batista, nilo. novas tendências do direito penal

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  • 7/30/2019 BATISTA, Nilo. Novas tendncias do Direito Penal.

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    Novas tendncias do direito penal

    Nilo Batista()

    Para desincumbir-me da honrosa tarefa, a mim

    cometida pelo Ministro Csar Asfor Rocha, de proferir a palestra

    inaugural deste seminrio, dispunha eu de duas alternativas

    confortveis. A primeira consistiria em simplesmente visitar ostemas das mesas redondas e conferncias dele integrantes: estaria

    coincidindo com a organizao do seminrio quanto ao contedo

    das novas tendncias. Para a segunda alternativa bastaria aceitar o

    tema delicadamente sugerido no esboo preliminar do programa a

    mim remetido (ps-finalismo): estaria restringindo ao campo da

    teoria do delito o objeto de nossa neste caso sonfera reflexo. Aooptar por um terceiro caminho, rendido pela forte convico de que

    as maiores transformaes que o direito penal experimenta e vir a

    experimentar provm de uma ruptura metodolgica que poderamos

    perceber como uma sorte de reconstruo do discurso dogmtico,

    no deixarei contudo de roagar os assuntos de nossa pauta, nem

    de espiar a vitrine de novidades tericas algumas j em liquidaode vero que podem ser rotuladas como ps-finalismos.

    (

    ) Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Cndido

    Mendes. Presidente do Instituto Carioca de Criminologia. Palestra proferida em 8 de maio de 2003, no

    Centro de Estudos Judicirios.

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    Prof. Dr. Nilo BatistaTitular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Titular de Direito Penal da Universidade Cndido Mendes

    Na virada do sculo XIX, o positivismo

    criminolgico havia triunfado em nosso pas. Em 1894, NinaRodrigues publicava seuAs Raas Humanas, e Viveiros de Castro,

    num livro intitulado A Nova Escola Penal, afirmava ser o crime o

    efeito do contgio, (que se) transmite como um micrbio. Dois anos

    depois, o futuro chefe de polcia, Aurelino Leal, dava a lume seu Os

    Germens do Crime. O saber mdico tinha um encontro marcado

    com a poltica criminal e, portanto, reivindicava e teve muito poder. A medicina social havia conseguido, em 1893, na pele da

    poderosa Inspetoria Geral de Higiene, a um s tempo demolir o

    Cabea de Porco e semear, com os destroos humanos e materiais

    do cortio, a primeira favela carioca, no vizinho morro de Santo

    Antnio. Mas em 1904 conseguiria muito mais, nos complexos

    acontecimentos que ficaram conhecidos como Revolta da Vacina. O

    positivismo criminolgico, tanto quanto a poltica criminal acoplada a

    suas premissas, produzia um discurso estratgico para aquela

    conjuntura, no qual a perdida inferioridade jurdica inerente s

    dominaes escravistas era substituda por uma inferioridade

    biolgica, de base racial que deveria ser cientificamente

    demonstrada , e no qual se buscava a patologizao da infrao e

    dos infratores (aquelas metforas do crime como doena

    transmissvel, validadas agora por uma incipiente estatstica

    criminal). Portanto, a ltima engenhoca institucional da poltica

    criminal norte-americana de drogas, a chamada justia

    teraputica, no passa de uma falsa novidade, que tem a idade do

    positivismo criminolgico. Quero destacar dois aspectos

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    metodolgicos daquela ocasio, aparentemente secundrios: 1) o

    saber mdico e o saber jurdico (mesmo sob a forma mais tosca dagesto policial urbana) vivem intensas trocas; 2) o paradigma

    etiolgico est em seu inquestionvel apogeu. Afinal, em 1895, uma

    das regras do mtodo sociolgico de Durkheim, relativa

    explicao dos fatos sociais, recomendava precisamente buscar

    separadamente a causa eficiente que os produz.

    Desta breve fotografia do alvoroo positivista,

    que na jovem repblica se exprimia tambm como cincia poltica,

    passemos ao direito penal.

    Em 1899, um prestigiado Jos Hygino publicava,

    em dois volumes, sua traduo do Tratado de von Liszt, precedido

    de um prefcio que foi e provavelmente ainda o hoje a pgina

    de um penalista brasileiro mais elogiada por seus colegas. Vrios

    dos presentes sabem a raridade que isso. Entre os inmeros

    elementos que a traduo de von Liszt introduziu entre ns, quero

    destacar dois. Em primeiro lugar, estvamos tomando contacto com

    um conceito natural de ao, prprio de uma empostao causal do

    delito. Em segundo lugar, estvamos recebendo a grande

    concepo lisztiana da cincia criminal total, que ao lado do direito

    penal situa como suas cincias irms (so palavras de Jos

    Hygino) apoltica criminale a criminologia. Olhemos mais de perto

    estes dois problemas.

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    O cdigo imperial no dispunha de uma regra

    bsica sobre causalidade; a palavra resultado no aparecia uma svez em sua parte geral. Para os problemas prticos colocados pelo

    homicdio, recorria-se ao histrico critrio da letalidade das leses,

    a ser afirmado pelos facultativos mencionados no artigo 195 CCr

    1830. A imputao objetiva da morte demorada, que

    tradicionalmente se resolvia numa presuno temporal o

    conselheiro Paula Passos lembrava que Farincio exclua aimputao aps 40 dias da ferida, e uma lei inglesa, ainda vigorante

    no incio do sculo XIX, valia-se do prazo mais prudente, e

    curiosamente possessrio, de 1 ano e 1 dia a imputao objetiva

    da morte demorada era assim tambm entregue ao saber mdico,

    ao qual um aviso ministerial de 1854 autorizava recorressem os

    juzes mesmo sem pedido das partes. Um excelente artigo de

    Eduardo Duro sobre o tema se intitulava, significativamente, A

    concausa no homicdio. Convm acrescentar, j que estamos

    provocadoramente falando de imputao objetiva na primeira

    metade do sculo XIX, no Brasil, que o cdigo imperial contemplava

    um homicdio privilegiado quando a morte se verificasse no

    porque o mal causado fosse mortal, mas porque o ofendido no

    aplicasse toda a necessria diligncia para remov-lo (art. 194):

    estes eram o lugar e os efeitos, naquele momento, da auto-

    exposio perigosa da vtima.

    Mas o cdigo penal de 1890, por direta influncia

    do artigo 38 do cdigo bvaro de 1813 (que, a partir da traduo de

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    Vatel, de 1852, circulava intensamente entre os penalistas do

    imprio), trazia em seu artigo 11 uma regra segundo a qual quandoa consumao do crime depender da realizao de determinado

    resultado, considerado pela lei elemento constitutivo do crime, este

    no ser consumado sem a verificao daquele resultado.

    Topologicamente inserido entre a impunibilidade dos atos

    preparatrios (art. 10) e as regras da tentativa (arts. 12 e 13), tal

    dispositivo foi interpretado pela doutrina como simples distinolegal entre crimes formais e crimes materiais. Assim fariam, por

    exemplo, Galdino Siqueira e Costa e Silva. A questo do resultado

    desorientava um pouco nossos colegas de antanho. Em primeiro

    lugar, por seu ineditismo: s isto explica que Oscar de Macedo

    Soares tenha cedido ao trusmo de que ao vocbulo resultado

    damos a significao criminolgica que deve ter, isto , o que

    resulta de um ato ou fato criminoso, conforme a inteno do

    agente. Mas a principal dificuldade era que, perante um conceito

    de ao como o de von Liszt, centrado na causao do resultado

    atravs de um movimento corpreo voluntrio, que implica

    contrao dos msculos, e no qual o resultado deve ser

    produzido pelo movimento corpreo, e entre ambos deve ainda

    mediar uma conexo causal, perante tal conceito de ao

    impossvel reconhecer crimes sem resultado.

    Apesar do artigo 11, o primeiro cdigo penal

    republicano, cujo parto induzido se iniciara ainda no Imprio como

    reviso e aprimoramento do diploma anterior, mantivera-se fiel ao

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    critrio da letalidade das leses: para que se repute mortal, no

    sentido legal, uma leso corporal rezava seu artigo 295 indispensvel que seja causa eficiente da morte por sua natureza e

    sede. Tambm aqui, ao contrrio de que se passava no

    correspondente artigo 195 do cdigo de 1830, aparecia a expresso

    causa eficiente, que remontava a Aristteles e, a partir de Toms de

    Aquino, dentro da conhecida concepo das quattuor causae,

    chegara ao direito comum pela via cannica.

    Na prtica judiciria, esta receita uma causa

    eficiente no artigo 295 (referindo um critrio restritivo da imputao

    objetiva da morte demorada) mais um resultado no artigo 11 (que,

    em minha opinio, integrava o princpio da legalidade,

    complementando os artigos 1 e 7, muito antes de postular uma

    classificao legal de crimes formais e materiais, em todo caso

    implcita) esta receita gerava perplexidades e solues

    contraditrias.

    H uma sentena muito interessante, de 6 de

    maro de 1891, da lavra do juiz municipal Zacharias Horcio dos

    Reis, prolatada em Simo Dias, Sergipe; podemos conhec-la

    porque Joo Jos do Monte f-la publicar no 56 volume de sua

    revista Direito. Em 19 de janeiro daquele ano, Manuel Pedro das

    Dores Bombinho, do lado de fora da Intendncia Municipal, onde se

    realizava uma audincia, chamou por Jos Leopoldino da Silveira

    Collete, e pediu-lhe que em seu favor elaborasse uma petio. No

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    sendo atendido, seguiu-se um entrevero no qual Bombinho deu

    uma bofetada em Collete, quem, ao retornar Intendncia, caiufulminado por uma asfixia produzida pela supresso brusca da

    circulao pulmonar, como verificou-se da autpsia. Deixo de lado

    outros aspectos sedutores do caso, como ter ocorrido durante a

    vacatio do novo cdigo, que foi aplicado por retroatividade benigna,

    e convido meus colegas a imaginar as dificuldades de

    fundamentao de nosso juiz Zacharias, sem uma orientao legal s disponvel a partir do cdigo de 1940 acerca da irrelevncia

    de concausas antecedentes em hipteses de interrupo de nexo

    causal. Em seu formoso Tratado, publicado exatamente um sculo

    aps a sentena que ora examinamos, Roxin recorda que o

    emprego judicial explicito da frmula suprimir mentalmente deu-se

    pela primeira vez em 1910, num aresto do Tribunal do Reich. Nosso

    juiz no empregou explicitamente a frmula, talvez porque j lhe

    bastasse, evitando redundncias, a supresso da circulao

    pulmonar que os facultativos lhe haviam asseverado; porm o

    critrio foi substancialmente utilizado: todas as testemunhas

    escreveu ele do a luta e a bofetada como causa da apoplexia, e

    portanto como causa eficiente da morte, porquanto sem aquela

    causa no haveria este efeito; sem a luta no haveria supresso da

    circulao pulmonar, e sem esta no se daria a morte. Nada mal

    para um contemporneo perifrico de Thyren.

    Seria contudo ingenuidade concluir que a

    causalidade, como critrio central daquilo que os velhos

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    criminalistas chamavam imputatio facti, estava ingressando na

    doutrina penal brasileira tangida apenas pelo emprego,em doisdispositivos desconectados do cdigo de 1890, das expresses

    resultado e causa eficiente, ou ainda pela edio e circulao do

    livro de von Liszt, ou finalmente pelos casos concretos sobre os

    quais tinham os juzes que decidir. A coisa era muito mais profunda.

    Do chamado renascimento cientfico brotara a concepo de um

    mundo fsico causal, onde fenmenos guardam entre si aquelaferma e costante conessione qual se referia Galileu, onde o

    determinismo de Newton concebe a fora como uma causa. A teoria

    jurdico-penal das foras fsica e moral do delito, formulada por

    Camignani e desenvolvida por Carrara, que as decompunha em

    graus, exprime uma recepo clara e direta daquela concepo.

    No nos esqueamos de que Carrara fazia derivar vita de vis, ou

    seja, a vida proviria numa metfora etimolgica da fora, e o

    exemplo que fornecia era astronmico: o que d ao planeta sua

    existncia e sua vida a fora de translao e rotao. Para

    Feuerbach, autor era a pessoa em cuja vontade e ao est a

    causa eficiente que produziu o crime como efeito, e o fundamento

    da menor punibilidade da tentativa residia numa menos ntima

    conexo causal entre ao e resultado. Essas trocas no eram

    absolutamente inditas: Galileu no sugerira a Hobbes que a tica

    poderia ser tratada com o mtodo da geometria? Mas no mundo da

    revoluo industrial, da mquina a vapor aos crimes culposos, tudo

    parecia cantar a glria do princpio causal.

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    Tambm na filosofia o princpio causal parecia

    reinar soberanamente. Kant no se contentara em afirmar, naMetafsica dos Costumes, que a lei penal constitua um imperativo

    categrico; na Crtica da Razo Pura, a causa concebida como

    categoria a priori, portanto perfeitamente conforme s funes

    lgicas gerais do pensamento, e apta a prescrever leis natureza,

    entendida como a totalidade dos fenmenos. Como poderiam as

    futuras cincias sociais abrir mo deste instrumento, com avalkantiano, que facultava a inteligibilidade das relaes e dos conflitos

    a partir do princpio causal? Como poderia a teoria jurdica do delito

    deixar de formular, como seu mais inquestionvel e basilar

    construto, um conceito naturalstico-causal da conduta humana

    punvel?

    Em suma, a traduo que Jos Hygino publica,

    no ltimo ano dos oitocentos, divulga entre ns a formulao

    lisztiana da ao causal. O tema que dominaria absolutamente

    perdoe-nos a culpabilidade e sua eterna crise a teoria do delito no

    sculo XX estava servido mesa doutrinria brasileira, mesa esta

    que naquele momento, exceo luminosa de algum que

    polemizara muito com o prprio Jos Hygino, mas j estava morto

    havia uma dcada, o grande Tobias Barreto, fartava-se mais nas

    enxndias dos comentrios do que nas ervas finas da

    sistematizao dogmtica.

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    Porm, mais importante do que isto, estvamos

    paralelamente, como j frisado, recebendo a grande concepo dacincia criminal total, e ao lado da organizao propedutica que

    articulava o direito penal poltica criminal e criminologia,

    chegava tambm a racionalidade final, cujo manifesto fora a aula

    magna de 1882, quando von Liszt assumia a ctedra em Marburgo.

    Ao romper com as fundaes metafsicas da pena, decretando o

    naufrgio do empreendimento kantiano a respeito; ao derivar apena, quanto a contedo, extenso, espcie e quantidade,

    diretamente da idia de fim, von Liszt construia a mais consistente

    verso de combate do relativismo penal. Sua frase lapidar s a

    pena necessria justa orientaria inmeras formulaes

    preventivistas, e constitui o antecedente doutrinrio da polmica

    quarta categoria do delito: a necessidade preventiva, que poderia

    excluir a pena ainda que afirmada a culpabilidade.

    No cabe, aqui, expor longamente o que era

    para von Liszt a poltica criminal e a criminologia. De forma sucinta,

    observaremos que, ancorado em Hobbes (o direito evita que

    prorrompa a guerra de todos contra todos) e em Rousseau (o

    prudente Jos Hygino colocou uma nota de rodap na expresso

    vontade geral, negando tal filiao), e discutindo com Binding, von

    Liszt fez dos bens jurdicos, da coero pblica e especialmente da

    pena objetos privilegiados da poltica criminal. Quanto

    criminologia, no tinha ele como escapar ao conceito de uma

    cincia causal naturalstica, dividida entre uma biologia e uma

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    sociologia criminal, ento dominante e que dominante se manteria

    por muito tempo.

    Podemos agora olhar para o direito penal de

    nossa famlia jurdica, e particularmente o brasileiro, ao longo do

    sculo XX, e constatar que, neste amplo mosaico de tendncias e

    movimentos, compatveis ou antagnicos, houve um fenmeno s

    explicvel por uma interdio metodolgica: nenhum dilogo entrepoltica criminal, criminologia e nossa disciplina. Conhecemos de

    perto dois fundamentos para essa interdio: o do tecnicismo

    jurdico e o do neokantismo. Em 1942, na famosa conferncia

    paulistana, Hungria dizia que o mtodo do direito penal, seu nico

    mtodo possvel, o tcnico-jurdico ou lgico abstrato; nada de

    dialogar com o produto infecundo da criminologia, ou menos ainda

    com devaneios filosficos. Ecoam a as palavras de Rocco em

    Sassari: a elaborao tcnico-jurdico do direito penal positivo e

    vigente a tarefa e a funo do direito penal; ressoa a o

    memorvel ornejo de Manzini, considerando a filosofia de todo

    suprflua. Anbal Bruno afirmava, em 1956, que todos esto

    acordes em que o mtodo no direito penal deve ser o tcnico-

    jurdico. Mas foi o neokantismo de Baden, com a diviso

    irremissvel entre o mundo e as cincias do ser e do dever-ser,

    que consumaria a edificao de uma muralha entre os saberes

    jurdicos e criminolgico ou poltico-criminal. O penalismo neo-

    kantiano chegaria Amrica Latina no pelos trabalhos de Max

    Ernst Mayer ou de Gustavo Radbruch, e sim pela traduo do

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    Tratado de Mezger, por Rodriguez Muoz, em 1935. O primeiro

    Heleno Fragoso afirmava que o direito penal se inclua entre ascincias culturais, conforme a classificao que provm da filosofia

    dos valores, e frisava que no misso do jurista estudar a

    realidade social para estabelecimento de conceitos. O penalista

    seria, assim, meio parecido com o personagem da anedota, aquele

    paciente que, aps trs lustros de psicanlise, recebe alta e,

    encontrando na rua um amigo que lhe pergunta como vai, respondecom um esgar: eu vou muito bem, a realidade que insuportvel.

    Que o assunto mais emocionante para

    penalistas, lecionando entre os escombros fumacentos do ps-

    guerra, fosse a polmica causalismofinalismo, verdadeiramente

    de estarrecer. Tantas violaes de velhos e bons princpios liberais;

    tantos oportunismos tericos, com tantas adeses; tantas

    criminalizaes do ser e do pensar; tantas sentenas e tantos

    assassinatos sem elas; tanta privao de liberdade, tanta vigilncia;

    tantos campos, tantas mortes, tanta violncia; quando,

    anteriormente, houve tanta pena, tanta pena, com todos os seus

    adereos institucionais e tericos, intervindo num projeto poltico

    imperialista? E, no obstante, o melhor a fazer era discutir

    causalismo e finalismo?! Esta foi talvez a maior demonstrao de

    fora que o neokantismo deu.

    Muoz Conde apresentou, em seu estudo sobre

    Mezger, bons indcios de que o grande sucesso da polmica

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    causalismo-finalismo ajudou a manter a reflexo penalstica longe

    do debate sobre a trgica experincia penal nazista, retirado para oambiente mais rarefeito da filosofia do direito. O certo que a

    polmica entre uma teoria do delito sucessora daquela de von

    Liszt, e ainda causal-naturalista, mas que buscara na filosofia dos

    valores o expediente metodolgico da normativizao e outra,

    nova, que se chamou da ao final ou finalista, dominaria o

    interesse dos penalistas na Amrica Latina, at a dcada de oitenta.

    Olhando-se de certo ngulo, nem polmica

    havia, verdadeiramente. Quando Welzel elabora o primeiro

    finalismo, aquele da finalidade potencial, nos meados dos trinta, o

    princpio causal estava j completamente desacreditado no mbito

    das cincias fsicas. Como diz Prigogine, a fsica do no-equilbrio e

    os sistemas dinmicos instveis significaram um abandono da viso

    cientfica clssica, que privilegiava a ordem e a estabilidade,

    questionada pelo reconhecimento, em todos os nveis de

    observao, do papel primordial das flutuaes e da instabilidade.

    Na dcada anterior, Wittgenstein escrevera em seu Tractatus

    Logico-philosophicus essas palavras incisivas: Da existncia de

    uma situao qualquer no se pode, de maneira nenhuma, inferir a

    existncia de uma situao completamente diferente dela. Um nexo

    causal que justificasse uma tal inferncia no existe. Os eventos do

    futuro, no podemos deriv-los dos presentes. A crena no nexo

    causal a superstio (5.135 ss).

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    Titular de Direito Penal da Universidade Cndido Mendes

    Mas Welzel se fundamentou precisamente na

    filosofia causalista de Nicolai Hartmann. Embora ele tenha tentadonegar isso, no prlogo 4 edio do Das neue Bild, as provas em

    sentido contrrio so muito convincentes: todos os elementos

    integrantes daquela frase que correu os cinco continentes, sobre a

    cegueira da causalidade e a vidncia da finalidade, esto em

    Hartmann. E, efetivamente, o finalismo no descartou o princpio

    causal: apenas isentou de tal modelo de determinao a condutahumana, cujos fins so previamente representados pelo sujeito.

    Marx j houvera formulado isso naquela comparao entre a mais

    laboriosa das abelhas e o mais desastrado dos arquitetos que, no

    entanto, diferena do inseto, constri a casa na cabea antes de

    plant-la no espao. Porm, se excetuarmos a conduta humana,

    orientada a fins, todo o resto do mundo seria resultante de

    processos causais que o homem conhece mais ou menos, e por

    isso Welzel falava de um saber causal, com conseqncias

    dogmticas que aqui no nos interessam. Em seu Tratado, no

    primeiro exemplo com o qual queria caracterizar a causalidade

    cega, para distingui-la da finalidade vidente, Welzel afirma que

    ser o homem atingido pelo raio era algo que estava por certo

    condicionado causalmente na cadeia infinita do devir. Que dvida

    poderemos ter de que o finalismo era... causalista?!

    Uma teoria jurdico-penal que, tal como ocorreria

    nas cincias sociais, negasse frontalmente o paradigma causal,

    investindo antes na indeterminao, na possibilidade sobre a

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    certeza, e rompendo os preconceitos que nos fariam ver na locuo

    sistemas caticos uma contraditio in adjecto, era totalmenteimpensvel em meados do sculo XX. O sucesso da teoria finalista

    alm da utilidade entrevista por Muoz Conde na polmica que a

    divulgou, de evitar assuntos desagradveis, e alm do

    inquestionvel aprimoramento e coerncia que trouxe para diversos

    ncleos problemticos da teoria do delito este sucesso foi

    alavancado, em minha opinio, por duas circunstncias. Por umlado, subtrair o sujeito do mundo causal determinado era algo em

    consonncia com o princpio da autonomia moral da pessoa

    humana, pedra angular do ento nascente direito internacional dos

    direitos humanos; de outro lado, no quadro da guerra fria, no qual

    uma das oposies propagandsticas situava no ocidente cristo a

    liberdade e na Unio Sovitica materialista o determinismo histrico,

    este sujeito que pode atuar finalisticamente, fora dos

    condicionamentos de classe social, era um personagem benvindo.

    No me deterei sobre o subjetivismo monista,

    este ps-finalismo que, negando a pretenso de validade ontolgica

    da teoria finalista com base numa crtica gnoseolgica neokantista,

    quis conformar toda a teoria do delito ao modelo da tentativa, no

    que Zaffaroni viu, com razo, uma exasperao da eticizao

    welzeliana do direito penal. Ouamos um de seus corifeus, Zielinski:

    o ilcito jurdico-penal constitudo pelo desvalor da ao, e neste

    desvalor se esgota; o resultado de uma ao sempre casual.

    Ouamo-lo para entender porque, contrariando a ansiedade

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    colonizada de, como dizia Hungria, emitir fumaa sempre que a

    Europa acende um fogo, o subjetivismo monista no influenciou odireito penal brasileiro, cujo cdigo explicitamente atribui relevncia

    e efeitos, em diversos nveis, ao resultado.

    Antes de chegar aos funcionalismos sistmicos,

    quero recordar aquelas interdies metodolgicas que concederam

    um certo autismo discursivo ao direito penal. Com efeito, no hexagero no apodo de autista atribudo a uma disciplina que, sem

    embargo de esforos individuais e isolados, jamais incorporados,

    recusou-se a dialogar por exemplo com o marxismo, ou com a

    psicanlise, ou ainda com certas frutuosas vertentes da filosofia da

    linguagem. Em nosso esplndido isolamento tcnico-jurdico,

    alapados entre as ameias da alta muralha que impedia a realidade

    de penetrar na cidadela do dever-ser, s logrvamos nos ouvir

    mutuamente, uns fundamentando-se nos outros, repetindo aqui,

    ultrapassando acol, numa enfadonha mesmice. Parecamos

    concordar com Mefistfeles quando, ao atender, travestido com a

    toga e o gorro de Fausto, um estudante que lhe disse no querer

    ingressar na faculdade de direito, acrescentou que as leis e o

    direito se transmitem, de uma a outra gerao, como doena

    perptua sem descanso. forte, mas trata-se do diabo.

    O movimento de retorno a von Liszt, nos anos

    setenta, se de um lado implicava o resgate do preventivismo, por

    outro tambm significava a implantao da racionalidade de fins

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    para que serve tudo isto? , que abria caminho para a insero do

    discurso jurdico-penal na experincia histrica concreta do sistemapenal institucionalizado, e principalmente representava a

    recuperao metodolgica do intercmbio direito penal poltica

    criminal criminologia, vedado por aquelas interdies.

    Em seu artigo sobre as fundaes poltico-

    criminais do sistema de direito penal, Roxin aspira a tornarfrutferos para a dogmtica postulados scio-polticos, bem como

    descobertas empricas e dados criminolgicos especiais,

    ampliando para o mbito criminolgico a interao que sua famosa

    monografia dos anos setenta prescrevera apenas do ngulo da

    poltica criminal. Ou seja: o que Roxin props, com sua

    sistematizao teleolgico-funcional, foi a destruio daquela

    muralha. A poltica criminal ganhou legitimidade para intervir na

    soluo de problemas dentro da teoria do delito, e os dados da

    criminologia tambm podem ingressar na cidadela dogmtica. Esta

    a grande novidade metodolgica do ltimo quarto de sculo em

    direito penal, e dos horizontes abertos por esta interdisciplinaridade

    que brotam as novas tendncias do direito penal. A poltica

    criminal, a qual, na introduo de suas Moderne Wege, referia-se

    pejorativamente Mezger como irm mais moa e mundana do

    direito penal, e a criminologia que na mesma conjuntura dos anos

    setenta comeava a abandonar o paradigma etiolgico para

    finalmente investigar o complexo fenmeno da criminalizao e os

    aparatos de poder que a realizam a nova criminologia,a

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    criminologia da reao social, numa palavra a criminologia crtica,

    eram ambas poltica criminal e criminologia concitadas aingressar no templo.

    Toda simplificao perigosa, principalmente

    quando dirigida a uma obra jurdica cujo autor no apenas tem um

    conhecimento enciclopdico do direito penal, mas tambm uma

    probidade e finura intelectual a toda prova. Estou me referindo construo terica de Claus Roxin, deste herdeiro direto de von

    Liszt, para simplificada e talvez, ai de mim, simplistamente dizer

    de seu sistema teleolgico-funcional que, se foi pioneiro e criativo

    em fazer a poltica criminal dialogar com a dogmtica e ajud-la a

    resolver problemas, foi tmido no momento de entreabrir a porta

    criminologia. Se a adoo de uma concepo retributivoabsoluta

    de pena no passa de um ato de f, adotar uma concepo

    preventiva mesmo na sofisticada verso antes dialtica e agora

    unificadora roxiniana mais do que isso, desafiar todo o

    fracasso das pesquisas que empiricamente tentaram comprovar as

    funes preventivas, quando tal comprovao era factvel. No

    sistema de Roxin, se as trocas com a poltica criminal receberam

    um enorme impulso, a criminologia foi deixada no vestbulo: era

    uma convidada algo inconveniente, cujos maus modos poderiam

    perturbar o encontro, explodindo numa gargalhada quando algum

    falasse de ressocializao atravs da privao de liberdade.

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    A questo diversa no funcionalismo sistmico

    de Jakobs, tambm uma elaborao terica de altssimo nvel. Aqui,uma teoria social est no cerne da reconstruo dogmtica,

    influenciando suas solues de alto a baixo. O problema de qual

    teoria social se trata, ou, melhor ainda, de qual verso da teoria

    social se trata, e como se deu sua incorporao. naturalmente

    grande o repdio a uma proposta que atribui ao poder punitivo a

    funo de reforamento do sistema atravs da certeza na interaoconforme a papis sociais, que mediatiza o sofrimento humano

    penal definindo a pena como demonstrao de vigncia da norma

    custa do responsvel. No cabe aqui aprofundar essa crtica, para a

    qual, ficando apenas no meu Estado, remeto s palavras definitivas

    de Juarez Tavares e Heitor Costa Jnior. Era talvez inevitvel que a

    primeira teoria social a acasalar-se sistematicamente com

    categorias jurdico-penais fosse, paradoxalmente, uma teoria

    perante a qual o conflito equivale a uma perturbao, e no a uma

    dinmica social; um teoria que postula o equilbrio do sistema a

    qualquer preo; em suma, com novas e sofisticadas frmulas, uma

    teoria da ordem e da estabilidade, cujo esprito pertence, em

    realidade, ao sempre previsvel e perene mundo do princpio causal.

    Poder fazer sucesso nos pases centrais, ricos, com baixa

    conflitividade social; mas, aqui?! Faz sentido olhar por exemplo para

    a criminalizao das ilegalidades populares, sacoleiras, camels,

    prostitutas, apontadores do bicho, etc, para essas estratgias de

    sobrevivncia, e pensar em reforar o sistema (e no mud-lo) ou

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    na satisfao de expectativas da classe mdia, que no quer ver a

    misria por perto?

    Fujamos tentao de, mesmo rapidamente,

    mirarmos as construes que, tendo por cumieira o risco de Roxin

    ou os papis de Jakobs, reinventam criativamente o velho problema

    da imputao objetiva. Passemos por elas com a observao de

    que tais autores na verdade no descartam a causalidade, que emalgumas verses normativizadas era j quase uma metfora

    atributiva; o debate causal se refina criticamente, e acopla-se ao

    requisito causal um conjunto de topoi, de diversa procedncia e

    natureza, com a capacidade de resolver constelaes de casos.

    Confrontar essa tpica com o texto do cdigo penal brasileiro,

    aplainando desavenas; comparar os impasses da causalidade com

    aqueles advindos do conceito, bem longe de unvoco ou denotativo,

    de risco (se reconhecer a causa pelo efeito impossvel, como

    reconhecer o risco que se realiza no resultado sem grandes

    dificuldades?); tudo isso nos tomaria o tempo que nos resta deste

    encontro. E este tempo deve ser dedicado ao esclarecimento de

    quais orientaes poltico-criminais e criminolgicas esto, neste

    momento histrico, e com ateno especial em nosso pas,

    fermentando novas tendncias no direito penal, e quais so elas.

    O quadro de transio histrica que vivemos

    apresentado quase unanimente como inexorvel produz

    conseqncias sociais gravssimas. O empreendimento neoliberal

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    implica o sucateamento da considervel parcela no competitiva

    do parque industrial nacional, gerando desemprego massivo eobrigando esse proletariado, nufrago do mundo industrial, a se

    agarrar a subempregos ou buscar estratgias de sobrevivncia na

    economia informal. O corte nos programas assistenciais pblicos,

    gradualmente substitudos por planos de sade ou previdencirios

    privados para o que resta da classe mdia, e, para os pobres, por

    essa caridade virtual que passa seu pires nos intervalos comerciaisda televiso, quando no o prprio Estado a conceder a esmola

    como bolsa ou cidadania, o corte nos programas assistenciais

    pblicos representa o fechamento de sadas de incndio. Como

    lembra Atlio Born, para essas verses do liberalismo a

    democracia se reduz a simples mtodo de constituio da

    autoridade pblica. Para favorecer a privatizao dos diversos

    setores sobre os quais o estado de bem-estar intervinha

    diretamente, era preciso, e foi cabalmente realizada pela mdia,

    uma campanha de desmerecimento das instituies pblicas e da

    vida poltica, de cujos efeitos ainda no nos conscientizamos

    completamente. Para aferir a intensidade e, mais ainda, a

    intencionalidade desta campanha, basta comparar o espao

    concedido a delitos praticados no mbito empresarial salvo os

    casos de perda de invulnerabilidade por disputas de poder e

    delitos praticados por ou envolvendo funcionrios pblicos. A

    verdade que a mdia em geral integrou-se aos grandes negcios

    das comunicaes (publicidade, telefonia, etc), como uma espcie

    de seu brao armado, e parte importante deste processo, do qual

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    tem a pretenso delirante de ser cronista imparcial. O movimento de

    mutilao institucional que desaguar no estado mnimo dos sonhosneoliberais tem, contudo, uma conseqncia: este estado mnimo

    precisa de preservar e ampliar o controle social penal sobre os

    contingentes humanos marginalizados e desassistidos por suas

    polticas econmicas e pelos cortes que a busca deste paraso que

    parece existir no equilbrio oramentrio lhe imps. Ou seja: o

    estado mnimo acaba sendo um estado mximo, apenas do pontode vista da expanso de seu sistema penal, at quase coincidir com

    ele. Os ndices ascensionais de encarceramento fizeram Loc

    Wacquant pensar tal fenmeno como uma espcie de nico

    programa pblico habitacional do capitalismo tardio. O estado de

    So Paulo, por ter ostentado o maior parque industrial, tem a ferida

    quantitativamente mais aberta, e dever este ano aproximar-se da

    metade da escandalosa cifra, calculada por 100.000 habitantes, dos

    Estados Unidos, tendo j ultrapassado de muito todos os pases da

    comunidade europia.

    A poltica criminal hegemnica acaba, como a

    poltica econmica, surpreendendo pela generalidade de sua

    aceitao: partidos e lideranas com programas ou passados

    antagnicos terminam reunidos no discurso poltico-criminal. Da

    mesma forma que o discurso econmico nico procura convencer-

    nos, o tempo todo, de que o sistema econmico regido pelo capital

    financeiro transnacional, tendo o FMI por spalla, constitui uma

    inevitabilidade histrica sem alternativas, assim tambm a poltica

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    criminal correlata a tal sistema aparece como necessidade

    incontornvel.

    Esta poltica criminal hegemnica bloqueia as

    trocas possveis entre a criminologia e o direito penal. Tomemos

    dois exemplos. Da indemonstrabilidade da concepo retributivo-

    absoluta da pena, do fracasso que os preventivismos geral,

    especial, positivo, negativo, de todos os matizes experimentaramsempre que levados proveta da investigao emprica, e da

    grosseira inaptido do modelo punitivo para solucionar conflitos

    (pois se limita a decidir sobre eles, com escassa interveno da

    vtima), disso tudo brotou uma teoria negativa ou agnstica da

    pena. Em sntese, a pena existe, com sua natureza como Tobias

    Barreto nos ensinava h cento e vinte anos poltica, e

    corresponde ao direito penal produzir a teoria que regule e controle

    seu emprego, a partir do texto legal. Mas no precisamos de uma

    teoria falsa que a legitime, e, menos ainda, de derivar dessa falsa

    teoria legitimante solues dogmticas. Entretanto, no ambiente

    poltico neoliberal, deslegitimar a pena quase deslegitimar o

    estado, uma espcie de lesa-majestade penal. Pensemos agora na

    recente proposta de elevar o patamar mximo da pena privativa de

    liberdade para quatro anos. Caberiam algumas perguntas: 1)

    (pergunta sobre a viabilidade) considerando-se o nmero disponvel

    de vagas, o programa de construo de penitencirias e o fluxo de

    ingressos, quanto demoraria e custaria implantar essa medida?; 2

    (pergunta sobre a convenincia) a experincia recente das prises

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    brasileiras sugere aumentar ou reduzir o tempo de internao? Ou,

    dito de outro modo: a poltica dos crimes hediondos tem dado bonsresultados, para pretendermos ampli-la, ou os presdios sem

    esperana de progresso esto em chamas? 3 (pergunta sobre

    direito comparado) nos pases europeus e latino-americanos de

    nossa famlia jurdica, os mais recentes cdigos penais operam com

    tal patamar, ou com patamares inferiores aos nossos trinta anos?;

    4 (pergunta sobre constitucionalidade) levando em conta a mdiada idade de ingresso, e a expectativa de vida mdia do brasileiro,

    no estaremos prximos de incidir na vedao constitucional de

    penas perptuas? Fiquemos por aqui: a criminologia, recolhendo os

    dados sociais e checando sua consistncia, no s pode interpelar

    propostas poltico-criminais, como pode dialogar com o direito penal

    acerca de suas categorias mais centrais, como, no primeiro

    exemplo, a prpria pena.

    Esta poltica criminal hegemnica tem sua pauta.

    A questo das drogas ilcitas, cujas virtualidades no campo das

    relaes internacionais apareceram mais claramente aps o fim da

    guerra fria e reinaram absolutamente at o 11 de setembro,

    certamente um dos itens mais complexos dessa pauta, projetando-

    se na geopoltica, que, das verses mais simplrias (pases

    exportadores agressores x pases consumidores vtimas)

    encontrou na criminalizao de guerras civis e estados internos de

    beligerncia o libi perfeito. A criminalizao da imigrao ilegal, a

    lavagem de dinheiro e a responsabilidade fiscal so outros itens

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    importantes dessa pauta. A rpida recepo e circulao de um

    conceito to polmico, to essencialmente problemtico quanto ode crime organizado intensa e alegremente difundido pela mdia

    torna-o suspeito de integrar o lxico desta poltica criminal, que

    tambm pretende globalizar o jargo criminolgico. o que se deu

    com o termo narcotrfico, maciamente difundido desde o

    hemisfrio norte: aqui ficamos ns a repeti-lo como papagaios,

    embora nem maconha nem cocana sejam narcticos. Crimeorganizado, conceitualmente e no campo de aplicao pragmtica,

    algo que, como a bruxaria, pode ser aquilo que o juiz quiser que

    seja, do comrcio local, de rua, de drogas ilcitas, at o que se

    costuma chamar de crime as business. uma situao parecida

    com a do legislador ordinrio perante o conceito de crime hediondo,

    que, ao contrrio daquele dos juros reais, no se considerou

    devesse ser primeiro explicitamente construido antes de aplicado.

    Silva Sanchez se detm sobre estes ensaios de compatibilizao

    dos sistemas penais nacionais, para evitar o que ele chama de

    parasos jurdico-penais; bem, no conheo nada mais parecido

    com um paraso jurdico-penal do que o campo de concentrao

    de presos de Guatnamo.

    O sistema penal do empreendimento neoliberal

    tem caractersticas que o distinguem do sistema penal do

    capitalismo industrial, que no caso brasileiro correspondeu

    historicamente ao estado de bem estar. Apenas mencionarei

    algumas dessas diferenas: 1) sua dualidade: para consumidores

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    ativos, penas alternativas privao da liberdade, suspenso do

    processo, sursis, transao penal; para consumidores falhos,encarceramento prolongado neutralizante. O smbolo da primeira

    face a legislao dos Juizados Especiais; da segunda face, a

    legislao dos crimes hediondos. 2) O abandono da utopia

    preventivo-especial, prpria do estado de bem-estar, em favor de

    uma pena privativa de liberdade de segurana; 3) o vigilantismo

    (corta-se na carne da privacidade, altera-se o estatuto tico dadelao, espiona-se com cmeras e com prmios); 4) os novos

    papis da mdia.

    Antes de apreciar, para concluir, estes papis da

    mdia, cabe frisar que a esta poltica criminal correspondem estilos

    legislativos e doutrinrios que tm a mesma dinmica de expanso

    e no de conteno do poder punitivo. Isso vai ocorrer

    freqentemente nos tipos de perigo, em especial abstrato (com

    ofensa ao princpio da lesividade), no abuso freqente de criar

    responsabilidade dilargando arbitrariamente deveres ou crculos dos

    garantidores na omisso imprpria, na transigncia com o emprego

    de dolo eventual em supostos culposos; na introduo de uma

    espcie de responsabilidade penal pela administrao em delitos

    societrios, etc.

    Nada, contudo, supera esses novos papis que a

    mdia passou a desempenhar. O discurso poltico-criminal e

    criminolgico da mdia se imps sobre o da universidade. Duas

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    caretas desses orculos ps-modernos que so os ncoras da

    televiso influenciam mais que a obra completa de nossos melhorespenalistas e criminlogos, cujas opinies, de resto, s sero

    divulgadas se e enquanto puderem ser adaptadas e apropriadas

    pelo discurso poltico-criminal nico. O espao concedido ao

    especialista apenas para referendar o sentido geral da

    mensagem; algum j viu um locutor, anunciando

    desrespeitosamente a concesso de uma ordem de habeas corpus,invocar a opinio de algum jurista que, contrariamente, achava que

    naquela situao havia efetivamente ilegalidade ou abuso de

    poder? Mais grave do que isso a executivizao, ou seja,

    passarem alguns veculos a operar como agncias de

    criminalizao secundria, fazendo do que foi o jornalismo

    investigativo um jornalismo policialesco, no qual a nica informao

    obtida e divulgada, se jornalisticamente no significa coisa alguma

    quem ignora que garotos pobres das favelas cariocas vendem

    maconha para garotos ricos? implica pautar e movimentar as

    agncias policiais (eis aqui o rosto de doze garotos que esto

    vendendo drogas no morro tal). Atravs desse expediente, aquela

    seletividade que caracteriza a criminalizao secundria, regida por

    esteretipos criminais, vai acrescentar-se nova configurao de

    poder da mdia. Uma manchete mobiliza muito mais o sistema penal

    particularmente aqueles operadores que sucumbiram s

    tentaes da boa imagem do que uma portaria de instaurao de

    inqurito policial, uma promoo ou uma sentena. O poder de

    selecionar quais conflitos criminalizveis sero tratados

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    procedimentalmente est, hoje em dia, mais do que em quaisquer

    outras, nas mos da mdia. O velho modelo do trial by the mediano d conta destes julgamentos diretos que muitos programas

    ordinariamente, ou muitas campanhas, sucessivamente, realizam.

    Com algumas agncias policiais j se instalou um contubrnio

    chocante: o que significa a cmera de uma empresa de

    comunicaes instalada numa viatura policial? Em que inciso da

    Constituio se autoriza esta prtica infamatria de apresentar umsuspeito, ou mesmo um condenado, a toda a imprensa, forando-o

    a exibir-se, s vezes sob um cartaz? Essa dramaturgia policialesca

    vem sendo observada desde os estudos pioneiros sobre jornalismo

    radiofnico policial, mas est alcanando um nvel que coincide com

    a ascenso de radialistas e animadores a altos cargos pblicos,

    seja no Legislativo, seja no Executivo. Quando isto ocorre, fica s

    vezes difcil definir os contornos entre o espetculo e o exerccio de

    poder pblico, o primeiro com sua livre inventividade e o segundo

    jungido, particularmente no campo penal, a regras e garantias

    estritas. Quando o show o governo, ou o governo o show,as

    garantias, os prazos, as exigncias formais, a defesa plena, em

    suma, todo o devido processo legal passa a ser visto tambm como

    um excesso do estado do bem-estar, sujeito a cortes e

    flexibilizaes. curioso que com esta obsesso pela pena, com

    este apego a uma interpretao infracional de tudo e de todos, a

    mdia incorra na evidente contradio de opor-se radicalmente ao

    tratamento penal de seus prprios delitos.

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    O Poder Judicirio brasileiro recebe todos os

    impactos dessa poltica criminal e de seus fundamentoseconmicos. No processo de minimizao do Estado, est o

    Judicirio, imobilizado na camisa de fora oramentria to cara ao

    FMI, sujeito a perdas e redues, seja para solues arbitrais, seja

    para jurisdies internacionais ou regionais. Perante o

    desmerecimento do espao pblico, qualquer procedimento que

    possa envolver a responsabilizao de um magistrado terdivulgao similar de uma catstrofe: hoje, no Brasil, aqueles que

    tm a responsabilidade funcional de velar pelo princpio da

    presuno de inocncia dos cidados no desfrutam dessa

    garantia. Definitivamente, pretende-se que o Judicirio abandone

    sua misso, insubstituvel para o estado de direito democrtico, de

    conter todo o poder punitivo exercido inconstitucional, ilegal ou

    irracionalmente, para policizar-se, para ser um complacente

    espectador da criminalizao secundria; para ser, numa palavra,

    uma espcie de capito-do-mato dos foragidos da nova economia.

    Isto seria a runa do Judicirio, seguida da runa do estado de

    direito, com a implantao de um estado policial submisso nova

    ditadura financeiro-virtual planetria.

    O refinamento que o finalismo trouxe teoria do

    delito chegou ao direito brasileiro parte os trabalhos precursores

    de Luiz Luisi e Joo Mestieri na reforma da Parte Geral de 1984.

    Claro est que no chegou de modo ortodoxo: se a paixo de Assis

    Toledo pela intrincada questo do erro conduziu a uma disciplina

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    enxuta e avanada, no tema da autoria e participao que sofreu

    indiscutvel aprimoramento alguns passos adiante poderiam tersido dados. A febre da imputao objetiva no cancela esses

    merecimentos, e ser fcil, quando ultrapassada a tolice consumista

    de atirar-se ao ltimo modelo, constatar que a novidade pouca; ou

    o princpio da confiana, do risco permitido, e at da realizao do

    risco no resultado neste ltimo caso, sob a designao de

    determinao especfica j no estavam, todos, na disciplina doscrimes culposos?

    O que importa que, agora, o debate no ser

    mais um debate fechado realidade, o que implica conhecer o

    funcionamento histrico concreto de sistemas penais determinados,

    e propor acerca deles. As novas tendncias do direito penal no se

    subordinam hoje, como nos tempos da polmica causalismo-

    finalismo, apenas s mars das categorias jurdicas. Elas provm

    dos reflexos e influncias que os dados econmicos e sociais

    concernentes questo criminal recolhidos e trabalhados pela

    criminologia e a luta das concepes poltico-criminais introduzem

    nas teorias da pena e do delito. Nossa torre de marfim caiu, e, c

    entre ns, j era tempo. A causalidade perder sua centralidade

    como critrio de imputao no dia em que os penalistas assumirem

    que nenhuma outra disciplina, social ou jurdica, pode ser mais

    comprometida com o conflito, com a flutuao, com a instabilidade,

    com o desequilbrio, com a ruptura, com tudo aquilo que nega a

    repetibilidade causal, do que o direito penal. Neste dia, os

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  • 7/30/2019 BATISTA, Nilo. Novas tendncias do Direito Penal.

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    Prof. Dr. Nilo BatistaTitular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Titular de Direito Penal da Universidade Cndido Mendes

    penalistas estaro se libertando do medo do conflito, da desordem,

    que o recente estudo doutoral de Vera Malaguti Batista demonstrouser um elemento estratgico desta poltica criminal hegemnica.

    Tomei demasiadamente o tempo de todos, e me

    surpreendo ao constatar quantas linhas relevantes sobre estes

    movimentos deixei de desenvolver ou mesmo enunciar. Penso

    naqueles juzes brasileiros que, j l se vo trinta anos,redescobriam von Liszt de um modo intuitivo, chamando o

    argumento da poltica criminal para conter poder punitivo irracional

    perante situaes nas quais faltava um dispositivo dogmtico

    escusante, e o campo dos princpios constitucionais no estava

    desenvolvido como hoje. Penso nesses companheiros de minha

    gerao, para concluir com um voto de esperana na superao do

    quadro preocupante dessas novas tendncias do direito penal.

    ***