as novas tendÊncias do direito administrativo, sua
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ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
VIVIANE ALONSO ALKIMIM
AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE E AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E UM BREVE PANORAMA SOBRE O
PAPEL REGULADOR DO ESTADO
Rio de Janeiro 2012
ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
VIVIANE ALONSO ALKIMIM
AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE E AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E UM BREVE PANORAMA SOBRE O
PAPEL REGULADOR DO ESTADO
Rio de Janeiro 2012
VIVIANE ALONSO ALKIMIM
AS NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE E AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E UM BREVE PANORAMA SOBRE O PAPEL REGULADOR DO ESTADO
Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia/CAEPE.
Orientador: CMG RM1 Guilherme Sandoval Góes
Rio de Janeiro 2012
C2012 ESG Este trabalho, nos termos de legislação que resguarda os direitos autorais, é considerado propriedade da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG). É permitido a transcrição parcial de textos do trabalho, ou mencioná-los, para comentários e citações, desde que sem propósitos comerciais e que seja feita a referência bibliográfica completa. Os conceitos expressos neste trabalho são de responsabilidade do autor e não expressam qualquer orientação institucional da ESG _________________________________
Biblioteca General Cordeiro de Farias
Alkimim, Viviane Alonso As Novas Tendências do Direito Administrativo, sua Vinculação à Juridicidade e aos Direitos Fundamentais e um Breve Panorama sobre o Papel Regulador do Estado/Juíza de Direito do TJ/RJ, Mestre Viviane Alonso Alkimim. Rio de Janeiro: ESG, 2012. 75 fl.
Orientador: CMG RM1 Guilherme Sandoval Góes Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE), 2012. 1. Novas Tendências e Transformações do Direito Administrativo. 2. Vinculação à Juridicidade e aos Direitos Fundamentais. 3. Papel Regulador do Estado. 4. Agências Reguladoras. I.Título.
À minha família que durante o período
de formação contribuiu com amor,
incentivos e ensinamentos. A minha
gratidão, em especial aos meus filhos
e marido pela compreensão, como
resposta aos momentos de minhas
ausências e omissões, em dedicação
às atividades da ESG.
AGRADECIMENTOS
A todos que estimo e admiro.
A todos que têm por mim apreço.
Ao meu orientador, CMG RM1 Guilherme Sandoval Góes, pelas orientações
pertinentes, perspicazes e objetivas na elaboração deste trabalho e aos
ensinamentos que me foram transmitidos.
“O futuro dependerá daquilo que fazemos no presente.”
Mahatma Gandhi
“O Estado existe para realizar o que é útil. O indivíduo para realizar o que é belo.”
Oscar Wilde
RESUMO
A presente monografia, sem pretensões de originalidade, se destina à análise de algumas mutações vivenciadas pelo direito administrativo e pela Administração Pública, especificamente o surgimento do fenômeno da regulação pelo Estado de algumas atividades econômicas desenvolvidas pelos entes privados, sendo estas consideradas de interesse público. Pretende-se dissertar sobre as consequências que a maior intervenção estatal, através da regulação da atividade privada, acarreta aos administrados, titulares de direitos fundamentais e ao próprio ramo da atividade econômica regulada. Considerando estes novos fenômenos de mutação do direito administrativo e do próprio Estado, ante a ordem econômica e social que surgiu nas últimas décadas do século XX, fenômeno conhecido como neoliberalismo, devemos estar atentos e não nos esquecer que o Estado e todos os demais os entes privados estão vinculados aos direitos fundamentais. Também se mantém presente a noção da constitucionalização de todos os ramos do direito e também do direito administrativo, com a observância de princípios publicistas e regras de ordem pública, mesmo em ramos do direito considerado privado. Por fim, devemos encarar que o direito administrativo e a Administração Pública se mantêm vinculados à juridicidade de uma forma ampla, assim entendida como aos direitos fundamentais, princípios e às normas insculpidas na Constituição, bem como a toda legislação infraconstitucional vigente. O tema apesar de já ter sido amplamente debatido pela doutrina estrangeira e nacional ainda carece de novos estudos e análise, face ao recuo do referido fenômeno conhecido como neoliberalismo no Brasil, bem como redução das privatizações de setores e empresas estatais. Palavras chave: Novas Tendências e Transformações do Direito Administrativo. Vinculação à Juridicidade e aos Direitos Fundamentais. Papel Regulador do Estado. Agências Reguladoras.
ABSTRACT
This monograph, with no pretensions to originality, is intended for analysis of some mutations experienced by administrative law and public administration, specifically the emergence of the phenomenon of some state regulation of economic activities by private entities, particularly the roles considered of public interest and state grants to private entities. It is intended to discuss about the consequences of state intervention in regulated economic activities and their impacts to the citizens, and holders of fundamental rights. Considering these new phenomenon of mutation of administrative law and the state itself, against the economic and social order that has emerged in the last decades of the twentieth century, a phenomenon known as neoliberalism, we must be vigilant and not forget that the state and all the other private entities are tied to the fundamental rights. Also keep in mind the notion of constitutionalization of all branches of law and also of administrative law, with the observance of publicist principles and rules of public order, even in areas of law that are considered private. Finally, we must assume that the administrative law and the public administration remain bound to the jurisdicity in a general way, as well as to the fundamental rights, principles and standards declared in the Constitution, and also to the constitutional legislation in force. Even though this subject has already been widely debated by national and foreign doctrine , it still requires further research and analysis, due to decline of the phenomenon known as neoliberalism in Brazil, as well as the reduction of privatization of state enterprises and sectors. Keywords: New Trends and Transformations of Administrative Law. Linking the legality and Fundamental Rights. Regulatory role of the state. Regulatory Agencies.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................ 09 2 O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO ADMINISTRATIVO.................................................................................................... 13 2.1 O ESTADO LIBERAL, DIREITO ADMINISTRATIVO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA................................................................................................................... 17 2.2 O ESTADO SOCIAL, DIREITO ADMINISTRATIVO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA................................................................................................................... 19 2.3 O ESTADO NEOLIBERAL, O DIREITO ADMINISTRATIVO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.................................................................................... 21 3 A VISÃO CLÁSSICA DO DIREITO ADMINISTRATIVO................................ 26 3.1 A NOVA DIMENSÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO.................................. 27 4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS, DIREITOS FUNDAMENTAIS, JURIDICIDADE E O DIREITO ADMINISTRATIVO................................................... 30 4.1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.................................................................................... 31 4.2 VINCULAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E AOS DEMAIS PRINCÍPIOS JURÍDICOS.................................. 35 4.3 O NOVO ENFOQUE DA VINCULAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PUBLICA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE: A VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE........................ 38 5 AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO ADMINISTRATIVO......................... 41 5.1 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DESCENTRALIZADA E O FENÔMENO DA FRAGMENTAÇÃO ADMINISTRATIVA: REALIDADE INEVITÁVEL.......................... 43 5.2 A FUNÇÃO REGULADORA DO ESTADO...................................................... 45 5.3 AS AGÊNCIAS REGULADORAS INDEPENDENTES.................................... 49
6 CONCLUSÃO................................................................................................. 57
REFERÊNCIAS.............................................................................................. 60
ANEXO A - 1 ALGUNS PRINCÍPIOS ORIENTADORES DO NOVO DIREITO ADMINISTRATIVO ................................................................................................... 65
1 INTRODUÇÃO
Vivemos em um momento da evolução sociológica e dos Estados, em que
o direito administrativo se depara com uma fase de profunda e progressiva revisão e
inovação teórica e dogmática. Estas novas transformações do direito administrativo
decorrem do novo enfoque que os direitos fundamentais tomaram, da
constitucionalização do Direito, ou mesmo pelo advento e impacto de uma nova
ordem jurídica internacional.
Estamos diante de uma era de grandes mudanças em todo o Direito, e
também no direito administrativo, objeto de nosso estudo. O direito administrativo
passou anos alheio às mudanças da sociedade e do próprio Estado e era encarado
tão somente como o Direito da Administração Pública, ou melhor, Direito das
garantias da Administração Pública.
Tal fato chegou a ser destacado por autores como Walter Jellinek que fez
assertivas no sentido de que “o Direito Constitucional passa, mas o Direito
Administrativo permanece”1 ou mesmo por outros doutrinadores2 quando proclamou,
no mesmo sentido, que o “direito constitucional passa, direito administrativo
subsiste”3.
No entanto, uma reflexão sumária sobre a evolução do Estado, e o
arcabouço jurídico do direito administrativo e da estrutura da Administração Pública
herdados dos séculos XIX e XX nos conduz à conclusão de que vivemos em uma
época de rápidas e grandes transformações, que somente recentemente se refletiu
neste ramo do Direito.
Surgem bem visíveis múltiplos sinais de profundas transformações de
intensidade e das modalidades de intervenção pública, bem como das “soluções
institucionais adotadas para a realização dos interesses públicos”4.
1 JELLINEK, Jorge. Compendio de la Teoría General del Estado. Tradução por G. Garcia Mainez.
México: editora Manuel de Nucambi, 1936, p. 85-86. 2 QUADROS, Fausto de. A Nova Dimensão do Direito Administrativo, O Direito Administrativo
português na perspectiva comunitária. Coimbra: Almedina, 2001, p. 52. 3 MAURER, Hartmut. Direito Administrativo Geral. Allgemeines Verwaltungsrecht. Tradução Luís
Afonso Heck. São Paulo: Manole, 2006, 14ª ed., p. 13. 4 GONÇALVES, Pedro. Entidades Privadas com Poderes Públicos. Coimbra: Almedina, 2005, p.
13. O autor lista três momentos essenciais desse profundo processo de transformação: “i) a cooperação mais ou menos sistemática e a conjugação ordenada dos papéis de actores públicos e privados no desenvolvimento das tradicionais finalidades do Estado Social e Serviço Público; ii) sob o mote de uma ‘modernização administrativa’, um complexo processo de ‘empresarialização’ que, por vezes, passa pela ‘privatização das formas organizativas da Administração Pública’; iii) a promoção
O papel do Estado vem sendo duramente questionado com o advento do
chamado Estado pós-social5, pós-moderno ou neoliberal ante a crise do modelo de
Estado Social. O mundo globalizado impôs um ritmo de primazia da economia e do
poder do mercado, que, no entanto, precisa ser regulado. O novo liberalismo ou
neoliberalismo veio revitalizar o papel do capital, das liberdades individuais, do
direito de propriedade, da liberdade de empresa, eliminando os modelos do Estado
social.
Por outro lado, é quase impossível atualmente dissociar o direito
administrativo da Economia. Se antes o Direito era encarado como uma ciência
autônoma, quase que estéril, com poucos intercâmbios com as demais áreas da
ciência, hoje não podemos mais ver o Direito dessa forma.
O cenário econômico e financeiro globalizado tomou uma dimensão vital
para as decisões políticas estatais, influenciando sobremaneira as mesmas e
inclusive as decisões da Administração Pública em um Estado que tende a ser cada
vez mais reducionista. É inegável a constatação de um Estado cada vez mais
reduzido, sem participação ativa na economia e na prestação dos serviços públicos
e sociais, mas dotado com funções diferentes, de fomentar, regular e coordenar as
atividades econômica e sociais.
A conjugação da realidade dos déficits dos orçamentos públicos com a
noção de que o setor privado é sempre mais eficiente e detém conhecimentos e
capacidades (empresariais, científicas e tecnológicas) que o Estado não dispõe
conduziu a um processo de mudanças na Administração Pública e no direito
administrativo, com um irreversível processo de privatização.
Os papéis e responsabilidades do Estado e da iniciativa privada foram
reordenados, havendo uma forte ingerência do setor privado para a implementação
do bem comum, com o domínio da figura central do Mercado. O Estado assumiu um
novo papel regulador das atividades, onde funções e serviços de interesse público e
social foram transferidos aos entes privados, passando a agir em parceria com os
privados para implementação de sua missão constitucional.
de mecanismos de envolvimento e de participação de particulares ‘interessados’ na gestão de um largo leque de incumbências públicas”. 5 WOLFE, Joel. State and Ideology in Britain: mrs. Thatcher’s privatization programme. London:
Political Studies, volume XXXIX, n. 2, 1991, p.245-247. Conforme o autor: “Privatization implements the neo-liberal formula for strengthening public authority by diminishing state accountability, reforming institutional structures in order to depolititicize and limit the influence of vested interests by market controls”.
Com a ideia de prestigiar a liberdade econômica e estabelecer um
equilíbrio entre autoridade e liberdade, foi devolvida a iniciativa econômica ao
administrado, reservando-se ao Estado as tarefas de incentivar e subsidiar a
iniciativa privada e também fiscalizá-la e regulá-la.
E neste cenário se apresentam as transformações no moderno direito
administrativo que decorrem da mudança da própria sociedade e do Estado em que
estamos inseridos, e devem sempre ser interpretadas em cotejo com o
redimensionamento do papel da Constituição e dos direitos fundamentais.
Nesse quadro de mutações, devemos aprofundar as vinculações do
direito administrativo aos direitos fundamentais como forma de dar primazia à função
subjetivista e garantística dos administrados e não mais apenas do Estado e da
Administração Pública.
O ponto crucial do Direito Administrativo é revisar categorias, ante a
pressão que vem sofrendo pelo setor econômico e pelos mercados globais no intuito
de superar o dilema entre o direito administrativo remanescente dos séculos XIX
e XX, pautado pela dominância das políticas centradas no governo, com cariz
autoritário e assimétrico e o novo direito administrativo voltado para os indivíduos e
para um verdadeiro Estado Democrático.
Nessa altura, não se mostra mais aceitável o anacrônico Direito
Administrativo arbitrário, imediatista e unilateral, que não pauta sua atuação nos
princípios constitucionais estruturantes e nos direitos fundamentais. Portanto, o
Direito Administrativo deve ser reescrito à luz de uma nova teoria do Estado,
comprometida com o equilíbrio entre as demandas urgentes e as de longo prazo da
sociedade a que serve e, sobretudo, com o primado dos direitos fundamentais.
O presente trabalho parte de uma perspectiva histórica do Estado e visa
traçar um panorama atual do direito administrativo e da Administração Pública, em
um mundo globalizado. Pretende apresentar uma natureza exegética sobre as
transformações do direito administrativo, dissertando o próprio fenômeno e suas
características concretas a fim de identificá-lo e descrevê-lo.
E uma das grandes transformações que o direito administrativo vem
sofrendo e serão abordadas e dissertadas no presente trabalho, de forma bastante
sucinta são:
1) Constitucionalização do direito: constitucionalização do direito e em
consequência do direito administrativo, com a mudança de paradigmas e a
preponderância dos princípios publicistas, sopesando as antigas exorbitâncias do
poder público, com nova leitura, enfoque e vinculação direta no texto constitucional.
2) Primado dos direitos fundamentais: desenvolvimento nas relações da
Administração do primado dos direitos fundamentais, avultando o princípio da
dignidade da pessoa humana na definição do conteúdo e de alcance dos demais
princípios. Surgimento de um novo papel do cidadão, que não é mais encarado
como um mero administrado passivo, passando a ser protagonista das políticas
públicas e da Administração, embora continue vulnerável frente ao poder do Estado.
3) Vinculação à juridicidade: a Administração Pública passa a ser
vinculada ao princípio da juridicidade em sentido amplo, sem que se aceite uma
exacerbada vinculação à lei, de modo que ocorre a mitigação do tradicional princípio
da legalidade. Nesta seara, se admite outras fontes vinculativas do direito
administrativo, como, por exemplo, o direito constitucional e até o direito
internacional.
4) Fortalecimento da atividade regulatória estatal, através da criação de
agências reguladoras independentes: o direito administrativo aparece como direito
do Estado regulador e menos como o direito do Estado essencialmente prestador
(executor direto) dos serviços públicos ou universais. As agências reguladoras
tendem a ser independentes e constituídas segundo o modelo autárquico e são
manifestações dos fenômenos da descentralização e fragmentação da
Administração Pública, ante a necessidade da intervenção e controle do Estado na
economia.
1 O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO
ADMINISTRATIVO
O direito administrativo teve origem entre a Revolução Francesa de 17896
e o fim do Segundo Império (1870), sendo considerado, por alguns autores como
“fruto de um milagre”7. O processo histórico da criação do direito administrativo é
delimitado em seu nascedouro na “Loi du 28 do Pluviôse do Ano VIII”, editada em
França em 1800, que organizou e limitou externamente a Administração Pública8 e
deu, pela primeira vez, à Administração Pública francesa uma organização
juridicamente garantida e exteriormente obrigatória.
Esta lei simbolizou a superação da estrutura de poder do antigo regime,
fundada na vontade do soberano e não na vontade do povo. A mesma lei que
organizou a estrutura da burocracia estatal definiu e controlou seu poder agora
subordinado a vontade heterônoma da lei9. Daí se conclui que dos processos
revolucionários franceses surgiram o direito administrativo acarretando uma
completa ruptura com o antigo regime absolutista.
A autonomia do direito administrativo é associada à instauração do
liberalismo que veio subordinar a ação do Estado aos direitos e liberdades
individuais. Limitaram-se os poderes administrativos do Estado ao conformá-los à
legalidade, em prol do administrado.
A origem francesa do direito administrativo se baseou em “um erro
histórico e numa contradição estrutural face ao princípio da separação de
poderes”10, uma vez que:
6 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública, O Sentido da Vinculação Administrativa à
Juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003, p. 810. 7 WEIL, Prosper. Le Droit Administratif. Paris: Presses Universitaires de France, 1964, p. 03-ss.
Segundo o autor: “ A própria existência de um direito administrativo é em alguma medida fruto de um milagre. O direito que rege a atividade dos particulares é imposto a estes de fora e o respeito pelos direitos e obrigações que ele comporta encontra-se colocado sob a autoridade e a sanção de um poder exterior e superior: o do Estado. Mas causa admiração que o próprio Estado se considere ligado (vinculado) pelo direito. [...] Não esqueçamos, aliás, as lições da história: a conquista do Estado pelo direito é relativamente recente e não está ainda terminada por toda a parte. [...] Fruto de um milagre, o direito administrativo só subsiste, de resto por um prodígio a cada dia renovado. [...] Para que o milagre se realize e se prolongue, devem ser preenchidas diversas condições que dependem da forma do Estado, do prestígio do direito e dos juízes, do espírito do tempo”. 8 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, p. 14. 9 BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo, Direitos Fundamentais,
Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 10. 10
MONTESQUIEU, Charles Luis de Secondat. Do Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret. A tripartição de poderes remonta da formulação clássica dada pelo referido autor: “... Encontramos no
“O Direito Administrativo nasceu ao arrepio do princípio da separação de poderes, sendo o Direito das prerrogativas de autoridade e não das garantias dos administrados”
11.
Desta forma, o direito administrativo era considerado com o direito do
poder público em suas relações constantes com os particulares.
No que concerne ao direito anglo-saxão, não houve grande receptividade
ao conceito de autonomia do direito administrativo. O direito administrativo
identificou-se, desde seu nascedouro, com o “regime francês de dupla jurisdição –
que interditava aos tribunais comuns o controle da Administração” 12. Nesse sentido,
a dicotomia da jurisdição administrativa era incompatível com o princípio da
supremacia do Judiciário, um dos pilares da “common Law” e da “rule of Law”.
Nos Estados Unidos o direito administrativo formou-se casuisticamente,
no final do século XIX ante a progressiva presença do controle administrativo sobre
as atividades econômicas privadas.
Para a tradição europeia continental, a qual seguiram Portugal e
consequentemente o Brasil, o direito administrativo foi definido pela desigualdade
normativa, em que se conferia à Administração Pública posição de supremacia sobre
os direitos individuais, com o fim de perseguir o interesse geral. Existia aí uma
franca desigualdade e parcialidade do direito administrativo em favor da
Administração Pública, frente aos administrados.
Os tradicionais pilares do direito administrativo eram: o princípio da
supremacia do interesse público sobre o privado, que acarretaria privilégios de
natureza material em favor da Administração Pública; submissão total dos atos
administrativos à legalidade, supostamente produzida pelo Poder Legislativo;
intocabilidade do mérito administrativo, através da discricionariedade da
Administração Pública, seja pelo Poder Judiciário, seja pelo próprio cidadão
Estado três tipos de poder: a função legislativa, [...] a função de julgar, [...] a função executiva do Estado”. 11
OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 335-343. No mesmo sentido, o autor conclui que: “Em vez deste novo ramo do Direito ser a expressão normativa do legislador e da vontade do parlamento, tal como impunham os postulados de Rosseau e de Montesquieu, observa-se que foi a acção do Conseil d’Etat que gerou uma legalidade administrativa rebelde ao parlamento, alheia à lei e à supremacia do poder legislativo, confiando ao executivo, nos termos do sistema contencioso do administrador-juiz, a última palavra sobre o sentido autovinculativo de uma normatividade derrogatório do Direito Comum; ao contrário de uma visão garantística sobre a origem do Direito Administrativo, o sistema contencioso do administrador-juiz tem a sua gênese pautada pela preocupação de o executivo se subtrair aos tribunais judiciais, envolvendo a criação da ‘justiça administrativa’ uma verdadeira diminuição das garantias dos administrados”. 12
TÁCITO, Caio. Presença Norte-Americana no Direito Administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo n. 129, 1977, p. 23.
individualmente; Poder Executivo unitário, com a ideia central de subordinação
hierárquica entre os agentes políticos e a burocracia estatal.
Ainda hoje, o direito administrativo é definido como:
“conteúdo dos preceitos jurídicos (escritos e não escritos) que, de modo específico valem para a administração – a atividade administrativa, o procedimento administrativo e a organização administrativa”
13.
No que concerne à Administração Pública esta aparece hoje como uma
das formas de manifestação do poder estatal14. A Administração Pública é, em
nossos dias, um verdadeiro poder. Os órgãos administrativos têm o dever funcional
de optarem pelas medidas mais adequadas a persecução do interesse público
fixado pelo poder político.
Em termos conceituais é muito difícil traçar uma linha divisória entre
Governo e Administração Pública. A relação entre poder político e administração
pública se mostra bastante complexa, marcada, em geral, por uma relação de
dependência e subordinação hierárquica da administração ao poder político e ao
Governo15.
A política, enquanto atividade estatal tem o fim específico de definir o
interesse geral da coletividade, tendo como objeto traçar os rumos do destino desta
mesma coletividade, com natureza criadora. Já a Administração Pública tem como
objeto a satisfação regular e contínua das necessidades coletivas, com natureza
executiva no sentido de por em prática as orientações tomadas a nível político, com
caráter condicionado e secundário.
O papel da administração depende do grau de evolução da sociedade
onde se encontra inserida e de certa maneira, das peculiaridades de cada nação,
apesar do fenômeno da globalização. Atualmente nos deparamos com situações
distintas no que tange a relação da política com a administração. Teremos assim,
em um primeiro momento, a Administração Pública confundida com o próprio poder
político, totalmente submetida a este. Em um segundo momento, a Administração
13
MAURER, Hartmut. Direito Administrativo Geral ... p. 158. 14
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, 12. edição, p. 115. O autor conceitua poder como: “elemento essencial constitutivo do Estado [...] representa sumariamente aquela energia básica que anima a existência de uma comunidade humana num determinado território, conservando-a unida, coesa e solidária. Expõe ainda a doutrina da soberania popular, baseada nas idéias propostas por Hobbes e Rousseau, afirmando que a concepção de soberania popular [...] teve a máxima influência no desdobramento ulterior das idéias democráticas, nomeadamente no que diz respeito à progressiva universalização do sufrágio. 15
OTERO, Paulo. Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 403.
separa-se do poder político e a técnica e racionalidade das decisões administrativas
ganham força e importância. Em um terceiro momento vemos a administração
competindo com o poder político. Nesta fase, a administração tende a se comportar
como uma entidade independente e autônoma, dotada de pessoal técnico e
especializado que muitas vezes entra em conflito com as ordens emanadas pelo
poder político.
Embora a aplicação do poder16 nunca coincida perfeitamente com as
regras constitucionais, o sistema político de cada país, dependendo de sua forma de
organização política e jurídica, tende a influir diretamente na organização de sua
Administração.
A legitimidade política da decisão administrativa se baseia,
essencialmente, em um processo de sucessivas delegações de autoridade e
responsabilidade: do povo no parlamento, do parlamento no poder executivo e deste
último na estrutura burocrática hierarquizada. Ocorre, em tese, uma sucessiva
delegação da confiança que é depositada primordialmente pelo povo aos poderes
constituintes do Estado, e posteriormente aos representantes políticos deste poder.
Em geral, a Administração Pública mantém uma relação de dependência
com o poder político, que deve se guiar pelo interesse geral. Em última análise,
cabe ao poder político tomar as decisões gerais e de interesse público, que serão
aplicadas e executadas pela Administração Pública visando ao interesse público do
povo.
E o governo17, expressão primordial do poder político, orientador da
Administração Pública, deve ser responsável perante o Parlamento, politicamente e
perante o Poder Judiciário, juridicamente, como forma de controle de suas ações e
omissões.
16
DUVERGER, Maurice. Xeque-mate: análise comparativa dos sistemas políticos semi-presidenciais. Lisboa: Edições Rolim, 1979, p. 37. 17
ROSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Título III, Cap. I. São Paulo: Martin Claret, 2002, p.64. De acordo com o autor: “E que é o governo? Um corpo intermédio, estabelecido entre os vassalos e o soberano, para a mútua correspondência deles, encarregado da execução das leis e de manutenção da liberdade, tanto civil como política [...] Chamo, pois, governo, ou suprema administração, o exercício legítimo do poder executivo; e príncipe, ou magistrado, o homem ou corpo incumbido dela”.
2.1 O ESTADO LIBERAL, DIREITO ADMINISTRATIVO E A
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O Estado absoluto é conhecido como aquele em que “potestas
superiorem non recognoscens”18, ou seja, aquele que se coloca como a encarnação
mais perfeita da soberania e supremacia estatal onde o poder do Estado não
reconhece ninguém superior.
O poder absoluto do Estado e de seus governantes se fundava entre
outras, na teoria da razão do Estado, na qual pregava o “absolutismo do poder do
soberano, o qual não está obrigado a obedecer nem às leis jurídicas nem as leis
morais”19. O antigo regime existente no chamado Estado absolutista ou Estado de
Polícia encarava o administrado como mero súdito e coexistia em um ambiente de
irresponsabilidade do Estado e do monarca. Inexistia nessa época o conceito de
democracia ou de Estado de Direito.
No entanto, nos fins do século XVII a então incipiente burguesia passou
sistematicamente a se opor à figura do monarca e de seu aparato de funcionários,
exigindo a redução da atividade administrativa estatal e a total vinculação do poder
soberano e da Administração às leis.
As transformações e revoluções levadas a cabo dentro dos Estados,
principalmente os europeus, acabaram por formar a ideia de direitos fundamentais,
levando a uma unidade do Estado e de seu caráter corporativo. A “unidade,
organização conforme a constituição e a autolimitação do Estado frente ao
indivíduo”20.
Foram concebidos doutrinária e filosoficamente os ideais que
fundamentaram o axioma que o poder emanava do povo e não mais do monarca. O
poder político se despersonificou da figura do monarca, havendo uma consagração
das liberdades e garantias individuais mesmo frente ao Estado, com o surgimento do
princípio da separação de poderes do Estado.21
18
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, Diritto e Stato nel Pensiero di Emanuele Kant, tradução Alfredo Fait, Brasília: editora Universidade de Brasília, 1992, 2ª ed., p. 11. 19
Ibidem, 15. 20
JELLINEK, Jorge. Compendio de la Teoría General del Estado... p. 127-28. 21
MONTESQUIEU, Charles Luis de Secondat. Do Espírito das Leis. São Paulo: editora Martin Claret.
As Constituições promulgadas no decorrer do século XVIII e XIX aboliram
o fundamento do poder soberano, conduziram a uma limitação do poder político
pelos direitos fundamentais e garantiram a representação popular no processo
legislativo.
Historicamente o chamado Estado Liberal ou denominados por certa
doutrina como pré-moderno22 foi concebido tendo em vista um ambiente onde a
economia e a iniciativa privada podiam agir livremente. Este modelo estatal sempre
defendeu as ideias de um Estado mínimo, com pequeno corpo de funcionários
públicos, que deveria apenas garantir a segurança das relações privadas, sendo o
administrado encarado não mais como súdito e sim como cidadão.
As intervenções do Estado e em consequência da Administração Pública
nas liberdades individuais e nos direitos de propriedade foram drasticamente
reduzidas e disciplinadas por lei. Os postulados máximos do Estado de Direito
Liberal eram: separação de poderes, princípio da legalidade e direito à liberdade.
Havia uma forte limitação do poder político, com subordinação da Administração
Pública à lei e à vontade heterônoma do Poder Legislativo. Impôs-se à lógica da
separação dos Poderes do Estado, onde a Administração Pública apenas executava
as normas editadas pelo Parlamento, que exprimia a vontade geral, com vistas à
garantia dos direitos dos cidadãos.
O Estado liberal trouxe em seu bojo uma nova concepção de direito
administrativo em que se previa: formação de conjunto sistemático de preceitos
obrigatórios para autoridades administrativas, limitativos do poder; reconhecimento
de direitos de particulares ante a Administração; elaboração de uma doutrina de
todos os aspectos legais da atividade administrativa; elaboração de jurisprudência
vinculativa da Administração.
À Administração Pública restaria apenas a função executiva dos
comandos legais. É criado um ramo do direito próprio para a Administração, com
pouca ingerência do direito privado, em face da vinculação positiva à legalidade. O
Estado administração não pode, em tese, legislar e julgar, apesar de ser comum na
prática a Administração editar atos normativos e fazer julgamentos administrativos
(jurisdição administrativa).
22
BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo): a nova interpretação constitucional. ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 04.
Desta forma, o modelo de Administração Pública surgida com o Estado
liberal pode ser caracterizado, em traços gerais: por agir essencialmente através do
ato administrativo, por apresentar uma estrutura concentrada e centralizada.
Com o advento do Estado liberal ocorreu ainda a criação de um direito
processual administrativo, consagrando privilégios processuais em favor da
Administração. E esses privilégios da Fazenda Pública não se limitaram ao século
XIX, pois chegaram até o século XXI, face ao surgimento de um regime de direito
administrativo, com regras distintas do Direito Privado em prol do Estado. E o novo
direito administrativo se inseriu perfeitamente no contexto da visão liberal do mundo,
assente na separação entre Estado e a Sociedade, que visam a preservar os
conceitos de propriedade privada e liberdade.
Com o fim de sujeitar o Estado ao novo regime instituído da legalidade, e
proteger a esfera de liberdade dos indivíduos, invocou-se a obediência formal e
positiva à lei como um dos fundamentos do direito administrativo. Consagrado,
assim, estava o princípio da legalidade da Administração Pública.
O Estado Liberal também se baseou nas ideias da liberdade da
economia, onde a “mão invisível do mercado”23 é que comandaria a economia e
consequentemente a sociedade. Cabia a Administração Pública pouquíssimas
funções públicas, dentre elas a de garantia da segurança para que os indivíduos e o
mercado pudessem agir com liberdade e para proteção do patrimônio privado.
2.2 O ESTADO SOCIAL, DIREITO ADMINISTRATIVO E ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA
Ainda no final do século XIX surgiram problemas referentes à
industrialização e mecanização progressiva e avanço da tecnologia, com a fuga do
homem do campo para as cidades emergentes, acarretando uma aglomeração de
pessoas em cidades, empobrecimento de largos grupos populacionais, forte
concentração de renda e capitais, períodos de guerras e pós-guerras.
O momento histórico da primeira guerra mundial acarretou um grande
intervencionismo econômico estatal, principalmente na Europa continental, ante aos
ventos dos ideais socializantes. O advento da segunda guerra mundial acentuou
23
SMITH ,Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Martin Claret, 2000.
ainda mais a atividade estatal, com a onipresença do Estado nos mais variados
ramos da economia.
Este panorama acabou propiciando o advento do Estado do bem-estar
social, também chamado como Estado constitucional, welfare state, entre outros.
Neste modelo o Estado passa a assumir funções de um verdadeiro Estado
prestador, fornecendo serviços e produtos que a sociedade necessita, assumindo
determinadas atividades econômicas. Ressalte-se que a Constituição de Weimar,
de 1919 e outras Constituições como a do México, de 1917, estavam a garantir a
base jurídica desse novo modelo estatal.
No período do pós-guerra, com o fortalecimento deste Estado Social,
houve um enorme alargamento das funções e tarefas do Estado. Formou-se,
portanto, um Estado de grandes dimensões, intervencionista no domínio econômico,
com forte regulação e hipertrofia da atividade privada.
No novo modelo estatal concebido que era fortemente intervencionista, o
Estado Social ou também chamado moderno24, assumiu diretamente a
responsabilidade pela execução de um amplo programa de tarefas prestacionais
para fins de prossecução do bem-estar, marginalizando, por consequência, os
fenômenos de privatização da Administração Pública. O Estado do bem-estar
também se formou para conter e disciplinar os abusos da atividade privada,
sujeitando-os aos princípios do bem comum e da justiça social.
O Estado social passou a ser prestador de serviços e a intervir mais
fortemente na sociedade para eliminar conflitos e suprir necessidades da
coletividade, socializando-a. O poder de polícia do Estado, nessa altura, alcançou
praticamente “todas as formas de atividade humana”25. Houve um grande
fortalecimento dos direitos fundamentais, construindo-se teorias acerca de suas
dimensões.
No entanto, o Estado do “Welfare” acabou por se hipertrofiar, e em muitos
países a não respeitar os ditames democráticos, acarretando um grande aumento
das funções, das despesas e do tamanho do Estado, com o decorrente aumento na
carga tributária e criação de obstáculos ao chamado livre mercado capitalista, além
de muitos desvios de poder.
24
BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro ... p. 04/05. 25
TÁCITO, Caio. Perspectivas do Direito Administrativo no Próximo Milênio. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo n. 212, 1998, p. 02.
A Administração Pública nos países que chegaram a adotar o Estado do
bem-estar tomou uma proporção tentacular sobre a economia e a esfera da
sociedade civil e de cada indivíduo, o que acarretou o início do movimento de
liberalização da atividade estatal e discussão acerca de um novo modelo estatal, nas
últimas décadas do século XX.
2.3 O ESTADO NEOLIBERAL, O DIREITO ADMINISTRATIVO E
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O surgimento de sociedades contemporâneas sujeitas a riscos
globalizados e diversificados trouxe a lume questionamentos diversos dentre eles o
do papel, funções e financiamento do Estado. A crise do Estado do bem-estar, face
à sua hipertrofia e ineficiência que gerava aumento das despesas públicas com
déficits orçamentários permanentes e aumento progressivo da carga tributária
acabou acarretando o declínio do conceito e do modelo de Estado Social, pois “o
Welfare State, que deveria reformar o capitalismo, fracassou”26.
O crescimento da Administração Pública no Estado social agravou a
ineficiência dos serviços públicos, o aumento da burocracia estatal e o déficit
econômico, com a exorbitância da carga tributária. Ocorreu uma mudança do
Estado onipresente, interventor, quase que totalitário para um Estado mínimo,
“modesto” 27.
Autores28 enumeram diversos fatores externos aos Estados soberanos
capazes de explicar a crise e o declínio do modelo de Estado moderno, do bem-
estar, e o surgimento de um Estado pós-moderno tais como o crescimento dos
mercados internacionais e da economia globalizada, a explosão das comunicações,
a reavaliação da pessoa humana e de sua dignidade, a democratização e a
globalização, principalmente de cunho econômico-financeiro29/30. Os fatores
26
REICH, Norbert. Intervenção do Estado na Economia: reflexões sobre a pós-modernidade na teoria jurídica. Rio de Janeiro: Revista de Direito Público n. 94, 1990, p. 265. 27
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo ... p. 76. 28
MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, 3ª edição, p. 409. 29
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v.2, p. 290. O autor conclui que: “ o capitalismo e a democracia se encontram numa tensão – frequentemente negada pelas teorias liberais”. 30
BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial. São Paulo: Malheiros Editores, 3. ed., 2004, p.140-141. Para o autor “a globalização econômica coloca o capitalismo outra vez na
internos seriam a ineficiência, desperdício, morosidade, burocracia, corrupção, custo
excessivo para manutenção da máquina burocrática, gerador de uma crise
econômica.
O Estado perdeu o “charme redentor, passando-se a encarar com
ceticismo o seu potencial como instrumento do progresso e da transformação” 31. As
tendências das últimas décadas foram a desregulamentação, privatização e
liberalização.
Com o advento da era da informação, já em um panorama de
dissolução do conceito de Estado social, também chamado pós-moderno a
sociedade e o Estado se deparam com a multiplicação e facilitação do acesso ao
conhecimento e às fontes de informação. A democratização do conhecimento e o
incremento das comunicações provocaram uma profunda e dramática revolução na
sociedade pós-moderna. A sociedade se tornou cada vez mais pluralista,
globalizada e internacionalizada.
Este fenômeno desencadeado a nível mundial a partir das décadas de
80 e 90 do século XX caracteriza-se pela transnacionalização acelerada dos
mercados, dos capitais, da produção, das relações econômicas, do consumo, sem
limites territoriais.
A nova sociedade que surgia naquela altura passou a enfrentar riscos:
ambientais, que se verifica com a redução da camada de ozônio, superaquecimento
global e extermínio da fauna e flora planetária, ante o advento de uma crise
ecológica32 que se mostra insolucionável; econômicos, resultantes da volatilidade
dos capitais especulativos e da irresponsabilidade da gestão fiscal dos Estados;
culturais, que decorrem da homogeneização cultural indiscriminada e da revolução
das comunicações; de segurança, com a manutenção da cultura armamentista,
herança dos tempos da Guerra Fria, bem como pelo recrudescimento da violência a
nível global, que desponta com as guerras preventivas e sem justificativas plausíveis
e os consequentes ataques terroristas, dentre tantos outros riscos que poderíamos
exemplificar.
selva. Do estado de natureza ele sairá tão-somente pela artéria da globalização política se esta assumir feição democrática (...) o futuro que vai nascer se prende à instauração da globalização política, cujo dilema será, duma parte, a continuidade do modelo opressor; doutra, a eleição da via alternativa do bem comum, na esteira de uma democracia direta e global.”. 31
BARROSO, Luis Roberto. Agências Reguladoras. Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática: uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 161. 32
REICH, Norbert. Intervenção do Estado na Economia ... p. 281.
O próprio Estado chegou à conclusão de sua incapacidade e ineficiência
para prestar todos os novos serviços que a sociedade carece. Criou-se a
necessidade de se repensar a dimensão da máquina administrativa e os tipos de
tarefas e serviços a serem desenvolvidos pelo Estado, com a reforma do Estado e
da Administração Pública, diante dessa constatada crise.
O modelo do Estado social ou providência começou a ruir na década de
setenta do século XX, nos países ocidentais desenvolvidos que o implementaram,
originando um grande movimento de reforma do Estado e da Administração Publica.
O novo modelo33 imposto pelo sistema anglo-saxônico, que foi reforçado com a
queda dos países comunistas e socialistas, acabou por ser adotado pela grande
maioria dos países ante a percepção do fenômeno conhecido como globalização.
Podemos encontrar, portanto, os fundamentos do advento do Estado pós-social, ou
melhor, neoliberal.
Vale ressaltar que neste ambiente houve a imposição a nível quase que
globalizado das determinações oriundas do chamado “Consenso de Washington”.
Esta expressão foi cunhada pelo economista John Williamson, no fim da década de
80 do século XX para designar um conjunto de ideias em favor da economia de
mercado, sintetizadas na disciplina macroeconômica, na economia de mercado e na
abertura comercial. Ligadas ao neoliberalismo resultaram as diretrizes de:
fortalecimento dos mercados privados, desregulamentação da economia,
privatização das empresas estatais, liberalização dos mercados, livre comércio
internacional, redução da atuação do Estado, controle da inflação, redução do déficit
público e corte das despesas sociais. Adotado pelos governos norte-americano e
inglês na década de 80, este fenômeno se expandiu para a Europa continental e
posteriormente para os países periféricos, com o incentivo do FMI e Banco Mundial.
Desta forma, o Estado do Bem-estar que era considerado intervencionista
e prestador de serviços foi gradativamente substituído por outro modelo de gestão
de Estado, chamado Estado pós-social ou neoliberal, ante uma era denominada de
pós-moderna34.
33
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo ... p. 97. 34
MARQUES, Cláudia Lima. A crise científica do direito na pós-modernidade e seus reflexos na pesquisa, Porto Alegre: Cidadania e Justiça, n. 6, 1999: “Pós-modernidade é uma tentativa de descrever o grande ceticismo, o fim do racionalismo, o vazio teórico, a insegurança jurídica que se observam efetivamente na sociedade, no modelo de Estado, nas formas de economia, na ciência, nos princípios e nos valores de nossos povos nos dias atuais. Os pensadores europeus estão a
Com o advento do novo modelo estatal neoliberal, após o
estabelecimento da crise do Estado de “Welfare”, a administração profissionalizada e
amplamente presente na realidade estatal, foi gradativamente substituída por outro
modelo de gestão de Estado, que passou a ter uma função mais reguladora do que
prestadora dos serviços públicos.
Os Estados começaram a transferir para a iniciativa privada suas mais
diversas atribuições e competências, através de um grande processo de privatização
da atividade estatal, e começaram a adotar métodos de gestão privada e
empresarial em suas práticas administrativas.
De acordo com esta nova realidade, sucedeu-se a primazia e valorização
do mercado, outrora denominado como mão invisível35, ocorrendo uma larga
transferência ao setor privado dos mais diversos setores da atividade estatal. Outra
consequência desta nova realidade consistiu na substituição do tradicional modelo
hierárquico36 e desconcentrado de Administração Pública pelo modelo
descentralizado de agências, que podem abranger grandes e importantes áreas de
serviços públicos. Uma terceira consequência que surgiu deste modelo de gestão
administrativa do Estado é a função reguladora das atividades consideradas como
de interesse público. Ressalte-se que neste novo modelo estatal ocorre, via de
regra, uma grande redução dos quadros de funcionários públicos e um forte controle
político sobre os mesmos.
No novo cenário globalizado que surgiu, com a concepção de que o
mercado serve melhor ao interesse público do que o próprio Estado se visualiza
cada vez mais uma Administração minimalista, mas fortemente reguladora.
Os Estados começaram a transferir para a iniciativa privada suas
atribuições e competências, através de um grande processo de privatização da
atividade estatal, e passaram a adotar métodos de gestão privada e empresarial em
suas práticas administrativas, bem como aplicar os conceitos de direito privado em
suas relações jurídicas.
Nessa altura, evidenciou-se uma nítida inversão na política
intervencionista do Estado, com o retorno da iniciativa privada em áreas ocupadas
denominar este momento de rompimento (Umbruch), de fim de uma era e de início de algo novo, ainda não identificado”. 35
SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. 36
DUGUIT, León. Traité du Droit Constitutionnel. Paris, 1923, APUD MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros Editores, 1993, 18ª ed. p. 105.
antes pela gestão estatal. Essa política privatizadora se complementou com a
atribuição de diretrizes de política administrativa a agências reguladoras das
atividades transferidas aos entes privados.
Neste sentido, ocorreu uma verdadeira “fúria privatizadora” 37 que se
alastrou pela Administração Pública, devida à crise de identidade do moderno direito
administrativo e aos antigos excessos intervencionistas do Estado do bem-estar.
Entretanto, essa redefinição do papel do Estado, em lugar de reduzi-lo,
como poderia parecer em um primeiro momento, vem reforçar a necessidade de sua
existência e diante da mudança do foco da Administração afirma-se que a
intervenção administrativa não é hoje menor do que era antes da liberalização
econômica: ela é diferente.
Diante desse quadro nos deparamos com um Estado: regulador - o
Estado retira-se dos setores da economia onde antes atuava, mas passa a regulá-
los, mediante a fixação de regras, fiscalização do cumprimento das normas,
aplicação de sanções; propulsivo - age pela adoção de políticas públicas, sendo
escultor, animador e promotor da sociedade; reflexivo; incitador; mediador;
cooperativo: com o implemento das parcerias público-privadas; subsidiário, com
ampla utilização pelo Estado de institutos do direito privado.
Ressalte-se que neste novo modelo estatal ocorre, em consequência,
uma grande redução dos quadros de funcionários públicos e do tamanho e poder do
Estado, embora a sociedade ainda não tenha assistido a proclamada redução da
carga tributária.
O que se percebe é que, mesmo na era do chamado Estado neoliberal,
os déficits orçamentários dos Estados, as despesas públicas e a consequente carga
tributária permanecem em níveis insuportáveis. Ocorre que agora, o
administrado/usuário tem que arcar em duplicidade pelos serviços públicos, uma
para o ente privado que assumiu a função que antes era do Estado, e para o próprio
Estado, que regula tal atividade.
E se mostra questionável se o Estado pós-social, em uma fase de pós-
privatização consegue cumprir suficientemente sua missão constitucional de garantir
ao homem sua dignidade.38.
37
OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 304. 38
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, 7. ed., p. 249. A garantia da dignidade é descrita como “libertação da ‘angústia da existência’
3 A VISÃO CLÁSSICA DO DIREITO ADMINISTRATIVO
O surgimento do direito administrativo se identifica essencialmente com o
princípio da legalidade, que serviu como um meio de controle do arbítrio do poder
definiu e identificou as competências da Administração Pública, estatuindo seus
poderes.
Na concepção clássica39, afeta ao Estado liberal, a atividade
administrativa era autônoma em relação aos particulares, com clara distinção entre
as pessoas públicas e as pessoas privadas. A Administração Pública era dotada de
privilégios que lhe eram conferidos por lei para garantir a prossecução do interesse
publico. Existia um confronto com a autoridade do Estado e a liberdade dos
administrados, em uma tensão vacilante de agressividade e inércia da Administração
Pública.
De toda sorte, surgiu o direito administrativo no “crepúsculo do
absolutismo e sob o signo da imperatividade” 40 apresentando assimetrias
substantivas e adjetivas, colocando a Administração Pública em posição de
destaque, com prerrogativas e privilégios de um lado e particulares de outro.
O direito administrativo em seu conceito histórico revelava a centralidade
do poder executivo na definição de uma legalidade exclusiva e na construção de um
modelo que não se submetia ao controle judicial.
A amparar esse sistema imperialista criaram-se as figuras do fisco, do
poder de polícia, da discricionariedade, supremacia do interesse público,
prerrogativas da Administração, discricionariedade administrativa, intocabilidade do
mérito administrativo, entre outros atos da inegável superioridade estatal.
A assimetria permitiu a criação de prerrogativas em favor da própria
Administração Pública tais como o poder de polícia, o poder de tributação,
prerrogativas no processo administrativo, nos serviços públicos e até nos contratos
administrativos. Ocorre que a imperatividade da Administração Pública,
fundamentada inicialmente no poder de império e posteriormente no conceito
da pessoa mediante mecanismos de socialidade, dentre o quais se incluem a possibilidade de trabalho, emprego e qualificação profissional e garantia de condições existenciais mínimas”. 39
MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Mutações do Direito Público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 33. Conforme conceitua o autor: “Direito administrativo é um ramo do Direito Público que estuda o conjunto de princípios, de conceitos, de técnicas e de normas que regem as atividades jurídicas do Estado como gestor de interesses públicos, cujo efetivo atendimento lhe é cometido pela ordem jurídica para a segurança e em benefício dos administrados”. 40
Ibidem, p. 406.
genérico do interesse público, ao causar uma assimetria entre as partes, pode
excepcionar o princípio da igualdade, dependendo do caso concreto.
Observe-se que as principais e mais marcantes características do direito
administrativo, que teve seu nascedouro no direito europeu continental, em especial
em França, compõem um sistema normativo criado em favor da própria
Administração Pública e não em favor dos administrados. Nesse sentido já se
asseverou que as características da supremacia do interesse público, a
discricionariedade e a inquestionabilidade do mérito administrativo, além das
prerrogativas jurídicas da Administração são “tributárias deste pecado original
consistente no estigma da suspeita de parcialidade” 41.
3.1 A NOVA DIMENSÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO
A história bicentenária do direito administrativo se desdobra em fases
sucessivas e paralelas com o desenvolvimento político, econômico e social. Pode-
se distinguir uma nítida evolução conceitual desta disciplina jurídica desde seu
período de formação, nos primórdios do Estado liberal, ainda pouco desvencilhada
dos institutos da monarquia absolutista até a atual fase do Estado democrático de
Direito contemporâneo.
O direito administrativo submeteu-se progressivamente ao princípio da
legalidade, atendendo hodiernamente às demandas da juridicidade, em um conceito
mais amplo, com enfoque em todo um bloco de legalidade, aí incluído a
Constituição, direitos fundamentais, princípios e todas as demais normas do
“cosmos normativo” 42.
O direito administrativo nasceu como um direito do Estado enquanto
administrador passou a ser um direito do Estado e dos administrados, e tornou-se
hoje, com seu núcleo constitucional, um direito comum dos administrados face ao
Estado administrador. Vivencia esse ramo de direito em um momento de transição,
transformando-se de direito da Administração em Direito Administrativo.
Ocorre uma transmutação do foco da própria disciplina uma vez que dos
direitos dos cidadãos derivam os deveres do Estado e a missão da administração,
41
BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo ... p. 15. 42
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional ... p. 694.
que seriam as “lutas contra as imunidades do poder” 43, contra sua supremacia
incondicional e autoritarismo.
Cogita-se44 da incapacidade do sistema conceitual e principiológico do
direito administrativo em responder às atuais demandas da sociedade, sendo
insuficiente, esse ramo do direito de assegurar justiça e igualdade, dentre outros
princípios.
O direito administrativo se apresenta com um novo conceito e
abrangência e não se limita apenas a ser uma disciplina jurídica reguladora do
Estado, passando a ser um direito regulador de interesses múltiplos e
transindividuais frente ao próprio Estado e sua Administração Pública. Nesse
sentido, deve se pautar futuramente na: “participação democrática, pluralismo,
subsidiariedade, transnacionalização, sócio-capitalismo, fiscalidade competitiva,
despolitização, consensualidade e governabilidade” 45.
Ressalte-se, ainda que o direito público, e em especial o direito
administrativo, passaram por grandes mudanças no final do século XX e duas
dessas mudanças consistiram na privatização dos serviços e entes públicos, com a
implantação de um processo fiscalizatório e regulatório destes serviços e o
fortalecimento da associação entre a iniciativa privada e o Estado. O contínuo
processo da privatização das atividades estatais provocou o surgimento de um
intervencionismo jurídico-administrativo, nas mais diversas áreas, como, por
exemplo, no ordenamento territorial, no urbanismo, etc.
O direito administrativo, assim, não é mais o único direito regulador da
Administração Pública, pois esta se encontra vinculada a outras fontes e ramos do
Direito ou mesmo dos direitos fundamentais. Daí se depreende que a própria
essência do direito administrativo se alterou a fim de se adequar às transformações
da Administração Pública e do próprio Estado em mutação.
O novo direito administrativo deve ser antes de tudo um direito
administrativo de garantia, a fim de que o Estado garanta a prossecução e
43
ENTERRÍA, Eduardo García de. Las Luchas contra las Inmunidades del Poder. Madrid: Ediciones Civitas, 1974, p. 35. 44
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução... p.67. 45
MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. A Globalização e o Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo nº 226, 2001, p. 272-276. Para o autor o direito administrativo deve ser entendido com um: “direito do cidadão, entendido não apenas como uma referência ao Estado em que goze de direitos políticos convencionais, mas a qualquer Estado em que se encontre, vivendo, trabalhando ou recreando-se, gozando dos direitos humanos fundamentais, que lhe são inatos”
realização do interesse público, seja pelo próprio Estado, seja pelos privados, sendo
todos vinculados aos direitos fundamentais.
E estas mudanças estão a exigir a fortificação e modernização do Estado,
de seu aparelho prestador de serviços considerados essenciais e estratégicos, e no
caso dos serviços públicos privatizados, o reforço do papel regulatório e ordenador.
O Estado de garantia, através do direito administrativo de garantia está
comprometido com a satisfação do interesse público e da ordem, tendo o dever de
assegurar a realização das missões públicas que lhe foram confiadas, quando
prestadas pelos particulares ou pelo próprio Estado.
Os administrados, por sua vez, devem ter a cultura e consciência
necessárias para exigirem que o Estado se volte para a prossecução dos
verdadeiros interesses públicos. O próprio administrado, que é dura e
impiedosamente tributado, deve exigir a eficiência e modicidade dos serviços
públicos e fiscalizar, em uma atitude democrática, a atuação estatal, uma vez que é
o próprio administrado a razão da existência do Estado, da Administração Pública e
do próprio direito administrativo.
4 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS, DIREITOS FUNDAMENTAIS,
JURIDICIDADE E O DIREITO ADMINISTRATIVO
A idealização do Estado democrático de Direito levou o indivíduo para o
centro das atenções do próprio Estado, e, em consequência este passou a ser o
sujeito principal do direito administrativo. A nova posição do administrado-cidadão,
amparada pela nova percepção dos direitos fundamentais, demandou a mudança do
papel tradicional da Administração Pública46.
A Administração Pública constitucionalizada passou a ter uma nova
direção e fundamento de validade consistente no primado da dignidade da pessoa
humana. Desta feita, a Administração Pública vê-se compelida a abandonar o
modelo autoritário de gestão da coisa pública para se transformar em um centro de
gestão dos interesses dos administrados coletivamente e também individualmente
considerados.
A Administração Pública não pode mais ser um corpo contrário e em
permanente oposição aos interesses dos cidadãos, pois a eles deve servir. A
Administração Pública deve agir visando sempre o desenvolvimento das
potencialidades sociais.
Cada vez mais frequentemente se percebe a necessidade de colocar os
aparatos administrativos em uma nova dimensão que lhes ponha a serviço da
pessoa humana e sirva de fomentador e contribuinte para o desenvolvimento das
potencialidades sociais e individuais. Não é o administrado que serve a
Administração Pública e sim, justamente, o contrário.
As novas funções da Administração Pública devem ser vocacionadas para
o respeito e concretização dos direitos fundamentais. Os direitos dos administrados
que porventura venham a colidir com os poderes estatais devem ser sempre
ponderados47 de forma a garantir os direitos fundamentais dos primeiros,
resguardando-se o interesse público e o bem comum da coletividade.
46
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto Alegre: Editora Sérgio Fabris, 2002, p. 36-38. Registre-se, ademais, que os direitos fundamentais, segundo o autor, constituem também um instrumento de legitimação democrática. Assim, a Administração Pública orientada, material e formalmente, para o primado dos direitos fundamentais, supre, em grande medida, o problema de legitimação que acomete o fenômeno administrativo do mundo contemporâneo. 47
SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris editora, 2002.
Esse novo contexto, que atualmente nos parece óbvio, demandou anos
para ser percebido, sendo certo que ainda não foi cabalmente concretizado.
Conforme a lição de Robert Alexy48 princípios jurídicos encerram
mandados de otimização, direcionados a normas e que admitem concretização em
graus variados, conforme as circunstâncias fáticas e jurídicas.
E a nova Administração Pública deve estar finamente sintonizada com os
princípios jurídicos estruturantes e informadores do Estado democrático de Direito e
respeitar e concretizar os direitos fundamentais do corpo social.
4.1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO E DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
A ideia de Constituição como Lei fundamental de um Estado soberano e o
fenômeno do constitucionalismo surgiu no ambiente dos ideais iluministas49 e
racionalistas nos finais do século XVIII ao século XIX. O fenômeno do
constitucionalismo “traduz exatamente certa ideia de Direito, a ideia de Direito
liberal”50.
Desde o seu nascedouro até os dias atuais, com a realidade de um
Estado de direito pós-social, o sentido e concretização da Constituição alteraram-se
profundamente, alçando-a ao centro de um sistema jurídico estatal.
O fenômeno do neoconstitucionalimo surgiu após o advento da
Constituição Alemã (Lei Fundamental de Bonn), em 1949, após a fase do pós
Guerra. Esta Constituição trouxe em seu bojo, como principais fundamentos, o
respeito à dignidade da pessoa humana5152 e aos direitos fundamentais a qual a
48
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales, trad. por Ernesto Garzón Valdés, título original Theorie Der Grundrechte, Suhrkamp-Verlag. Madrid: Centro de Estúdios Políticos Y Constitucionales, 2002, p. 86. 49
KANT, Emmanuel. Que é o iluminismo?, 1784; MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. O Estado e os sistemas constitucionais. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, 7. ed., v.1, p. 85. 50
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, v. 2, p. 17. 51
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, 4. ed., p. 60. O autor define dignidade da pessoa humana como: “qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em
todo o ordenamento jurídico deve se subordinar deu-se início a uma nova fase do
constitucionalismo na Europa.
O fenômeno do neoconstitucionalismo encerrou uma nova tendência de
constitucionalização dos direitos com o advento de uma Lei Fundamental descritiva.
A Constituição passou a ser, assim, não apenas um sistema em si – com a sua
ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar, de interpretar e
subordinador de todos os demais ramos do Direito. A este fenômeno se deu o nome
de “virada de Copérnico” 53.
Deste modo, surgiu a concepção da Constituição como norma
fundamental do ordenamento jurídico, dotada de supremacia hierárquica sobre todas
as demais normas do sistema jurídico. Desta forma a Constituição:
“define o sistema de fontes formais de Direito, condicionando a validade e a inerente vinculatividade de todas as normas, funcionando como a ‘norma das normas’ ou a fonte de todas as fontes de Direito”
54.
A Constituição vigente funciona como pedra angular do sistema jurídico,
entretanto, mesmo as normas constitucionais formais têm que estar consoantes com
os princípios de justiça e da dignidade da pessoa humana.
O constitucionalismo moderno, a seu turno, surgiu da superação dos
regimes absolutistas e totalitários, ante a necessidade de se conter o próprio poder
do Estado. Esta necessidade se verificou ante a instrumentalização e proteção de
diversos direitos, que foram positivados nos textos constitucionais de diversos
Estados.
As Constituições contemporâneas elevaram o homem e a dignidade
humana no centro de todo o sistema jurídico estatal, irradiando do princípio da
dignidade humana todos os demais direitos fundamentais.
O Estado é o primeiro destinatário dos textos constitucionais, uma vez
que os mesmos foram concretizados para limitar o poder estatal. É inegável, e
inclusive está positivado em várias Constituições, que o Estado e a Administração
Pública estão diretamente vinculados aos direitos fundamentais.
comunhão com os demais seres humanos”. 52
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional... p. 225. O autor preceitua que o núcleo da ideia de dignidade da pessoa humana reside no: “princípio antrópico que acolhe a ideia pré-moderna e moderna da dignitas-hominis (Pico della Mirandola) ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual (plastes et fictor)”. 53
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, 3. ed., v. 4, p. 311. Também chamada de “virada kantiana” 54
OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 558.
O Estado constitucional, numa de suas mais expressivas dimensões
traduz-se como o “Estado das escolhas administrativas legítimas” 55, não se
admitindo o agir administrativo arbitrário, desvinculado da juridicidade e totalmente
discricionário.
A concepção do direito administrativo orientado e vinculado ao direito
constitucional e aos direitos fundamentais e princípios jurídicos é um processo lento,
não obstante já tenha se proclamado que o direito administrativo é o “direito
constitucional concretizado”56.
O posicionamento do direito administrativo dentro do sistema jurídico é o
de um ramo do direito público interno, ajustado à Constituição e não o contrário. A
Constituição e também os direitos fundamentais são o vértice do sistema normativo,
a qual está sujeito a Administração Pública e o direito administrativo.
Atualmente o direito administrativo está pautado de forma inelutável com
a presença do direito constitucional, dos direitos fundamentais e até com o Direito
Internacional. Este novo enfoque pluralista e democrático da Constituição nos
permite recortar um sistema constitucional centrado na distinção nuclear entre
regras e princípios57.
Nesse sentido Gomes Canotilho58 também traça uma distinção das
normas constitucionais instituidoras de princípios e de regras, também chamadas de
normas-disposição, que estabelecem normas diretas e específicas e normas-
princípios59 que estabelecem orientações gerais, “mandatos de otimização” 60 que
necessitam de concretização. Surge a necessidade de aprofundamento e garantia
de efetividade da Constituição dirigente com o implemento das tarefas do Estado e
incorporação de fins econômico-sociais positivamente vinculantes61.
55
FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 07. 56
MAURER, Hartmut. Direito Administrativo Geral ... p. 12. 57
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales ... p. 82. 58
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional ... p. 1160. 59
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2003, 5. ed., São Paulo, p. 141. 60
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales ...p. 86. 61
CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra editora, 2001, 2. ed., p. 169. Para o autor: “a lei fundamental aproxima-se dum plano, em que a realidade se assume como tarefa tendente à transformação do mundo ambiente que limita os cidadãos. Deste modo, a definição a nível constitucional, de tarefas econômicas e sociais do Estado, corresponde ao novo paradigma da constituição dirigente”.
Na esteira da atual teoria da Constituição, que visa assegurar a máxima
efetividade das normas integrantes do texto constitucional62, o direito
infraconstitucional, ou mesmo sua omissão, não podem impedir o implemento dos
mandamentos constitucionais e garantia dos direitos fundamentais, principalmente
no primado da dignidade da pessoa humana e na possibilidade do livre
desenvolvimento da pessoa humana e deve ser compreendido em uma “dimensão
sistemática”63.
O fenômeno da constitucionalização do Direito, desta forma, causou o
efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo se irradia, com força
normativa, para todo o sistema jurídico. A atuação da Administração Pública passa a
ser pautada por princípios e regras constitucionais consagradoras dos direitos
fundamentais.
A constitucionalização do direito administrativo alterou as relações entre
Administração Pública e administrado reformulando os paradigmas tradicionais.
Acarretou a redefinição da noção de supremacia do interesse público sobre o
privado, vinculação da Administração à Constituição e aos direitos fundamentais e
não apenas à lei ordinária, possibilidade de controle judicial do mérito administrativo.
Com o advento do novo fundamento de validade do direito administrativo
consistente em sua constitucionalização nos vemos diante de uma nova realidade
em que: a Constituição e não apenas as leis vinculam a Administração Pública à
juridicidade; o interesse público não depende apenas da interpretação e aplicação
pelo agente político ou pelo burocrata, passando a depender de juízos de
ponderação entre os direitos fundamentais e outros interesses constitucionais
garantidos, aplicando-se sempre o princípio da proporcionalidade; a própria
discricionariedade administrativa passa a ser balizada e controlada por princípios
constitucionais.
Uma das facetas da constitucionalização do direito administrativo consiste
a vinculação direta da Administração Pública e de todo os entes estatais aos direitos
62
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição ... p. 226-227. 63
OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 335. Para o autor: “todo o Direito só se pode compreender e explicar numa dimensão sistemática, registrando-se, todavia, que o sistema se caracteriza pela sua abertura, temporalidade e historicidade, sem prejuízo da intocabilidade do primado valorativo da dignidade da pessoa humana viva e concreta na ordenação axiológica e principiológica do sistema jurídico”
fundamentais e princípios, considerados como “‘standards’ juridicamente vinculantes
radicados nas exigências de justiça ou na ideia de direito”64.
Diante da época do chamado pós-positivismo, em um Estado pós-social
nos deparamos com novas reflexões sobre o Direito, sua função social e
interpretação – reconhecimento de valores, reaproximação entre Direito e Ética,
normatividade de princípios, também conhecida como “legalidade principialista”65,
centralidade dos direitos fundamentais, edificados no megaprincípio66 dignidade da
pessoa humana.
4.2 VINCULAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO AOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS E AOS DEMAIS PRINCÍPIOS JURÍDICOS
A constante e renovada mutação dos modelos de Estado acabou por
implementar no constitucionalismo contemporâneo o direito fulcrado em princípios
em cotejo com o tradicional direito ditado por regras, onde nos deparamos na
vinculação do Estado e da Administração Pública aos direitos fundamentais67.
Os direitos fundamentais foram concebidos como uma forma de garantia
dos direitos essenciais à existência do ser humano, como ser único, individualizado
e indivisível em face do Estado. Consistiram na concreção histórica do princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana. A construção teórica do conceito e
abrangência dos direitos fundamentais acarretou a constitucionalização68 destes
direitos nos mais diversos países.
Esta ideia primordial desde muito evoluiu e hoje nos deparamos com uma
grande ampliação, tanto a nível teórico quanto positivo-constitucional69, acerca do
64
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional ... p. . 1160. 65
OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 961. De acordo com o autor a “descoberta de qual seja o exacto padrão regulador da conduta administrativa pode bem tornar-se um milagre. Um milagre, aliás, que tem a particularidade de se encontrar nas mãos da própria Administração Pública”. 66
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Público ... p. 237. 67
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Título original Dritttwirkung Der Gemeinschaftsrechtlichen Grundfreiheiten, tradução Ingo Wolgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: editora Almedina, 2003, p. 65-67. 68
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição, título original: Die Normative kraft der Verfassung, tradução por Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 1991. O autor cita em sua célebre obra a discussão travada a partir dos conceitos sobre a eficácia da Constituição expostos por Ferdinand Lassalle, onde o primeiro sustenta a força normativa da Constituição que tem originariamente uma força vital e de eficácia não condicionada aos fatos e poderes políticos, constituindo o direito constitucional em uma ciência jurídica, que atua no plano do dever ser (Sollen). 69
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição ... p. 378.
conceito, abrangência e aplicação dos direitos fundamentais. Os direitos
fundamentais cresceram muito além de sua função tradicional de defesa da
liberdade e propriedade dos cidadãos. Na sociedade atual, o cidadão é
“dependente, em formas múltiplas, do Estado e de suas prestações”70.
No que concerne ao Estado e todas as demais entidades públicas e
órgãos da Administração, maiores dúvidas não restam que estão todos vinculados
aos direitos fundamentais71. Os direitos fundamentais passaram a representar um
sistema de valores objetivos para todos e não apenas frente ao Estado. Os direitos
fundamentais começaram a ter uma eficácia de irradiação para todo o ordenamento
jurídico, alcançando não somente as relações entre o particular e o Estado, mas
também as relações entre privados.
Desta forma o Estado, através de suas funções legislativa, administrativa,
executiva e jurisdicional, assim como através das entidades da Administração
Pública indireta, como as agências reguladoras independentes, por exemplo,
encontram-se sob a reserva de direitos, liberdades e garantias, ou seja, estão
vinculados diretamente e obrigados a respeitar e garantir os direitos fundamentais.
Pela visão tradicional a Administração Pública está vinculada sempre aos
ditames da lei, que por sua vez deve ser compatível com as normas constitucionais
para ter validade. Ocorre que muitas vezes a vinculação à lei é diminuída pelo
poder discricionário e pelo espaço de livre apreciação da administração. A
autoridade administrativa, também nessas hipóteses, estará vinculada aos
princípios72 gerais do direito, à Constituição e particularmente aos direitos
fundamentais.
A Administração Pública está, em regra, sujeita a vinculações jurídico-
públicas. A Administração Pública, mesmo quando atua no âmbito do direito privado
70
MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão ... p. 64. 71
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, 6. ed., p. 386-387. O autor observa que “os direitos fundamentais vinculam os órgãos administrativos em todas as suas formas e atividades (...). O que importa, neste contexto, é frisar a necessidade de os órgãos públicos observarem nas suas decisões os parâmetros contidos na ordem de valores da Constituição, especialmente dos direitos fundamentais, o que assume especial relevo na esfera da aplicação e interpretação de conceitos abertos e cláusulas gerais, assim como no exercício da atividade discricionária”. 72
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. São Paulo: Malheiros editores, 2008, 8. ed., p. 78-80. De acordo com o autor princípios jurídicos são: “normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”. Segundo este último autor os princípios “instituem um dever de adotar comportamentos necessários à realização de um estado de coisas”.
administrativo, está vinculada diretamente aos direitos fundamentais, especialmente
aos direitos à liberdade e ao princípio da igualdade. O direito administrativo deve se
vincular aos direitos fundamentais, no sentido de proporcionar um sistema
garantístico aos particulares, limitativo das prerrogativas da Administração.
O fato dos direitos fundamentais estabelecerem-se como pedra angular
de todo o ordenamento jurídico resulta o direito administrativo constitucional. Esse
novo direito administrativo encontra sua razão de ser na promoção dos direitos
fundamentais, assumindo posição garantística da dignidade da pessoa humana e do
livre desenvolvimento da personalidade humana.
A Administração Pública, e em última análise, o Estado, devem respeitar e
garantir o primado da dignidade da pessoa humana73 e os demais direitos
fundamentais. Qualquer ranço de autoritarismo do direito administrativo e
incompatibilidade com o sistema constitucional deve ser firmemente rejeitado. No
entanto, os direitos fundamentais, assim como os princípios jurídicos, encerram
conceitos amplos, muitas vezes vagos e indeterminados e com um alto grau de
abstração e não oferecem diretivas para a solução dos casos concretos74.
Outro ponto a ser destacado refere-se à cristalização dos princípios em
normas, sobretudo em normas constitucionais, que por sua vez, é uma realidade da
qual o direito não pode negar. Com o advento do pós-positivismo e do
constitucionalismo do final do século XX e início do século XXI, reconheceu-se a
normatividade dos princípios.
Deve-se, sobretudo, aos estudos de Ronald Dworkin, dos Estados Unidos
e Robert Alexy, jurista alemão, o reconhecimento desta teoria da normatividade dos
princípios.
A doutrina e a jurisprudência acabaram por reconhecer a existência
implícita, no bojo da Constituição, de princípios reitores do direito, inclusive do direito
administrativo, tais como o princípio da proporcionalidade, o princípio da ponderação
de interesses e o princípio da proteção de confiança, apesar de muitas Constituições
não prevê-los expressamente. A Constituição deve limitar-se ao estabelecimento de
73
OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 433. De acordo com o autor: “o respeito pela dignidade da pessoa humana e todos os demais princípios jurídicos fundamentais, enquanto decorrências normativas de uma ‘ideia de Direito’ centrada numa ordem axiológica fundada na prevalência da justiça e revelada pela ‘consciência jurídica geral’, não tem o seu fundamento na Constituição escrita”. 74
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição ... p. 149.
alguns poucos princípios fundamentais, cujo conteúdo específico mostre-se em
condições de ser desenvolvido.
Denota-se, por fim, que a aplicação dos princípios se dá,
predominantemente, mediante ponderação, em um processo dialético, sempre que
houve colisão entre dois ou mais princípios75.
4.3 O NOVO ENFOQUE DA VINCULAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE: A VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE
Historicamente podemos encontrar as raízes do princípio da legalidade
nos ideais do liberalismo e em seus principais pensadores, sendo que este princípio
é um produto direto da filosofia liberal. A juridicidade da Administração Pública surge
assim considerada como fruto do liberalismo.
Em sua concepção originária o princípio da legalidade expressa o
conceito da separação de poderes do Estado, onde o Parlamento legisla as normas
vinculativas da Administração. O princípio da legalidade é ainda um dos princípios
mais importantes aplicáveis ao Estado e a toda Administração Pública, uma vez que
tem o objetivo de limitar os poderes estatais que também estão obrigados ao Direito.
O direito administrativo é regido por uma série de princípios, sendo que o
mais importante é o princípio da legalidade da administração. Tradicionalmente este
princípio era concretizado através da primazia da lei e pela reserva da lei. A
primazia expressa a vinculação da Administração Pública às leis vigentes. A reserva
exige, para o agir administrativo, um fundamento e autorização legal.
A rigor, o princípio da legalidade é o princípio basilar que sustenta o agir
administrativo e todo o ordenamento jurídico administrativo, sendo que tal princípio
deve ser respeitado por todos e também pela Administração Pública.
O próprio Estado de Direito só o é em virtude da vinculação da
Administração Pública à lei, ou melhor, por princípio exige-se que a relação
Estado-cidadão seja regulada por leis e, com isso, inequívoca, calculável e
estavelmente.
75
BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos ... p. 22. Para o autor: “Princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam uma determinada direção a seguir. Ocorre que, em uma ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não só é possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético
Ocorre que se constata que há uma contradição na máxima da
supremacia do legislativo, com “uma debilitação ou um desmentir dessa supremacia
do legislativo face ao executivo” 76. Nesse mesmo sentido se constata uma
verdadeira erosão do mito liberal calcado no princípio da legalidade.
Acrescente-se a isso a grande politização das atividades realizadas pelo
Poder Executivo e pela Administração Pública, inclusive no que tange à sua
atividade legislativa, sendo este controlado principalmente pelo partido político que
se encontra no poder.
Percebe-se, mesmo nos países ditos democráticos, cada vez mais a
influência e poder dos partidos políticos, principalmente quando for o partido político
que forma o governo. A este fenômeno a doutrina tem denominado “Estado de
partidos”77 onde ocorre uma grande e desproporcional concentração de poder no
partido governamental, que controla por sua vez a concretização das normas
jurídicas.
Diante deste novo quadro a Administração Pública transmudou o sentido
da legalidade administrativa, no sentido que a flexibilizou e não mais se vincula ao
tradicional princípio da legalidade. Vivemos em uma realidade atual em que o mito
positivista da perfeição da lei, enquanto expressão racional e politicamente legítima
de um Estado legislativo-parlamentar foi desmistificado.
A falência da lei como limite da atividade administrativa e as pressões dos
diversos interesses sociais vêm levando a Administração Pública a agir sem
considerar estritamente os ditames legais, não sendo mais mera executora de
interesses públicos legalmente previstos.
A lei votada pelo poder Legislativo deixou ou talvez nunca tenha
expressado a vontade geral, passando a ser apenas a vontade de maiorias
parlamentares, e partidos políticos, controlados pelo poder Executivo, que vem
demonstrando primazia dentre os poderes do Estado78. O poder Executivo, por sua
vez, se vê muitas vezes colonizado por forças ocultas ou grupos de pressão
76
OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 341. 77
OTERO, Paulo. A Democracia Totalitária. Do Estado totalitário à sociedade totalitária: a influência do totalitarismo na democracia no século XXI. Cascais: Principia editora, 2001, p. 280. 78
Idem. OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 133.
externos ao próprio Estado, o que fragiliza o princípio da legalidade e a noção de
democracia79.
A crise do princípio de legalidade foi de certa forma contida pela
ampliação do conceito amplo da juridicidade, pelo controle jurisdicional da
Administração, pela consolidação dos direitos fundamentais e das garantias
constitucionais dos administrados.
Sentiu-se, portanto a necessidade de redimensionamento da noção e
alcance do princípio da legalidade no sentido de vincular a Administração Pública
não apenas à lei, em sentido formal, mas a todo o ordenamento jurídico,
principalmente aos direitos fundamentais e princípios constitucionais.
Considerando que a lei “deixou de ser o único fundamento do agir
administrativo” 80, nos vemos diante de uma nova realidade em que a Administração
Pública passou a se vincular diretamente à Constituição e também ao Direito
Internacional. A decomposição do Direito em princípios e regras acabou por
delimitar o campo de atuação da Administração Pública em duas áreas distintas: a
da juridicidade e o da legalidade, sendo certo que o princípio da juridicidade da
Administração substitui o princípio da legalidade, englobando-o.
Nesse diapasão, a Administração Pública deve estar vinculada, antes de
tudo à juridicidade, formulando-se um princípio da juridicidade, consistente na
sujeição administrativa ao Direito.
A crescente busca e exigência pela vinculação da atividade administrativa
à juridicidade traduz-se como fundamento, critério e limite de atuação da própria
Administração Pública embora tenha “revelado uma debilitação do valor e do
conteúdo da lei” 81 e mostrado o protagonismo da Administração Pública na criação
e execução do Direito.
O conceito de vinculação da Administração Pública à lei, um dos
principais dogmas do Estado liberal foi ultrapassado no Estado pós-social. A
tradicional dependência umbilical da Administração em relação à lei foi ultrapassada.
79
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: editora Paz e Terra, 1986, p. 148. De acordo com o autor, “da crescente ingovernabilidade das sociedades complexas ou da debilidade crônica de que dá provas o Poder Público nas sociedades econômica e politicamente mais desenvolvidas, nasce o neocontratualismo, isto é, a proposta de um novo pacto social, global e não parcial, de pacificação geral e de fundação de um novo ordenamento social”. 80
OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 1083. 81
Ibidem, p. 336.
5 AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO ADMINISTRATIVO
O direito administrativo em mutação é na verdade um direito
administrativo em plena expansão quantitativa e qualitativa. O poder político e os
modelos de Estado direcionam a atividade da Administração Pública, que se ampara
na ordem jurídica vigente, em especial no Direito Administrativo. O direito
administrativo no Estado pós-social passa a encetar uma nova dimensão ou um
novo âmbito de atividade administrativa em transformação, que deve, antes de tudo,
priorizar e garantir os direitos fundamentais dos administrados.
Ao longo de todo o século XX os postulados do direito administrativo
foram o poder de império da Administração Pública, a discricionariedade dos atos
administrativos e dos atos políticos. Havia uma “defasagem entre garantias e limites
constitucionais ao exercício do poder político e o desempenho da atividade
administrativa do Estado” 82, levando a um quadro de impossibilidade de controle da
atuação do governante, seja popular, seja jurisdicional.
Entretanto a relação entre a Administração e os administrados/cidadãos
vem lentamente se modificando e democratizando. Estamos diante de uma situação
de transformação do autoritarismo para a democracia nas relações entre o Estado e
seus administrados, com uma nova dimensão social da atividade administrativa.
A Administração Pública está, nos tempos atuais, diretamente e
indissociavelmente vinculada aos direitos fundamentais e aos princípios
constitucionais. Os controles da atividade administrativa estatal estão cada vez mais
intensos, uma vez que toda liberdade atribuída ao agente estatal tem de ser
exercitada de modo compatível com os princípios constitucionais e os direitos
fundamentais. Como já foi salientado, a própria natureza do direito administrativo
passa por uma nova releitura.
A Administração Pública contemporânea se caracteriza, em traços gerais
pela: multilateralidade e consensualidade, alargamento da proteção dos direitos
fundamentais e subjetivos dos indivíduos, estabilidade e durabilidade das relações
jurídicas e formações de parcerias público-privadas, entre outras figuras.
82
JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de Interesse Público e a “Personalização” do Direito Administrativo. São Paulo: Revista Trimestral de Direito Público, n. 26, 1999, p. 116.
As mutações vividas pelo direito administrativo consistem numa nova
ordem, feita de consenso83, participação e justiça social. O maior grau de
informação da população permite que a mesma não mais aceite o fechamento e a
burocratização das organizações estatais e o autoritarismo unilateral do ato
administrativo.
A identificação do interesse público84 de modo compartilhado com a
população, o decréscimo da discricionariedade administrativa e da formação
unilateral dos atos administrativos, o incremento das práticas consensuais da
Administração e a fuga para o direito privado são alguns dos fenômenos
enumerados como as mudanças do direito administrativo.
A opção por formas de atuação concertada ou consensual consiste na
necessidade de se repensar o conceito de interesse público como algo a ser
perseguido não só pelo Estado, mas também pela colaboração da sociedade e
entes privados e pelos setores da economia privada, através de fórmulas concretas
de concerto, transação e cooperação entre a Administração Pública e grupos sociais
e agentes privados.
As transformações do direito administrativo também trazem a lume a crise
da noção autoritária do ato administrativo, com o questionamento sobre o conceito
de supremacia do interesse público.
Estas transformações também se referem ao novo papel dos particulares,
não apenas como destinatários e usuários dos serviços prestados pela
Administração Pública, mas também como sujeitos autônomos de um verdadeiro
relacionamento jurídico com a Administração, detentores de direitos fundamentais
em face do poder estatal e coparticipantes ativos, e não mais passivos, do agir
administrativo. O direito administrativo deixa de ser o direito de uma Administração
protagonista das relações jurídicas, para passar a ser o direito dos particulares nas
suas relações com a Administração.
83
BAPTISTA, Patrícia Ferreira. Transformações do Direito Administrativo: constitucionalização e participação na construção de uma dogmática administrativa legitimadora. Dissertação de mestrado policopiada, Rio de Janeiro, 2001, p. 176. Para a autora: “aquela que vai pautar a sua atuação na busca do consenso e da harmonia com a sociedade, como alternativa às imposições unilaterais que marcavam o direito administrativo clássico. A ideia de consensualidade engloba, ainda, a de conjugação de esforços, de elaboração em comum, na realização de tarefas públicas, sentido que mais se aproxima do de concerto”. 84
DALLARI, Adilson Abreu. Privatização, Eficiência e Responsabilidade. uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 225.
E diante desse quadro surgem novos ramos da disciplina como, por
exemplo, o direito administrativo econômico em virtude do novo papel do Estado de
infraestrutura que passa a ser coordenador e dirigente da atualidade.
Importante frisar, por fim, que mesmo diante de todas estas mutações do
direito administrativo e das inovações que vêm sendo trazidas pelas mudanças do
Estado e da Administração Pública e com a nova participação dos privados e entes
externos na economia, temos que resguardar os direitos fundamentais dos
indivíduos.
Este novo modelo de Estado, de Administração Pública e de direito
administrativo reclamam com intensidade ainda maior a vinculação do próprio
Estado e mesmo dos privados aos direitos fundamentais, sob pena de se criar um:
“darwinismo social onde o mais fraco é eliminado de todas as benesses da civilização (...) pois a história prova que o mercado não é suficiente para a proteção do mais fraco”.
85
5.1 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DESCENTRALIZADA E O FENÔMENO
DA FRAGMENTAÇÃO ADMINISTRATIVA: REALIDADE INEVITÁVEL
O sistema político-administrativo dominante na Europa continental e
também na América latina, especificamente no Brasil, desde o século XIX até finais
do século XX, sempre se caracterizou pela centralização e concentração do poder
no governo político, enquanto órgão da Administração Pública, seja na figura do
presidente, seja na do primeiro-ministro ou mesmo no sistema de gabinete.
A lógica de tais regimes era baseada na responsabilidade política dos
governantes, frente ao parlamento ou diretamente ao povo, pelas ações e omissões
administrativas, na medida em que se encontravam habilitados a dirigir, orientar,
supervisionar ou controlar as respectivas estruturas da burocracia estatal.
Ao governo, democrático ou não, eram conferidos poderes amplos de
administração da máquina estatal, havendo uma forte hierarquia administrativa, com
intervenção e controle administrativo sobre todos os órgãos administrativos, que
muitas vezes eram somente dotadas de tênue desconcentração.
85
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris editora, 2004. De acordo com o autor: “A desestatização da economia, muitas vezes benéfica à coletividade e necessária à eficiência do Estado, não deve resultar na redução do âmbito de incidência dos direitos fundamentais”.
O critério predominante adotado para distinção entre centralização e
descentralização consiste na teoria da personificação que reside na unidade ou
pluralidade de pessoas coletivas públicas.
Ocorre que as antigas Administrações Públicas centralizadas, que se
mantinham fortemente hierarquizadas e verticalizadas, vêm se modificando gradual
e inevitavelmente em um fenômeno irreversível de descentralização da
Administração e em sentido mais ampla fragmentação.
Vários países associaram a descentralização administrativa, sobretudo a
descentralização territorial à maior participação popular, para que as instâncias de
decisão se tornassem menos distantes dos cidadãos.
A necessidade de repensar a estrutura da Administração Pública
contribuiu para um fundamental fenômeno contemporâneo consistente na
fragmentação e descentralização, com o consequente compartimento e controle do
poder e estrutura administrativa, transformando uma Administração monista em uma
Administração pluralista.
O princípio da descentralização consagra o imperativo de um
descongestionamento de poderes como forma de concretizar o caráter democrático
da Administração. O fenômeno da fragmentação e desplubicização do interesse
público, com o advento de uma Administração Pública pluralista e pluriorganizada se
mostra irreversível e decorre da diminuição do papel Estado e da necessidade de se
descentralizar o poder.
A descentralização administrativa, também tida como “descentralização
autárquica” 86 ressurgiu nesse final de século XX, no novo cenário da Administração
Pública, restaurada como solução para conciliar a atuação típica do Estado no
exercício de suas funções típicas e imperativas, de regulação e controle do Estado,
com certa flexibilidade negocial, com autonomia administrativa e financeira e
independência política e consequente afastamento da burocracia e ingerências
políticas inerentes ao Estado.
Atualmente a Administração Pública tende a ser cada vez mais
fragmentada, coexistindo os órgãos da administração direta, com os ministérios
tradicionais, subordinados a um membro do Governo; entidades públicas da
administração indireta, dotadas de autonomia do poder central; agências
86
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações ... p. 199.
reguladoras independentes; administrações regionais e locais.
A multiplicação de entes administrativos descentralizados ocorreu de
forma crescente nas duas últimas décadas do século XX no mundo ocidental,
através da criação de agências reguladoras que fracionaram a máquina estatal e
fragmentaram os sistemas administrativos.
Convivem atualmente com a Administração institucional, constituída por
uma constelação de organismos personificados ou não, que estão sujeitos política e
juridicamente, ao controle do Governo, e que por isso, pode nomear e destituir
livremente seus gestores, outras organizações especializadas dotadas de
independência política e jurídica.
Esta independência se refere ao poder político do Governo, uma vez que
se limita, através de previsão legal, o poder de nomeação e destituição dos
membros dirigente. Trata-se de uma forma de se afastar o “indirizzo político”87 do
Governo.
A ideia de descentralização administrativa encontra-se no âmago do
princípio da subsidiariedade. Visa, portanto, descentralizar atribuições e
competências e só recorrer ao poder administrativo central de forma subsidiária, ou
seja, se a intervenção for necessária e se os entes administrativos descentralizados
não forem capazes de cumprir com suas atribuições primárias.
5.2 A FUNÇÃO REGULADORA DO ESTADO
O processo de privatização deflagrado há décadas, principalmente a
privatização dos serviços e funções públicas, deslocou para o setor privado
atividades e incumbências situadas dentro da área do “dever estadual de garantia”.
O Estado, ao se despedir das funções públicas88 e das obrigações de produzir bens
públicos, transferindo-as aos privados, é chamado a assumir a responsabilidade
87
VÁZQUEZ, J. Ramón Parada. Administraciones Independientes y Estado Regulador. Uma Avaliação das Tendências Contemporâneas do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 130. 88
ARAGÃO, Alexandre. As Parcerias Público-Privadas no Direito Positivo Brasileiro. Rio de Janeiro: Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 2, 2005, p. 3. De acordo com o autor: “ao invés de realizar uma operação de empréstimo direta com uma instituição financeira para obter esses recursos, contrata uma empresa privada, que, via de regra, vai por sua conta realizar uma similar operação de crédito para efetuar as obras e prestar os serviços contratados [...] o Estado irá aos poucos – ao longo do prazo de vigência do contrato e apenas depois de disponibilizado o serviço – pagando pelo montante despendido previamente pela empresa privada”.
constitucional de garantidor da prossecução do interesse público89, através da
atividade reguladora.
E nesse mesmo sentido Max Weber ao discorrer sobre capitalismo e
burocracia já declarava no início do século XX que os mercados precisam de
regulação jurídica para que trabalhem regular e racionalmente.
Essa contraditória tendência que o Direito Administrativo surgida em
tempos recentes sofre, com o encolhimento do papel da Administração Pública como
produtora de bens e prestadora de serviços e, por outro, alarga seu papel de
“planejamento, regulação e fiscalização” 90 da atividade econômica deve ser
acompanhada com o próprio desenrolar histórico do papel do Estado.
O Estado regulador é aquele que realiza a regulação como forma de
estabelecimento de regras para determinados setores da atividade (regulação
normativa), implementa e aplica tais regras, exerce a vigilância e fiscalização deste
setor, inclusive com a punição dos infratores (regulação administrativa).
Alguns autores defendem que a tendência privatizadora e reducionista do
tamanho e papel do Estado deve ser obrigatoriamente acompanhada de uma “forte
criação de organismos e sistemas de controle, a exemplo das autoridades públicas
independentes”91.
Outro aspecto da atividade regulatória refere-se a necessidade de gestão
e fomentação de setores da atividade econômica especialmente “técnicos, evoluídos
e complexos”92 os quais concorrem a alta sensibilidade social.
Apesar da crescente liberação da economia e a não intervenção estatal a
Administração Pública deve estar atenta e agir com autoridade regulatória contra os
abusos praticados pelos privados, principalmente pelas grandes corporações
privadas poderosas, muitas vezes detentoras de capitais transnacionais. É o caso
de intervenção e regulação no mercado a fim de impedir e combater a formação de
89
REICH, Norbert. Intervenção do Estado na Economia ... p. 265. De acordo com o autor: “o intervencionismo compreende uma estratégia moderna para a imposição do interesse público sobre um sistema econômico capitalista (...) o governo assume funções distributivas e alocativas. Por um lado, incumbe-se de garantir certas condições mínimas de vida aos socialmente fracos, sem levar em conta seu status, no mercado de trabalho. De outro, tenta corrigir o ‘funcionamento cego das forças de mercado’ pela imposição de metas políticas à economia. Cria, portanto, novas políticas de co-gestão e regulação social”. 90
BARROSO, Luis Roberto. Agências Reguladoras... p. 170. 91
GORDILLO, Augustín. Tratado de Derecho Administrativo. Madrid: Editora Civitas, 7. ed.n, v.1, p. 274. 92
ALFONSO, Luciano Parejo. La Administracion: funcion publica. Revista El Derecho Público de Finales de Siglo, Una Perspectiva Iberoamericana, Madrid: Editora Civitas, 2003, p. 297.
monopólios e oligopólios, cartéis ou outras figuras, aplicando-se regras do direito de
concorrência para coibir tais práticas perniciosas.
A Administração Pública tem ainda a difícil função de fiscalizar a
legalidade, regularidade e eficiência dos serviços prestados, principalmente os
serviços privatizados, de natureza pública e grande interesse social. Impõe-se desta
forma a regulação da atividade econômica pelo Estado por um imperativo de ordem
pública e pelo próprio interesse público envolvido, que busca o bem público93.
E nesta função reguladora o Estado dever além de garantir a prestação
do serviço público, proteger os direitos e também deveres dos consumidores dos
serviços públicos privatizados.
Inexiste um consenso sobre o conceito de regulação. A doutrina costuma
listar três conceitos específicos sobre regulação do Estado sobre a atividade
econômica94. A regulação do Estado na economia, assim, pode ser entendida
como95: em sentido amplo, é toda a forma de intervenção do Estado na economia,
independentemente dos seus instrumentos e fins; em um sentido menos abrangente
é a intervenção estatal na economia por outras formas que não a participação direta
na atividade econômica, equivalendo, portanto, ao condicionamento, coordenação e
disciplina da atividade econômica privada; em um sentido restrito é somente o
condicionamento normativo da atividade econômica privada.
Em sua atividade reguladora, compete ao Estado estabelecer as regras
que devem reger as atuações privadas de interesse público, decorrentes de um
processo de privatização ou não, controlar o acesso ao mercado de entidades que
vão prestar serviços de interesse público, fiscalizar a atuação de tais entidades.
Na função regulatória estão compreendidas as proibições de certas
ações, tais como a formação de monopólios, oligopólios e cartéis, proibição de
abuso de poder dominante, fixação de preços predatórios, fixação de regras contras
93
OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 302. Conforme o autor: “são razões de interesse público que justificam, por isso mesmo, a regulação jurídica da actividade econômica desenvolvida em tais áreas”. 94
SOUTO, Marcos Juruena Villela. Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo nº 216, 1999, p. 128-129. De acordo com o autor seriam: “a regulação de monopólios, em relação aos quais devem ser minimizadas as forças de mercado através de controles sobre os preços e a qualidade do serviço; regulação para a competição, para viabilizar a sua existência e continuidade; e a regulação social, assegurando prestação de serviços públicos de caráter universal e a proteção ambiental”. 95
GONÇALVES, Pedro. Entidades Privadas com Poderes Públicos ... p. 103. O autor faz referência a certas áreas e serviços que apesar de não serem controlados por agências administrativas, são geridos por entidades privadas que recebem forte subsídio estatal, como por exemplo o ICANN, associação privada sem fins lucrativos que controla a concessão dos domínios da internet em todo o planeta.
as práticas de trust e formação de cartel e também as intervenções positivas, tais
como regular o mercado no sentido de garantir o serviço universal a todos, ou
mesmo de garantir a contratação por todos os usuários em igualdade de condições
dos serviços essenciais, conhecidos por “essential facilities”96.
E nesse contexto o Estado deve focar especial atenção regulatória nas
atividades conhecidas como monopólios naturais que são aqueles serviços que, por
sua especial natureza, são prestados em regime de monopólio tais como os serviços
de rede, como as redes de transporte e distribuição de eletricidade, de gás, de água,
de efluentes líquidos, rodovias, entre outros serviços considerados públicos. Estas
atividades, por sua nítida natureza pública e de interesse geral da população, devem
ser forte e eficazmente reguladas pelo Estado.
Desta forma, para a formação de nova e saudável atmosfera de negócios
públicos e garantia e acesso universal dos administrados/usuários aos serviços
públicos privatizados, a atividade estatal de regulação, particularmente a exercida
pelas agências reguladoras, precisou experimentar mudanças sensíveis, se
transformando na mais característica função do Estado na esfera econômica da
atualidade (Estado regulador).
Poderíamos listar como o novo papel a ser desempenhado pelas
agências reguladoras: em primeiro lugar a total independência das agências
reguladoras que devem ter a natureza de entes de Estado e não entes de governo,
integrantes da Administração indireta; em segundo lugar o abandono das práticas de
imposição unilateral e autoritária, reconhecendo a primazia da conciliação, da
arbitragem e da mediação; em terceiro lugar a regulação deve alcançar equilíbrio
proporcional entre retornos econômicos e sociais, fazendo salvaguarda do direito
fundamental à intangibilidade da equação econômico-financeira, bem como a justa
partilha dos ganhos e benefícios não apenas com o parceiro público, mas com o
usuário. A este deve ser assegurado o direito fundamental à fruição acessível e
universalizada de serviço público de qualidade, nada importando a priori quem é o
executor; em quarto lugar a regulação precisa ser socialmente controlada, assim
96
MARTÍNEZ, Juan Miguel de La Cuétara. La Regulación Subsiguinte a La Liberalización y Privatización de Servicios Públicos: os caminhos da privatização da administração pública. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, v. 60, editora Coimbra, 2001, p. 198. O autor ilustra com o caso ocorrido em Chicago, EUA, no qual uma empresa negou à outra o fornecimento do serviço de carregamento de grãos em elevador e como o carregamento manual era praticamente impossível de se realizar e essa negativa acabaria por inviabilizar a empresa e a própria concorrência, a empresa fornecedora do serviço de elevadores foi obrigada a prestá-lo.
com a autuação do órgão gestor. Com efeito, o controle social não exclui os demais
controles, mas a eles deve ser somado.
As agências devem incentivar à participação dos particulares e da
sociedade na função regulatória do Estado, em vez de temerem a captura ou
cooptação da função regulatória pelos regulados97. Cabe também à sociedade, aos
usuários e aos próprios regulados a fiscalização da qualidade dos serviços
prestados. Esta postura nada mais é do que a expressão da consensualidade, que
vem sendo estimulada no direito administrativo contemporâneo. A Administração
Pública “feita para mandar, se deu conta de que o poder de mando em muitos casos
não bastava, abrindo-se para o caminho da negociação”98.
Ressalte-se que alguns autores99 alertam que podem surgir
incompatibilidades da nova função regulatória do Estado com o tradicional direito
administrativo, que se mostra “insuficiente”, no sentido de que: existem normas que
apesar de não serem normas funcionam como se fossem, prática de atos
discricionários que não são discricionários, contratos, sentenças que não são
sentenças.
5.3 AS AGÊNCIAS REGULADORAS INDEPENDENTES
A descentralização administrativa foi adotada em diversos países
seguindo o modelo das agências independentes norte-americanas e tal fenômeno se
97
FREITAS, Juarez. Parcerias Público-Privadas: características, regulação e princípios. São Paulo: revista interesse público, vol. 29, 2005, p. 36. O autor ressalta que “devemos assimilar a obrigatoriedade das Audiência Públicas em todas as decisões relevantes e estratégicas das Agências Reguladoras. 98
ENTERRIA, Eduardo García/FERNÁNDEZ, Tomás-Ramon. Curso de Derecho Administrativo, Madrid: Civitas, 206, v. 1, 13 ed., p. 464. 99
MARTÍNEZ, Juan Miguel de La Cuétara. La Regulación Subsiguinte a La Liberalización ... p. 199-200. O autor dispõe que a atividade regulatória abrange: “normas que no son normas, pero que funcionam com si lo fuesen. Se trata de ordenaciones no contenidas en normas, bien porque no proceden de centros com autoridad para emitirlas [...] bien porque sus emisores renuncian a utilizar la autoridad que poseen; actos discrecionales que no son discrecionales. Los reguladores tienen que adoptar muchas decisiones, fijando precios o atribuyendo derechos, para las cuales no existen varias soluciones válidas, sino uma; pero la única solución correcta deriva de consideraciones econômicas de muy difícil incorporación a un procedimiento jurídico [...]; contratos que no son contratos [...] se há construído la teoria del “regulatory contract” para vincular com un contrato “tácito” a los Gobiernos que tengan la tentación de favorecer a terceros una vez cobrado el importe de la privatización; sentencias que no son sentencias. Uma das missiones básicas de los reguladores sectoriales es arbitrar en los conflictos entre partes y atribuir aquellos derechos en disputa que tengan que ver con la regulación”.
mostra como uma das mais relevantes formas de fragmentação do Estado pós-
moderno.
Inspirados no modelo anglo-saxônico das independent regulatory
agencies norte-americanas os mais variados Estados europeus, assim como os
demais países da América têm inserido nas respectivas Administrações tais entes,
que se encontram fora do contexto da hierarquia governamental e fora de controle
administrativo e até político do governo, com acentuada independência.
Esta proliferação de agências ou autoridades administrativas
independentes é estranha à tradição administrativa da Europa continental e também
do Brasil, uma vez que nesses países a Administração tende a ter o modelo
burocrático centralizador e hierarquizado.
O surgimento das agências reguladoras independentes causou a “ruptura
do princípio da divisão tripartite do poder estatal constituído”100, quebrou o vínculo de
unidade intra-administrativa da Administração Pública e excluiu a sua atividade da
responsabilidade política do Governo perante o Poder Legislativo, operando-se uma
evolução do modelo piramidal de Administração Pública para um modelo
policêntrico.
As agências reguladoras são assim consideradas como “entes
fracionários do aparelho administrativo do Estado”101 e exercem, via de regra, uma
função reguladora e fiscalizatória. Esta função consiste na republicização dos
controles sobre os serviços públicos, assim definidos por lei, prestados pelos
particulares e também como regular serviços de relevante interesse geral, como
aqueles, a guisa de exemplo, capazes de oferecer riscos à saúde pública e à
segurança.
O Estado pós-social, surgido em uma fase de pós-privatização, assume a
forma de Estado regulador de serviços públicos essenciais, confiando às agências
administrativas independentes os poderes de regulação e fiscalização dos setores
da economia regulados, agências essas que são independentes justamente por não
se subordinarem ao poder político governamental, vinculando-se somente à
Constituição e à Lei, atentos aos valores da “imparcialidade, da tecnicidade e da
100
ALFONSO, Luciano Parejo. La Administracion. Funcion Publica ... 297. 101
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações ... p. 197.
previsibilidade” 102.
A criação das agências independentes se inspirou na necessidade de
separar o Estado da economia, na adoção do modelo de Estado no qual a atividade
econômica está resguardada da atividade política, mas por outro lado na
necessidade de impor algumas regras ao mercado, principalmente no que tange à
prestação dos serviços de indiscutível interesse público e nos monopólios naturais,
como por exemplo, fornecimento de energia elétrica.
A adoção desse modelo de controle e regulação da atividade econômica
surgiu de premissas ideológicas do tipo: “menos Estado, melhor Estado”,
“autoregulação da economia contra planificação estatal”, “concorrência econômica
como expressão da liberdade”103 mas também da verificação de que a concretização
de muitas das tarefas afetas tradicionalmente ao Estado exige recursos financeiros
elevados, saberes, competências, experiências técnicas e profissionais que estão
fora da capacidade do próprio Estado.
O surgimento das agências reguladoras independentes se deve à
exportação do modelo adotado nos países de origem anglo-saxônica face à
ocorrência de um forte movimento de privatização dos serviços públicos prestados
pelo Estado. Desta feita, ocorreu uma consequente publicização das funções
estatais de regulamentação e controle da atividade privatizada ou considerada como
de utilidade pública.
O termo intervenção estatal é substituído pela regulação, com uma
grande atividade reguladora da Administração. Desta forma, hodiernamente
constatamos que “a intervenção administrativa não é hoje menor do que era antes
da liberalização econômica: ela é diferente”104.
A regulação estatal na atividade econômica passou a assumir maior
relevância com o processo de privatização das atividades do Estado iniciado na
Inglaterra, por forte influência norte-americana e disseminado quase que
globalmente.
O próprio Estado sentiu a necessidade de regular e fiscalizar as
atividades de interesse público que eram transferidas para os setores privados da
102
MOREIRA, Vital. Serviço Público e Concorrência. A regulação do sector elétrico: os caminhos da privatização da administração pública. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Editora Coimbra, 2001, p. 230. De acordo com o autor a “racionalidade da regulação independente consiste na desgovernamentalização, despolitização e despartidarização da função reguladora”. 103
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional ... p. 352. 104
OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 302.
economia, ou mesmo que eram realizados pelos privados, mas de forte interesse
social. As atividades de interesse público deveriam proteger de certa forma os
direitos e interesses dos usuários/administrados, de o Estado concedente e do
particular concessionário.
Nesse processo vemos dois modelos: o de public utilities105, de cariz
anglo-saxônico e o de service publique, de matriz francesa, adotado via de regra na
Europa continental. O primeiro modelo se distingue do segundo basicamente pela
prestação pelo mercado (privados) e no segundo modelo o serviço púbico é
prestado pelo Estado, com o “conceito de serviço público incindível do conceito de
poder administrativo e, como tal, um corolário das funções irredutíveis do Estado”106.
Entretanto os regimes de serviços públicos, tanto pelo modelo norte-americano
como pelo europeu continental têm como componentes essenciais a universalidade
de acesso, igualdade de tratamento, continuidade, garantia de qualidade e
adaptabilidade.
Historicamente, nos Estados Unidos a intervenção estatal no domínio
econômico se concentrou inicialmente na fixação de tarifas (rate making power)
através de delegação legal a agências administrativas107. Esta regulação visava
principalmente o equilíbrio entre o menor custo a ser cobrado aos consumidores
pelos serviços prestados e a justa remuneração do ente privado que garantisse a
sobrevivência do negócio e a eficiência do serviço. Desta forma, consolidou-se o
princípio do serviço pelo custo (service at cost)108.
O poder regulamentar da economia pelo Estado nos Estados Unidos
(regulation) teve início a partir de conflitos entre agricultores e empresas ferroviárias,
ocasião em que foi admitido pela lei e jurisprudência o controle estatal dos preços
dos serviços ferroviários e de armazenamento dos produtos agrícolas. A decisão
mais famosa consistiu no “leading case” Munn v. Illinois, de 1877, que versava sobre
105
TÁCITO, Caio. Presença Norte-Americana no Direito Administrativo Brasileiro ... p. 24. De acordo com o autor a public utility consiste na “disciplina pelo Poder Público de determinadas empresas privadas em razão de sua importância para a coletividade, que lhes conferia a qualidade de um serviço público virtual”. 106
QUADROS, Fausto de. Serviço Público e Direito Comunitário: os caminhos da privatização da administração pública. Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra editora, vol. 60, 2001, p. 281. 107
TÁCITO, Caio. Transformações do Direito Administrativo ... p. 33. De acordo com o autor: “nos Estados Unidos, as Agências Independentes, nascidas em 1887 com a Interstate Commerce Commission e mais amplamente adotadas na reforma Roosevelt, na década de 30, têm natureza singular de independência perante o Poder Executivo e o Congresso”. 108
Idem, p. 23.
a constitucionalidade da lei do Estado de Illinois que tabelava os preços de
armazenagem nos celeiros de Chicago. A jurisprudência então fixada pela Suprema
Corte considerou válida a regulamentação dos negócios que por sua natureza
estavam vinculadas ao interesse público (business affected with a public interest).
Em 1887 foi criada a Interestate Commerce Commission, primeira de uma série de
agências governamentais reguladoras do processo econômico norte-americano.
Entretanto, embora a primeira agência administrativa norte-americanas
seja considerada como a Interestate Commerce Commission (ICC), criado em 1887,
foi somente com o “New Deal”, plano governamental proposto pelo Presidente
Roosevelt, na década de 30 do século XX, que os atuais modelos de agências
reguladoras se tornaram presença na Administração Pública.
O antigo modelo de Estado liberal norte-americano, com a concepção do
Estado mínimo, foi abruptamente modificado ante a forte intervenção do Estado na
economia, no início do século XX, que passou a regular as mais diversas áreas de
interesse do povo e usuários através das mencionadas agências.
Como visto, as agências surgiram em um cenário político norte-americano
como entidades propulsoras da publicização de determinados setores da atividade
econômica, mitigando as garantias liberais clássicas da propriedade privada e da
autonomia da vontade.
Já na Europa, a experiência inglesa, levada a cabo com grande
intensidade durante o governo de Margareth Thatcher na década de 70 do século
XX, também demonstra a criação das agências independentes, todas com forte
inspiração no modelo norte-americano visando à grande reforma do Estado
realizada em tal país com o incremento das privatizações.
Na Europa continental, no entanto, o surgimento das autoridades
administrativas independentes esteve diretamente relacionado ao declínio e
diminuição do Estado social ante os processos de reforma tendentes a modernizar
as estruturas administrativas e burocráticas, com a forte privatização das atividades
e serviços públicos, que necessitavam ser garantidos e posteriormente regulados.
Com efeito, este tipo de estrutura institucional, denominadas como
“autoridades administrativas independentes”109 só veio a se proliferar na Europa
109
LOMBARTE, Artemi Rallo. La Constitucionalidad de las Administraciones Independientes. 2002; BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria ... p. 43. De acordo com o autor: “Banco Central da Alemanha (Deutsche Bundesbank) é normalmente apontado como o modelo pioneiro e paradigmático
continental sob a égide de um ambiente comunitário promovido pela União Europeia,
que pretendia afirmar-se e unificar-se econômica, jurídica, política e
institucionalmente.
Na França, as chamadas autoridades administrativas independentes110,
não têm personalidade jurídica e se sujeitam à fiscalização do Conselho de Estado.
O modelo espanhol de administração independente, por sua vez, é um típico
fenômeno de descentralização.
As autoridades administrativas independentes europeias ou agências
reguladoras independentes foram criadas no bojo de um amplo e quase globalizado
processo de privatizações e desestatizações, advindos com a reforma do Estado,
movimento também chamado de americanização do direito administrativo.
Percebeu-se a necessidade de garantia de segurança, estabilidade e previsibilidade
do regime jurídico para os investidores do setor e também de eficiência, modicidade
e qualidade dos serviços a serem desenvolvidos em favor dos administrados.
Houve um descolamento das agências reguladoras do processo político,
tornando-as independentes do governo, com regras claras e preestabelecidas para
os setores econômicos que passam se sujeitar às “regras do jogo”111. Autores
acenam para a quebra do vínculo de unidade política no interior da Administração
Pública, que está cada vez mais fragmentada, eis que as agências independentes
situam-se fora da esfera de responsabilização política do governo, com grau
reforçado de autonomia.
As autoridades administrativas independentes ensejam a revisão dos
fundamentos legitimadores do poder, com o debate sobre eventual déficit
democrático face à incontrolabilidade do poder político, o avanço da tecnocracia
sobre o poder político e a submissão do Direito às leis de mercado e da economia.
Procurou-se demarcar com a instituição do modelo das agências independentes um
espaço de discricionariedade, “com predomínio de juízos técnicos sobre as
valorações políticas”112.
As agências independentes ostentam, muitas das vezes, além das
de autoridade administrativa independente no continente europeu, que serviu de inspiração, inclusive, para a configuração do Banco Central Europeu”. 110
VEDEL, Georges/DEVOLVE, Pierre. Droit Administratif. Paris: Presses Universitaries de France, 1992, 2. ed., v. 2, p. 459. 111
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional ... p. 353. 112
BARROSO, Luis Roberto. Agências Reguladoras ... p.174. E nesse sentido conclui o autor que às agências administrativas independentes foram: “outorgadas autonomia político-adminsitrativa e autonomia econômico-financeira”.
funções executivas, funções legislativas e judiciais, eis que expedem regulamentos
dotados de generalidade para o setor regulado e apreciam questões e reclamações
levadas pelos usuários dos serviços e até do próprio governo, tendo o poder de
impor sanções às entidades reguladas, desenvolvendo funções arbitrais e
sancionadoras.
A função de regulação de um determinado setor da economia atribuída
por lei à autoridade administrativa reguladora fará da mesma uma agência que
estabelece regras e controla a aplicação das normas e nesse sentido “fixar as
‘regras reguladoras’ corresponde, tendencialmente, a regulamentar matérias no
figurino clássico da administração pública”.
Uma nova característica das agências administrativas é que as mesmas
detêm poderes e funções normativas, além das funções executivas e decisórias que
lhe são ordinariamente conferidas, ou seja, podem editar regulamentos que vão
regulamentar todo o setor econômico que lhe é afeto.
Autores aduzem que ocorre uma verdadeira “delegação de funções do
Legislativo para a agência”113, transferindo-se quase que completamente a
competência para disciplinar certas questões. E o confronto desta questão com o
princípio da legalidade de cunho garantístico pode deixar transparecer que há uma
grave violação a este princípio por violação do sistema de separação de poderes e
por faltar às agências legitimidade democrática para legislar, não obstante a lei geral
preveja a possibilidade da edição dos atos normativos pelas agências.
Entretanto, a rigidez da noção da legalidade mais uma vez, como não
poderia deixar de ser, é abrandada a fim de possibilitar ao legislador conferir uma
reserva material de seu poder às agências independentes.
As autoridades administrativas independentes são constantemente
questionadas sobre a constitucionalidade de sua atuação e de seus poderes, sobre
a sua eventual irresponsabilidade política, denominada de independência, e sobre a
independência de atuação.
Essa questão é debatida em diversos países, inclusive nos EUA, não
havendo ainda um consenso sobre a natureza, atuação e sobre o eventual déficit
democrático das agências.
Atualmente um dos grandes questionamentos acerca do futuro das
113
Ibidem, p. 187.
agências independentes se refere justamente ao controle político de tais entidades,
responsabilidade social e legitimidade democrática de suas decisões e
regulamentação.
Apesar de terem todos esses poderes previstos em lei, nos parece óbvio,
que as agências reguladoras e seus regulamentos estão sujeitos e vinculados aos
princípios constitucionais, aos direitos fundamentais, bem como à própria legalidade
e não podem extrapolar os poderes e competências que lhe foram conferidos pelo
texto constitucional.
Esse seria um dos limites (constitucional) à total descentralização e
desconcentração normativa e ao fenômeno da autorregulação pública pelas
agências independentes “o reconhecimento legal de descentralização, da
desconcentração e da autorregulação nunca pode conduzir a uma alienação ou
renúncia da competência regulamentar diretamente conferida pela Constituição” 114.
114
OTERO, Paulo. Legalidade ... p. 454. O autor defende que “as autoridades administrativas independentes criadas por lei não podem exercer uma competência regulamentar de execução de execução direta da lei que se traduza numa intervenção substitutiva da competência constitucional do Governo ou das assembléias legislativas regionais sobre essa mesma matéria”.
6 CONCLUSÃO
O direito administrativo está em mutação e essa é uma realidade
inegável. No entanto, apesar de vir sofrendo grandes transformações causadas em
grande parte pelas mudanças ocorridas no âmbito do próprio Estado atualmente
denominado pós-social e neoliberal e em um quadro de economia de mercado
globalizado que lhe é subjacente, continua, como ramo do direito, regulando as
ações e relações dos órgãos e agentes do Estado com os administrados. O
administrado passa a ser o sujeito principal das relações jurídicas mantidas com a
Administração Pública.
O Estado, nesta nova concepção do direito administrativo, se vincula
diretamente aos direitos fundamentais, mesmo quando atue com regras de direito
privado ou se trate de funções de natureza pública privatizadas.
O direito administrativo e a Administração Pública continuam a ser
elementos essenciais do Estado também denominado como pós-moderno. A maior
atuação do setor privado, dos mercados e o seu espaço ampliado na economia e em
setores que anteriormente eram geridos pelo Estado não significaram a redução do
Estado, nem do direito administrativo. Ocorreram transformações no modo com que
o Estado atua.
O direito administrativo passou a se direcionar mais para os direitos dos
cidadãos do que para o Estado. O foco atual do direito administrativo é o cidadão e
não mais o Estado, embora o direito administrativo ainda se direcione a este e
regule as relações do Estado com os demais indivíduos. Houve uma maior
integração da Administração com o cidadão.
O direito administrativo, no entanto, mantém função essencial como
instrumento para a realização de políticas públicas, da busca do bem comum e para
a garantia dos particulares quantos aos abusos do poder.
Ocorre a constitucionalização do direito administrativo, e a lei deixa de ser
o fundamento único e último da atividade administrativa. A Constituição, encarada
como um sistema de regras e princípios, passa a ser o cerne da vinculação
administrativa à juridicidade.
O direito administrativo deve ser interpretado sempre a favor dos direitos
fundamentais dos administrados e deve ser entendido como instrumento de
proteção dos mesmos contra a própria Administração, tendo como fim não só
sujeitar o Poder Executivo ao Direito, mas, sobretudo dar conteúdo aos direitos dos
cidadãos.
Há um fortalecimento dos princípios constitucionais afetos ao direito
administrativo como orientadores da legalidade da ação administrativa. O direito
administrativo deve buscar sempre a eficiência e eficácia da atividade administrativa
com a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos.
O princípio da legalidade administrativa ainda é um dos corolários do agir
estatal e do direito administrativo, no entanto, hoje este princípio é alargado para
abranger o princípio da juridicidade encerrado pela Constituição a qual o Estado,
como um todo, está adstrito. A juridicidade, assim como a legalidade, consiste em
última análise em uma limitação e conformação do poder estatal com proteção aos
administrados.
Vislumbra-se a internacionalização do direito administrativo: o direito
administrativo nasceu como ramo precipuamente nacional, mas passou, no final do
século XX a ser influenciado por fatores internacionais, quer sob o prisma da
globalização, que sob o prisma dos blocos de nações ou dos organismos
internacionais que fixam diretrizes e modelos, como por exemplo a Comunidade
Europeia, o FMI, o Banco Mundial, dentre outros.
Os Estados, apesar de suas soberanias, ficam submetidos às forças
econômicas internacionais, que passam a influenciar as decisões internas. Ocorre
uma internacionalização do Estado e consequentemente do Direito, com tendência
de agregamento dos Estados em blocos regionais.
E neste cenário no qual o direito administrativo se desenha temos o
surgimento das agências reguladoras independentes.
Os Estados passaram a sofrer o fenômeno, muito debatido na doutrina,
denominado em seu sentido amplo como fuga para o direito privado. Este fenômeno
abrange, dentre estes a privatização dos serviços públicos, a transferência do
controle das empresas públicas para os setores privados e aumento da incidência
das regras do direito privado nas relações da Administração sem, contudo, haver o
abandono dos princípios gerais do direito público. Este fenômeno é uma realidade
inquestionável dos últimos 30 anos e veio demonstrar a força dos mercados
emergentes com o desmantelamento do antigo Estado providência.
Neste contexto nos Estados se depararam com a descentralização e
fragmentação da Administração Pública, fenômeno, assim como o da privatização,
inevitável. Esta realidade é acentuada com a proliferação das agências reguladoras
independentes. O direito administrativo surge como direito do Estado regulador e
menos como o direito do Estado essencialmente prestador (executor direto) dos
serviços públicos ou universais. As agências reguladoras tendem a ser
independentes e constituídas segundo o modelo autárquico e são manifestações
dos fenômenos da descentralização e fragmentação da Administração Pública, ante
a necessidade da intervenção e controle do Estado na economia.
As novas agências são independentes (em tese) do poder político,
dotadas de autonomia funcional e financeira, devendo obediência apenas à lei e
surgem como forma de controlar e regular os setores da economia geridos pelos
grupos privados, que tenham notório interesse público. Consistem em uma forma de
intervenção do poder público na economia a fim de regular os mercados e garantir o
bem comum e a boa prestação dos serviços.
Aparecem questionamentos sobre a atuação das agências independentes
e se as mesmas estariam em consonância com o princípio democrático, ante a
fragilização do controle político e judicial das atividades realizadas pelas agências e
com o princípio da legalidade. Impõe-se alguma forma de limitação e controle das
agências, mantendo uma área de autonomia, pois tais autoridades detêm poder e
devem também sofrer controle, sob pena de resvalarem em autoritarismo.
Importante frisar, por fim, que mesmo diante de todas estas mutações do
direito administrativo e das inovações que vêm sendo trazidas pelas mudanças do
Estado e da Administração Pública e com a nova participação dos privados e entes
externos na economia, impõe-se a salvaguarda e respeito aos direitos fundamentais
dos indivíduos.
Este novo modelo de Estado, de Administração Pública e de direito
administrativo reclamam com intensidade ainda maior a vinculação do próprio
Estado e mesmo dos privados aos direitos fundamentais e um grande esforço dos
mesmos no sentido de não se desincumbirem definitivamente de suas respectivas
missões constitucionais e garantirem aos administrados a paz social e o bem
comum.
O princípio da dignidade da pessoa humana é elevado ao fim póstumo ao
que o Estado e também o Direito devem buscar. A liberdade, igualdade e demais
direitos fundamentais se impõem como condição de existência da própria da
humanidade e o Direito, embora em mutação, deve atentar para os seus fins
primordiais, para não se desvirtuar dos mesmos.
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ANEXO A 1 ALGUNS PRINCÍPIOS ORIENTADORES DO NOVO DIREITO ADMINISTRATIVO 1.1 PRINCÍPIO DA IGUALDADE 1.2 OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE, RAZOABILIDADE E PROIBIÇÃO DE EXCESSO 1.3 PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA PROTEÇÃO DE CONFIANÇA 1.4 PRINCÍPIOS DA EFICIÊNCIA E O DIREITO À BOA-ADMINISTRAÇÃO 1.5 PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA OU DA PUBLICIDADE
ANEXO A 1 ALGUNS PRINCÍPIOS ORIENTADORES DO NOVO DIREITO
ADMINISTRATIVO
A intenção da presente exposição sobre princípios orientadores do novo
direito administrativo não é a de esgotar todos os princípios que norteiam tal matéria,
dada ao grande número de princípios e subprincípios aplicáveis ao direito
administrativo. Pretende-se apenas listar alguns poucos princípios que reputo
importantes para explicar as mudanças que vêm ocorrendo no direito administrativo
e o novo enfoque interpretativo que se pretende da matéria.
Embora não seja o objeto do presente estudo, impõe-se uma breve
consideração sobre o sentido e a teoria dos princípios jurídicos.
Princípios jurídicos consistem em uma espécie de normas jurídicas por meio
da qual são estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários graus,
segundo as possibilidades normativas e fáticas, seriam assim mandatos de
otimização.
Os princípios jurídicos fundamentais também são entendidos como: princípios
historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica
e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional.
Os princípios, portanto, considerados como mandatos de otimização são
concebidos para serem cumpridos e realizados, utilizando-se do método da
ponderação quando colidentes.
1.1 PRINCÍPIO DA IGUALDADE
O princípio da igualdade é considerado como um dos princípios estruturantes
do regime geral dos direitos fundamentais. A igualdade jurídica é considerada como
igualdade formal e é indissociável da própria liberdade individual. No mesmo
sentido a regra formal de liberdade não pode ser entendida sem a imprescindível
igualdade, sob pena de criarem-se desigualdades inconciliáveis e danosas.
Existe uma tensão inelutável entre liberdade e igualdade pois levado às
últimas consequências, um princípio radical da liberdade oblitera a igualdade da
condição humana e, em contrapartida, um princípio da igualdade igualitária esmaga
a autonomia pessoal.
A igualdade na aplicação do Direito continua a ser uma das dimensões
essenciais do princípio da igualdade que é constitucionalmente garantido na maioria
dos Estados democráticos de Direito.
O princípio da legalidade é um postulado de racionalidade e exige a aplicação
do princípio da universalidade a fim de se decantar o conceito da igualdade em
sentido material uma vez que a igualdade na maioria das vezes aplica-se aos
desiguais.
Decorre do conceito de igualdade jurídica ou formal o conceito de igualdade
material, real ou justa. E o conceito de igualdade justa abrange também a
igualdade fática, a igualdade em sua dimensão material, não somente a igualdade
jurídica e decorre do princípio da justiça social.
A igualdade material é inerente à ideia de igual dignidade social, e decorre de
uma política de justiça social, tendente a concretização das imposições
constitucionais e à efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, impondo a
compensação das desigualdades de oportunidades, inclusive com a violação do
Estado e demais entes privados por comportamentos omissivos. A igualdade social
consiste na igualdade efetiva, real, material, concreta, com conteúdo pleno.
O princípio da igualdade enceta o sentido positivo e negativo, entendido o
primeiro como tratamento igual de situações iguais, desigual de situações desiguais,
com aplicação da proporcionalidade e o segundo como a vedação de privilégios e de
discriminações.
O princípio da igualdade reconduz-se ainda à proibição geral de arbítrio,
assim entendido como aplicação da igualdade de modo a que indivíduos ou
situações iguais não são arbitrariamente tratados como desiguais.
O papel do Estado, através do aparelho da Administração Pública e de todos
os seus demais entes é justamente juridificar a igualdade formal e garantir a
igualdade material a todos os indivíduos, embora a superação das desigualdades
seja de difícil concretização.
O princípio da igualdade se destina a princípio para o Estado, à sua
Administração Pública, todos os órgãos, agentes e entidades públicas
personalizadas. Em relação ao Estado e à Administração Pública a igualdade
envolve uma limitação ao exercício de poderes discricionários, constrangendo a
Administração Pública à sua utilização uniforme em circunstâncias idênticas.
Em relação aos particulares a vinculação de todos ao princípio da igualdade,
inclusive dos privados que executam funções e tarefas consideradas públicas, pode
redundar em negativa da própria liberdade e criar desigualdades inconciliáveis
dependendo da situação concreta.
1.2 OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE, RAZOABILIDADE E
PROIBIÇÃO DE EXCESSO
O princípio da proporcionalidade teve seu nascedouro no âmbito do direito
administrativo, no tema referente ao poder de polícia e seus limites, desde o século
XIX, mas somente teve reconhecimento doutrinário e jurisprudencial após a vigência
da Lei Fundamental da Alemanha de 1949.
Foi desenvolvido a partir do princípio do Estado de Direito e da vinculação das
leis e do próprio legislador aos direitos fundamentais. Na aplicação do princípio da
proporcionalidade assume relevância determinante a ponderação entre os fins e os
meios.
Para aferição do princípio da proporcionalidade, o operador do Direito deve
realizar três controles, aplicando-se três subprincípios: aplicação do subprincípio da
adequação ou conformação, ou seja, se a medida tomada pela autoridade
administrativa é suscetível de alcançar o objetivo pretendido; aplicação do princípio
da necessidade ou exigibilidade, isto é, se a medida é necessária e se nenhuma
medida menos gravosa seria capaz de alcançar os resultados; aplicação do
princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou racionalidade, consistente em
verificar se a medida é adequada e necessária e se há desproporção entre o meio e
o fim, consistindo em uma justa medida. Neste sentido, a falta de necessidade ou
de adequação traduz-se em arbítrio, a falta de racionalidade em excesso,
especialmente no agir administrativo.
A adequação ou conformação impõe que a medida adotada pela
Administração Pública para realização do interesse público seja apropriada do fim ou
fins subjacentes. Exige que o ato do poder público seja apto para e conforme os fins
justificativos da sua adoção em um controle da relação de adequação medida-fim.
Este controle é muito debatido relativamente aos poderes vinculados e
discricionários da Administração.
A necessidade do ato administrativo também conhecida como exigibilidade ou
menor ingerência possível coloca em destaque a noção de que o administrado tem
direito à menor desvantagem possível. Exige-se sempre que para a obtenção de
determinados fins, se empregue os meios menos onerosos para os administrados.
Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito é entendida como justa
medida sendo que os meios e os fins são equacionados mediante um juízo de
ponderação com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não
desproporcionado em relação ao fim.
Os atos administrativos deverão ser adequados, necessários e razoáveis. Os
objetivos almejados pelo legislador ou pela Administração, assim como os meios
utilizados para tanto deverão ser admitidos e deverão ser adequados e necessários.
Impõe-se a existência de um nexo de pertinência entre os critérios da adequação e
da necessidade. É um princípio de hierarquia constitucional que encontra validade
para toda a atividade estatal, vinculando tanto o legislador, quanto a Administração.
O princípio da razoabilidade, por seu turno, percorreu longa trajetória no
direito anglo-saxão – notadamente nos Estados Unidos – e se perfila à experiência
alemã, que o vestiu com o figurino da argumentação romano-germânica e batizou-o
de princípio da proporcionalidade.
O princípio da razoabilidade pode ser definido como: mecanismo para
controlar a discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário
invalidar atos legislativos ou administrativos quando: (a) não haja adequação entre o
fim perseguido e o meio empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária,
havendo caminho alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a
um direito individual; (c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o
que se perde com a medida tem maior relevo do que aquilo que se ganha. O
princípio, com certeza, não liberta o juiz dos limites e possibilidades oferecidos pelo
ordenamento. Não é de voluntarismo que se trata. A razoabilidade, contudo, abre ao
Judiciário uma estratégia de ação construtiva para produzir o melhor resultado,
ainda quando não seja o único possível ou mesmo aquele que, de maneira mais
óbvia, resultaria da aplicação acrítica da lei.
Por este princípio o juiz tentava (e tenta) avaliar concretamente as dimensões
do comportamento razoável tendo em conta a situação de fato e a regra do
precedente.
A Administração Pública deve ponderar os princípios e interesses, utilizando
sempre os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. O Estado e em última
análise a Administração Pública devem agir com moderação frente ao indivíduo em
face da necessidade de garantia da segurança jurídica.
Há ainda um terceiro princípio denominado de proibição do déficit ou excesso.
Este princípio é considerado como orientador e estruturante, a fim de se impor à
Administração Pública uma proteção mínima ou máxima, com respeito ao princípio
da proporcionalidade.
O princípio de proibição do excesso ou proporcionalidade em sentido amplo é
um princípio orientador de todo o ordenamento jurídico, consistindo em uma chave
de resolução dos problemas de direitos fundamentais.
O princípio da proibição de excesso surge como um princípio vocacionado
para resolver os eventuais conflitos entre direitos e interesses constitucionalmente
protegidos. A proibição de excesso deriva da noção de razoabilidade – rule of
reasonableness – com grande influência nos países da Commom Law. Há
atualmente uma nítida europeização do princípio da proibição de excesso através do
cruzamento de várias culturas jurídicas europeias.
O postulado da proibição de excesso proíbe a restrição excessiva de qualquer
direito fundamental, e nesse sentido a Administração Pública é vedado retirar
completamente a eficácia de um direito fundamental, não podendo adotar medidas
que venham a restringir excessivamente um direito fundamental, sejam quais forem
as razões que a motivem. A proibição de excesso funciona, assim, como um limite.
Quando uma escolha se oferece entre várias medidas apropriadas, é
conveniente utilizar a menos gravosa, e os encargos impostos não devem ser
excessivos em relação aos fins visados.
Nesse sentido, a Administração não pode deixar de pautar sua atuação pelo
princípio da proporcionalidade, mas também não pode se omitir ante a justificativa
da proporcionalidade. Pelo princípio da razoabilidade se atribui o sentido de
coerência lógica nas decisões administrativas, o sentido de adequação dos meios e
fins.
E na eventual colisão ou aplicação dos direitos fundamentais no caso
concreto teremos que recorrer invariavelmente ao princípio da proporcionalidade
ponderando os bens jurídicos em conflito, atentos, no entanto, à proibição de
excesso.
1.3 PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA PROTEÇÃO DE
CONFIANÇA
O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar
autônoma e responsavelmente a sua vida, impondo-se a segurança jurídica como
condição da paz social, do primado da liberdade e da autonomia privada.
Por isso o princípio da segurança jurídica e também o princípio da proteção
de confiança são considerados como elementos constitutivos do Estado de direito e
estão intimamente associados, exigindo a confiabilidade, clareza, racionalidade e
transparência dos atos do Estado e da Administração Pública de modo que os
indivíduos tenham a garantia da segurança nas suas disposições privadas
(liberdade) e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos.
O princípio da proteção de confiança somente foi objeto de construção
dogmática, como princípio autônomo, após a 2ª Guerra Mundial, principalmente pela
Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Atualmente é
considerado como um princípio de direito fundamental e vincula todo o poder estatal,
não só o Poder Executivo e a Administração Pública, mas também os Poderes
Legislativo e Judiciário.
A proteção de confiança tem como destinatário o cidadão. Exige a proteção
da confiança do cidadão com o qual contou de forma a conservar estados de posse
uma vez obtidos e dirigem-se contra as modificações jurídicas posteriores.
O princípio da proteção de confiança está amparado nos princípios do estado
de direito, da segurança, da certeza jurídica, da lealdade e boa-fé dos
administrados, da certeza jurídica entre outros.
O princípio da proteção da confiança pode se opor, em alguns casos
concretos, ao princípio da legalidade que vincula a Administração, impondo-se
nessas hipóteses a ponderação dos princípios. E, dependendo dessas
circunstâncias, a proteção da confiança do cidadão deve prevalecer à própria
legalidade dos atos administrativos, eis que aquele deriva dos direitos fundamentais
individuais.
Em termos práticos, podemos observar a aplicação do princípio da proteção
de segurança aplicável ao direito administrativo em diversas situações concretas. A
título de exemplo poderíamos aplicar este princípio nas hipóteses da retratação do
ato administrativo, da revogação do ato administrativo, da irretroatividade das leis
face aos atos administrativos (jurídicos) perfeitos, entre outros.
O Tribunal Constitucional Alemão classificou a retroatividade das leis no
sentido próprio e no sentido impróprio. A primeira – sentido próprio seria aquela
situação já definida em que a lei posterior gera efeitos retroativamente. A segunda
seria a situação nascida no passado, mas que produz efeitos ao longo do tempo e a
lei passa a regular a situação a partir de sua vigência.
O princípio da segurança jurídica e da proteção de confiança em relação aos
atos da Administração Pública apontam para a ideia de força de caso decidido dos
atos administrativos. O ato administrativo, nesse sentido, goza de uma tendencial
imutabilidade que se traduz na autovinculação da Administração e na
irrevogabilidade do ato administrativo a fim de salvaguardar os interesses dos
administrados destinatários do ato.
1.4 PRINCÍPIOS DA EFICIÊNCIA E O DIREITO À BOA-ADMINISTRAÇÃO
A eficiência tornou-se uma das principais metas a ser atingida pela
Administração Pública das mais diversas nações. O dever da boa-administração
confunde-se com o princípio da eficiência e ambos decorrem do princípio da
prossecução do interesse público.
A eficiência administrativa liga-se à ideia de melhor produtividade dos
resultados com o menor custo possível, de forma ágil e precisa. Este ideal erigido a
princípio foi reforçado pelo conceito de globalização, uma vez que o Estado deve
prestar serviços com eficiência sócio econômica, para atender a sociedades cada
vez mais demandantes e solidarizadas pela democracia.
Há autores que apontam que a busca da eficiência é a meta mais importante
do setor público futuro, face à crescente ideologia de que todo serviço prestado pelo
Estado é sempre custoso e ineficiente e o Mercado é sempre melhor. O princípio da
eficiência também se correlaciona à ideia de bom andamento, no sentido de que a
Administração Pública deve possuir boas condições de funcionamento.
A boa administração é um dever jurídico que se impõe à Administração
Pública decorrente dos princípios gerais da atividade administrativa. O Estado
contemporâneo deve pautar sua atuação na eficiência administrativa, na
racionalização e na desburocratização para o desempenho de suas funções
essenciais. É esse o papel que a sociedade espera do Estado.
Vale notar que para concretizar uma maior eficiência administrativa muitas
vezes se faz necessária a despolitização das decisões administrativas, que devem
ser tomadas por critérios predominantemente técnicos e com autonomia da vida
política, que notadamente é marcada por preferências e sujeições partidárias.
Na realidade da fase de pós-privatização dos bens e serviços públicos a
exigência da eficiência deve ser redobrada no sentido de que o Estado deve regular,
fiscalizar e impor aos entes privados que assumiram as tarefas públicas a qualidade
e excelência dos serviços prestados, com o menor custo possível aos administrados.
Com isso mostra-se inadmissível que os Estados e respectivas
Administrações modernas sejam ineficientes, burocráticos ou mesmo que se
desviem da juridicidade, pela prática de vícios e atos ilícitos.
Em um ambiente globalizado, altamente competitivo, marcado pela tônica da
economia de mercado e da concorrência o Estado que se mantiver alheio a estes
princípios e for ineficiente, burocrático e corrupto acarretará graves consequências a
seus administrados e gerará um perpétuo subdesenvolvimento de seus povos.
1.5 PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA OU DA PUBLICIDADE
O princípio da transparência, também conhecido como princípio da
publicidade traz em seu bojo a proibição do segredo dos atos da Administração
Pública, como regra e também de todos os atos típicos praticados pelos Poderes
Legislativo e Judiciário. O secreto, invisível, opaco, reinante em Administrações
Públicas de épocas não tão remotas, em regimes autoritários e totalitários e ainda
presente em alguns países mostra-se frontalmente contrário à ideia de democracia e
juridicidade.
A justificação do princípio da publicidade é simples: o princípio do Estado de
direito democrático exige o conhecimento, por todos, dos atos do próprio Estado e
da Administração Pública e proíbe decisões e atos administrativos secretos.
O Estado democrático de Direito, guardião da Constituição e garantidor dos
direitos fundamentais, não mais dá guarida a qualquer tipo de segredo e opacidade
da Administração. O segredo deve ser adotado apenas como exceção, em questões
de segurança de Estado, moeda, política cambial, investigações policiais, dados
privados dos particulares e alguns outros tópicos restritos e expressamente previstos
expressamente no texto constitucional.
A publicidade (ou máxima transparência) é um dos principais requisitos para
que seja efetivada a garantia dos direitos fundamentais dos administrados. A
publicidade e transparência dos atos da Administração deve ser a regra geral, o
norte a ser perseguido pelo Estado. A Administração Pública deve pautar sua
conduta de modo a nada ocultar, suscitando a participação fiscalizatória da
cidadania, na certeza de que, salvo raras exceções constitucionais, tudo deve vir a
público.
No conceito de publicação se encerra a divulgação oficial do ato para
conhecimento público e início de seus efeitos externos. Daí porque as leis, atos e
contratos administrativos só produzem consequências jurídicas e adquirem validade
universal após a publicidade dos mesmos.
A publicidade não é considerada propriamente como um elemento formador
do ato, mas um requisito de eficácia e moralidade. O princípio da publicidade ou
transparência dos atos e contratos da Administração Pública visa também a propiciar
o conhecimento geral dos mesmos e controle pelos interessados diretos e pelo povo
em geral.
O segredo foi mantido em vários países e só foi abolido, como regra geral,
recentemente. Isto está a demonstrar que o acatamento ao princípio da
transparência denota a conquista da ideia democracia com antítese da opacidade
decisória.