in Brazil, as well as the reduction of privatization of state enterprises and sectors. Keywords: New Trends and Transformations of Administrative Law. Linking the legality and Fundamental Rights. Regulatory role of the state. Regulatory Agencies.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................ 09 2 O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO ADMINISTRATIVO.................................................................................................... 13 2.1 O ESTADO LIBERAL, DIREITO ADMINISTRATIVO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA................................................................................................................... 17 2.2 O ESTADO SOCIAL, DIREITO ADMINISTRATIVO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA................................................................................................................... 19 2.3 O ESTADO NEOLIBERAL, O DIREITO ADMINISTRATIVO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.................................................................................... 21 3 A VISÃO CLÁSSICA DO DIREITO ADMINISTRATIVO................................ 26 3.1 A NOVA DIMENSÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO.................................. 27 4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS, DIREITOS FUNDAMENTAIS, JURIDICIDADE E O DIREITO ADMINISTRATIVO................................................... 30 4.1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.................................................................................... 31 4.2 VINCULAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E AOS DEMAIS PRINCÍPIOS JURÍDICOS.................................. 35 4.3 O NOVO ENFOQUE DA VINCULAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PUBLICA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE: A VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE........................ 38 5 AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO ADMINISTRATIVO......................... 41 5.1 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DESCENTRALIZADA E O FENÔMENO DA FRAGMENTAÇÃO ADMINISTRATIVA: REALIDADE INEVITÁVEL.......................... 43 5.2 A FUNÇÃO REGULADORA DO ESTADO...................................................... 45 5.3 AS AGÊNCIAS REGULADORAS INDEPENDENTES.................................... 49

6 CONCLUSÃO................................................................................................. 57

REFERÊNCIAS.............................................................................................. 60

ANEXO A - 1 ALGUNS PRINCÍPIOS ORIENTADORES DO NOVO DIREITO ADMINISTRATIVO ................................................................................................... 65

Page 11: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

1 INTRODUÇÃO

Vivemos em um momento da evolução sociológica e dos Estados, em que

o direito administrativo se depara com uma fase de profunda e progressiva revisão e

inovação teórica e dogmática. Estas novas transformações do direito administrativo

decorrem do novo enfoque que os direitos fundamentais tomaram, da

constitucionalização do Direito, ou mesmo pelo advento e impacto de uma nova

ordem jurídica internacional.

Estamos diante de uma era de grandes mudanças em todo o Direito, e

também no direito administrativo, objeto de nosso estudo. O direito administrativo

passou anos alheio às mudanças da sociedade e do próprio Estado e era encarado

tão somente como o Direito da Administração Pública, ou melhor, Direito das

garantias da Administração Pública.

Tal fato chegou a ser destacado por autores como Walter Jellinek que fez

assertivas no sentido de que “o Direito Constitucional passa, mas o Direito

Administrativo permanece”1 ou mesmo por outros doutrinadores2 quando proclamou,

no mesmo sentido, que o “direito constitucional passa, direito administrativo

subsiste”3.

No entanto, uma reflexão sumária sobre a evolução do Estado, e o

arcabouço jurídico do direito administrativo e da estrutura da Administração Pública

herdados dos séculos XIX e XX nos conduz à conclusão de que vivemos em uma

época de rápidas e grandes transformações, que somente recentemente se refletiu

neste ramo do Direito.

Surgem bem visíveis múltiplos sinais de profundas transformações de

intensidade e das modalidades de intervenção pública, bem como das “soluções

institucionais adotadas para a realização dos interesses públicos”4.

1 JELLINEK, Jorge. Compendio de la Teoría General del Estado. Tradução por G. Garcia Mainez.

México: editora Manuel de Nucambi, 1936, p. 85-86. 2 QUADROS, Fausto de. A Nova Dimensão do Direito Administrativo, O Direito Administrativo

português na perspectiva comunitária. Coimbra: Almedina, 2001, p. 52. 3 MAURER, Hartmut. Direito Administrativo Geral. Allgemeines Verwaltungsrecht. Tradução Luís

Afonso Heck. São Paulo: Manole, 2006, 14ª ed., p. 13. 4 GONÇALVES, Pedro. Entidades Privadas com Poderes Públicos. Coimbra: Almedina, 2005, p.

13. O autor lista três momentos essenciais desse profundo processo de transformação: “i) a cooperação mais ou menos sistemática e a conjugação ordenada dos papéis de actores públicos e privados no desenvolvimento das tradicionais finalidades do Estado Social e Serviço Público; ii) sob o mote de uma ‘modernização administrativa’, um complexo processo de ‘empresarialização’ que, por vezes, passa pela ‘privatização das formas organizativas da Administração Pública’; iii) a promoção

Page 12: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

O papel do Estado vem sendo duramente questionado com o advento do

chamado Estado pós-social5, pós-moderno ou neoliberal ante a crise do modelo de

Estado Social. O mundo globalizado impôs um ritmo de primazia da economia e do

poder do mercado, que, no entanto, precisa ser regulado. O novo liberalismo ou

neoliberalismo veio revitalizar o papel do capital, das liberdades individuais, do

direito de propriedade, da liberdade de empresa, eliminando os modelos do Estado

social.

Por outro lado, é quase impossível atualmente dissociar o direito

administrativo da Economia. Se antes o Direito era encarado como uma ciência

autônoma, quase que estéril, com poucos intercâmbios com as demais áreas da

ciência, hoje não podemos mais ver o Direito dessa forma.

O cenário econômico e financeiro globalizado tomou uma dimensão vital

para as decisões políticas estatais, influenciando sobremaneira as mesmas e

inclusive as decisões da Administração Pública em um Estado que tende a ser cada

vez mais reducionista. É inegável a constatação de um Estado cada vez mais

reduzido, sem participação ativa na economia e na prestação dos serviços públicos

e sociais, mas dotado com funções diferentes, de fomentar, regular e coordenar as

atividades econômica e sociais.

A conjugação da realidade dos déficits dos orçamentos públicos com a

noção de que o setor privado é sempre mais eficiente e detém conhecimentos e

capacidades (empresariais, científicas e tecnológicas) que o Estado não dispõe

conduziu a um processo de mudanças na Administração Pública e no direito

administrativo, com um irreversível processo de privatização.

Os papéis e responsabilidades do Estado e da iniciativa privada foram

reordenados, havendo uma forte ingerência do setor privado para a implementação

do bem comum, com o domínio da figura central do Mercado. O Estado assumiu um

novo papel regulador das atividades, onde funções e serviços de interesse público e

social foram transferidos aos entes privados, passando a agir em parceria com os

privados para implementação de sua missão constitucional.

de mecanismos de envolvimento e de participação de particulares ‘interessados’ na gestão de um largo leque de incumbências públicas”. 5 WOLFE, Joel. State and Ideology in Britain: mrs. Thatcher’s privatization programme. London:

Political Studies, volume XXXIX, n. 2, 1991, p.245-247. Conforme o autor: “Privatization implements the neo-liberal formula for strengthening public authority by diminishing state accountability, reforming institutional structures in order to depolititicize and limit the influence of vested interests by market controls”.

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Com a ideia de prestigiar a liberdade econômica e estabelecer um

equilíbrio entre autoridade e liberdade, foi devolvida a iniciativa econômica ao

administrado, reservando-se ao Estado as tarefas de incentivar e subsidiar a

iniciativa privada e também fiscalizá-la e regulá-la.

E neste cenário se apresentam as transformações no moderno direito

administrativo que decorrem da mudança da própria sociedade e do Estado em que

estamos inseridos, e devem sempre ser interpretadas em cotejo com o

redimensionamento do papel da Constituição e dos direitos fundamentais.

Nesse quadro de mutações, devemos aprofundar as vinculações do

direito administrativo aos direitos fundamentais como forma de dar primazia à função

subjetivista e garantística dos administrados e não mais apenas do Estado e da

Administração Pública.

O ponto crucial do Direito Administrativo é revisar categorias, ante a

pressão que vem sofrendo pelo setor econômico e pelos mercados globais no intuito

de superar o dilema entre o direito administrativo remanescente dos séculos XIX

e XX, pautado pela dominância das políticas centradas no governo, com cariz

autoritário e assimétrico e o novo direito administrativo voltado para os indivíduos e

para um verdadeiro Estado Democrático.

Nessa altura, não se mostra mais aceitável o anacrônico Direito

Administrativo arbitrário, imediatista e unilateral, que não pauta sua atuação nos

princípios constitucionais estruturantes e nos direitos fundamentais. Portanto, o

Direito Administrativo deve ser reescrito à luz de uma nova teoria do Estado,

comprometida com o equilíbrio entre as demandas urgentes e as de longo prazo da

sociedade a que serve e, sobretudo, com o primado dos direitos fundamentais.

O presente trabalho parte de uma perspectiva histórica do Estado e visa

traçar um panorama atual do direito administrativo e da Administração Pública, em

um mundo globalizado. Pretende apresentar uma natureza exegética sobre as

transformações do direito administrativo, dissertando o próprio fenômeno e suas

características concretas a fim de identificá-lo e descrevê-lo.

E uma das grandes transformações que o direito administrativo vem

sofrendo e serão abordadas e dissertadas no presente trabalho, de forma bastante

sucinta são:

1) Constitucionalização do direito: constitucionalização do direito e em

consequência do direito administrativo, com a mudança de paradigmas e a

Page 14: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

preponderância dos princípios publicistas, sopesando as antigas exorbitâncias do

poder público, com nova leitura, enfoque e vinculação direta no texto constitucional.

2) Primado dos direitos fundamentais: desenvolvimento nas relações da

Administração do primado dos direitos fundamentais, avultando o princípio da

dignidade da pessoa humana na definição do conteúdo e de alcance dos demais

princípios. Surgimento de um novo papel do cidadão, que não é mais encarado

como um mero administrado passivo, passando a ser protagonista das políticas

públicas e da Administração, embora continue vulnerável frente ao poder do Estado.

3) Vinculação à juridicidade: a Administração Pública passa a ser

vinculada ao princípio da juridicidade em sentido amplo, sem que se aceite uma

exacerbada vinculação à lei, de modo que ocorre a mitigação do tradicional princípio

da legalidade. Nesta seara, se admite outras fontes vinculativas do direito

administrativo, como, por exemplo, o direito constitucional e até o direito

internacional.

4) Fortalecimento da atividade regulatória estatal, através da criação de

agências reguladoras independentes: o direito administrativo aparece como direito

do Estado regulador e menos como o direito do Estado essencialmente prestador

(executor direto) dos serviços públicos ou universais. As agências reguladoras

tendem a ser independentes e constituídas segundo o modelo autárquico e são

manifestações dos fenômenos da descentralização e fragmentação da

Administração Pública, ante a necessidade da intervenção e controle do Estado na

economia.

Page 15: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

1 O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO

ADMINISTRATIVO

O direito administrativo teve origem entre a Revolução Francesa de 17896

e o fim do Segundo Império (1870), sendo considerado, por alguns autores como

“fruto de um milagre”7. O processo histórico da criação do direito administrativo é

delimitado em seu nascedouro na “Loi du 28 do Pluviôse do Ano VIII”, editada em

França em 1800, que organizou e limitou externamente a Administração Pública8 e

deu, pela primeira vez, à Administração Pública francesa uma organização

juridicamente garantida e exteriormente obrigatória.

Esta lei simbolizou a superação da estrutura de poder do antigo regime,

fundada na vontade do soberano e não na vontade do povo. A mesma lei que

organizou a estrutura da burocracia estatal definiu e controlou seu poder agora

subordinado a vontade heterônoma da lei9. Daí se conclui que dos processos

revolucionários franceses surgiram o direito administrativo acarretando uma

completa ruptura com o antigo regime absolutista.

A autonomia do direito administrativo é associada à instauração do

liberalismo que veio subordinar a ação do Estado aos direitos e liberdades

individuais. Limitaram-se os poderes administrativos do Estado ao conformá-los à

legalidade, em prol do administrado.

A origem francesa do direito administrativo se baseou em “um erro

histórico e numa contradição estrutural face ao princípio da separação de

poderes”10, uma vez que:

6 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública, O Sentido da Vinculação Administrativa à

Juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003, p. 810. 7 WEIL, Prosper. Le Droit Administratif. Paris: Presses Universitaires de France, 1964, p. 03-ss.

Segundo o autor: “ A própria existência de um direito administrativo é em alguma medida fruto de um milagre. O direito que rege a atividade dos particulares é imposto a estes de fora e o respeito pelos direitos e obrigações que ele comporta encontra-se colocado sob a autoridade e a sanção de um poder exterior e superior: o do Estado. Mas causa admiração que o próprio Estado se considere ligado (vinculado) pelo direito. [...] Não esqueçamos, aliás, as lições da história: a conquista do Estado pelo direito é relativamente recente e não está ainda terminada por toda a parte. [...] Fruto de um milagre, o direito administrativo só subsiste, de resto por um prodígio a cada dia renovado. [...] Para que o milagre se realize e se prolongue, devem ser preenchidas diversas condições que dependem da forma do Estado, do prestígio do direito e dos juízes, do espírito do tempo”. 8 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2003, p. 14. 9 BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo, Direitos Fundamentais,

Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 10. 10

MONTESQUIEU, Charles Luis de Secondat. Do Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret. A tripartição de poderes remonta da formulação clássica dada pelo referido autor: “... Encontramos no

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“O Direito Administrativo nasceu ao arrepio do princípio da separação de poderes, sendo o Direito das prerrogativas de autoridade e não das garantias dos administrados”

11.

Desta forma, o direito administrativo era considerado com o direito do

poder público em suas relações constantes com os particulares.

No que concerne ao direito anglo-saxão, não houve grande receptividade

ao conceito de autonomia do direito administrativo. O direito administrativo

identificou-se, desde seu nascedouro, com o “regime francês de dupla jurisdição –

que interditava aos tribunais comuns o controle da Administração” 12. Nesse sentido,

a dicotomia da jurisdição administrativa era incompatível com o princípio da

supremacia do Judiciário, um dos pilares da “common Law” e da “rule of Law”.

Nos Estados Unidos o direito administrativo formou-se casuisticamente,

no final do século XIX ante a progressiva presença do controle administrativo sobre

as atividades econômicas privadas.

Para a tradição europeia continental, a qual seguiram Portugal e

consequentemente o Brasil, o direito administrativo foi definido pela desigualdade

normativa, em que se conferia à Administração Pública posição de supremacia sobre

os direitos individuais, com o fim de perseguir o interesse geral. Existia aí uma

franca desigualdade e parcialidade do direito administrativo em favor da

Administração Pública, frente aos administrados.

Os tradicionais pilares do direito administrativo eram: o princípio da

supremacia do interesse público sobre o privado, que acarretaria privilégios de

natureza material em favor da Administração Pública; submissão total dos atos

administrativos à legalidade, supostamente produzida pelo Poder Legislativo;

intocabilidade do mérito administrativo, através da discricionariedade da

Administração Pública, seja pelo Poder Judiciário, seja pelo próprio cidadão

Estado três tipos de poder: a função legislativa, [...] a função de julgar, [...] a função executiva do Estado”. 11

OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 335-343. No mesmo sentido, o autor conclui que: “Em vez deste novo ramo do Direito ser a expressão normativa do legislador e da vontade do parlamento, tal como impunham os postulados de Rosseau e de Montesquieu, observa-se que foi a acção do Conseil d’Etat que gerou uma legalidade administrativa rebelde ao parlamento, alheia à lei e à supremacia do poder legislativo, confiando ao executivo, nos termos do sistema contencioso do administrador-juiz, a última palavra sobre o sentido autovinculativo de uma normatividade derrogatório do Direito Comum; ao contrário de uma visão garantística sobre a origem do Direito Administrativo, o sistema contencioso do administrador-juiz tem a sua gênese pautada pela preocupação de o executivo se subtrair aos tribunais judiciais, envolvendo a criação da ‘justiça administrativa’ uma verdadeira diminuição das garantias dos administrados”. 12

TÁCITO, Caio. Presença Norte-Americana no Direito Administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo n. 129, 1977, p. 23.

Page 17: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

individualmente; Poder Executivo unitário, com a ideia central de subordinação

hierárquica entre os agentes políticos e a burocracia estatal.

Ainda hoje, o direito administrativo é definido como:

“conteúdo dos preceitos jurídicos (escritos e não escritos) que, de modo específico valem para a administração – a atividade administrativa, o procedimento administrativo e a organização administrativa”

13.

No que concerne à Administração Pública esta aparece hoje como uma

das formas de manifestação do poder estatal14. A Administração Pública é, em

nossos dias, um verdadeiro poder. Os órgãos administrativos têm o dever funcional

de optarem pelas medidas mais adequadas a persecução do interesse público

fixado pelo poder político.

Em termos conceituais é muito difícil traçar uma linha divisória entre

Governo e Administração Pública. A relação entre poder político e administração

pública se mostra bastante complexa, marcada, em geral, por uma relação de

dependência e subordinação hierárquica da administração ao poder político e ao

Governo15.

A política, enquanto atividade estatal tem o fim específico de definir o

interesse geral da coletividade, tendo como objeto traçar os rumos do destino desta

mesma coletividade, com natureza criadora. Já a Administração Pública tem como

objeto a satisfação regular e contínua das necessidades coletivas, com natureza

executiva no sentido de por em prática as orientações tomadas a nível político, com

caráter condicionado e secundário.

O papel da administração depende do grau de evolução da sociedade

onde se encontra inserida e de certa maneira, das peculiaridades de cada nação,

apesar do fenômeno da globalização. Atualmente nos deparamos com situações

distintas no que tange a relação da política com a administração. Teremos assim,

em um primeiro momento, a Administração Pública confundida com o próprio poder

político, totalmente submetida a este. Em um segundo momento, a Administração

13

MAURER, Hartmut. Direito Administrativo Geral ... p. 158. 14

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, 12. edição, p. 115. O autor conceitua poder como: “elemento essencial constitutivo do Estado [...] representa sumariamente aquela energia básica que anima a existência de uma comunidade humana num determinado território, conservando-a unida, coesa e solidária. Expõe ainda a doutrina da soberania popular, baseada nas idéias propostas por Hobbes e Rousseau, afirmando que a concepção de soberania popular [...] teve a máxima influência no desdobramento ulterior das idéias democráticas, nomeadamente no que diz respeito à progressiva universalização do sufrágio. 15

OTERO, Paulo. Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 403.

Page 18: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

separa-se do poder político e a técnica e racionalidade das decisões administrativas

ganham força e importância. Em um terceiro momento vemos a administração

competindo com o poder político. Nesta fase, a administração tende a se comportar

como uma entidade independente e autônoma, dotada de pessoal técnico e

especializado que muitas vezes entra em conflito com as ordens emanadas pelo

poder político.

Embora a aplicação do poder16 nunca coincida perfeitamente com as

regras constitucionais, o sistema político de cada país, dependendo de sua forma de

organização política e jurídica, tende a influir diretamente na organização de sua

Administração.

A legitimidade política da decisão administrativa se baseia,

essencialmente, em um processo de sucessivas delegações de autoridade e

responsabilidade: do povo no parlamento, do parlamento no poder executivo e deste

último na estrutura burocrática hierarquizada. Ocorre, em tese, uma sucessiva

delegação da confiança que é depositada primordialmente pelo povo aos poderes

constituintes do Estado, e posteriormente aos representantes políticos deste poder.

Em geral, a Administração Pública mantém uma relação de dependência

com o poder político, que deve se guiar pelo interesse geral. Em última análise,

cabe ao poder político tomar as decisões gerais e de interesse público, que serão

aplicadas e executadas pela Administração Pública visando ao interesse público do

povo.

E o governo17, expressão primordial do poder político, orientador da

Administração Pública, deve ser responsável perante o Parlamento, politicamente e

perante o Poder Judiciário, juridicamente, como forma de controle de suas ações e

omissões.

16

DUVERGER, Maurice. Xeque-mate: análise comparativa dos sistemas políticos semi-presidenciais. Lisboa: Edições Rolim, 1979, p. 37. 17

ROSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Título III, Cap. I. São Paulo: Martin Claret, 2002, p.64. De acordo com o autor: “E que é o governo? Um corpo intermédio, estabelecido entre os vassalos e o soberano, para a mútua correspondência deles, encarregado da execução das leis e de manutenção da liberdade, tanto civil como política [...] Chamo, pois, governo, ou suprema administração, o exercício legítimo do poder executivo; e príncipe, ou magistrado, o homem ou corpo incumbido dela”.

Page 19: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

2.1 O ESTADO LIBERAL, DIREITO ADMINISTRATIVO E A

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O Estado absoluto é conhecido como aquele em que “potestas

superiorem non recognoscens”18, ou seja, aquele que se coloca como a encarnação

mais perfeita da soberania e supremacia estatal onde o poder do Estado não

reconhece ninguém superior.

O poder absoluto do Estado e de seus governantes se fundava entre

outras, na teoria da razão do Estado, na qual pregava o “absolutismo do poder do

soberano, o qual não está obrigado a obedecer nem às leis jurídicas nem as leis

morais”19. O antigo regime existente no chamado Estado absolutista ou Estado de

Polícia encarava o administrado como mero súdito e coexistia em um ambiente de

irresponsabilidade do Estado e do monarca. Inexistia nessa época o conceito de

democracia ou de Estado de Direito.

No entanto, nos fins do século XVII a então incipiente burguesia passou

sistematicamente a se opor à figura do monarca e de seu aparato de funcionários,

exigindo a redução da atividade administrativa estatal e a total vinculação do poder

soberano e da Administração às leis.

As transformações e revoluções levadas a cabo dentro dos Estados,

principalmente os europeus, acabaram por formar a ideia de direitos fundamentais,

levando a uma unidade do Estado e de seu caráter corporativo. A “unidade,

organização conforme a constituição e a autolimitação do Estado frente ao

indivíduo”20.

Foram concebidos doutrinária e filosoficamente os ideais que

fundamentaram o axioma que o poder emanava do povo e não mais do monarca. O

poder político se despersonificou da figura do monarca, havendo uma consagração

das liberdades e garantias individuais mesmo frente ao Estado, com o surgimento do

princípio da separação de poderes do Estado.21

18

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, Diritto e Stato nel Pensiero di Emanuele Kant, tradução Alfredo Fait, Brasília: editora Universidade de Brasília, 1992, 2ª ed., p. 11. 19

Ibidem, 15. 20

JELLINEK, Jorge. Compendio de la Teoría General del Estado... p. 127-28. 21

MONTESQUIEU, Charles Luis de Secondat. Do Espírito das Leis. São Paulo: editora Martin Claret.

Page 20: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

As Constituições promulgadas no decorrer do século XVIII e XIX aboliram

o fundamento do poder soberano, conduziram a uma limitação do poder político

pelos direitos fundamentais e garantiram a representação popular no processo

legislativo.

Historicamente o chamado Estado Liberal ou denominados por certa

doutrina como pré-moderno22 foi concebido tendo em vista um ambiente onde a

economia e a iniciativa privada podiam agir livremente. Este modelo estatal sempre

defendeu as ideias de um Estado mínimo, com pequeno corpo de funcionários

públicos, que deveria apenas garantir a segurança das relações privadas, sendo o

administrado encarado não mais como súdito e sim como cidadão.

As intervenções do Estado e em consequência da Administração Pública

nas liberdades individuais e nos direitos de propriedade foram drasticamente

reduzidas e disciplinadas por lei. Os postulados máximos do Estado de Direito

Liberal eram: separação de poderes, princípio da legalidade e direito à liberdade.

Havia uma forte limitação do poder político, com subordinação da Administração

Pública à lei e à vontade heterônoma do Poder Legislativo. Impôs-se à lógica da

separação dos Poderes do Estado, onde a Administração Pública apenas executava

as normas editadas pelo Parlamento, que exprimia a vontade geral, com vistas à

garantia dos direitos dos cidadãos.

O Estado liberal trouxe em seu bojo uma nova concepção de direito

administrativo em que se previa: formação de conjunto sistemático de preceitos

obrigatórios para autoridades administrativas, limitativos do poder; reconhecimento

de direitos de particulares ante a Administração; elaboração de uma doutrina de

todos os aspectos legais da atividade administrativa; elaboração de jurisprudência

vinculativa da Administração.

À Administração Pública restaria apenas a função executiva dos

comandos legais. É criado um ramo do direito próprio para a Administração, com

pouca ingerência do direito privado, em face da vinculação positiva à legalidade. O

Estado administração não pode, em tese, legislar e julgar, apesar de ser comum na

prática a Administração editar atos normativos e fazer julgamentos administrativos

(jurisdição administrativa).

22

BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo): a nova interpretação constitucional. ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 04.

Page 21: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

Desta forma, o modelo de Administração Pública surgida com o Estado

liberal pode ser caracterizado, em traços gerais: por agir essencialmente através do

ato administrativo, por apresentar uma estrutura concentrada e centralizada.

Com o advento do Estado liberal ocorreu ainda a criação de um direito

processual administrativo, consagrando privilégios processuais em favor da

Administração. E esses privilégios da Fazenda Pública não se limitaram ao século

XIX, pois chegaram até o século XXI, face ao surgimento de um regime de direito

administrativo, com regras distintas do Direito Privado em prol do Estado. E o novo

direito administrativo se inseriu perfeitamente no contexto da visão liberal do mundo,

assente na separação entre Estado e a Sociedade, que visam a preservar os

conceitos de propriedade privada e liberdade.

Com o fim de sujeitar o Estado ao novo regime instituído da legalidade, e

proteger a esfera de liberdade dos indivíduos, invocou-se a obediência formal e

positiva à lei como um dos fundamentos do direito administrativo. Consagrado,

assim, estava o princípio da legalidade da Administração Pública.

O Estado Liberal também se baseou nas ideias da liberdade da

economia, onde a “mão invisível do mercado”23 é que comandaria a economia e

consequentemente a sociedade. Cabia a Administração Pública pouquíssimas

funções públicas, dentre elas a de garantia da segurança para que os indivíduos e o

mercado pudessem agir com liberdade e para proteção do patrimônio privado.

2.2 O ESTADO SOCIAL, DIREITO ADMINISTRATIVO E ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA

Ainda no final do século XIX surgiram problemas referentes à

industrialização e mecanização progressiva e avanço da tecnologia, com a fuga do

homem do campo para as cidades emergentes, acarretando uma aglomeração de

pessoas em cidades, empobrecimento de largos grupos populacionais, forte

concentração de renda e capitais, períodos de guerras e pós-guerras.

O momento histórico da primeira guerra mundial acarretou um grande

intervencionismo econômico estatal, principalmente na Europa continental, ante aos

ventos dos ideais socializantes. O advento da segunda guerra mundial acentuou

23

SMITH ,Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Martin Claret, 2000.

Page 22: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

ainda mais a atividade estatal, com a onipresença do Estado nos mais variados

ramos da economia.

Este panorama acabou propiciando o advento do Estado do bem-estar

social, também chamado como Estado constitucional, welfare state, entre outros.

Neste modelo o Estado passa a assumir funções de um verdadeiro Estado

prestador, fornecendo serviços e produtos que a sociedade necessita, assumindo

determinadas atividades econômicas. Ressalte-se que a Constituição de Weimar,

de 1919 e outras Constituições como a do México, de 1917, estavam a garantir a

base jurídica desse novo modelo estatal.

No período do pós-guerra, com o fortalecimento deste Estado Social,

houve um enorme alargamento das funções e tarefas do Estado. Formou-se,

portanto, um Estado de grandes dimensões, intervencionista no domínio econômico,

com forte regulação e hipertrofia da atividade privada.

No novo modelo estatal concebido que era fortemente intervencionista, o

Estado Social ou também chamado moderno24, assumiu diretamente a

responsabilidade pela execução de um amplo programa de tarefas prestacionais

para fins de prossecução do bem-estar, marginalizando, por consequência, os

fenômenos de privatização da Administração Pública. O Estado do bem-estar

também se formou para conter e disciplinar os abusos da atividade privada,

sujeitando-os aos princípios do bem comum e da justiça social.

O Estado social passou a ser prestador de serviços e a intervir mais

fortemente na sociedade para eliminar conflitos e suprir necessidades da

coletividade, socializando-a. O poder de polícia do Estado, nessa altura, alcançou

praticamente “todas as formas de atividade humana”25. Houve um grande

fortalecimento dos direitos fundamentais, construindo-se teorias acerca de suas

dimensões.

No entanto, o Estado do “Welfare” acabou por se hipertrofiar, e em muitos

países a não respeitar os ditames democráticos, acarretando um grande aumento

das funções, das despesas e do tamanho do Estado, com o decorrente aumento na

carga tributária e criação de obstáculos ao chamado livre mercado capitalista, além

de muitos desvios de poder.

24

BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro ... p. 04/05. 25

TÁCITO, Caio. Perspectivas do Direito Administrativo no Próximo Milênio. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo n. 212, 1998, p. 02.

Page 23: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

A Administração Pública nos países que chegaram a adotar o Estado do

bem-estar tomou uma proporção tentacular sobre a economia e a esfera da

sociedade civil e de cada indivíduo, o que acarretou o início do movimento de

liberalização da atividade estatal e discussão acerca de um novo modelo estatal, nas

últimas décadas do século XX.

2.3 O ESTADO NEOLIBERAL, O DIREITO ADMINISTRATIVO E

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O surgimento de sociedades contemporâneas sujeitas a riscos

globalizados e diversificados trouxe a lume questionamentos diversos dentre eles o

do papel, funções e financiamento do Estado. A crise do Estado do bem-estar, face

à sua hipertrofia e ineficiência que gerava aumento das despesas públicas com

déficits orçamentários permanentes e aumento progressivo da carga tributária

acabou acarretando o declínio do conceito e do modelo de Estado Social, pois “o

Welfare State, que deveria reformar o capitalismo, fracassou”26.

O crescimento da Administração Pública no Estado social agravou a

ineficiência dos serviços públicos, o aumento da burocracia estatal e o déficit

econômico, com a exorbitância da carga tributária. Ocorreu uma mudança do

Estado onipresente, interventor, quase que totalitário para um Estado mínimo,

“modesto” 27.

Autores28 enumeram diversos fatores externos aos Estados soberanos

capazes de explicar a crise e o declínio do modelo de Estado moderno, do bem-

estar, e o surgimento de um Estado pós-moderno tais como o crescimento dos

mercados internacionais e da economia globalizada, a explosão das comunicações,

a reavaliação da pessoa humana e de sua dignidade, a democratização e a

globalização, principalmente de cunho econômico-financeiro29/30. Os fatores

26

REICH, Norbert. Intervenção do Estado na Economia: reflexões sobre a pós-modernidade na teoria jurídica. Rio de Janeiro: Revista de Direito Público n. 94, 1990, p. 265. 27

MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo ... p. 76. 28

MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, 3ª edição, p. 409. 29

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v.2, p. 290. O autor conclui que: “ o capitalismo e a democracia se encontram numa tensão – frequentemente negada pelas teorias liberais”. 30

BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial. São Paulo: Malheiros Editores, 3. ed., 2004, p.140-141. Para o autor “a globalização econômica coloca o capitalismo outra vez na

Page 24: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

internos seriam a ineficiência, desperdício, morosidade, burocracia, corrupção, custo

excessivo para manutenção da máquina burocrática, gerador de uma crise

econômica.

O Estado perdeu o “charme redentor, passando-se a encarar com

ceticismo o seu potencial como instrumento do progresso e da transformação” 31. As

tendências das últimas décadas foram a desregulamentação, privatização e

liberalização.

Com o advento da era da informação, já em um panorama de

dissolução do conceito de Estado social, também chamado pós-moderno a

sociedade e o Estado se deparam com a multiplicação e facilitação do acesso ao

conhecimento e às fontes de informação. A democratização do conhecimento e o

incremento das comunicações provocaram uma profunda e dramática revolução na

sociedade pós-moderna. A sociedade se tornou cada vez mais pluralista,

globalizada e internacionalizada.

Este fenômeno desencadeado a nível mundial a partir das décadas de

80 e 90 do século XX caracteriza-se pela transnacionalização acelerada dos

mercados, dos capitais, da produção, das relações econômicas, do consumo, sem

limites territoriais.

A nova sociedade que surgia naquela altura passou a enfrentar riscos:

ambientais, que se verifica com a redução da camada de ozônio, superaquecimento

global e extermínio da fauna e flora planetária, ante o advento de uma crise

ecológica32 que se mostra insolucionável; econômicos, resultantes da volatilidade

dos capitais especulativos e da irresponsabilidade da gestão fiscal dos Estados;

culturais, que decorrem da homogeneização cultural indiscriminada e da revolução

das comunicações; de segurança, com a manutenção da cultura armamentista,

herança dos tempos da Guerra Fria, bem como pelo recrudescimento da violência a

nível global, que desponta com as guerras preventivas e sem justificativas plausíveis

e os consequentes ataques terroristas, dentre tantos outros riscos que poderíamos

exemplificar.

selva. Do estado de natureza ele sairá tão-somente pela artéria da globalização política se esta assumir feição democrática (...) o futuro que vai nascer se prende à instauração da globalização política, cujo dilema será, duma parte, a continuidade do modelo opressor; doutra, a eleição da via alternativa do bem comum, na esteira de uma democracia direta e global.”. 31

BARROSO, Luis Roberto. Agências Reguladoras. Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática: uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 161. 32

REICH, Norbert. Intervenção do Estado na Economia ... p. 281.

Page 25: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

O próprio Estado chegou à conclusão de sua incapacidade e ineficiência

para prestar todos os novos serviços que a sociedade carece. Criou-se a

necessidade de se repensar a dimensão da máquina administrativa e os tipos de

tarefas e serviços a serem desenvolvidos pelo Estado, com a reforma do Estado e

da Administração Pública, diante dessa constatada crise.

O modelo do Estado social ou providência começou a ruir na década de

setenta do século XX, nos países ocidentais desenvolvidos que o implementaram,

originando um grande movimento de reforma do Estado e da Administração Publica.

O novo modelo33 imposto pelo sistema anglo-saxônico, que foi reforçado com a

queda dos países comunistas e socialistas, acabou por ser adotado pela grande

maioria dos países ante a percepção do fenômeno conhecido como globalização.

Podemos encontrar, portanto, os fundamentos do advento do Estado pós-social, ou

melhor, neoliberal.

Vale ressaltar que neste ambiente houve a imposição a nível quase que

globalizado das determinações oriundas do chamado “Consenso de Washington”.

Esta expressão foi cunhada pelo economista John Williamson, no fim da década de

80 do século XX para designar um conjunto de ideias em favor da economia de

mercado, sintetizadas na disciplina macroeconômica, na economia de mercado e na

abertura comercial. Ligadas ao neoliberalismo resultaram as diretrizes de:

fortalecimento dos mercados privados, desregulamentação da economia,

privatização das empresas estatais, liberalização dos mercados, livre comércio

internacional, redução da atuação do Estado, controle da inflação, redução do déficit

público e corte das despesas sociais. Adotado pelos governos norte-americano e

inglês na década de 80, este fenômeno se expandiu para a Europa continental e

posteriormente para os países periféricos, com o incentivo do FMI e Banco Mundial.

Desta forma, o Estado do Bem-estar que era considerado intervencionista

e prestador de serviços foi gradativamente substituído por outro modelo de gestão

de Estado, chamado Estado pós-social ou neoliberal, ante uma era denominada de

pós-moderna34.

33

MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo ... p. 97. 34

MARQUES, Cláudia Lima. A crise científica do direito na pós-modernidade e seus reflexos na pesquisa, Porto Alegre: Cidadania e Justiça, n. 6, 1999: “Pós-modernidade é uma tentativa de descrever o grande ceticismo, o fim do racionalismo, o vazio teórico, a insegurança jurídica que se observam efetivamente na sociedade, no modelo de Estado, nas formas de economia, na ciência, nos princípios e nos valores de nossos povos nos dias atuais. Os pensadores europeus estão a

Page 26: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

Com o advento do novo modelo estatal neoliberal, após o

estabelecimento da crise do Estado de “Welfare”, a administração profissionalizada e

amplamente presente na realidade estatal, foi gradativamente substituída por outro

modelo de gestão de Estado, que passou a ter uma função mais reguladora do que

prestadora dos serviços públicos.

Os Estados começaram a transferir para a iniciativa privada suas mais

diversas atribuições e competências, através de um grande processo de privatização

da atividade estatal, e começaram a adotar métodos de gestão privada e

empresarial em suas práticas administrativas.

De acordo com esta nova realidade, sucedeu-se a primazia e valorização

do mercado, outrora denominado como mão invisível35, ocorrendo uma larga

transferência ao setor privado dos mais diversos setores da atividade estatal. Outra

consequência desta nova realidade consistiu na substituição do tradicional modelo

hierárquico36 e desconcentrado de Administração Pública pelo modelo

descentralizado de agências, que podem abranger grandes e importantes áreas de

serviços públicos. Uma terceira consequência que surgiu deste modelo de gestão

administrativa do Estado é a função reguladora das atividades consideradas como

de interesse público. Ressalte-se que neste novo modelo estatal ocorre, via de

regra, uma grande redução dos quadros de funcionários públicos e um forte controle

político sobre os mesmos.

No novo cenário globalizado que surgiu, com a concepção de que o

mercado serve melhor ao interesse público do que o próprio Estado se visualiza

cada vez mais uma Administração minimalista, mas fortemente reguladora.

Os Estados começaram a transferir para a iniciativa privada suas

atribuições e competências, através de um grande processo de privatização da

atividade estatal, e passaram a adotar métodos de gestão privada e empresarial em

suas práticas administrativas, bem como aplicar os conceitos de direito privado em

suas relações jurídicas.

Nessa altura, evidenciou-se uma nítida inversão na política

intervencionista do Estado, com o retorno da iniciativa privada em áreas ocupadas

denominar este momento de rompimento (Umbruch), de fim de uma era e de início de algo novo, ainda não identificado”. 35

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. 36

DUGUIT, León. Traité du Droit Constitutionnel. Paris, 1923, APUD MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros Editores, 1993, 18ª ed. p. 105.

Page 27: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

antes pela gestão estatal. Essa política privatizadora se complementou com a

atribuição de diretrizes de política administrativa a agências reguladoras das

atividades transferidas aos entes privados.

Neste sentido, ocorreu uma verdadeira “fúria privatizadora” 37 que se

alastrou pela Administração Pública, devida à crise de identidade do moderno direito

administrativo e aos antigos excessos intervencionistas do Estado do bem-estar.

Entretanto, essa redefinição do papel do Estado, em lugar de reduzi-lo,

como poderia parecer em um primeiro momento, vem reforçar a necessidade de sua

existência e diante da mudança do foco da Administração afirma-se que a

intervenção administrativa não é hoje menor do que era antes da liberalização

econômica: ela é diferente.

Diante desse quadro nos deparamos com um Estado: regulador - o

Estado retira-se dos setores da economia onde antes atuava, mas passa a regulá-

los, mediante a fixação de regras, fiscalização do cumprimento das normas,

aplicação de sanções; propulsivo - age pela adoção de políticas públicas, sendo

escultor, animador e promotor da sociedade; reflexivo; incitador; mediador;

cooperativo: com o implemento das parcerias público-privadas; subsidiário, com

ampla utilização pelo Estado de institutos do direito privado.

Ressalte-se que neste novo modelo estatal ocorre, em consequência,

uma grande redução dos quadros de funcionários públicos e do tamanho e poder do

Estado, embora a sociedade ainda não tenha assistido a proclamada redução da

carga tributária.

O que se percebe é que, mesmo na era do chamado Estado neoliberal,

os déficits orçamentários dos Estados, as despesas públicas e a consequente carga

tributária permanecem em níveis insuportáveis. Ocorre que agora, o

administrado/usuário tem que arcar em duplicidade pelos serviços públicos, uma

para o ente privado que assumiu a função que antes era do Estado, e para o próprio

Estado, que regula tal atividade.

E se mostra questionável se o Estado pós-social, em uma fase de pós-

privatização consegue cumprir suficientemente sua missão constitucional de garantir

ao homem sua dignidade.38.

37

OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 304. 38

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, 7. ed., p. 249. A garantia da dignidade é descrita como “libertação da ‘angústia da existência’

Page 28: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

3 A VISÃO CLÁSSICA DO DIREITO ADMINISTRATIVO

O surgimento do direito administrativo se identifica essencialmente com o

princípio da legalidade, que serviu como um meio de controle do arbítrio do poder

definiu e identificou as competências da Administração Pública, estatuindo seus

poderes.

Na concepção clássica39, afeta ao Estado liberal, a atividade

administrativa era autônoma em relação aos particulares, com clara distinção entre

as pessoas públicas e as pessoas privadas. A Administração Pública era dotada de

privilégios que lhe eram conferidos por lei para garantir a prossecução do interesse

publico. Existia um confronto com a autoridade do Estado e a liberdade dos

administrados, em uma tensão vacilante de agressividade e inércia da Administração

Pública.

De toda sorte, surgiu o direito administrativo no “crepúsculo do

absolutismo e sob o signo da imperatividade” 40 apresentando assimetrias

substantivas e adjetivas, colocando a Administração Pública em posição de

destaque, com prerrogativas e privilégios de um lado e particulares de outro.

O direito administrativo em seu conceito histórico revelava a centralidade

do poder executivo na definição de uma legalidade exclusiva e na construção de um

modelo que não se submetia ao controle judicial.

A amparar esse sistema imperialista criaram-se as figuras do fisco, do

poder de polícia, da discricionariedade, supremacia do interesse público,

prerrogativas da Administração, discricionariedade administrativa, intocabilidade do

mérito administrativo, entre outros atos da inegável superioridade estatal.

A assimetria permitiu a criação de prerrogativas em favor da própria

Administração Pública tais como o poder de polícia, o poder de tributação,

prerrogativas no processo administrativo, nos serviços públicos e até nos contratos

administrativos. Ocorre que a imperatividade da Administração Pública,

fundamentada inicialmente no poder de império e posteriormente no conceito

da pessoa mediante mecanismos de socialidade, dentre o quais se incluem a possibilidade de trabalho, emprego e qualificação profissional e garantia de condições existenciais mínimas”. 39

MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Mutações do Direito Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 33. Conforme conceitua o autor: “Direito administrativo é um ramo do Direito Público que estuda o conjunto de princípios, de conceitos, de técnicas e de normas que regem as atividades jurídicas do Estado como gestor de interesses públicos, cujo efetivo atendimento lhe é cometido pela ordem jurídica para a segurança e em benefício dos administrados”. 40

Ibidem, p. 406.

Page 29: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

genérico do interesse público, ao causar uma assimetria entre as partes, pode

excepcionar o princípio da igualdade, dependendo do caso concreto.

Observe-se que as principais e mais marcantes características do direito

administrativo, que teve seu nascedouro no direito europeu continental, em especial

em França, compõem um sistema normativo criado em favor da própria

Administração Pública e não em favor dos administrados. Nesse sentido já se

asseverou que as características da supremacia do interesse público, a

discricionariedade e a inquestionabilidade do mérito administrativo, além das

prerrogativas jurídicas da Administração são “tributárias deste pecado original

consistente no estigma da suspeita de parcialidade” 41.

3.1 A NOVA DIMENSÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

A história bicentenária do direito administrativo se desdobra em fases

sucessivas e paralelas com o desenvolvimento político, econômico e social. Pode-

se distinguir uma nítida evolução conceitual desta disciplina jurídica desde seu

período de formação, nos primórdios do Estado liberal, ainda pouco desvencilhada

dos institutos da monarquia absolutista até a atual fase do Estado democrático de

Direito contemporâneo.

O direito administrativo submeteu-se progressivamente ao princípio da

legalidade, atendendo hodiernamente às demandas da juridicidade, em um conceito

mais amplo, com enfoque em todo um bloco de legalidade, aí incluído a

Constituição, direitos fundamentais, princípios e todas as demais normas do

“cosmos normativo” 42.

O direito administrativo nasceu como um direito do Estado enquanto

administrador passou a ser um direito do Estado e dos administrados, e tornou-se

hoje, com seu núcleo constitucional, um direito comum dos administrados face ao

Estado administrador. Vivencia esse ramo de direito em um momento de transição,

transformando-se de direito da Administração em Direito Administrativo.

Ocorre uma transmutação do foco da própria disciplina uma vez que dos

direitos dos cidadãos derivam os deveres do Estado e a missão da administração,

41

BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo ... p. 15. 42

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional ... p. 694.

Page 30: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

que seriam as “lutas contra as imunidades do poder” 43, contra sua supremacia

incondicional e autoritarismo.

Cogita-se44 da incapacidade do sistema conceitual e principiológico do

direito administrativo em responder às atuais demandas da sociedade, sendo

insuficiente, esse ramo do direito de assegurar justiça e igualdade, dentre outros

princípios.

O direito administrativo se apresenta com um novo conceito e

abrangência e não se limita apenas a ser uma disciplina jurídica reguladora do

Estado, passando a ser um direito regulador de interesses múltiplos e

transindividuais frente ao próprio Estado e sua Administração Pública. Nesse

sentido, deve se pautar futuramente na: “participação democrática, pluralismo,

subsidiariedade, transnacionalização, sócio-capitalismo, fiscalidade competitiva,

despolitização, consensualidade e governabilidade” 45.

Ressalte-se, ainda que o direito público, e em especial o direito

administrativo, passaram por grandes mudanças no final do século XX e duas

dessas mudanças consistiram na privatização dos serviços e entes públicos, com a

implantação de um processo fiscalizatório e regulatório destes serviços e o

fortalecimento da associação entre a iniciativa privada e o Estado. O contínuo

processo da privatização das atividades estatais provocou o surgimento de um

intervencionismo jurídico-administrativo, nas mais diversas áreas, como, por

exemplo, no ordenamento territorial, no urbanismo, etc.

O direito administrativo, assim, não é mais o único direito regulador da

Administração Pública, pois esta se encontra vinculada a outras fontes e ramos do

Direito ou mesmo dos direitos fundamentais. Daí se depreende que a própria

essência do direito administrativo se alterou a fim de se adequar às transformações

da Administração Pública e do próprio Estado em mutação.

O novo direito administrativo deve ser antes de tudo um direito

administrativo de garantia, a fim de que o Estado garanta a prossecução e

43

ENTERRÍA, Eduardo García de. Las Luchas contra las Inmunidades del Poder. Madrid: Ediciones Civitas, 1974, p. 35. 44

MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução... p.67. 45

MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. A Globalização e o Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo nº 226, 2001, p. 272-276. Para o autor o direito administrativo deve ser entendido com um: “direito do cidadão, entendido não apenas como uma referência ao Estado em que goze de direitos políticos convencionais, mas a qualquer Estado em que se encontre, vivendo, trabalhando ou recreando-se, gozando dos direitos humanos fundamentais, que lhe são inatos”

Page 31: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

realização do interesse público, seja pelo próprio Estado, seja pelos privados, sendo

todos vinculados aos direitos fundamentais.

E estas mudanças estão a exigir a fortificação e modernização do Estado,

de seu aparelho prestador de serviços considerados essenciais e estratégicos, e no

caso dos serviços públicos privatizados, o reforço do papel regulatório e ordenador.

O Estado de garantia, através do direito administrativo de garantia está

comprometido com a satisfação do interesse público e da ordem, tendo o dever de

assegurar a realização das missões públicas que lhe foram confiadas, quando

prestadas pelos particulares ou pelo próprio Estado.

Os administrados, por sua vez, devem ter a cultura e consciência

necessárias para exigirem que o Estado se volte para a prossecução dos

verdadeiros interesses públicos. O próprio administrado, que é dura e

impiedosamente tributado, deve exigir a eficiência e modicidade dos serviços

públicos e fiscalizar, em uma atitude democrática, a atuação estatal, uma vez que é

o próprio administrado a razão da existência do Estado, da Administração Pública e

do próprio direito administrativo.

Page 32: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS, DIREITOS FUNDAMENTAIS,

JURIDICIDADE E O DIREITO ADMINISTRATIVO

A idealização do Estado democrático de Direito levou o indivíduo para o

centro das atenções do próprio Estado, e, em consequência este passou a ser o

sujeito principal do direito administrativo. A nova posição do administrado-cidadão,

amparada pela nova percepção dos direitos fundamentais, demandou a mudança do

papel tradicional da Administração Pública46.

A Administração Pública constitucionalizada passou a ter uma nova

direção e fundamento de validade consistente no primado da dignidade da pessoa

humana. Desta feita, a Administração Pública vê-se compelida a abandonar o

modelo autoritário de gestão da coisa pública para se transformar em um centro de

gestão dos interesses dos administrados coletivamente e também individualmente

considerados.

A Administração Pública não pode mais ser um corpo contrário e em

permanente oposição aos interesses dos cidadãos, pois a eles deve servir. A

Administração Pública deve agir visando sempre o desenvolvimento das

potencialidades sociais.

Cada vez mais frequentemente se percebe a necessidade de colocar os

aparatos administrativos em uma nova dimensão que lhes ponha a serviço da

pessoa humana e sirva de fomentador e contribuinte para o desenvolvimento das

potencialidades sociais e individuais. Não é o administrado que serve a

Administração Pública e sim, justamente, o contrário.

As novas funções da Administração Pública devem ser vocacionadas para

o respeito e concretização dos direitos fundamentais. Os direitos dos administrados

que porventura venham a colidir com os poderes estatais devem ser sempre

ponderados47 de forma a garantir os direitos fundamentais dos primeiros,

resguardando-se o interesse público e o bem comum da coletividade.

46

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto Alegre: Editora Sérgio Fabris, 2002, p. 36-38. Registre-se, ademais, que os direitos fundamentais, segundo o autor, constituem também um instrumento de legitimação democrática. Assim, a Administração Pública orientada, material e formalmente, para o primado dos direitos fundamentais, supre, em grande medida, o problema de legitimação que acomete o fenômeno administrativo do mundo contemporâneo. 47

SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris editora, 2002.

Page 33: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

Esse novo contexto, que atualmente nos parece óbvio, demandou anos

para ser percebido, sendo certo que ainda não foi cabalmente concretizado.

Conforme a lição de Robert Alexy48 princípios jurídicos encerram

mandados de otimização, direcionados a normas e que admitem concretização em

graus variados, conforme as circunstâncias fáticas e jurídicas.

E a nova Administração Pública deve estar finamente sintonizada com os

princípios jurídicos estruturantes e informadores do Estado democrático de Direito e

respeitar e concretizar os direitos fundamentais do corpo social.

4.1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO E DA

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A ideia de Constituição como Lei fundamental de um Estado soberano e o

fenômeno do constitucionalismo surgiu no ambiente dos ideais iluministas49 e

racionalistas nos finais do século XVIII ao século XIX. O fenômeno do

constitucionalismo “traduz exatamente certa ideia de Direito, a ideia de Direito

liberal”50.

Desde o seu nascedouro até os dias atuais, com a realidade de um

Estado de direito pós-social, o sentido e concretização da Constituição alteraram-se

profundamente, alçando-a ao centro de um sistema jurídico estatal.

O fenômeno do neoconstitucionalimo surgiu após o advento da

Constituição Alemã (Lei Fundamental de Bonn), em 1949, após a fase do pós

Guerra. Esta Constituição trouxe em seu bojo, como principais fundamentos, o

respeito à dignidade da pessoa humana5152 e aos direitos fundamentais a qual a

48

ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales, trad. por Ernesto Garzón Valdés, título original Theorie Der Grundrechte, Suhrkamp-Verlag. Madrid: Centro de Estúdios Políticos Y Constitucionales, 2002, p. 86. 49

KANT, Emmanuel. Que é o iluminismo?, 1784; MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. O Estado e os sistemas constitucionais. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, 7. ed., v.1, p. 85. 50

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, v. 2, p. 17. 51

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, 4. ed., p. 60. O autor define dignidade da pessoa humana como: “qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em

Page 34: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

todo o ordenamento jurídico deve se subordinar deu-se início a uma nova fase do

constitucionalismo na Europa.

O fenômeno do neoconstitucionalismo encerrou uma nova tendência de

constitucionalização dos direitos com o advento de uma Lei Fundamental descritiva.

A Constituição passou a ser, assim, não apenas um sistema em si – com a sua

ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar, de interpretar e

subordinador de todos os demais ramos do Direito. A este fenômeno se deu o nome

de “virada de Copérnico” 53.

Deste modo, surgiu a concepção da Constituição como norma

fundamental do ordenamento jurídico, dotada de supremacia hierárquica sobre todas

as demais normas do sistema jurídico. Desta forma a Constituição:

“define o sistema de fontes formais de Direito, condicionando a validade e a inerente vinculatividade de todas as normas, funcionando como a ‘norma das normas’ ou a fonte de todas as fontes de Direito”

54.

A Constituição vigente funciona como pedra angular do sistema jurídico,

entretanto, mesmo as normas constitucionais formais têm que estar consoantes com

os princípios de justiça e da dignidade da pessoa humana.

O constitucionalismo moderno, a seu turno, surgiu da superação dos

regimes absolutistas e totalitários, ante a necessidade de se conter o próprio poder

do Estado. Esta necessidade se verificou ante a instrumentalização e proteção de

diversos direitos, que foram positivados nos textos constitucionais de diversos

Estados.

As Constituições contemporâneas elevaram o homem e a dignidade

humana no centro de todo o sistema jurídico estatal, irradiando do princípio da

dignidade humana todos os demais direitos fundamentais.

O Estado é o primeiro destinatário dos textos constitucionais, uma vez

que os mesmos foram concretizados para limitar o poder estatal. É inegável, e

inclusive está positivado em várias Constituições, que o Estado e a Administração

Pública estão diretamente vinculados aos direitos fundamentais.

comunhão com os demais seres humanos”. 52

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional... p. 225. O autor preceitua que o núcleo da ideia de dignidade da pessoa humana reside no: “princípio antrópico que acolhe a ideia pré-moderna e moderna da dignitas-hominis (Pico della Mirandola) ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual (plastes et fictor)”. 53

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, 3. ed., v. 4, p. 311. Também chamada de “virada kantiana” 54

OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 558.

Page 35: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

O Estado constitucional, numa de suas mais expressivas dimensões

traduz-se como o “Estado das escolhas administrativas legítimas” 55, não se

admitindo o agir administrativo arbitrário, desvinculado da juridicidade e totalmente

discricionário.

A concepção do direito administrativo orientado e vinculado ao direito

constitucional e aos direitos fundamentais e princípios jurídicos é um processo lento,

não obstante já tenha se proclamado que o direito administrativo é o “direito

constitucional concretizado”56.

O posicionamento do direito administrativo dentro do sistema jurídico é o

de um ramo do direito público interno, ajustado à Constituição e não o contrário. A

Constituição e também os direitos fundamentais são o vértice do sistema normativo,

a qual está sujeito a Administração Pública e o direito administrativo.

Atualmente o direito administrativo está pautado de forma inelutável com

a presença do direito constitucional, dos direitos fundamentais e até com o Direito

Internacional. Este novo enfoque pluralista e democrático da Constituição nos

permite recortar um sistema constitucional centrado na distinção nuclear entre

regras e princípios57.

Nesse sentido Gomes Canotilho58 também traça uma distinção das

normas constitucionais instituidoras de princípios e de regras, também chamadas de

normas-disposição, que estabelecem normas diretas e específicas e normas-

princípios59 que estabelecem orientações gerais, “mandatos de otimização” 60 que

necessitam de concretização. Surge a necessidade de aprofundamento e garantia

de efetividade da Constituição dirigente com o implemento das tarefas do Estado e

incorporação de fins econômico-sociais positivamente vinculantes61.

55

FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 07. 56

MAURER, Hartmut. Direito Administrativo Geral ... p. 12. 57

ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales ... p. 82. 58

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional ... p. 1160. 59

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2003, 5. ed., São Paulo, p. 141. 60

ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales ...p. 86. 61

CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra editora, 2001, 2. ed., p. 169. Para o autor: “a lei fundamental aproxima-se dum plano, em que a realidade se assume como tarefa tendente à transformação do mundo ambiente que limita os cidadãos. Deste modo, a definição a nível constitucional, de tarefas econômicas e sociais do Estado, corresponde ao novo paradigma da constituição dirigente”.

Page 36: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

Na esteira da atual teoria da Constituição, que visa assegurar a máxima

efetividade das normas integrantes do texto constitucional62, o direito

infraconstitucional, ou mesmo sua omissão, não podem impedir o implemento dos

mandamentos constitucionais e garantia dos direitos fundamentais, principalmente

no primado da dignidade da pessoa humana e na possibilidade do livre

desenvolvimento da pessoa humana e deve ser compreendido em uma “dimensão

sistemática”63.

O fenômeno da constitucionalização do Direito, desta forma, causou o

efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo se irradia, com força

normativa, para todo o sistema jurídico. A atuação da Administração Pública passa a

ser pautada por princípios e regras constitucionais consagradoras dos direitos

fundamentais.

A constitucionalização do direito administrativo alterou as relações entre

Administração Pública e administrado reformulando os paradigmas tradicionais.

Acarretou a redefinição da noção de supremacia do interesse público sobre o

privado, vinculação da Administração à Constituição e aos direitos fundamentais e

não apenas à lei ordinária, possibilidade de controle judicial do mérito administrativo.

Com o advento do novo fundamento de validade do direito administrativo

consistente em sua constitucionalização nos vemos diante de uma nova realidade

em que: a Constituição e não apenas as leis vinculam a Administração Pública à

juridicidade; o interesse público não depende apenas da interpretação e aplicação

pelo agente político ou pelo burocrata, passando a depender de juízos de

ponderação entre os direitos fundamentais e outros interesses constitucionais

garantidos, aplicando-se sempre o princípio da proporcionalidade; a própria

discricionariedade administrativa passa a ser balizada e controlada por princípios

constitucionais.

Uma das facetas da constitucionalização do direito administrativo consiste

a vinculação direta da Administração Pública e de todo os entes estatais aos direitos

62

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição ... p. 226-227. 63

OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 335. Para o autor: “todo o Direito só se pode compreender e explicar numa dimensão sistemática, registrando-se, todavia, que o sistema se caracteriza pela sua abertura, temporalidade e historicidade, sem prejuízo da intocabilidade do primado valorativo da dignidade da pessoa humana viva e concreta na ordenação axiológica e principiológica do sistema jurídico”

Page 37: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

fundamentais e princípios, considerados como “‘standards’ juridicamente vinculantes

radicados nas exigências de justiça ou na ideia de direito”64.

Diante da época do chamado pós-positivismo, em um Estado pós-social

nos deparamos com novas reflexões sobre o Direito, sua função social e

interpretação – reconhecimento de valores, reaproximação entre Direito e Ética,

normatividade de princípios, também conhecida como “legalidade principialista”65,

centralidade dos direitos fundamentais, edificados no megaprincípio66 dignidade da

pessoa humana.

4.2 VINCULAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO AOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS E AOS DEMAIS PRINCÍPIOS JURÍDICOS

A constante e renovada mutação dos modelos de Estado acabou por

implementar no constitucionalismo contemporâneo o direito fulcrado em princípios

em cotejo com o tradicional direito ditado por regras, onde nos deparamos na

vinculação do Estado e da Administração Pública aos direitos fundamentais67.

Os direitos fundamentais foram concebidos como uma forma de garantia

dos direitos essenciais à existência do ser humano, como ser único, individualizado

e indivisível em face do Estado. Consistiram na concreção histórica do princípio

fundamental da dignidade da pessoa humana. A construção teórica do conceito e

abrangência dos direitos fundamentais acarretou a constitucionalização68 destes

direitos nos mais diversos países.

Esta ideia primordial desde muito evoluiu e hoje nos deparamos com uma

grande ampliação, tanto a nível teórico quanto positivo-constitucional69, acerca do

64

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional ... p. . 1160. 65

OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 961. De acordo com o autor a “descoberta de qual seja o exacto padrão regulador da conduta administrativa pode bem tornar-se um milagre. Um milagre, aliás, que tem a particularidade de se encontrar nas mãos da própria Administração Pública”. 66

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Público ... p. 237. 67

CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Título original Dritttwirkung Der Gemeinschaftsrechtlichen Grundfreiheiten, tradução Ingo Wolgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: editora Almedina, 2003, p. 65-67. 68

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição, título original: Die Normative kraft der Verfassung, tradução por Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 1991. O autor cita em sua célebre obra a discussão travada a partir dos conceitos sobre a eficácia da Constituição expostos por Ferdinand Lassalle, onde o primeiro sustenta a força normativa da Constituição que tem originariamente uma força vital e de eficácia não condicionada aos fatos e poderes políticos, constituindo o direito constitucional em uma ciência jurídica, que atua no plano do dever ser (Sollen). 69

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição ... p. 378.

Page 38: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

conceito, abrangência e aplicação dos direitos fundamentais. Os direitos

fundamentais cresceram muito além de sua função tradicional de defesa da

liberdade e propriedade dos cidadãos. Na sociedade atual, o cidadão é

“dependente, em formas múltiplas, do Estado e de suas prestações”70.

No que concerne ao Estado e todas as demais entidades públicas e

órgãos da Administração, maiores dúvidas não restam que estão todos vinculados

aos direitos fundamentais71. Os direitos fundamentais passaram a representar um

sistema de valores objetivos para todos e não apenas frente ao Estado. Os direitos

fundamentais começaram a ter uma eficácia de irradiação para todo o ordenamento

jurídico, alcançando não somente as relações entre o particular e o Estado, mas

também as relações entre privados.

Desta forma o Estado, através de suas funções legislativa, administrativa,

executiva e jurisdicional, assim como através das entidades da Administração

Pública indireta, como as agências reguladoras independentes, por exemplo,

encontram-se sob a reserva de direitos, liberdades e garantias, ou seja, estão

vinculados diretamente e obrigados a respeitar e garantir os direitos fundamentais.

Pela visão tradicional a Administração Pública está vinculada sempre aos

ditames da lei, que por sua vez deve ser compatível com as normas constitucionais

para ter validade. Ocorre que muitas vezes a vinculação à lei é diminuída pelo

poder discricionário e pelo espaço de livre apreciação da administração. A

autoridade administrativa, também nessas hipóteses, estará vinculada aos

princípios72 gerais do direito, à Constituição e particularmente aos direitos

fundamentais.

A Administração Pública está, em regra, sujeita a vinculações jurídico-

públicas. A Administração Pública, mesmo quando atua no âmbito do direito privado

70

MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão ... p. 64. 71

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, 6. ed., p. 386-387. O autor observa que “os direitos fundamentais vinculam os órgãos administrativos em todas as suas formas e atividades (...). O que importa, neste contexto, é frisar a necessidade de os órgãos públicos observarem nas suas decisões os parâmetros contidos na ordem de valores da Constituição, especialmente dos direitos fundamentais, o que assume especial relevo na esfera da aplicação e interpretação de conceitos abertos e cláusulas gerais, assim como no exercício da atividade discricionária”. 72

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. São Paulo: Malheiros editores, 2008, 8. ed., p. 78-80. De acordo com o autor princípios jurídicos são: “normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”. Segundo este último autor os princípios “instituem um dever de adotar comportamentos necessários à realização de um estado de coisas”.

Page 39: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

administrativo, está vinculada diretamente aos direitos fundamentais, especialmente

aos direitos à liberdade e ao princípio da igualdade. O direito administrativo deve se

vincular aos direitos fundamentais, no sentido de proporcionar um sistema

garantístico aos particulares, limitativo das prerrogativas da Administração.

O fato dos direitos fundamentais estabelecerem-se como pedra angular

de todo o ordenamento jurídico resulta o direito administrativo constitucional. Esse

novo direito administrativo encontra sua razão de ser na promoção dos direitos

fundamentais, assumindo posição garantística da dignidade da pessoa humana e do

livre desenvolvimento da personalidade humana.

A Administração Pública, e em última análise, o Estado, devem respeitar e

garantir o primado da dignidade da pessoa humana73 e os demais direitos

fundamentais. Qualquer ranço de autoritarismo do direito administrativo e

incompatibilidade com o sistema constitucional deve ser firmemente rejeitado. No

entanto, os direitos fundamentais, assim como os princípios jurídicos, encerram

conceitos amplos, muitas vezes vagos e indeterminados e com um alto grau de

abstração e não oferecem diretivas para a solução dos casos concretos74.

Outro ponto a ser destacado refere-se à cristalização dos princípios em

normas, sobretudo em normas constitucionais, que por sua vez, é uma realidade da

qual o direito não pode negar. Com o advento do pós-positivismo e do

constitucionalismo do final do século XX e início do século XXI, reconheceu-se a

normatividade dos princípios.

Deve-se, sobretudo, aos estudos de Ronald Dworkin, dos Estados Unidos

e Robert Alexy, jurista alemão, o reconhecimento desta teoria da normatividade dos

princípios.

A doutrina e a jurisprudência acabaram por reconhecer a existência

implícita, no bojo da Constituição, de princípios reitores do direito, inclusive do direito

administrativo, tais como o princípio da proporcionalidade, o princípio da ponderação

de interesses e o princípio da proteção de confiança, apesar de muitas Constituições

não prevê-los expressamente. A Constituição deve limitar-se ao estabelecimento de

73

OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 433. De acordo com o autor: “o respeito pela dignidade da pessoa humana e todos os demais princípios jurídicos fundamentais, enquanto decorrências normativas de uma ‘ideia de Direito’ centrada numa ordem axiológica fundada na prevalência da justiça e revelada pela ‘consciência jurídica geral’, não tem o seu fundamento na Constituição escrita”. 74

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição ... p. 149.

Page 40: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

alguns poucos princípios fundamentais, cujo conteúdo específico mostre-se em

condições de ser desenvolvido.

Denota-se, por fim, que a aplicação dos princípios se dá,

predominantemente, mediante ponderação, em um processo dialético, sempre que

houve colisão entre dois ou mais princípios75.

4.3 O NOVO ENFOQUE DA VINCULAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE: A VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE

Historicamente podemos encontrar as raízes do princípio da legalidade

nos ideais do liberalismo e em seus principais pensadores, sendo que este princípio

é um produto direto da filosofia liberal. A juridicidade da Administração Pública surge

assim considerada como fruto do liberalismo.

Em sua concepção originária o princípio da legalidade expressa o

conceito da separação de poderes do Estado, onde o Parlamento legisla as normas

vinculativas da Administração. O princípio da legalidade é ainda um dos princípios

mais importantes aplicáveis ao Estado e a toda Administração Pública, uma vez que

tem o objetivo de limitar os poderes estatais que também estão obrigados ao Direito.

O direito administrativo é regido por uma série de princípios, sendo que o

mais importante é o princípio da legalidade da administração. Tradicionalmente este

princípio era concretizado através da primazia da lei e pela reserva da lei. A

primazia expressa a vinculação da Administração Pública às leis vigentes. A reserva

exige, para o agir administrativo, um fundamento e autorização legal.

A rigor, o princípio da legalidade é o princípio basilar que sustenta o agir

administrativo e todo o ordenamento jurídico administrativo, sendo que tal princípio

deve ser respeitado por todos e também pela Administração Pública.

O próprio Estado de Direito só o é em virtude da vinculação da

Administração Pública à lei, ou melhor, por princípio exige-se que a relação

Estado-cidadão seja regulada por leis e, com isso, inequívoca, calculável e

estavelmente.

75

BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos ... p. 22. Para o autor: “Princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam uma determinada direção a seguir. Ocorre que, em uma ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não só é possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético

Page 41: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

Ocorre que se constata que há uma contradição na máxima da

supremacia do legislativo, com “uma debilitação ou um desmentir dessa supremacia

do legislativo face ao executivo” 76. Nesse mesmo sentido se constata uma

verdadeira erosão do mito liberal calcado no princípio da legalidade.

Acrescente-se a isso a grande politização das atividades realizadas pelo

Poder Executivo e pela Administração Pública, inclusive no que tange à sua

atividade legislativa, sendo este controlado principalmente pelo partido político que

se encontra no poder.

Percebe-se, mesmo nos países ditos democráticos, cada vez mais a

influência e poder dos partidos políticos, principalmente quando for o partido político

que forma o governo. A este fenômeno a doutrina tem denominado “Estado de

partidos”77 onde ocorre uma grande e desproporcional concentração de poder no

partido governamental, que controla por sua vez a concretização das normas

jurídicas.

Diante deste novo quadro a Administração Pública transmudou o sentido

da legalidade administrativa, no sentido que a flexibilizou e não mais se vincula ao

tradicional princípio da legalidade. Vivemos em uma realidade atual em que o mito

positivista da perfeição da lei, enquanto expressão racional e politicamente legítima

de um Estado legislativo-parlamentar foi desmistificado.

A falência da lei como limite da atividade administrativa e as pressões dos

diversos interesses sociais vêm levando a Administração Pública a agir sem

considerar estritamente os ditames legais, não sendo mais mera executora de

interesses públicos legalmente previstos.

A lei votada pelo poder Legislativo deixou ou talvez nunca tenha

expressado a vontade geral, passando a ser apenas a vontade de maiorias

parlamentares, e partidos políticos, controlados pelo poder Executivo, que vem

demonstrando primazia dentre os poderes do Estado78. O poder Executivo, por sua

vez, se vê muitas vezes colonizado por forças ocultas ou grupos de pressão

76

OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 341. 77

OTERO, Paulo. A Democracia Totalitária. Do Estado totalitário à sociedade totalitária: a influência do totalitarismo na democracia no século XXI. Cascais: Principia editora, 2001, p. 280. 78

Idem. OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 133.

Page 42: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

externos ao próprio Estado, o que fragiliza o princípio da legalidade e a noção de

democracia79.

A crise do princípio de legalidade foi de certa forma contida pela

ampliação do conceito amplo da juridicidade, pelo controle jurisdicional da

Administração, pela consolidação dos direitos fundamentais e das garantias

constitucionais dos administrados.

Sentiu-se, portanto a necessidade de redimensionamento da noção e

alcance do princípio da legalidade no sentido de vincular a Administração Pública

não apenas à lei, em sentido formal, mas a todo o ordenamento jurídico,

principalmente aos direitos fundamentais e princípios constitucionais.

Considerando que a lei “deixou de ser o único fundamento do agir

administrativo” 80, nos vemos diante de uma nova realidade em que a Administração

Pública passou a se vincular diretamente à Constituição e também ao Direito

Internacional. A decomposição do Direito em princípios e regras acabou por

delimitar o campo de atuação da Administração Pública em duas áreas distintas: a

da juridicidade e o da legalidade, sendo certo que o princípio da juridicidade da

Administração substitui o princípio da legalidade, englobando-o.

Nesse diapasão, a Administração Pública deve estar vinculada, antes de

tudo à juridicidade, formulando-se um princípio da juridicidade, consistente na

sujeição administrativa ao Direito.

A crescente busca e exigência pela vinculação da atividade administrativa

à juridicidade traduz-se como fundamento, critério e limite de atuação da própria

Administração Pública embora tenha “revelado uma debilitação do valor e do

conteúdo da lei” 81 e mostrado o protagonismo da Administração Pública na criação

e execução do Direito.

O conceito de vinculação da Administração Pública à lei, um dos

principais dogmas do Estado liberal foi ultrapassado no Estado pós-social. A

tradicional dependência umbilical da Administração em relação à lei foi ultrapassada.

79

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: editora Paz e Terra, 1986, p. 148. De acordo com o autor, “da crescente ingovernabilidade das sociedades complexas ou da debilidade crônica de que dá provas o Poder Público nas sociedades econômica e politicamente mais desenvolvidas, nasce o neocontratualismo, isto é, a proposta de um novo pacto social, global e não parcial, de pacificação geral e de fundação de um novo ordenamento social”. 80

OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 1083. 81

Ibidem, p. 336.

Page 43: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

5 AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO ADMINISTRATIVO

O direito administrativo em mutação é na verdade um direito

administrativo em plena expansão quantitativa e qualitativa. O poder político e os

modelos de Estado direcionam a atividade da Administração Pública, que se ampara

na ordem jurídica vigente, em especial no Direito Administrativo. O direito

administrativo no Estado pós-social passa a encetar uma nova dimensão ou um

novo âmbito de atividade administrativa em transformação, que deve, antes de tudo,

priorizar e garantir os direitos fundamentais dos administrados.

Ao longo de todo o século XX os postulados do direito administrativo

foram o poder de império da Administração Pública, a discricionariedade dos atos

administrativos e dos atos políticos. Havia uma “defasagem entre garantias e limites

constitucionais ao exercício do poder político e o desempenho da atividade

administrativa do Estado” 82, levando a um quadro de impossibilidade de controle da

atuação do governante, seja popular, seja jurisdicional.

Entretanto a relação entre a Administração e os administrados/cidadãos

vem lentamente se modificando e democratizando. Estamos diante de uma situação

de transformação do autoritarismo para a democracia nas relações entre o Estado e

seus administrados, com uma nova dimensão social da atividade administrativa.

A Administração Pública está, nos tempos atuais, diretamente e

indissociavelmente vinculada aos direitos fundamentais e aos princípios

constitucionais. Os controles da atividade administrativa estatal estão cada vez mais

intensos, uma vez que toda liberdade atribuída ao agente estatal tem de ser

exercitada de modo compatível com os princípios constitucionais e os direitos

fundamentais. Como já foi salientado, a própria natureza do direito administrativo

passa por uma nova releitura.

A Administração Pública contemporânea se caracteriza, em traços gerais

pela: multilateralidade e consensualidade, alargamento da proteção dos direitos

fundamentais e subjetivos dos indivíduos, estabilidade e durabilidade das relações

jurídicas e formações de parcerias público-privadas, entre outras figuras.

82

JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de Interesse Público e a “Personalização” do Direito Administrativo. São Paulo: Revista Trimestral de Direito Público, n. 26, 1999, p. 116.

Page 44: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

As mutações vividas pelo direito administrativo consistem numa nova

ordem, feita de consenso83, participação e justiça social. O maior grau de

informação da população permite que a mesma não mais aceite o fechamento e a

burocratização das organizações estatais e o autoritarismo unilateral do ato

administrativo.

A identificação do interesse público84 de modo compartilhado com a

população, o decréscimo da discricionariedade administrativa e da formação

unilateral dos atos administrativos, o incremento das práticas consensuais da

Administração e a fuga para o direito privado são alguns dos fenômenos

enumerados como as mudanças do direito administrativo.

A opção por formas de atuação concertada ou consensual consiste na

necessidade de se repensar o conceito de interesse público como algo a ser

perseguido não só pelo Estado, mas também pela colaboração da sociedade e

entes privados e pelos setores da economia privada, através de fórmulas concretas

de concerto, transação e cooperação entre a Administração Pública e grupos sociais

e agentes privados.

As transformações do direito administrativo também trazem a lume a crise

da noção autoritária do ato administrativo, com o questionamento sobre o conceito

de supremacia do interesse público.

Estas transformações também se referem ao novo papel dos particulares,

não apenas como destinatários e usuários dos serviços prestados pela

Administração Pública, mas também como sujeitos autônomos de um verdadeiro

relacionamento jurídico com a Administração, detentores de direitos fundamentais

em face do poder estatal e coparticipantes ativos, e não mais passivos, do agir

administrativo. O direito administrativo deixa de ser o direito de uma Administração

protagonista das relações jurídicas, para passar a ser o direito dos particulares nas

suas relações com a Administração.

83

BAPTISTA, Patrícia Ferreira. Transformações do Direito Administrativo: constitucionalização e participação na construção de uma dogmática administrativa legitimadora. Dissertação de mestrado policopiada, Rio de Janeiro, 2001, p. 176. Para a autora: “aquela que vai pautar a sua atuação na busca do consenso e da harmonia com a sociedade, como alternativa às imposições unilaterais que marcavam o direito administrativo clássico. A ideia de consensualidade engloba, ainda, a de conjugação de esforços, de elaboração em comum, na realização de tarefas públicas, sentido que mais se aproxima do de concerto”. 84

DALLARI, Adilson Abreu. Privatização, Eficiência e Responsabilidade. uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 225.

Page 45: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

E diante desse quadro surgem novos ramos da disciplina como, por

exemplo, o direito administrativo econômico em virtude do novo papel do Estado de

infraestrutura que passa a ser coordenador e dirigente da atualidade.

Importante frisar, por fim, que mesmo diante de todas estas mutações do

direito administrativo e das inovações que vêm sendo trazidas pelas mudanças do

Estado e da Administração Pública e com a nova participação dos privados e entes

externos na economia, temos que resguardar os direitos fundamentais dos

indivíduos.

Este novo modelo de Estado, de Administração Pública e de direito

administrativo reclamam com intensidade ainda maior a vinculação do próprio

Estado e mesmo dos privados aos direitos fundamentais, sob pena de se criar um:

“darwinismo social onde o mais fraco é eliminado de todas as benesses da civilização (...) pois a história prova que o mercado não é suficiente para a proteção do mais fraco”.

85

5.1 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DESCENTRALIZADA E O FENÔMENO

DA FRAGMENTAÇÃO ADMINISTRATIVA: REALIDADE INEVITÁVEL

O sistema político-administrativo dominante na Europa continental e

também na América latina, especificamente no Brasil, desde o século XIX até finais

do século XX, sempre se caracterizou pela centralização e concentração do poder

no governo político, enquanto órgão da Administração Pública, seja na figura do

presidente, seja na do primeiro-ministro ou mesmo no sistema de gabinete.

A lógica de tais regimes era baseada na responsabilidade política dos

governantes, frente ao parlamento ou diretamente ao povo, pelas ações e omissões

administrativas, na medida em que se encontravam habilitados a dirigir, orientar,

supervisionar ou controlar as respectivas estruturas da burocracia estatal.

Ao governo, democrático ou não, eram conferidos poderes amplos de

administração da máquina estatal, havendo uma forte hierarquia administrativa, com

intervenção e controle administrativo sobre todos os órgãos administrativos, que

muitas vezes eram somente dotadas de tênue desconcentração.

85

SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris editora, 2004. De acordo com o autor: “A desestatização da economia, muitas vezes benéfica à coletividade e necessária à eficiência do Estado, não deve resultar na redução do âmbito de incidência dos direitos fundamentais”.

Page 46: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

O critério predominante adotado para distinção entre centralização e

descentralização consiste na teoria da personificação que reside na unidade ou

pluralidade de pessoas coletivas públicas.

Ocorre que as antigas Administrações Públicas centralizadas, que se

mantinham fortemente hierarquizadas e verticalizadas, vêm se modificando gradual

e inevitavelmente em um fenômeno irreversível de descentralização da

Administração e em sentido mais ampla fragmentação.

Vários países associaram a descentralização administrativa, sobretudo a

descentralização territorial à maior participação popular, para que as instâncias de

decisão se tornassem menos distantes dos cidadãos.

A necessidade de repensar a estrutura da Administração Pública

contribuiu para um fundamental fenômeno contemporâneo consistente na

fragmentação e descentralização, com o consequente compartimento e controle do

poder e estrutura administrativa, transformando uma Administração monista em uma

Administração pluralista.

O princípio da descentralização consagra o imperativo de um

descongestionamento de poderes como forma de concretizar o caráter democrático

da Administração. O fenômeno da fragmentação e desplubicização do interesse

público, com o advento de uma Administração Pública pluralista e pluriorganizada se

mostra irreversível e decorre da diminuição do papel Estado e da necessidade de se

descentralizar o poder.

A descentralização administrativa, também tida como “descentralização

autárquica” 86 ressurgiu nesse final de século XX, no novo cenário da Administração

Pública, restaurada como solução para conciliar a atuação típica do Estado no

exercício de suas funções típicas e imperativas, de regulação e controle do Estado,

com certa flexibilidade negocial, com autonomia administrativa e financeira e

independência política e consequente afastamento da burocracia e ingerências

políticas inerentes ao Estado.

Atualmente a Administração Pública tende a ser cada vez mais

fragmentada, coexistindo os órgãos da administração direta, com os ministérios

tradicionais, subordinados a um membro do Governo; entidades públicas da

administração indireta, dotadas de autonomia do poder central; agências

86

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações ... p. 199.

Page 47: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

reguladoras independentes; administrações regionais e locais.

A multiplicação de entes administrativos descentralizados ocorreu de

forma crescente nas duas últimas décadas do século XX no mundo ocidental,

através da criação de agências reguladoras que fracionaram a máquina estatal e

fragmentaram os sistemas administrativos.

Convivem atualmente com a Administração institucional, constituída por

uma constelação de organismos personificados ou não, que estão sujeitos política e

juridicamente, ao controle do Governo, e que por isso, pode nomear e destituir

livremente seus gestores, outras organizações especializadas dotadas de

independência política e jurídica.

Esta independência se refere ao poder político do Governo, uma vez que

se limita, através de previsão legal, o poder de nomeação e destituição dos

membros dirigente. Trata-se de uma forma de se afastar o “indirizzo político”87 do

Governo.

A ideia de descentralização administrativa encontra-se no âmago do

princípio da subsidiariedade. Visa, portanto, descentralizar atribuições e

competências e só recorrer ao poder administrativo central de forma subsidiária, ou

seja, se a intervenção for necessária e se os entes administrativos descentralizados

não forem capazes de cumprir com suas atribuições primárias.

5.2 A FUNÇÃO REGULADORA DO ESTADO

O processo de privatização deflagrado há décadas, principalmente a

privatização dos serviços e funções públicas, deslocou para o setor privado

atividades e incumbências situadas dentro da área do “dever estadual de garantia”.

O Estado, ao se despedir das funções públicas88 e das obrigações de produzir bens

públicos, transferindo-as aos privados, é chamado a assumir a responsabilidade

87

VÁZQUEZ, J. Ramón Parada. Administraciones Independientes y Estado Regulador. Uma Avaliação das Tendências Contemporâneas do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 130. 88

ARAGÃO, Alexandre. As Parcerias Público-Privadas no Direito Positivo Brasileiro. Rio de Janeiro: Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 2, 2005, p. 3. De acordo com o autor: “ao invés de realizar uma operação de empréstimo direta com uma instituição financeira para obter esses recursos, contrata uma empresa privada, que, via de regra, vai por sua conta realizar uma similar operação de crédito para efetuar as obras e prestar os serviços contratados [...] o Estado irá aos poucos – ao longo do prazo de vigência do contrato e apenas depois de disponibilizado o serviço – pagando pelo montante despendido previamente pela empresa privada”.

Page 48: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

constitucional de garantidor da prossecução do interesse público89, através da

atividade reguladora.

E nesse mesmo sentido Max Weber ao discorrer sobre capitalismo e

burocracia já declarava no início do século XX que os mercados precisam de

regulação jurídica para que trabalhem regular e racionalmente.

Essa contraditória tendência que o Direito Administrativo surgida em

tempos recentes sofre, com o encolhimento do papel da Administração Pública como

produtora de bens e prestadora de serviços e, por outro, alarga seu papel de

“planejamento, regulação e fiscalização” 90 da atividade econômica deve ser

acompanhada com o próprio desenrolar histórico do papel do Estado.

O Estado regulador é aquele que realiza a regulação como forma de

estabelecimento de regras para determinados setores da atividade (regulação

normativa), implementa e aplica tais regras, exerce a vigilância e fiscalização deste

setor, inclusive com a punição dos infratores (regulação administrativa).

Alguns autores defendem que a tendência privatizadora e reducionista do

tamanho e papel do Estado deve ser obrigatoriamente acompanhada de uma “forte

criação de organismos e sistemas de controle, a exemplo das autoridades públicas

independentes”91.

Outro aspecto da atividade regulatória refere-se a necessidade de gestão

e fomentação de setores da atividade econômica especialmente “técnicos, evoluídos

e complexos”92 os quais concorrem a alta sensibilidade social.

Apesar da crescente liberação da economia e a não intervenção estatal a

Administração Pública deve estar atenta e agir com autoridade regulatória contra os

abusos praticados pelos privados, principalmente pelas grandes corporações

privadas poderosas, muitas vezes detentoras de capitais transnacionais. É o caso

de intervenção e regulação no mercado a fim de impedir e combater a formação de

89

REICH, Norbert. Intervenção do Estado na Economia ... p. 265. De acordo com o autor: “o intervencionismo compreende uma estratégia moderna para a imposição do interesse público sobre um sistema econômico capitalista (...) o governo assume funções distributivas e alocativas. Por um lado, incumbe-se de garantir certas condições mínimas de vida aos socialmente fracos, sem levar em conta seu status, no mercado de trabalho. De outro, tenta corrigir o ‘funcionamento cego das forças de mercado’ pela imposição de metas políticas à economia. Cria, portanto, novas políticas de co-gestão e regulação social”. 90

BARROSO, Luis Roberto. Agências Reguladoras... p. 170. 91

GORDILLO, Augustín. Tratado de Derecho Administrativo. Madrid: Editora Civitas, 7. ed.n, v.1, p. 274. 92

ALFONSO, Luciano Parejo. La Administracion: funcion publica. Revista El Derecho Público de Finales de Siglo, Una Perspectiva Iberoamericana, Madrid: Editora Civitas, 2003, p. 297.

Page 49: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

monopólios e oligopólios, cartéis ou outras figuras, aplicando-se regras do direito de

concorrência para coibir tais práticas perniciosas.

A Administração Pública tem ainda a difícil função de fiscalizar a

legalidade, regularidade e eficiência dos serviços prestados, principalmente os

serviços privatizados, de natureza pública e grande interesse social. Impõe-se desta

forma a regulação da atividade econômica pelo Estado por um imperativo de ordem

pública e pelo próprio interesse público envolvido, que busca o bem público93.

E nesta função reguladora o Estado dever além de garantir a prestação

do serviço público, proteger os direitos e também deveres dos consumidores dos

serviços públicos privatizados.

Inexiste um consenso sobre o conceito de regulação. A doutrina costuma

listar três conceitos específicos sobre regulação do Estado sobre a atividade

econômica94. A regulação do Estado na economia, assim, pode ser entendida

como95: em sentido amplo, é toda a forma de intervenção do Estado na economia,

independentemente dos seus instrumentos e fins; em um sentido menos abrangente

é a intervenção estatal na economia por outras formas que não a participação direta

na atividade econômica, equivalendo, portanto, ao condicionamento, coordenação e

disciplina da atividade econômica privada; em um sentido restrito é somente o

condicionamento normativo da atividade econômica privada.

Em sua atividade reguladora, compete ao Estado estabelecer as regras

que devem reger as atuações privadas de interesse público, decorrentes de um

processo de privatização ou não, controlar o acesso ao mercado de entidades que

vão prestar serviços de interesse público, fiscalizar a atuação de tais entidades.

Na função regulatória estão compreendidas as proibições de certas

ações, tais como a formação de monopólios, oligopólios e cartéis, proibição de

abuso de poder dominante, fixação de preços predatórios, fixação de regras contras

93

OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 302. Conforme o autor: “são razões de interesse público que justificam, por isso mesmo, a regulação jurídica da actividade econômica desenvolvida em tais áreas”. 94

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo nº 216, 1999, p. 128-129. De acordo com o autor seriam: “a regulação de monopólios, em relação aos quais devem ser minimizadas as forças de mercado através de controles sobre os preços e a qualidade do serviço; regulação para a competição, para viabilizar a sua existência e continuidade; e a regulação social, assegurando prestação de serviços públicos de caráter universal e a proteção ambiental”. 95

GONÇALVES, Pedro. Entidades Privadas com Poderes Públicos ... p. 103. O autor faz referência a certas áreas e serviços que apesar de não serem controlados por agências administrativas, são geridos por entidades privadas que recebem forte subsídio estatal, como por exemplo o ICANN, associação privada sem fins lucrativos que controla a concessão dos domínios da internet em todo o planeta.

Page 50: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

as práticas de trust e formação de cartel e também as intervenções positivas, tais

como regular o mercado no sentido de garantir o serviço universal a todos, ou

mesmo de garantir a contratação por todos os usuários em igualdade de condições

dos serviços essenciais, conhecidos por “essential facilities”96.

E nesse contexto o Estado deve focar especial atenção regulatória nas

atividades conhecidas como monopólios naturais que são aqueles serviços que, por

sua especial natureza, são prestados em regime de monopólio tais como os serviços

de rede, como as redes de transporte e distribuição de eletricidade, de gás, de água,

de efluentes líquidos, rodovias, entre outros serviços considerados públicos. Estas

atividades, por sua nítida natureza pública e de interesse geral da população, devem

ser forte e eficazmente reguladas pelo Estado.

Desta forma, para a formação de nova e saudável atmosfera de negócios

públicos e garantia e acesso universal dos administrados/usuários aos serviços

públicos privatizados, a atividade estatal de regulação, particularmente a exercida

pelas agências reguladoras, precisou experimentar mudanças sensíveis, se

transformando na mais característica função do Estado na esfera econômica da

atualidade (Estado regulador).

Poderíamos listar como o novo papel a ser desempenhado pelas

agências reguladoras: em primeiro lugar a total independência das agências

reguladoras que devem ter a natureza de entes de Estado e não entes de governo,

integrantes da Administração indireta; em segundo lugar o abandono das práticas de

imposição unilateral e autoritária, reconhecendo a primazia da conciliação, da

arbitragem e da mediação; em terceiro lugar a regulação deve alcançar equilíbrio

proporcional entre retornos econômicos e sociais, fazendo salvaguarda do direito

fundamental à intangibilidade da equação econômico-financeira, bem como a justa

partilha dos ganhos e benefícios não apenas com o parceiro público, mas com o

usuário. A este deve ser assegurado o direito fundamental à fruição acessível e

universalizada de serviço público de qualidade, nada importando a priori quem é o

executor; em quarto lugar a regulação precisa ser socialmente controlada, assim

96

MARTÍNEZ, Juan Miguel de La Cuétara. La Regulación Subsiguinte a La Liberalización y Privatización de Servicios Públicos: os caminhos da privatização da administração pública. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, v. 60, editora Coimbra, 2001, p. 198. O autor ilustra com o caso ocorrido em Chicago, EUA, no qual uma empresa negou à outra o fornecimento do serviço de carregamento de grãos em elevador e como o carregamento manual era praticamente impossível de se realizar e essa negativa acabaria por inviabilizar a empresa e a própria concorrência, a empresa fornecedora do serviço de elevadores foi obrigada a prestá-lo.

Page 51: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

com a autuação do órgão gestor. Com efeito, o controle social não exclui os demais

controles, mas a eles deve ser somado.

As agências devem incentivar à participação dos particulares e da

sociedade na função regulatória do Estado, em vez de temerem a captura ou

cooptação da função regulatória pelos regulados97. Cabe também à sociedade, aos

usuários e aos próprios regulados a fiscalização da qualidade dos serviços

prestados. Esta postura nada mais é do que a expressão da consensualidade, que

vem sendo estimulada no direito administrativo contemporâneo. A Administração

Pública “feita para mandar, se deu conta de que o poder de mando em muitos casos

não bastava, abrindo-se para o caminho da negociação”98.

Ressalte-se que alguns autores99 alertam que podem surgir

incompatibilidades da nova função regulatória do Estado com o tradicional direito

administrativo, que se mostra “insuficiente”, no sentido de que: existem normas que

apesar de não serem normas funcionam como se fossem, prática de atos

discricionários que não são discricionários, contratos, sentenças que não são

sentenças.

5.3 AS AGÊNCIAS REGULADORAS INDEPENDENTES

A descentralização administrativa foi adotada em diversos países

seguindo o modelo das agências independentes norte-americanas e tal fenômeno se

97

FREITAS, Juarez. Parcerias Público-Privadas: características, regulação e princípios. São Paulo: revista interesse público, vol. 29, 2005, p. 36. O autor ressalta que “devemos assimilar a obrigatoriedade das Audiência Públicas em todas as decisões relevantes e estratégicas das Agências Reguladoras. 98

ENTERRIA, Eduardo García/FERNÁNDEZ, Tomás-Ramon. Curso de Derecho Administrativo, Madrid: Civitas, 206, v. 1, 13 ed., p. 464. 99

MARTÍNEZ, Juan Miguel de La Cuétara. La Regulación Subsiguinte a La Liberalización ... p. 199-200. O autor dispõe que a atividade regulatória abrange: “normas que no son normas, pero que funcionam com si lo fuesen. Se trata de ordenaciones no contenidas en normas, bien porque no proceden de centros com autoridad para emitirlas [...] bien porque sus emisores renuncian a utilizar la autoridad que poseen; actos discrecionales que no son discrecionales. Los reguladores tienen que adoptar muchas decisiones, fijando precios o atribuyendo derechos, para las cuales no existen varias soluciones válidas, sino uma; pero la única solución correcta deriva de consideraciones econômicas de muy difícil incorporación a un procedimiento jurídico [...]; contratos que no son contratos [...] se há construído la teoria del “regulatory contract” para vincular com un contrato “tácito” a los Gobiernos que tengan la tentación de favorecer a terceros una vez cobrado el importe de la privatización; sentencias que no son sentencias. Uma das missiones básicas de los reguladores sectoriales es arbitrar en los conflictos entre partes y atribuir aquellos derechos en disputa que tengan que ver con la regulación”.

Page 52: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

mostra como uma das mais relevantes formas de fragmentação do Estado pós-

moderno.

Inspirados no modelo anglo-saxônico das independent regulatory

agencies norte-americanas os mais variados Estados europeus, assim como os

demais países da América têm inserido nas respectivas Administrações tais entes,

que se encontram fora do contexto da hierarquia governamental e fora de controle

administrativo e até político do governo, com acentuada independência.

Esta proliferação de agências ou autoridades administrativas

independentes é estranha à tradição administrativa da Europa continental e também

do Brasil, uma vez que nesses países a Administração tende a ter o modelo

burocrático centralizador e hierarquizado.

O surgimento das agências reguladoras independentes causou a “ruptura

do princípio da divisão tripartite do poder estatal constituído”100, quebrou o vínculo de

unidade intra-administrativa da Administração Pública e excluiu a sua atividade da

responsabilidade política do Governo perante o Poder Legislativo, operando-se uma

evolução do modelo piramidal de Administração Pública para um modelo

policêntrico.

As agências reguladoras são assim consideradas como “entes

fracionários do aparelho administrativo do Estado”101 e exercem, via de regra, uma

função reguladora e fiscalizatória. Esta função consiste na republicização dos

controles sobre os serviços públicos, assim definidos por lei, prestados pelos

particulares e também como regular serviços de relevante interesse geral, como

aqueles, a guisa de exemplo, capazes de oferecer riscos à saúde pública e à

segurança.

O Estado pós-social, surgido em uma fase de pós-privatização, assume a

forma de Estado regulador de serviços públicos essenciais, confiando às agências

administrativas independentes os poderes de regulação e fiscalização dos setores

da economia regulados, agências essas que são independentes justamente por não

se subordinarem ao poder político governamental, vinculando-se somente à

Constituição e à Lei, atentos aos valores da “imparcialidade, da tecnicidade e da

100

ALFONSO, Luciano Parejo. La Administracion. Funcion Publica ... 297. 101

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações ... p. 197.

Page 53: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

previsibilidade” 102.

A criação das agências independentes se inspirou na necessidade de

separar o Estado da economia, na adoção do modelo de Estado no qual a atividade

econômica está resguardada da atividade política, mas por outro lado na

necessidade de impor algumas regras ao mercado, principalmente no que tange à

prestação dos serviços de indiscutível interesse público e nos monopólios naturais,

como por exemplo, fornecimento de energia elétrica.

A adoção desse modelo de controle e regulação da atividade econômica

surgiu de premissas ideológicas do tipo: “menos Estado, melhor Estado”,

“autoregulação da economia contra planificação estatal”, “concorrência econômica

como expressão da liberdade”103 mas também da verificação de que a concretização

de muitas das tarefas afetas tradicionalmente ao Estado exige recursos financeiros

elevados, saberes, competências, experiências técnicas e profissionais que estão

fora da capacidade do próprio Estado.

O surgimento das agências reguladoras independentes se deve à

exportação do modelo adotado nos países de origem anglo-saxônica face à

ocorrência de um forte movimento de privatização dos serviços públicos prestados

pelo Estado. Desta feita, ocorreu uma consequente publicização das funções

estatais de regulamentação e controle da atividade privatizada ou considerada como

de utilidade pública.

O termo intervenção estatal é substituído pela regulação, com uma

grande atividade reguladora da Administração. Desta forma, hodiernamente

constatamos que “a intervenção administrativa não é hoje menor do que era antes

da liberalização econômica: ela é diferente”104.

A regulação estatal na atividade econômica passou a assumir maior

relevância com o processo de privatização das atividades do Estado iniciado na

Inglaterra, por forte influência norte-americana e disseminado quase que

globalmente.

O próprio Estado sentiu a necessidade de regular e fiscalizar as

atividades de interesse público que eram transferidas para os setores privados da

102

MOREIRA, Vital. Serviço Público e Concorrência. A regulação do sector elétrico: os caminhos da privatização da administração pública. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Editora Coimbra, 2001, p. 230. De acordo com o autor a “racionalidade da regulação independente consiste na desgovernamentalização, despolitização e despartidarização da função reguladora”. 103

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional ... p. 352. 104

OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 302.

Page 54: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

economia, ou mesmo que eram realizados pelos privados, mas de forte interesse

social. As atividades de interesse público deveriam proteger de certa forma os

direitos e interesses dos usuários/administrados, de o Estado concedente e do

particular concessionário.

Nesse processo vemos dois modelos: o de public utilities105, de cariz

anglo-saxônico e o de service publique, de matriz francesa, adotado via de regra na

Europa continental. O primeiro modelo se distingue do segundo basicamente pela

prestação pelo mercado (privados) e no segundo modelo o serviço púbico é

prestado pelo Estado, com o “conceito de serviço público incindível do conceito de

poder administrativo e, como tal, um corolário das funções irredutíveis do Estado”106.

Entretanto os regimes de serviços públicos, tanto pelo modelo norte-americano

como pelo europeu continental têm como componentes essenciais a universalidade

de acesso, igualdade de tratamento, continuidade, garantia de qualidade e

adaptabilidade.

Historicamente, nos Estados Unidos a intervenção estatal no domínio

econômico se concentrou inicialmente na fixação de tarifas (rate making power)

através de delegação legal a agências administrativas107. Esta regulação visava

principalmente o equilíbrio entre o menor custo a ser cobrado aos consumidores

pelos serviços prestados e a justa remuneração do ente privado que garantisse a

sobrevivência do negócio e a eficiência do serviço. Desta forma, consolidou-se o

princípio do serviço pelo custo (service at cost)108.

O poder regulamentar da economia pelo Estado nos Estados Unidos

(regulation) teve início a partir de conflitos entre agricultores e empresas ferroviárias,

ocasião em que foi admitido pela lei e jurisprudência o controle estatal dos preços

dos serviços ferroviários e de armazenamento dos produtos agrícolas. A decisão

mais famosa consistiu no “leading case” Munn v. Illinois, de 1877, que versava sobre

105

TÁCITO, Caio. Presença Norte-Americana no Direito Administrativo Brasileiro ... p. 24. De acordo com o autor a public utility consiste na “disciplina pelo Poder Público de determinadas empresas privadas em razão de sua importância para a coletividade, que lhes conferia a qualidade de um serviço público virtual”. 106

QUADROS, Fausto de. Serviço Público e Direito Comunitário: os caminhos da privatização da administração pública. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra editora, vol. 60, 2001, p. 281. 107

TÁCITO, Caio. Transformações do Direito Administrativo ... p. 33. De acordo com o autor: “nos Estados Unidos, as Agências Independentes, nascidas em 1887 com a Interstate Commerce Commission e mais amplamente adotadas na reforma Roosevelt, na década de 30, têm natureza singular de independência perante o Poder Executivo e o Congresso”. 108

Idem, p. 23.

Page 55: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

a constitucionalidade da lei do Estado de Illinois que tabelava os preços de

armazenagem nos celeiros de Chicago. A jurisprudência então fixada pela Suprema

Corte considerou válida a regulamentação dos negócios que por sua natureza

estavam vinculadas ao interesse público (business affected with a public interest).

Em 1887 foi criada a Interestate Commerce Commission, primeira de uma série de

agências governamentais reguladoras do processo econômico norte-americano.

Entretanto, embora a primeira agência administrativa norte-americanas

seja considerada como a Interestate Commerce Commission (ICC), criado em 1887,

foi somente com o “New Deal”, plano governamental proposto pelo Presidente

Roosevelt, na década de 30 do século XX, que os atuais modelos de agências

reguladoras se tornaram presença na Administração Pública.

O antigo modelo de Estado liberal norte-americano, com a concepção do

Estado mínimo, foi abruptamente modificado ante a forte intervenção do Estado na

economia, no início do século XX, que passou a regular as mais diversas áreas de

interesse do povo e usuários através das mencionadas agências.

Como visto, as agências surgiram em um cenário político norte-americano

como entidades propulsoras da publicização de determinados setores da atividade

econômica, mitigando as garantias liberais clássicas da propriedade privada e da

autonomia da vontade.

Já na Europa, a experiência inglesa, levada a cabo com grande

intensidade durante o governo de Margareth Thatcher na década de 70 do século

XX, também demonstra a criação das agências independentes, todas com forte

inspiração no modelo norte-americano visando à grande reforma do Estado

realizada em tal país com o incremento das privatizações.

Na Europa continental, no entanto, o surgimento das autoridades

administrativas independentes esteve diretamente relacionado ao declínio e

diminuição do Estado social ante os processos de reforma tendentes a modernizar

as estruturas administrativas e burocráticas, com a forte privatização das atividades

e serviços públicos, que necessitavam ser garantidos e posteriormente regulados.

Com efeito, este tipo de estrutura institucional, denominadas como

“autoridades administrativas independentes”109 só veio a se proliferar na Europa

109

LOMBARTE, Artemi Rallo. La Constitucionalidad de las Administraciones Independientes. 2002; BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria ... p. 43. De acordo com o autor: “Banco Central da Alemanha (Deutsche Bundesbank) é normalmente apontado como o modelo pioneiro e paradigmático

Page 56: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

continental sob a égide de um ambiente comunitário promovido pela União Europeia,

que pretendia afirmar-se e unificar-se econômica, jurídica, política e

institucionalmente.

Na França, as chamadas autoridades administrativas independentes110,

não têm personalidade jurídica e se sujeitam à fiscalização do Conselho de Estado.

O modelo espanhol de administração independente, por sua vez, é um típico

fenômeno de descentralização.

As autoridades administrativas independentes europeias ou agências

reguladoras independentes foram criadas no bojo de um amplo e quase globalizado

processo de privatizações e desestatizações, advindos com a reforma do Estado,

movimento também chamado de americanização do direito administrativo.

Percebeu-se a necessidade de garantia de segurança, estabilidade e previsibilidade

do regime jurídico para os investidores do setor e também de eficiência, modicidade

e qualidade dos serviços a serem desenvolvidos em favor dos administrados.

Houve um descolamento das agências reguladoras do processo político,

tornando-as independentes do governo, com regras claras e preestabelecidas para

os setores econômicos que passam se sujeitar às “regras do jogo”111. Autores

acenam para a quebra do vínculo de unidade política no interior da Administração

Pública, que está cada vez mais fragmentada, eis que as agências independentes

situam-se fora da esfera de responsabilização política do governo, com grau

reforçado de autonomia.

As autoridades administrativas independentes ensejam a revisão dos

fundamentos legitimadores do poder, com o debate sobre eventual déficit

democrático face à incontrolabilidade do poder político, o avanço da tecnocracia

sobre o poder político e a submissão do Direito às leis de mercado e da economia.

Procurou-se demarcar com a instituição do modelo das agências independentes um

espaço de discricionariedade, “com predomínio de juízos técnicos sobre as

valorações políticas”112.

As agências independentes ostentam, muitas das vezes, além das

de autoridade administrativa independente no continente europeu, que serviu de inspiração, inclusive, para a configuração do Banco Central Europeu”. 110

VEDEL, Georges/DEVOLVE, Pierre. Droit Administratif. Paris: Presses Universitaries de France, 1992, 2. ed., v. 2, p. 459. 111

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional ... p. 353. 112

BARROSO, Luis Roberto. Agências Reguladoras ... p.174. E nesse sentido conclui o autor que às agências administrativas independentes foram: “outorgadas autonomia político-adminsitrativa e autonomia econômico-financeira”.

Page 57: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

funções executivas, funções legislativas e judiciais, eis que expedem regulamentos

dotados de generalidade para o setor regulado e apreciam questões e reclamações

levadas pelos usuários dos serviços e até do próprio governo, tendo o poder de

impor sanções às entidades reguladas, desenvolvendo funções arbitrais e

sancionadoras.

A função de regulação de um determinado setor da economia atribuída

por lei à autoridade administrativa reguladora fará da mesma uma agência que

estabelece regras e controla a aplicação das normas e nesse sentido “fixar as

‘regras reguladoras’ corresponde, tendencialmente, a regulamentar matérias no

figurino clássico da administração pública”.

Uma nova característica das agências administrativas é que as mesmas

detêm poderes e funções normativas, além das funções executivas e decisórias que

lhe são ordinariamente conferidas, ou seja, podem editar regulamentos que vão

regulamentar todo o setor econômico que lhe é afeto.

Autores aduzem que ocorre uma verdadeira “delegação de funções do

Legislativo para a agência”113, transferindo-se quase que completamente a

competência para disciplinar certas questões. E o confronto desta questão com o

princípio da legalidade de cunho garantístico pode deixar transparecer que há uma

grave violação a este princípio por violação do sistema de separação de poderes e

por faltar às agências legitimidade democrática para legislar, não obstante a lei geral

preveja a possibilidade da edição dos atos normativos pelas agências.

Entretanto, a rigidez da noção da legalidade mais uma vez, como não

poderia deixar de ser, é abrandada a fim de possibilitar ao legislador conferir uma

reserva material de seu poder às agências independentes.

As autoridades administrativas independentes são constantemente

questionadas sobre a constitucionalidade de sua atuação e de seus poderes, sobre

a sua eventual irresponsabilidade política, denominada de independência, e sobre a

independência de atuação.

Essa questão é debatida em diversos países, inclusive nos EUA, não

havendo ainda um consenso sobre a natureza, atuação e sobre o eventual déficit

democrático das agências.

Atualmente um dos grandes questionamentos acerca do futuro das

113

Ibidem, p. 187.

Page 58: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

agências independentes se refere justamente ao controle político de tais entidades,

responsabilidade social e legitimidade democrática de suas decisões e

regulamentação.

Apesar de terem todos esses poderes previstos em lei, nos parece óbvio,

que as agências reguladoras e seus regulamentos estão sujeitos e vinculados aos

princípios constitucionais, aos direitos fundamentais, bem como à própria legalidade

e não podem extrapolar os poderes e competências que lhe foram conferidos pelo

texto constitucional.

Esse seria um dos limites (constitucional) à total descentralização e

desconcentração normativa e ao fenômeno da autorregulação pública pelas

agências independentes “o reconhecimento legal de descentralização, da

desconcentração e da autorregulação nunca pode conduzir a uma alienação ou

renúncia da competência regulamentar diretamente conferida pela Constituição” 114.

114

OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 454. O autor defende que “as autoridades administrativas independentes criadas por lei não podem exercer uma competência regulamentar de execução de execução direta da lei que se traduza numa intervenção substitutiva da competência constitucional do Governo ou das assembléias legislativas regionais sobre essa mesma matéria”.

Page 59: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

6 CONCLUSÃO

O direito administrativo está em mutação e essa é uma realidade

inegável. No entanto, apesar de vir sofrendo grandes transformações causadas em

grande parte pelas mudanças ocorridas no âmbito do próprio Estado atualmente

denominado pós-social e neoliberal e em um quadro de economia de mercado

globalizado que lhe é subjacente, continua, como ramo do direito, regulando as

ações e relações dos órgãos e agentes do Estado com os administrados. O

administrado passa a ser o sujeito principal das relações jurídicas mantidas com a

Administração Pública.

O Estado, nesta nova concepção do direito administrativo, se vincula

diretamente aos direitos fundamentais, mesmo quando atue com regras de direito

privado ou se trate de funções de natureza pública privatizadas.

O direito administrativo e a Administração Pública continuam a ser

elementos essenciais do Estado também denominado como pós-moderno. A maior

atuação do setor privado, dos mercados e o seu espaço ampliado na economia e em

setores que anteriormente eram geridos pelo Estado não significaram a redução do

Estado, nem do direito administrativo. Ocorreram transformações no modo com que

o Estado atua.

O direito administrativo passou a se direcionar mais para os direitos dos

cidadãos do que para o Estado. O foco atual do direito administrativo é o cidadão e

não mais o Estado, embora o direito administrativo ainda se direcione a este e

regule as relações do Estado com os demais indivíduos. Houve uma maior

integração da Administração com o cidadão.

O direito administrativo, no entanto, mantém função essencial como

instrumento para a realização de políticas públicas, da busca do bem comum e para

a garantia dos particulares quantos aos abusos do poder.

Ocorre a constitucionalização do direito administrativo, e a lei deixa de ser

o fundamento único e último da atividade administrativa. A Constituição, encarada

como um sistema de regras e princípios, passa a ser o cerne da vinculação

administrativa à juridicidade.

O direito administrativo deve ser interpretado sempre a favor dos direitos

fundamentais dos administrados e deve ser entendido como instrumento de

proteção dos mesmos contra a própria Administração, tendo como fim não só

sujeitar o Poder Executivo ao Direito, mas, sobretudo dar conteúdo aos direitos dos

Page 60: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

cidadãos.

Há um fortalecimento dos princípios constitucionais afetos ao direito

administrativo como orientadores da legalidade da ação administrativa. O direito

administrativo deve buscar sempre a eficiência e eficácia da atividade administrativa

com a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos.

O princípio da legalidade administrativa ainda é um dos corolários do agir

estatal e do direito administrativo, no entanto, hoje este princípio é alargado para

abranger o princípio da juridicidade encerrado pela Constituição a qual o Estado,

como um todo, está adstrito. A juridicidade, assim como a legalidade, consiste em

última análise em uma limitação e conformação do poder estatal com proteção aos

administrados.

Vislumbra-se a internacionalização do direito administrativo: o direito

administrativo nasceu como ramo precipuamente nacional, mas passou, no final do

século XX a ser influenciado por fatores internacionais, quer sob o prisma da

globalização, que sob o prisma dos blocos de nações ou dos organismos

internacionais que fixam diretrizes e modelos, como por exemplo a Comunidade

Europeia, o FMI, o Banco Mundial, dentre outros.

Os Estados, apesar de suas soberanias, ficam submetidos às forças

econômicas internacionais, que passam a influenciar as decisões internas. Ocorre

uma internacionalização do Estado e consequentemente do Direito, com tendência

de agregamento dos Estados em blocos regionais.

E neste cenário no qual o direito administrativo se desenha temos o

surgimento das agências reguladoras independentes.

Os Estados passaram a sofrer o fenômeno, muito debatido na doutrina,

denominado em seu sentido amplo como fuga para o direito privado. Este fenômeno

abrange, dentre estes a privatização dos serviços públicos, a transferência do

controle das empresas públicas para os setores privados e aumento da incidência

das regras do direito privado nas relações da Administração sem, contudo, haver o

abandono dos princípios gerais do direito público. Este fenômeno é uma realidade

inquestionável dos últimos 30 anos e veio demonstrar a força dos mercados

emergentes com o desmantelamento do antigo Estado providência.

Neste contexto nos Estados se depararam com a descentralização e

fragmentação da Administração Pública, fenômeno, assim como o da privatização,

inevitável. Esta realidade é acentuada com a proliferação das agências reguladoras

Page 61: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

independentes. O direito administrativo surge como direito do Estado regulador e

menos como o direito do Estado essencialmente prestador (executor direto) dos

serviços públicos ou universais. As agências reguladoras tendem a ser

independentes e constituídas segundo o modelo autárquico e são manifestações

dos fenômenos da descentralização e fragmentação da Administração Pública, ante

a necessidade da intervenção e controle do Estado na economia.

As novas agências são independentes (em tese) do poder político,

dotadas de autonomia funcional e financeira, devendo obediência apenas à lei e

surgem como forma de controlar e regular os setores da economia geridos pelos

grupos privados, que tenham notório interesse público. Consistem em uma forma de

intervenção do poder público na economia a fim de regular os mercados e garantir o

bem comum e a boa prestação dos serviços.

Aparecem questionamentos sobre a atuação das agências independentes

e se as mesmas estariam em consonância com o princípio democrático, ante a

fragilização do controle político e judicial das atividades realizadas pelas agências e

com o princípio da legalidade. Impõe-se alguma forma de limitação e controle das

agências, mantendo uma área de autonomia, pois tais autoridades detêm poder e

devem também sofrer controle, sob pena de resvalarem em autoritarismo.

Importante frisar, por fim, que mesmo diante de todas estas mutações do

direito administrativo e das inovações que vêm sendo trazidas pelas mudanças do

Estado e da Administração Pública e com a nova participação dos privados e entes

externos na economia, impõe-se a salvaguarda e respeito aos direitos fundamentais

dos indivíduos.

Este novo modelo de Estado, de Administração Pública e de direito

administrativo reclamam com intensidade ainda maior a vinculação do próprio

Estado e mesmo dos privados aos direitos fundamentais e um grande esforço dos

mesmos no sentido de não se desincumbirem definitivamente de suas respectivas

missões constitucionais e garantirem aos administrados a paz social e o bem

comum.

O princípio da dignidade da pessoa humana é elevado ao fim póstumo ao

que o Estado e também o Direito devem buscar. A liberdade, igualdade e demais

direitos fundamentais se impõem como condição de existência da própria da

humanidade e o Direito, embora em mutação, deve atentar para os seus fins

primordiais, para não se desvirtuar dos mesmos.

Page 62: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

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ANEXO A 1 ALGUNS PRINCÍPIOS ORIENTADORES DO NOVO DIREITO ADMINISTRATIVO 1.1 PRINCÍPIO DA IGUALDADE 1.2 OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE, RAZOABILIDADE E PROIBIÇÃO DE EXCESSO 1.3 PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA PROTEÇÃO DE CONFIANÇA 1.4 PRINCÍPIOS DA EFICIÊNCIA E O DIREITO À BOA-ADMINISTRAÇÃO 1.5 PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA OU DA PUBLICIDADE

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ANEXO A 1 ALGUNS PRINCÍPIOS ORIENTADORES DO NOVO DIREITO

ADMINISTRATIVO

A intenção da presente exposição sobre princípios orientadores do novo

direito administrativo não é a de esgotar todos os princípios que norteiam tal matéria,

dada ao grande número de princípios e subprincípios aplicáveis ao direito

administrativo. Pretende-se apenas listar alguns poucos princípios que reputo

importantes para explicar as mudanças que vêm ocorrendo no direito administrativo

e o novo enfoque interpretativo que se pretende da matéria.

Embora não seja o objeto do presente estudo, impõe-se uma breve

consideração sobre o sentido e a teoria dos princípios jurídicos.

Princípios jurídicos consistem em uma espécie de normas jurídicas por meio

da qual são estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários graus,

segundo as possibilidades normativas e fáticas, seriam assim mandatos de

otimização.

Os princípios jurídicos fundamentais também são entendidos como: princípios

historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica

e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional.

Os princípios, portanto, considerados como mandatos de otimização são

concebidos para serem cumpridos e realizados, utilizando-se do método da

ponderação quando colidentes.

1.1 PRINCÍPIO DA IGUALDADE

O princípio da igualdade é considerado como um dos princípios estruturantes

do regime geral dos direitos fundamentais. A igualdade jurídica é considerada como

igualdade formal e é indissociável da própria liberdade individual. No mesmo

sentido a regra formal de liberdade não pode ser entendida sem a imprescindível

igualdade, sob pena de criarem-se desigualdades inconciliáveis e danosas.

Existe uma tensão inelutável entre liberdade e igualdade pois levado às

últimas consequências, um princípio radical da liberdade oblitera a igualdade da

condição humana e, em contrapartida, um princípio da igualdade igualitária esmaga

Page 69: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

a autonomia pessoal.

A igualdade na aplicação do Direito continua a ser uma das dimensões

essenciais do princípio da igualdade que é constitucionalmente garantido na maioria

dos Estados democráticos de Direito.

O princípio da legalidade é um postulado de racionalidade e exige a aplicação

do princípio da universalidade a fim de se decantar o conceito da igualdade em

sentido material uma vez que a igualdade na maioria das vezes aplica-se aos

desiguais.

Decorre do conceito de igualdade jurídica ou formal o conceito de igualdade

material, real ou justa. E o conceito de igualdade justa abrange também a

igualdade fática, a igualdade em sua dimensão material, não somente a igualdade

jurídica e decorre do princípio da justiça social.

A igualdade material é inerente à ideia de igual dignidade social, e decorre de

uma política de justiça social, tendente a concretização das imposições

constitucionais e à efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, impondo a

compensação das desigualdades de oportunidades, inclusive com a violação do

Estado e demais entes privados por comportamentos omissivos. A igualdade social

consiste na igualdade efetiva, real, material, concreta, com conteúdo pleno.

O princípio da igualdade enceta o sentido positivo e negativo, entendido o

primeiro como tratamento igual de situações iguais, desigual de situações desiguais,

com aplicação da proporcionalidade e o segundo como a vedação de privilégios e de

discriminações.

O princípio da igualdade reconduz-se ainda à proibição geral de arbítrio,

assim entendido como aplicação da igualdade de modo a que indivíduos ou

situações iguais não são arbitrariamente tratados como desiguais.

O papel do Estado, através do aparelho da Administração Pública e de todos

os seus demais entes é justamente juridificar a igualdade formal e garantir a

igualdade material a todos os indivíduos, embora a superação das desigualdades

seja de difícil concretização.

O princípio da igualdade se destina a princípio para o Estado, à sua

Administração Pública, todos os órgãos, agentes e entidades públicas

personalizadas. Em relação ao Estado e à Administração Pública a igualdade

envolve uma limitação ao exercício de poderes discricionários, constrangendo a

Administração Pública à sua utilização uniforme em circunstâncias idênticas.

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Em relação aos particulares a vinculação de todos ao princípio da igualdade,

inclusive dos privados que executam funções e tarefas consideradas públicas, pode

redundar em negativa da própria liberdade e criar desigualdades inconciliáveis

dependendo da situação concreta.

1.2 OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE, RAZOABILIDADE E

PROIBIÇÃO DE EXCESSO

O princípio da proporcionalidade teve seu nascedouro no âmbito do direito

administrativo, no tema referente ao poder de polícia e seus limites, desde o século

XIX, mas somente teve reconhecimento doutrinário e jurisprudencial após a vigência

da Lei Fundamental da Alemanha de 1949.

Foi desenvolvido a partir do princípio do Estado de Direito e da vinculação das

leis e do próprio legislador aos direitos fundamentais. Na aplicação do princípio da

proporcionalidade assume relevância determinante a ponderação entre os fins e os

meios.

Para aferição do princípio da proporcionalidade, o operador do Direito deve

realizar três controles, aplicando-se três subprincípios: aplicação do subprincípio da

adequação ou conformação, ou seja, se a medida tomada pela autoridade

administrativa é suscetível de alcançar o objetivo pretendido; aplicação do princípio

da necessidade ou exigibilidade, isto é, se a medida é necessária e se nenhuma

medida menos gravosa seria capaz de alcançar os resultados; aplicação do

princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou racionalidade, consistente em

verificar se a medida é adequada e necessária e se há desproporção entre o meio e

o fim, consistindo em uma justa medida. Neste sentido, a falta de necessidade ou

de adequação traduz-se em arbítrio, a falta de racionalidade em excesso,

especialmente no agir administrativo.

A adequação ou conformação impõe que a medida adotada pela

Administração Pública para realização do interesse público seja apropriada do fim ou

fins subjacentes. Exige que o ato do poder público seja apto para e conforme os fins

justificativos da sua adoção em um controle da relação de adequação medida-fim.

Este controle é muito debatido relativamente aos poderes vinculados e

discricionários da Administração.

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A necessidade do ato administrativo também conhecida como exigibilidade ou

menor ingerência possível coloca em destaque a noção de que o administrado tem

direito à menor desvantagem possível. Exige-se sempre que para a obtenção de

determinados fins, se empregue os meios menos onerosos para os administrados.

Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito é entendida como justa

medida sendo que os meios e os fins são equacionados mediante um juízo de

ponderação com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não

desproporcionado em relação ao fim.

Os atos administrativos deverão ser adequados, necessários e razoáveis. Os

objetivos almejados pelo legislador ou pela Administração, assim como os meios

utilizados para tanto deverão ser admitidos e deverão ser adequados e necessários.

Impõe-se a existência de um nexo de pertinência entre os critérios da adequação e

da necessidade. É um princípio de hierarquia constitucional que encontra validade

para toda a atividade estatal, vinculando tanto o legislador, quanto a Administração.

O princípio da razoabilidade, por seu turno, percorreu longa trajetória no

direito anglo-saxão – notadamente nos Estados Unidos – e se perfila à experiência

alemã, que o vestiu com o figurino da argumentação romano-germânica e batizou-o

de princípio da proporcionalidade.

O princípio da razoabilidade pode ser definido como: mecanismo para

controlar a discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário

invalidar atos legislativos ou administrativos quando: (a) não haja adequação entre o

fim perseguido e o meio empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária,

havendo caminho alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a

um direito individual; (c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o

que se perde com a medida tem maior relevo do que aquilo que se ganha. O

princípio, com certeza, não liberta o juiz dos limites e possibilidades oferecidos pelo

ordenamento. Não é de voluntarismo que se trata. A razoabilidade, contudo, abre ao

Judiciário uma estratégia de ação construtiva para produzir o melhor resultado,

ainda quando não seja o único possível ou mesmo aquele que, de maneira mais

óbvia, resultaria da aplicação acrítica da lei.

Por este princípio o juiz tentava (e tenta) avaliar concretamente as dimensões

do comportamento razoável tendo em conta a situação de fato e a regra do

precedente.

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A Administração Pública deve ponderar os princípios e interesses, utilizando

sempre os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. O Estado e em última

análise a Administração Pública devem agir com moderação frente ao indivíduo em

face da necessidade de garantia da segurança jurídica.

Há ainda um terceiro princípio denominado de proibição do déficit ou excesso.

Este princípio é considerado como orientador e estruturante, a fim de se impor à

Administração Pública uma proteção mínima ou máxima, com respeito ao princípio

da proporcionalidade.

O princípio de proibição do excesso ou proporcionalidade em sentido amplo é

um princípio orientador de todo o ordenamento jurídico, consistindo em uma chave

de resolução dos problemas de direitos fundamentais.

O princípio da proibição de excesso surge como um princípio vocacionado

para resolver os eventuais conflitos entre direitos e interesses constitucionalmente

protegidos. A proibição de excesso deriva da noção de razoabilidade – rule of

reasonableness – com grande influência nos países da Commom Law. Há

atualmente uma nítida europeização do princípio da proibição de excesso através do

cruzamento de várias culturas jurídicas europeias.

O postulado da proibição de excesso proíbe a restrição excessiva de qualquer

direito fundamental, e nesse sentido a Administração Pública é vedado retirar

completamente a eficácia de um direito fundamental, não podendo adotar medidas

que venham a restringir excessivamente um direito fundamental, sejam quais forem

as razões que a motivem. A proibição de excesso funciona, assim, como um limite.

Quando uma escolha se oferece entre várias medidas apropriadas, é

conveniente utilizar a menos gravosa, e os encargos impostos não devem ser

excessivos em relação aos fins visados.

Nesse sentido, a Administração não pode deixar de pautar sua atuação pelo

princípio da proporcionalidade, mas também não pode se omitir ante a justificativa

da proporcionalidade. Pelo princípio da razoabilidade se atribui o sentido de

coerência lógica nas decisões administrativas, o sentido de adequação dos meios e

fins.

E na eventual colisão ou aplicação dos direitos fundamentais no caso

concreto teremos que recorrer invariavelmente ao princípio da proporcionalidade

ponderando os bens jurídicos em conflito, atentos, no entanto, à proibição de

excesso.

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1.3 PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA PROTEÇÃO DE

CONFIANÇA

O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar

autônoma e responsavelmente a sua vida, impondo-se a segurança jurídica como

condição da paz social, do primado da liberdade e da autonomia privada.

Por isso o princípio da segurança jurídica e também o princípio da proteção

de confiança são considerados como elementos constitutivos do Estado de direito e

estão intimamente associados, exigindo a confiabilidade, clareza, racionalidade e

transparência dos atos do Estado e da Administração Pública de modo que os

indivíduos tenham a garantia da segurança nas suas disposições privadas

(liberdade) e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos.

O princípio da proteção de confiança somente foi objeto de construção

dogmática, como princípio autônomo, após a 2ª Guerra Mundial, principalmente pela

Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Atualmente é

considerado como um princípio de direito fundamental e vincula todo o poder estatal,

não só o Poder Executivo e a Administração Pública, mas também os Poderes

Legislativo e Judiciário.

A proteção de confiança tem como destinatário o cidadão. Exige a proteção

da confiança do cidadão com o qual contou de forma a conservar estados de posse

uma vez obtidos e dirigem-se contra as modificações jurídicas posteriores.

O princípio da proteção de confiança está amparado nos princípios do estado

de direito, da segurança, da certeza jurídica, da lealdade e boa-fé dos

administrados, da certeza jurídica entre outros.

O princípio da proteção da confiança pode se opor, em alguns casos

concretos, ao princípio da legalidade que vincula a Administração, impondo-se

nessas hipóteses a ponderação dos princípios. E, dependendo dessas

circunstâncias, a proteção da confiança do cidadão deve prevalecer à própria

legalidade dos atos administrativos, eis que aquele deriva dos direitos fundamentais

individuais.

Em termos práticos, podemos observar a aplicação do princípio da proteção

de segurança aplicável ao direito administrativo em diversas situações concretas. A

título de exemplo poderíamos aplicar este princípio nas hipóteses da retratação do

Page 74: AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA

ato administrativo, da revogação do ato administrativo, da irretroatividade das leis

face aos atos administrativos (jurídicos) perfeitos, entre outros.

O Tribunal Constitucional Alemão classificou a retroatividade das leis no

sentido próprio e no sentido impróprio. A primeira – sentido próprio seria aquela

situação já definida em que a lei posterior gera efeitos retroativamente. A segunda

seria a situação nascida no passado, mas que produz efeitos ao longo do tempo e a

lei passa a regular a situação a partir de sua vigência.

O princípio da segurança jurídica e da proteção de confiança em relação aos

atos da Administração Pública apontam para a ideia de força de caso decidido dos

atos administrativos. O ato administrativo, nesse sentido, goza de uma tendencial

imutabilidade que se traduz na autovinculação da Administração e na

irrevogabilidade do ato administrativo a fim de salvaguardar os interesses dos

administrados destinatários do ato.

1.4 PRINCÍPIOS DA EFICIÊNCIA E O DIREITO À BOA-ADMINISTRAÇÃO

A eficiência tornou-se uma das principais metas a ser atingida pela

Administração Pública das mais diversas nações. O dever da boa-administração

confunde-se com o princípio da eficiência e ambos decorrem do princípio da

prossecução do interesse público.

A eficiência administrativa liga-se à ideia de melhor produtividade dos

resultados com o menor custo possível, de forma ágil e precisa. Este ideal erigido a

princípio foi reforçado pelo conceito de globalização, uma vez que o Estado deve

prestar serviços com eficiência sócio econômica, para atender a sociedades cada

vez mais demandantes e solidarizadas pela democracia.

Há autores que apontam que a busca da eficiência é a meta mais importante

do setor público futuro, face à crescente ideologia de que todo serviço prestado pelo

Estado é sempre custoso e ineficiente e o Mercado é sempre melhor. O princípio da

eficiência também se correlaciona à ideia de bom andamento, no sentido de que a

Administração Pública deve possuir boas condições de funcionamento.

A boa administração é um dever jurídico que se impõe à Administração

Pública decorrente dos princípios gerais da atividade administrativa. O Estado

contemporâneo deve pautar sua atuação na eficiência administrativa, na

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racionalização e na desburocratização para o desempenho de suas funções

essenciais. É esse o papel que a sociedade espera do Estado.

Vale notar que para concretizar uma maior eficiência administrativa muitas

vezes se faz necessária a despolitização das decisões administrativas, que devem

ser tomadas por critérios predominantemente técnicos e com autonomia da vida

política, que notadamente é marcada por preferências e sujeições partidárias.

Na realidade da fase de pós-privatização dos bens e serviços públicos a

exigência da eficiência deve ser redobrada no sentido de que o Estado deve regular,

fiscalizar e impor aos entes privados que assumiram as tarefas públicas a qualidade

e excelência dos serviços prestados, com o menor custo possível aos administrados.

Com isso mostra-se inadmissível que os Estados e respectivas

Administrações modernas sejam ineficientes, burocráticos ou mesmo que se

desviem da juridicidade, pela prática de vícios e atos ilícitos.

Em um ambiente globalizado, altamente competitivo, marcado pela tônica da

economia de mercado e da concorrência o Estado que se mantiver alheio a estes

princípios e for ineficiente, burocrático e corrupto acarretará graves consequências a

seus administrados e gerará um perpétuo subdesenvolvimento de seus povos.

1.5 PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA OU DA PUBLICIDADE

O princípio da transparência, também conhecido como princípio da

publicidade traz em seu bojo a proibição do segredo dos atos da Administração

Pública, como regra e também de todos os atos típicos praticados pelos Poderes

Legislativo e Judiciário. O secreto, invisível, opaco, reinante em Administrações

Públicas de épocas não tão remotas, em regimes autoritários e totalitários e ainda

presente em alguns países mostra-se frontalmente contrário à ideia de democracia e

juridicidade.

A justificação do princípio da publicidade é simples: o princípio do Estado de

direito democrático exige o conhecimento, por todos, dos atos do próprio Estado e

da Administração Pública e proíbe decisões e atos administrativos secretos.

O Estado democrático de Direito, guardião da Constituição e garantidor dos

direitos fundamentais, não mais dá guarida a qualquer tipo de segredo e opacidade

da Administração. O segredo deve ser adotado apenas como exceção, em questões

de segurança de Estado, moeda, política cambial, investigações policiais, dados

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privados dos particulares e alguns outros tópicos restritos e expressamente previstos

expressamente no texto constitucional.

A publicidade (ou máxima transparência) é um dos principais requisitos para

que seja efetivada a garantia dos direitos fundamentais dos administrados. A

publicidade e transparência dos atos da Administração deve ser a regra geral, o

norte a ser perseguido pelo Estado. A Administração Pública deve pautar sua

conduta de modo a nada ocultar, suscitando a participação fiscalizatória da

cidadania, na certeza de que, salvo raras exceções constitucionais, tudo deve vir a

público.

No conceito de publicação se encerra a divulgação oficial do ato para

conhecimento público e início de seus efeitos externos. Daí porque as leis, atos e

contratos administrativos só produzem consequências jurídicas e adquirem validade

universal após a publicidade dos mesmos.

A publicidade não é considerada propriamente como um elemento formador

do ato, mas um requisito de eficácia e moralidade. O princípio da publicidade ou

transparência dos atos e contratos da Administração Pública visa também a propiciar

o conhecimento geral dos mesmos e controle pelos interessados diretos e pelo povo

em geral.

O segredo foi mantido em vários países e só foi abolido, como regra geral,

recentemente. Isto está a demonstrar que o acatamento ao princípio da

transparência denota a conquista da ideia democracia com antítese da opacidade

decisória.