nilo batista - punidos e mal pagos - violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no...

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A seleção de artigos agora reunidos em livro demonstra que o jornalismo saiu ganhando com essa colaboração. Revelando um olhar atento a tudo o que se passa em volta - da corrupção à Aids, da violência à situação do menor ou da mulher Nilo Batista surpreende principalmente pela qualidade do texto, que alia vasta erudição jurídica a uma admirável cultura literária, numa combinação que o tratamento jornalístico toma muito agradável. Nilo Batista é aquele profissional que todo jornalista gosta de ter como colega não apenas porque, de repente, quem sabe, Deus nos livre, pode ser o nosso defensor, e que defensor! Mas porque nos ensina como colocar um saber específico ao alcance de todos a nós que somos metidos a ser especialistas em assuntos gerais. Afinal, o que faz Nilo Batista fora da redação? Zuenir Ventura j['

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Page 1: Nilo Batista - Punidos e Mal Pagos - Violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje (1990)

A seleção de artigos agora reunidos em livro demonstra que o jornalismo saiu ganhando com essa colaboração. Revelando um olhar atento a tudo o que se passa em volta - da corrupção à Aids, da violência à situação do menor ou da

mulher Nilo Batista surpreende principalmente pela qualidade do texto, que alia vasta erudição jurídica a uma admirável cultura literária, numa combinação que o tratamento jornalístico toma

muito agradável. Nilo Batista é aquele profissional que todo

jornalista gosta de ter como colega não apenas porque, de repente, quem sabe, Deus nos livre, pode ser o nosso defensor, e que defensor! Mas

porque nos ensina como colocar um saber específico ao alcance de todos a nós que somos

metidos a ser especialistas em assuntos gerais. Afinal, o que faz Nilo Batista fora da redação?

Zuenir Ventura

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Justiça, violência, pnlícia, drogas, pena de morte, direitos IlU manos e crím inalidadc urbana são tcmas que despertam enorme interesse, mas cuja discussão ora se restringe à linearidade repetitiva do noticiário ou à superficialidade de discursos eleitorais preeonceiruosos, ora se confina em inacessíveis scminários de especialistas.

No presentc Nilo Batista renomado professor dc

direito pcnal e advogado com larga experiência­empreende a discussão daqueles temas a partir de episódios ou conjunturas reais, colocando à disposição do leitor infonnações importantes sobre as variáveis jurídicas e sócio-criminológicas que orientam seu enfoque.

São artigos inicialmente endereçados ao chamado público não especializado, que entretanto não renunciam a um nível acadêmico que torna sua leitura indicada igualmente para estudantes, professores e profissionais da justiça criminal.

Com sua indiscutível autoridade, Nilo Batista põe o dedo nas feridas mais abertas do sistema penal e convida o leitor a refletir sobre as funções ocu !tas de certas ue"",ao;tal!i:lo; soluções usuais.

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Nilo Batista

I

VIOLÊNCIA, JUSTIÇA, SEGURANÇA PÚBLICA E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL DE HOJE

ER Editora Revan

Page 4: Nilo Batista - Punidos e Mal Pagos - Violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje (1990)

Copyright © 1990 by Nilo Batista.

Coordenação editorial Lilían M. G. Lopes

Revisão Miguel Vil/ela

Capa Danilo Basto Silva

Composição WI Fotocomposição Ltda.

CIP-Bras lI. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RI.

Batista, Nilo B337p Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos huma-

nos no Brasil de hoje I Nilo Batista. - Rio de Janeiro: Revan, 1990

ISBN 85-7106-022-3

1. Violência urbana - Brasil. 2. Segurança pública - Brasil. 3. Crime e criminosos - Brasil. 4. Direitos humanos Brasil. 5. Justiça social Brasil. L Título.

90-0459

Editora Revan Ltda. Avenida Paulo de Frontin, 163

CDD - 363.20981 364.0981

CDU - 343.4/.6(81) 343.9(81)

Rio de Janeiro - RI CEP: 20260-010 Te!.: (21) 2502-7495 Fax: (21) 2273-6873

Quero dedicar este livro a três amigos. Com Lolita Aniyar de Castro, professora de criminologia, e Raú[ Zaffaroni, prof~ssor. de

direito penal, tenho aprendido ~ l.nsenr. o debate jurfdico na trag~d~a s~czal

latino-americanarcom Szlvw Vwla, professor de vida, tenho aulas perr:za~entes

de humor e dlgmdade.

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Sumário

Nota Prévia 11

Apresentação 13

SOBRE A PENA DE MORTE A mídia da morte em horário gratuito 15 Pena de morte 18 O cardápio da morte 20

CAPITALISMO E SISTEMA PENAL Punidos e mal pagos 35 O da Onde está a corrupção? O gato comeu? ' 44

SAÚDE E JUSTIÇA Genocídio hospitalar Um réquiem para Leide Aids e direitos humanos

47 52 55

~ O PROBLEMA DAS DROGAS ,. Drogas e drogas 59

A sentença como exorcismo Tráfico e abuso de drogas

62 67

JUDICIÁRIO E DEMOCRACIA O poder judiciário: independência e democratização 71 Quem tem medo da lei Fleury? 81 V oItando aos bons tempos 86

DUAS PERDAS PARA OS DIREITOS HUMANOS Recordação de Hélio Pellegrino 91 Memória de Heleno 94

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AUTORITARISMO E ou

A memória vã Tortura nunca mais - ou para sempre? A lógica de lago 112 O asilo 114

documentos? preso!" Pequeno ritual de degradação

---' A QUESTÃO PENITENCIÁRIA Alternativas à prisão no Brasil

116 118

123 1

107

EXPRESSÃO E DIREITO PENAL Comunicação e crime 133

e da Repressão a favor da arte 142

VIOLÊNCIA E POLÍCIA Morte criminal no Rio de Janeiro 147 O grande facínora 152 O bandido é o Estado 158 Futebol ~violência 160 Lar, doce lar 163 Criminalidade e favelas 167 Trocando em miúdos 170

ADVOCACIA De volta ao lar 177 Advogados demais? 180 O julgamento da advocacia 182

Índice alfabético-remissivo de assuntos 189

Nota

Nos últimos CU1CO anos, dei-me conta da de tomar públicos certos assuntos que os juristas habitualmente

énIre violência, garantias , direitos humanos, pena de mOlie,

Poder Judiciário, segurança pública, etc. Passei então a publicar regularmente na imprensa artigos que estendessem o debate desses assuntos a um público maior. No Jornal do Brasil, sede da maior parte dessas publicações, tive o estímulo cordial de Zuenir Ventura c Flávio a esses notáveis

com , criamos no jornal O Dia uma coluna,

"O direito do povo", com a perspectiva da educação legal que em opinião é um pressuposto inafastável para

a consolidação qualquer ordem democrática. coluna, os textos eram mais simplificados e buscavam tematizar os pro­blemas mais emergentes e aflitivos no cotidiano da população urbana. Sou grato também a outro grande jornalista, Dácio Malta, co-autor dessa experiência. Este volume reúne a maior parte dos artigos que, sob a influência imediata do noticiário ou pela permanente relevância dos temas, publiquei nesse período. Três deles (" Alternativas à prisão no Brasil", "Comunicação e crime" e "Morte criminal no Rio de Janeiro"), embora tivessem destinação acadêmica, foram também incluídos por abordarem .temas de interesse geral.

Nilo Batista

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o que faz Nilo Batista fora da redação?

Quando há cinco anos Nilo Batista apareceu escrevendo no Jornal do Brasil, o Direito corria o risco de perder um grande advogado sem que a imprensa tivesse certeza de que ida ganhar um bom colaborador. A história recente dé nossa ativi­dade estava repleta desses casos. Sedutor, o espaço jornalís­tico atrai essas migrações, que muitas vezes desfalcam uma área, sem reforçar a outra. Há vários exemplos - de médicos, engenheiros, psicanalistas, psicólogos, etc. -- que a imprensa gostaria de devolver a suas áreas de origem, mas estas também já não aceitam o desgarrado de volta.

Com advogado a coisa é ainda pior porque, como se sabe, o causídico em geral não escreve, fala. E quando escreve, escre­ve como fala: outrossim, dàta venia, data supra, decisão prol ata-da, probante.

Restava saber se com o advogado Nilo ~atisla a coisa seria diferente. O criminalista de sucesso e o professor universitário de cursos concorridos já tinham sido testados: o defensor sabia defender e transmitir seus conhecimentos. Mas como seria o jornalista?

A seleção de artigos agora reunidos em livro demonstra que o jornalismo saiu ganhando com essa colaboração. Re­velando um olhar atento a tudo o que se passa em volta - da corrupção à Aids, da violência à situação do menor ou da mulher - Nilo Batista surpreende principalmente pela quali­dade do texto, que alia vasta erudição jurídica a uma admirável cultura literária, numa combinação que o tratamento jornalís-tico torna muito agradável. .-/

Leitor de Machado, Drummond, Shakespeare e Aristó­teles, cultor de Charles Chaplin e Glauber Rocha, curtidor de Agatha Christie e Simenon, Nilo recorre a eles sempre que uma história ameaça ficar chata ou que um assunto se torna árido. Esse machadiano pode interromper uma indignada frase contra a tortura para introduzir uma fala de José Dias e Benti­nho, personagens de Dom Casmurro.

Se alguém quiser um exemplo, vá direto à parábola "O aprendizado da violência" e veja a entrada do catártico Carlito furando as tinas de 30 quilos de água que os meninos do fim do

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século XIX eram obrigados a carregar. Ou que o assista fazendo a defesa no tribunal de "um garoto de dez anos que subtraía da fábrica urna peça de pano o das mães".

as iniqüidades que o Código Penal de , Nilo vai

buscar em Drummond o que "as do mundo saúdam' '. O que seria urna ficção com personagens hipotéticos e a hipotética participação de Chaplin acaba sendo uma metáfora fulminante de nossa o dois personagens muito nossos conhecidos - o liberalismo e a burguesia nacional -­podem fazer com a lei em benefício próprio. Depois da leitura, é fácil ver como há 100 anos começamos a preparar cuidadosa­mente nossos pivetes de hoje.

Mas Nilo não é apenas um bom redator, é também um bom repórter. Quem quiser que esse requisitado a de uma ionária é só chamá-lo ao para ajudar numa apuração. Gosta de telefonar a redação sugerindo matéria, dá sugestões e dicas e sabe logo quando urna investigação jornalística está indo para o lado errado: "Vocês não isso, de ver aquilo, estão no errado" . Dizer que Nilo Batista tem intimidade com o mundo do crime é uma impropriedade que pode soar de uma maneira que vai certamente gerar mal-entendidos. Mas a verdade é que certa convivência imposta por sua atividade como criminalista e como ex-secretário de Segurança deu a esse intelectual uma sabedoria concreta. Ele é capaz de, num bar, com um legítimo uísque e uma boa música, descrever a ficha de um policial, as manhas de um bandido e a~ ramificações do crime organizado.

Nilo Batista é aquele profissional que todo jornalista gosta de ter como colega não apenas porque, de repente, quem sabe, Deus nos livre, pode ser o nosso defensor, e que defensor! Mas porque nos ensina como colocar um saber específico ao alcance de todos, a nós que somos metidos a ser especialistas em assuntos gerais.

O corporativismo jornalístico, ainda que com despeito, tem que finalmente admitir: Nilo é um advogado que sabe apurar e que sabe escrever. Eu me pergunto, à maneira do nosso amigo comum Ancelmo Gois: Afinal, o que faz Nilo Batista fora da redação?

Zuenír Ventura

A MÍDIA DA MORTE EM HORÁRIO GRATUITO

O debate sobre a pena de morte, redivivo pelo oportunismo . . d riscos podem ser

elcltorelro a

O· . . / ao mais bisonho empirismo, arti-

pnmeIro e '. . r " d culando impressões e vivências de pessoas atmgldas por atos e

• A • publicitária do medo a certo vlOlenCla ou 'urídi-discurso "bem pensante" , que reduz algumas J cas (especialmente a retribuição) ao nível de almanaque, e.p~l~­cura seduzir com os sortilégios daquele bom senso ~ue ~tall e

. "o oposto da ciência". Exemplo dISSO e re a-caracterIza como donar a ocorrência de linchamentos à falta da pena .de mo~e, ignorando que nos Estados Unidos, como apontou s~nm, a leI de Lynch foi observada principalmen:e nos ~stados sulIstas - onde existia e arraigadamente, a sançao capItal.

O' segundo risco reside em situar-se O debat~ no plano jusfilosófico ou moral. Aí nos deparamos com a mama de algun~ jurisconsultos, percebida por Erasmo (não, por certo, o corone paulistano, e sim o sábio seiscentista), de am~n~oar, glosas e citações, persuadidos de que o preço da bele~a teonc~ e pago e~ dores e fadiga. Exemplo disso está nos nos de tmta que s . 1 tados tomos . 'otável reflexão de Camus, ou nos a en segUiram a n , 1 ativo que poderiam compendiar os estudos sobre o carater va or da retribuição. O mistério da morte, que sempre de~afiou o espírito humano, empresta indevidamente suas perplexIdades a

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um assunto que é bem outro, porque a morte é uma questão religiosa, social, filosófica e científica, mas a pena de morte é essencialmente uma questão político-jurídica.

Um bom caminho para contornar esses dois riscos está em correr um terceiro: o do pragmatismo penal. Ou seja, da mídia da morte em horário gratuito, conter a lembrança do caso Naves, resistir à atração do alpinismo jusfilosófico (ainda que Millôr, no JB de 3.out.86, tenha aportado algo de novo ao argumento do verdugo), e perguntar pura e simplesmente se a pena de morte é eficaz. Se houvesse uma só probabilidade de resposta positiva, estaríamos em maus lençóis, porque enquanto questão político-jurídica a cominação de uma pena não pode fundamentar-se tão-só em sua eficácia. Sucede que, entre tantas amargas lições que a história da pena de morte ensinou, a de sua ineficácia é das constantemente . O recente de Barbero Santos (Pena de Muerte - el ocaso de um mito, B. Aires, ed. Depalma, 1985) oferece um bom roteiro para a vul­garização daquela lição, que toma a um só tempo risível o discurso "bem ' da direita e desnecessárias as grandes indagações jusfilosóficas, morais ou religiosas.

Respondamos, com o professor espanhol, à seguinte pergunta: a pena de morte intimida? Certamente que não ao elevado percentual de assassinos que, segundo estatísticas, se suicidam (em antiga pesquisa inglesa, de 7.454 homicidas, 1.674 se suicidaram). É muito duvidoso também que ela intimide as pessoas que se encontrem em s~ação sem saída, eis criminosos passionais (quase 50%), ou os numerosos casos nos quais concor­ram componentes psicopatológicos. Quanto aos crimes pol~ticos - à parte, é daro, outras considerações - não há quem hoje afinne que a pena capital opere por intimidação. Vemos, por­tanto, que se existe algum efeito intimidativo, é o efeito sobre um saldo, sobre um modesto saldo de homicidas.

Sendo, contudo, inoperante para o efeito preventivo geral de intimidação, a pena de morte logra um resultado que Staub comprovou, e que é exatamente o oposto. Falamos do suicídio judiciário, isto é, dos inúmeros casos em que o homicídio é

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cometido por alguém que deseja, mais ou menos consciente­mente, morrer, e elege, mais ou menos conscientemente, o carrasco como meio de autodestruição. Middendorfflembra que enquanto Peter Kurten, o vampiro de Düsseldorf, cometia seus crimes, quase 200 pessoas se apresentaram à polícia afirmando­se autores. Exemplos recentes de condenados à morte que deseja­vam morrer: Sirham Bishara, Gary Gilmore, lesse Bishop e Steven Judy. Pesquisas americanas identificaram que nos arre­dores da prisão, nos dias de execução de pena de morte, são cometidos mais crimes de sangue do que normalmente.

Observemos agora, sempre em companhia de Barbero San­tos, alguns resultados de uma investigação da ONU, de 1962, sobre estatísticas de países que aboliram a pena de morte. Veja­mos na Alemanha, com de morte em 1949, os números de homicídio: 1948, 521; 1950, 301; 1960, 355, Veja­mos na Áustria'(abolição em 1950): 1948, 77; 1949, 93; 1950, 48; 1951, 64; 1952, 38; 1953, 41. Na Itália, na Argentina, e recentemente na Espanha, a supressão da pena de morte não teve o menor efeito criminógeno. A sempre citada pesquisa da Sellin~ realizada sobre um amplo universo de quase 30 cidades de diversos estados americanos, não encontrou qualquer relação entre a pena de morte e o volume de homicídios de caçla conjunto comparável, concluindo que as execuções não influenciam os percentuais de homicídios.

As últimas e mais avançadas investigações criminológicas norte-americanas sobre a eficácia da prevenção geral da pena de morte procuraram, através de um método denominádo multiple regression analysis (MRA), que associa à pena capital diversas séries de variáveis controláveis estatisticamente, verificar se a pena de morte tal como praticada tem efeito intimidativo, e, em caso positivo, se poderia obter-se por outros meios tal efeito. Como assinala Barbero Santos, o resultado quase unânime desses estudos é no sentido de não se demonstrar possua a pena de morte um apreciável efeito intimidativo (any measurable deterrent

effect).

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Isso deveria bastar, e nonnalmente basta. A pena de morte não é e portanto desnecessário discutir suas morais, religiosas e filosóficas. Há entretanto outra linha que

da pena de morte para examinar de a Há livros que se ocupam exclusivamente aspecto, como os de Kurt e Daniel Sueiro. Esses livros, não

ser lidos antes de uma refeição, demonstram que comumente não aparece no debate: a execução da pena de morte é sempre um episódio indigno, violento e macabro. O homem não descobriu um modo decente para negar tão radicalmente sua própria humanidade.

Para a turma da direita penal, seria decepcionante dar-se que defendeITl, decentenlcntc

é tão decentemente.

PENA DE MORTE

Sempre que ocorre uma onda de violência, ou um crime particularmente cruel, aparecem políticos oportunistas pregando a pena de morte. Quase sempre são políticos que nada fazem para mudar a situação de miséria, promiscuidade e medo que é a mãe da criminalidade. Quase sempre são políticos ligados aos maio­res criminosos do país, que, no entanto, praticam uma delinqüên­cia dourada e impune, sem se preocupar com a polícia ou a justiça. Mas algumas pessoas de boa-fé acabam acreditando que a pena de morte pode ajudá-Ias, que a pena de morte pode diminuir os assaltos, os estupros, os homicídios, etc.

Não acreditem nisso. A pena de morte não ajuda a reduzir a criminalidade. Como

é que se sabe? É que em muitos países a pena de morte foi abolida, e em alguns outros introduzida. Isso aconteceu princi­palmente na Europa, na metade do século. E as estatísticas de antes e de depois da pena de morte puderam ser comparadas. A

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ONU fez um relatório sobre isso. Não há nenhuma diferença a favor da pena de morte.

Também nos Estados Unidos, um professor fez uma pesqui-sa em cum e sem pena de para um mesmo matar um em pensava que ia encontrar menos desses homicídios nos Estados sem pena de morte. Pois os resultados que não havia qualquer

Mas se não provas de que a pena de morte reduza a criminalidade, existem provas de que ela a aumenta. Antiga­mente, quando as execuções eram públicas, percebeu-se um aumento de violência na área em que os condenados eram mor­tos. Pior do que isso foram os inúmeros casos de pessoas que cometeram um crime punido com a pena de morte só para

, através do carrasco. Os casos Por que é que tradicionalmente, quando um crime muito grave era cometido, e não se sabia por quem, apareciam dezenas de pessoas na polícia confessando-se autores dele? Eram pessoas que ainda que não tivessem consciência disso -desejavam morrer, mas não tinham coragem de suicidar-se.

O pior da pena de morte, contudo, não é sua ineficácia para reduzir a criminalidade, e sua propensão a incentivá-la. O pior é que ela é aplicada discriminatoriamente. São os pobres, os ne­gros, os inadaptados que vão para os corredores da morte: ricos e poderosos nunca põem os pés lá.

Olhem para nossas prisões e vejam quem é que esses pelíti­cos querem matar .

. Há até certa coerência deles. Sua cumplicidade com uma sociedade injusta os toma co-autores das milhares de mortes por doença, por falta de alímentação, de assistência, de habitação, e até mesmo de uma "morte civil" por falta de infonnação sobre seus direitos. Propugnando pela pena de morte, esses políticos apenas querem continuar a matar, dessa vez sem subterfúgios ou dissimulações. Gostam de matar. Mas sua vítima o povo brasileiro - gosta de viver.

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o CARDÁPIO DA MORTE

(Tragicomédia em uma cena, para uso em laboratórios de interpretação de Politica e Criminologia, duas ciências a

cada dia mais afins)

Dramatis personae: 1. Exequiel Burundanga, deputado-constituinte; 2. Brocardo Latino, assessor jurídico.

Cena Única

Brasilia, em alguma noite da primavera de 1987, na véspera da apresentação do projeto de lei do deputado

sobre pena morte. Entra em seu gabinete, carregado de livros, o assessor jurídico

Brocardo Latino.

EB- Ora, mu bem, Dr. Brocardo. Resolveu o problema?

BL- Não, deputado, não resolvi. Estudei a quaestofacti e estou meio confuso. Aliás, quanto mais estudava, mais ri.1e confundia.

EB - Não entra na minha cabeça que um aspecto tão secundário como este - a forma de execução - possa retardar a apresentação de nosso projeto de lei. O fundamental é a morte, em sua elevada abstração teórica. Matou, morreu. Morte lá, morte cá. Nada maÍs saudavelmente lógico. Agora, como se vai matar, como se vai morrer, que importância tem . ? ISSO.

BL - Não é tão simples assim, deputado Burundanga. Veja o levantamento que fiz, nesta folha de papeI. É uma espécie de cardápio da morte, uma summa divisio: aí estão arroladas todas as formas contemporâneas de execução da pena capital, no mundo ocidental e no mundo comunista.

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EB - Perfeitamente dispensável o segundo grupo. Nosso eleitorado quer a pena de morte no e para o mundo ocidental. A propósito, onde o senhor colocou o Japão?

BL - Japão é ocidental.

EB - Claro. Mas, diga-me uma coisa: os comunistas não são contra a pena de morte?

BL - Não consegui entender isso direito. Lênin várias vezes afirmou que os comunistas eram adversários da pena de morte, porém excepcionalmente a admitiam, sob determina­das circunstâncias e enquanto tais circunstâncias perduras­sem. Garantia-se que o governo revolucionário não a conser-

. varia além do necessário à estabilização do poder. De fato, logo após a guerra, em 1947, aboliram a pena de morte. Mas em 1950, com a chamada guerra fria, ela retomou para crimes de ~spíonagem e traição, e foi ampliada para crimes comuns em'1954 e 1961. Esta situação perdura até hoje. Ou não ligam mais para Lênin, ou o poder ainda não está consolidado lá; tertius non datur.

EB - Não tente compreendê-los. Vamos ao nosso problema: por que é complicado o jeito de matar?

BL - No direito antigo e intermédio não era. Matava-se como bem se queria. Ad libitum. Mas hoje é muito diferente. Há um relatório, sempre citado nos livros, de uma comissão inglesa, chamada Royal Comission on Capital Punishment. De 1949 a 1953, essa comissão estudou a pena de morte. Para ela, a execução da pena capital exige três requisitos básicos: humanidade, ceneza e decência. Por humanidade, entende-se que a técnica adotada deva matar o padecente sem aflição e sem dor (ou com perda imediata de consciência), evitando-se lon­gos ritos ou preparativos. Por certeza, entende-se que a forma de execução deva alcançar direta e imediatamente a supressão da vida do padecente, sem interrupções ou dificuldades oper~­tivas. Por decência, entende-se que o procedimento deve real1-zar-se com dignidade, evitando qualquer violência inútil ou

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brutalidade contra o padecente, não lhe mutilando ou defor­mando o corpo.

EB

BL --ln thesi, sim, A comissão i melhor técnica. O e calcula, de acordo com seu e outras características. a altura da queda. Com um saco de areia do mesmo peso, testa a corda. No momento da execução, ° padecente tem seus bracos atados às costas e é conduzido à sala própria. o

o BL--NaAmérica,oú público

1831, em Nova Iorque; na Ing13terra, em 1868. se usou 1

~e no interior das prisões. Levado à sala própria, que fica contígua à cela dos condenados, coloca-se em sua cabeça. um capuz e passa-se a corda em seu pescoço. O laço corrediço era colocado, na Inglaterra, sob a mandíbula, do lado esquerdo; na América, sob a orelha, também do lado e~querdo. Trata-se de uma dissidência entre carrascos: a posi­çao s.ub.mentaI e a posição s~JbauraI são defendidas por corren­tes dIstmtas. a primeira perfilhada pelos verdugos ingleses, a s~gunda pelos americanos. De qualquer forma, aberto o alça­pao, o corpo cai e o deslocamento violento das vértebras cervicais promove a maceração ou ruptura da medula, Isso leva à perda imediata da consciência. O coração fica batendo ainda quase 20 minutos, mas a comissão inglesa garante que se trata de uma função inteiramente automática.

EB - Não me parece mal, não me parece mal. E é barato. Por que disse, caro doutor Brocardo, que em tese funciona bem? Na prática porventura funciona mal?

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BL - A prática registra vanos inconvenientes. Se o verdugo erra no cálculo da queda, haverá problemas. Se ele

não ocorre o deslocamento das

corcovoS. eITa mais, a ser arran-

cada. Pelos critérios da comissão inglesa, na primeira hipó­tese, falta o requisito da humanity; na segunda, falta o requi­sito da decency. Mas não é só. São inúmeros os casos de reanimação de enforcados que a literatura registra. Imagine o

d Médico tar a

hora, ex-vi legis.

era de uma

tecnologia tornou coisas do passado as batendo quase 20 . Há Iea-

ções fisiológicas desagradáveis que ...

EB - Não. Melhor tentarmos outro caminho. BL -' Devo então desconsiderar o garrote?

EB - Como é o garrote? BL - Mais ou menos como a forca. São duas argolas de

ferro, uma fixa e outra móvel. Quando o torniquete é acio­nado, a argola móvel caminha para trás. O padecente está sentado num banco, e o garrote ajustado num madeiro atrás dele. Há o deslocamento de vértebras cervicais, como no enforcamento, e asfixia. O corpo se estorcega espasmodica­mente, até que o número de voltas no torniquete consiga deslocar as vértebras e dilacerar a medula.

EB - Não, não. Vamos por outro caminho. Você aceita

um uísque? Estou com a garganta seca. BL - Eu o acompanharei. Interessa-lhe a decapitação?

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EB - Usa-se no ocidente cristão?

BL - A.guiIhoti~a é o método moderno de decapitação. Tem o .gra~e mconvemente de mutilar o corpo do padecente, mas fOI mUIto prestigiada. Seu inventor dizia que o executado não sentiria mais do que uma sensação gelada. "

EB - Duas ou ?

BL - '" nas espáduas. Sem gelo, por favor: bebo cow­boy quando estou gripado. A guilhotina é simples. O cen.te é colocado, por um mecanismo basculante, em posição hOrIzontal; seu pescoço é imobilizado por um dispositivo de duas peças grossas de madeira, cada qual com um semicfrculo chamado lune~te; a lâmina tem sobre si um peso de aproxima~ damente 40 qUIlos, ao qual é dado o nome de moutOfl" acionado o declic, uma garra que prende o mouton, este e 'a lâmina. dotados de carretilhas , caem e promovem a .

EB - Parece eficiente.

BL - Devo dizer-lhe, deputado, que há inconvenientes. a lunette é uma, e os pescoços múltiplos, o ajudante do

carr~sco tem que se garantir de que o padecente não faça mOVImentos para retrair sua cabeça. Ele o segura pelos cabelos e, quando calvo, pelas orelhas. Se o padecente se retrai podem acontecer carnicerias desagradáveis, como no cas~ daq~~le que :eve a mandíbula cortada. Esse ajudante usa uma espec~e de mascara, para proteger-se da sangueira que jorra da garganta.

EB - ,Pelo menos, é um processo de morte imediata. ~L - E que o senhor não conhece as estórias macabras de

decapItados. Não me refiro, é claro, ao rubor de Charlotte Corda~, ~sbofeteada no patíbulo, que tem um ar de lenda. Mas ? relatorIo do médico Wendt, no início do século XIX, que, Junto a alguns colegas, testou a percepção sensorial da cabeça recé~-.degolada de um executado chamado Troer, bem como o relatorIo semelhante do médico Bearieux, no inicio do século

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XX, que trabalhou sobre a cabeça do executado LarguilIe, são de arrepiar. Um decreto de 1904, na Prússia, proibiu que se realizasse' 'qualquer espécie de excitação mecânica ou gaI­vânica em qualquer parte do corpo dos decapitados e em suas cabeças' '. Isso tudo pode ser questionado. Mas quem presen­ciou a execução de Gorguloff, o assassino do presídentc Dou­mer, não deve ter dormido por uns dias. Seu pescoço era muito grosso, impedindo que a lunette fechasse completamente; a madeira, fora da posição normal, passou provavelmente a frear, pelo atrito, a queda da lâmina. Foram sucessivas que­das, cada uma das quais arrancava um pedaço da cabeça de Gorguloff. Para que os berros inumanos do padecente cessas­sem, Rogis, ajudante do verdugo Deibler, deu-lhe um golpe com uma chave inglesa para desacordá-lo.

- Basta, meu caro Dr. Brocardo. Com um acidente desses, não me elejo nunca mais. Vai uma fatia de salaminho? E o que se pode dizer da cadeira elétrica?

BL - Obrigado. A comissão inglesa registrava inconve­nientes nos preparativos longos, uma vez que o condenado tem que ter raspados os cabelos da parte superior da cabeça e da perna, onde serão fixados os eletrodos, além de ser atad? p~r diversas correias à cadeira, para não ser projetado pela prImeI­ra descarga. Mas acho que o pior são as queimaduras e as reanimações, durante e depois.

EB - Queimaduras? BL - Sim. Muitas testemunhas presenciaIs mencio­

naram a fumaça que sai do corpo do padecente, mas todas, absolutamente todas, sentem o cheiro de carne queimada. E os laudos registram, inúmeras vezes, queimaduras, no rosto ou na perna. Isso aconteceu com Spenkelink, executado na Flórida em 1979: sua face estava queimada. A primeira descarga é de mais ou menos 2.000 volts, por uns 6 segundos. Reduz-se para 500 volts por quase um minuto, aplicam-se 1.000 volts P?r .uns 10 segundos, e após novo minuto de 500 volts, vem a ultIma

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descarga de 2.000 volts, como um coup-de-grâce. A 2.000 volts, a temperatura no cérebro do padecente vai a 140 Fare­nheit. O pastor Potter, que noso chamado Crowley, fez sobre isso: os suores nariz, indicando, ao lado do

. E - o que é segunda descarga, e por vezes a o homem está vivo. O nha, por favor?

, que o freqüentemente é preciso a

O até lá, e uma torradi-

EB - Pois não. Mas e se aumentarmos a voltagem? BL - É claro que se fossem aplicados 10.000 volts, alta

, a 100 na

de carvão. Veja o deputado: usar os termos da' comissão inglesa, ganharíamos 10 em certainty, mas levaríamos zero em . Para não o o risco morte aflitiva, e das reanimações.

EB - Reanimações? BL - A literatura anota diversos casos em que se deu

reanimação. Num deles, ad exemplum, referido por von Hen­tig, o médico legista requisitou o retomo do - não sei se digo corpo ou "réu - à cadeira elétrica, para que voltasse a morrer. Uma lei nova-iorquina de 1914 determinava a imediata reali­zação da autópsia, logo que encerrada a execução, e o motivo era enunciado com louvável sinceridade: "to prevent any possible chance of the subject ever retuming to life". Veja bem o que essa lei, na verdade, pedia ao médico de plantão!

EB- Começo a entender suas dificuldades, Dr. Bro­cardo. Fale-me algo sobre ... a câmara de gás.

BL - A câmara de gás tem desde logo a vantagem de não apresentar um só caso de reanimação.

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EB - Enfim, uma boa notícia! Aceita uma cigarrilha? Como funciona a coisa?

BL - Obrigado, prefiro o meu Hollywood. A coisa é simples. Uma câmara hermética, com uma ou duas cadeiras cujo assento deve ser vazado - para nã~

a ascensão do a , que será cheio com certa quantidade de ácido sulfúrico; neste recipiente, no momento da execução, cairão de de , dando surgimento ao Na cadeira, amarrado pelo pescoço, braços e pernas, o pade­cente tem um estetoscópio preso à altura do coração, conec­tado a um tubo que sai da câmara e permite a um médico constatar a interrupção dos batimentos. Se o réu colaborar. ..

EH colaborar? BL Sim, se o réu a ,

perda da consciência é quase imediata. Sem essa colaboração, tudo é mais lento, e o condenado sofre uma asfixia.

EB - Quanto tempo demora? BL - De uns três a 12 minutos. Houve um caso em qUe

um espectador conversou, pelos sinais dos surdos-mudos, através das janelas de vidro, 4 minutos e meio com o pade­cente, em plena execução. Veja este relatório do médico Ha­mero O gás começou a sair às 4.37:30h. O último batimento cardíaco foi às 4,47, mas a respiração estava convulsiva, espas­módica e irregular desde 4.38. Por exemplo, às 4.41:30 eram 100 batidas; às 4.44, eram 80. Mas só quem percebe isso é o médico, com seu estetoscópio.

EB - E as testemunhas o que vêem? BL - Nada excepcionalmente terrível- dentro de nosso

tema, naturalmente. A língua, quando a cabeça pende, cos­tuma sair dos lábios, junto com uma baba. Como, segundo os autores de Medicina Legai, esse envenenamento produz en­jôos, dor de cabeça, aumento da pressão sangüínea, perda da

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visão e opressão sobre o peito, tornando a respiração difícil, como num ataque de asma, não se pode dizer que a coisa seja isenta de dor. O padecente às vez'es não evita transmitir suas sensações.

EB - Acidentes? BL - Insignificantes. Um que teve ser

sentado à força, tentou o suicídio cortando o pescoço com um pedaço de espelho; outro, magrinho, que conseguiu tirar as mãos e já estava desafivel ando as correias, para seu azar -- ou para sua sorte? - ainda não haviam lançado o cianureto, e ele foi reamarrado. Não, os inconvenientes maiores não vêm, neste caso, de acidentes, e sim das conotações políticas.

EB - Que conotações políticas? BL- de pessoas, ,

exterminadas da forma mais arbitrária e impiedosa por esse processo. Muitos textos chamam a atenção para isso.

EB - Veja, caro doutor, como, no fundo, no dessa ou daquela forma, os judeus realmente intervêm em todas as decisões importantes ... Assim fica de fato muito difícil. Vamos ao fuzilamento. Talvez este seja o caminho, porque o fuzilamento já existe no direito brasileiro, não é?

BL- Sim, já existe no Código Penal Militar, para crimes IÍlilitares em tempo de guerra.

/

EB - Então, vamos lá. Não me venha dizer que sai sangue; isso eu já sei. O fuzilamento mata bem e depressa, ou não?

BL - Depende muito, deputado Burundanga, da pon­taria do pelotão. No famoso fuzilamento do soldado Slovik, em 1945, com um pelotão de 12 homens, nem uma só das balas acertou no coração. Os projéteis se alojaram entre o pescoço e o ombro esquerdo, atingindo a parte esquerda do peito, acima e abaixo do coração. SIovik ficou se debatendo, amarrado ao

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poste, gemendo, enquanto nova descarga era preparada. Acontece que, pelo regulamento militar americano, a prepara­ção da descarga leva uns 15 minutos. Quando ficou pronta, Slovik cessara de debater-se. Um quarto de hora de intensa hemorragia o matara. Não desanime, deputado; às vezes a morte é imediata.

EB - Sim? BL- Na execução de Pedro Martínez, em 1972, o tiro de

não foi necessário. À frente do pelotão, por uma fraqueza l{ualquer - quiçá compreensível - o condenado caiu de joelhos, e quase todas as balas o atingiram na cabeça.

EB - Mas, afinal, onde se atira? E quantos atiram? BL Há diversos sistemas. Pode fuzilar-se disparando à

, ao e costas - , essa modalidade implicava um demérito, reservando-se a traidores e quejandos. Não vou deter-me sobre o fuzilamento por dis­paro na nuca, que teve pouca receptividade no Ocidente -pelo menos, no oficial. O pelotão ser de 5, 8, 10 ou 12 homens. Uma norma muito freqüente obriga a que uma das armas - sem que se saiba qual - esteja municiada com disparo de festim.·

EB - Isso me parece engenhoso! Quer dizer: uma das armas tem um cartucho só com pólvora, sem bala. Todos ficam com o direito de achar que aquela era a sua arma. Engenhoso!

BL - Infelizmente, dessa gentil fantasia não pode bene­ficiar-se o comandante do pelotão, a quem toca o tiro de misericórdia.

EB - Mas esse tiro é a regra ou a exceção? BL - É a regra, E é feio. Ao descrever os efeitos de uma

bala 9 milímetros que rebentou o crânio de um réu, e fez com que a massa encefálica lhe saltasse sobre os olhos, Naud disse

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que parecia uma "couve-flor rosada". No histórico fuzila­mento do padre Hidalgo, as regras não previam tiro de miseri­córdia. Após três descargas, o tenente Armandáriz dois dos que do

EB-- nos vão querer assumir as

que um e , o merecem.

BL - Poderia ficar a cargo da Polícia Militar. ..

EB - Com aquela pontaria? Imagine as cenas horripilan­tes, a cada execução. E isso iria despertar ciúmes em alguns correligionários da

certo. uísque?

BL - Obrigado, vou ficar só nesse. Tenho contraído com freqüência, e tomei medicação

EB ~ E a injeção? BL - Não: foram cápsulas.

EB - A injeção letal, Dr. Brocardo! A injeção letal! BL - Esta é que lhe traria problemas, meu deputado,

muitos problemas com a classe médica. Desde a primeira lei, que é de 1977, de Oklahoma, existem esses problemas. Aliás, ainda em estudos, a Associação Médica Britânica se pronunciara: "Não se deve esperar de nenhum médico que, no seu exercício profissional, concorde em tomar parte na morte de um assassino condenado". Quando houve a primeira execução por esse processo - em Huntsville, Texas, 1982-o diretor médico do presídio teve a seguinte participação: l~­examinou previamente as veias do condenado para ver se eram adequadas; 2? - entregou a droga (tiopental sódico) ao carrasco; 3? - supervisionou a aplicação da injeção; 4? _

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controlou os batimentos cardíacos (o que não fugiria às tarefas comuns); 5? indicou, em determinado momento, que a injeção deveria continuar alguns minutos. Choveram ~anifes­

, das associações médicas do Texas e da Amencana. O da Médica Mundial que a

que toca a um nessa é certificar a morte, cumprida a execução. Aqui não seria diferente, depu­tado. Ainda outro dia um médico mineiro chamava essa forma de de "silencioso farmacológico" .

EB - É fogo. Esses médicos comunistas. BL - Há um detalhe que lhe agradará. Parece que em

algum dos seis estados americanos que ad~tar~m. a injeção, tomam-se três veias do condenado. Em dOIS sao moculadas

inócuas, e só numa a de fuzilamento.

. Como no

EB - a na votação certas leis poderia ser introduzido algo semelhante. De 12 ?otões de votação, um votaria em branco. O deputado podena sempre dizer: não fui eu quem aprovou aquilo. Ou, pelo menos, pensar: talvez não tenha sido eu. .

BL - Deputado, com sua licença, vou me retIrar. Estou me sentindo meio febril.

EB - Será a cadeira elétrica, Dr. Brocardo. BL - A cadeira elétrica?

EB - Sim. Tem uma certa mística, é bem ocidental. A gente torna obrigatório o uso de um aromatizador de ambientes na sala, para evitar o cheiro de carne assad~. ~ cobre todo o corpo do condenado, para a cena não depnmIr, com su?res profusos, queimaduras. E qualquer ~esistência do. bandIdo, tascamos mais mil volts nele. Podenamos. aproveItar no~sa mão-de-obra na área da eletricidade repressiva, que está OCIO-

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sa, operando muito abaixo do que demonstrou ser capaz, por exemplo, nos anos Médici.

BL - Conviria então que o senhor soubesse que crimi­nólogos americanos identificam a origem da cadeira elétrica numa disputa comercial. Edison queria eletrificar as cidades americanas com corrente contínua, de baixa tensão, conduzida

cabos ; Westinghouse era partidário da cor-rente alternada, de alta tensão, conduzida por cabos aéreos. Em 1888, um operário de Westinghouse esbarrou num cabo e morreu. não perdeu a oportunidade. Além de divulgar ao máximo o fato, construiu um aparelho - antepass~do direto da cadeira elétrica - destinado a demonstrar, pela eletrocução de animais, as desvantagens e perigos da corrente alternada. Um tal Harold P. Brown foi o encarregado da tournée demonstrativa. Parece que Edison quis levar sua tese a uma comissão parlamentar. Aí

EB - Dr. Brocardo, isso parece história de comunista. O senhor andou lendo demais. Vamos dormir, que esta reunião foi dura, e o corpo merece descanso.

BL - É verdade. O corpo merece descanso. Boa noite, deputado.

EB - Boa noite.

(Pano lento)

Nota Póstuma

O deputado Exequiel (com x mesmo, cognato de exéquias) Burundanga é um personagem de ficção. Qualquer semelhança com pessoas reais é mer:a coincidência. Enquanto personagem, morrerá em 1988, num conto denominado "Apetite Fatal" , atropelado, ao' sair de sua casa para ir com­prar um saquinho de pipocas, por uma viatura policial, em mau estado de conservação, que se deslocava para atender a

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um falso alarme de assalto bancário. O personagem, portanto, falece antes de ver realizado seu sonho. Deposto pelo impea­chment das armas vendidas ao Irã, Reagan comparecerá pes­soalmente às . O cabo PM que dirigia a viatura será

absolvido. , Brocardo Latino

de Exequiel, assessorar um depois Ministro, e em pouco tempo, benquisto no Planalto, viu-se nomeado magistrado de importante corte federal. Tor­

famoso em 1989, pelo erudito voto vencedor proferi­do no processo em que se discutia a legitimidade de uma operação 63 que o Piauí realizara com bancos sul-africanos para financiar a implantação de cinco cadeiras elétricas. Viria a morrer em 1990, de pneumonia. Suas últimas palavras foram: "Factum negantis probatio nulla est."

Os, mentos, nor·· mas e referências' 'técnicas" sobre execução da pena de morte são todos rigorosamente verdadeiros.

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êÁPITllISMOE SISTEMA· PENAL

PUNIDOS E MAL PAGOS

Historicamente o capitalismo recorreu ao sistema penal para duas operações essenciais: 1 ~ garantir a mão-de-obra; 2~

r a trabalho. Para a mão-de-obra, criminalizava-se o 'pobre

que não se convertesse em trabalhador. A experiência, nos séculos XVII e XVIH, das "casas de trabalho" (Worklwuse, A , a das foi a (onde muito pau-bras ii certamente foi raspado), conduziu à generalização do internamento' 'eorreicional". Com a revolu­ção industrial, o esquema jurídico ganhou feições mais nítidas: criou-se o delito de vadiagem. Referindo-se à reforma dos dispositivos conhecidos como Poor Law, em 1834, Disra­eli dizia que na Inglaterra ser pobre passava a ser um crime. Aqueles que, por uma razão ou outra, se recusavam ou não conseguiam vender sua força de trabalho, passaram a ser tratados pela justiça mais ou .menos como nos julgamentos descritos por Jack London em seu conto autobiográfico: a cada 15 segundos, uma sentença de 30 dias de prisão para cada vagabundo.

Para impedir a cessação do trabalho, criminalizava-se o trabalhador que se recusasse ao trabalho tal como ele" era": criou-se o delito de greve. O Código Penal francês de I 81 O contemplava o novo crime, em seu artigo 415. O Vagrancy Act inglês de 1824 tornava possível processar criminalmente tra-

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balhadores que recusavam a diminuição de seus salários. Não por acaso, um dos vagabundos condenados do conto de Jack London, alegando perante o juiz que houvera deixado sua ocupação com a de obter uma vida mais feliz, foi punido com mais 30 por"

No Brasil, abolida a escravidão e o Código Penal de 1890 trazia a mesma . em seu artigo 399 punia a vadiageín, e em seu artigo 206 punia a greve (definida corno "cessação ou do trabalho para im-por aumento ,ou diminuição de ou salário"). Houve forte reação a este último dispositivo, que dois meses depois do início da vigência do código foi objeto de reforma, para incluir corno condições do crime "violências ou ameaças". Mudou um pouco a letra da lei porém não o espírito da coisa. O teorema jurídico era o mesmo: não é ilícito, parar de

também. Em suma, pagos. A ditadura militar forneceu um modelo muito legível

dessas relações. Enquanto a política do arrocho salarial asse­gurava às multinacionais a mão-de-obra mais barata do mundo, o sistema penal tratava de prender vadios e grevistas. Se a prisão dos vadios era urna rotina que cumpria outras funções (porque, em certo sentido, os vadios eram funcionais para o regime, enquanto compunham o "exército de reserva" daquela mão~de-obra mais barata do mundo), os grevistas, paralisando a produção, atrapalhavam a assadura política do famoso bolo que um dia - como esquecer? - seria dividido. A cOQstituição da ditadura proibia "greve nos serviços públi­cos e atividades essenciais, definidas em lei" (art. 162). Logo o crime chegaria à legislação de segurança nacional: decre­to-lei n? 314, de 13.mar. 67 (arts. 32,33, inc. Ve 34), piorado pelo decreto-lei n? 510, de 20.mar.69, e especialmente o decreto-lei n? 898, de 29.set.69 (arts. 38, 39, inc. Ve 40). Neste último, que foi o diploma legal de nossos anos de chumbo, a greve em serviços públicos ou atividades essenciais era punida com reclusão de 4 a 10 anos. A mesma pena do roubo!

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A nova Constituição assegura o direito de greve de modo amplo, ressalvando que os "abusos sujeitam os responsáveis às penas da lei" (art. 9?, § 2~). Essa espécie de ressalva é supérflua e infeliz - mas, para os tristes acontecimentos de Volta Redonda, foi oportuna.

A ressalva é supérflua o abuso de todo e qualquer direito acarreta necessariamente sanções jurídicas. Um direito verdadeiramente democrático desconhece qualquer criminali-

específica da greve, e os abusos porventura ocorridos devem ser punidos pelo direito penal comum: para isso exis­tem as infrações penais de constrangimento ilegal, vias-de-fa­to, lesões corporais, rixa, dano à propriedade alheia, seqües­tro, etc. A ressalva é também infeliz porque, quando se trata do direito de greve, costuma-se regulamentá-lo de forma tão restritiva e repressiva tal se converte em sua ne . A de 1946 reconhecia o direito greve, "cujo exercício a lei regulará" (art. 158). Mal desfe­chado o golpe militar, em I? de junho de 1964, através da lei n? 4. tratou-se de "regulá-lo", criando novos crimes (art. 29), e um procedimento tão bacharelesco e rococó que, na prática, uma greve legal tornou-se algo inaIcançável. Ou seja, o efeito da regulamentação durante a ditadura foi tornar a greve sempre ilegal.

Para a tra'gédia de Volta Redonda, contudo, a ressalva foi oportuna. Podemos admitir que a ocupação da aciaria da Companhia Siderúrgica Nacional configurasse juridicamente um abuso no exercício do direito de greve. Tal abuso, assim, sujeitaria constitucionalmente os responsáveis às "penas da lei". Mas a lei não prevê para a hipótese a pena de morte, aplicada sem processo a três operários, nem as penas corporais aplicadas a tantos outros.

Por outro lado, era incabível empregar, na operação poli­cial de desocupação da aciaria, as Forças Armadas, que só podem intervir em questões de lei e ordem por expressa soliei­tação dos poderes constitucionais - como determina o artigo 142 da nova Constituição.

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Inteiramente irrelevante é a existência do ofício de um magistrado. Para o ordinário cumprimento das decisões judi­

o que se chama força pública, representada cialmente pelas Polícias Militares. É inconcebível que as For-ças Armadas, cujo da

, possam ser constitucio-nais fundamentais a defesa a garantia dos poderes legítimos para uma função (garantia da lei e da sem que o Chefe do solicitante se

expressamente, como prevê o artigo 142 da nova Constituição. Pobre democracia será aquela na qual juízes, através de um ofício, possam movimentar regimentos e bata­lhões das Forças Armadas para intervir em questões policiais. Como conciliar às idéias matrizes de "hierarquia e

. 142 , que ao grotesco

ser uma operação militar interrompida frente à cassação do despacho do juiz por tribunal superior, ou ao absurdo de uma

por sões Pensar temente é não apenas trair o texto da Constituição, mas tam­bém degradar as funções relevantes e insubstituíveis que, no estado de direito democrático, tocam às Forças Armadas.

Se o massacre de Volta Redonda nunca mais acontecer se pudermos aprender com ele para jamais repeti~lo, um pa~so importante terá sido dado para reverter a tradição segundo a qual a greve e seus abusos são invariavelmente reprimidos, dentro ou fora da lei, mas os crimes cometidos nessa repressão ficam sempre impunes.

Quando alguém fala que o Brasil é "o país da impunidade", está generalizando indevidamente a histórica imunidade das classes dominantes. Para a grande maioria dos brasileiros - do escravismo colonial ao capitalismo selvagem contemporâneo - a punição é um fato cotidiano. Essa punição se apresenta implacavelmente sempre que pobres, negros ou quaIsquer outros marginalizados vivem a conjuntura de serem acusados da prática de crimes interindividuais (furtos, lesões

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corpor.ais, .ho:nicídios, estupros, etc.). Porém essa punição perme~a pnnclpa!mente o uso estrutural do sistema penal para garantlr a equaçao económica. Os brasileiros pobres conhe-cem isso. Ou são presos por vadiagem, ou

emprego e do (punidos ou

mal pa.gos): Depois que já estão trabalhando, nada de greves para d1scutu o salário, porque a polícia prende e arrebenta (punidos e mal pagos).

o APRENDIZADO DA VIOLÊNCIA

Em mais de um momento sua obra, Chaplin o tema do . São idas as

condições nas quais a industrialização nascente promoveu a exploração da mão-de-obra de crianças. Menos evidente, con­tudo, se apresenta a articulação entre essa . e o sistema penal contemporâneo. Uma homenagem a Chaplin pode ser prestada examinando tal articulação a partir de um texto legal que também completa cem anos: o Código Penal brasileiro de 1890.

A época é o final do século XIX, e a ação se passa num país latino-americano. O personagem antagonista de Carlitos é .um próspero comerciante, cujo pai fora barão do Império, grande proprietário dê fazendas e escravos. Chamemos nosso personagem de B urguito. Admirador do engenho inglês e da liberdade americana, Burguito está participando a um só tempo da instalação de uma fábrica de tecido e da república. Para que ambas funcionem, precisa de mão-de-obra barata e legislação severa. Suspeitando de que através da segunda poderia garantir a primeira, Burguito arregaça as mangas e vai à luta pela mão-de-obra das crianças .

Burguito convence o Generalíssimo que chefiava o Go­verno Provisório da república a expedir um decreto que proíbe terminantemente o trabalho nas fábricas a menores de·12 anos,

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"salvo a título de aprendizado", desde que seja em fábricas de tecido e restrito a maiores de oito anos. (Qualquer semelhança com a estrutura lógica do inciso XXXIII do artigo 7? da Constituição de 1988, que proíbe o trabalho para menores de 14 anos' 'salvo na condição de aprendiz", é mera coincidência.) Para evitar , o decreto proibia que a jornada de trabalho ultrapassasse nove para os maiores de 12 anos (se garotas, máximo de oito horas), quatro horas para as crianças entre 10 e 12 anos e três horas para as crianças de oito a 10 anos. Era também proibida qualquer tarefa que implicasse "esforço ê'xcessivo". Se não houvesse janelas, o dono da fábrica teria que providenciar" ventilação artificial" . O industrial que excedesse os limites da jornada ou não asse­gurasse as condições sanitárias prescritas estaria sujeito a pequenas multas, sempre com recurso para o ministro

specialmente quando a medida sanitária importasse "avultada despesa por parte dos donos dos estabelecimentos"). Burguito esfregou as mãos de contente.

Esse decreto existiu (n? 1.313, de 17.jan.1891). Jacob (recolhido por Edgar em seu }Jovimento

Operário no Brasil) narra o drama de crianças que "aprendiam" a carregar tinas d' água de 30 quilos (" os pobres meninos levavam-nas junto ao peito e devido ao peso andavam a passos incertos, tropeçando a cada instante" - e podemos imaginar Carlitos com uma broca furando as tinas) ou "aprendiam" a socos e pontapés a disciplina fabril ("não chegou a firmar-se de todo, porque um possante pescoção cy

projetou de novo no solo" - e novamente podemos imaginar as fintas que Carlitos aplicaria no capataz agressor).

Porém - pensa Burguito - se criança pode trabalhar, pode também furtar; quantas coisas das fábricas aqueles diabi­nhos sonsos não iriam levar para casa entre os farrapos de suas vestes sujas? Como a Senhora Burguito lhe objetasse que afinal eram crianças, sem maior compreensão dos próprios atos, ele pensou: a responsabilidade criminal deve começar cedo, aos nove anos de idade -. desde, porém, que se verifi-

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que que o réu tenha" discernimento"; e dos 14 anos em diante sem qualquer verificação. Assimfoifeito no Código Penal de 1890 (art. 27 , § § I? e 2:'). A cena, agora, é Carlitos no tribunal, defendendo um garoto de 10 anos que subtraíra da fábrica uma peça de pano para o dia das mães.

Sucedeu que o garoto foi : o que com ele? O ídeal- sugere Burguito aos juristas que redigiam o Código Penal seria que esses pequenos delinqüentes (entre nove e 1 4 ano s , com discernimento) f o s se m r e c o I h idos a "estabelecimentos disciplinares industriais" ,-- "Por quanto tempo?" - "Não seria melhor deixar isso ao arbítrio do juiz?" - "Mas um limite qualquer é aconselhável." -' 'Por que não 17 anos?" E assim foi feito (art. 30 CP 1890). O garoto condenado aos 10 anos poderia ficar até os 17 sob trabalho forçado numa ! É fácil supor as encantadoras manobras de que o advogado Carlitos lançou mão para conse­guir do juiz que o internamento fosse apenas até os 15 anos e não no grau máximo (até 17 anos). Durante a longa execução.

lembrava ao que Jacó trabalhara não sete, mas 14 anos para se casar com RaqueL ..

O garoto sai finalmente da prisão-fábrica e, claro, não quer saber de trabalho. Tinha então 15 anos, dos quais passara sete naquele inferno (dois na fábrica -prisão e cinco na pri­são-fábrica). Não por acaso, um escrito do início do século chamava a fábrica do Ipiranguinha de "galé industrial" , refe­rindo-se às crianças' 'metidas na prisão naquela idade em que o ar e a luz são tão necessários" . O fato é que o garoto não quer ouvir falar em trabalho por uns tempos.

Entrementes, Burguito continuava a fazer seu código penal. "Greve tem que ser crime", bradava. Um jurista li­beral observou que tal dispositivo pareceria excessivo e discri­minatório. Burguito sugeriu que o crime abrangesse também os patrões, e também as greves que fossem feitas para aumen­tar o trabalho ou diminuir o salário. O jurista liberal ficou satisfeitíssimo, pois a sugestão resolvia, ao menos num plano formal, a questão da eqüidade. E assim veio à luz o artigo 206

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do Código Penal de 1890: "causar ou promover cessação ou ,para aos

de serviço ou de Burguito, o

, não se trou um só caso de para () fim de umentar o

ou nuir o , nem um só caso de greve de patrões com o objetivo de diminuir o serviço ou aumentar os salários. Carlitos teria tentado, sem sucesso, mobilizar os patrões. )

O incansável Burguito, contudo, não estava satisfeito. Não ern

,13 uma prática urna

es?~cie de arte marcial inferior, e o artigo 402 puniu com pnsao celular de 2 a 6 meses a conduta de "fazer nas ruas e praças .públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação de capoeiragem". A câmera deveria registrar, agora, o imortal vagabundo participando de uma roda de capoeira e fugindo da polícia.

/' . Mas Burguito não estava satisfeito. A vadiagem era pu-mda com pequena prisão celular, sendo o réu' 'obrigado a assinar (não havia analfabetismo nesse país) termo de~tomar ocupação dentro de 15 dias". Acontece que os vadios não c,umpriam o que assinavam, nem mesmo quando assinavam. E, q~ebrado o termo, deviam eles ser recolhidos a "colônias penaiS que se fundarem em ilhas marítimas ou nas fronteiras d~ território nacional" (artigo 400). Burguito pensou nas c.rranças e nos jovens, em como este exílio poderia ser malé­f~co, afastando-os do carinho familiar. E propôs ao jurista lIberal, seu amigo, o seguinte dispositivo para jovens vadios:

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"os maiores de 14 anos serão recolhidos a estabelecimentos

idade de 2l anos". Sua ser conservados até a

converteu-se em lei (§ 2:' do CP I

E eis como Carlitos ~- niío nem ouvir de trabalho. de sete anos de

, novamente inter-reclusão têxtil- viu-se. dois meses até os 21 anos. Como a Vara de

era , o garoto ficou um ano além do que devia, isto é, dos 15 aos 22. Totalizou, assim, os mesmos ]4 anos de Jacó, sem as duas esposas. A penúltima cena é o advogado Carlitos no cartório da Vara de Execução, não conseguindo sequer localizar o processo do garoto. O

com uma iscussiio entre ambos, a lhadas por

to

A colaboração do penal pelo de 1890 na implantação da ordem burguesa e sua articulação com

da foram dest . entre nós, não por juristas, mas por três historiadores Cavalcante, Ilmar Rohloff de Mattos e Maria Alice Rezende de Carvalho), num capítulo de seu estudo sobre a polícia no Rio de Janeiro. Vistas à distância de cem anos, aquelas dispo­sições legais despertam indignação e repulsa. Sua óbvia gra­mática econômica se fez visível sob a dissimulação da abstra­ção jurídica, e não há como quantificar seu saldo de mutila­ções, espancamentos e mortes.

A violência contra a criança não opera apenas pelo aban­dono ou pela crueldade, mas também pela sua exploração. Não por acaso tais situações são emparelhadas pelo Princípio 9~ da Declaração dos Direitos da Criança da ONU: "The child shall be protected agaínst all forms of neglect, cruelty and exploitation." Em nosso país, de triste tradição, há um longo percurso a ser cumprido, na estrada de pó e esperança pela qual Drummond viu caminharem os sapatos e o bigode de CarEtos.

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ONDE ESTÁ A CORRUPÇÃO? O GATO COMEU!?

É lugar comum, em criminologia ~, ,

estrategicamente mantida, no econô-

e financeira, entre condutas desviantes e condutas deli­tuosas, (Toma-se aqui o termo desviante na acepção de CIi­nard, de conduta fortemente desaprovada pela comunidade, e o termo delituoso no sentido de penalmente típico, ou seja, de c~n~ut~ associada a uma pena nlediante previsão lega1.) Tal dIstancIa, no terreno da "delinqüência dourada", é estável e perm~nente demais para ser também inocente; e ainda quando r?mplda no plano legislativo, não se encurta na prátíca do sIstema penal.

Não sei por que não tratou uma tradução do livro de Conklin lllegal but not criminal, que se ocupa de outra distância análoga - a distância entre o ilicito e o delituoso, o primeiro podendo conduzir a e indenizações, e o segundo podendo conduzir à cadeia _ que, nos. p,a~ses centra~s, en~eja a mes~a estratégia que, nos países penfencos, toca a dualIdade desvlOnte-delituoso; o livro seria um sucesso de vendas entre nós. Illegal but nof criminal é uma espécie de versão juridicamente desenvolvida do "sabe com quem está falando" terceiro-mundista.

Isso me vem à cabeça a propósito da troca de notas entre a ~NBB e o Presidente da República, à qual, em sua edição do dIa 04.fev.88, o Jornal do Brasil incorporou valiosa contri­buição. A CNBB denuncia a existência de um nível insuportá­vel de corrupção; o Presidente, proclamando-se católico de corpo inteiro (e graças a essa religiosidade só evocou o Banco Ambrosiano), pede a indicação de casos concretos· o JB em

iI" •• , , ,

matena mtltulada 'Se o governo quiser não faltará trabalho-uma pe~uena list~ ~ara investigação", arrola alguns episódios aos quaIS a colettvldade atribui sem hesitar o rótulo de cor­rupção.

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A distância entre o desviante e o delituoso nos crimes do colarinho branco, incorporada pela prática do sistema penal, costuma levar a duas situações dignas de atenção. Na primeira delas, toda a comunidade representa o fato como corrupção e o desaprova enfaticamente -- porém ele pelas volutas da construção legal. É , porém não delituoso. Na se­gunda situação, o fato é delituoso, porém a dess~ns!bil.ização do sistema penal, pela incorporação daquela dIstanCIa, faz com que ninguém se mexa, e nada aconteça; po~e o fat~

passar-se no mais alto escalão do governo, e ao PreSIdente so resta queixar-se ao bispo.

Vejamos um exemplo de cada situação. Antes, porém, releiam-se os artigos 317 e 333 do Código Penal, onde estão previstos os crimes de corrupção passiva e ativa: arfo 317-"Solicitar ou para si ou para outrem, ou tamente, ainda que ou antes de , ma:;; em razão dela, vantagem indevida ou aceitar promessa de tal vantagem."; arfo 333 - "Oferecer ou pr~m~ter vanta.gem indevida a funcionário público, para determma-lo a pratIcar, omitir ou retardar ato de ofício." A pena, em ambos os casos, é de reclusão por 1 a 8 anos, e multa.

Um bom exemplo de conduta desviante e não delituosa está na hipótese do chamado" oferecimento poste~ior~' : O que pensa a coletividade de quem, após o ato do funcIOnano, que direta ou indiretamente beneficiou-lhe interesses, presen­teia-o regiamente? Um tribunal, contudo, dirá que não se config'urou o crime de corrupção com "o oferecim~nto ~os­terior à ação ou omissão, sem anterior promessa, pOIS o cnme é dar para que se faça ou omita e não dar porque se fez ou omitiu" (Tribunal de Justiça de São Paulo, RJTJSP 70/3~7). Está certa a opinião pública em indignar-se; está certo o tnbu­nal em aplicar a lei vigente com obediência ao princípio da reserva. A condenação criminal de cidadãos que se funda­mente não na estrita letra de lei anterior, e sim no "são sentimento do povo", dá origem ao terrorismo penal e produz na verdade uma prática judiciária insana.

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o exemplo da segunda situação do penal) não é

que, para a votar ou , .

. so nado tema,- suponhamos, a extensão do mandato presidencial __ :lguem lhe oferecesse, ou a algum familiar, qualquer vanta­bem, po.r exemplo facilitando-lhe a obtenção da conc .;C d '1m se 'br essao e ;Ie rVIço pu ICO - sup?nhamos, uma emissora de rádio ou

para ato de ofício? A os contornos legais do crime de corrupção tal co ' no - ,lno prevlsto

, estau

, que a criminal deve ser r

reduzlr d't A , ,pa.a a IS anCIa entre a forte reprovação comun't' ' di' 't' 1 ana e seus

SpOSl 1VOS, atenuando a crise de funcionalidad ' instala M ' t b' e que aI se

_ '. a~ e a~ em claro que o sistema penal e suas cone-xoes admllllstratlVas, em todos os níveis, têm que recondicio-nar seus sensores para os crimes dos pod ,_

'd ' erosos, que sao c~m:tl os ~ sua frente sem que nada aconteça; e a crise a 'u' nao e funCiOnal e sim pt)lítica e moral. ' q 1,

B E~quanto aguardamos, resta parodiar a marcha do crenial ragmr:ha, que vem de festejar bodas de ouro: onde ~stá

corrupçao? O gato comeu!? a

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SAÚDE

GENOCÍDIO HOSPITALAR

Durante os anos 80, juristas e criminólogos que desenvol-sa, o lnstítuio Interall1cri-

cano de Direitos I hunanus, com

A despeito de se legitimarem num discurso que os apre-a vida, s seu desem-

penho prático - expõem uma perturbadora constante: a morte massificada de pessoas integrantes de estratos sociais bem caracterizados, Seja pela atuação de grupos de extermínio ("justiceiros", "esquadrões", "polícia mineira", etc), seja pelo abuso nas situações de enfrentamento (a menor relutância em submeter-se ou entregar-se vale como condenação à pena de espancamento ou mesmo à pena capital, executadas durante ou após a resistência), seja pela indiferença instítucional (expressa pelo desinteresse - homicídios carcerários ou re­gistros de "encontro de cadáver" jamais investigados - ou pela conivência - a justificativa, verdadeira ou não, da "guerra de quadrilhas" su btraíndo relevância de chacinas), as agências executivas dos sistemas penais latino-americanos, direta ou indiretamente, produzem, administram ou toleram um volume de mortes que, face a certa homogeneidade social das vítimas, introduz necessariamente a idéia de genocídio. A significação estatística de tal volume gera o paradoxo segundo o qual os sistemas penais latino-americanos, para cumprir sua

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integrantes de estratos sociais bem caracterizados; 4. tais dis­funções estão associadas a um desaparelhamento estrutural dos hospitais, significativos de uma atitude geral de órgãos públicos, muito mais do que à hipótese rara da conjuntural relutância ou "pcrv,ersidade" de alguma médica que recuse o atendimento. É a partir dessas variáveis que cabe perguntar se está ocorrendo um genocídio hospitalar em nosso país, e se - ironia à parte - o sistema penal pode oferecer

alguma contribuição. Salvo o duvidoso emprego revolucionário (quando a uma

abundância do penal corresponde notável escassez de direito), o direito penal não é instrumento adequado para transforma­ções sociais. O esforço teórico crítico e desmitificado.r d,o direito (que na América LatÍna recebeu excelentes contnbm-

, entre as os de Novoa e suas funções legitimadoras e conservadoras. A pesquisa cri­minológica demonstrou que ambiciosas pedras angulares de muitas concepções (por exemplo, a intimidação pela ameaça penal, ou a ressoci carcerária) não passaram de fanta­sias, capazes de articular uma lógica penalística e desatar concretos sistemas de controle social penal, porém simples­mente sem existência social. As limitações hoje impostas no conceito de prevenção geral são bem representativas do cará­ter místico da maior parte das racionalizações penais. Uma confirmação histórica pode, no Brasil, ser buscada no próprio genocídio. O genocídio dos índios e dos negros teve no direito penal seu pressuroso regimento interno, enquanto as leis e usos de guerra não contiveram o genocídio dos paraguaios. A tendência genocida responde a uma organização social inter­namente exc1udente e discriminatória, e externamente imperi­alista, qUe converte o estado em agressivo servidor aparelhado dos interesses de uma classe. Tal estado, por ação, negligência ou omissão, extermina ou tolera que se exterminem, direta ou indiretamente, as "classes perigosas", os inúteis ou incómo­dos grupos marginalizados. Se o genocídio por ação é desd,e logo reconhecível e condenável, pelo confronto formal eVl-

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dente com direitos humanos fundamentais, microgenocídios

de vagas e pamentos, a morte de acusados ou de pacientes é funcional (fôssemos apenas 15 milhões de brasi ros, os serviços públicos seriam primorosos: culpa nossa). O equacionamento global desses problemas só se alcança no plano político, pela construção de uma sociedade democrá-

, às menos comuns, ocorrentes, de recusa de atendimento por deliberação de administradores

técn c Iccimentos um pouco na perspectiva do "uso alternativo do direito" - a aplicação imediata do artigo 135 do Código Penal, que pune com detenção de um a seis meses ou multa quem "deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, a pessoa em grave e iminente perigo". A pena é triplicada se da omissão resulta morte. A incriminação da omissão de so­corro visa a proteger, como frisou Rodriguez Mourullo em sua monografia, o valor da solidariedade humana. Um jurista suíço, Paul Logoz, disse com felicidade que na omissão de socorro encontramos' 'o egoísmo erigido em delito". A apli­cabilidade do crime de omissão de socorro a situações que envolvam pessoal da área médica é reconhecida não só pelos mais importantes penalistas brasileiros, mas também por nos­sos tribunais. Transcrevamos, como exemplo, dois precedentes: "Responde por omissão de socorro o médico que, embora solicitado, deixa de atender de imediato o par ciente que, em tese, corria risco de vida, omitindo-se no seu dever de facultativo" (TACrimSP, Ap. n:' 154.529, reI. Juiz

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Lauro Malheiros); "Recepcionista de hospital que se recusa a acolher a vítima e a consciente do

contribuindo, a de

. 774/82, relo Juiz Amadeo). No microgenocídío dos aidéticos, muitos desse aconteceram impunemente, havendo qucm invo­casse a cláusula do' 'risco para do dever de atendimento. Como lembra Jean Penneau em seu estudo sobre a responsabilidade médica, o risco do contágio integra a ativi­dade do profissional da saúde, e não pode por ele ser invocado como escusa; nesse aspecto, o direito deve ser mais exigente com o médico do que com outro indivíduo (' 'ici, Je droit doit êlre ige nt individu' ').

Claro está que seria absurdo e demagógico "policializar" as administrações hospitalares. A esmagadora

dos 5si é insuficiência de recursos materiais e técnicos, de salários aviltantes e do subdimensionamento dos estabelecimentos, expressões da tolerância essencial do estado para com o nível dos serviços que mantém ou fiscaliza. A aplicação do crime de omissão de socorro, no quadro dramático que está aflorando ao. debate público, deve circunscrever-se às hipóteses minori­tária§..nas quais - dentro, de resto, das características típicas dos crimes omissivos a equipe médica poderia ter atuado, e não o fez. O grande cúmplice secreto de todas as mortes que estão no noticiário dos jornais é o próprio estado, cujo descaso retirou dos médicos o pressuposto jur(dico indeclinável dos delitos de omissão: a possibilidade de agir. Este velho réu convicto, este multirreincidente em genocídios, contudo, só os tribunais da democracia poderão algum dia julgá-lo e trans­formá-lo.

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UM RÉQUIEl\rl PARA LEIDE

Muitos brasileiros - inclusive meninas - restolham o e reaproveitam da imundície às vezes alimentos, às vezes

no paupérrimos, seja no média de detritos menos vulgares (como um ferro-velho), pode acontecer um cilindro de chumbo, e a fantasia de um segredo, um cofre, um tesouro. E se esse cilindro mágico verte de suas entranhas um pó azul iridescente, a maravilha é total, e a menina não resistirá a pintar-se com ele, a com ele decorar seu sanduíche de pão e ovo.

Agora que Leide das Neves Ferreira, aos seis anos de morreu por ter brincado essa aventura, a da

nuclear se os jornais as bone-cas que a cercaram, em seu leito de morte, também serão enterradas como lixo radioativo. A pequena Leide merece ter um réquiem na reabertura do sobre o nuclear; e recuso-me a crer que a última palavra no assunto caiba à tecnocracia, pois se a fissão nuclear e a radioatividade se esgotam na física, a morte a transcende e se reapresenta aos níveis religioso, moral, histórico e político.

Quero deter-me sobre um aspeeto dessa tragédia: a apura­ção das responsabilidades criminais. Informa a imprensa que, antes das mortes de Leide e de sua tia Gabpela, o inquérito tinha como indiciados apenas os responsáveis pela manuten­ção e operação da bomba de césio na clínica radiológica desativada, aos quais se atribuía o crime de lesões corporais graves dolosas (mediante dolo eventual). A superveniência das mortes deveria logicamente converter a subsunção legal num homicídio doloso (igualmente mediante dolo eventual). Mas a imprensa informa também que as autoridades que diri­gem a investigação não acreditam muito na solução jurídica que propuseram. E mais: estaria praticamente descartada a incriminação de qualquer funcionário da Comissão Nacional

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de Energia Nuclear - CNEN -, da Secretaria de Saúde de Goiás ou do Instituto da Previdência do Estado.

A morte de Leide provoca muitas conclusões; a menos importante delas é que a capitulação jurídico-penal atribuída inicialmente aos era artificial e equivocada. da

de dano à saúde ou à cometido foi o do art. 26 da lei n~ 6.453, de "Deixar de observar as normas de segurança ou de proteção

à nuclear ou ao uso, transporte, posse e guarda de material nuclear, expondo a perigo a vida, a gridade física ou o patrimônio de outrem; pena: reclusão de dois a oito anos." Essa mesma lei, em seu art. I?, inc. IV, inclui na definição de material nuclear os "produtos radioativos". A equação jurídica que se segue é simples: trata-se de verificar que pessoa ou pessoas tinha(m) o

, contratual ou de e velar (fiscalizar, inspecionar, etc ) daquele produto radioati vo.

Muito dificilmente um levantamento exaustivo das atri-da CNEN não essas funções. Inúmeras

passagens da lei n? 4.118, de 27:ago.62, que criou a CNEN, e da lei n? 6. 189, de 16. dez. 74, que lhe introduziu alterações, patenteiam as funções normativas e de fiscalização e controle que a Comissão detém com respeito a essas atividades. Na pesquisa e lavra de jazidas de minérios nucleares, empreendi­das por particulares autorizados, a CNEN exercerá "sobre as atividades dos respectivos titulares a fiscalização prevista em lei". É de sua competência expedir normas, licenças e autori­zações para a "posse, uso, armazenamento e transporte de material nuclear", bem como as normas de segurança para' 'o tratamento e a eliminação de rejeitos radioativos" . A estrutura básica da CNEN, sobre a qual dispôs o decreto n? 75.569, de 7. abr. 75, atribui essa tarefa de receber e depositar rejeitos radioativos ao Departamento de Instalações e Materiais Nu­cleares. Tais dispositivos, embora com objeto distinto, forne­cem uma visão significativa da índole geral dos poderes e obrigações da CNEN. Ninguém do ramo poderia ignorar o

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da bomba de césio. Uma lei de 1950 (n~ 1.234, de em seu art.

viva. Do ponto de vista jurídico, a ocorrência da morte das

vítimas teria solução simples caso o legislador 6.453, de 7. .77.

falecido Procurador Jorge "omissão Direito Nuclear, ano I, n~' I, Rio, I

. A natureza do camente a escala penal do artigo 26, impede o uso do princípio da subsidiariedade, que normalmente vincula os crimes de perigo e de dano que tutelem de ofensas homotípicas o mesmo bem jurídico. À míngua de uma qualificação pelo resultado morte no artigo 26 ou de um tipo autónomo de "morte por radioatividade" , temos que recorrer ao crime comum contra a vida. O homicídio, obviamente não intencional e sim culposo, de Leide e sua tia não se diferencia em nada daquele que teria ocorrido se uma substância venenosa qualquer houvesse sido negligentemente abandonada numa lixeira habitualmente vas­culhada ou vasculhável (nessa última distinção, o grau de culpa). Efetivamente, parece que os responsáveis pela clínica radiológica estão mais próximos da linha de imputação desses homicídios (em concurso formal, pois uma só ação produziu mais de um resultado criminoso- artigo 70 do Código Penal), embora, consoante seus deveres para com a guarda do produto radioativo, não escapem desde logo ao artigo 26. Mas é im-

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perioso,quanto à gurança relativas à mente o(s)

acusação de violação de normas de se­do material

só acrescentará um novo o autor especialmente obrigado por lei exonerar-se do dever de atuar contratual de sua Mas essa 6 uma que uma sentença judicial respon-der. Até lá, a indiciação seria impositiva. Faltam personagens importantes como indiciados nesse inquérito.

Chega-se, assim, a um aspecto fundamental. Esse inqué­rito não pode ter a influência ou assessoria da CNEN, por­

devem ter suas condutas ~lJlali-sadas nele, com de verem-se . A

acreditaria num inquérito no qual o indiciado fosse também o perito? Rigorosamente, esse caso deveria ser inves-

por uma Comissilo Parlamentar de . Não ques-tiono a possível independência da polícia com aos importantes estratos funcionais que podem vir a ocupar a posição de indiciados, mas refiro-me à confiança que a opinião pública precisa ter na apuração implacável do que se passou.

Certa ocasião, Foucault enfatizou o quanto há de exercí­cio de poder no monopólio e condução do inquérito, do proce­dimento que irá desvendar e revelar a verdade a todos. Os brasileiros não querem, no episódio infeliz que levou a peque­na Leide, vasculhar um lixo investigatório ou um lixo jurídico. Queremos, todos, a verdade toda.

AIDS E DIREITOS HUMANOS

A marcha gay sobre Washington sugere algumas refle­xões. Pelo menos duas chaves permitem religar a questão da

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Aids aos direitos humanos: a chave da discriminação e a do direito à saúde,

Em?o:a todos os homens nasçam livres e iguais em digni­dade e dIreItos - como consta do art. I da Declaração Uni ver-

--, parece que mente e embora todos devam ser contra

q~alquer discriminação e qualquer incitamento à discrimina­çao - como reza o art. VII da mesma Declaração --, parece

_ que certos doentes estão na excluídos de tal proteçao,

Creio que ~ssa perda de dignidade e essa discriminação se den:onstra~ ate por uma divisão que a inclemente opinião socIal dommante empreende nos pacientes aidéticos consi­derando diversamente os casos em que a doença te~ha sido

de sangue -- o mobiliza e alguma

e os, casos em que a infectação se deu d 'tO , e pra Icas homossexuaIs ou abuso de drogas injetáveis - o que desperta

" ou ,d~fin!?os (c?~s~ante o político) impulsos de ,g~etIfIcar o ep,lsodlO infeliz, Dentro da saga trágica da molestIa, surgem dOlS grupos bem distintos, e um deles - o dos hom~ssexua~s e dr~gados - é atingido por inequívocos preconceItos e nao mUlto velada discriminação,

Es~e preconceito e discriminação, a meu juízo, não é predommantemente religioso, moral ou "sanitário" e ' }' , , ' SIm po, l~lco-soClal. ,Na verdade, a Aids apenas oferece uma dra-matlca oportumdade para a exacerbação da "des l'f' _ " qua 1 lca-çao (em alguns países, até jurídica) que o sistema vota aos ho~ossexuais, Talvez tenha sido Reich quem percebeu, com malOr agudeza, o compromisso político-social da sexuali­dade, Os ho~ossexuais divergem aberrantemehte das práticas s~br~ as quaIs, pela construção histórica do casamento mono­gamlco e da família, o direito acomodou importantes interes­ses, entre os quais a transmissão da propriedade privada pela suc~ssão, Também os drogados, a seu modo estéril e autodes­trutlvo, recusam e são percebidos pelo sistema como pessoas

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que lhe recusam as propostas existenciais; a exemplo dos homossexuais, contestam o vigente em sua opção pelo a-legal ou pelo ilegal. Um historiador do futuro será tentado a ver, no criminoso atraso com o qual alguns governantes - à fre,nte, não ficamos muito atrás -- adotaram

contra a , uma definida

com a desses calculado genocídio por omissão.

O direito à saúde, que de forma tímida se insinua no XXV da Declaração, é previsto no artigo 12 do Pacto

Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais; entre as medidas que os Estados devem tomar, para assegu­rá-lo, estão a prevenção, o tratamento e o controle de doenças epidémicas (" lhe prevention, treatment and controi of epide-

mie [ .. ,] diseases" -- art. 12,2, c), Não temos uma de à

saúde. Os bancos de sangue irregulares, que sem autorização (cometendo o delito equiparado a exercício ilegal da medicina, previsto no esquecido artigo 5? do DL 211, de 27, fev .67) ou sem condições técnicas (transmitindo farta­mente hepatite e outras doenças), contagiaram com o HIV mais de 70% dos hemofílicos do Rio de Janeiro. Ninguém jamais responderá por esse inominável crime.

Ao contrário, entre juristas o interesse se concentra no episódio individual. Alguém propõe que Aids deve conside­rar-se moléstia venérea para os fins do artigo 130 do Código Penal. A teoria do doloyventual receberá volumosa contribui­ção com a análise do homicídio sexo-virótico, O portador assintomático do vírus será um "doente" , na acepção do art. 269 do Código Penal, estatuindo a comunicação médica

obrigatória? O individualismo no direito tem essa propriedade: em-

bora cegue, enseja discussões elegantíssimas, Pela via do direito à saúde pode chegar-se à discriminação com uma cele­ridade que o itinerário inverso não faz presumir.

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o PROBLEMA DAS

DROGAS

A desmesurada importância que a questão das drogas vem de assumir na campanha presidencial norte-americana oferece OU1SJ

uma política la/mo-americana a re ítica de mais perigoso do que a

da própria droga, até porquanto os malefícios não se a uma só . Em traba sa-

dora venezuelana Rosa deI Olmo (A Face Oculta Droga, Rio, 1990, ed. Revan), a autora se refere à confusão produzida por um "discurso unÍversal, atemporal e a-histórico sobre a questão das drogas, como se a situação de cada país e de cada droga fosse similar à de outros" . De fato, há drogas e drogas. A única coisa em comum que existe, por exemplo, entre a maconha e a heroína, é estarem proibidas sob as mesmas penas pela mesma lei. Assim também, os problemas norte-americà­nos no que concerne às drogas - indiscutivelmente graves -não são exatamente os problemas latino-americanos, e às ve­zes são precisamente o seu oposto. Receber acríticamente um discurso que transita entre a histeria e a cegueira, a começar pela dualidade país-vitima importador (Estados Unidos) e paí­ses-agressores exportadores ou facilitadores (Colômbia, Bolí­via e, ouro sobre azul, Panamá, Cuba ou Nicarágua), e cons­truir sobre tal discurso uma política criminal, é enredar-se num indecifrável e contraditório novelo. Novelos contraditórios e

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indecifráveis costumam ser, infelizmente, atrações às quais não resistem muitos juristas do lado de baixo do Equador. .

O tráfico internacional de drogas é certamente um dos negócios criminosos mais organizados e poderosos, movi-mentando milhões de , infiltrando-se no serviço co outras sas, vinculadas ou não à e reprodução estrutura. Os efeitos negativos do abuso de drogas não se apresentam apenas nos casos de morte por overdosc; sua noci-

se exerce sobre os vivos que as passem a depender, substituindo o trabalho pelo , a militância pelo transe, a solidariedade pela complacência. É irônico perceber, mais de um século depois, que a religião está comprometida com a transformação de sistemas iníquos, e que o ópio: sim, pode converter-se numa espécie de "religião" do povo, cm

N a América são produzidas maconha e Pequena quantidade da maconha e ínfima quantidade da cocaí­na são aqui consumidas, em razão dos elevados preços que

ser obtidos no norte. é por nossa que não temos dinheiro para reter e consumir aqui toda a maconha e cocaína aqui produzida: isso se relaciona com uma ordem econômíca internacional extremamente injusta. Também exportamos alimentos e temos compatriotas que morrem de fome. As chamadas leis do mercado são inexorá­veis e funcionam para as drogas assim como funcionam para os alimentos. Por outro lado, o hemisfério norte brindou-nos com algumas drogas incomparavelmente mais destrutivas. Há efe­tivamente drogas e drogas. Pense-se nos agrotóxicos organo­clorados, indi?cutivelmente cancerígenos, ou relembre-se a Talidomida, em função da qual dezenas de milhares de bra­sileiros, hoje com aproximadamente 30 anos, vieram ao mundo mutilados. Em que penitenciária cumpriram pena os traficantes da Talidomida?

Podemos formular, como princípio básico para uma polí­tica criminal latino-americana, que drogas- lícitas ou ilícitas

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- devem ser indistintamente tratadas tendo como centro de referência a questão da saúde; como primeiro cor?l.ário, s~­gue-se que a caracterização de u~a ~r?ga como hc~t~ devIa fundamentar-se na comprovação clentIflca dos ~aleflcIO;<; ~ue

possa acarretar e na sua aptid~o ~~ra ~onduz~r o usuano a uma dependência clinicamente sIgmhcatlva. Nao estou pro­pondo, como pode parecer, que o álcool e o se c~~:er­tam em drogas ilícitas, por preencherem ambas as condlçoes. Também em tema de drogas a quantidade se transforma em qualidade, e numa sociedade aberta e democrática o acesso a um moderado desfrute não deve ser coarctado por causa da intemperança de alguns. Trata-se bem mais de exorcizar as extensas listas de "substâncias entorpecentes", c?nstantes dos atos administrativos, daquilo que usual ou / ef~t1v~n:ente não seja nocivo, ou pelo menos discernir entre mvelS dIstmtos de noc, classes textos legais norte-americanos). . /. /

Um segundo corolário daquele pnnCIpIO esta em que o abuso de drogas ilícitas deve ser tratado como o abus,o ~e

. / . I" . / de um ebno drogas lICItas. A po lCla so po . quando ele "cause escândalo ou p~nha em pen~o a segurança própria ou alheia" (embriaguez, artigO 62 da LeI de Con:raven­ções Penais). Análoga deveria s~r a.sit~açã~ dos co.nsumldores de qualquer droga ilícita. A cnmmahzaçao d? s~m.~le~ uso, sob a farisaica figura da "posse para uso propno ,e uma fonte inesgotável de arbitrariedade e corr~~ção (ge.ralmente, sob o seguinte modelo: 1. busca domicIliar motlv.ada por "denúncia anônima"; 2. apreensão de pequena quantIdade de droga; 3. negociações entre os policiais e o "criminoso" para evitar a lavratura do flagrante). E, afinal de contas, o que tem o

/. d d ? sistema penal a oferecer ao usuano e. r~g.as: . . Um terceiro corolário do mesmo prmcIpIO mdlcan~ que o

comércio de drogas lícitas deve ser observado pelo sIstema penal com o mesmo rigor que se atribui ao tráfico d~ drog~s ilícitas. Um medicamento cancerígeno, com pron:oç~o publ~­dtária, posto nas farmácias sob autorização dos orgaos sam-

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tários é alg' o in 'd' d '. "; SI 1OS0 O que a sobressaltada da lhclta; e como se ao laboratório e a' d . rogana se conce-

uma para matar. . que pen

/ que 50 na ra COC'i (')U da ' • .', A '.' encontram de ~Ubsl.st~ncla. ,Tanto quanto uma estrutura fundiária inumana, o' Jogo tn.crnaclOnal das cotas de producão agrícol d.' d . - . " " ~ a po e letlrar ~ reglOes.mtelras a perspectiva do desenvolvimento econó-

nuco ée socIal. Atribuir a mesma resposta aos sem-terra e aos

e me que, nas áreas em que

os fuzileiros navais no t . r e-amencanos despejaram suas po-, que cocae

tes a nasc pr •

/ ' . / ~< crIanças deformadas. uma traglca metafora sobre a imperiosa necessidade d I b

1/ . " e e a orar-mos uma po ltlca cnmmal latino~americana para as d Num d' , rogas. e seus escntos sobre haxixe Walter B . . A ' ,enJamm evocava n~d~e e o p~azer que pode existir em desenrolar um novelo

Os Junstas latmo-americanos têm que desenrolar este novelo.'

A SENTENÇA CQMO EXORCISMO

E~tá se co~vertendo num lugar comum, entre criminólo­gos latmo-amencanos, observar a "demonização" do probl _ ~~,das drogas. yma ~órmula bastante eficaz para superar eo dlsc~rso e as praticas mstitucionais da "droga demoníaca" é re~enr todo o.problema ao eixo da saúde pública. Extraem-se daI alguns aXlOmas úteis, o primeiro quais é que a danosi-

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dade da droga não é uma função de sua ilicitude. O Brasil está efetivamente logrando obter uma infeliz proeminência na rota da cocaína,_ mas a cujo abuso debilita, e mata --­diretamente, pela dependência, ou indiretamente, nos camentos de lar e trànsito

de brasile iros, é o A expulsão do demónio pela saúde tam-

bém que não existe a droga, como satâ-nica, e sim drogas concretas mais ou menos maléficas ou destrutivas, e que contemplar numa lei lado a lado, por exem­plo, os opiáceos e a maconha, apenas é possível sacrifican­do-se a realidade à proibição (só a desobediência à interdição equipara as situações). Muitas legislações fazem essa distin­ção. Não menos importante é o princípio segundo o qual o

noclorados ser critérios semelhantes aos empregados para o ilícitas, enquanto que o (ab)uso de drogas ilícitas merecer tratamento ao (p. ex., álcool),

A grave questão do tráfico bem revela os sortilégios de que lança mão o Maligno. Na América Latina, particular­mente na Colômbia, Bolívia e Peru, quase 800 mil campone~ ses vivem do cultivo da coca e da cannabis. Certamente culti­variam qualquer outro produto que lhes garantisse a sobrevi­vência, mas as instâncias decisórias da ordem económica in­ternacional- que estipulam onde plantar, o que plantar, para quem vender e por qual valor - não estão na América Latina. Os traficantes da região compram a pasta, convertem-na no cloridrato de cocaína e exportam este último para Europa e América do Norte, ao preço anual estimado de US$ 25 bilhões. Imagine-se a importância desses ingressos na economia dos respectivos países e a capacidade de corrupção neles represen­tada. No hemisfério norte, a comercialização multiplica por 5 vezes aqueles valores, alcançando a colocação final da droga o preço anual estimado de US$ 125 bilhões. Ou seja, o exíguo

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grupo de pessoas que controlam as organizações criminosas que comercializam a droga ao norte do Equador lucra anual­mente algo em torno de uma dívida externa do Brasil em dinheiro livre de impostos. A arte de Satanás consiste em recair sobre os camponeses latino-americanos, regularmente, prisões extensas e fuzileiros navais americanos.

Nos últimos dois anos começou a nos Estados Unidos, a idéia de que a única coisa capaz de destruir o Cartel de Medellín e organizações criminais seme­lhantes seria um sistema legal de controle da droga. O fracasso da estratégia repressivista ou, mais ainda, sua colaboração na manutenção de uma situação que só produz benefícios para os grandes traficantes, sugeriu reflexões sobre as possibilidades de um controle do problema pela legalidade (ao invés do frustrado controle pela ilegalidade). Houve quem perguntasse por que armas de ser em c de maconha não. Prós (redução astronómica dos preços, falência dos" cartéis" , impostos para programas de reabilita­ção de viciados, qualidade da droga consumida) e contras (aumento astronómico do consumo, permanência um co­mércio marginal) são confrontados e sopesados, e pode-se afirmar ser esta uma questão ainda não suficientemente ama­durecida. Com todas as suas deficiências, as políticas repres­sivistas desfrutam de inquestionável preferência social, e a variável demoníaca contribui para ocultar o malogro de seu real desempenho.

Onde, coytudo, a demonização do problema das drogas aparece em sua plenitude é na criminalização do seu uso. Aqui podemos perceber correlações espantosamente ajustadas entre crenças da demonologia e preconceitos vigentes que funda­mentam a punição do usuário.

Em seu conhecido estudo, Kolakowski selecionava três idéias básicas da demonologia dos séculos XVI e XVII: 1. o pacto entre a bruxa e Diabo (o usuário da droga também renega este mundo em favor de outro); 2. os sabás infernais (a visão corrente de grupos orgíacos de viciados); 3. a relàção sexual

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demónios-amantes humanos, aquela freqüente mescla dos te­mas da sexualidade e da feitiçaria referida por Palou (o sexo como grande pano de fundo da droga; no Estado Novo, a lei de tóxicos a pena se ao uso se somasse o sexo).

Em razão da "corrupção humana após aqueda" , pode ocorrer a o demónio

de com a do possuído. Tal contato deixa um sinal, a marca demoníaca (punctum

diabolicum), caracterizado pela insensibilidade e por não per­mltlr a do sangue. Os tribunais nomeavam pessoas idóneas (nos processos de Chelmsford, 1582, tais jurados especiais foram mulheres, segundo Bossini) ou cirurgiões (preferidos na França, segundo Mandrou) para examinar todo o corpo do acusado e descobrir a marca. Em nossa lei, para o reconhecimento preliminar da droga, se não houver na Iocali-

uma' ,

, entretanto, intervém no "exame toxicológica", para verificar se, em razão da dependência, ou sob o efeito da droga, o usuário era "inteiramente incapaz de

o ilícito do fato ou de acordo com este entendimento" - hipótese em que estaria isento de pena, ainda que sujeito a tratamento médico (que pode chegar à internação hospitalar) até a "recuperação". Se a possessão, rectius, a imputabilidade não for completa, a pena pode ser reduzida de um terço a dois terços.

Drogas é o que não faltava aos feiticeiros. Os Pappenhei­mer, cujo martírio ensejou o belo livro de Kunze, teriam tomado mãos de criancinhas, colocadas num pote, levadas ao fogo e socadas até converterem-se num pó. A "ungüentos e pós" se refere Mandrou, e são de arrepiar as receitas dos "filtros do amor e do ódio" relatados por Palou. Nossa Laura de Mello e Souza menciona as ervas de que se valia Maria Barbosa para seus bruxedos. Os feiticeiros que combatiam os benandanti de Ginzburg valiam-se de "caules de sorgo".

Observe-se, por fim, que o processo relativo a um crime no qual o acusado e vítima são a mesma pessoa tem tudo para

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i

assumir h~ições ínquisitoriais. Historicamente, foi a supressão processual da vítima, pela altura do século XII, que promoveu o câmbio definitivo do sistema acusatório para o in-

que fama exatamente com as atividades do Ofício. Ao do processo, o usuário ser

vezes do que vezes de prova segura da posse da droga, às

razões de política criminal, ou a uma leve pena de detenção, é

suspensa - ao sabor de uma abjuração de levi. Não há qualquer motivo para que o tratamento legal do

usuário de droga ilícita seja diferente daquele deferido ao usuário de droga lícita. Vejamos o álcool: quem bebe num espaço privado não comete qualquer delito; se na rua,

ou ou a dos outros, está sujeito a

de prisão ou multa. (Assinale-se, parênteses necessários, que faz falta, e muito, uma incriminação autônoma para a embria-guez ao .)

Pessoas que realmente sejam viciadas em drogas - líci­tas ou ilícitas - precisam de ajuda, e sua família, seus ami­gos, sua comunidade, seus colegas, seus companheiros de trabalho, grupos especialmente capacitados de pessoas que vivenciaram o mesmo problema, e até médicos, devem-lhes essa ajuda. O Estado pode fomentar os caminhos dessa assis­tência, mediante programas que facilitem recursos para sua execução. O sistema penal é absolutamente incapaz de qual­quer intervenção positiva sobre o viciado.

A descriminalização do uso de drogas abre perspectivas para uma abordagem adulta do problema e renuncia a tomar a sentença criminal como exorcismo.

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TRÁFICO E ABUSO DE DROGAS

No Brasil, temos uma droga que é um problema sério. Centenas de milhares pessoas abusam tros no. Muitos ficam dependentes, isto é, têm que usar essa não conseguem parar sem alguma espécie de assistência -que a poucos é dada - e de vontade. O é que o abuso continuado da droga de que estamos faz um terrível mal à saúde. E tem mais: essa droga é comprovada­mente associável à maior causa de mortes nas grandes cidades (trânsito), bem como a espancamentos domésticos e rixas em bares e outros locais abertos ao público.

, como já a que, sem

com qualquer outra, constitui um problema de saúde pública no Brasil.

a trata o álcool? comprar em qualquer bar: o fabric,ante pagou um imposto, e o comerciante pagou outro. (Uma parcela desses impostos deveria servir para criar condições de atendimento social, psicológico ou médico para viciados.) Mas o comerciante não pode servir bebida alcoólica nem a menor de 18 anos ou a alguém mentalmente retardado, nem a adulto que já esteja embriagado; se o fizer, sujeita-se à pena de prisão de 2 meses a 1 ano 9Jl multa (art. 63 da Lei de Contravenções Penais).

E quem abusa do álcool? Se o fizer na sua casa, ou casa de um amigo, ninguém tem nada com' isso. Se se embriagar na rua, não importunando qualquer pessoa, também está tudo bem. Mas se, embriagando-se na rua, promover escândalo ou criar perigo para sua própria segurança ou a dos outros, está sujeito à pena de prisão de 15 dias a 3 meses ou multa (artigo 62 da Lei de Contravenções Penais).

O álcool é uma droga lícita, ou seja, permitida pela lei. Há outras. Temos o tabaco, que também comprovadamente é

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prejudicial à saúde. Nas drogarias existem muitas, e são muito freqüentes os casos de pessoas dependentes de medicamentos que começam a usar para tranqüilizar-se, combater a insônia ou a tensão.

bi­.A

pessoa sem as perturbações o viciado em álcool experimenta se parar sUbitamente de beber).

O tráfico e a fabricação de drogas ilícitas são punidos com reclusão de 3 a 15 anos e multa (artigo 12 da lei n? 6.368, de 12.out.76). A lei considera "tráfico" a cessão gratuita (uma

cede a outra certa . A mesma recai sobre ti ver a

coisas ou instrumentos destinados à fabricação ou produção de drogas ilícitas.

mero uso é também o é um e um atraso. A pessoa na posse de um cigarro de maconha está sujeita à pena de detenção de 6 meses a 2 anos e multa (artigo 16 da lei n? 6.368, de 12.out. 76). Este dispositivo dá lugar a muitos abusos por parte de policiais desonestos, que se empe­nham em revistar pessoas e automóveis - antes da Constitui­ção, também suas casas - para, descobrindo alguma droga, "negociar" o não encaminhamento do caso.

Não há qualquer motivo lógico para que o abuso de drogas ilícitas seja tratado diferentemente do abuso de drogas lícitas. Não deveria haver qualquer diferença entre a situação jurídica de quem usa álcool ou maconha: se não incomodasse ninguém pelo escândalo ou expondo a perigo a segurança alheia ou a própria, nenhuma infração penal. O que o legisla­dor na verdade revela com a diferença de tratamento é o preconceito que preside seu critério e o temor da desobediên­cia a este critério. Que pode ser incorreto.

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Pense-se no dia em que acabou a lei seca na América. Até sair o Diário Oficial, beber era crime. Suponhamos

que o D.O. de lá saísse às ll:OOh. O das 10:5911 foi ilegal, mas o das 11 :0111 já era lícito. Não parece de doido?

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JUDICI}iliIO

J DEMOCRATIZAÇÃO

Na elaboração da futura Constituição, o debate sobre o· tará em torno de dois

são discurso da independência em suas falas, mas cujas

!adas, indicara tivo, que é manter uma independência de fachada, sob discreto mas eficaz controle, e bem distante de tudo o que seja política e socialmente decisivo e substancial - exatamente como a ditadura militar procedeu. Pela esquerda do palco surgirão ardorosos partidários da democratização, desleixados da independência; por ironia dramatúrgica, esses personagens ou têm uma visão idealista do Poder Judiciário, ou circunscrevem o debate a um esquema tão redutoramente simplista que não conseguem dar-lhe qualquer importância. Para tentar evitar um texto constitucional do absurdo, é dever de todos colo­car-se com franqueza e claridade.

Todos desejamos um Poder Judiciário independente do Executivo, e essa independência só pode ser alcançada com verdadeira autonomia, dotação orçamentária mínima e outras medidas que concretamente suprimam as relações de subordi­nação administrativa e financeira que ainda hoje subsistem. A matriz histórica dessa situação, no Brasil, remonta ao caráter

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afluente que, no Império, o Judiciário mantinha com respeito ao Poder Moderador; no Ocidente, de modo geral, remonta às funções coadjuvantes que juristas, advogados e magistrados

direito romano em punho - junto ao na cri daquilo que Max \Veber chamou de

racional" , nova Constituição pode e deve que o

ciário não esteja submetido ao Executivo; que dele não de­penda para sobreviver e desenvolver-se como instituição pú-

, ou livremente planejar os rumos desse desenvolvi-mento sem ter de dirigir-se, pires na mão, à procura de placet e de verbas. A nação inteira só colhe benefícios dessa indepen­dência, pressuposto essencial do imprescindível espaço polí­tico no qual, com a imparcialidade possível, sejam serena­mente tratados os conflitos entre indivíduos ou grupos sociais,

a dos atos administrativos e a própria constitucionalidade das leis. Mesmo sem uma visão sacralizada da divisão de poderes, conhecendo portanto o processso histórico que a produziu e sua "impureza"

comum e paralelo de funções administrativas, gislativas e judiciárias pelos três poderes), não há quem logre fundamentadamente opor-se às admiráveis virtualidades polí­ticas de um Poder Judiciário independente.

A vox "política" é empregada, aqui, na acepção mais lisa, que lhe defere Bobbio, de "atividade que, de alguma maneira, tem como termo de referência o Estado". Na comu­nidade forense, a palavra "política" é vítima de certos preconceitos; muitos não a apreciam porque só a lêem na conotação partidária. De fato, a política partidária, tão impor­tante para o estado de direito democrático quanto a indepen­dência de seus poderes, é algo que deve guardar prudente distância do funcionamento dos tribunais (embora inexoravel­mente se apresente velada ou formalmente nos mecanismos de seleção de seus membros). Dispensado o debate sobre a suposta neutralidade da chamada ciência do direito, o Poder Judiciário, enquanto poder, é necessariamente político. Uma

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sentença _ lembrava recentemente Zaffaroni - é um ato político. Os tribunais desenvolvem políticas judiciár~as, na medida em que adotam povidências concretas a respelto dos serviços judiciários oferecidos à população. Há espécies de

inelutavelmente políticas, como a referente ao con-da ionalidade de uma lei, dotada, como

diz Bonavides, de "elevado teor de politicidade". Num Judi­ciário independente, a consideração política não ~u~u.mbirá aos preconceitos, em boa por e~l.sodl.OS de politicagem que a crónica dos forenses SOl ~eglstrar; contra tais episódios, igualmente, não melhor vacma que a

independência. . . Devemos, pois, 1 utar para que a futura Carta mclua diSpo-

sitivos como o artigo 271 do anteprojeto Afinos que, a art. 218, II, do anteprojeto OAB-RS, defere ao

elaborar e ao sua orçamentária, bem como movimentar os respectí~o~ recursos, que lhe seriam entregues mensalmente, ~os du~deC1m?s, p~l.o Executivo. Devemos também lutar pela mclusao de dIspOSIti­vos como os artigos 159 e 160 do anteprojeto Comparato, parcialmente correspondido pelos artigos. 2] 8, ~II e IV do anteprojeto OAB-RS e 273, II do ant~pro!et~ Ar;no.s: as no­meações e promoções dos juízes de pnmeIra mstancta deve~ ser realizadas pelo Presidente do Tribunal, a quem tocana também, com prévia aprovação do colegiado, propor ao L~­gislativo a criação e extinção de cargos, bem como os venCI-

mentos correspondentes. . ~. Fora de semelhantes parâmetros, falar em mdependencta

do Poder Judiciário é romantismo puro ou rematada hipocri­sia. Sem independência real, o cidadão que bate às portas do tribunal para defender-se do governo tem a mais desagradável das surpresas quando as portas lhe são abert~s .. , . _

A questão da independência do Poder JudlcIano tem mao

dupla. . .,' . Se inegavelmente todos desejamos um JudICiarIO mde-

pendente, ninguém está disposto a substituir a ditadura dos

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por uma ditadura de magistrados. Não cabe, nos limites deste escrito, bre a ascendência o

, ao Judiciário com dessa discussão é ial-

transcrevendo o art. 179 : "As decisões judi­

e e pre-va!C(,~lll outros autoridades" .

E , portanto, desvendar roteiros para que a única fonte constitucional do poder - a vontade popular - institua e controle o exercício desse Poder, o qual, como qualquer ou tro, só se Ie gitima a partir dela. N i n guém ousaria propor um

d que reza~se: "Todo v , salvo u tribu , que

eman:J do concurso público de e títulos e será exercido em nome dos dou trinadores e dos precedentes". Tão absurdo art , habita secretamente o

, que muito de mas nem um pouco de povo; e menos ainda de imaginar que o povo seja o dono do poder.

Tudo estaria resolvido, teoricamente, pela adoção de para os cargos da magistratura. Ocorre que tal sis­

tema, à parte certos inconvenientes que muitos lhe assinalam não pode r~alisticamente ser adotado entre nós sem grav~ comprometimento da operatividade -já crítica - do Judiciá­rio. O recrutamento de magistrados postula um processo sele­tivo não apenas altamente moralizado - como, sem dúvida eleições limpas configuram - mas também comprometid~ com a :er~ficação de níveis aceitáveis de formação técni­co-profIsSIOnal (e, aí, eleições, mesmo limpas, falham completamente). A divisão do trabalho lavrou fundo também e~ terras j~rídicas, alagadas neste século pelas torrentes legis­lat~vas advmdas da progressiva intervenção estatal; o jurista é hOJe cada vez menos o bacharel da tradição - um especial ista em vagas generalidades ._- e gradualmente mais e mais um

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da técnica jurídica. de

no . e

utópico abrir mão do concurso

camente e --- mesmo num em que ainda privilégio - democrático, funciona insuperavelmente para o viés administrativo (cingido ao preenchimento de cargo público). O viés político fica sem retorno: fundamentar a investidura e o exercício de poder no concurso público é um

mento-.- o cionai de todo sistema de em áreas de conexão do Judici1irio com o Executivo e o Legis-lativo, na medida em que, nesses outros poderes, a realização periódica de eleições afiança o controle da vontade popular. Por esse ângulo, e desde que constitucionalmente assumidas providências para garantir a real independência do Judiciário, essas áreas de conexão - como, por exemplo, na indicação de magistrados para tribunais superiores - em nada lhe afetam a autonomia, mas certamente lhe revigoram a legitimidade. Pensemos em algumas das medidas que podem contribuir para

o dito balanceamento.

Em primeiro lugar, a incorporação da garantia de vita.li­ciedade aos juízes concursados (após dois anos pelo antepr~Je­tos Arinos - art. 268, § I? - e após três anos pelo anteprojeto Comparato _ art. 156, § I?) deveria merecer a aprovação da Assembléia Legislatíva, nos Estados, e da Câmara dos Deputa­dos, quanto aos juízes federais de primeira instância. Isso pressupõe, é claro, a edição de regras claras acerca dos press

u-

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postos sob os quais a confirmação do juiz concursado poderia ser recusada.

Em lugar, nos casos em que a nomeação deriva de indicação do Presidente da República (no consti-tucional, eleito povo), a pelo

ser maÍs do que o "notável saber jurídico" ou a ' ilibada", deve o Senado efetivamente investigar o espírito público e a sensibili-

do indicado, recusando a que lhe inconveniente.

Na composição do Tribunal Constitucional - omitido pelo anteprojeto Arinos, e previsto nos artigos 163 e seguintes do anteprojeto Comparato - recomendam-se medidas espe­ciais. A esse tribunal se reservam as decisões em que mais se

a ascendência esse um decreto do

dente da República ou uma lei do Congresso Nacional, afir­mando-lhes a inconstitucionalidade. Para o Tribunal Constitu-

tão no de Portugal e Espanha, recomenda-se a indicação paritária de seus integrantes (se forem 12, quatro pelo Judiciário, quatro pelo Legislativo e quatro pelo Executivo), bem como a investi­dura temporária (o anteprojeto Comparato fixa o mandato em nove anos, proibida a recondução).

O chamado' 'quinto constitucional" , ou seja, o preenchi­mento de um quinto das vagas dgs tribunais por advogados e membros do Ministério Público, pode desempenhar, aprimora­do, relevantes funções no sistema de balanceamento cujos módulos estamos tentando inventariar. Como os tribunais su­periores controlam processualmente, pelo julgamento de re­cursos, as decisões dos juízes de primeiro grau, exercendo ainda funções de administração e disciplina, a nomeação de magistrados pelo quinto - através de mecanismo que conte com a colaboração do Executivo e do Legislativo - tempera a predominância do concurso público. Não deveria, contudo, o Governador do Estádo - eleito pelo povo - estar adstrito a

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uma lista elaborada pelo Tribunal; por outro lado, seria conve­niente fosse o indicado aprovado pela Assembléia Legislativa _ eleita pelo povo. A de tríplice pe~a cor.P?ra-

à qual pertençam os candidatos - ao sabor de dISpOSItlVOS do Comparato e do -, ou a

participação das .. ,. com uma lista ~ . () que o tribunal reduzma a tnphce -- como ~~eve o art. 2,67, § ~. do anteprojeto Afinos em nada auxilm quanto as reaIS finalidades do procedimento da . Q~anto s dade desfrutem, aqui, o Executivo e o LegIslativo, tanto melhor

para a saúde democrática da indicação. . _ A •

Cabe pensar igualmente numa ampha~ao da competen~la do tribunal do júri, no qual a judicatura é dlretamente exercida pelo povo. Sem dúvida, essa ampliação deve ponderar sobre

as do do-se a hipótese nas ele se . . e camente conveniente. Atualmente restnto aos crimes dolo~os contra a vida, e assim mantido no anteprojeto OAB-RS (artIgo

. . 24) t SU'i no ante-2~, InCISO , enlo < .'

projeto Arinos, para alcançar também o~ cr;n:es d~ l~pren~a (art. 52). Os crimes cometidos por funclOnar:os pubhcos sao um bom exemplo do horizonte para onde amphar-lh~ a compe­Cncia. O modo de recrutamento dos jurados devena mere?er e:pecial atenção, para que o tribunal do júri tenha efetlva

representatividade social. . _ Talvez seja cabível ainda pensar-se em elelçoes e n:an-

dato para um nível de órgão juridisci?nal.q~e deve ser CrIado abaixo da atuaI primeira instância. Seja o ]Ulzado ~e pequenas causas, seja nossa grande "instituição desperdlça~a", .n~s palavras de Miranda Rosa - o juiz de paz -. ' seja o JU~z municipal, seja alguma espécie de órgão colegIado de matiz

Comunitário é fundamental lançar uma ponte por sobre o , . ' da

fosso que separa a sociedade civil do maIS baIXO patamar

estrutura judiciária no Brasil. , A democratização do Poder Judiciário não resulta~a a~e-

nas da adoção de medidas que o religuem à fonte constltuclO-

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naI de todo

ta e de que pequenos conflitos devem tratados por

remonta a Aristóteks. Em seu tratado as oito classes de tribunais que lhe

pareciam necessárias, escrevia: "Além destes tribunais, há juízes para os pequenos assuntos, como seja desde o valor de uma dracma até cinco ou um pouco mais, porque se há que

a que

que a avassaladora dos " assuntos" os convertesse, pelo salto qualitativo, em

da , e que a pena de levá-los perante os grandes tribunais não valeria

principalmente para o cidadão. Falhará qualquer reforma do Poder Judiciário - quem se

esqueceu da última? - que não se exerça pela sua base, procurando expandi-lo na direção das maiorias que a ele obje­tivamente não têm qualquer acesso. A participação da socie­dade civil poderá ter aqui singular relevância. Essa participa­ção que, no campo penal, nasce historicamente sob o signo iluminista da reação ao modelo inquisitório e à justiça de gabinete, pode adquirir novas funções na confluência estado­sociedade civil. Por exemplo, o art. 275 do anteprojeto Arinos prevê oportunamente a criação de tribunais administrativos para questões fiscais, previdenciárias e relativas a regime jurídico de funcionários, porém não estipula a participação popular. O que perde e o que ganha um tribunal administrativo que. irá pronunciar-se sobre o cabimento de uma aposenta­dona, se for também integrado por representantes da socie­dade civil?

78

Antes mesmo de uma avaliação da experiência do juízado ser favorável -,

da

ver-se põe de extraordinário poder de sobre o sentimento_ cidadania e de confiança na ordem jurídica em transformaçao, encontraria no juiz de paz um acessível elemento de mediação e conciliação. Ao litigante irresignado poder-se-ia oferecer

. dessa

No ' a esse tuado abaixo da atual primeira instância o tratamento de certas

leves: e aI outras maus-tratos, rixa simples, dano simples, etc. O . . tal atuação, contudo, estaria na recepção pelo direito .brasl.1el-ro de dois institutos: a diversion e a mediação. Pela dlversl~~, o juiz ou tribunal encerrá o processo sem julgamento de me~l-to submetendo-se o acusado a participar de um programa nao pe'nal. A diversion supõe, é claro, a adoção do princ~pio da oportunidade da ação penal para a~ infraçõ~s leves. J a a ~e­diação, de cariz arbitral, envolve a mtervençao de um terceIr?,./ com mútuo consenso das partes (neste contexto, a expressao parte abrange não só o acusado e o acusador c~m~ também a vítima, na hipótese de acusação pública): sendo m~lcada es~e­cialmente para casos em que os envolvIdos mantem reJaçoes permanentes (familiares, vizinhos, colegas de trabal~o, c_on­sócios, etc). Ao Ministério Público, em ambas as sltuaçoes, corresponderia importantíssimo papel, inclu~ive no rec:.u:~­mento e supervisão de mediadores, entre aSSistentes souals, psicólogos, advogados, ministros religiosos, sempre volun-

tários e não remunerados.

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o constituinte de 1987 tem a obrigação de não se confor­mar com o que encontrou, também no que concerne ao Poder Judiciário. que desejamos poderá ter furma .Na

e habitantes do local. Não dispõem poder para

aplicar sanções, esforçando-se no sentido da conciliação das partes. Na Índia temos as Nyaya Panchayats, comissões judi­ciais comunitárias que objetivam garantir o acesso àjustiça no interior. Estabelecem-se por grupo de sete a 10 cidades, co-brindo uma de 15.000 . Seus mem-

e escrever, são por e cooptação. As Nyaya Panchayats têm sua

alçada cível limitada a pequeno valor, porém o consenso das a No, possuem

extensa jurisdição (crimes culposos, economia popular, furto e apropriações indébitas de pequeno valor, ameaça,etc), res­tringida à aplicação de penas pecuniárias; a pena de prisão não pode ser por elas aplicada. Suas decisões, sempre precedidas de esforço conciliatório, são controladas por recursos volun­tários a juízos ordinários. Na Polónia encontramos, sob o título de Comissões de Conciliação Social, órgãos comuni­tários aos quais facultativamente podem recorrer cidadãos para a composição de conflitos, criados por lei de 1965 (ao lado dos chamados tribunais de trabalhadores, que se ocupam de disputas e infrações acontecidas no ambiente de trabalho). A escolha dos membros é feita por indicação, admitido o recall; não percebem qualquer remuneração. Procura-se garantir para as Comissões de Conciliação Social a maior independência e autonomia possíveis, inclusive tornando defi­nitivos (no sentido da desvinculação recursal) os acordos e providências por elas adotadas; não obstante, os tribunais au-

80

xiliam as Comissões na interpretação de leis a serem por elas aplicadas. Na América, o dos centros de comunitária (Neighborhood Center Program) merece

atenta leitura; ai de a " discussão tem o importante merecem meticulosa

A Assembléia tem o dever de sentar à nação uma de Judidádo e democratizado - e ocorre mencionar os níveis internos de democratização, dos quais aqui não se falou. Ning.uém_ q~~r esperar outra Constituinte; que esta nos dê democratIzaçao Ja.

QUEivl

Os meios jurídicos brasileiros assistiram, perplexo.s, à

assinatura pelo de que. tera o Código Penal e o Código de Processo Penal, concebida, segundo consta, pelo Consultor Geral da República, a pretex:o de aprimorar o controle penal da violência ~ural e urban~. Nao cabe, por certo, nos limites e fins deste artigo, pontuahzar os equívocos do projeto, o descon?~cimento. que . :l~ revela acerca da realidade policial, judICial e pemtenc18na, e do sistema normativo que candidamente, se aprovado, fará ex­plodir. Renuncia-se, igualmente, à forte tentação de glosar ~s deslizes técnicos, que no projeto abundam, como por exe.mpw a proposta de que o valor da fiança seja fix~do pela .autond~de (policial ou judiciária) em "dias-multas'. '. co~ lm~osslvel antecipação de complexo momento de indlvlduah~açao penal que integra a sentença. Nosso obje~ivo, bem maI~ modesto, circunscreve-se a descrever o que fOI a chamada LeI Fleury -espécie de bête noire do fascismo penal brasi.leiro -, e o qu.e significaria retroceder ao regime legal antenor ~ ela .. A O~l­nião pública costuma relacionar a Lei Fleury à raIZ do msatls-

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fatórÍo da justiça penal entre nós. Nada SO, como veremos.

Nosso de

, outras além que o cou-tra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social". O Ministro Francisco Campos citava nomi­nal e adequadamente o Ministro Rocco, de Mussolini: "Já se

de

antidemocrática c a única fonte

quer ato legiferante, que é a vontade popular,

J tiranos, presidiu à elaboração de nosso Código de Processo

no Estado Novo. No ofício de desclassificar, pela pri­são, pelo processo e pela sentença, o cidadão que "vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico-social" , em bases teóri­cas semelhantes às que conduziam os dissidentes políticos às barras do famigerado Tribúnal de Segurança Nacional, o acu­sado foi concebido como alg:uém que decaiu de alguns direi­tos, como inerme objeto da reparadora intervenção judiciária. De tal concepção provinham algumas regras verdadeiramente

e selecionarei três delas para exame. Primeira: todo réu pronunciado por crime inafiançável

deve aguardar preso o julgamento pelo júri (art. 408, § l:J cpp 1942). A sentença de pronúncia é o momento processual, no procedimento do júri, em que o Juiz declara que houve um (ou mais) crime(s), e que há suficientes indícios de que o acusado tenha sido o responsável ou um dos responsáveis, e deve,por isso ser submetido a julgamento pelo tribunal popular. Essa declaração tem um valor provisório, porquanto pode o júri,

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Cla

muitos meses c comumente f.:gra dc

costumam demorar no claro que

preso é que há réus que devem mesmo presos o julgamento pelo , porque assim o reclamam os interesses da segurança pública: réus reincidentes, réus primários de maus antecedentes, réus qua­drilheiros, réus que, não radicados no distrito da culpa, evi-

LEI FLEURY? de

prisão". É evidente que, apresentando-se as hipóteses acima aventadas, como exemplo, e que configuram casos típicos de prisão preventiva, o juiz tem o dever de prender o réu pronun­ciado, e a lei Fleury não ó impede.

Segunda: em crimes de certa gravidade (pena cominada igualou superior a 8 anos), o réu absolvido em primeiro grau de jurisdição deve permanecer preso até o julgamento da apelação pelo tribunal superior (art. 596 CPP 1942). Aquele réu que, pronunciado, aguardou preso, às vezes 2 ou 3 anos, o julgamento pelo júri, e foi absolvido pelo tribunal popular, deve continuar preso até o julgamento da apelação do Minis­tério Público! Essa regra era tão absurda, que já em 1948 uma tímida reação foi esboçada: ela não prevaleceria diante de decisões unânimes (7xO) do júri (lei 11:' 263 de 23.fev.48, art. 9:'). Mas se a decisão do júri fosse majoritária (por exemplo, 6xl), bastava que o Promotor de Justiça apelasse para que o réu absolvido permanecesse no cárcere, aguardando já agora os longos meses do procedimento recursal. O QUE FEZ A LEI

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'I , t "

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FLEURY? Estabeleceu que "a apelação de sentença absolu­tória não impedirá que o réu seja posto imediatamente em liberdade" . Só consegue ser contra tal solução quem não nutra

pelas o Ministério

, está correto; que possa vida na prisão é kafkiano.

Terceira: todo réu condenado em primeiro grau por cri­me inafiançável só pode apelar se se recolher preso (art. CPP 1942). O princípio do duplo grau de jurisdição, que assegura ao cidadão o direito de que um outro órgão reexamine seu caso, funda-se na possibilidade, sempre presente à empre­sa humana, de erros na avaliação dos fatos ou na apreciação jurídica do processo. Os tribunais superiores, constituídos por

com manter a decisão de primeiro grau, ou reformá-Ia: só aí (excetuando-se formas recursais extraordinárias) o processo realmente se en­cerra, e surge uma decisão final. Também aqui, seria mister

caso a caso quem pode ar em liberdade e quem não pode. Seria tão irracional pretender que todos os réus condenados apelassem em liberdade, quanto era a regra de que todos eles deveriam apelar presos. O QUE FEZ A LEI FLEUR Y? Estabeleceu que "o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se for primário e de bons anteceden­tes, assim reconhecido na sentença condenatória". Confe­riu-se ao juiz a oportunidade, na sentença - quando terdos os elementos de prova são sopesados e analisados -, de verificar se o réu condenado possui ou não condições de aguardar solto o julgamento final de seu processo. Se se trata de um réu quadri­lheiro, reincidente, ou, mesmo primário, sem bons anteceden­tes, o juiz simplesmente expede o mandado de prisão.

Isso foi a chamada Lei Fleury (lei n~ 5.94 I, de 22.nov.73). Essa lei representou, simplesmente, a recepção, no direito processual penal brasileiro, do princípio da presun­ção de inocência do acusado - proclamado no art. XI da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no art. 26 da

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Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. A Lei Fleury tem, por certo, um grave defeito, e este defeito está no seu nome. Este defeito está na vergonha de ter sido neces-

um torturador, de inocente até

final, para que todos idêntico tratamento.

pudessem desfrutar de

A questão da -- rural ou urbana - pede mente respostas prontas e , mas o projeto da Consul-toria Geral da República passa ao largo delas. Não é retroce­dendo ao Estado Novo e expurgando o princípio da presunção de inocência de nosso sistema legal que avançaremos contra a violência. A instituição policial carece de imediata reformula-

e . É dos a

política policial da ditadura nos legou, alguma coisa compe­tente, operativa, reconhecida e legitimada comunitariamente: um serviço policial com acesso a técnicas de investigação

, com um de, co-nectado às instâncias que planejam e promovem o desenvolvi­mento urbano, inserindo permanente e antecipadamente -não eventual e curativamente - a questão da segurança pú­blica.

Porém, sobretudo, precisamos outorgar ao Ministério Público e à Justiça penal os recursos materiais e humanos para que eles possam cumprir suas funções. Não conheço um só

"juiz que se negasse a decretar a prisão preventiva de um indiciado cuja liberdade pudesse comprometer a apuração do crime ou a incolumidade pública. Bastaria pudéssemos ter o Juiz criminal disponível 24 horas por dia: um plantão, fora do horário de expediente, dividido em turnos, que, nos grandes centros urbanos, permitisse à autoridade policial obter presta­mente a custódia legal de indiciados. Algo semelhante, em­bora circunscrito ao horário do expediente, já existe, para fins-de-semana e feriados forenses, nas organizações judiciá­rias locais. Entretanto, se a violência urbana operafull-time, o

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Ministério Público e a Justiça penal não podem bater o ponto às 17:00h.

A vida, a liberdade e a

violenta é uma das mani que esses direitos; nem a mais difícil de ser isolada e controlada. chamaram a para a

e objetivos políticos de" de lei e ordem". Pode ser oportuno para alguém que, no Brasil, se procure levar a opi­nião pública a acreditar que a violência, rural e urbana, será dominada expurgando-se o princípio da presunção de inocên­cia - recebido em nosso sistema legal pela chamada Lei

. Isso as da ou menos como o médico que,

altíssima, internasse o paciente num frigorífico: a temperatura baixará, mas a infecção que produziu a febre em nada será ati autores revogar a terão consciência de que retroceder a 1942, se pode gerar alguns dividendos junto a uma parcela da opinião pública, nada re­solve substancialmente? Fiquemos numa ironicamente real advertência lógica: todos são presumidos culpados, até que suas inocências sejam provadas.

VOLTANDO AOS BONS TEMPOS

A imprensa noticiou, com o correspondente alarde, uma condenação pelo crime de adultério, ocorrida no Rio de Janei­ro. A história era simples: a esposa de um destacado profissio­nal liberal de classe média alta se apaixonara pelo motorista, com quem foi - como diria Machado, se vivesse nesses tempos de Fórmula Um - estudar a tangência das curvas na Baixada Fluminense. A sentença condenatória, ao que parece, optou pela multa substitutiva (art. 60, § 2~ CP). Ainda bem.

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Poderia ter aplicado prestação de serviços à comunidade (arts. 43, inc. I, e 46 CP), e a Vara de estaria na contin-

de impor aos dois condenados a por exemplo, de de um

Já tão com a

, e pensar na ser um

vez aos bons penas? Pode

como o dispositivo da sentença, se aplicasse as penas que historica-mente foram cominadas ao adultério.

Secrundo as mais velhas leis que se conhecem, que re-D .

geram no reino de Eshunna, no século XIX a.c., a mulher sena desde que provados os requisitos do casame~:o: "um

um de as sogros . O Bilalama era muito nisso: sem contrato e banquete, não se tinha propriamente uma esposa, e portanto não era juridicamente pensável o adultério (§§ 27 e 28 das Leis de

Ainda na Babilónia, temos, por volta de 1700 a.C., o Código de Hammurabi. Se nossa sentença quisesse aplicar a pena prevista em seu § 129, a esposa e o motorista teriam de ser conduzidos, bem algemados, até o vão central da ponte Rio-Niterói. Hammurabi era implacável: "se a esposa de um awilum foi surpreendida dormindo com um outro homem: eles os amarrarão e os jogarão n'água".

Leis assírias que datam do final do século XII a. C., pro­curando ser justas, prescreviam (tábua A, § 14) que "se um homem dormir com uma mulher casada, seja numa hospe­daria, seja na rua, sabendo que é casada, será tratado. da mesma forma que o marido tratar a mulher". Recorrer hOJe a essa regra implicaria a criação do cargo de debatedor público, um funcionário que, na Vara de Execuções Penais, se encarre­gasse de infindáveis e tensas discussões com o cúmplice da adúltera, para que ele padecesse, na mesma e cronometrada proporção, o suplício dos debates conjugais. ~ormalmente, os assírios não conversavam: matavam os dOIS. Mas o § 15

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revelava uma estranha percepção de analogia anatômica entre eles, porquanto "se o marido cortar o nariz de sua mulher ele (o juiz) tornará o homem eunuco e mutilará o seu rosto,".

~,o,.'~J"H'" ao chamado bramâ-por de uma

. .tão , e por temIa, os nscos do adultério: "porque é do adultério que nasce no mundo a mistura das castas". Das penas comina-

. ao delito (entre as a morte por de ervas cam~o), cremos que nos socorreríamos, hoje, apenas daquela conSIstente em raspar a's cabeças dos réus e regá-las com urina de burro. Ou se criava a carreira de barbeiro juramentado ou se credenciavam alguns salões particulares - como os ~ar­tórios priva~os. De resto, quem conheça profundamente nosso

e não lenha no de que a - de burro - é ali

abundante, e por sua falta jamais se paralisariam os serviços. Sob o direito romano, a sorte de nossa dupla de condena­

dos muito a Julia de adul­terii~ coe~cendis, promulgada por Augusto, além de uma pena patnmomal, teríamos que infligir a relegação a ambos "dummodo in di.versas insulas relegentur" (Paul., SenL, 2, 26, § 14). Ou seja: o motorista para a Ilha Grande, a mulher para as. Cagarras .. A consideração da classe social poderia alterar ISSO: motorIsta dono de carro sofre a pena patrimonial (perde metade do carro), porém motorista póbre, sem carro para dividir, sofre uma pena corporal - "si humiles cor­poriscoerciti?nem".-(Inst., IV, 18, §4). Mais tarde, ;pena de mort~ sefl~ commada; Constantino fê-la executar larga­mente, sltuaçao que perdurou até o ocaso do direito romano Justiniano recomendava a internação da adúltera num con~ vento, idéia que, modernizada, poderia levar à criação do convento-albergue.

Já no direito germânico, o destino dos dois condenados dependeria não apenas do período, mas também da variável geográfica de seu crime. Se o cometessem, por exemplo, em

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Zwickau, em meados do século XIV, poderiam ser amarrados juntos e empalados simultaneamente. A melhor alternativa era a morte pela espada. Se o marido os surpreendesse em fla­grante delito, poderia matá-los. No direito sueco medieval

, para essa , o instituto contra o morto" toten Mannr A disposições das Vastgotalaghen, nossa história assim: o motorista seria morto e o marido, tomando as almofa­das e os lençóis com sangue, levaria tudo ao , com nada menos que duas de testemunhas (substituíveis pelo depoimento do prefeito Saturnino Braga e do administra­dor regional), e ali acusaria o morto pelo adultério. A sentença teria, neste caso, o efeito de impedir qualquer indenização ou vingança por parte da família do motorista.

, por fim, as das Ordenações Fi que datam do início do século XVI! e normas cri contidas no famoso V, regeram no Brasil até 1830. O marido poderia ele mesmo ter morto mulher e motorista, se os

o homem casado sua mulher cm adultério, licitamente poderá matar assim a el~ como ao adúl­tero, salvo se o marido for peão e o adúltero Fidalgo ou nosso Desembargador ou pessoa de maior qualidade" - o que não seria o caso (tít. XXXVIII). Havendo processo e julgamento, a pena seria igualmente a morte natural para ambos: "e se ela para fazer adultério por sua vontade se for com alguém de casa de seu marido ( ... ) se o marido dela querelar, ou a acusar, morra morte natural. E aqu~Je.coíÚ quem ela se for morra por isso" (tít. XXV, 1). D. Felipe II sabia que às vezes, "em favor do Matrimônio", pode o marido perdoar à adúltera, porém não ao comborço. Nesse caso, porque "pareceria escândalo ao povo, sendo a adúltera reconciliada com seu marido, ser o adúltero justiçado", o monarca determinava que ele "não morra morte natural, mas seja degredado para sempre para o Brasil" (tít. XXV, 4). Como pareceria revanchismo histórico deportar o motorista para Portugal, a solução seria criar uma cidade penal na Amazônia - não existem umas idéias nesse

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-, que poderia Negro", "CaÍ-da-cerca no

"Valeu-a-pena do , ou quejando. E

. Por certo haveria em concentrar a coletiva dessa pena em períodos determinados; nasceria a "cidade-presépio"?

Entre as tantas. disposições legais que envergonham a cultura jurídica brasileira está a incriminação doadultério. É

cam. 5.0 por aí um deputado que apresente o seguinte projeto de lei: "Art. I? Revoga-se o artigo 240 do Código Penal. Art. 2? Esta lei entra em vigor na data de sua publicação"? Não é simples?

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DUAS PERDAS PARA OS HU1vlANOS

DE HÉLIO PELLEGRINO

Existe algo de sonho e de luta nos direitos humanos. Talvez por sua origem revolucionária: foi das entranhas de

dadcs inéditas (" que existem atributos jurídicos dos quais nenhum homern ser privado. Talvez por sua geometria igualitária, entranhada-

moral: ii. de ju tos do direito natural, um úxo para regular a igualdade, e esse eixo se concentrava, no processo histórico da ascensão da burguesia, na própria pessoa humana. Tudo tão óbvio e singelo: o eixo da igualdade não nos méritos, nos desejos ou nas necessidades do homem, e sim no próprio homem pelo fato de ser pessoa. Existe, por essas ou outras razões, conhecidas ou não pela razão, algo de sonho e de luta nos direitos huma­nos, que atrai e encanta grandes sonhadores, grandes luta­dores.

Penso em Hélio Pellegrino, este imenso sonhador e lutador que conheci em plena luta e arrebatado sonho. Em outubro de 1985, na Faculdade Cândido Mendes, realizava-se o I SemÍ1~ário do Grupo Tortura Nunca Mais. Hélio advertia: "a tortura política no Brasil não foi um fato aleatório, não representou'um excesso ou uma exceção episódicos. A tortura política é um sintoma terrível e eloqüente de- crueldade da luta de classes em nosso país. Somos um país rachado ao meio" .

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Para ele, a organização social "brasileira implica a tortura como um dado estrutural", e as práticas da ditadura militar eram como uma continuidade das práticas da escravidão. Nos-sas f em ace tualidades geográfico-climáticas (" temos uma terra

ser o "), tortura estrutural: " é tortura

tortura, ignorância é tortura, relento é tortura, crian~a nada é tortura" .. Pobre país, cindido ao . definitivamente é a .

O c.icl~ ~a tOl~tura política aprisionava e reproduzia, em mo~el0 mdlvlduahzado, a esquizofrenia nacional. Porque _ e?s:nava H.élio - "a tortura racha o ser humano ao meio. Ela dIvIde a umdade indissolúvel de corpo e mente, e joga o corpo do torturado contra sua mente. A tortura consegue essa coisa monstruosa que é ,,1 total

desgraça torturador (aquele' . sua própria força e potência precisa esmagar o seu próximo") era assmalada por Hélio: "dentro da dialética hegeliana do

e do escravo, o , no está nas mãos torturado". Pode o torturado não falar. Pode o torturado mor­rer, e aquele silêncio ou essa morte são "também a morte do tortur.ador, Fo~que ele não tem luz própria, o torturador não tem eIXO propno: ele é uma sombra do torturado" Na I t ,. '1 b . . . p a ela, mI. raslleu:os mudos se emocionavam com sua própria his­tóna.

/' Reencontrei-me com Hélio PeUegrino em 1987, no movi-m~nto ,que, ~ob a designação de Assembléia em Defesa da V~da, msurgIa-se contra a truculência e o extermínio como ~etodos expressa ou tacitamente admitidos no controle (l)legal da violência urbana criminalizada. Todos os partici­pantes da Assemb~éia puderam desfrutar, em nossos encontros e ~ebates, da lUCIdez e do entusiasmo com os quais Hélio artlculav,a? sonho à luta. Vitorioso o movimento, as vicissitu­des, da atlvldade profissional nos afastaram. Vez por outra nos falavamos, como na ocasião em que o s.obrinho de um funcio-

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nário de sua cl.ínica morreu em circunstâncias suspeitas numa delegacia policial, atirando-se de um segundo andar. Comuni-

o fato à Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, telefonei para o Promotor de Justiça da comarca, no intuito de tentar a Tudo se deteve diante do qual a mãe do morto da outro filho" . Hélio ajudou-me a compreender intranspo-nível era a materna, e lamentamos o medo que é

ter das i públicas. Na de uma viagem que duraria 1 O um

telefonema de Hélio Pellegrino. Estqva interessado no caso Riocentro, cujo julgamento fora interrompido, e nas condi­ções legais em que pode um inquérito policial militar ser desarquivado. Conversamos também sobre um projeto, que vem a campanha da em De-

da Vida, para a cri ,no Rio de de uma Comissão aos moldes da Comissão Teotónio de São Paulo, que reunisse, em perspectiva suprapartidária, não-go­vernamental e interdisciplinar, pessoas interessadas em direitos humanos. Combinamos conversar quando de volta.

Ao regressar, deparo-me com essa limitação terrível. Agora só podemos conversar com Hélio por escrito. Pobre país, agora muito mais pobre; todos nós, muito mais pobres.

Hélio PeUegrino viveu, intensa e exemplarmente, o so­nho e a luta dos direitos humanos. Se de fato vier a consti­tuir-se, no Rio de Janeiro, uma Comissão que deles se ocupe com retidão, coragem e independência, deverá chamar-se Co­missão Hélio Pellegrino. Quando uma sociedade radicalmente transformada, fraternal e igualitária houver erradicado a tor­tura entre nós, as professoras primárias hão de falar para as crianças de um profeta dos direitos humanos, metade médico, metade poeta, metade jornalista, um inacreditável ho­mem-e-meio que sonhou, que lutou, e que nunca morreu,

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MEMÓRIA DE HELENO

estreita, não recorda o

alta e sentada

, secos, que da defesa iluminava, como um relâmpago, a causa e o tribunal nem o notável professor cuja integridade , nas de e nos permanentemente os mas. Absurda presença, Heleno, e a oportunidade maravi-lhosa de conversar com ele.

NB - Urna de suas colocações mais repetidas é aquela sobre o direito penal e os pobres. Como é mesmo?

HF - O direito penal realmente, direito dos pobres,

e seu rigor. A ência demonstra que as sociais mais favorecidas são praticamente imunes à repressão penal, livrando-se com

, enl os ,

hab.it~nt~s ~o~, b.airros po~res é que estão na mira do ap~rato polICIal-JudlCIarIO repreSSIVO e que, quando colhidos, são vir­tualmente massacrados pelo sistema.

NB - Faz-se circular, hoje, a idéia de que a vida nas favelas gravita em torno das quadrilhas de traficantes.

HF - Estudos realizados no Brasil e em outros países da América Latina vieram mostrar que os habitantes das favelas apres~ntam a ~esma estrutura dos demais grupos de pobres que Vivem nas cIdades, e q1.!e não tem justificação 'científica ou prática o tratamento de tais populações como classe distinta e separada. A maioria dos habitantes das favelas, onde vivem de 18 a 25% dos residentes no Rio de Janeiro, é composta de pessoas honestas e humildes, que vivem de seu trabalho.

NB - Quer dizer que essa opção preferencial pelos po­bres da polícia ...

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HF A repressão policial sem freios jurídicos tende a transformar-se num poder autônomo e incontrastável, como demonstra a experiência histórica, sendo inevitáveis os abu­sos. Os são comumente de

nesses vezes não trazerem consigo documento de trabalho. Somente os pobres são presos por e são eles o 3.1vo da pol. Os que cometem

delituosas no mundo dos negócios (White coilar) sequer são considerados criminosos.

NB - O que pensa Você da solução penal para a vadia­gem e a 'mendicância?

HF - O problema social que constituem os vagabundos e os não se com cons-tituem um débito sociaL,.

NB - Li isso recentemente! HF - '" são a quem a deve

coisa, que não pode ser o internamento punitivo, mesmo que tenha o nome de medida de reeducação ou ressocialização. Em relação a essas pessoas, mais do que ii quaisquer outras, surge aquele direito à socialização de que fala FiJippo Gramatica, fenômeno semelhante ao direito a ser educado, instruído, curado e preparado para o trabalho.

/" NB - E a justiça, como respo~de a tudo isso? HF - A administração da justiça criminal constitui o

mais dramático aspecto da desigualdade da justiça, sendo nela puramente formal e inteiramente ilusório o princípio da igual­dade de todos perante a lei, dogma dos regimes democráticos, Demasiadamente lenta, abstrata e insensível aos problemas humanos e sociais que surgem no processo penal, é exercida, na maioria dos casos, através de um corpo judiciário conserva­dor e tradicional, aferrado à dogmática jurídica e alheio às realidades sociais que condicionam a criminalidade.

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NB - Como melhorar isso? HF - É indispensável que os juízes sejam pessoal e

materialmente independentes, ou seja, que estejam em condi­de proferir suas decisões com liberdade, sem temor de

sofrer conseqüências pessoais em razão de sua atividade judi-

NB - A independência suficiente, sem a democra-tização do Judiciário?

HF-OPoderJudiciário edeveser .l~que estamos mal habituados a uma autêntica sacralização da jus­tiça, pela qual os advogados são, talvez, os maiores responsá­veis. Dos tribunais se costuma dizer sempre que são "egrégios", "colendos", "altos sodaIícios". Dos juízes se diz sempre que são "eminentes", "ínclitos", " ", "doutos", "j . As são sempre" e távcis", mars Injustas e iníquas que possam ser. Nada disso tem sentido num regime democrático e republicano, no qual ajustiça se faz em nome do povo, fonte de todo

NB - Inclusive o Supremo? HF - O Supremo Tribunal Federal - do qual comu­

mente se diz que é "Pretória Excelso" - não está imune às críticas. Como dizia Nélson Hungria, tem ele apenas o privilé­gio de errar por último.

NB - Como Você está vendo a questão dos direitos humanos no atual processo político?

HF - Não pode haver efetiva proteção e tutela dos direi­tos humanos senão no estado de direito, onde o primado da lei ponha as liberdades fundamentais a salvo do arbítrio e da prepotência dos governantes, através de um sistema de se­

gurançajurídica. Tal sistema não depende apenas de garantias contra o abuso de poder pelo Executivo, mas também da existência de um governo capaz de manter a lei e a ordem com

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energia e integridade e de assegurar condições sociais e econó­micas adequadas para a vida em sociedade.

NB --- Ou seja, um governo legítimo. Isso significa que há uma entre proteção aos humanos e

HI' O do postula, de fonna e periódicas, organizadas através de sufrágio

universal e igual, em escrutínio secreto.

NB - E a proteção dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais?

HF - Para os povos do Terceiro Mundo, entre os quais nos situamos, é longo e difícil o caminho a percorrer para a efetivação dos direitos humanos económicos, sociais e cul-

, no entanto, e, a cons-desses direitos e as obrigações e do

Estado a respeito dos mesmos, no plano nacional e interna­cional.

NB - Que lhe parece a militância em direitos humanos da OAB e dos advogados individualmente?

HF - É importante insistir na responsabilidade dos advo­gados, como homens da lei e do direito, cujo compromisso é a permanente luta pela realização da Justiça. Os advogados têm de estar na linha de frente da defesa dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. É esta autêntica responsabilidade histórica que nos cumpre assumir.

NB - Como viu Você a aplicação da lei de segurança nacional a párticipantes da manifestação do Paço Imperial, e a circunstância da política ter investigado o Comitê Pró-Dire­tas?

HF - Os ditadores de todos os tempos sempre identifi­caram a oposição à tirania como traição à pátria.

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NB - A nova lei de segurança nacional é uma lei aceitá­vel, do ponto de vista do estado de direito democrático e da

HF - Embora a nova lei de segurança nacional constitua avanço , se se há

que ela mantém a

NB Cite uma nefasta do acata-mento, uma , da doutrina de segurança

HF - Essa doutrina advoga abertamente a tortura como técnica de luta. Diz-se que na guerra convencional o inimigo está atras das linhas, e que na guerra revolucionária está entre nós, só podendo ser descoberto através da tortura dos suspei­tos e da informação imediata, a qualquer preço.

NB - E para a defesa dos HF - A falta de acesso aos autos, a impossibilidade de

fiscalizar a autoridade, a incomunicabilidade do preso, são formas anular ou o de (j,"rp,,,,

ofensa a garantias elementares do processo penal num país democrático.

NB - Então, essa lei deve ser revogada? HF - Essa lei deverá ser fatalmente revista, quando o

Congresso Nacional readquirir plenamente a sua independên­cia e autonomia, liberando-se do domínio que sobre ele exerce o Executivo. Isso acontecerá quando se alcançar a plenitude democrática que todos almejamos.

NB - E a criminalização da greve? HF - A vigente lei antigreve constitui um dos mostren­

gos criados pelo regime militar, e é demasiadamente repres­siva, no plano trabalhista e no criminal. A greve afirmou-se como instrumento de luta dos empregados e se transformou num direito proclamado em constituições e documentos inter­nacionais. O que se percebe é que o Estado, com s~u imenso

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potencial de repressão, se põe do lado dos patrões, reduzindo e reprimindo o poder de pressão da classe trabalhadora.

NB --- Como lhe parece estar o trabalhador brasile.iro? HF -- Todos os estudos sobre a revelam

que os reais estão caindo desde 1964. O que um trabalhador pode hoje comprar com o seu salário é muito menos do que podia comprar com os salários de 1964. As multinaci pagam aos trabalhadores incom­paravelmente menos do que pagam aos trabalhadores de seus países de origem. A General Motors admite que os salários representam 8% na composição de custos de seus veículos fabricados no Brasil, ao passo que, nos Estados Unidos, este item sobe a 36%. O Brasil é um paraíso para as multinacionais.

NB -- a ser revogada? HF É tarefa importante rever a vigente lei antigreve,

terminando com a estrutura sindical fascista que entre nós Novo.

NB Qual o maior advogado que Você conheceu? HF - Evandro Lins e Silva é, sem dúvida, o maior

advogado criminal de sua época. Ele é o mestre, o primus inter pares, embora, com falsa modéstia, costume chamar-se de "velho rábula".

NB Qual o maior juiz que Você conheceu? HF - Creio que Victor Nunes Leal foi o maior juiz que o

Supremo Tribunal Federal teve, no período em que atuou a minha geração de advogados. É com verdadeira alegria que o encontro sempre.

Absurda ausência, Heleno morreu em 18 de maio de 1985, por trágica coincidência um dia após o falecimento de Victor Nunes Leal. O vazio por ele deixado no magistério e na advocacia criminal não foi nem será preenchido tão cedo. Suas

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palavras, acima fielmente transcritas, foram extraídas de di­versos trabalhos, principalmente" Aspectos Jurídicos da Mar­ginalidade Social" e "Os Direitos do Homem e sua Tutela Jurídica" (in Direito Penal e Direitos Humanos, Rio, 1977,

, Lei Nacional - uma , ed.

, . Que hoje, este morto tão insistentemente vivo.

100

AUTORITARISMO E SISTEMA PENAL>

TANQUES OU TRIBUNAIS·

Na aplicação da lei de segurança nacional, durante a ditadura militar, alguns juízes invocavam constantemente as

nacionais" para, distendendo analogicamente o da

Por exemplo, em certo período pouco importava que uma associação política clandestina não fosse "partido dissolvido legalmente", como previa a lei, elaborada em vista do PCB: era algo muito parecido (analogia), afrontava igualmente as "tradições nacionais", e tome condenação. Imaginem se ti­véssemos efetivamente uma tradição complacente com a analogia em matéria penal. Pois a China tem. Enquanto no Brasil, desde 1830, formalmente prevalece o princípio de que o juiz não pode condenar ninguém por um fato apenas seme­lhante ou equiparável a um delito, na extensa e rica tradição chinesa uma especial imbricação moral-direíto.-ãbria as portas para incriminações como esta: "quem agir de maneira repro­vável receberá 40 golpes de bastão pequeno, e 80 nos casos graves". Tal norma, prevista em inúmeras legislações chine­sas - da dinastia T'ang (618-907) à Ch'ing (1644-1912)­serviu igualmente à punição de um suicida frustrado e de um copista oficial inábil.

A revolução chinesa não modificou essa situação. Seja por preconceito quanto ao princípio da legalidade, cuja gesta­ção e parto estão associados à revolução burguesa, seja pela

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força inerciaI daquelas tradições, o direito penal comunista chinês manteve e até acentuou o emprego da analogia em matéria . Um manual editado em 1957 sobre princípios gerais de da República Popular Chinesa definia como crime' 'todo que a o s democrá-tico 31', tenta corromper a ordem social ou é mente danoso, ou ainda deva merecer penas nos termos da lei". Vê-se a com uma função complementar na defini-

a código de 1979, as coisas nao mudaram muito. O crime é definido como um ato ofensivo à soberania do Estado, à integridade do território ou ao regime da ditadura do proletariado, que solapa a revolução e a edifica­ção socialista e perturba a ordem pública, que ofende bens do povo, bens coletivos das massas trabalhadoras e bens

direitos s e , e ainda todo ato socialmente

Advogados brasileiros são vítimas constantes da violência: hoje, assassinados em razão de suas atuações na

de trabalhadores chamados "crimes do latifúndio"), ontem presos pela ditadura militar por patroci­narem causas de dissidentes políticos. Também na tradição chinesa cujas concepções do direito objetívo como comple­xo de deveres morais conferia ao litígio um travo ilícito, enquanto turbação da ordem legal - advogados eram muito mal vistos, quando permitidos (no código dos eh' ing, as condutas de estimular a propositura de uma ação ou redigivpor outrem uma acusação eram criminalizadas). A revolução chi­nesa, depois de fechar os escritórios e proibir a prática forense (1949), tentou reverter essa situação. Sua primeira constitui­ção (1954) admitia expressamente que o acusado tinha o direi­to de ser assistido por um defensor (art. 76). Leis da mesma época fixavam as circunstâncias da nomeação de tal defensor e os critérios de sua remuneração; tais providências faziam eco ao Kuomitang, que admitira oficialmente o exercício da pro­fissão de advogado. Contudo, a nova Constituição de 1975 não consagrou uma só palavra ao direito de defesa dos acusados, e

102

nenhuma lei incentivou a organização da categoria profissio­nal, que retomou o caráter marginal da tradição. Agora, os

para

da dos estão na téc-as

mais como essa é uma questão teórica superada, mesmo

não .)

No Brasil, não temos a pena de morte na legislação, mas ela é aplicada largamente, tolerada e estimulada por discursos que ou desqualificam o acusado ("ele é bandido"), liberan­do-o à sanha dos esquadrões da morte a soldo de grupos sociais bem caracterizados, ou exercem diretamente a apologia do

(" '). Í-<. s ou n~enos como a tortura: de um a ção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (Decreto Legislativo n~ 5/89, noD.O. de 1?jun.89), e de outro lado vem UH1 Estado a em tortura ("aqui se bate, mas onde não se bate?"). Pois a China tem a pena de morte, e, preocupada com uma incidência elevada de criminalidade, promoveu nos últimos anos cons­tantes execuções. Talvez a China detenha o duvidoso primeiro lugar em execuções de pena de morte nos últimos 10 anos, com direito ao cardápio completo (desfile público dos padecentes, com cartazes evocando o delito a ser expiado, execução públi­ca - usam o fuzilamento -, etc). Ignoram-se os resultados práticos dessa matança legal, mas não se ignora essa outra matança, na praça da Paz Celestial. E quem pensar que a praça da Paz Celestial é algo muito distante e remoto, que não pode ser a Cinelândia, a Candelária, a Baixada, Volta Redonda, Xapuri, e tantos outros lugares, está cometendo um erro fataL

Existe uma não suficientemente investigada relação entre a observância da legalidade nos tribunais - integrada pelo reconhecimento do acusado como pessoa humana titular de direitos, entre os quais a defesa - e a opressão política. O

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~utoritari~mo, de direita ou de esquerda, quer ter um homem merme e mdefeso, sozinho numa praça abandonada, diante de seus tanques ou de seus tribunais.

A

Um julgamento real coloca uma , arti-através das variáveis j o exercí-

cio de poder expresso na sentença. Um julgamento simulado c~Io,c~ uma questão ~oraI, articulada através da reconstrução hlstonca do acontecImento "sentenciado" N h . 1 , . en um jU ga-m:n:o e compIe~amente real meio século depois dos fatos, e a crOlllca que A~am FinkieIkraut empreendeu do

em I por . . associar, assim, à moral o

dw dos judeu~ pelo aparelho burocrático-militar nazista, saga­zes observaçoes sobre os procedimentos punitivos adotados contra os , de a

Para ~ leitor de formação jurídica, é de esp~cial interesse a. p~rce~çao que o Autor tem do problema da obediência hwrarqUlca à o~d~m ilícita num aparelho organizado de poder, e~tu~ado em dIreito penal, de forma insuperável, por Roxin. ~mkIel~r~~t conhece que aquele extermínio brutalmente mas-SI vo fOI um crime de empregados" t . d " . '" ' pro agonIza o por

burocratas ou POlICIaIS, cIvis ou soldados que faziam seu trabalho e c~mpriam ordens" , porém assinala que" o serviço ao E.stado nao exonera nenhum funcionário de nenhuma buro­craCIa de sua responsabilidade como indl'vl'duo" E' d . ~ I . _ . a mlrave sua apreclaçao. da talentosa e polêmica empostação adotada pela ~7fesa n~ ju!gamento, ressalvando a função dos advoga­dos ~ esta mlssao -'- a defesa - foi-lhes imperativamente confIada pejo estado de direito, o qual seria indigno de si caso negasse suas garantias a certas categorias de criminosos") bem como sua análise do aresto da Corte de Cassação qu~

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admitiu ao processo vítimas não raciais (membros da Resistên­cia, igualmente deportados). Há, contudo, dois aspectos que merecem debate: a importância e efeitos que atribui à da classe dos chamados "crimes contra a humanidade" e o entusiasmo com que se ao tribunal de Nuremberg.

que' 'foi exatamente do crime a desculpa do serviço" (ou seja, para subtrair o efeito exculpante da hierárquica), em confronto com a "legalidade do massacre e do tratamento industrial vítimas" , nunca antes experimentado em tais limites, "que se elaborou, entre 1942 e 1945, a categoria geral de crimes contra a humanidade" , por ele situados num contexto que denomina "leis da humanidade" , filiáveis ao direito das gentes. Nurem­berg deveria ser, portanto, um "tribunal que falasse em nome do humano", juízes "se na clássica do direito das gentes" , e portanto, "falaram em nOlne de toda a sociedade internacional".

Os, que um direito internacional jamais realizado, sempre estiveram estritamente determinados por concretas injunções econômicas, e não por uma essência humanitária supra-histórica, e basta recordar o pioneiro crime de pirataria. Talvez o pirata não fosse, como supunham os juristas, hostis humanis gene ris , mas certamente era um inimigo da nascente burguesia mercantil. Quem afir­maria que atrás da criminalização do tráfico negreiro só havia uma equação ética? "Crimes contra a humanidade" confi­guram uma fórmula confortavelmente ampla. que eleva ao máximo grau a abstração da vítima, processo iniciado no século XII. Nos campos de extermínio nazistas, uma parte da humanidade matava e uma parte da humanidade morria; qual­quer confusão a respeito simplesmente (con)funde vítima e assassino. Não por acaso o jurista polonês Rafael Lemkin. que em 1944 cunhou o termo" genocídio" , propusera para o novo delito, uma década antes, o nomemjuris "barbárie", e para o que hoje chamaríamos de genocídio cultural, "vandalismo":

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s~o expressões significativas acerca de ' dlda e conflituada, uma humamdade divi-

Definir o objeto jurídico um delito (isto é o valor violado ' é um

estrutura do agradou a classificação do ,sem-

humanidade porquanto pe 't' como cnme contra a , rmI la d h " contra a no p' , o omlcldio

, nmelro, mata-se uma ou ' com o obJetivo de extinguir todo a ' • ~u cem

segundo, mata-se uma ou d o ",rupo etmco; no ez ou cem pessoas outro objetivo ou sem ob' t' com qualquer Je IVO nenhum Pou ' com a mediatização da mo t d ' co se Importando , r e e um homem Jus-penalistas do mundo ( , ' os melhores CUrIosamente d

do '" os aÍlnnar em unu-seu

incluir o delito de enocíd' para estranho" entre os c;ime 10, que ~ste era um "corpo

é s contra a VIda, Tecnicamente o ,que '

entenNder a qualquer das vítimas do holocausto ' d urembercr foi de fato " JU eu, e' a prImelr ,-

exercitou um tribunal pI.' ,a ocaSIaO em que se

d ena mternacIOnal C d

. aquele tribunal não tinha ' ' ontu o, o poder A carta de Londres de 8 d ongem jurisdicional e sim militar,

'A ' e agosto de 1945 n- d' , eXlgenClas decorrentes dos p' " ao po la suprIr as natural, e também nisso h" nnclpIOs da reserva legal e do juiz

, a consenso A ' sor espanhol exilado m' ,sua, o grande profes-, enClonava a " d' l' , mesmo daqueles que p t' , ra Ica msatlsfaçâo"

ar IClparam do t 'b 1 g~so, Nuremberg representou "viol ::1 un~ , Segundo Fra-pIOS fundamental's naJ'ust' açao eVidente de princí-, Iça penal" P , Hungria, Nuremberg foi" ' ,ara o msuspeito Nélson

Realmente :l~gança pura e simples", , caso se eXIbIsse o film d

para um jurista marciano seria' d ,e,.a Segunda Guerra banco dos réus de Nur 'b ar uo JustIfIcar a ausência no

em erg de q d ' bomba sobre Hiroxima P , . uem or enou e lançou a

. or menos slmpaf abomináveis carrascos na ' t .. 1~ q~e se tenha pelos ZlS as, o uso da JUflsdição interna e

106

de leis anteriores a seus crimes teria obtido idênticos resulta­se estar usando a

a partir de

que ° aplicável a fatos terno de um ser em apenas quando o Estado envolvido, por indiferença, cia ou cumplicidade, recusar sua apuração e a punição dos responsáveis, E aí chegamoS ao grande sobrevivente da guerra e de Nuremberg, que não escapou ao olho perspicaz de Finkielkraut: o nazismo, O problema dos chamados crimes

contra a desconsidera (ou vê-lo fora daí é resolvê-lo fora da razão. cem anoS Tobiàs Barreto advertia que pesquisar o fundamento jurídico

da ser tão como ° jurídico da guerra. Um julgamento como o de Barbie - meio real e meio simulado - acaba sempre também sendo um pouco um julgamento sobre a racionalidade do ato de julgar.

TORTURA NUNCA MAIS - OU PARA SEMPRE?

o Diário do Congresso Nacional de 24 de maio de 1989 estampou o decreto legislativo n~ 4/89, que aprova o texto da Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, votada por consen­so na XXXIX Sessão (1984) e subscrita em 23 de setembro de

1985. Na semana seguinte, em 2 de junho, o mesmo Diário do CongresSO Nacional publicava o decreto legislativo n~ 5/89, que aprova o texto da Convenção 1nteramericana para Prevenir

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e Punir a Tortura, concluída na XV Assembléia Geral da OEA (1985) e subscrita peIo Brasil em 24 de janeiro de 1986.

Eram boas notícias. Infelizmente, os outros jornais das mesmas datas não traziam informações compatíveis com o

do "diário oficial". Nos Jornais de 24 de de uma mesma eram exterminadas, no

Rio, diante de uma criança, por homens com farda da Polícia Militar, e quatro corpos com sinais de tortura eram encontra­dos num carro abandonado; nos de 2 de junho, um sindicalista, em Aracaju, era assassinado por 40 policiais, convocados pela gerência de um hotel para desalojá-lo, por estar acompanhado da esposa a despeito de haver pago diária single, e noticiava-se ainda a prescrição - pelo transcurso de 20 anos - do seqüestro, tortura e morte do padre Antônio

Pereira em Reei fc.

A é feia, porém -- como disse José a Rentinho - "as leis são belas" , e, no caso das duas conven­ções brevemente vigentes entre nós, caberia acrescentar, como o personagem machadiano: "belíssimas". Como essas belas leis podem ajudar-nos a transformar a realidade feia?

Os textos de ambas as convenções mantêm quase total correspondência, e as diferenças estão principalmente nos instrumentos que propiciam: enquanto a Convenção da ONU criou o Comitê contra a Tortura, como órgão de coordenação e supervisão das medidas adotadas pelos Estados Partes, bem como instância investigatória de nível'Ínternacional, aquela da OEA, ressalvando as competências da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), deixou aberto o acesso ao sistema interamericano de tutela de direitos humanos, tlotadamente a Comissão lnteramericana (com sede em Washington) e a Corte lnteramericana de Direi­tos Humanos (com sede em San José).

No mais, as coisas são simples. Suponhamos que o Presi­dente da República, diante da urgência do assunto - quer pela nossa infeliz tradição, quer pelo mandamento constitucional

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'mediatamente de providenciar 5' XLIII) - tratasse 1 (arL _?, mc. ' 1 decreto as Convenções; com as retificaçó.es e promu gar pOfr. , hOJ'e Está o Brasil, de

nhamos que o lzesse" d otimismo, supo L • e punir a tortura adotan o

d" t briaado a prevemr ' hoje em lan e, o b ..". eJ'udiciais '. . s admmlstratlVas as medIdas. ' d." prática e puni-la, caso

. d a essa t llnpe lf t e disposição de reme er C t d o governo-que ev L •

venha. on u o, l' medidas provisórias cn-tre outras algumas ao Congresso, en _ ' , t nlpo uma mensa-

. '.. , _ nao encontrou e nunal1zando a greve p' d que isso o tempo escas-

. . l' d a tortura lOr o L' gem cnmma lzaI1 o .'. t ntes' nenhum deputado

b ' ara nossOS represen a . . seou tam em ~ L 'd Pressupostos das medIdas

oJeto nesse senti o. A • apresentou pr . . -o são a "relevancIa e . , . undo a Constltmça ,

Provlsonas, seg m nosSO país não deve, na " A tortura e '

urgência" da mate~~a. . ~ menos ainda urgente;. ' visão do ,ser ' ''00 anos. Em certo sentido, o

. mos com ela ha quase .J convlve governo tem razão. _ f _ seja do governo, seja dos

Com as convenç?~s, a taTre a uma proposta de definição d facIlItada. emos , .

deputa os - 1 1 dores ou sofrimentos fISICOS legal básica ("todo a~o pe o qua . fl'gidos a uma pessoa, com

. - 'ntenclonalmente lU 1 . ou mentaIs sao I . d 'pria pessoa ou de tercet-

. . ão - acerca a pro , 1 fins de lUvestIgaç . , ') com a ressalva cablve

. f idação ou castigo , ros -, mIm . d tortura aqueles sofrimentos que ("excluem-se do conc~lto. e d didas legais ou a elas sejam estrita decorrencla e me

inerentes' '). _" Iam que nenhum Estado b con vençoes assma

Am as as . tâncias excepcionais, tais como Parte poderá invocar Clrcuns , . pensão de

. rra estado de sitIO, sus ameaça ou est~do ~e g.ue in~tabilidade política ou qualquer gar.antias constltUcIOnaIs, 'd d pública como fundamento

- ia ou calam1 a e omra emergenc . _ da tortura Prevenindo uma 1 ~ . a ou admlssao .

para a to eranCl convenções estabelecem nte nesses casos, as . " defesa recorre " . , . (" ordem de funclOnano

d' A • hlerarqUlCa que a obe lencl.a . , 'dor da responsabilidade penal

. , ') não eXImIra o tortura supenor correspondente.

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Importantíssima é a regra se d ~:rtes deverão pwv;denciar para qu~U~en~lu~n~ual os Estados obtIda med' t' que . A Jande tortura seja admitida como

e de' I' . de 1 licIta,

tra um de seus conteúdos e no .,.' , . . , encon-um novo fundamento ' . SS?S JUIzes passam a dispor de autos . . supnml.r do da prova dos

É extorqmdas medlante tortura . . dever dos Estados Partes

ensmo e a mformação sobre a "b'''' que o obrigatoriamente os pr ' prOl lçao da tortura integrem

ogramas de forma - d " . outros funcionários púbr . " çao os polIcIais e

. " ICOS, CIVIS ou milita partlcIpar de custódia int ' . res, que possam , errogatono ou tratamento de

Estados Partes de b de tortura

'f' em como assegurar condições leo-ais VI lmas de tortura ou, quando b

indenização às seus dependentes"

Normas a impunidade do torturad procuram in-

no qual cometeu seu crime or que abandone o Estado .

São esses, em linhas g~rais os d assumindo, como Estado Parte 'u everes que o Brasil está vou, no âmbito interno d q e subscreveu e agora apro-

T ". ,as uas convenç - b

nnta dIas passados das bl" _ oes so re tortura.

N . pu lcaçoes no D' , .' d

aCLOnal, absolutamente d la/LO o Congresso nhada mensagem ou aprese:~a~oa~o~teceu" I-:Tão. foÍ encami-a tortura, neutralizando ç " p oJeto de leI crIminalizando

h. , . o eleIto exculpant d b . ~ lerarqmca e prevendo . d . _ e a o edlencia

ouviu falar da inserça-o d a m en~zaçao às vítimas. Alguém e um capitulo s b

culos das academias de pol' . ? E o re tortura nos currí-. lCla quem f . . mauguração da Deleg ..' Ol convIdado para a

AI" acta contra a Tortura? s eIS, ainda que belas nad .

política empenhada em ,_a resolvem sem a vontade sua execuçao A t t '

profundamente entranhad . or ura e alguma coisa a em nossa hist' . do menos brutal tenha sido I ' ona, e talvez o perÍo-mentada nas Ordenações e :qtU~ e d

no qual a. tortura era regula­

s u a a em COImbra. Pelo menos

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um jurista como Pereira e Souza podia recomendar que "não se deve a confissão feita entre as dores dos tormentos, mas só a que se depois de relaxados" , ou ainda que' 'não deve (o réu torturado) ser a respeito dos cúmplices

do Para os negros escravos, não houve qualquer regra, e os

castigos mais cruéis, requintadamente cruéis, eram aplicados no âmbito da disciplina livros inteiros cados à descrição desses castigos medonhos, e contribuições recentes desvendam a unidade essencial da intervenção disci­plinar (privada) e penal (pública); a tortura não foi a conjun­tura e sim a estrutura do escravismo colonial brasileiro. A tortura era a ordem que afiançava o progresso (em linguagem da de

existir um economista que correlacionando os castigos e penas aplicados aos escravos (estimáveis a partir de relatos e registros da época) e a produti­vidade dos ciclos o quanto para os

outros, a dor dos torturados. Todos conhecem a expressão brasileira "leis que não

pegaram" . Quem po.rventura não conheça, pense na carta-ré­gia de D. Pedro II de Portugal, de 1700, coibindo os maus-tra­tos aos escravos. Talvez o exemplo mais escandaloso dessas leis tenha sido aquela de 5 de março de 1790, cujo § 2? proclamava o desusO (dessuetude) dos tormentos. Tal lei dizia da tortura ser ~'a mais segura invenção para castigar um ino­cente fraco e para salvar um culpado robusto, ou para extor­quir a mentira de ambos". PoderíamoS estar comemorando, em 1990, o bicentenário da abolição da tortura entre nós. Mas

aquela lei de 1790 definitivamente não "pegou". Devemos comemorar a recente aprovação pelo Congres­

so das convenções da ONU e da OEA contra a tortura? Vamos banir a tortura, ou não conseguiremos desvencilhar-nos desse fantasma covarde e feroz? Tortura nunca mais - ou para

sempre? Essas convenções vão "pegar"?

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A LÓGICA DE lAGO

As revoluções costumam cometer aI ' ' reajustamento da justiça penal. Um deI::

ns eqUIvocos no

mesmo autoritarismo do no uso do

formas da

conteú~u~s~~~f~ft~~~~r ~~:~:~~~p~~es, de ~pree_nder os novos extrema, Foucault ( m~ sltua~ao ~evolucio-

nova justiça. l ue sena preCISO mventar a

" Um dos mais destacados desses equívocos h . .

~~:t::a:enosprezar cer.t~s princípios jurídi~os o~~e c~~::~ d A

· scendem a ocaSlao histórÍca na qual foram produzi-os. SSlm por exemplo " .

, , os pnnclplOS da reserva legal, da , da do

d - da certeza objetiva como pressup~sto b cor: enaçao, et~. Reduzi-los a meras construções do direito

urgues, para nega-los ou para tolerar modos obl' " ' lqUOS sua , e um eqUIVOCO 1 '

caro dos preços. Tais princí ias e' pe o qual s~ o mais acervo. inalienável de direitot hu m v~rdade Integram um os quais as garras do Leviatã puni~ano~ undamentais, sobre Isso não é idealismo ou universa1is:~ ~ao.po,d~m estender-se, desses princípios se cez na h' t" -hlstonco; a conquista

l' IS ona e co h'" nenhuma outra se poderl'a d' mo lstona, e de , lzer com mais pr 'd d SIdo escrita com sangue,' opne a e, ter

Tais considerações acorrem na ocasião em contato com farto material, distribuído pelo Comi;~~ se to:na

pour la ~éfense des Réfugiés et lmmigrés (Ced~) uro:een

condenaçao a 15 anos de prisão de Ote ' so re a certo o desconhecimento dos autos do lo de Carvalho, Por

~~~~:t~o~~i;;:a~~:~';'~:=c~~;~~~~~~::ri:;~:;:l tl~:~p:~~-~ Ica condenaçao da condenaç-p' " o 1-

processo que merecem dl'vUlgao

, _ orem ha certos aspectos do açao e exame.

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o primeiro deles está no próprio título da condenação, o artigo 288 do Código Penal (' 'organizações terroristas' '), São conhecidas as dificuldades para a definição legal do crime de terrorismo, Passamos por elas na comissão redatora do ante-projeto de lei de defesa do , na de mudanças jurídicas do ministro Lyra, criar-se uma incriminação vaga e indeterminada, violando aquela função do princípio da reserva legal que Roxin de mandado de certeza, é enorme, A violação do mandado de certeza não tem seu principal inconveniente, como idealistas supõem, em dificultar o conhecimento da matéria proibida por parte do cidadão, mas em permitir um desempenho judiciário nos lindes do arbítrio.

A conclusão de que Otelo de Carvalho integrava um grupo se no menta de quatro co-réus "arrependidos" e na redação, em 1977 (cinco anos antes da vigência do novo Código Penal), de um documento chamado Projeto Global, no qual, diante do recrudescimento um programa - de difícil realização, assinale-se - para que forças populares garantissem os avanços de 25 de novembro,

Ramsey Clark, o grande advogado americano, assegura que "o uso· de quatro 'arrependidos', todos patentemente inseguros (ali patently unreliable) , constitui virtualmente toda a prova testemunhal contra Otelo", É antiga a reserva com a qual devem declarações....em tal situação ser recebidas, Mala­testa, com seu saboroso pragmatismo, registrava que "do momento em que o acusado julgue que atribuindo fatos dados ao cúmplice diminui a própria responsabilidade, o seu teste­munho suspeita-se ditado não pela vontade, mas pelo interesse' , ,

Esses ingredientes são nossos conhecidos, Incriminações vagas e indeterminadas, Extensas prisões provisórias (Otelo ficou detido três anos até o julgamento). Um documento pro­gramático que passa a funcionar como indício, e é submetido a uma interpretação meticulosamente dissociada de sua real

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origem e contexto. Duplas militâncias individuais que são tomadas por alianças de grupos distintos. Arrependidos de cujo confiteor emerge a paixão alheia. Essa é nossa

e sua aplicação nos mereceu E. y Con-

trai Social, B. Aires, 1987,ed. Hammurabi). Transformações políticas podem da trans-

nas instituições , no seu de vel1ção social. Os tribunais políticos conservadores sempre usaram, na decisão de processos que remeteram milhares de democratas e socialistas para o cárcere ou o patíbulo, para fraudar o princípio da certeza objetiva como pressuposto da condenação, a lógica de lago, quando se refere ao boato de que

entre sua Pouco o

Carvalho e sua significação como liderança. estar certos de que sua condenação não repetiu not t I I, mere do as if for surety" (Ignoro se é verdade; mas eu, por uma simples suspeita dessa espécie, agirei como se fosse coisa certa - ato I, cena III).

o ASILO INVIOLÂ VEL

. A.l~uns policiais se queixam de que a nova Constituição velO dIfIcultar seu trabalho. Será mesmo?

.;. nova. Co?sti.tui~ão, no s.eu artigoS?, inciso XI, diz que a casa e o asIlo mVlOlavel do mdivíduo e que ninguém pode entrar nela sem consentimento do morador, salvo se houver flagrante delito, desastre, ou, durante o dia, ordem judicial (assinada por umjuiz). A diferença da antiga Constituição está aí, nessa ordem Judicial; antes, bastava a ordem escrita do delegado de polícia ou mesmo sua simples presença ao ato.

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Se estiver acontecendo um crime na casa (por exemplo alguém agredindo outra pessoa, ou possuindo estoque de

nela se a

flagrante delito. a ocorrência um desastre exemplo, início de incêndio) justifica o ingresso sem mento. uma ' " uma diligência sem motivo concreto e entre na casa (providência que o Código de Processo Penal, no seu artigo 240, chama de "busca domiciliar"), depende agora de uma ordem judicial. É claro que o juiz sempre concederá essa ordem quando houver "fundadas razões", como diz o Código, para prender crimi-nosos ou fugitivos, coisas produto de cnme ou sua , etc. também é claro que o JUlZ jamais concederá essa ordem quando não existirem motivos concretos para a diligência.

O que mudou? Nos bairros ricos', mudou. Lá, a casa sempre foi o asilo inviolável do indivíduo; a foi entrando, pé na porta, em todos os apartamentos de um prédio até descobrir alguma coisa ou alguém. Lá, para uma busca domiciliar existe sempre uma investigação anterior que forneça um volume aceitável de indícios para autorizá-la.

E nas favelas, ou nos conjuntos habitacionais mais pobres? O trabalhador e sua família estiveram sempre expos­tos a uma visita sem anúncio, a ver sua casa toda revirada, objetos quebrados, e nem ao menos um pedido de desculpas.

Não, não é o trabalho policial que ficou mais difícil com a nova Constituição. Difícil mesmo para algumas pessoas é tratar da mesma forma o apartamento de luxo e o barraco, é considerar que ambos são, igualmente, o asilo inviolável do indivíduo.

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"SEM DOCUMENTOS? TEJE PRESO!"

Muitas pessoas que devem documento

estarão a o tira, os documentos e, diante de qualquer resposta negativa ("esqueci", ou "estão em casa", por exemplo), profere a sentença: "Sem documentos? Teje preso!"

Tudo isso está completamente errado. Em primeiro lugar, quando a polícia aborda um cidadão

que não está armado ou cometendo um crime (em flagrante delito, como se diz), o agente é que deve se identificar, exibindo sua identidade funcional ("carteira de polícia").

Em s~ ~e

o dever de acompanhado de que atestem sua identidade. O que existe é o seguinte: todo cidadão é obrigado a fornecer à autoridade policial informações sobre sua , estado se­parado, viúvo), profissão, local onde mora e onde trabalha desde que justificadamente solicitado por ela. Por exemplo: houve um assalto num banco. Pessoas que estavam nas proxi­midades, na mesma rua, são justificadamente solicitadas a se identificarem. Note-se que ninguém é obrigado a ter seus documentos consigo, e sim a fornecer as informações. Quem, nessas circunstâncias, recusar-se a prestar os esclarecimentos pedidos sobre sua identidade, ou prestá-los falsamente (mentindo sobre seu nome, estado, profissão ou residência), comete a infração prevista no artigo 68 da Lei de Contraven­ções Penais, com pena de multa (para a recusa) ou prisão simples de 1 a 6 meses e multa (para a informação falsa).

É importante lembrar que essa contravenção penal só pode juridicamente acontecer se a autoridade tiver um motivo justo para solicitar a identificação (por isso, a lei diz "justificadamente"). Pelo simples capricho ou mera curiosi­dade do funcionário, nenhum cidadão está obrigado a identifi-

116

car-se. Além disso, como já foi visto, mesmo quando existe o motivo justo, a obrigação não é de ter consigo os documentos, e de prestar com as informações . Fora daí, a prisão crime de abuso de autoridade para

a executou ou ordenou (lei n? 4.898, de 9.dez.65, art.

4?, a!. (1). O que pouca sabe é que ninguém (seja funcionário

público, como um policial, outro cidadão, seja uma empresa) reter qualquer documento de identificação soaI, mesmo que apresentado em fotocópia autenticada, inclu­sive certificado militar, título eleitoral, carteira profissional, registro civil e outros. Quando a repartição pública ou a em­presa precisar do documento para algum ato, terá que devol­vêlo no prazo de 5 dias. Aquele - seja policial, seja funcio-

de uma os documentos de cometerá contravenção penal, punida com prisão simples de 1 a 3 meses, ou multa (lei n? 5.553, de

6.dez.68, art. 3?). se as leis e

em nosso país? Poderíamos ouvir diálogos assim: - É cana. Documentos. - Estão em casa. - Sem documentos? Teje preso. _ Quem está preso é o senhor, por abuso de autoridade.

Ou como este outro: - É cana. Documentos. - Aqui estão. _ Guarda aí, Edu, os documentos da criança ... _ O senhor está preso por retenção de documentos. Sonhos podem realizar-se. Só depende de nós.

117

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PEQUENO RITUAL DE DEGRADAÇÃO

5~, com a cado não será submetido a

em lei". nas

fórmula legal uma curiosa, que é em certo sentido a

"pena" corporal- agora abolida - no Brasil. da última

Segundo o Código de Processo Penal, que data de 1942, entre outras medidas tendentes à apuração do crime, deve a

policial'

~itiv~ eram , . Em tratava-se assegurar a ,Identidade fIslca do réu, numa época em que não existiam servi-ços confiáveis de a gover-

anos 30 em tomo do civil). Em segundo l~g~ '. providenciava-se sobre os casos nos quais impressões dIgitaIS foss~md~te~tadas n~ ~ocal do crime. Em terceiro lugar, as fichas datIloscoplcas servmam para o registro da indiciação, naquele caso, e para o levantamento dos antecedentes criminais do indiciado.

Com a criação e desenvolvimento dos serviços de identifica­ção nos diversos Estados, tudo mudou de figura. Ao identificar­se civ~lmente para obter sua carteira de identidade, o cidadão faz ~ua~ fIchas datiloscópicas, que ficam cadastradas no respectivo mstltuto. Não há mais qualquer dúvida sobre sua identidade física. Não há mais qualquer dificuldade para confrontar suas fichas datiloscópicas com impressões digitais porventura recolhi­das no. loc~~ do .crime. A indiciação do caso em que esteja envolv1do e msenda em seu registro por mera anotação e seus ante~edente,s criminais podem ser levantados simples~ente a partIr do numero de seu registro, constante de sua carteira de identidade. .

118

Não obstante, a medida era sempre adotada, fosse ou não já civilmente identificado o indiciado, houvesse ou não dúvida

que o

com os Em 25 anos de prática , não

caso no qual um solvente eficaz tenha sido oferecido para a remoção das manchas escuras, que resistem à água e ao sabão. O identificador comanda o movimento físico do indiciado, para garantir a extensão da gravura de cada dedo; é o identificador que controia a de cada dedo.

fi c has 'AlU I i-" IV,.:'"

penúltima das salas uma (a última é a eventualmente entre sorrisos e observações mordazes (" a

tocar piano"). Foucault não hesitaria em reconhecer que , .. U"HJ'~'" nessa o do é "uma essen­cial no cerimonial do castigo"; não temos aqui uma execução capital, por certo, mas temos urna "pena" (infonnal) que incide sobre o corpo, cujo conteúdo é o escarmento e a infamação.

Desligada de suas finalidades processuais, a identificação datíloscópica remanesceu sentida e representada por quem a aplicava e por quem a sofria como um constrangimento de cunho "penal": um castig'o, uma humilhação. O pior é pensar no des.tino daquelas fichas: um jogo iria inutilmente para o processo; as demais, no instituto de identificação, seriam inúteis duplicatas das fichas extraídas quando da obtenção da carteira de identi­dade. Na hipótese de multi-reincidentes, são jogadas no lixo: para que serve o quinto ou sexto· conjunto das fichas datiloscópi-

cas de um punguista? Os advogados de indiciados já civilmente identificados co-

meçaram, ainda nos anos 50, a requerer a dispensa de sua "identificação pelo processo datiloscópico" , como reza o Có­digo, por desnecessária a formalidade. Isso abriu duas

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perspectivas: a do arbítrio da autoridade polícial (que desfolhava o malmequer do deferimento de acordo com a condição social e o apadrinhamento do indiciado, vagamente relacionados à gravi-dade do delito), e a da corrupção do escrevente (que, agraciado, , , o É claro que

a c~nvencidas de sua inutilidade; outras não a dispensavam porque smceramente achavam que deviam cumprir a letra da lei. Logo o assunto chegou aos

O tema não era novo. Antigos comentadores do Processo Penal, como Ari Franco e Espínola Filho, já haviam manifestado sua opinião sobre a dispensabilidade da identifica­ção datiloscópica para indiciados já identificados. Os tribunais começaram gradualmente a orientar~se nessa direção, inclusive o

Tribunal . O . Aliomar afirmou que a e e, em outro caso, advertiu significativamente que "o fim da identificação não é punir, nem submeter o indigitado delinqüente a vexames inúteis" .

Mas a Corte Suprema que judicou no olho do ciclone da ditadura militar, expurgada de Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima, já sem o concurso de Adauto Lúcio Cardoso e outros juízes liberais, inclinou-se, naturalmente, na direção oposta. Com argumentos à base da subserviência à litera­lidade legal, repassados do espírito da sociedade disciplinar, o Supremo firmou jurisprudência no sentido de que "a identifica­?ão. ~rimin.~l não cor:stitu.Í co~strangim~nto ilegal, ainda qw.; o mdIcIado Ja tenha SIdo IdentIficado cIvilmente". Quando se prenunciava esse ovo da serpente, René Dotti escrevéu um belo artigo, vinculando o assunto ao princípio da presunção de inocên­cia. A edição da Súmula n? 568, com a redação acima transcrita mereceu de Heleno Fragoso, na Revista de Direito Penal u~ ácido comentário: "é lamentável que isso tenha ocorrido':. Os' tribunais estaduais foram paulatinamente se submetendo à orien­tação da Corte Suprema, sem embargo da admirável resistência de alguns magistrados.

120

Na prática, as coisas ficaram assim: os tribunais não podiam isentar indiciados da identificação datiloscópica, porque o Supre­mo reformava a decisão; mas as autoridades policiais podiam, condicionando a isenção a um futuro pronunciamento do Promo-tor de , nem sempre fom1Ulado.

do Estado do Rio de sob o governo de se ao futuro texto cional que motivou essas linhas. Uma Resolução da Secretaria de Polícia Civil (n:) 92, de 1986) determinava a dispensa geral de

datiloscópica, sempre que o indiciado já civilmente identificado no Instituto Félix Pacheco, e a obriga­toriedade geral da medida em caso contrário, ou nas hipóteses de dúvida sobre a identidade ou o documento respectivo (carteira). Submetida à crítica de um dos maiores processualistas brasilei­ros, Frederico Marques, a Resolução foi aprovada. É claro que houve ou sem atender à prestígio social ou dignitários não é bem visto por todos. Soluções democráticas desagradam a quem conviveu longamente com privilégios. De outro quem o do mesmo estar à disposição da polícia para o que der e vier, a perda do pequeno ritual de degradação, por seu atrelamento a uma racionalidade, era insuportável. O último episódio de reação foi a visita - aliás, polida - de um funcionário do Instituto Nacional de Identificação, que pretendeu cobrar a vigência de um convê­nio entre seu órgão e a Secretaria de Polícia Civil, pelo qual uma ficha datiloscópica extra ia para Brasília. Fiz-lhe ver que, se aquele vexame desnecessário não era imposto sequer pela lei, não fazia sentido submeter a ele o mais humilde cidadão do Estado do Rio de Janeiro, só porque dois generais (o convênio era firmado por dois generais) tinham resolvido fazer um superca­dastro no Planalto Central. Para que não subsistisse qualquer dúvida, pedi-lhe que considerasse denunciado o convênio.

O texto constitucional agora aprovado contém um mandamento: o de que a lei ordinária seja adaptada e interpretada de acordo com o espírito de que o indiciado seja um assaltante

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contumaz ou um brutal estuprador, seja um vizinho quizilento ou um motoris~ surpreendido pelo pedestre na autovia - não pode ser submetIdo a uma humilhação ao fim a última , no. Como Pinheiro,

122

~. "

A QUESTÃÓ PENITENCIARIA

ALTERNATIVAS À PRISÃO NO BRASIL

No final do século XIX, a experiência penitenciária euro­péia já havia convencido os juristas dos inconvenientes das penas curtas, c J di dos" " c "substituti­vos" penais começava a ser explorada. Ainda que o modelo teórico idealista empregado - eomo em von Liszt ou nos positivistas italianos - não renunciasse ao mito da ressociali-

pelo cárcere, as virtualidades e os ônus sócio-familiares das penas curtas constituíram uma evidência empírica muito convincente. Era certamente o primeiro golpe que a grande' 'pena igualitária" das democracias burguesas sofria, justamente no século de seu apogeu tecnocrático (regimes filadelfiano, auburniano, irlandês: silêncio, trabalho diurno e isolamento noturno, progressão, "marcas", etc) e incontestável implantação como sanção dominante e central. "Incapaz de redimir, a prisão curta é suficiente para perverter" - este topos da época, repetido por todos (entre os quais Bérenger), gerou muitas propostas e medidas, das quais presta excelentemente conta Padovani (L'utopia punitiva, Milão, 1981, ed. Giuffre). Paralelamente aos primeiros pas­sos do probation system nos Estados Unidos da América, a suspensão condicional da execução da pena - o sursis à l' execution - invadiu a Europa (Bélgica, 1888; França, 1891; Suíça, a partir de 1891; Portugal, 1893; Noruega, 1893; etc). O sucesso do sursis é explicável por suas características COI1-

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firmadoras da pena privativa da liberdade; só impropriamente poder-se-ia dizer deste clássico "sub-rogado pena]" consti­tuir-se em alternativa à prisão. Na verdade, o sursis reinventa a ameaça penal no processo de execução e relegitima a pena curta a da do sua para a pena privativa da explica a "moda" (a usada por Ferri) do sursis na Europa da virada do

Para o modo

a internacionais capitalistas - a privação da liberdade (prisão simples) tinha uma função penal complementar e acessória. O controle social penal se exercia predominantemente através da pena de morte, de penas corporais (açoites) e de medidas que reproduziam a condição social escrava e com

. O escravo que não à morte ou galés era condenado à pena de açoites e impo­sição de ferros (art. 60 do Código Criminal do Império), expediente com o qual se preservava sua produtividade em

do e se uma explícita entre o poder penal público eprivado, já que correspondia ao senhor trazer o escravo "com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar" (art. 60). Na verdade, para a grande maioria da massa escravizada, alocada nas plantações de açú,. car do Nordeste ou de café do Sudeste, o senhor não era apenas um órgão que executava, mas freqüentemente o órgão que sentenciava sobre a própria pena. Reverso natural, órgãos públicos se encarregavam de aplicar castigos determinados pelo senhor do escravo; no Calabouço, anexo à Casa de Cor­reção, "em troca de módico pagamento, seviciava-se o escra­vo, revestindo o castigo de cunho oficial, aplicando-se tantos azorragues quantos os estipulados pelo senhor na guia de recolhimento" (1. Alípio GouIart, Da Palmatória ao Patí­bulo, Rio, 1971, ed. Conquista, p. 103). Um Aviso de 1879 recomendava que não se infligissem castigos a escravos na casa de detenção, sem prévio exame médico (Paula Pessoa,

124

Código Criminal do Império do Brazil,. Rio, 1885, ed. C. Coutinho, p. 140). A palmatória, o grande instrumento disci­plinar doméstico, foi contemplado em posturas de Alagoas, Espírito Santo e Goiás, entre outros estados, e o' 'tronco" não

, mas também nas públicas. no quartel do , tem

a para o capitalismo, que levaria à configuração política republicana e federativa, estava em vigor um sistema

eixo era constituído por penas corporais. Só em abolida a pena de açoites. Vestígios sistema,

signo de uma formação social autoritária e estamental, encon­tram-se ainda hoje nas práticas penais (dis?)funcionais das torturas, espancamentos e mortes com as quais grupos margi­nalizados, pobres e negros costumam ser tratados por agências

do penal ou por determinação de novos "

Por tudo no final do século XIX não tínhamos, no Brasil, uma experiência penitenciária avaliada. Com a repú­blica, implantavam-se ao mesmo tempo a ordem burguesa e a

privativa da liberdade (prisão celular, , prisão disciplinar - art. 43 do Código Penal de 1890); fábrica e cárcere tardios, porém enlaçados, num processo histórico bem distinto do europeu. O controle social penal tinha agora outra fisionomia: fábricas-prisões para menores aprenderem o tra­balho (arts. 30 e 49 do Código, e dec. n? 1313, de 17 .jan.1891); prisões curtas, com compromisso de "tomar ocupação" logo após, ou, na reincidência;remoção para colô­nias penais nas ilhas marítimas ou nas fronteiras, para vadios, mendigos e "capoeiras" (se estrangeiros, posterior deportação); privação da liberdade para os homens livres tra­balhadores que cometessem algum crime. A equação estava montada: fábrica ou cárcere. Para a peculiar adaptação da pena privativa de liberdade (a "extrema divisibilidade de sua duração") aos fins modernos de "intimidação, segregação e emenda", chamava a atenção Galdino Siqueira em 1921 (Direito Penal Brazileiro, Rio, ed. Jacintho). Numa economia

125

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'que ainda era predominantemente agrária (café no Sudeste, borracha no Norte e, em menor escala, açúcar e algodão no Nordeste), começavam a surgir as indústrias (têxtil, alimen­tos, couros, e mais que iriam substituir as

exér­positivista", cujo

dístico "Ordem e e que, ao

os liberais, pretendia "uma ública militar autoritária", na qual lhe tocaria importante papel, dentro do enfoque positivista (M. Maurício de Albuquerque, Pequena História da Formação Social Brasileira, Rio, 1981, ed. Graal, pp. 419-421). Isso significa que do sistema penal se exigia uma atuação implacavelmente

não a perspecti va "clemenciaI" ou "indulgenciaI"

era absolutamente incompatível com a etapa histórica e os interesses das classes

A sursis no em 1924, se dá muito mais por efeito da mímesis jurídica que parece ser um legado do colonialismo do que como decorrência de consciente com­provação dos malefícios acarretados pela execução das penas curtas. Já o projeto pioneiro de Esmeraldino Bandeira, de 1906, não passava de assumida tradução da lei Bérenger (de 26.mar.189l), com duas alterações: a primeira, desfiguradora elevação do teto de cabimento do sursis para penas até cinco anos (significativa, talvez, de que a problemática das penas curtas, como disse Padovani, não passa da ponta de um ice­berg - op. cit., p. 62); a segunda, perigosíssima restrição ao cabimento do sursis, para crimes cujas circunstâncias "revelarem perversidade ou corrupção do delinqüente" (neste mote positivista à Garofalo, os inconvenientes da pena curta cediam diante de um arbitrário "exame criminológico" do autor), A Exposição de Motivos do projeto que se converteria no decreto n? 16,588, de 6.set.1924, que introduziu o sursis,

126

mencionava não apenas que devíamos recorta,r ~~sso di~~ito ao f · , d "povos cultos" dos "povos CIVIlizados , mas 19unno os , , " " sobretudo argumentava em do mstItuto com o económico de nossas tratados e às custas 113V1' a uma' rêncl a a "nosso de I '-"O'tl 0 . ., . "e riscos do " na pnsao. ar. . pemtenclano. 'd do decreto concediasursis a réu condenado ate um ano e

" não tenha revelado c perverso ou pnsao . _ ,,'. t ' 'd " e o art 5° excluía a aphcaçao para cumes con ra corrompI o, .. , d

a honra e contra' 'a segurança da honra. e honestl~ade as famílias". (Para a historiografia do sursls_ no BraSIl, Hu.go Auler, Suspensão Condicional da Execuçao da Pen~: ~1O,

d F pp 17ss) Pelo maüistério dos pOSItlVlstas 1957 e. orense", b '

, "a "tcori dos <

o início do Soares, Código Penal, Rio, 1910, ed: Garnier), mas a , 'profi laxía criminal" arraigadamente sedlmentada em nossos

a 11'orte de e acusa-costumes era o e, , . dos. O sursis foi recebido com relutância. O COdlgO d~ :ro­cesso Penal do Distrito Federal impós com~ .nova co~dlçao .0

pagamento das custas do processo (o que fOI Julga~o mc?nstl­tucional pelo Supremo Tribunal Federal)._ Os, tnbunaIs ne­garam abundantemente sursis, para casos tao dispares qua~to

- a um velho motorista que cometera transgressoes agressao, . d disciplinares e estelionato, A cláusula da perve;sl.da e ou corrupção ensejava sempre uma ,de~i~ão voluntar~stIca, des~ provida de qualquer paradigma jUndlCO, na segumte chav~. "pouco importa que antes do delito aparent~sse bo~ procedl­mento ( ... ) no ato do crime revelou as mas quahdades que possuía" (Galdino Siqueira, op. cit., p. 626). Gradualm~nte, contudo estabeleceu-se, sob a fórmula de que não se cogItava no sursi; de um favor e sim de um direito, uma_porta para a apreciação objetiva do instituto, com a percep.çao dos dano: que pode evitar e, portanto, co~ o reconhecl~en.to deu:u

o legitimidade institucional. O apnmoramento tecmco q

127

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., ii , '.

sursis sofreria no Código Penal de 1940 (art. 57 sS), com a supressão das restrições subjetÍvas mencionadas - substituí­das por uma avaliação judicial acerca da possibilidade de reincidência do contribuiu para uma dogmaticamente controlável.

1984,

no . O , como se com um sistema de duplo binário, prevendo penas (principais - privação da liberdade e multa - e acessórias - de

e da e de segurança (detentivas -- para imputáveis, semi-imputáveis, reincidentes e quadrilheiros, e não detentivas - liberdade vigiada, proibição de freqüentar determinados lugares, exílio local e interdição de estabelecimento). Somente nos anos 70 percebeu-se entre nós um movimento que poderia exprimir algo como a ' 'movimento ced

o crítica do discurso penal tradicional.

sões, a denúncia de Howard vinha, dois séculos mais tarde, através e da que, ganhando publicidade, contrariavam frontalmente a crença na "boa penitenciária" (da qual Neves, em Minas Gerais, foi o grande mito). A inflação penal (ou, para usar o .dito espirituoso de Carrara, a "nomorréia penal"), agravada pela legislação da ditadura militar, dava origem à estratégia da descriminali­zação, sobre a qual quase todos os penalistas brasileiros escre­veram, na ocasião. O tema questionava o predomínio absoluto da resPosta penal penitenciária e instigava a criatividade dos juristas para superá-Ia com respostas menos destrutivas e es­téreis. A falácia do discurso penal tradicional minava tanto do irracionalismo retributivista quanto da hipocrisia preventista; as finalidades reais da pena, ainda que ocultas pelo discurso, começavam a impor-se àquele esquálido esquema. "Só a pena necessária é justa", dissera von Liszt em Marburgo; mas o problema é exatamente saber para quê e para quem a pena é necessária, quais os fins reais, e não ideológicos, por ela

128

perseguidos, e quais os sujeitos históricos . . Em 1977, importante alteração (lei 6.416, de 24.mal.?7) ate-nuou o rigoroso sistema do Código de 1940. pnmorosa crónica do movimento está Renê Dotti, 1980. Por

do , quais sejam:

à comunidade, e de fim de e multa

modelo jurídico que mais influenciou tal foi o , (lei de 26.lug.75, n? 354, e 24.nov.81, ~1? 689). Apos.a re­forma, o Código Penal brasileiro permIte sempre eVltar a execução de penas curtas (inferiores a um ano) ou dec~rre~tes

I imite de duração) de crimes culposas, por subStltUtlVOS '1 de direitos ou neste caso somente

para p~nas inferiores a seis meses .. 43., 44 e § .. O~ efeitos deletérios das penas curtas, smtetlz~dos por ,T~apa~l como' 'estigmatização; marginalização SOCIal; contagIO cn-

do ambiente , e b 'l' ~" (Le sanzionipenale sostitutive, Pádll:l, desresponsa 1 lzaçao ., ..

1985, ed. Cedam, p. 1) estão afastados de nosso cotidIano penal. Cortamos a ponta do iceberg. . . "

O sursis é hoje, entre nós, um "substltutlvo . ~e ~egunda linha; na primeira estão as penas res:ritivas de dlreItos e a multa substitutiva. Ocorre refletir, conslderan~o-se que o volu­me não cumprido de m~~dados de pr~s~o mal~ ~ monumenta~ déficit de vagas impedmam - estatlstlca e fISIcamente execução dessas penas curtas, sobre a significação de s~a formal erradicação do cotidiano penal. Cabe pen~ar na funç.ao simbólica dessa erradicação dentro de uma soc!edade cUjas contradições impõem maior nitidez na demarcaçao da~ exc1~­sões. A política dos substítutivos, reservando~a ex~lus~o p~n~­tenciária para grupos marginalizados de "verdad~lws'0'Fc:lml­nosos, legitima sua marginalizªção. ~alvo ~ r.ara mter~açao de algum poderoso (fato que, no plano ldeologlco, reahmenta a

129

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·~ da e ~.e nossa economia dependente colocam interrogações especí­Ílcas sobre o futuro de nosso sistema penal. Qualquer que seja a direção que a pós-modernidade imponha ao velho aparelho, contudo, é oportuna a observação de Bricola: as medidas

, nem para com os princípios da taxatividade ou da personalidade da responsa­

penal (Le misure alternative alla pena, no momento storico,

. Nada nos assegura queo direito do Brolhi!

ineficaz (até porque a em como o converte a liberdade em pura ficção científica jurídica), aonde se irá cortar doravante? .

REFORMA PENITENCIÁRIA À FRANCESA

o deputado Gilbert Bonnemaison, do Partido Soci~lista francês: encaminh~u ao Ministério da Justiça o relatório que produzIra, na quahdade de mediador do conflito instaurado pelo funcionalismo da área penitenciária. O relatório contém l?,O.sugestõ:s concr~tas para uma reforma do sistema peniten­CIano frances. Sem Ignorar q.ue nqssos problemas estão para os problemas franceses mais ou menos como um vatapá su-

130

cu lento está para um refinado prato da nouvelle cuisine, vale a pena saborear das propostas.

A

curvou do registra, urn desempenho insaüsfatório da

e uma contra as trata-se de não lançar na esteira de criminosos quem tenha qualquer possibilidade de ver-se

nido mediante uma alternativa penal. O remédio proposto para a superpopulação é audacioso e

criativo, à altura da doença: numerus clausus e vigilância Traduzindo: se uma penitenciária foi projetada

de o tem um entre os internos,

com melhor prognóstico de adaptabilidade social, e um domicílio vigiado eletronicamente. Ele vai para casa com uma no um tão logo seja transposto um determinado perímetro, dentro do qual lhe é facultado deslocar-se. E dentro da penitenciária, feita para 500 presos, somente ficariam 500 presos. Obviame~t.e, ~ violação das regras por parte do liberado o reconduzma a prisão, repetindo-se com outro detento a e:periência .. _ .

O relatório Bonnernaison propõe tambem uma reVlsao no programa de ampliação do sisteiJla penitenciário. Das 13.000 novas vagas que seriam abertas através da construção de novos presídios, não se construiriam mais cerca de 30% (3.400 vagas), utilizando-se os recursos respectivos na conservação e

restauração de prisões já existentes. Outra sugestão tem a ver com algo que aqui chamaríamos

de desburocratização da administração penitenciária. Tra­ta-se de desconcentrar tal administração, em favor de dire­torias regionais, que buscariam inserir os estabelecimentos na comunidade local, procurando-se um modelo de gestão finan-

ceiramente autônomo.

131

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A formação pessoal penitenciário é outro aspecto abordado. Além do curso de oito meses, haveria uma recicla­gem obrigatória a cada três anos. A diversificação no recruta­mento penitenciários, educadores, médicos, as­

não deveria impedir urna r-nlnu,e,v

uma politica , mais a possibilidade ascensão

condigna. A inexistência de uma polí­a converter os numa

do caos, e é muito perigoso quando se lida, por exemplo, com Aids.

A extensão dos horários, permitindo o funcionamento dos parlatórios até 19 ou 20 horas Ce facilitando, assim, a visita de 'familiares), é outra idéia interessante.

de assistência ao egresso (sob'a e

ser objeto de considerável reaparelhamento. O relatório la­menta que o número total de ássistentes sociais em todo o sistema penitenciário francês equivalha ao da grande Londres. , . dos internos junto à administração, visitas mtImas, defesa eficaz de seus interesses na justiça, são al­guns do demais assuntos sobre os quais se detém o documento.

Em passagem extremamente feliz, afirma o relatório: "Confusamente, nos espíritos, a prisão é concebida com ape­nas uma porta, a de entrada, o que dispensa a reflexão sobre o estado no qual os presos são libertados".

As propostas do relatório Bonnemaison são oportunas e merecem a reflexão de nossas autoridades. Se não temos ali uma exaustiva investigação sobre o futuro da prisão nas socie­dades pós-modernas, encontramos uma criatividade e um sen­so prático incomuns. Como na cozinha francesa, ficamos com uma certa fome, mas o sabor é irrepreensível.

132

LffiERDADEDE .. EXPRES SÃO E •. DIREITO

PENAL

CO~1UNICAÇÃO E CRIME

O homicídio é um terna arraígadamente insc~it? na tradiç~o Era o baslCO na receIta

cu

funções estéticas e que lhe atribuía. múltiplas e. densas significações da morte dotam este evento de um mar~ante mtere~~

_ Edg. ar Morin chamaria de "grande fascímo da morte se / . _ e tanto a narrativa épica quanto a construção dramatlca se 'valeram intensamente. Na motivação, na finalída~e ou sim­plesmente na ocasião do homicídio, outros fatos d~htu~sos -patrimoniais, sexuais, falsidades, etc - ~ostumam Imbncar-se, e a literatura procurou recriar tais aconteCImentos, dentro ~e.sua diversidade histórica e através do peculiar tratamento artlstlcO.

Os positivistas que fundaram a criminologia apro~im~ram­se dos personagens e entrechos criminais com uma fmahd~de curiosa e ingênua: demonstrar o acert~ d~. sua~ :eses, espeCIal­mente as classificações de biotipos delmquenclals. Num d~sses livros Perri dizia que seu objetivo era" demonstrar e confIrmar com ~xemplos tirados da arte os dados e as indicações da a~tro­pologia e da psicologia criminais". Naturalmente, qualquer dIVer­gência entre a arte e suas idéias significava que ~ arte estav.a "errada" e é saboroso ler a repreensão que o Jovem Fem, socialista: dirige a Ibsen por conta de urna fala individualista do

Dr. Stokmann.

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. ~!go distinto começou a ser feito, ainda sob a . A •

POSItIvismo, quando o criminólogo se valia do texto vlgencla ou • . .

pratlca seu mten~SSf'

,'" _ Mortos) aprende-se a cla:l~ nao menos do que através de John Howard (O Przsoes) e sua descendência U d' •. que tenha lido por exemplo ' m fretar de presIdIO brasileiro Gracil' , ,representantes da nossa literatura como

lano Ramos ( Memórias do Cárcere), Plínio COl1lO

o

especial merece o amplo gênero ao q 'J caram escritores como Doyle, Agatha ua se

e ' d romance G '

i:;~oberta. de seu autor constituem a matéria domi~ante e cab: , .gar ate que 'ponto algumas vezes a vida imitou a ~

~:~!~~ ~:i~%~ ~~flsu::~!as~~:e ~;to~t::~s ~~teti,ves H?l:~~:~ policial adotadas, João Luiz Pinaulperc b eaIS de mvestl~açao rio do romance policial d ' ; e. eu, no estatuto Ilterá-1.' , . e palses centraIs, um preconceito

c §,Sse, ImpedItIvo de que empregados e pessoas humildes o procurado autor do crime Não o '. . prática policial de países pe~iférico;e~ana vlgoros~men,te" na

~~~nas com, o sina: tr~cado? A constru~ãor:~~:~~r~~~:~:Ss~~:111~~ , .co~ lIvre transIto nos discursos de lei e ord

contnbUIções do romance policial. Recenteme em, re~ebeu lembrava "a introdução da lh . nte, Ruy Castro atuando de i uaI ara' mu er mes~rupulosa, perversa e fria,

feita por Das~ieI J:m~:t~a~~~~ os PbIOres sujeitos possíveis", . 1m, ca e atentar para o ro

reportagem, como o famoso A Sangue-Frio de Tru :;ance-ou, entre nós, os conhecidos trabalhos de José L m~n ap~te,

ouzelro; aqUI, a

134

ficção é atropelada pela realidade, e nem sempre é possível

mte21,an.tes de enredos

rnovidos, como "by of easy money and sex", influenciava e alterava padrões de comportamento das pessoas, especialmente das crian­ças. Simplificadamente, podemos dizer que essa hipótese deu origem a duas correntes opostas: uma' 'teoria da imitação" ou da

BUli), segundo a qual o espectador, o

com quem se ld~~ntlÍl(~a de segurança" (Mannheim), segundo a qual no espectador se

um efeito catártico inibidor da imitação ou identifica-ção. quem ambas as , como para quem "o espetáculo da violência ao mesmo tempo incita e apazigua" .

Simplificações costumam ser o melhor atalho para defonnar e às vezes ridicularizar um problema, qualquer que seja a longi­tude social em que se apresente. No Ocidente, muitos estudos que buscaram relacionar filmes e desajustamentos juvenis esque­ceram-se por completo de que para o herói real da acumulação capitalista o dinheiro é algo fácil, e que o sexo é um dos mais recorrentes motivos na propaganda de seus produtos. Pedrinho Guareschi lembra que afetichização dos meios de comunicação pennite à classe dominante falar da "influência perniciosa e desagregadora" ou do "conteúdo vulgar, violento ou pornográfico" dos programas editados por seus próprios veí­culos. O chefe da delegação da União Soviética ao II Congresso da ONU sobre Prevenção do Delito e Tratamento de Delinquente (Londres, 1960), adequadaInente chamado Smirnov, garantiu que os filmes de Tarzan provocaram um aumento na delinqüência

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juveniL .. O tema ensejou inúmeros estudos oficiais, como os inquéritos parlamentares da Inglaterra (1950), dos Estados Uni­dos (1955 e 1962), e a pesquisa do Conselho da (1966).

de

tes que o opinião pública, de que a representação cenas violentas provo­que um efeito criminógeno direto e imediato, em indivíduos dotados de personalidade normal". Frisam, contudo, que "não se pode dizer o mesmo acerca de indivíduos anormais ou parti-cularnlente a

mente ao processo de e "uma atitude de autocensura e seleção" na divulgação de cenas de violência.

Sá não só o apenas o seletor de canais) abre as portas de casa para o crime; também o jornal, submetendo-se a essa' 'fatalidade funcional" ingressa no rol dos suspeitos. Não está no formato contemporâ~ neo do jornal o berço da chamada "crónica vermelha". Estu­dando os folhetos que no século XIX narravam os crimes escan­dalosos, FoucauIt observava o uso reiterado de subtítulos como "detalhes", "circunstâncias", que teriam a função de "mudar de escala, aumentar proporções, fazer aparecer o grão minúsculo da história". Espelho das confusas manifestações das violências urbanas, a página policial dos jornais brasileiros deste final de século está a merecer investigações que decifrem sua estrutura básica e os processos seletivos correspondentes. O critério pro­posto por Barthes, num trabalho que Carlos Henrique de Escobar divulgou entre nós, levaria a admitir a coexistência da informa­ção criminal "reconhecida" (admitida e "classificável" como tal) e da informação criminal monstruosa e excepcional ou exó-

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tica e insignificante, mas em qualquer caso não "reconhecida" (= inclassificável), compondo um amplo mosaico do Jait divers policial. Para exemplificar, em momentos de intensa atividade de grupos de externlínio, notícias de chacinas se incluem docil-mente na informação criminal As

da ordem que a policia! em periódicos populares, igualmente merecem exame. Em seu estudo sobre um desses periódicos, Antônio Serra observava como os elementos discursivos promoviam a divisão do mundo em dois: "de um lado, o mundo normal, cujos índices são a forma organizada de família e a inserção na produção; de outro lado, o mundo marginal, patológico, tentando permanentemente se infiltrar e subverter a ordem do primeiro". Tal maniqueísmo, acopIado a uma história criminal, produz o efeito, percebido por

Junqueira, de "revelar e reforçar simultaneamente a rela-de cada com as

legalidade e da ilegalidade, ou seja, com o próplio Estado através de seu ordenamento jurídico e de seus aparelhos repressivos".

dissimulações de violências cometidas por agências da ordem (' 'autos de resistência" visivelmente artificiais, diagnóstic9 "tranqüilizador" de "guerra de quadrilhas" , etc) costumam ser acriticamente endossadas. "A publicação da versão policial como se fosse a verdadeira" foi incluída pelo jornalista Ancelmo Góes numa relação de erros mais grosseiros na cobertura policial, segundo Chico Nelson. Por outro lado, é chocante a despropor­ção do espaço distribuído pelas distintas causas de morte em comparação com sua importância estatística, bastando cotejar no Rio de Janeiro a centimetragern dedicada aos homicídios do trânsito (equivalentes a aproximadamente 30% do total de mortes criminais) e aquela deferida aos homicídios associados a alg~m crime patrimonial (equivalentes a aproximadamente 3 %, ou seja, com incidência 10 vezes menor).

Cabe analisar à parte o papel do repórter policial. Constante­mente exposto a relações perigosas, está sujeito a permear-se pelas perspectivas ideológicas do discurso de lei e o:~em, co?ver­tendo-se de (bom) repórter policial em (mau) polIcIal-reporter,

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como parece ter ocorrido algumas vezes no rádio. A vertente política é sem dúvida importante, mas devemos evitar reducio­nismos ilusórios, que vejam, tal como observado

a um processo em são ou com teor opinativo, ou minar. Chico Nelson menciona alguns desses casos, nos quais acusados ou vítimas foram impiedosamente massacrados antes do julgamento por uma pena informal de infâmia que faria morrer de inveja o mais feroz legislador do absolutismo. A imprensa tem o formidável de apagar da Constituição o

ou, o que é desconhecimento geral o Poder Judiciário e seus mentos, tematizado por Miranda Rosa e Walter Ceneviva, contri-

para isso, e que a crónica dos '~"h~rrw,~t~"

e A contribuição que uma lei de imprensa democrática poss~

oferecer a essas questões é em si outra - e delicada - questão. Provavelmente, nenhum pesquisador sóbrio conseguirá jamais dem?nst~ar efeitos criminógenos de Tarzan, mas haverá sempre alguem mteressado no princípio legal que estabeleça alguma marge~ de cont~ole ou censura., Igualmente, nenhum pesquisa­~o~ cn:lco obtena a demonstração de que jovens se rebelam por l~mtaçao de ~~rsonagens que recusaram um modo de vida egoís­tIco, competItl:o e excludente, e não por recusarem eles próprios este modo de vlda - mas haverá gente empenhadíssima em velar o espelho, para que não reflita a realidade. Numa lei de im­prensa democrática, o ingrediente básico é a liberdade.

138

CENSURA LEI DA IMPRENSA

uma lei que, caso a certos dignitários a prática de um crime e, por eles processado, deseje provar que sua imputação era verdadeira, ou seja, que o dignitário realmente praticara aquele crime, não permite seja tal prova produzida (art. 20, § 3?); de uma lei que faculta ao Ministro da ordem judicial, a <:>nrpr>r;

são da um se incitamento à subversão da ordem ou ofensa à e aos bons costu-mes (art. 63)?" Os alunos respondem em coro: "Essa lei é

é uma lei da censura". Na sala ao lado, o professor da B aos

alunos: "O que pensam vocês de uma lei que assegura a manifes­tação do pensamento e a difusão de informações ou idéias inde­pendente de censura (art. 1 ~); de uma lei que garante exclusiva­mente a brasileiros a propriedade, controle e orientação intelec­tual e administrativa de empresas jornalísticas (art. 3? e §§); de uma lei que protege o sigilo da fonte e impede seja por esse motivo o jornalista molestado (arts. 7? e 71); de uma lei que estabelece jamais constituir abuso a crítica inspirada pelo interes­se público ou a exposição de doutrina ou idéia (art. 27, ines. VIII e IX); de uma lei que circunscreve ao autor da matéria, ou sucessor legal, a responsabilidade penal, e limita em poucos salários mínimos a responsabilidade civil (arts. 37 e 51); de uma lei que tutela eficientemente o direito de resposta (art. 29 ss); de uma lei que assegura ao jornalista profissional, em caso de prisão, condições materiais compatíveis ('sala decente, arejada e onde encontre todas as comodidades'), sem sujeição a rigor penitenciário (art. 66)?" Também em coro respondem os alunos:

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, 'Essa lei é admiravelmente democrática, além nacionalista; é urna verdadeira lei da imprensa".

e por isso à a admiração da nos recor-

"'~'''~c, ... dessa lei conviveram'o rancor do governo para de comunic~ção (' 'um na sua garganta' ') e

a ' da opinião pública e do , pela grande reação dos jornais ao projeto original. A lei n~ 5.250/67 está impregnada desse dualismo congênito, capaz não só de causar confusões na hora do recreio, quando os alunos da Turn1a A encontram os da Turma B, mas também de levar à

os tribunais e expor as

a da está longe de ser uma questão entre jornais e governo, mas interessa fundamentalmente à sociedade civil e a cada pessoa _ não sem razão, Stuart Mill via na censura uma voz urna -'''''-''-'HUvUV de toda a raça humana -, é farisaísmo da "transição democrática" vigente que nenhum es­forço (salvo uma iniciativa na P!'hnavera de reformas legislativas do Ministro Fernando Lyra, frustrada por sua exoneração) seja feito para <\ cirurgia que esse texto legal tem que sofrer.

Encerrada a votação do primeiro turno, encontramos na futura Constituição)is linhas básicas que a lei ordinária sobre imprensa deverá adotar para submeter-se às diretrizes constitu­cionais. Entre as garantias individuais arroladas nos diversos incisos do artigo 5?, estão previstos a liberdade de manifestação do pensamento, vedado o anonimato (inc. IV); o direito de resposta proporcional ao agravo, e indenização por dano ma­terial, moral ou à imagem (inc. V); a independência de prévia censura ou licença para as atividades de comunicação (inc. IX); o acesso à informação e o sigilo de fonte (inc. XV). A questão da qualificação profissional foi remetida para a lei ordinária (inc. XIV).

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Nenhuma grande novidade, corno se. vê. Mesmo a vigente lei 5.250/67, esquizofrenia à parte, conhece todas essas diretri­zes. Não difícil, a escoimar de seu texto as

e democrática.

Na ternos que levar em conta a observou

"com todas as suas limitações e distorções" (e, entre essas, devemos incluir aquela que Vishinsky chamou de "escravização da imprensa pelo capital") "a tolerância democrática é, em qualquer circunstância, mais humana que uma intolerância insti­tucionalizada, que sacrifica os direitos e liberdades das gerações

futuras". como o atual 15, que a estado ou informação sigilosa, não pode existir numa lei democrática. O segredo de estado obriga os altos funcionários públicos que o conhecem e seus só eles ser por sua inconfidência. No célebre processo The New York Times vs The United States of America, o Juiz William O. Douglas recordou o uso de acusação para reprimir" a divulgação de matérias embaraçosas para o Poder Executivo". No mesmo caso, o Juiz Potter Stewart, considerando os enormes poderes de que, no regime presidencialista, dispõe o Executivo para certas áreas, concebia a "opinião pública informada e crítica", consubstancia­da numa "imprensa atenta, conscienciosa e crítica", como o instrumento por excelência para, naquelas áreas, "proteger os valores de um governo democrático" .

É preciso, igualmente, aprimorar nossa própria experiência, e um bom exemplo está na questão da chamada responsabilidade sucessiva. Segundo. o princípio geral do Código Penal, todas as pessoas que concorrem para a prática de um crime respondem por ele: se se tratar de um homicídio, por exemplo, responderão quem mandou, quem vigiou a vítima, quem comprou o revólver e quem atirou. Imagine-se esse princípio aplicado à imprensa. Um

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o autor

de redação, ou redator-chefe, com matérias não assinadas). Nossos tribunais costumam quanto aos requisitos de autor; nesses casos, contentando-se com uma responsabilidade "legal" inadmissível e inconstitucional. Nín-guém pode ser condenado por afirmações das quais sequer tomou

se contra a No texto da vigente lei n~ 5.250/67

irredutível, uma lei da censura e uma lei da imprensa. Um

bem a prensa pune o abuso da liberdade. A lei da censura pune a liberdade como se fosse um abuso" . _._ ~~ .. ""

• ",$\.'."" 1 """,-,

tempo, a liberdade já foi excessivamente punida.

REPRESSÃO A FAVOR DA ARTE

artigo sobre a falsidade artística, Sylviane Durrande recorda que o falsário David Stein havia pintado 400 telas' 'à" Matisse, Léger, Miro e Braque, e que, segundo estimativa do Juiz Sauret, o famoso Fernand Legros houvera vendido cerca de dois mil quadros falsos (Revue de Science Criminelle et de Droi! Pénal Comparé, 1989, n;' 4, p. 682). Como estamos no Brasil,~ em .matéria de proteção penal à obra de arte plásti~a?

Nao ~l~pomos de normas penais que atendam aos proble­mas especlfIcos da obra de arte plástica. Quando, em 1980, as

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disposições do Código Penal concernentes a direitos autorais 184 a 186) foram alteradas, através da lei n? 6.895, de

.80, o objetivo visado era principalmente a c As

bem como as e um instrumento de tutela direitos , ao

mas sempre fazem menção naquela' 'advertência" ao dos . A reprodução para fins

qualquer obra de arte - a - converteu-se em crime de ação penal pública, punível com reclusão de um a quatro anos e multa.

Contudo, para a obra de arte plástica as questões são um pouco dis,tintas.

, ao vender a obra de arte plástica, seu autor o de nos termos

da lei 5.988, de 14.dez. 73, dispositivo duramente pelos estudiosos de direito autoral (p. ex., Gama Pellegrini, Direito de Autor e as Obras de Arte Plásticas, S. Paulo, 1979,

RT, p. 26ss) e que um do subscrito pelo Senador Jarbas Passarinho), fundamentado em conclusões do Encontro Nacional da Cultura de Salvador, tentou, sem êxito, alterar.

Enquanto para a literatura, a música ou o cinema os conceitos de reprodução e contrafacção (que supõem uma obra original anterior) resolvem a quase totalidade das hipóte­ses de violação, para a obra de arte plástica fJ1lham constante­mente, porquanto aqui já não se trata - na maior parte dos casos - de copiar uma obra anterior, senão de imitar os caracteres estilísticos do artista, de sorte a atribuir à peça autónoma (óleo, gravura, escultura, etc) uma autoria falsa.

A proteção penal da obra de arte plástica, entre nós, é sempre resultado de uma improvisação livre entre três temas: o tema da violação do direito autoral, o tema do património e o tema da falsidade documental. Se Tido comprar um quadro falsamente atribuído ao artista Mévio, terá que contar com a hipótese remota de que Mévio considere ter ocorrido violação

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de direitos autorais (caso raro da contrafacção de obra anterior), e ainda que Mévio se disponha a requerer investiga-

sobre a autoria do quadro falso, e, descoberto o autor, processá-lo! Dentro do tema do patrimônio, é Mévio quem teria de contar com a boa vontade em que o quadro pelo qual pagou uma fortuna é dando-se vítima de estelionato; caso Tício preferisse, no lusco-fusco das expertises contraditórias, disputar a autenticidade, a pro­teção ao patrimônio, asfixiaria a proteção à de arte: sem um "lesado", não há na prática Por fim, quando acontece o processo, a solução pode gravitar melancolica­mente em torno da falsidade gráfica da "assinatura" do qua­dro, dentro das variáveis criminalísticas da falsidade docu­mental, mais ou menos como se a obra fosse um contrato ou um s~

visivelmente insuficientes, como se A promulgação de normas específicas para a proteção

penal da obra de arte plástica é fato comum em nossa família jurídica. Talvez a mais antiga seja a lei de 9 de fevereiro de 1895, em cuja origem, entre outros casos, estava o do Corot falso adquirido por Alexandre Dumas Filho, sub­metido à Courde Paris em 1885. Ainda não circulava, então, a piada segundo a qual Corot pintara 1.500 telas, das. quais 2.500 estavam nos Estados Unidos.

Entretanto, a legislação que poderíamos tomar como mo­delo, adaptando-a a nossa realidade, é a ita1i5U1a (lei n.O 1.062, de 20.nov.71), sobre a qual PaoIa Coco empreendeu há dois anos amplo e valioso estudo (Teoria dei falso d' arte, Pádua, 1988, ed. Cedam). Ao lado da proteçãopenal, cujos dispositi­vos podem ainda ser aprimorados, estabelece tal lei uma série de medidas de inquestionável eficácia preventiva, nas quais reside seu maior mérito.

Assim é que todas as pessoas físicas ou jurídicas que se dediquem às atividades de venda ou a exposições com finali­dade de venda de obras de arte plástica (a lei italiana inclui também objetos de antiguidade ou de interesse histórico ou

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arqueológico) devem inscrever-se numa seção especial do registro comercial (art. 1 ?). Sempre que ocorrer uma venda, o titular da empresa ou organizador da exposição deve à disposição do adquirente atestados autenticidade e de

disponíveis; na sua em cujo verso se sua ou se sua procedência (art. 2?). Seguem-se as disposições penais: o tipo básico (art. 3?) de contrafacção, alteração ou reprodução da obra de arte, com a de proveito ilícito (que nos parece insuficiente resolver o problema da es-tilística fraudulenta) e os tipos" satélites" de autenticação ou perícia falsas dolosas (art. 4?), aos quais se cominam penas privativas da liberdade (3 meses a 4 anos), de multa, de suspen­são do exercício do comércio (até 6 meses ou, em caso de

da sen-

(arts. 5~e6:'). Normas de o confisco das obras falsificadas, bem como retiram a prova pericial dos órgãos técnicos ordinários, claramente incapaci-

para tal a de dos pelo Ministério da Educação e Cultura, ouvido o ,?onselho Superior de Belas-Artes, e o próprio artista, quando VIVO (arts.

7:' e 9:'). No momento em que os jornais anunciam a elaboração de

trabalhos enciclopédicos sobre a arte brasileira, não é exces­sivo imaginar que, na confluência das atividades das S.ecre­tarias estaduais de Cultura com o órgão federal, possa CrIar-se uma câmara com atribuições para registrar a produção dos artistas e expedir certificados de autenticidade de obras de

arte. Em 1977, um projeto de lei do Senado (n? 111, subscrito

pelo Senador Vasconcellos Torres) propunha que nenhuma obra de arte seria comercializada sem o "Certificado de Autenticação' " emitido pelo autor, por seus sucessores, ou por museus. O assunto poderia ser ~etomado. . ~

Os artistas interessados em eVItar a prohferaçao frau­dulenta de seus trabalhos, os museus e colecionadores, bem

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como os marc~ands interessados em negócios honestos e cla-ros, empres.tanam por certo a colaboração. alguns anos, a falsIdade artística entre não passaria de um mo-

que ilícito ,com penas e

de reprimir. Essa é, são a favor da arte.

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se encar­, a única espécie de

. VIOLÊNCIA

MORTE CRIMINAL NO RIO DE JANEIRO

Pode parecer estranho, depois que teorias modernas -e suas derivações - reduziram

as do na análise do delito, aproximar três classes distintas de delito precisamente pelo resultado e apreciá-las conjuntamente. Pois é disso que se trata, quando pretendemos examinar o desempenho estatístico dos homicídios dolosos, homicídios culposas (ocorridos em circulação viária) e latrocínios ou roubos seguidos de morte, na região metropolitana do Rio de Janeiro, de 1982 a 1986. Claro está que a empresa só se torna justificável e exeqüível quando se renuncia por completo à perspectiva da dogmática jurídico-penal e se procura recuperar o denominador comum das três classes - o resultado morte - em nível de fato social com importantes conotações e significado. Refoge completa­mente à modéstia do estudo qualquer incursão nessas conota­ções e nesse significado, seja por uma descrição antropoló­gica, à maneira de Philippe Aries, do que seria a "morte criminal" - mors repentina, não inteiramente despida dos preconceitos da gesta medieval, e ao mesmo tempo' 'morte escondida" pela medicalização, do eventual atendimento hOs;" pita lar à inexorável burocracia da autópsia -, seja pela consi­deração, à maneira de José Carlos Rodrigues, do papel por ele representado na estruturação do poder dentro da sociedade industrial.

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Nos levantamentos estatísticos da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, a região metropolitana é constituída pelo Município do Rio e mais 11 municípios contíguos. A população estimada total 12 municípios em 1

o de 9.926.717 . os que fiquem o cometimento de um crime chegado ao conhecimento da de PoHcia ensejam um "registro de ocorrência".

resultam da soma tros de ocorrência.

Tomamos três espécies de morte que constituem a esma­gadora maioria das cifras criminais: a morte por homicídio doloso, a morte por homicídio culposo no trânsito, e a morte por latrocínio ou roubo seguido de morte. A morte por homicí-dio doloso é mente morto por outrem. A morte por homicídio culposo no trânsito (doravante MI) resulta da falta de cumprimento dos deveres de atenção e vigilância por parte de condutores de

haver fora trânsito exemplo, alguém que imprudentemente brinca com uma arma carregada, matando um circunstante), porém sua incidência é desprezível perto do volume de mortes associadas à circulação viária. Por último, a morte que se segue a um roubo, ou a morte em latrocínio (doravante MR), engloba duas hipóteses tecnicamente bem distintas, mas que foram aqui agregadas: o caso do ladrão que, ao empregar violência para o roubo, se excede e involuntariamente causa a morte (roubo seguido de morte) e o caso do ladrão que mata intencionalmente para roubar (latrocínio). É lamentável que, não constituindo delito pela legislação brasileira a omissão de medidas obrigatórias de segurança do trabalho, e nunca se explorando, salvo por exce­?ão, a vertente de um homicídio culposo em tais casos, este­Jam ausentes de nossas tabelas as vítimas fatais de acidentes no trabalho.

A soma das MOs, MTs e MRs constitui o total de mortes (doravante TM) criminais no Rio de Janeiro. Este TM não

148

cessou de crescer, de 1982 a 1986 (cf. quadro I). A taxa desse crescimento é regular, salvo de 1983 para 1984, quando se observa a elevação. O TM, que era 4.246 em 1983, salta para 5.1 em 1 (22,27%). De 1982 , o ™ aumentara 11, ; de 1984 1 , 7 1985

, Dentro desses TMs relativos a anos, a

das MDs, MTs e MRs obedecem a tendências bastante percep-tíveis. As nítida curva ; elas, que

representavam, dentro do TM de 1 , 59 71,00% em 1985, e se mantiveram em 70,95% em 1986. Também aqui a maior elevação se deu de 1983 para 1984 (cf. quadro I), correspondendo a um aumento de 30,41 % nas MDs. As MTs sofrem de 1982 para 1984 notável redução (de

em a 28,65% enJ 84), estabilizando-se

neste . As seu em e 1 (ocupando, respectivamente, 3,08% e 3,lÓ% dentes TMs), reduzindo-se à menor proporção em 1986 (1 ,95 %). É curioso observar q ue a comoção social produzida e divulgada pelas mortes a roub(), . pouco significativas, costuma desencadear campanhas de lei e ordem - enquanto que a morte no trânsito, estatisticamente responsável por quase um terço do total de mortes, ~o período examinado, é considerada comumente da perspectlva de um episódio individual "infeliz", não se ~~brando a~ Estado, com a veemência que a proporção sugenna, as medidas ade-

quadas ao controle"êlos fatos.

QUADRO I

Ano 1982 1983 1984 1985 1986

n? % n? % n? % n? % n? %

MDs 2266 59,39 2717 63,98 3543 68,23 3958 71,00 4202 70,95 ,~

MTs 1447 37,92 1398 32,92 1488 28,65 1477 26,49 1604 27,08

MRs 102 2,67 131 3,08 161 3,10 139 2,49 116 1,95

TM 3815 100 4246 100 5192 100 5574 100 5922 100

149

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A distribuição da incidência de MDs, MTs e MRs pelos meses dos anos confirmou algumas e negou outras. Para uma das , tomamos os quatro meses de maior em

As se concentram de a fevereiro. Novembro, e , nos cinco anos examinados, estiveram quatro vezes entre os quatro meses de

incidência. e duas vezes. . As MTs assinalam incidência em janeiro e Julho (ambos, três vezes entre os quatro meses de maior inci­dência durante os cinco anos examinados). São meses de férias escolares. Surpreendentemente, porém, maio registra maior concentração (quatro vezes). Como junho também se apre-senta vezes t;ntre os se um bloco de além de

As MRs apresentaram maior con~entração nos ~eses d~ janeiro, abril e dezembro (três vezes). Ao contrário do que se

; mês ca - o carnaval nem uma só vez, nos últimos cinco anos esteve entre os quatro meses de maior incidência. Como outu­bro e novembro comparecem duas vezes, seria possível, a exemplo do que se passa nas MDs, pensar que também as MRs tendem a ~oncentrar.-se nos meses em que a região metropoli­tan~ ~o RIO de J!nelrO, a um só tempo, vive sua alta estação tunstIca de vemo, com aumento de pypulação flutuante, e sofre as campanhas consumistas de fim de ano.

Se um exame individualizado das MDs fosse procedido, em amostragem significativa dos registros de ocorrência en­contra?a~os, muito provavelmente, a constatação de' que eleva~lsslma quota dessas mortes está associada à atuação de quadnlhas em choque ou grupos de extermínio (com ou sem participa.ção de funcionários, a chamada "polícia mineira"). Com efelto, a observação revela que quando, em determinada área - favela, bairro, etc -, por alguma razão (desde morte ou prisão ~e chefes, até o expansionismo de grupos rivais), duas quadnlhas procuram o domínio do comércio de drogas

150

ilícitas, sucessivos homicídios alicerçam a acomodação. Nas favelas, a ausência do Estado e seus serviços confere ao trafi-cante um status privilegiado; de

e estupradores. estatal,

vezes ' costumam especiais de proteção ("polícia mineir~"), COlIl ~u sem " cipação de funcionários, cujo método é um so: ~ .sumano extermínio dos ladrões. Não temos dúvida em admItir, como hipótese para pesquisa, que não menos de 70% .das ~Ds da

itana do de mclUIr-se no uma

excederia 30%, se referiria a homicídios cunscritos a um conflito interindividual. A confirmação

coloca em plano a responsabilidade do Es-

tado na maior das O mesmo raciocínio pode ensejar investigação interes-

sante quanto às MTs. A omissão na fiscalização das normas do trânsito viria em primeiro lugar. Numa cidade em que há ~ hábito de não respeitar o sinal luminoso após as 22:00h, e dever do Estado colocar um fiscal ao lado de cada sinal. As de­ficiências de sinalização luminosa ou estatigráfica viriam em . segundo lugar. A inépcia na administração da for:n~ção ~o motorista (exames rigorosos), e, pior ainda, na admlmstraçao de suas infrações, com imediata cassação da licença sempre que fosse o caso, viria em terceiro lugar. Não há dúvida de que tais fatores _ todos de responsabilidade do Estado - alcan­çariam elevado percentual, talvez próximo de 50%,. caso se pesquisassem, de maneira individualizada, os ~eglstros de ocorrência das MTs e os prontuários dos respectivos autores no Departamento de Trânsito. A semelhante percentual cor­responderiam, aí sim, a imprudência individual, os excessos,

ou mesmo a infelicitas facti.

151

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./

Não se pode deixar de notar a maior incidência das MDs recai sobre integrantes da população mais carente, mais distante de qualquer intervenção do poder pú-blico. Esse dado, , se revelaria facil-

. Numa

em que vimos a "morte criminal", valeria a pôr em relevo essa outra forma de matar que o Estado utiliza imperceptivelmente. Quando o texto da Convenção Americana sobre Direitos Hu­manos estipula que o direito à vida "deve ser protegido pela lei" (arL 4:'), não , ao das de rnorte, cobrar do Estado concreta pelos quais, há mais de 25 anos, Bobbio clamava?

o GRANDE FACÍNORA

Não, brasileiros urbanos, nosso facínora mais atuante, nos­so inimigo público n? 1, o recordista absoluto em matar-nos e mutilar-nos, não é o temível assaltante ou o traficante aquadrilha­do. Essa gente agressiva e freqüentemente cruel não conseguiu ultrapassar a média de modestos 2,65% (no Rio), 5,12% (em São Paulo), 2,08% (em Salvador) e aproximadamente 2,00% (em Recife), do total das mortes criminais, nessas cidades, no período de 1982 a 1986. O superbandido de que estamos falando, ao contrário, foi responsável, ao longo desses cinco anos, por uma média de 30,61 % (no Rio), 38,42% (em São Paulo), 64,74% (em Salvador) e 34,80% (em Recife) daquele total. No país todo, só no ano de 1986, fez ele exatas 27.306 vítimas fatais e feriu nada menos que 399.404 pessoas. Isto é, 75 mortos e 1.094 ferídospor dia!

152

O curioso é que essas vítimas só episódica e raramente se insurgem contra ele, através de alguma manifestação - quase

de local, e por exceção a Nosso carrasco é tratado com tolerância e

de suas de nome

do papel central

nas urbanas em nosso país, "Mortes Anunciadas: a

América Latina", realizado na cidade de Salvador, por louvável iniciativa do Instituto IIJ.teramericano de Direitos Humanos e do Governo Democrático do Estado da Bahia, é um desafio que não

pode ficar sem resposta.

tade da mas sifn deveres de cuidado) são por excelência os modem i -dade. Suas atuais feições eram desconhecidas pelo direito antigo.

de Carlos V a (1532) como o mais reconhecível precedente legislativo. Nosso Código Criminal imperial (1830) simplesmente ignorava os cri­mes culposos, introduzidos apenas por lei de 1871 (não por acaso, após a implantação das primeiras estradas de ferro, e ao início do decénio que Caio Prado Júnior assinalou ser' 'um dos momentos de maior prosperidade nacional"). Talvez por isso, por se vincularem historicamente à idéia de progr;esso material (o que bem se reflete na teoria jurídica do "risco.pe~tido"), os crimes culposos não adquirem nitidamente uma identIdade moral delituosa. E isso não se passa apenas socialmente; entre os juristas, como observava Quintano, os crimes culp~sos não se libertaram inteiramente de sua progénie privatística. E como se o homicídio culposo, bem ao contrário do homicídio doloso (intencional), fosse um assunto em cujo tratame?t~ dev~ssem prevalecer as variáveis teóricas e. prática~ ?o dlf~ltopn."ado (como numa indenização por dano mvoluntarlO a COisa alheIa), e

não do direito público.

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Esse sanguinário, convertido pela desesperança daquilo que Jurandir

"n"'U'vHÁ " principal de sete a 14

sem um papel damental em certas linhas preventivas de atuação, como por exemplo chamando à prestação de novos exames ou mesmo cassando a habilitação do condutor que superasse determinado nível de infrações cometidas. Isso pressupõe informatização total

. de prontuários dos condutores habilitados, e exação

de seria também necessário refotmar a legisla­

incluir ou atribuir sanções mais graves a algumas a o

motorista se recusa a parar para inspeção, ou foge após um acidente.

Ao sistema penal, contudo, toca papel decisivo. Como poderíamos conceber os instrumentos legais e judiciais para essa batalha? Alinhemos alguns tópicos.

1. Antecipar a proteção penal criando novos delitos. A justiça penal se ocupa do trânsito basicamente a propósito dos crimes culposos de homicídio e lesões corporais (arts. 121, § 3 ~ e 129, § 6~ CP) e das contravenções de falta de habilitação para conduzir veículos e direção perigosa (arts. 32 e 34 LCP). A tais infrações corresponde uma escala penal cujo patamar mínimo é adequadamente baixo, mas cujo patamar máximo é escandalosa­mente insuficiente (por exemplo, a pena máxima possível para uma lesão corporal culposa grave - suponha-se a perda das pernas, ou o resto da vida numa cadeira de rodas -, agravada pelafuga, cometida por reincidente com todas as circunstâncias desfavoráveis é detenção por um ano e quatro meses (art. 129, § 7? CP). A direção perigosa, que necessariamentç "põe em perigo

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a segurança alheia", é punida com prisão simples 15 dias a meses ou multa. A falta é tão-só com

é -em velhos para outras

nel.:er como ou corporal culposa, devendo constituir, como ocorre em

, delito a recusa melhor nome se ao refus constituir um delito. A embriaguez ao volante, HHJ~,/V'''J.,"'U

produção de qualquer outro resultado de dano ou de perigo, igualmente constituir um delito. A violação de regra de trânsito - inclusive ou especialmente o excesso de velocidade - gera­dora de perigo concreto enseja a construção de uma importante

do . O violar a interdição para que seja ou administrativamente, deve ser submetido a pequena pena priva­tiva de liberdade executada (insusceptível de suspensão). Por fim, tentar a omissão socorro, tão freqüentemente em série diante de uma vítima cujo sofrimento não sensibiliza o rush.

Em segundo lugar, impõem-se a cominação de penas mais adequadas bem como a revisão das escalas penais, para a devida correspondência com a danosidade social de tais condutas.

2. Um problema especial: a embriaguez ao volante. A mais preocupante característica do condutor ébrio assinalada pela cri­minologia descritiva é a reincidência. Middendorff menciona pesquisas realizadas sobre grupos de infratores embriagados, que encontraram antecedentes penais nas elevadíssmas taxas de 51,20%, 51,33%, 72%, 46,7% e 47,56%. Por isso mesmo, é insuficiente a criminalização da conduta de embriaguez ao volante, sendo fundamental um programa de reabilitação para tais infratores, como se fez, por exemplo, no Estado da Virgínia. Ao mesmo tempo, um férreo sistema de interdições para dirigir deve ser usado para esses casos.

3. Responsabilidade de terceiros não-condutores. Na cria-

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ção de novos delitos, não se pode esquecer a responsabilidade penal de terceiros não-condutores, e aí temos algo a aprender com o direito espanhol. 1967, o código penal espanhol foi alterado no que concerne aos chamados delitos contra a se-

do e o bis b passou a , 'obstáculos

Sucede que a letalidade dos acidentes que envolvem colisão contra obstáculo é muito superior aos demais. Em 1971, houve na Espanha 3.621 com4.247 mortos: isso fica um percentual de 11 de mortos por acidente. acidentes fatais, 56 se deveram a choque 'contra obstáculos, e produziram 155 mortos, o que representa um percentual de 278,5% de mortos por acidente.

Impõe-se criminalizar a conduta de terceiros que causa ou causar o acidente. Pense-se na ação que é exer-

a de contraven-cional, contra os sinais estatigráficos em nossas ruas e estradas. Pense-se igualmente no descaso com o qual o poder público, por

de obras e reparos em vias circulação, predispõe em crateras ou tapumes não sinalizados autênticas armadilhas.

A responsabilidade penal de fabricantes que não observem prescrições obrigatórias quanto à segurança dos veículos, emana­das do órgão público competente, é também matéria-prima para novo tipo penal. Por que nossos carros, para ingressarem no mercado de países centrais, devem fazer tantas adaptações e acréscimos em itens relativos a segurança?

4. A vítima. A vítima, esse grande esquecido do episódio judiciário-criminal, tem no acidente de trânsito peculiaridades a serem examinadas. Em primeiro lugar, a possibilidade econó­mica de reparação do dano pela responsabilidade civil do condu­tor (ou da pessoa jurídica de quem seja ele preposto) é aqui elevadíssima, ao contrário, por exemplo, das vítimas de assalto. Portanto, deve-se abandonar, aqui, a idéia modema da organiza­ção estatal de um fundo para a indenização da vítima. A admissão no processo, reformada a legislação, da parte civil, faria com que a sentença condenatória criminal já estabelecesse a indenização.

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Por outro lado, a vítima-colaboradora deve ser devidamente considerada. A travessia de auto-estrada por pedestre, fora de faixa por exemplo, deve constituir infração adminis­trativa grave.

.,..,pr",,"» a nova com a partIClpação de juízes togados e leigos, para o célere processo e julgamento dos crimes do O sucesso de tal

em nossa a) da popular, devendo convocar-se a sociedade a colaborar na indicação de juízes leigos; b) no funcionamento 24 horas. por dia, alternando-se os juízes (togados e leigos); c) no aparelhamento material e técnico, ensejando sempre o imediato julgamento (o que pressupõe informações técnicas criminalísticas e médico­

ao dos casos); d)a da

tindo a aplicação rápida de sanções reais os delitos significativos, e um sistema de diversion para os delitos mais leves.

Como se vê, impõe-se reformar completamente a legislação de trânsito; inúmeros anteprojetos, elaborados ao longo dos anos, podem oferecer um ponto de partida, mas destaca-se em nossa opinião aquele elaborado por Comissão da OAB, em 1973, da qual foi relator Heleno Fragoso.

É ilusório, contudo, supor que apenas uma reforma de leis venha a alterar substancialmente o quadro. Uma sociedade com­petitiva e egoística não será solidária e fraterna na hora do fush. Um Estado cujos agentes fraudam diariamente a lei não produz cidadãos que respeitem o sinal luminoso. De nada adiantará um novo código de trânsito se não revogarmos a lei de Gérson, que reduz a prática democrática à igualitária possibilidade de que todos violem as regras legais. A campanha cívica da eleição presidencial oferece um marco para que se tente intervir sobre o "discurso cínico" que ao mesmo tempo conduziu o país para o pântano onde se encontra e converteu o trânsito em nosso grande

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facínora. Um facínora cujo rosto é um painel caleidoscópico, com nossos próprios rostos.

ti ou atingidos , costumam

"Essa estória de direitos humanos é uma piada; tem mesmo é que morrer." Na maior parte das vezes, quem diz isso escutou antes algo parecido, e às vezes da boca de um policial. Essas palavras, que agora repete, o tocaram, parecen-

de e mais

humanos são direitos que toda pessoa tem - independente do que seja, tenha, pense ou faça. Nem

No antigo e na os eram diferentes de acordo com a condição da . o

senhor feudal, proprietário das terras, tinha direitos diferentes do servo que as cultivava. No Brasil, no século passado, os escravos não eram considerados gente para o direito, e sim coisa. Até as penas eram diferentes: a pena de açoites só existia para os escravos. A idéia principal dos direitos huma­nos é que toda pessoa tem certos direitos que o Estado não pode tirar nem deixar de conceder: vida, trabalho, remunera­ção digna, aposentadoria, instrução, liberdade, manifestação de pensamento, livre associação e reunião, etc.

É claro que se um homem pratica um crime - um homicí­dio, um roubo, um estupro, um furto -, ele deve ser proces­sado e julgado. Os documentos dos direitos humanos também prevêem isso.

Mas não pode ser espancado. Não pode ser torturado. Não pode ser morto. Sua família não pode ser humilhada. Seus vizinhos não podem ser importunados e constrangidos. Casas de inocentes não podem ser vasculhadas.

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Se aqueles que assaltam, violentam crianças ou mulheres, furtam não são presos, processados, julgados e condenados, a culpa não é dos direitos . A que um que testemunhas, ou que,

a ser preso. Basta a

que a Justiça decreta a prisão. Se o acusado for preso , que não têm fiança, se

bons e inofensivo é que a pode liberá-lo antes do julgamento. E se for condenado, a lei programa que na penitenciária ele deve ser reeducado e apren­der um ofício.

Por que nada disso acontece? Por que é tão fácil praticar Por que tantos crimes são cometidos? Por que muitos

não são e Por que as são imundas escolas do crime? Culpa dos direitos humanos, culpa dos bandidos, ou culpa de instituições que não cumprem com seus deveres?

É que' 'bandido tem é " e aí oprimindo toda uma população, divulgando que os habitan­tes das favelas e dos conjuntos e bairros populares têm propen­são para o crime.

Propensão para o crime tem é o Estado que permite a carência, a miséria, a subnutrição e a doença - em suma, que cria a favela.e as condições sub-humanas de vida.

É fácil dizer que' 'bandido tem é que morrer" e invadir casas de famílias honestas, de trabàlhadores, e consentir que disparos perdidos matem inocentes.

Difícil é cobrar do Estado o respeito à lei e a proteção dos direitos que toda pessoa tem, a começar pela vida.

Perto da culpa do Estado, a do bandido é pequena. E o bandido, a gente ainda consegue prender. processar. julgar e condenar. E o Estado?

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Há alguns anos, c~omca publicada no Jornal do Brasil de futebol

viril com a desleal. pode ter sido o e um

menos entre juristas, tem um preço muito alto.) Provavelmente nenhum órgão elabora uma das lesões

e das do

jogos de futebol. Mas todos conhecemos. bem as cenas: o craque impiedosamente caçado até a ruptura dos ligamentos, a cotovela­da na boca que decide a primazia para alcançar o lançamento, a cusparada no rosto e, em momentos de violência explícita, a tradicional tesoura voadora, aí

acontecer de pessoas, como ocorre, por exemplo, quando finais de campeona­tos nacionais são transmitidas pela televisão. A prova do que aconteceu é de so­bra, exames médicos - com radiografia - imediatos, e, de algum tempo para cá, gravação em tape de todos os pormenores. Todo mundo sabe que Fu]ano agrediu e que Beltrano foi agre­dido. Contudo, só raramente esses crimes - o nome, perdoem, não é outro - são encaminhados para tratamento legal. E quando isso ocorre, é que as normas da violência admitida foram violadas; a última vez em que se pensou nisso, segundo me recordo, um jogador havia discretamente pisado no rosto de seu adversário prostrado. A regra é - como no resto da vida nacional - nada acontecer.

Vale a pena recordàr, simplificadamente, como a teoria jurídica resolve a questão das lesões em competições esportivas. Existe unanimidade quanto à conclusão de que lesões corporais ou mesmo mortes decorrentes de prática esportiva regular ( = com observância das regras do esporte) não configuram crime. Para certos teóricos, o fundamento dessa descri mi nação está no

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consentimento da "vítima" (WelzeI, Grispigni); para outros, no fato de o "acusado" estar exercendo regularmente um direito (posição predominante no Brasil: Fragoso, A. Bnmo); alguns conciliam a intervenção dos dois princípios (Soler). Moderna-mente, o fundamento da da conduta

tende a predominar, que mente (Zaffaroni). Trocando em miúdos: o Estado, através da lei do orçamento, destina verbas para incentivar a prática de esportes e através de outras medidas servÍços vam desenvolver aquela prática, tudo no pressuposto dos cios educacionais e sanitários que dela resultam para a popula­ção. Logo, a prática de esportes tem que ser entendida como uma conduta socialmente adequada, que é autorizada e estimulada por textos legais. Lesões corporais ou m9rtes que decorram do regular exercício desportivo são scjáveis de uma conduta mente c~nfigurar crime. Nesses casos, como disse Delogu em seU trabalho sobre o delito esportivo, "temos a lesão mas falta a infração". Pense-se, por exemplo, no boxe. Anota com proprie­dade Zaffaroni que uma de suas regras (conhecidas, endossa e fomentadas pelo Estado, através de inúmeros atos legais ou administrativos) prevê como efeito normal de sua prática um golpe que afete de tal modo a integridade física do contendor, que ele não consiga, dentro de 10 segundos, prosseguir o jogo. Os constantes supercílios rompidos, narizes fraturados, efeitos neu­rológicos de médio prazo (a n~ura fantástica do ex-campeão arrastando os pés) e mesmo mortéS, ocorridas dentro das regras do esporte, não consubstanciam juridicamente os crimes de le­sões corporais ou homicídio. (Uma outra questão, que ora não se discute, é se o boxe, tal como praticado hoje, realiza a aspiração geral dos esportes.)

Existe, porém, outra unanimidade - e esta, sem discrepân­cia de fundamentos. Todos os teóricos afirmam que a descrimi­nação do fato está "condicionada à observância das regras do jogo" (Fiore). "Violado o regulamento, a conduta será criminosa" (Zaffaroni). Fragoso dizia que "a ilicitude surge,

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aqui, com o abuso, representado pela transgressão das regras do jogo". Em suma, quando o jogador abandona as norr~as da

(se se mantiver nelas, pouco que o adversário se

mente a a temos é o crime previsto no do Penal. Saímos

. da área esportiva, ingressamos na policial-judiciária. Talvez a pena, como entre nós há 10 anos

, cnar um crime para essas . Con-trariando a opinião majoritária dos teóricos, creio que só cabe a incriminação de condutas intencionais (dolosas), e não daquelas nas quais ocorreu mera precipitação imprudente do atleta (culposas). Mas enquanto não se chega a isso, temos lei, e a

de de uma da para as lesões a de 47, inciso II do Código Penal). Largou a bola e foi escalavrar as canelas do adversário? Tudo bem: condenado a não participar de competições de futebol por meses. Ao lado da de a interdição poderia cumprir um papel importantíssimo na dissuasão do jogo violento.

Há ainda um problema: como processar e julgar esses crimes? Conhece-se a aversão que a Fifa tem à Justiça comum, recomendando às suas associadas nacionais o uso de juízos arbitrais. Qualquer pessoa que tenha sofrido anos a fio o ir-e-vir de um processo dá razão à Fifa. Por outro lado, a autonomia das . . . - . / 1ll.StltU1?OeS q~e. gerenciam a vida esportiva - entre as quais tnbunais admllllstrativos para as infrações disciplinares - deve ser preservada. Penso que a solução pode estar nos juizados especiais, criados pela nova Constituição (artigo 98, inciso I), com a pa:ticipação de juízes leigos. É um mau sintoma que, após quase seiS meses de vigência da Constituição, esses juizados especiais (que, ao lado das atribuições conciliatórias de juízes de paz eleitos, foram a única mudança no sentido de aproximar o povo do Poder Judiciário) não tenham despertado maior interesse ou e?tusiasmo. Seria tão fácil termos um tribunal de - digamos - CInCO membros, presidido por um juiz de Direito, e integra-

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do - por exemplo por representantes das torcidas, do jornalismo esportivo e dos quadros de árbitros, sorteados de listas democraticamente . Com os exames

do dias, e com a menor margem de erro de

criminal. Difícil é ,","1<H'aU que, na do

a tesoura voadora que seu

ídolo desfechara em campo, que preso por um crime que não é crime quando praticado pelo ídolo. É possível reagir a este contra-senso antidemocrático, que aguça o senti­mento de que a impunidade está sempre relacionada à condição

social do mínoso. Comumenle a

cause?) Altamirano em seu e;;tudo, que "o é em sua essência". Mas em nossa tradição, creio ser mais adequado falar-se que o futebol é essencialmente prazeroso. É o prazer de jogar futebol que nossas e e que tenha construído a glória de nossoS maiores jogadores - entre os quais não figura um só caracterizadó pela deslealdade. Talvez fosse mais razoável relacionar a violência esportiva e a admira­ção que eventualmente desperta na torcida à conjuntura política que ainda subsiste. Hannah Arendt, em sua famosa monografia, menciona que' 'parte da atuaI glorificação da violência é causada por uma séria frustração da faculdade de agir no mundo moderno". Impossibilitada de reconhecer-se como agente de transformações numa sociedade estratificada, a torcida observa com tolerância a violência, e espera que Rambo faça o golo

LAR, DOCE LAR ...

A mulher brasileira tem sido historicamente a vítima favorita do conjunto de ofensas à vida, à saúde, à liberdade

163'

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individual e à honra que se reúnem sob a designação comum de "violência doméstica" .

Sob o regime do escravlsmo colonial, as alternativas eram igualmente duras, Se "livre", a mulher era escravizada por uma tradição jurídica que lhe de direitos, outorgando a seu

tudo agravado, no que se relaciona a sexo, por leis típicas daquilo que Foucault denominou "idade da repressão", "escrava", a mulher era livremente espancávcI e violentável; não tivemos um Código Negro, e assim o direito penal domés­tico que controlava a escravaria não conhecia limitações le­gais, como os trabalhos sobre castigos e sevícias a escravos tão bem demonstram. '

A construção política liberal da casa-asilo inviolável não modificaria substancialmente o , para as

que serve para dizer my home is my castle se, ao a ponte levadiça, deparar com seu algoz deitado na mesma cama? Como Heleieth Saffiotí anotou, sob o capitalismo a divisão social do trabalho converte a da mulher no método de sua exploração: "o capital remunera parcialmente um trabalhador e dispõe de dois em tempo integral" . O inacre­ditável é que o trabalhador parcialmente pago passa a dedi­car-se duramente à disciplina de sua parceira, pela internaliza­ção do machismo promovido pelo regime, transformando-se naquele "poderoso chefão" doméstico ao qual se refere Ra­cheI Gutiérrez, Por um fenômeno semelhante, fala-se hoje numa "indefensão aprendida" das mulheres maltratadas, que as levaria a descrer em qualquer iniciativa para mudar sua vida,

A importância de uma delegacia de mulheres não está nos insumos técnicos e materiais de que disponha, e sim em consti­tuir-se num espàço no qual a mulher maltratada pode liber­tar-se dos preconceitos com os quais é normalmente recebida nas repartições policiais em geral. Não se trata de equipamen­tos criminaJísticos modernos, ou prisões espetaculares: trata-

164

de estimular a denúncia desses constrangimento.s capilari­se d s e cotidianos que uma sociedade autoritária e VIOlenta fez za o numa família autoritária e violenta. Quando ~,te~-

do surge, Ja nao peratura se eleva e o . de delegacla de

são , . - a de da nova Constltmçao, que .

dais que podem ser providos por juízes togados e leIgos, para , . - menores. Penso nas J'u]o-amento de mfraçoes

o _ nas (empurroes, , . , t e' s) nas ameaças (promessas de surra ou (tapas socos, pon ap '.' .. _ 01' 't

' o tos ilegais (prOlblçoes 1 lCI as, de morte) nos constranglmen d' t ' . " . to o o vas o imposição de tarefas excessivas), nas InJunas, em _

o 1 de ofensas que não chegam aos limites das lesoes graves pame ld d 1t ra e constante ' 'd'· s constituem seu ca o e cu .u . ou do homlcl 10, ma, antecedente, ' '._

S >' a roposta enfrentará obJcçoeso.. Ae~~~eir~ objeção virá pela linha: "já existe a JustIça

lh' I " Ledo engano. De um lado, temos comum, basta apare a- a o p' . de tratar a I lzarro ,

a~u~ a . 'aI como questão civil e não criminal - ten-~~~:i:c~a ~~:{:~o escapa a justiça de países centrais, como ln laterra e Estados Unidos, De outro lado, encontram~s a ~ele conOunto arraigado de crendices qU~',:e~ra ge~al: bah­z~m a conluta dos diversos operador~s judlclan.os. Cnstl?~ de Gerlic fez uma síntese dos mitos maIS comun~, 1, ~os, SUjeItos d ., dOo são doentes (ela, masoquista ou ohgofremca,..e ele

o eplso ,I . ática ou drogadito); 2. ela de alguma personahdade pSlCOp ,. ,. l' gico)' 3 se ela qui­forma o provocou (reducIOmsmo Vlt1m~ ~ t ·'0' importante

' b u pode denunCIar, e c. ser, pode Ir em ora o o Conselho Nacional relatório de pesquisa empreendl

dda pevIO't'ma é Mulher") a

M lh ("Quan o alI , dos Direitos da u er sel's capitais brasileiras, revela a ' d casos concretos em , partlr e 'f s (mulher direita x desobedIente, construção de estereo 1~0 . gado x equilibrado, infiel; homem beberrao, desempre. . . _

f o. temente cond1CIOnam a declsao. trabalhador) que requen

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~ão vem ao caso perceber as fu - " /. . crendIces e estereótipos dese h nçoes ldeologlcas que taIs ma real: indiscutível é seu' mpe~ am na ocultação do proble­casos, o a manejo no tratamento judicial dos

de can:~o revela. Muito adequada-em adnnrave l . ! . soare pro-

l como os atares j

(OS, e pt" ' romo ores __ o constroem a 1:' b I " . apresentada aos J' ulgador ," . .J a u a a ser es -- jurados e -" .

seu turno, decidirão dentro d . : os quaIS, . . as da fabula. com partICIpação 1 se como em tantos I popu ar, que não se elitizas-

d . ugares aconteceu ao tribunal do . / . po ena ser um passo para a s _ jun, fim, a eficácia daj~stiça co uperaçao desses paradigmas. Por aí sim a cró . A' mum nesses casos é discutível-e

, n~ca carenCla d~ recursos à qual o Judiciário foi , nà ltar nova

por um de responsável Q IA e , é a CNDM L" uem e, no citado relatório do

, o caso aIS, convence-se de - . o sistema' é pr '. que nao adIanta ampliar . eClSO o modelo no México revelou que h ,.'. cia doméstica ,. o orano favorito da violên-

e a nOIte (73 % dos ' 19:00 e 6'00h) . casos aconteceram entre . , e que os dIaS predileto . - d' .

semana (metade dos casos) U ., s sa~ os e fmal de namento à noite e enl f' , ' d mjUlzado especIal, com funcio­

maIS e semana e inc t -tária, não parece oferecer rus açao comuni­balhar essa matéria? vantagens extraordinárias para tra-

Com os juizados esp " , , uma fecunda perspectiva eCIaIS, a nova ~on~tltUlção oferece dos serviços judiciais O par~ ~ demo~ratlzaçao e socialização dez das propostas nã~ e peca °b' aqm, estará sempre na timi-

, m sua a undância Ju' d ' . para enfrentar a gravíssí _ ',!za os espeCIaIs poderão vir a ser a mais a:aad~:~st~o da ~lOle~cia doméstica Poder Judiciário na história a eCldade eflcaz mtervenção do

marga o lar, doce lar.

166

CRIMINALIDADE E FAVELAS

e como

pesquisas de campo, A , foi formulada por esses

antropólogos e como, no vácuo d

responsabilidades omitidas pelo Estado - saúde, transportes, comunicações, segurança pública -, pequenas quadrilhas, organizadas principalmente em torno da explora­ção do comércio de drogas ilícitas (cocaína e maconha), lo­gram controlar imensas comunidades, desorganizadas pela

, e taxa de

Nesse caldo de cultura, historicamente propenso a nego­ciações oportunísticas de sobrevivência, essas pequenas qua-

encontram de um "assistencialismo" que é a versão privada do ".clientelis­mo", obter um reconhecimento comunitário, cujo conteúdo pode variar desde uma certa admiração (criadora do "bandido social" no sentido de Hobsbawm) até um mu,do horror, con­soante seus chefes exerçam preferencialmente a "generosida-

de" ou o terror, A "generosidade" é exercida através de auxílios materi-

ais para situações especiais de necessidade (reconstruções, medicamentos, transporte urgente, etc) e da administração da justiça (tanto quanto Boaventura de Souza Santos encontrou, anos atrás, a Associação de Moradores detendo a jurisdição civil, José Augusto de Souza Rodrigues em recente pesquisa encontrou a boca-de-fumo como instituição encárregada da jurisdição criminal). É ilusório supor que essa "generosida­de" exclua os mais bárbaros atos contra os integrantes da comunidade que se insurgirem ou questionarem o poder da quadrilha, como é ilusório presumir-lhe- uma potencialidade revolucionária. Na verdade, as quadrilhas subjugam as comu-

167

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nidades e delas se aproveitam, de sua mlsena, do escudo humano de seus corpos, para finalidades egoísticas.

De alguma forma, contudo, essas comunidades faveladas percebem intuitivamente que existe algo que as subjuga e delas se aproveita de forma muito mais e eficaz do que as quadrilhas. de os e históricos pelos quais o capitalismo sempre pode, e o anar­co-capitalismo dependente e perverso que vivemos no Brasil necessariamente deve na expressão de Alberto Pas­sos Guimarães, "reservas do mundo do trabalho em reservas do mundo do crime" , as favelas concentram no ódio à polícia -- a fase vÍsÍvel da ordem injusta que, num passe de mágica, transforma' o desempregado no bandido - uma contrapartida emocional que é aproveitada de forma muito competente pelas elites conservadoras para sua teoria das' 'classes

o estereótipo do delinqüente se fixa na figura do favela­do. Pouco importa que, de 100 mortes no Rio de Janeiro, apenas duas estejam associadas a um assalto e 35 causa­das por motoristas imprudentes (as restantes são episódios interindividuais - homicídios dolosos -, ou "mortes insti tucionais ' '): nossa figura do matador não é um homem de classe média sentado no seu carro, e sim o assaltante armado. Pouco importa que o dano econômico e social produzido por um só dos grandes crimes de colarinho branco (falências frau­dulentas, sonegações fiscais, evasão de divisas, etc) supere de mil vezes o somatório de toaos os roubos e furtos: nossa figura do ladrão não é um banqueiro desonesto sentado em seu escri­tório, e sim o assaltante ou mesmo o ventanista.

Os intelectuais dessas elites conservadoras, ao invés da grosseria de campanhas de lei e ordem (que ficam por conta de parlamentares financiados pela direita), esmeram-se em ques­tionar o cruzamento sempre problemático de variáveis econô­micas (desemprego, valor real do salário, etc) com as estatísti­cas criminais, no esforço absurdo de desvincular o crime do social e reduzi-lo a um episódio religioso ou moral. Esque-

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cen1-se de que, para além dos empecilhos,metodoló~icos, para além da viabilidade, percebida em palses centraiS, de uma "criminalidade da abundância" , o estudo d~ casos como

Rodngues - conduz

d ' dos

na verda e, numa . estratos sociais economicamente mais desfavorecldos; e aque-la percentagen1 torna-se maio~ se s~ tomarem em ~?nta

as caráter patnmoma1 .' A construção social do delinqüente se subordina a sua onge:U,de classe, mas o sistema penal - caracteri~ado na Am~nca Latina, como consta do relatório Zaffarom para. ~ Instltuto

I '. no de DI'rel'tos Humanos pela seletlvzdade, re-nteramenca '. ,

pressividade e estigmatização - se enca~ega de dIsfarça-lo:

o ente el e nas

sa-o punidas pelo fazem e não pelo cas, que as ' '..., . , são, ainda que baste visitar uma pemtenclana para conven-

cer-se do contrário. Gimbernat, . _'

certa ocasião que a penitenciária é alguma COisa tao ~pta para resolver a questão da criminalidade quanto_ o hO~~ltal para solucionar a saúde pública. Não existe soluçao pohclal, p.ara.a grave questão da violência urbana, ainda que toquem a mstl­tuição policial importantes funções. Um governo que a~oste na solução policial está apenas honrando s~us compron~ns~os com as elites conservadoras e com um slstema e~onomlco~ . , o qual _ a exemplo da quadrilha - subjuga e se lmquo, ." ' "t d aproveita das populações marginalIzadas, s~u' exerCI o e

" ulador do menor salário mímmo do mundo. reserva reg . . , Quando isso ocorre, podemos dizer que a quadnlha esta no

poder.

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TROCANDO EM MIÚDOS

as instituições da área de '-,'L/\.-v.,,", de '

os dos , mas sempre muito Sobre ela incide uma empobrecedora dual: violência e corrupção. Não se trata, por certo, de negar o binómio violência e corrupção (episódicas ou a e o

se estamos em conceber uma polícia para o estado de direito democrático, convém superar esse reducíonismo cego. Convém, por exemplo, perguntar se uma sociedade que não exerce, a partir de sua própria forma de organização, a solidariedade e a fraternidade, ou cujas práticas

não em suma, uma

tora de violência - pode ter uma polícia em que o respeito ao outro prevaleça sobre a truculência. Convém igualmente pergun­tar se num CUja tem uma é um hino à esperteza, uma sucessão de negociatas, "comissões", ganhos ilícitos, tudo tradicionalmente impune, poderíamos en~

. contrar na administração policial um óasis de austeridade e zelo. Como comparar os mais escabrosos casos de corrupção policial aos mais discretos episódios de corrupção na área monetária e financeira, senão como um modestíssimo varejo diante um ja­mais punido atacado?

Acho que esta aí uma chave importante: o isolamento e o abandono da polícia, em cujo corpo podemos execrar as vergo­nhas gerais da administração do estado, desfrutando ainda de um confortável' 'efeito-vacina" , Cerca de um mês após haver assu­mido, nas circunstâncias especialíssimas que todos conhecem, a Secretaria de Estado de Polícia Civil, participei de uma assem­bléia com aproximadamente 300 detetives, no inconclúso audi­tório do CCOS. Disse-lhes exatamente isso: as elites que sempre governaram o país usaram-nos historicamente, enquanto funcio­nários do estado, para os serviços mais difíceis, mais brutais e brutalizantes, inclusive algumas vezes para serviços sujos; usa-

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, b 1 e de qualquer coisa ram-nos e mantIVeram-nos em ong· / h

a garagem, pore.~m se. m. ~en, um importante; bons . 10

. I·T(1uve um silêncio de mtermmavelS acesso à sala de 1

ou 15 e

policiais, que se __ pela dos

públ ica como um

é assim, desligados da socieda~e.civil

_ e da própria adnumstra-

Algumas vezes tive de recordar, ~ g;,adua,~os me~b:os;,da administração policial, que a dicotomIa eles (outros org~~s

" ) _ "nós" (a Secretaria de Estado de pohcm governamentms h'b'I os fins Civil) nem era politicamente real, nem era a 1, para '_

/' . d recursos para melhonas, reeqmpa pragmatlcos e ' . ,_ .

~ " seI mento etc. M.as o / j ~

, I sério que podenamos chamar te vel por a ero c ,

"modelo individual de atuação profissional", Com tal expre~-- t d a' s inumeráveis hipóteses - predoml-

Sao pre en o' , , ·1. - nas quaIS a

nantes, em se ue . f d minado olicial, ou a um grupo sob imed.l~ta che la e ur.n

a

d . P da autoridade é confiada determmada tarefa (a m-

etermma, 'd 1 1-vestigação de um crime, a prisão de um condena ~,o evan a-mento das ativídades de uma quadrilha, etc), ~relO te~?erc~­bido a existência de um abismo entre a ~ot~vel ~e _ lcaçao

f . 1 nessas hilJóteses e uma velada mdlsposlçao para

unClOna ~' / cdJ;J..l'a . tos nos quais a atuaçao coletlva e que ' com proJe .

A mais ambiciosa das operações policiais projetadas p:u-ado

, 1 t os passado um vemo e verão - certamente responsave por en~ d 85 _ a chamada

'1 to que o verao e , 86 'um pouco menos VlO en , d 20'00h às "Parece que foi Hontem" (consistente em cnar, e '. t

. / d' 't ma de segurança m en-02'00h das sextas-feIras e saba os, SlS e, P d

. , )' is funcionou mtegralmente, o e ser siva em áreas de laze,~ , J,am~. do l'solamento" seja rejeitar toda

'f ção do pnnCIp10 que uma un _ não se apresente cristalinarnente como forma de atuaçao que eri oso corporati-" lidaI" Nesse terreno, pode florescer um P g "

.po " 1 eproduz uma subcultura pohcml. Penso Vlsmo, que esttmu a e r

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que quebrar esse isolamento, incorporando a instituição à socie­dade civil, oxigenando os mais recônditos desvãos subcultura­dos, é um pressuposto para também que a academia de

não

esse processo nã.o os

quadros e lideranças , nem a discussão interna pela qual o policial resgate sua própria identidade cidadão, suas

como do e os compro-missos básicos de sua

De qualquer fonna, todo mundo sabe um pouco a polícia que não se quer, ainda que a compreensão negativa da instituição sofra o reducionismo violência-corrupção. Mais importante, neste momento da vida , é tentar

que o estado

v,,'~~.~~ civil. cinco aspectos que a ex-periência me fez parecerem fundamentais:

o ter comu-nitário. Isso não implica qualquer espécie de "assistencialismo". e muito menos qualquer interesse em estimular o surgimento de uma horda de alcagüetes. O caráter comunitário significa, em primeiro lugar, o estabelecimento de pennanente diálogo com a sociedade organizada: associações de moradores, sindicatos, im­prensa, clubes. Este diálogo pode permitir constantes correções de rota, como efeito de Oportunas advertências e infonnações. A transparência administrativa é condição necessária para esse diá­logo. Nos 12 meses anteriores à minha gestão, a média mensal de fugas era 81; o mais grave é que nada ou pouco se comentasse a respeito. Esse número foi reduzido a pouco mais que a metade, por um conjunto de medidas que principiou pelo debate aberto do problema e pela responsabilização política dos dirigentes superi­ores da unidade carcerária. Hoje, grave é apenas o número. Por falar em número, a divulgação periódica das estatísticas, para conhecimento da opinião pública e exame de pesquisadores e especialistas, se inclui nessa perspectiva.

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d 1 O Serviço policial deve ter caráter pre-Em segun o ugar. _ . T cÍ m lado inserir a questao da segurança ventivo. Isso slgm lca, eu, comunica-

pública em de localização de

.0

tos. De outro o no d de consciência das . . 1 _

toma a . . 1 e sua necessána artlcu açao a tratamento da quest~o cr:mma'd aça-o trabalho assentamen-

I dmimstratlVos: e uc, , , . outros p anos a ,. d xenTes do faroeste, a policIa d" . tc Ao contrano os tos fun lanos, e. . d ão enfrenta um inimigo de fora, d ande CIdade mo ema fi

e uma gr tenta controlar agres-

e não raro sivas . . . boas a suas

características orgamzalcIOna~s .. ' o mesmo que equacionar em darão segurança pessoa a to os e a a

hospitais a , - to etc. O serviço policial h , . sistema de agua e esgo , . 1 19lene, o . 1 . 'veis gerais da mudança SOCIa , f o se interessa pe as vana

preven IV .' diretamente representem uma e dentro delas pelos proJetos ~ue de pessoas disponíveis p. ara

' d ' 1 d' minuição no numero . conSl ~rave 1. ., do século XIX diziam que constrmr o desvIO. Os cnmmologos . .,. No Rio de Janeiro do

' mizar em pemtencIanas, escolas e econo constituem uma espécie de 1 d 'culo XX os menores fina o.....se ., " formas organizadas de crime (por "exército de re,serva d;s ) e provavelmente, para quem exemplo, do t~afico d~ . rogt~t~ácimento para construir refor­insista na soluçao repressiva, a para o serviço do crime. A

' . tes que faltem menores matonos an " olícia pode e deve proteger a vida, a verdade dura e que, se a p . ortante tarefa pode e . b s das pessoas, se essa unp . ,

liberdade e os en . 1to nível de eficiênCIa pOSSlVeI, Prida com o maiS a .

deve ser cum _ l" I ara a questão da criminalIdade. não existe uma soluçao po lcta ~ polI'cial deve ser eficaz. A

. lugar o serviço Em tercerrfio,. ~tá em chegar à raiz dos problemas: a presença da e lcaCla e

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"IJLa\-,QV de ouro e de carros furtados (as "bocas de ouro" e "ferros-velhos" e

Pastoral Penal, sem ónus para o

Mas a na

convênio com a ÇLll<tl..,ctU de

judiciária a , Como a

carentes nas concen-e atualizada sobre sua

situação jurídica é não só um direito do preso, como importante fator de tranqüilidade carcerária, quis assinar imediatamente o convênio, e fiquei sabedor do motivo da longa demora: faltava o CGC da Arquidiocese, Assinamos o convênio alguns dias de-

,sem CGC, mas com os presos e a

Em quarto lugar, o policial deve ser legal, Combater o crime com os métodos do crime é uma espiral sem s'aida, Quando da reforma do Código de

o durante o inquérito policial, porque a prática da investigação calcada sobre a confissão é a origem dos maus-tratos e da tortura, Neste sentido, o desenvolvimento da polícia técnica, modernizando os padrões investigatórios, retle­te-se antes na legalidade do que na eficácia dos serviços poli­ciais, A garantia constitucional da inviolabilidade do domicilio era freqüentemente violada com mandados de busca domiciliar "ao portador" , coibidos pôr recomendação do Diretor Geral da Polícia Civil, no sentido de que ao mandado de busca domiciliar correspondesse despacho fundamentado da autoridade no respec­tivo procedimento, Na vertente da observância estrita da lei, o aspecto policial apenas glosa a difícil afmnação da cidadania no Brasil,

Em quinto lugar, o serviço policial deve ser socializado, Observa-se na prática um cruel teorema: tanto mais carente determinado grupo social, tanto maiores suas dificuldades de acesso e atendimento pelos serviços policiais, É claro que esse teorema provavelmente pode ser transplantado para a área de

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importa recordar os efeitos criminógenos , pela do

de

tocam f' d' unidade que se

tuição policial, como no e eIto ~ lm1hP1'dos pelos meios de comu-, sempre esco

em alguns casos, ' _ nsegue levantar provas , - de massas quando nao se co ,

mcaçao ' , d" Uln responsável, Ha ques-'t u sequer lU lCIar ' contra o suspel o, o ,_ 1" 1 na situ clção de medlaçao po lCla , "

tões

, do sas qual espero poder participar, f r alarde e levo minha

f h P rtão sem aze. , Por or~, ec, o o o Convivi nesses meses com

carteira de ldentIdade ~~ ~~:~nte leais e dedicadas à sua algumas pessoas admnav

t_ 1 d "saideira" e de saudade,

f ' - , abe portanto a ar e , pro 1ssao. c, ,'/ d deira ou falsa a leve lmpres-Entretanto, nunca sabereI se e ver a são de que já vou tarde,

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DE VOLTA AO LAR

Muitos afirmam que os advogados constituem uma cate-goria profissional e que os quadros dirigentes da OAB como Talvez a verdade seja exatamente o a maioria esmagadora sem-pre foi progressista, porém tradicionalmente a OAB era admi­nistrada por uma elite conservadora, dotada de grande prestí­gio profissional, que conduzia o processo eleitoral com estra­tégias implacáveis, uma das quais era sonegar o conhecimento das regras correspondentes. O advogado sabia das eleições para o Conselho no dia da votação, e a chapa muitas vezes era única.

Os advogados sempre tiveram idéias avançadas e claras a respeito de coisas importantes. Creio ser possível radicar as posições da categoria em favor do avanço no fato de que os advogados realizam os importantes fins de sua profissão ou­vindo, analisando, interpelando, discutindo com os clientes - isto é, com os cidadãos, com o povo. O advogado tem sempre a possibilidade de adquirir a ótica do oprimido; mesmo quando esteja no pólo oposto da relação processual, e lá esteja procedendo com a lealdade e o empenho que timbram o profissio­nal honesto, essa possibilidade existe. Pense-se, por exemplo, na advocacia trabalhista.

Talvez por isso, por ser o necessário mediador entre o direito lesado e sua restauração, entre a pretensão legal e seu

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atendimento, e principalmente entre o que o direito já concede e aquilo que a justiça seja concedido, o advogado

sua prática uma , uma e de lutar que é um pouco a seiva

aqui sobre a visão que os advogados das questões que costumam r-se sob a ca de "

Os advogados não cometem o erro de imaginar que baja uma solução policial-penal para a questão da criminalidade. Sabem que, embora córresponda às institutições do sistema penal, como já veremos, uma contribqição importante, as variáveis essenciais do problema são sociais e somente trans-

su zída.

Enquanto, como cidadãos, lutam por essas transforma-, os sabem as do

penal devem pautar-se por absoluta legalidade e integral res­peito aos direitos não atingidos pela condição jurídica de acusado ou preso. Por isso sua luta, dofront das prerrogativas (que é uma trincheira que protege não o advogado, mas através da qual ele protege o cliente) aofront da denúncia e responsa­bilização de autoridades arbitrárias. Nessa luta, o advogado aprende que há primeira e segunda classes também nos proce­dimentos penais, consoante a origem social do passageiro.

Não transigem os advogados com violações aos direitos humanos do suspeito ou acusado, e têm convicção de que o crime não se combate com os métodos do próprio crime. Entre os grupos de extermínio e os bandos de assaltantes não há diferença alguma, e contê-los, processá-los e julgá-los é a mesma obrigação. Odiamos de longa data a tortura.

Quando, num grupo interdisciplinar, se comenta sobre a importante colaboração da OAB na resistência democrática à ditadura militar, costumo pensar que já estávamos acostuma­dos e evoco com o maior orgulho os 100 mil advogados que,

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, em todo o país, às vezes àssustados pela descor­às vezes ameaça­

ódio, levam de 1

os advogados do fracasso das penitenciá-. drama, ao qual , da nas, e

cla dessa i os em' assentar nos trilhos do crime quem quer que passe por lá

uma temporada. Conhecem os advogados, e profundamente, que certas

leis penais apenas oferecem a ocasião de práticas reprováveis, e não trazem ou -- como,

cxe a

para uso . o oportunismo . ou ~ au­toritarismo de textos legais, e lutam para que os tnbunaIs os atenuem. Intuem, sem que lhes tenha ensinado, que não é o homem que é para a lei, e a é que é

para o homem. .' . Quando circunstâncias críticas muito eSpeCIalS fizeram

com que eu me convencesse de que era meu dever prestar um serviço ao Estado, assumindo árduas funções na área da se­gurança pública, levei comigo essas crenças que o advogado extrai de seu cotidiano profissional, e que se entranham pro­fundámente em sua alma. Respeitei-as intransigentemente durante os oito meses em que permaneci naquele cargo.

Por isso, de volta ao lar, quando me encontro com um colega no foro, e ele ressalta essa ou aquela medi~a ,~nt~,o adotada, respondo invariavelmente: "Foram nossas IdeIas .

E foram mesmo.

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ADVOGADOS DEMAIS?

Quando eu era presidente da Seção do Estado do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, estudantes das

de que me visitavam me pergunta-vam sobre mercado profissional. Indagavam eles: "Poderemos viver dignamente de nossa profissão? Não exis­tem advogados demais?" Quero divulgar aqui a resposta que sempre dava.

O Brasil é um país dividido em dois países: o pequeno país dos MANDÕES e o enorme país dos MANDADOS. (Poderia usar outras designações, mas essas duas são úteis porque têm muito a ver com a questão do direito: a norma jurídica, seja proibindo, seja ordenando, seja permitindo, sempre.) são aq grupo de ricos (banqueiros, latifundiários, grandes industriais e comerciantes) que sempre detíveram o poder, e as categorias sociais médias que, nas mais diversas profissões (seja como

trabalhando em empresas, seja em atividades liberais), os ajudam a administrar e manter o estado de coisas. Os MANDADOS são a enorme legião de miseráveis absolutos, os desempregados, os subempregados e os trabalhadores em geral, incluindo-se aí a parte baixa das categorias sociais médias.

Complicadas relações econômicas explicam como e por que surgem historicamente no Brasil MANDÕES e MANDA­DOS. Para nós, basta distingui-los pela sua configuração jurí­dica.

Tentemos colocar num Raio-X jurídico um MANDÃO e um MANDADO. O que aparecerá?

O MANDÃO consegue participar da elaboração das leis (ou por amigos deputados, ou por lobby). O MANDADO aguarda passivamente a lei que será elaborada pelos amigos do MANDÃO.

O MANDÃO conhece seus direitos e em caso de dúvida consulta os melhores juristas. O MANDADO não tem a menor

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idéia de seus direitos e só muito raramente duvida de que não tenha qualquer direito.

O MANDÃO consulta sempre o as regras as

de vez cm estão os

O MANDÃO se dirige à Justiça tem excelentes advo-, e familiar ou amigo conhece o ou algum

familiar ou amigo do . O que se dirige à Justiça é um homem amedrontado, num imenso corredor por onde trafegam pessoas apressadas e toneladas de papel que o sufocam. O MANDÃO encontrará um juiz. O MANDADO encontrará uma fila.

que um de dono do e o instalará numa o

MANDADO abrirá a marretadas a bomba e sua filha brincará com Césio-137.

E agora estamos da Se o jovem que sai da Faculdade tiver o sonho pequeno

de, como disse Rui Barbosa, fazer de sua banca de advogado um banco, e de seus conhecimentos uma mercadoria, sim, ele encontrará um mercado profissional quase saturado. Ainda assim, pode ficar tranqüilo: os MANDÕES não deixam esca­par um talento ou uma grande dedicação que deseje inscre­ver-se na tarefa de deixar tudo como está.

Mas se o jovem quiser sonhar com Um país unificado, no qual todos os direitos sejam respeitados, no qual trabalho, saúde, instrução e lazer não sejam fórmulas cruelmente vagas, ou enganosas palavras numa Constituição insincera, encontra­rá compromisso profissional para as 24 horas do dia. Em favor dos MANDADOS, a luta começa para que os direitos já exis­tentes sejam efetivamente exercidos (seja no emprego - direi­tos trabalhistas, seja na rua - garantias individuais, seja perante repartições públicas - direitos de cidadania -, etc), mas a luta continua na. direção da construção de um novo

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Direito, baseado na solidariedade, na liberdade e na

Acho que não mente de nossa sional -- sem ou perspectiva de que é possível construir uma uma Justiça em que não existam mandões e

Não no Brasil advogados para da Justiça. O que existe é exatamente injustiça demais à espera do trabalho dos advogados.

J

Suponhamos Glauber Rocha redivivo, estreando um filme com entrecho meio . Houve num certo uma revolução ou um golpe de estado - não se sabe exata­mente - e todas as pessoas começam a ser submetidas ao recém-criado Tribunal de Depuração Política. Os inquisidores investigam, a partir das atividades profissionais dos intelec­tuais, suas secretas tendências políticas. O jornalista Fulano chefiava a reportagem esportiva daquele jornal? Condenado. Examine-se detidamente a classe social dos pacientes do psi­canalista Beltrano, Condenado. Infeliz destino teve o econo­mista Sicrano, que fizera seus cálculos e projeções como assalariado de determinada instituição. Condenado. Nos hos­pitais públicos, o temor das antigas UTIs foi substituído pelo terror das novas UTIs (unidades de triagem ideológica), encar­regadas de evitar que o gesso nacional remodelasse ossos hostis ao novo regime. Quanto aos advogados, bastaria encon­trar entre os clientes um inimigo do povo - alguém indiciado ou acusado por alguma autoridade pública- para o veredicto, condenatório. Todos os advogados são condenados, e não sobra nenhum para a tarefa de defender seus colegas.

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A certa altura do filme, o espectador seria indagado se tU'Ly",V absurda fora provocada por uma

pela esquerda mais obtusa e atrasada, ou porum pela e obscuran-

tista. A das duas, temente.

Não é por acaso que, escrevendo em 1 conta do ovo da a in­tolerância da "plutrocracia industrial italiana" para com a advocacia fosse tão contundenlemente agressiva quanto a in­tolerância dos comunistas. Não é por acaso que as transforma­ções impostas pela primeira legislação da Rússia soviética à advocacia tenham sido tão similares a uma reforma ocorrida

de 1. Não é , em 1 a o profissão à Pricilla Jana em Johanesburgo (África do Sul) tenha sido tão parecida com a interdição imposta ao advogado Josef Danisz, em no mesmO ano.

É explicável essa plataforma comum entre programas políticos tão distintos, e facilmente explicável se nos ativer­mos à advocacia criminal. A partir do momento histórico que é chamado de "expropriação do litígio", ou seja, aquele -cronologicamente situado em torno do século XII - no qual a vítima foi substituída, no processo criminal, por um "personagem novo" (Foucault), o procurador do soberano, a advocacia criminal de defesa começa a constituir-se como contrapoder. O litígio criminal não tem dois atores privados em seus pólos, mas num deles (o da vítima) passa a figurar o próprio poder organizado. Sob os rótulos mais distintos ("santa fé católica", "salvação pública", "são sentimento do povo", "ditadura do proletariado", "segura~ça nacional"), o poder se implantou e se exerceu em mUltos lugares e ocasiões recorrendo à pena e ao sistema penal, quer fosse a fogueira da Inquisição, a guilhotina do Terror, a forca ou os campos nazistas, os fuzilamentos stalinistas, as prisões e , 'desaparecimentos" latino-americanos. A advocacia cri mi-

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naI de defesa representava, perante tais situações históricas, o contrapoder politicamente possível; ainda que consentido, bastante incômodo, e a prova está nas limitações por ele sofridas. Aí está, também, a raiz da identificação do

não exclusivamente ) com a(s) defenda.

fenômeno é inteiramente desconhecido na Antigui­dade, e observa-se que a advocacia, no mundo antigo, impli­cava uma postura muito menos distanciada causa do que atualmente. Na Grécia, dentro de variáveis jurídicas muito simples, a eloqüência cumpria um papel mais importante do que o conhecimento legal: uma lei teria proscrito o abuso de figuras emotivas, e os oradores eram exortados a obedecê-la, antes das audiências. Apesar disso e do extraordinário desen-

UL"'''''<V maIS

Aristóteles, nos seus livros sobre retórica), os logógrafos gregos eram percebidos de forma absolutamente autônoma quanto aos litigantes e aos litígios para os quais redigiam suas arengas. Boa prova disso é o fato de haver redi­gido, na mesma causa, discursos para as duas partes (o que hoje configuraria gravíssima infração ética e crime). Em Ro­ma, a relação do patronus com o cliente era complexa; como assinalava Bielsa, "envolvia um dever muito mais extenso (do que o conselho legal e a defesa judicial) , era propriamente um ofício de proteção". A despeito de toda essa proximidade (e mesmo quando, sob o Império, regulamentou-se a profissão, e os matizes mais limpidamente advocatícios daquela relação se destacaram), é impensável qualquer confusão entre o causí­dico e a causa. Demonstram-no as funções de fontes de direito atribuídas às respostas que os grandes advogados forneciam a quem os consultava. E a intimidade com a vida privada dos consulentes era tão grande que Ihering comparou o juriscon­sulto romano com o confessor do século XIX!

O advogado chega à modernidade já cercado de alguns preconceitos que não são devidos ao simples efeito transferen­cial da causa ou do cliente. Tais preconceitos abrangem um

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vasto campo, desde uma incompreensão básica da atividade profissional (dando origem a estereótipos corno a "insinceridade" dos advogados, ou as circunlocuções de seus discursos), até pormenores ridículos, como por exemplo sua confraternidade. Pessoas capazes de se dos abraços que, ao final da luta, são trocados por boxeurs se esmurraram barbaramente (Hamelin, em seu Paradoxo do Advogado, mencionava os esgrimistas) estranham os mentos cordiais de causídicos adversos. gerais viram-se agravados por episódios de desonestidade ou deslealdade ao cliente e ainda de acumpliciamento (quando a advocacia criminal cede lugar à advocacia criminosa). Em­bora esses episódios atinjam particularmente os atores neles diretamente envolvidos, muitas vezes severamente

, é que naram aqueles preconceitos. Considere-se, por que re­caem sobre os advogados, pela mediação que realizam, todas as mazelas da complicada máquinajudiciáría, para compreen-der a dos cercam b

amplamente documentados na literatura. Entretanto, interessam-nos aqui particularmente as restri­

ções decorrentes de uma identificação social do advogado com a causa ou o cliente que defende. Este fenômeno, alheio à Antiguidade e essencialmente político, teve na Revolução Francesa uma aparição que é pedagógico examinar. Inúmeros advogados foram mortos pela...-simples defesa de idéias, e em dado momento (1794) uma lei (22 de prairial), suprimindo completamente aos suspeitos o direito de defesa, economizou novas mortes exterminando a própria advocacia.

Vale a pena recordar, a partir da compilação de Moliérac, algumas passagens desse que é um dos mais belos capítulos da história da advocacia. A coragem foi uma virtude sempre presente. O memorial em defesa de Luís XVI foi redigido por três advogados: Malesherbes? Tronchet e De Seze e foi lido pelo último perante a Convenção. Ao questionar a competên­cia que a própria Convenção se havia arrogado, declarava a

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defesa lisamente: "Cidadãos, falar-vos-ei com a franqueza de um livre: busco entre vós acusadores". O notável

menos que mesmo instante em que toda a Convenção e o povo de

o corpo de Marat ao Pantheon. Chaveau-Lagarde seria preso causa sua de a

contra si registrava que' 'já é tempo de que o U,",~vlr sor da Capeto ponha sua cabeça no mesmo cadafalso". Foi salvo pelos acontecimentos de Termidor, encerrando o Terror. Ficou célebre a exortação do advogado Nicolas Berryer: "Trago à Convenção a verdade e minha cabeça; poderá ela

de urna, escutar a outra Recentemente, no Brasil, de presos

eram vistos com discriminação e Se não chegamos a matá-los - como se fez, por exemplo, na Argentina - não

de· e tentar Para a militar, aqueles advogados - entre os quais se percebiam os matizes políticos mais distintos - incorporavam a coloratura partidária e até mesmo as estratégias de ação de seus clientes. Para Heleno Fragoso, que foi preso, as perseguições tinham o objetivo de tentar atemorizar e desmoralizar os advogados: "Como poderíamos defender os outros se nós mesmos sofría­mos as violências"? Ou seja: o que estava em/questão, ao fim de contas, era o dir(?Ílo de defesa, que incomoda os tempera­mentos autoritários e enfurece os participantes de surtos cole­tivos em favor de linchamentos judiciais.

A ampla defesa é uma garantia constitucional fundamen­tal (art. 5~, inc. LV CoR.), à qual devem obediência legisla­dores, juízes e advogados. O advogado tem o dever de "recusar o patrocínio de causa que considere imoral ou ilícita, salvo a defesa em processo criminal" (art. 87, inc. XII da lei 4.215, de 27.abr.63). Em suas origens, essa regra derivava da consideração de que o crime implica o imoral e o ilícito; por ess.e motivo, como lembra Boyer Chammard, o advogado

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gaulês que ia funcionar num caso criminal não prestava o juramento da verdade, como era obrigatôrio nos Hoje, seu na necessidade e na se houve ou não crime é

ser afirmada jurídica e

coisa que só irrecorrível. A constitucional da ampla defesa não é menor

, por exemplo, da exercer a o , rio seu presta serviço público, constituindo - ao lado (e não abaÍxo) dos juízes e promotores de justiça - elemento indispensável à administração da justiça Cart. 133 C.R.: art. 68, lei 4.215/63).

Se quisermos introduzir no debate as variáveis éticas, o 88 da lei n? 4.215/67,

literal te

Profissional: "Nenhum a ou a quer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deterá o advo2:ado no de suas e '. O

~ de sobre a da ONU prevê, no artigo 77, possa o advogado aluar livremente, "sem qualquer inibição ou pressão, seja das autoridades ou do público". E no artigo 78, focalizando exatamente nosso assunto: "O advogado não poderá ser identíficado, seja pelas autoridades ou pelo público, com seu cliente ou com a causa de seu cliente, não importando quão populares ou impopulares possam ser". .

No final daquele filme imaginário de Glauber Rocha, todos os advogados do país estão no banco dos réus. Pouco importa não tenha restado um só para defendê-los, porquanto o princípio da defesa já fora cassado pelo Tribunal de Depura,ção Política. Bastará para o julgamento um acusador, que tera de ser buscado entre os intelectuais, porém fora da categoria dos advogados - todos, réus. Os inquisidores procuram, em qual­quer área, o acusador impoluto: o jornalista, o médico ou o economista que em nenhum momento de sua existência sob o antigo regime teve que se aproximar de sua estrutura ou dialo-

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gar com suas regras, em seu exercício profissional, por mais consciente e crítico que fosse. Vã procura. A câmera exibe a cadeira do acusador, vazia, e segue-se a sentença condena-tória, no tribunal sem e sem defesa.

188

Índice alfabético-remissivo de assuntos

Abuso de autoridade 1 i 7 Abuso de drogas Adllltério 86

61, 63,67

iária

Advocacia e direito de Bancos de sangue 62 Cadeira elétrica 25 Capitalismo e greve 36 Censura e imprensa 139 Cinema e criminalidade Código Criminal do Império

134

131, 132 183 186

124 Comércio de drogas líciUls 61, 63 Condutas e deJituosas 44 Contrafacção de obra de arte 143 Convenção Interamericana sobre tortura 107 Convenç;'ío da ONU sobre tortura 107 Corrupção 44, 68 Criança e o Código Penal de 1890 39 Crime e mídia 133 Decapitação 23 Delegacia de mulheres 164 Democratização do Poder Judiciário 71, 73, 77 Direção perigosa 154 Direito chinês 101 Direitos humanos fundamentais 86, 112, 167 Direito à saúde 55 Discriminação 55 Documentos: sua falta não justifica prisão 116 Embriaguez ao volante 155 Escravos no Código Criminal do Império 124 Estado de direito e advocacia 183 Estado e omissão de socorro 51 Falsidade em obra de arte 142

189

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Favelas: ausência do estado Favelas: poder da quadrilha Forca

173 173

de trânsito HíO

Fu~i 2S Garrote 23 Genocídio Cenocídio por Greve e direito penal Crupos de extermínio

. Guilhotina 24 Heleno Fragoso 94 Hélio Pellegrino 91

omi

35, 41 47, 103

dati loscópica e censura 139

U9

íncriminaçôes vagas e indeterminadas a do Poder Judici:írio

Injeção letal 30

155

112 71, 73

Instituto Interamericano de Direitos Humanos Jornais e criminalidade 136 Juiz de Paz 79 Juizados especiais 165 Julgamento pela imprensa 138 Lei Fleury 81 Lei de Imprensa 139 Lixo nuclear e responsabilidade criminal 52 Mão-de-obra infantil 39 Médicos e omissão de socorro Medidas preventivas no trânsito Mulher, violência 163, 164 Omissão de socorro 48, 155 Ordem judicial 114 Pena de morte 15, 18, 103 Penas antigas do adultério 87

190

50 154

47

Polícia 120

de juízes Reforma penitenciária

de tr;lllsit<))

74 130

117 icial e criminalidade

J55

Serviços policiais no estado ele direito dcmocr(Ílico Sistema penal: seletivo, repressor e estlgmalizante Sistema penal e genocídio 47, 49 Substitutivos penais 129 Suicídio judici::írio 16

Sursis 123 Televisão c criminalidade Tortura 103, 107 Tráficu internaclUnal de Trânsito e mortes criminais urbanas Usuário de drogas 68 Vadiagem 39, 42 Violação de domicílio J 14 Violação ele regra de trânsito 155 Violência 107, 167 Violência conjugal 165 Violência contra a mulher 164 Violência e corrupção Violência e futebol Vitaliciedade de juízes

170 160

75

63 152

127 175

191