batista, nilo. pena pública e escravismo

Upload: vitor-vieira

Post on 03-Jun-2018

232 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    1/43

    Captulo Criminolgico Vol. 34, N 3, Julio-Septiembre 2006, 279 - 321ISSN: 0798-9598

    PENA PBLICA E ESCRAVISMO

    Nilo Batista*

    Para Abdias do Nascimento,aos seus noventa anos de luta.

    * Criminlogo. Ro de Janeiro. Brasil.

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    2/43

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    3/43

    RESUMEN

    Partiendo de la referencia histrica de un caso criminal en 1879, unhomicidio que involucr a trabajadores y esclavos, se entiende la forma eque del derecho penal administrativo y ley civil, se desglosan las consecuencias de la llamada nocin esclavista moderna y la aplicacin injustde la ley penal en la cual subyacen ribetes que van ms all de lo escrito eel texto legal, salpicado de la influencia de las ideologas opresoras daquella poca a la actual, mantenindose viva esa esencia tanto en el podepunitivo privado como en otras reas afines que influyen en la aplicacin dprcticas de control social autoritarias que persisten hasta nuestros das.Palabras clave: Control social, ideologa opresora, pena pblica, selecti-

    vidad de la justicia.

    PUBLIC PUNISHMENT AND SLAVERY

    ABSTRACTBased on a historical reference to a criminal case in 1879, a homicide

    that involved workers and slaves, the form in which administrative penarights and civil law are understood, and the consequences of the moderslavery notion and the unjust application of penal law are explained. Ithis explanation we find elements that go beyond the written legal texts, in

    fluenced by the oppressor ideology of that period which is still maintainein essence both in private punitive punishment and in other similar areas irelation to the application of authoritative social control practices that persist presently.Key words: Social control, oppressive ideology, public punishment, se-

    lective justice.

    Pena Pblica e Escravismo 281

    Recibido: 07-06-2006 Aceptado: 28-07-2006

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    4/43

    DESARROLLO

    I. Por volta de 9:30 hs. do dia 1 de outubro de 1879, na Fazenda SJoo da Barra, situada na freguesia de S. Sebastio de Ferreiros, em Vassouras, Provncia do Rio de Janeiro, de propriedade de Antonio de Souza Gumares, os escravos Gil, Manoel, Quintiliano, Marciano e Joaquim mataramo feitor, o portugus Jos Bastos Oliveira1. O auto de corpo de delito, elabo-rado por dois vizinhos leigos2, descreveria seis ferimentos distintos na cabe-a, quatro dos quais evidentemente mortais3, uma esganadura4, uma tpicaleso de defesa5, contuses no ombro direito que parecem ter sido feitascom um pau e nas costas diversas escoriaes6. Praticado o crime, oscinco escravos dirigiram-se cidade e apresentaram-se na Delegacia de Polcia, tendo no percurso cruzado com seu senhor que, informado do ocorrido, regressava fazenda.

    A vtima Bastos retornara a suas funes havia poucos dias, depois deter prestado contas Justia da comarca de Iguassu por um pequeno crime, como registrou, numa carta dirigida ao Subdelegado de Polcia, o fazendeiro Antnio de Souza Guimares. Nesta carta, escrita um dia aps crime, Guimares tratava de assegurar que Bastos se achava hospedadoem sua casa, embora reconhecendo que anteriormente ele trabalhara commeu feitor7. Oportunamente compreenderemos melhor as preocupaes deGuimares em negar que, por ocasio do homicdio, Bastos possusse a qualidade de feitor. Se do pequeno crime de Bastos em Iguassu no h maiores referncias no processo, de seus abusos naquilo que o Promotor Pblicchamaria de direito de castigar8 temos algumas informaes. O indiciadoGil declarou, e outros depoimentos corroboraram, que Bastos empregavcastigos severos de chicote e palmatria a ponto de feri-los nas ndegas costas e ainda muitas vezes empregava a palmatria nas solas dos ps ponto de estas carem9.

    Gil fez ao Delegado uma exposio pormenorizada do planejamento

    do homicdio:ontem de manh, ao sarem (...) para o servio ele responden-te, Manoel, Quinti(lia)no, Marciano e Joaquim haviam combi-nado matar Bastos, se no servio dsse em qualquer deles, demodo que o que estivesse mais prximo do que primeiro apa-

    Nilo Batista 282 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    5/43

    nhasse seria quem daria o primeiro golpe, e como foi Manoelo primeiro que apanhou ele respondente, que estava perto dele,foi quem deu a primeira pancada que deitou Bastos por ter-ra10.

    curioso perceber que o Delegado, apesar da clarssima situao deco-autoria em homicdio qualificado pelo ajuste prvio11, referendada peloauto de corpo de delito, passa a interessar-se extraordinariamente pelo momento exato no qual Bastos apresentou sua alma a um julgamento decertmais severo que o de Iguassu. Indagado a respeito, Manoel lhe assegurarque Quintiliano, Marciano e Joaquim deram tambm com as enxadas emBastos, que ainda se mexia12. Quintiliano procurar satisfazer a curiosida-de do Delegado, garantindo-lhe que quando ele respondente deu-lhe tambm uma pancada (...) Bastos j estava quase morto (...) prostrado por terre tremendo. Ao ser, porm, indagado sobre Marciano e Joaquim, dir seja por supor que seria o melhor para eles, seja por ser verdade (verdadque, como vimos, no excluiria a co-autoria deles) que ao golpearem feitor, Bastos j estava morto13. No foi difcil para o Delegado fazer comque Marciano e Joaquim admitissem que, quando atingiram Bastos, ele jhouvera morrido14.

    Ao delegado (estranhamente, para os olhos de hoje) empenhado emreduzir o nmero de indiciados, mesmo desafiando a prova (as leses descritas no auto do corpo de delito, compatveis com as confisses e recprocas chamadas de co-ru de Gil, Manoel e Quintiliano) e a letra da lei (arts4, 5 e 16, inc. 17, CCr 1830), haveria de corresponder um Promotor Pblco igualmente econmico em acusaes contra a propriedade alheia. Dfato, a denncia oferecida pelo Dr. Rodolfo Leite Ribeiro em 8 de outubrde 1879 atribua o homicdio do infeliz feitor apenas a Gil e Manoel. Sobre os demais, observava:

    Os escravos Quinti(lia)no, Marciano e Joaquim vieram de-pois exercer sevcias em um cadver, pelo que escapam s pre-vises da nossa lei penal, se bem que procurassem aodada-mente colocar-se sob a ao da Justia, que se lhes afiguramais favorvel que a do cativeiro15.

    Como, a despeito daquela carta do senhor dos rus, j entranhada nosautos, para o Promotor Pblico a qualidade de feitor (da vtima) no s

    Pena Pblica e Escravismo 283

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    6/43

    pode contestar16, a subsuno jurdica se deslocava do artigo 192 CCr1830 (homicdio comum qualificado pelo ajuste prvio, punvel em graumximo com morte, em grau mdio com gals, e em grau mnimo com 2anos de priso com trabalhos, esta ltima conversvel quanto a escravos em aoites e imposio de ferros17) para o artigo 1 da lei n 4, de10.jun.1835 (homicdio especial do escravo contra o senhor ou familiaredele, ou contra administrador, feitor ou suas mulheres, punvel exclusivamente com a pena de morte que, segundo o artigo 4 da referida lei, se executar sem recurso algum18). Assim empostou-se a acusao.

    Por mais incmoda que fosse para o senhor dos rus, Guimares que j recuperara trs quintos de sua propriedade, com os escrpulos do Delegado e do Promotor Pblico acerca da consistncia das confisses e das chamadas de co-ru a qualidade de feitor da vtima Bastos aparecia por todlado. Na primeira comunicao oficial sobre o crime, o Inspetor interinmencionava ao Subdelegado de Ferreiros que os escravos assassinaram enxadadas o feitor19; o Subdelegado, ao informar ao Juiz de Paz, qualifica-

    va a vtima como feitor da Fazenda So Joo da Barra20

    ; e o Delegado deVassouras, ao remeter ao Subdelegado de Ferreiros os depoimentos cautelosamente colhidos por ele, referir-se- a Jos Bastos, feitor da fazenda ddito Guimares21. Uma testemunha que, a caminho de sua casa, passava nomomento do crime em terras da Fazenda So Joo da Barra, foi chamadpor Dona Maria, mulher de Guimares, que lhe pediu fosse avisar a seumarido de que uns escravos tinham matado o feitor22. No depoimento de

    informantes escravos23

    , mesmo aqueles que por recomendao do senhorou por solidariedade aos companheiros trataram de circunscrever o homicdio a Gil e Manuel, existem locues espontneas como chegou o feitoJos de Bastos24 ou enquanto o feitor desenrolava o chicote que trazia25.

    claro que os defensores dos rus indicados por Guimares, na posio de seu curador nato26 esmeraram-se em inquirir prestimosas teste-munhas e informantes para corroborar a afirmao de Guimares naquel

    carta aflita, no sentido de que Bastos, apesar daquele chicote brandido qucustou-lhe a vida, no passava de um hspede, que fra outrora feitorcomo consta de um dos depoimentos27. Apesar de toda a boa vontade doJuiz Municipal, o Tenente Jos Florncio de Mello, no ditado para o escrivo, ainda era preciso contornar acidentes, como este:

    Nilo Batista 284 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    7/43

    A requerimento do Doutor Curador disse que Jos de Bastoslhe parecia ser feitor da Fazenda, ou ao menos esta sua supo-sio, porque morando longe no estava bem certo da admi-nistrao do estabelecimento28.

    Argumentando no haver a menor dvida quanto qualidade de feitor da vtima Jos de Bastos Oliveira, at pela circunstncia de estar ele, nocasio do crime, dirigindo escravos em servio de lavoura, com todas aprerrogativas de tal cargo, inclusive aquelas pertinentes ao direito de castigar, cujo exerccio foi-lhe to fatal, o Promotor postulou a pronncia no

    termos da denncia29

    . Argumentando que o processo era mais uma tristeconseqncia da fatal lei de 28 de setembro de 187130 afinal, porventu-ra antes da lei dos nascituros os escravos pensavam em liberdade? , quo escravo se faz criminoso para subtrair-se ao cativeiro do senhor, aceitando de melhor vontade a escravido da pena e acreditando, na sua ignorncia, no seu fetichismo, que assim melhora a sua sorte, e que a vtima nera empregado da Fazenda, o advogado requereu que a pronncia reconhe

    cesse o homicdio comum, e no o especial da lei de 10.jun.183531

    . Enten-dendo que a qualidade de feitor da vtima parece suficientemente demonstrada pelas circunstncias do delito, o Juiz Municipal atendeu ao Promotode Justia32. O recurso de ofcio foi improvido pelo Juiz de Direito Carlosde Souza da Silveira, que considerou ter sido o delito bem classificado33.

    No dia 20 de dezembro de 1879, o jri, convocado para as 10:00 horas, aps os debates no houve rplica negou por 9 votos o 4 quesit

    (que indagava se a vtima era feitor), e negou por 7 votos o 5 quesito (quindagava se houvera ajuste prvio, o que qualificaria o homicdio j agora, comum34). Diante deste resultado, o Juiz de Direito, considerando Gil eManoel incursos no grau mdio das sanes do homicdio simples35, con-verteu a pena (art. 60 CCr 1830) em 400 aoites para cada um, cumprida qual sero entregues a seu senhor, que fica obrigado a traz-los com um fero ao pescoo por espao de dous anos36.

    Podemos imaginar os sobressaltos de Guimares durante este julga-mento, em seus receios de perder os dois escravos. Ao final, teria cumprimentado efusivamente seus advogados, e mais discretamente num tom dvelado agradecimento aos jurados seus vizinhos, ao juiz, ao promotor, adelegado, ao subdelegado... Retornando tardinha para sua fazenda, Gui

    Pena Pblica e Escravismo 285

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    8/43

    mares sentia-se aliviado: seu prejuzo com o caso se cingira a um feitordois advogados e custas processuais de 238$700 ris37. O sistema penalfuncionara.

    Mais difcil seria imaginar os sentimentos dos rus, que presenciarama leitura da sentena, encerrando a sesso. Manoel era natural da provncido Rio de Janeiro, porm Gil era africano. Como teriam compreendido orituais daquele dia, cujo resultado concreto era recair sobre eles uma penpblica que correspondia exatamente ltima vontade do cruel feitor?

    II. Tem sido negligenciada, seno desconsiderada, pela reflexo penalstica brasileira a circunstncia de ter a pena pblica sido instituda entrns no marco de um modo de produo escravista. A partir de um ensaio dMarx, Gorender trabalha com o conceito de coao extra-econmicaimanente ao escravismo, integrada por ter o senhor o direito privado dcastigar fisicamente o escravo38. Desde sua captura, que, como observouFlorentino, representa o momento fundacional da mercadoria humana39,estava o escravo totalmente submetido a um poder punitivo privado, no

    Brasil jamais regulamentado, que se comunicava instavelmente com o poder punitivo pblico. Esta violncia necessria40 na verdade interferia dire-tamente na infra-estrutura produtiva: a disciplina punitiva da plantagemvela ferozmente pela produtividade e supervisiona a escravaria no eitoaquela mercadoria humana que agora se converteu num meio de produhumano algemado aos outros meios, como notou Octavio Ianni41. SegundoGil, as ltimas palavras do feitor Bastos, proferidas quando comeava a ve

    gastar Manoel, foram: - ento este o servio que vocs tm feito?!42. Sea designao extra-econmica adequada quando em oposio coaeconmica que no capitalismo industrial impele a classe desprovida domeios de produo a assalariar-se, para o escravismo que no apenas sinstitui e se mantm atravs do exerccio de um poder punitivo privado, matambm produz fustigado por ele tal designao parece imprpria. Estimpropriedade ser tanto mais percebida quanto mais este poder punitiv

    privado se explicite juridicamente como poder punitivo domstico, comsuas antigas razes no poder do pater romano, de vida e de morte43, e tam-bm quanto mais nos aproximemos da conotao etimolgica da palavreconomia oikonomia, as regras que regem a casa.

    Nilo Batista 286 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    9/43

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    10/43

    mento de escrava (partus sequitur ventrem)50. Mas no jus civile, descartadasas hipteses especiosas pr-clssicas (o incensus, o infrequens e o desertor) outras da ampla casustica elaborada sobre a insolvncia ou sobre o cometimento de certos crimes, que aqui no nos interessam, atentemos para os riscoelevados do estrangeiro51 e para a venda, mais do que para a servido dapena52.

    Portanto, se Mello Freire no se recordava da bula Romanus Pontifexpela qual o papa Nicolau V, reconhecendo os direitos lusitanos sobre as conquistas na frica, autorizava o rei Afonso V a subjugar quaisquer sarracenos

    pagos e a todos reduzir servido53

    ; e tambm no se recordava de que oscapites-donatrios, por determinao rgia, podiam escravizar e at comercilizar no reino vinte e quatro peas cada ano54; e igualmente no se recordavade que o Regimento que D. Joo III outorgou em 1549 ao primeiro governadogeral, Tom de Souza, numa conjuntura de muitas preocupaes acerca doconflitos com os ndios, o autorizava a sair matando e cativando aquela pardeles que vos parecer que basta para o seu castigo e exemplo55; em suma, se

    com Mello Freire esquecssemos as inmeras referncias que, dentro dos usolegislativos de sua poca, consentiam a escravido no Brasil, restaria a transferncia milenar das regras jurdicas da escravido antiga.

    Afinal, aqueles pequenos reinos que guerreavam uns contra os ou-tros, como assinalou Pierre Verger56, criando uma escravizao que tam-bm na frica era tradicional57, favoreciam o libi perfeito para as raziasque, mediante emboscadas ou fraudes, capturavam homens livres e os sub

    metiam escravido. Conrad calcula que em cada mil escravos capturadodificilmente um dcimo era escravizado justamente58. No imaginrio jur-dico escravista moderno, tais assaltos criminosos passavam convenientemente por batalhas, e atraam a antiga fundamentao do jus gentium: o escravo um prisioneiro de guerra cuja vida foi trocada pela servido. Amarcas a fogo no corpo do escravizado o carimbo59 tributrio com obraso real, recibo de quitao, em carne viva, do pagamento da taxa rgia

    e a cruz, divisa incandescente do compelle intrare escravista, ambas impostas no porto de embarque, s quais se acrescentaria no Brasil, pelo menoat o incio do sculo XIX60, o ferrete do novo dono tais marcas tinhamefeitos tranqilizantes sobre a regularidade da pea: era sem dvida umescravo juridicamente constitudo, e com impostos pagos. Onde o mito d

    Nilo Batista 288 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    11/43

    captura na guerra falhasse, a condio de estrangeiro supriria: africanos nAmrica so irremissivelmente estrangeiros escravizveis, no fossem desde sua vinda j escravos; muitos juzes brasileiros iro, como seus colegaromanos, cham-los de brbaros. Sobre a venda, convm realar que o dreito privado burgus, alicerado na liberdade de contrato, promovera importante expanso na latitude da vontade senhorial, que repercutir no apenas na reconfigurao jurdica da transferncia do domnio, presente na codificao napolenica61, mas tambm na caracterstica da exclusividade doprprio domnio, exacerbada ao ponto de provocar uma retrao na possiblidade de interferncia pblica, ou, como percebeu Eduardo Novoa Monreal, un deber de abstencionismo del Estado respecto al ejercicio por edueo del derecho de propiedad62. Para o poder punitivo privado escravis-ta, ouro sobre azul. Por ltimo, e at como disseram, no processo que estudamos, os advogados do senhor dos rus a fatal lei de 28 de setembrde 1871, o nascimento de escrava, com algumas excees63, tinha comoconseqncia a condio escrava. Esses princpios vetustos, grotescamentadaptados s peculiaridades do escravismo colonial, e a capilarizada casustica que a partir deles o direito romano desenvolvera, supriam o laconismenvergonhado da Constituio e das leis civis.

    Essa a flexvel moldura jurdica do escravismo no Brasil imperial. Oconjunto multifrio de contravenes locais, destinadas principalmente acontrole da escravaria no espao urbano, contrasta com os escassos fundamentos institucionais, velados ou implcitos, da prpria escravido, que en

    sejam o usus modernus pandectarum na soluo judicial de casos, e ao mesmo tempo se beneficiam de efeitos legitimantes dessa recepo artificiosaA pena pblica, aplicvel aos escravos eles so coisas para o direito privado, porm so pessoas para o direito penal64 convive com uma pena pri-vada, que com ela disputa ou se articula, numa dinmica que ser objeto dnossa ateno. Mas o poder punitivo privado, que organiza a explorao dtrabalho escravizado no engenho, nas minas, na charqueada, nas fazenda

    de caf, quer exercer-se, imagem dos fundamentos institucionais da escravido, sem regras expressas, ou com poucas regras, e bem elsticas.III. Na metade do sculo XVII, Hobbes j podia caracterizar o direito

    de castigar como poder poltico, e alis como o maior de todos os poderepolticos65. A construo moderna dos estados nacionais europeus necessi-

    Pena Pblica e Escravismo 289

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    12/43

    tara e ainda necessitava de um estratgico represamento de poder punitivoNaquela conjuntura, a pena pblica cumpria politicamente um papel semelhante ao que na economia desempenhavam certas mercadorias de monoplio rgio. Estava em curso, desde o sculo XII, uma espcie de acumulaprimitiva de poder punitivo, que se fazia s custas das vtimas, gradativamente espoliadas de seus conflitos, e s custas de poderes punitivos senhoriais locais, consuetudinrios ou foraleiros, domsticos e eclesisticos. Apena como regalia no mera metfora diante do empreendimento mercantilista monrquico portugus.

    Tambm na metade do sculo XVII, Joo Fernandes Vieira, no Recifeest legislando privadamente com seu Regimento que h de guardar o Feitor-mor do engenho para fazer bem sua obrigao, recomendando-lhe quos castigos no aleijassem nem incapacitassem os escravos, que deveriamser amarrados mesa de um carro de bois para serem aoitados, depoido que, lancetados com uma navalha ou uma faca que corte bem, e tratados os ferimentos com sal, sumo de limo e urina, seriam acorrentados66.

    Tal regimento de 1663. Um quarto de sculo depois, superadas as atribulaes de sua regncia e de seu reinado, Pedro II expedia duas cartas ao governador do Estado do Brasil, Matias da Cunha, que pareciam responder usurpao de poder punitivo do ento j falecido Joo Fernandes Vieira. Nprimeira delas, o rei, por ser informado que muitos poderosos desse Estadque tm escravos lhes do muito mau trato e os castigam com crueldade, que no lcito por ultrapassar aquele moderado castigo que permitid

    pelas leis, determinava que pelo assunto se interessassem todas as devassas gerais que se tirarem neste Estado, sendo os senhores cruis obrigadoa vend-los a pessoas que lhes dem bom trato; na segunda, aumentava rigor, ordenando que em excesso grave de algum senhor o fareis processar sumariamente remetendo ao Ouvidor Geral o conhecimento, e ainddeterminando aos bispos delatassem os casos quando lhes constar. Umano depois, o poder punitivo rgio que ameaava o senhorial teve que recu

    ar. Advertido pelo governador sobre os inconvenientes que de sua execuo resultavam ao meu servio e conservao desse Estado, o rei ordenava que no tenham efeito as ditas ordens de 20 e 23 de maro (...) para quse evitem as perturbaes que entre eles (os escravos) e seus senhores j comearam a haver com a notcia que tiveram das ordens que se vos havi

    Nilo Batista 290 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    13/43

    passado67. Pedro II voltaria ao tema em 1698, numa carta dirigida ao go-vernador Joo de Lancastro, transcrita por Benci, que se ope diretamentao estilo de aoitar preconizado pelo regimento de Joo Fernandes Vieiracom o escravo atado mesa do carro de boi. Insurgindo-se contra a prtca de prend-los (os escravos) por alguma parte do corpo com argolas dferro, para que assim fiquem mais seguros para sofrerem a crueldade docastigo, procedimento inumano (que) ofende a natureza e as leis, o reagora com prudncia e cautela, mandava ao governador que o faais evtar pelos meios que vos parecerem mais prudentes e eficazes68. O privil-gio real sobre o fazer sofrer punitivo se reafirma, porm a via do confront abandonada em favor da negociao, com prudncia e cautela.

    Este ilustrativo entrechoque entre o poder punitivo privado senhorial eo poder punitivo rgio nem foi o primeiro, nem seria o ltimo. A instituido governo geral (que inclua um ouvidor-geral), na metade do sculo XVI j mutilara profundamente a jurisdio criminal outorgada duas dcadas antes aos capites-donatrios por lhes ter dado demasiada alada, como ob

    servou frei Vicente do Salvador69

    . Instalada em 1609, o funcionamento daRelao (da Bahia) desagradou a proprietrios e comerciantes, resultandem vrias representaes feitas Coroa70; o fato que, sem embargo deoutro pretexto invocado, foi a Relao fechada em 1626. A partir do finado sculo XVII, um dos maiores golpes desferidos nas franquias locais foa introduo dos juzes de fora no Brasil, em substituio aos juzes ordinrios de eleio popular71. Nas Minas do sculo XVIII, onde, por peculiari-

    dades sobre as quais no nos deteremos, predominou um dilogo colaborador entre a pena pblica e o poder punitivo senhorial, surpreendia a um jurista minucioso como Toms Antnio Gonzaga que rus da justia oficiano fossem flagelados nas espduas que aoitar, Dorotheu, em outra parte / s pertence aos Senhores, quando punem / os caseiros delictos dos escravos72 e o conde de Assumar, aterrorizado com os quilombolas, propu-nha numa carta o corte do tendo de Aquiles dos cativos73. Aps a inde-

    pendncia e a Constituio, no entorno da elaborao e promulgao do Cdigo Criminal do Imprio, encontramos igualmente vestgios de entrechoques. Uma lei de 1.out.1828 determinava que as Cmaras Municipais dessem ao Conselho Geral provincial notcia de maus tratos e atos de crueldadcontra escravos74; um Aviso de Feij, de 13.jan.1832, mandava proceder a

    Pena Pblica e Escravismo 291

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    14/43

    corpo de delito e sumrio sempre que os escravos sofressem dos seus senhores castigos imoderados75; dias depois, tinha Feij que expedir novoAviso, dirigido ao juiz de paz de Inhama, sobre um caso concreto, requisitando providncias para que o referido escravo no sofra crueldade daquele senhor76.

    A coexistncia da pena pblica e de um poder punitivo privado estariacabalmente demonstrada apenas pelos incidentes e hesitaes quanto aoexerccio do poder de graa. Se a todo processo histrico de comunalizaou publicizao da atividade punitiva corresponde, como seguro indicador

    contraponto, ainda que em medidas e com caractersticas variveis, o surgimento da graa77, fora de dvida que sua configurao moderna tomaforma na poca das monarquias absolutas: s ento o poder de clemnciconcentra-se nas mos do soberano e subtrai-se disponibilidade dos senhores locais e das autoridades religiosas (...) perdendo o carter de perdprivado (...) e objetivando-se (na perspectiva) das funes pblicas do Estado78. Em certo sentido, s aquele represamento de poder punitivo que par

    ticipa da construo dos estados nacionais europeus viabilizou a configurao moderna da graa. Portanto, aqueles incidentes e hesitaes sobre o cabimento da clemncia imperial em homicdio de escravos contra senhores79esto a revelar que o medo senhorial, num certo estgio, e o interesse senhorial na preservao do produtor direto, em outro, intervieram pendularmente sobre este avesso da pena, que no entanto (a)testa seu carter pblico: a graa.

    Estas sstoles e distoles referendam a fecunda lio de Rusche: todosistema de produo tende a descobrir punies que correspondem a suarelaes de produo80. O escravismo colonial vive suas contradies: ainevitvel corporalidade de suas intervenes penais (tronco, libambo, gollha, palmatria, aoites, mutilaes)81 tem o sentido geral de preservar afora de trabalho adquirida; mas o lesa-majestade escravista, o atentadocontra o senhor, seus familiares ou feitores, sugere o desemprego pela mor

    te, ainda que na razo direta da oferta disponvel no mercado de escravosNa dcada de trinta do sculo XIX, a difuso do medo da insurreio negracomo o estudo de Vera Malaguti Batista revelou, era um mecanismo indutor e justificador de polticas autoritrias de controle social82. Esse medoestava presente nos discursos parlamentares que se ocupavam da elabora

    Nilo Batista 292 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    15/43

    do Cdigo Criminal um deputado bradava que s a pena de morte podconter a escravatura (e) assegurar nossa existncia contra os escravos83,outro espumava em que s o terror da morte far conter esta gente imoranos seus limites84 e estava tambm presente nos editoriais sobre a insur-reio mal da Bahia para um peridico, em tom proftico, ela incutiuterrores que parecem mais nascidos da previso do futuro que do perigopresente85; para outro, mais pragmtico, impunha-se termos uma fora ar-mada suficiente, que pela sua disciplina, gente escolhida de que se compuser, nos inspire confiana e aos escravos infunda terror86. Recordemos queem 1829 Pedro I decretara que os homicdios praticados por escravos emseus prprios senhores no eram dignos de (sua) Imperial Clemncia, que a lei que cominava irrecorrivelmente a pena de morte a tais crimes (tambm cometidos contra familiares ou feitores) era de 1835.

    Ao medo branco do haitianismo correspondia um dado econmico esocial fundamental: por conta de vrios fatores, entre os quais Celso Furtado destacava a desagregao da economia mineira87, havia no perod

    abundncia de oferta de escravos no Rio de Janeiro. Confrontando inventrios de pequenos proprietrios, Florentino comprovou que 73% dos maipobres (...) eram possuidores de escravos, situao que comearia a se alterar quando do estupendo aumento dos preos dos africanos a partir d182688. Excesso na oferta de mo-de-obra, tanto quanto concentrao de-mogrfica, costuma resultar, em muitas conjunturas histricas, na programao e execuo da pena de morte. Como se sabe, a partir de 1850, com

    efetiva proibio do trfico atlntico, substitudo por um limitado trfico interprovincial89, a situao mudar substancialmente, e a populao escravaentrar em declnio. A Provncia do Rio de Janeiro tem, em 1874, 301.35escravos; em 1884, tem 258.23890. Em Vassouras, se, na dcada de 1830,62% da populao escrava estava em idade produtiva (entre 15 e 40 anos)na dcada de 1880 tal proporo desceu para 35%91.

    Podemos, agora, compreender melhor o zelo, algo hilariante, daquele

    Delegado que se esmerava em registrar minuciosamente que, quando Quintiliano vibrou sua enxadada, Bastos j estava quase morto, a sobriedaddaquele Promotor Pblico, para quem trs dos co-autores inclusive Quintiliano apenas vieram depois exercer sevcias em um cadver, e a convico daquele jri, de que Bastos no era um feitor, apesar de ter morrid

    Pena Pblica e Escravismo 293

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    16/43

    com o chicote na mo. Quatro ou cinco dcadas antes, teramos provavelmente cinco enforcados: escravos baratos, baraos prestos. Mas podemoagora tambm tentar compreender melhor os mecanismos da atual expanscrescente da criminalizao secundria dos afrodescendentes, dos desempregados, desses sobreviventes do mundo industrial despejados dos programas assistenciais pblicos consistentes, que o Estado mnimo deve suprimiem favor da caridade cidad neoliberal. Para a legio de inteis da noveconomia, delegados e promotores que ampliaro tanto quanto possvel rol de indiciados e acusados, e tribunais sensibilizados por editoriais emtudo idnticos aos da dcada de 1830 que transigem com a qualidade dprova para condenar, e perante os quais a defesa vista quase como um estorvo. Mo de obra desesperanadamente excessiva, encarceramento galopante, segundo uma racionalidade que De Giorgi descreveu como atuarial92. Quem poderia imaginar que o exrcito industrial de reserva acabariacom parcelas importantes de suas divises dissuasivamente internadas empenitencirias privadas, geridas por empresas cujas aes flutuam com o ndice Nasdaq?! S o conhecimento histrico desvela a constatao de queaparentemente em campos antagnicos, alguns diligentes delegados, promotores, advogados e juzes de hoje cumprem as mesmas funes que seucolegas da Vassouras de 1789.

    IV. Mais fascinante do que descrever seus entrechoques ser espreitaras trocas recprocas, as articulaes e o trnsito livre entre a pena pblica o poder punitivo privado. Para isto deveremos, previamente, reconstruir a

    bases jurdicas do poder punitivo privado, ou seja os fundamentos legais daquilo que nosso Promotor Pblico chamava de direito de castigar. S ento estaremos aptos a extrair todas as conseqncias do que foi instituir pena pblica no marco de um modo de produo escravista, percebendo dinmica dessa continuidade que se estabelece e j constitua para ns umlegado histrico93 - entre o pblico e o privado.

    O artigo 14, 6 CCr 1830 dispunha que ser o crime justificvel, e

    no ter lugar a punio dele quando o mal consistir no castigo moderadque (...) derem (...) os senhores a seus escravos (...) uma vez que a qualidade dele no seja contrria s leis em vigor. Embora na disciplina do crcere privado o cdigo de 1830 no fizesse a ressalva quanto priso do escravo pelo senhor (como, j veremos, era tradio em Portugal), nas penas d

    Nilo Batista 294 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    17/43

    plagium se fazia referncia a um captiveiro injusto (art. 179), e o crime dcrcere privado (art. 190) s se caracterizava quando algum for recolhidpreso em qualquer casa, ou edifcio no destinado para priso pblica, ou aconservado sem urgentssima necessidade (...). O artigo 60, transcrito nnota n 17, estabelecia que, salvo as penas de morte ou de gals, que se executariam, os condenados escravos teriam todas as demais convertidas emaoites, aps cuja execuo seriam entregues ao senhor, obrigado a trazlo(s) com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar. Em sua partfinal, a disposio limitava em cinqenta aoites dirios a mxima intensidade da pena, sem estabelecer contudo um patamar mximo absoluto.

    O conceito de castigo moderado provm do direito romano, estandoexpresso, entre outras fontes, num rescrito de Constantino, de 319. Aps esclarecer que o senhor que houvesse batido em seu escravo com varas oucorreias de couro (virgis aut loris servum dominus afflixerit) ou, para cont-lo, metido a ferros ou prendido (aut custodiae causa in vincula coniecerit), resultando a morte dele, no deveria temer um crime (nullum crimini

    metum servo mortuo sustineat), o imperador advertia para que este direitno fosse usado imoderadamente (nec vero immoderate suo iure utatur), arrolando um conjunto escabroso de hipteses que tornariam o senhor ru dhomicdio (sed tunc reus homicidii sit)94. Como se v, a noo de castigomoderado tinha uma face nos aoites e outra na imobilizao fsica, por instrumentos ou crcere, do escravo.

    O monoplio rgio do crcere participa do represamento de poder pu

    nitivo. Ao Rei, ou Prncipe da terra lia-se nas Ordenaes Afonsinas pertence somente fazer e ter crcere, que se chama Crcere pblico (...) qualquer outro, que per si faz crcere, contradiz ao Rei ou Prncipe dessterra e Senhorio, porque lhe usurpa a sua jurisdio95. Apesar dos prece-dentes romanos96, a que est germinando, na sua base fsica, a futura ca-tegoria jurdica moderna da liberdade individual. Havia, contudo, uma ressalva expressa quanto ao encarceramento de escravos polos castigar e

    emendar de ms manhas e costumes: porque em tal caso os poder (o senhor) prender97. Tratando do crcere privado, Mello Freire ensinava queno o praticaria o senhor que castigasse o escravo e o prendesse em casa, dsorte que a atrocidade do fato no excedesse o direito de correo domstica (modo atrocitas facti jus domesticae emendationis non excedat)98.

    Pena Pblica e Escravismo 295

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    18/43

    Nossos penalistas pareciam pisar em ovos ao tratar do assunto, estudando o artigo 14, 6 do Cdigo Criminal. Vieira de Arajo, expondo que chamava de assumpto melindroso, silenciava por completo sobre hiptese do castigo do senhor sobre o escravo, detendo-se apenas nas hipteses correlatas (pai-filho e mestre-discpulo)99. O Conselheiro Paula Pessoalimitava-se a evocar aquele j referido Aviso de 11.nov.1835, ordenando aosenhores se abstivessem de castigos excessivos, e a mencionar um acrdda Relao do Maranho, de 1875, segundo o qual o senhor (que) castigando seu escravo produz nele ferimentos seria juridicamente processvel: sim, o senhor pode ser querelado pela promotoria pblica100. Estaementa para ingls ver todo o comentrio de Tinoco101. Thomaz Alves Ju-nior, muito timidamente, acrescentava meno do Aviso de 1835 um esforo de demarcao. Segundo ele, os limites traados pelo Cdigo ao direito de castigar seriam: a) que seja moderado e; b) que em qualidadno seja contrrio s leis em vigor. Mas a primeira limitao vaga, enquanto a segunda clara e positiva. E exemplificava com o emprego dcastigos corporaes vedados pelo regulamento da instruo pblica102.Sim, tnhamos regras para os castigos na educao pblica, no porm paro governo punitivo privado da escravaria. O grande Perdigo Malheirocombatente sincero e obstinado da escravido que entretanto no deixaride ver nela uma mancha negra (!) da nossa sociedade (que) estendeu-se legislao e denegriu (!) algumas de suas pginas103 , para esclarecer osdois requisitos (moderao e compatibilidade s leis), formulou exemplopreocupantes de excesso: queimar o escravo, feri-lo com punhal, precipit-lo ao mar, ofend-lo enfim por modos semelhantes104.

    So compreensveis essas dificuldades. Entre o direito senhorial docastigo moderado e a vedao pblica do castigo excessivo, h uma extenszona de fronteira puramente retrica, na qual s os homicdios nos exemplos de Perdigo Malheiro como nos de Constantino parecem claramentabusivos. Na falta de regras jurdicas explcitas sobre a matria, na falta d

    Cdigo Negro, para que serve o segundo limite, que a qualidade (do castgo) no seja contrria s leis em vigor? O silncio obsequioso do discurspenalstico diante da justificativa do castigo senhorial moderado, questmil vezes mais importante naquela conjuntura do que o castigo familiar e

    Nilo Batista 296 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    19/43

    pedaggico, a prova definitiva do sucesso que o poder punitivo privadescravista alcanou em resistir a ver-se regulamentado.

    Quanto aos aoites como pena pblica e ao senhor como rgo de execuo penal (art. 60 CCr 1830), o primeiro problema estaria em seu antagonismo com a Constituio do Imprio, que vedava expressamente os aoitee implicitamente a imposio de ferros, esta entre as mais penas cruis105.Um trecho do Conselheiro Paula Pessoa nos elucidar, removendo o inconveniente: no obsta a esta disposio (ao art. 60 CCr) o art. 179, 19 dConstituio do Imprio, por isto que os escravos acham-se fora della106.

    J Thomaz Alves Jnior silenciava acerca da Constituio, para pragmaticamente ensinar: se outros povos mais antigos e mais civilizados admitem castigo corporal, por que o no seria entre ns, onde a existncia fatal descravatura justifica essa necessidade palpitante? Afinal, nenhuma pendas estabelecidas no Cdigo pode satisfazer a correo de seus (dos escravos) delitos107. Est tudo claro: o escravos esto fora da Constituio, eportanto, segundo autores liberais que esses penalistas liam, em estado d

    natureza, e a necessidade palpitante dos aoites, a nica que pode corrigi-los, decorre de ser a escravido uma fatalidade que o Brasil compartilhava com povos mais antigos e mais civilizados. O discurso penalstico legitimante quase sempre uma caricatura empertigada dos desejos da classsocial dominante, que a fluncia dos anos torna progressiva e impiedosamente mais ntida.

    Quando nosso Juiz de Direito condenou Gil e Manoel a 400 aoites cad

    um (e depois dois anos de ferro ao pescoo sob superviso de Guimares), etava ignorando o aviso n 365, de 10.jun.1861, que recomendava consideraque, segundo afirmam os facultativos, quando o nmero de aoutes excededuzentos sempre seguido de funestas conseqncias. A inexistncia de umpatamar mximo gente fora da Constituio, em estado de natureza, no precisa de reserva legal levava, como disse Thomaz Alves Jnior, a sentenabrbaras e inquas, pelas quais, vergado ao que ele chamara de necessidad

    palpitante, mais de uma vez tem sucumbido o pobre infeliz escravo108

    . Exe-cutada a pena de aoites, o escravo era entregue ao senhor, e retomava suas atvidades sob ferros, na forma e pelo prazo assinado na sentena. Um aviso (n30, de 9.mar.1850, 3) lembrava a obrigatoriedade desta pena complementa de aoites, que o Juiz de Direito sentenciante no poderia relegar ao Juiz Mu

    Pena Pblica e Escravismo 297

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    20/43

    nicipal, competente para as execues penais. O senhor que mantm, poordem judicial, o escravo sob ferros, est executando privadamente umpena pblica, e esta pena pblica lhe retribui com os frutos da mo-de-obrpenal. Uma espcie de parceria pblico-privada (avant-la-lettre) punitiva.

    muito evidente que esta dinmica punitiva se preocupa, antes de mainada, com a conservao til do escravo, com sua rpida reposio nos trabalhos do eito, reforando a autoridade senhorial que se comunica com a pblicpor delegao legal desta, na gesto da execuo penal. Explica-se assim a ojriza senhorial pena de gals, mais que de morte: se, na pena capital, supr

    mia-se o trabalho humano j adquirido e pago (correndo a extenso do prejuz conta da oferta no mercado de escravos), nas gals havia como que umapropriao pblica daquele trabalho que pertencia ao senhor. Emilia Viotti dCosta lembra que, em 1853, o deputado provincial em So Paulo Queiroz Telpropunha que a pena de gals no fosse aplicvel aos escravos, porque a amea de trabalhos forados nenhuma influncia moral teria sobre eles; dois anodepois, outro deputado paulista pronunciava-se contra a pena de gals, enten

    dendo que nesse caso quem sofria a pena era o senhor; e em 1860, um tercero deputado voltava ao tema, assinalando que as gals faziam sofrer mais asenhor do que ao escravo109.

    A averso senhorial pena de gals logo estaria nos editoriais, nos atoadministrativos, nos estudos jurdicos e nas sentenas. O aviso n 72, d3.fev.1836, preconizava que o escravo deveria sofrer a pena de gals sem quo juiz a possa comutar em aoites. Conceber as gals como um estmulo ao

    crimes dos escravos era moeda corrente naquela poltica criminal. No relatrique o ministro da Justia Francisco Janurio da Gama Cerqueira elaborou, em1877, afirmava ele que a pena de gals era manifestamente ineficaz contraquela classe (dos escravos), sobre a qual no atua pelo exemplo e intimidamas antes parece influir como atrativo e esperana de melhoramento110. Tho-maz Alves Jnior ensinava que se as gals representassem um trabalho rudespero, talvez fosse diferente; porm como oferecem um estado mais suav

    que o prprio cativeiro, acabam funcionando como incentivo111

    . O jornal OMunicpio, de Vassouras, num editorial de julho de 1877, que talvez Guimaretenha lido, clamava: h uma crena errnea de que sob a penalidade de galperptuas, quase sempre imposta para crimes de escravos, a existncia do escravo menos spera do que aquela que eles suportam sob propriedade priva

    Nilo Batista 298 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    21/43

    da112. No processo que estudamos, curioso perceber que este argumento esgrimido por ambos os representantes das partes litigantes. O Promotor Pblco registrou na denncia que os trs escravos que, em sua opinio, apenas viram depois exercer sevcias em um cadver (inclusive Quintiliano, que declarara ao Delegado que quando dera sua pancada em Bastos este j estava quasmorto... prostrado por terra e tremendo), teriam na verdade procurado aoddamente collocar-se sob a ao da Justia, que se lhes afigura mais favorveque a do cativeiro. Mas os advogados de Guimares no deixariam de lembrar, em defesa de Gil e Manoel, que o escravo se faz criminoso pra subtraise ao cativeiro do senhor, aceitando de melhor vontade a escravido da pena.

    No por acaso Bentham foi o autor mais citado nos debates parlamentares sobre o Cdigo Criminal de 1830, ao lado de Livingston113. Sua obrachegara aqui atravs das duas coletneas de textos que Etienne Dumont organizara e traduzira114. A recorrente comparao entre as condies das ga-ls e as da plantagem inscreve-se no conhecido paradigma benthamiano dregra da severidade: um prisioneiro no pode ter sua condio melho

    que aquela dos indivduos de sua mesma classe que vivem num estado dinocncia ou liberdade115. A pena deve ser a pior escolha; mas quando acondio existencial do ru j era a pior possvel, privada do estado de liberdade, e ainda lhe fra imposta coercitivamente, constitui refinada arte construo de uma teoria jurdica da pena que evite o apocalipse econmicou a catstrofe moral: s a pena de morte ou s um castigo fsico dolorospodem responder s infraes dos escravos. Ou morte, ou tortura, eis o dile

    ma dos penalistas do escravismo. Bentham nos trpicos escravistas no apenas isso. Que haveria de mais oportuno, para uma poltica criminal adstrita morte e tortura, do que a idia benthamiana da sensibilidade naturalmente distinta, no s nas espcies como nos seres humanos e em suanaturais divises , segundo a qual toute cause de douleur ne donne pas chacun la mme douleur116, e portanto la mme peine ignominieuse quifltrirait un homme dun certain rang ne sera pas mme une tache dans un

    classe infrieure117

    . A sensao dolorosa no se instalou de forma idnticapor todo o gnero humano, e a mesma pena que estigmatizaria insuportavemente um homem de certa posio no constitui qualquer mcula para umclasse inferior. No lombo dos escravos, um tapinha no di, e quando a frula de Bastos arrancava-lhes a sola dos ps, no existia objetivamente o so

    Pena Pblica e Escravismo 299

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    22/43

    frimento que os delicados sentidos dos brancos poderiam sugerir. Quemquiser ver este vestgio de Bentham, delicie-se com o artigo 19 do Cdigimperial: Influir tambm na agravao ou atenuao do crime a sensibildade do ofendido118. Foi Bentham quem realizou a proeza de inscrever omito revolucionrio da igualdade na pena de aoites. Sim, era possvel obvar o inconveniente dos impulsos e humores do verdugo ao brandir o ltegoque romperiam com a igualdade perante a lei. Era possvel construir unmachine cylindrique qui mettrait en mouvement des corps lastiques119(ele, quase como Constantino virgis aut loris - sugere juncos ou couro dbaleia). O nmero de giros do cilindro, impessoal e mecanicamente corretoseria o nmero de aoites: nada mais haveria de arbitrrio, garantiaBentham. Teriam os personagens do sistema penal de nosso caso, o delegado, o subdelegado, o promotor pblico, o juiz municipal e o juiz de direitoos advogados, teriam eles lido isto? Algum deles teria, discretamente, tentado oferecer esta contribuio terica e prtica disciplina punitiva dos cafeicultores de Vassouras? Ouamos Stanley Stein: uma engenhosa variado ato de chicotear foi narrada por ex-escravos. Tratava-se de um bacalhau movido a gua, pelo qual um chicote amarrado a uma roda dgua gratria chicoteava os escravos amarrados num banco120. Definitivamente,Bentham foi e, se olharmos com ateno para a espantosa facilidade comque se deferem interceptaes telefnicas, ou para o balo dirigvel cheio dcmeras que resolveria tudo, ainda um sucesso no Brasil.

    V. As teorias jurdicas legitimantes da pena escravista eram curiosa-

    mente muito parecidas com as idias punitivas de uma literatura de bonconselhos agrcolas que, com muito sucesso, circulou em meados do sculXIX, como o Manual do Agricultor Brasileiro, de Taunay (1839)121 e a Me-mria sobre a Fundao de uma Fazenda, do baro de Pati do Alferes(1847)122. Alm das informaes agrcolas, estes senhores falam explicita-mente de seu prprio poder punitivo, e da melhor maneira de empreg-lo nadministrao da escravaria da fazenda. Mas no incio do sculo XVIII

    tratamento de escravos fra tambm objeto do estudo de dois jesutas, JorgBenci (1700) de quem j nos valemos e Antonil (1711)123, compondoum conjunto de conhecimentos que Silvia Hunold Lara precisamente chamou de verdadeira cincia da dominao senhorial124. , portanto, sobreos alicerces do pensamento jesutico no qual confortavelmente se reflete

    Nilo Batista 300 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    23/43

    concepo cannica ampla que v na pena no s retribuio vindicativ(punit et vindicat), mas tambm aterrorizao pelo exemplo (ut poena illiualiis terrorem incutiat) e ainda a saudvel emenda do ru (in correctionemsaluberrimam)125 retemperados pelo utilitarismo dos manuais agrcolas dosculo XIX, que esta cincia da dominao senhorial ser incorporada pelas teorias jurdicas legitimantes da pena escravista.

    Sabemos hoje dos riscos das chamadas teorias combinatrias das penas, que agregam as funes retributivas e preventivas, gerais ou especiais126. So elas que mais facilmente habilitam poder punitivo, porquanto

    eventual deficincia da necessidade preventiva logo suprida pela exigncia retributivista, e vice-versa, como na fbula do lobo e do cordeiro: se ru no precisa de emenda, os demais precisam de exemplo, ou o contrrioe se no h necessidade nem de emenda nem de exemplo, o princpio retributivo se encarrega de fundamentar a pena. Tanto mais totalizante e reticular seja o controle punitivo pretendido por certo sistema penal historicamente determinado, mais precisar ele de uma teoria combinatria da pena. Par

    Benci, merecendo o escravo o castigo, no deve deixar de lhe dar o senhor, j que a impunidade filha da incria e me da insolncia; mas castigo serve tambm para trazer bem domados e disciplinados os escravos, que deles precisam como o ginete necessita da espora e o jumento dfreio; no nos esqueamos de que o castigo mais pode temido que experimentado; e finalmente consideremos que o nico (!) motivo no castigodos escravos deve ser s a emenda de suas vidas atravs dos aoites, me

    dicina da culpa127

    . Nessas passagens se incrustam todas as variveis teri-cas legitimantes da pena disponveis ao tempo de Benci. Menos conceituaAntonil vagueia entre um castigo que poderia evitar-se perante um prometimento de emenda e um outro justo e merecido, cuja omisso seria cupa no leve do senhor128. Taunay, sabedor de que o medo o nico meiode obrigar os escravos a cumprirem com o dever, e portanto serve o castgo de um para ensinar e intimidar os demais, preconizava que os crime

    domsticos de maior monta fossem punidos com 50 pancadas, e o qupassar da antes dado raiva e vingana do que emenda do castigado129. Nossos penalistas traduziriam este discurso de forma ainda maisfuncional para o poder punitivo privado escravista. O Conselheiro PaulPessoa, tratando da moderao nas penas qual, num livro jurdico, se re

    Pena Pblica e Escravismo 301

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    24/43

    ferir valendo-se de um termo mais adequado religio ou moral, bondade frisar que a melhor base da bondade a admisso de uma ordemprovidencial, em que tudo tem o seu lugar e a sua classe, e recomendarprocure-se corrigir com bondade o criminoso130. Camargo, catedrticoem So Paulo, foi mais longe, adaptando as idias de Rossi sobre a pena pblica para concluir que a punio no se d de igual para igual, mas sim dsuperior para inferior!131 Fazendeiros e feitores saborearam essas teorias jurdicas: h uma ordem providencial, na qual tudo tem o seu lugar e sua classe, e se algum quiser saber qual a classe superior, basta vequem est segurando o chicote, porque a punio se d (...) de superiopara inferior. Mas o que os juristas incorporariam celeremente dessa cincia da dominao senhorial seria a teoria combinatria da pena. A pena um mal em conseqncia de outro mal (...); o fim da pena mltiplo, madous so os principais, o exemplo e a correo moral pontificava Thomaz Alves Jnior132. Paula Pessoa falava de vindicta pblica, de carterexemplar e de carter corretivo (procure-se corrigir com bondade o crimnoso), acenando eram as primeiras mars do positivismo criminolgico com um ente adoentado moralmente que se chama criminoso133. O ecle-tismo, portanto, e s elle que pode apresentar e defender a verdadeira doutrina, pronunciava-se Camargo, acasalando concepo absoluta o restabelecimento da ordem moral e social134. margem dessa festa, que abriatodas as porteiras metodolgicas pena pblica posta na assessoria de umdominante poder punitivo privado, Tobias Barreto percebia a sobrevivncida vingana, e renunciava a trabalhar a questo ociosa do melhoramente correo do criminoso por meio da pena, convicto de que o direito npartilha com a escola e com a igreja a difcil tarefa de corrigir e melhorar homem moral135.

    Um sistema penal que pretenda envolver e controlar por todos os ladosua clientela antes de tudo vigilante: uma comisso de fazendeiros da regio de Vassouras, cujas recomendaes, de 1854, foram recolhidas por Bi

    var Marquese, prescrevia uma polcia vigilante sobre os escravos136

    . Halgo de Bentham nisto, na perptua vigilncia (...) a qualquer movimentopreconizada por Taunay137; mas o Cdigo Negro (CN) de Santo Domingode 1768, quase duas dcadas antes de ocorrer a Bentham o princpio da inspeo138, j estabelecia que as senzalas no tivessem mais que uma porta, e

    Nilo Batista 302 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    25/43

    esta nica frontalmente visvel casa do senhor, para que facilitndose a lvista quien entra y sale (...) se eviten las maldades que (...) se cometen139.Essa vigilncia se estendia s manifestaes culturais e religiosas: o CN dSanto Domingo de 1784 proibia as festivas exquias dos negros (que sueleformar en las casas de los que mueren, a orar y cantar en sus idiomas emloor del difunto)140, bem como el infame principio (...) de la Methempsico-sis (...) o transmigracin de las almas a su amada ptria, que es para ellos eparaso ms delicioso141. No Brasil imperial, catlico pelo artigo 5 de suaConstituio, a imposio da religio oficial participava do controle. O baro de Pati do Alferes recomendava que o escravo deve ter domingo e disanto, ouvir missa (...) saber a doutrina crist e confessar-se anualmente142.Entre ns, a vigilncia policial sobre cultos africanos prtica que chegari segunda metade do sculo XX. Os cdigos negros mesmo aqueles semvigncia, como foi o caso desses dois de Santo Domingo, citados acima constituem uma fonte singular para o historiador do sistema penal brasileiro. Eles vm povoar os silncios de nossa legislao sobre escravos; elenos revelam normas que provavelmente tambm teriam sido nossas, se houvssemos elaborado aquele Cdigo Negro ao qual Teixeira de Freitas relegara a disciplina jurdica da escravido. Eles nos apresentam mandados proibies fantasmagricos, que se esconderam no cerne assustador da ideologia e da prtica escravista, porm no foram capturados pela escrita jurdica, porque no Brasil o poder punitivo privado no teve a refre-lo um regulamento pblico. A desregulamentao no foi inventada pelo liberalismdos dias que correm.

    Para observar alguns aspectos das promscuas relaes entre o podepunitivo senhorial e a pena pblica, principiemos por uma disposio dCdigo Negro da Luisinia espanhola, que aproveitava modelos francese(o ferro em brasa que punia pequenos furtos imprimia nos escravos a florde-lis - art. 30), e alis teve vigncia (1769-1800): el esclavo condenado muerte en denuncia de su amo (...) ser estimado antes de la ejecucin po

    dos de los principales habitantes (...) y el precio en que se estimen, ser pa-gado143. Esta autntica privatizao da pena de morte responde ao modelotradicional, do qual falava Benci: quando o senhor quer que o escravo sejcastigado com a pena (...) deve remet-lo justia, e ela lhe dar, se o merecer, a pena de morte144. Nem todos os senhores, entretanto, se conforma-

    Pena Pblica e Escravismo 303

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    26/43

    vam em matar atravs do carrasco, com a agravante de que no Brasil a desapropriao pela forca no era indenizvel, como na Luisinia do sculo daluzes. Em 1883, Joaquim Nabuco asseverava que o jri no interior tem absolvido escravos criminosos para serem logo restitudos aos seus senhorese a lei de Lynch h sido posta em vigor em mais de um caso145; dois anosdepois, Rui Barbosa era ovacionado no Polytheama ao denunciar os qupromovem, nos jris, a absolvio dos escravos acusados para os assassinadepois a aoites, na impunidade tranqila das fazendas146. O despistamen-to sobre a causa mortis que tambm constituiria entre ns uma permanncia, ou j nos esquecemos do papel de alguns mdicos nas salas de torturdo subsistema penal DOPS/DOI-CODI? um item a merecer atenoUm proprietrio fluminense, que tambm era mdico, matou em 1887, aoites, palmatria e imobilizao no tronco, oito escravos seus, fugidos recapturados: ele mesmo atestou o motivo do bito, angina pectoris147.Em 1886, dois escravos de um fazendeiro de Paraba do Sul, submetidos 300 aoites cada por ordem do juiz municipal, teriam falecido, regressandpara a fazenda, de congesto pulmonar148. Tais fatos eram objeto de am-plos comentrios, publicaes na imprensa, e por vezes providncias investigatrias raramente eficazes. Se for cabvel invocar informao contidnuma obra expressamente renegada por seu autor, uma edio do Dirio dPelotas de abril de 1881 noticiava a execuo aoites por trs horas dum escravo na charqueada do Sr. Valladares, arrendada ao Sr. Paulino Lete149.

    Aproximemo-nos daquilo que Lana Lage da Gama Lima chamou deestranha associao em que a justia privada estipulava a pena a ser executada pela justia pblica150. Pelo aviso n 67, de 10.dez.1832, Feij deter-minava ao Intendente Geral de Polcia providenciar para que doravante nenhum escravo seja conservado no Calabouo ordem de seus senhores pomais de um ms. Um aviso de 18.jan.1830 determinara a cobrana das despesas nas quais incorriam os escravos que por correo so mandados pe

    los respectivos senhores para a Presiganga151

    . Regulamento de 23.set.1854criava na Casa de Correo de So Paulo um calabouo, em que sero recolhidos os escravos presos policialmente (...) e os que forem remetidos poseus senhores, sujeitos disciplinarmente a palmatoadas e chibatadas poqualquer falta grave152. Em 1850, o ministro da Justia Eusbio de Quei-

    Nilo Batista 304 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    27/43

    roz proibia a recluso de escravos no Aljube, a no ser que para formade culpa153. O conceito de prises de correo constava num aviso de28.jan.1828; mas poderamos tambm construir um conceito de aoites dcorreo e, como tanto apraz razo dogmtica jurdico-penal, classificlos em duas grandes espcies: aqueles que eram ministrados de ofcio, aqueles requisio do senhor. Holloway refere um decreto de 1823 queconfirmou a autoridade da polcia para aoitar escravos no ato da prisoe uma proviso do Intendente Geral de Polcia, de 1826, segundo a quatodo escravo preso por capoeiragem receberia sumariamente cem aoites154.O aviso n 82, de 2.abr.1825, determinara que o ouvidor da comarca doRio de Janeiro faa castigar correcionalmente a todos os pretos que por taicrimes (pequenos roubos) lhes forem apresentados. A desenvoltura com qual alguns magistrados se lanaram aos aoites de correo teve que secontida. Por aviso n 37, de 25.jan.1832, Feij procurava conter o entusiasmo flagelante do juiz de paz de Mag, que levantara dois moires para neles serem aoitados os escravos capoeiras: os paus podem existir, porm oescravos no devem ser aoitados sem primeiro serem convencidos em processo sumrio. Aviso de 3.nov.1831 limitara a cinqenta o mximo dosaoites dados por correo nos escravos requisio de seus senhores, aviso de 8.ago.1836 estabeleceu que estes cinqenta deveriam ser executados em dois dias alternados, e nunca de uma vez ou em dias seguidosCumprindo evitar o abuso com que alguns juzes de paz mandam dar aoites, aviso de 10.jun.1837, subscrito por Francisco G Acaiaba de Montezuma, mandava que o administrador do Calabouo s autorizasse a inflidos aoites vista de documento que prove ter o escravo sido devidamente processado e sentenciado. A exigncia de uma sentena inviabilizaria a classe dos aoites de correo de ofcio no Calabouo (tratar-se-ia dpena), fosse ela observada escrupulosamente. J para os senhores, a sentena era apenas sua vontade, e no Calabouo, ao preo de 100 ris cada 10chicotadas, o servio pblico executava a pena privada; em 1826, o pre j estava em 160 ris por centena de golpes, mais 40 ris por dia para cobrir os custos de subsistncia, e naquele ano 1.786 escravos, entre oquais 262 mulheres, foram aoitados no Calabouo a pedido de seus senhores155. A tradio de agncias pblicas exercerem o poder punitivo privadopode mirar-se, na Curitiba de 1699, na aquisio pela Cmara Municipal d

    Pena Pblica e Escravismo 305

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    28/43

    um tronco156: a comistura entre pena pblica e vingana privada escravistaresulta numa pena escravista exercida como vingana pblica.

    Fiquemos por aqui. H um mundo de trilhas a serem percorridas, naprocura das tcnicas e das mentalidades do sistema penal escravista. Aquelpau na boca por vezes imposto aos escravos aoitados, para impedir alegassem razes e desculpas ou mesmo para no se ouvirem seus gemidos157, porventura se relacionaria com aquele dispositivo que impedia, noautos-de-f, imprecaes herticas, como la lingua in giova per le brutissime parole che diceva Giordano Bruno158? E como ambos se contrapem

    ao que Foucault chamou de discours dchafaud159

    , aquela esperada auto-proclamao da prpria culpa que um atributo histrico do sujeito culpvel catlico?160 E a palmatria, essa tcnica punitiva na qual a emenda mo-ral do criminoso se encontra com o aprimoramento escolar do estudanteNo est passando da hora de se encontrarem o discurso jurdico-penal e pedaggico para inventariarem os escambos tericos de que se valeramEmilia Viotti da Costa surpreendeu um procurador fiscal ilustrado, que n

    Campinas de 1854 propunha que os aoites fossem substitudos por umcastigo mais razovel, a palmatria161. A palmatria figurava em inme-ras posturas municipais e leis provinciais: no Esprito Santo, duas dzias dbolos eram a quarta-feira do escravo folio162; a lei provincial paranaense n361, de 19.abr.1873, autorizava o uso da palmatria nas primeiras letrapara os casos em que os castigos morais no forem suficientes (art. 1), lmitado a seis palmatoadas em casos graves (art. 2). Quando estudaremo

    a influncia do penalismo escravista sobre nosso sistema educacional163

    ,particularmente aquele que atendia e segue atendendo a adolescncia pobrcriminalizada, aos tataranetos desamparados dos escravos? Por fim, pomais que nos fira o narcisismo, temos que estar preparados para acreditaque os penalistas dos quais descendemos talvez tenham aprendido a falar dproporcionalidade com o baro de Pati do Alferes o castigo deve ser proporcional ao delito164 e talvez tenham aprendido a superstio dos efei-

    tos preventivo-penais da pronta e inevitvel aplicao dos castigos com fazendeiro Taunay165, e no com Beccaria166.

    Nilo Batista 306 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    29/43

    CONCLUSES

    Num modesto trabalho, publicado h trs lustros, questionvamos o conceito, corrente nos manuais de direito, de um Estado ilusoriamente acima dointeresses e alheio aos conflitos de classes167. No alimentamos, portanto, a es-perana ftil de que a pena pblica pudesse estar acima de tais interesses oalheia a tais conflitos, e a seletividade estrutural do sistema penal nas sociedades de classes o demonstra suficientemente. Mas h algo de escandaloso quando uma nao funda a pena pblica no marco de um modo de produo escravista, e as marcas desse escndalo esto diante de nossos olhos ainda hoje.

    Em primeiro lugar, a pena escravista assume expressamente a dife-renciao penal168 para projetar-se como instrumento de identidade e desegregao poltica. assim que cabe entender aquela disposio de umcdigo negro hispano-americano que determinava a todo negro esclavo libre fosse tan sumiso y respetuoso a toda persona blanca como se setratasse de su mismo amo o seor169. No tivemos esta norma escrita,mas intensamente a internalizamos e praticamos, como expectativa, comsigno de ordem e at como esttica, nas relaes sociais. Uma apropriado trabalho alheio to radical quanto a do escravismo, onde o produtor direto juridicamente incapaz de propriedade, e toda riqueza por ele criadpertence a seu senhor, supe no s um poder punitivo privado insoneque vigie e castigue vinte e quatro horas por dia, mas tambm uma permanente legitimao discursiva. Genovese ressaltou a ambigidade econmica do senhor, essencialmente dependente do trabalho de outrem, perante qual qualquer tentativa de (...) questionar o sistema escravista era vistano s como um ataque a seus interesses materiais, mas como um ataque sua auto-estima, em seu ponto mais vulnervel170. Matar e torturar quemas enriquecia uma contradio enigmtica a partir da qual as cincias dsubjetividade poderiam contribuir para decifrar nas oligarquias brasileiraa demanda incessante por um poder punitivo ao mesmo tempo paternaliste exterminador, bem como sua averso a qualquer deslegitimao da pene do sistema penal.

    O estrago foi feito. Regulamentos penitencirios da primeira Repblica impunham aos internos sanes disciplinares em tudo idnticas s penados escravos, como restrio alimentar e imposio de ferros171, alm

    Pena Pblica e Escravismo 307

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    30/43

    dos espancamentos que, embora no figurem nos textos, foram e continuaram sendo largamente praticados. Pior: inventamos modelos de exploracom fortes traos escravistas, alguns dos quais sobrevivem at hoje172. Masum vice-presidente da Confederao Nacional da Agricultura reclamava outro dia da parcialidade com que a questo do trabalho escravo estava sendtratada por um jornalista: no que qualquer coisa justifique o trabalho forado, mas o governo esteve ausente dessas reas por 500 anos173. Pareceque o paradigma da ausncia do Estado, to apreciado pela dcil criminologia etiolgica do extermnio urbano, encontrou novo uso. No prximoconcurso pblico para ingresso na Polcia Militar do Rio de Janeiro ser reprovado quem tiver tatuagem, acne e dentes cariados174: mas no foi noValongo que aprendemos a significao sintomtica dos dentes, nas peas lexpostas? As fotografias de dezenas de jovens negros algemados, em filadescendo o morro da Providncia escoltados pela polcia175, bate em cheiono que Vera Malaguti Batista chamou de esttica da escravido: no casoa matriz o prstito de Vidigal, aquele cortejo sinistro176 periodicamentereeditado por uma autoridade pblica em busca de seu arqutipo funcionaE a exemplaridade pelo terror penal, que a televiso levou a um nvel anteimpensvel?

    Perante tudo isso, continuamos a resmungar teorias legitimantes dapena, continuamos na trilha do baro de Pati do Alferes. Um direito penaque nasce sob o signo do inimigo domstico passaria, sem grandes arrufos tericos, pelo inimigo interno e est pronto a construir uma espcie d

    Guantnamo terico para abrigar o jakobsiano direito penal do inimigo177. Como destruir a obra da escravido na doutrina jurdico-penal? Sa-bemos que a escravido resistiu pouco mais que seis meses revogao dpena de aoites, efetuada pela lei n 3.310, de 15 de outubro de 1888. Pormo golpe mais duro j fora desfechado um ano antes desta lei, quando Deodoro, na qualidade de presidente do Clube Militar, dirigiu-se Regente solcitando que o Exrcito no fosse empregado no papel menos decoroso

    menos digno de capito-do-mato, de guardio da paz (e da propriedadeescravista178. Tambm hoje h quem proponha, na esteira da geopoltica cri-minal que nos imposta, que as Foras Armadas latino-americanas se convertam em milcias dedicadas ao controle e represso das estratgias de sobrevivncia da pobreza, especialmente o comrcio de drogas ilcitas.

    Nilo Batista 308 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    31/43

    O penalista brasileiro no pode perder de vista seu pecado original, afundao da pena pblica por uma, como disse Comparato, estrutura sociafundamentalmente privativista, na qual os instrumentos pblicos de coaonormalmente monopolizados pelo Estado, pertenciam de fato s classes dominantes179. No pode perder de vista seu pecado original quando discutepenitencirias privadas, quando v a fantstica capacidade de influncia mesmo de mobilizao de agncias do sistema penal concentrada nas empresas de comunicao, quando observa as parcerias que corporaes oligrquicas estabelecem com agncias policiais, quando se depara com novaleis que flexibilizam garantias e endurecem penas, quando se espanta comessas prises espetaculares, em que as cmeras invadem a sala e o quarto dcriminalizado (e o privilgio do reality-show punitivo recompensado pomatrias que enaltecem a ao policial e condenam sumariamente o detidoquando percebe tolerncia com castigos fsicos ou indiferena perante execues policiais, etc. Cabe precatar-se especialmente contra a massiva difuso, pela imprensa e pela publicidade, de um senso comum criminolgicque trata de reduzir toda a complexidade dos conflitos sociais ao marco dsua (i)licitude, e faz de pessoas ou grupos criminalizados bodes expiatriodas catstrofes sociais na periferia do capitalismo sem trabalho; logo umpesquisa de opinio, que comprova apenas o sucesso da estratgia, ser tomada como demonstrao do acerto da tese. Tambm nas lutas acadmicatodo cuidado ser pouco. O penalista brasileiro, tal qual aquele personagemdesiludido do samba de Chico Buarque, deve mudar de calada e dar risada sempre que aparecer a categoria weberiana do monoplio estatal dviolncia legtima. Mentira!

    LISTA DE REFERENCIAS

    1 Todas as informaes e transcries (ortograficamente atualizadas) concernentes a este caso foram extradas da cpia microfilmada do respectivo pro-cesso criminal, que ser citado por sua numerao original (fls. ...). Esta cpiaintegra uma pequena coleo que pertence ao ICC, composta de 53 processoscriminais contra escravos, tramitados entre 1836 e 1885, na comarca de Vas-souras. Os originais se encontram hoje arquivados na USS; a iniciativa de recuperao e organizao de tal documentao judiciria foi da OAB-RJ.

    Pena Pblica e Escravismo 309

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    32/43

    2 Fls. 4 ss. Aps o nome de cada um dos peritos, o escrivo registrou no pro- fissional. O auto inclui tambm matria que hoje pertenceria a um exame delocal.

    3 Sobre a orelha (...) um grande ferimento com trs polegadas de comprimentoe profundidade at os miolos; outro ferimento com uma e meia polegada decomprido partindo tambm o crneo; do lado de baixo do queixo encostan-do na garganta (...) quebrando a mandbula inferior ; abaixo do olho (...)esquerdo um outro ferimento quebrando o osso correspondente (fls. 5).

    4 Apresenta mais no pescoo um crculo arroxeado que denota ter sido agarra-do com as mos para produzir a estrangulao (fls. 5).

    5 Apresenta ainda mais o brao esquerdo fraturado um pouco acima do cotove-lo (fls. 6).

    6 Fls. 5 v.7 Fls. 3.8 Fls. 64 v.9 Fls. 12.10 Fls. 13.11 Arts. 4, 5 e 16, inc. 17, CCr 1830 c/c art. 192 CCr 1830 ou c/c art. 1 da le

    n 4, de 10.jun.1835. Tais dispositivos permitiam plenamente a soluo jurdica que, formulada em linguagem de um sculo aps o caso, adverte queaquele que comparece ao local da realizao na qualidade de executor de reserva co-autor; (...) inmeras vezes, a prpria execuo tarefa fungvel, aosabor das circunstncias concretas, e o executor se converte em assistente, evice-versa, porque a vtima saiu pela porta errada (no caso, dependendo dequem seria chicoteado pelo feitor Bastos, e de quem estaria mais prximo)Cf. Batista, Nilo, Concurso de Agentes, Rio, 1979, ed. L. Juris, p. 82.

    12 Fls. 15 v.13 Fls. 17 v. e 18.14 Fls. 19 v. e 22.15 Denncia, 2 lauda (fls. s/n na cpia).16 Denncia, ibidem.17 Art. 60 CCr 1830: Se o ru for escravo, e incorrer em pena que no seja a ca

    pital ou de gals, ser condenado na de aoutes, e, depois de os sofrer, ser entregue a seu senhor, que se obrigar a traz-lo com um ferro pelo tempo e ma-neira que o juiz o designar. O nmero de aoites ser fixado na sentena, e oescravo no poder levar por dia mais de cinqenta.

    18 A supresso de qualquer recurso para escravos (e tambm ndios) condenado morte remontava ao Regimento dos Ouvidores do Rio de Janeiro, outorgadoem 11.mar.1669, cujo 6 preconizava execuo sem apelao nem agravoprovises de 22.jul.1705 e de 24.fev.1731 autorizavam respectivamente os

    Nilo Batista 310 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    33/43

    Ouvidores de So Paulo e de Minas Gerais a procederem de igual modo. De-creto de 11.abr.1829, considerando que rus escravos condenados por homicdios praticados (...) em seus prprios senhores no seriam dignos da (...)Imperial Clemncia, determinava a execuo das sentenas independente-mente de subirem (...) Imperial Presena. Aviso de 26.fev.1834 mandavaaos magistrados fosse observado tal decreto. No corao do movimento poltico chamado de regresso, a lei n 261, de 3.dez.1841, que reformou o Cdigode Processo Criminal, reafirmaria que das sentenas proferidas nos crimes deque trata a lei de 10 de junho de 1835 no haver recurso algum, nem mesmoo de revista (art. 80). Embora transigindo com a vigncia do decreto de11.abr.1829 em seu art. 2, novo decreto de 9 de maro de 1837 ressalvava dainterdio recursal o direito de petio de Graa ao Poder Moderador (art1). O Regulamento n 120, de 31.jan.1842, que ordenaria administrativamente a lei n 261, de 3.dez.1841, incorporava tal ressalva: no haver recursoalgum, nem mesmo o de revista, mas prevalece o que se d para o poder mo-derador, nos termos do decreto de 9 de maro de 1837 (art. 501). O aviso n63, de 3.fev.1837, do ministro Gustavo Adolfo de Aguiar Pantoja, esclareciaque a interdio s poderia abranger os recursos ordinrios, e jamais o direito

    de perdoar e moderar as penas, que uma prerrogativa concedida pela Constituio ao Poder Moderador, da qual no o pode privar uma lei ordinria. Semembargo das inmeras execues expeditas que se deram, e mesmo de retrocessos explcitos (como o do Aviso n 264, de 27.nov.1852), o entendimentode Aguiar Pantoja viria a prevalecer, consagrado pelos decretos n 1.310, de2.jan.1854 e n 1.458, de 14.out.1854, e por Aviso de 22.jan.1853.

    19 Fls. 2.20 Fls. 8.

    21 Fls. 10.22 Fls. 26.23 Os escravos, como certos parentes prximos e os menores de 14 anos, no po

    diam testemunhar, mas o juiz poder informar-se delles sobre o objeto daqueixa ou da denncia, sem deferir-lhes juramento (art. 89 CPCr 1832). CfRamalho, Joaquim Ignacio, Elementos do Processo Criminal, S. Paulo, 1856ed. Tip. 2 de Dezembro, p. 103.

    24 Fls. 27, 28v. e 29 (trs depoimentos distintos).

    25 Fls. 28.26 Perdigo Malheiro, Agostinho Marques, A Escravido no Brasil, Petrpolis1976, ed. Vozes-INL, v. I, p. 46. A obrigao do senhor defender seus escra-vos em juzo remontada a um decreto de 30.set.1693 e a um alvar de3.out.1758 por Trigo de Loureiro, Loureno, Instituies de Direito Civil Bra

    Pena Pblica e Escravismo 311

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    34/43

    sileiro, Rio, 1871, ed. Garnier, t. I, p. 43. Em 15 de outubro de 1879, Antoniode Souza Guimares outorgou mandato aos advogados Manoel Simes deSouza Pinto e Jos de Paiva Magalhes Calvet para a defesa de Gil e Manoel(fls. 61 ss).

    27 Fls. 47.28 Fls. 43v.29 Fls. 64 ss.30 Sobre o debate jurdico em torno da chamada lei do ventre livre, cf. Spille

    Pena, Eduardo, Pajens da Casa Imperial, Campinas, 2001, ed. Unicamp.31 Fls. 62 ss.32 Fls. 65 v.33 Fls. 68.34 A mesma votao para os dois rus. Fls. s/n na cpia.35 Art. 193 CCr 1830: gals perptuas no grau mximo, priso com trabalho po

    doze anos no mdio, e por seis no mnimo.36 Fls. s/n na cpia.37 Fls. s/n na cpia.38 Gorender, Jacob, O Escravismo Colonial, S. Paulo, 1980, ed. tica, pp. 70, 8

    e passim.39 Florentino, Manolo G., Em Costas Negras, Rio, 1985, ed. Arq. Nac., p. 102.40 A relao entre latifndio e escravos implica necessariamente em violncia

    (Cerqueira Filho, Gislio e Neder, Gizlene, Brasil Violncia & Conciliaono Dia a Dia, P. Alegre, 1987, ed. Fabris, p. 18); os castigos e os tormentosinfligidos aos escravos (...) constituam uma necessidade imposta irrecusavelmente pela prpria ordem escravista (Freitas, Dcio, Palmares a Guerra doEscravos, Rio, 1978, ed. Graal, p. 33).

    41 Escravido e Racismo, S. Paulo, 1978, ed. Hucitec, p. 10.42 Fls. 12.43 Dominis in servos vitae necisque potestatem esse Inst. I, VIII, 1. Sobre as

    progressivas limitaes deste poder, cf. Bonfante, Pedro, Instituciones de De-recho Romano, trad. L. Bacci e A. Larrosa, Madri, 1965, ed. Reus, pp. 171 ss.

    44 Salmoral, Manuel Lucena, Los Cdigos Negros de la Amrica Espaola, Al-cal, 1996, ed. Unesco/Un. Alcal, p. 7.

    45 Benci, Jorge, Economia Crist dos Senhores no Governo dos Escravos, SPaulo, 1977, ed. Grijalbo, pp. 167 e 168.

    46 Lei de 1.out.1828; CCr 1830, art. 308, 4. Tambm leis provinciais se ocupavam do controle da escravaria. Cf. Zaffaroni, Ral et alii, Direito PenalBrasileiro, Rio, 2003, ed. Revan, v. I, pp. 424 ss.

    Nilo Batista 312 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    35/43

    47 Servi nigri in Brasilia tolerantur; sed quo jure et titulo me penitus ignorare fateor ( Institutiones Juris Civilis Lusitani, v. II De Iure Personarum, tit. I, 12; apud Perdigo Malheiro, op. cit., v. I, p. 46.

    48 Constituio Poltica do Imprio do Brazil, de 25.mar.1824, art. 179, incXXII: garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude.

    49 Teixeira de Freitas, Augusto, Consolidao das Leis Civis, Rio, 1876, ed. Garnier, v. I, p. XXXVII.

    50 Cf. Matos Peixoto, Jos Carlos, Curso de Direito Romano, Rio, 1997, ed. Renovar, t. I, pp. 278 ss. e Perdigo Malheiro, op. cit., pp. 54 ss.

    51 Labsense de tout droit reconnu ltranger sur le territoire de Rome per -mettait en effet de le rduire en servitude Gaudemet, Jean, Les Institutionsde lAntiquit, Paris, 1972, ed. Montchrestien, p. 321. Tambm na Grcia osestrangeiros estavam expostos escravizao (cf. Wallon, Henri Alexandre Histoire de lEsclavage dans lAntiquit , Paris, 1879, ed. Hachette, t. 1, p.160-161).

    52 Sobre a escravizao como pena, e sobre a peculiar condio do servus poe-nae, cf. Mommsen, Theodor, Le Droit Pnal Romain, trad. J. Duquesne, Paris,1907, ed. A. Fontemoing, t. 3, pp. 287 ss. No Portugal do sculo XV, a servido da pena tornava nulo o testamento do condenado morte (Ord. Afo. V,LV).

    53 Transcrita em Ribeiro, Darcy e Moreira Neto, C. A., A Fundao do BrasilPetrpolis, 1992, ed. Vozes, p. 65. Para a mentalidade jurdica quinhentista sobre escravido, cf. Garca Aoveros, J.M., El pensamiento y los argumentossobre la esclavitud en Europa en el siglo XVI y su aplicacin a los indiosamericanos y a los negros africanos, Madri, 2000, ed. CSIS, pp. 125 ss.

    54 Como consta da Carta outorgada em 1534 pelo rei D. Joo III a Duarte Coe

    lho, transcrita em Ribeiro, Darcy e Moreira Neto, C. A., op. cit., p. 140.55 Transcrita em Ribeiro, Darcy e Moreira Neto, C. A., op. cit., p. 143.56 Fluxo e Refluxo do Trfico de Escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia d

    Todos os Santos, trad. T. Gadzanis, S. Paulo, 1987, ed. Corrupio, p. 126. Afirma Manolo Florentino que as guerras conformavam o instrumento bsico pomeio do qual os homens eram transformados em escravos e vendidos no litoral (op. cit., p. 91).

    57 Cf. Conrad, Robert Edgar, Tumbeiros o Trfico de Escravos para o Brasil

    trad. E. Serapicos, S. Paulo, 1985, ed. Brasiliense, p. 49.58 Tumbeiros, loc. cit.59 A palavra carimbo provm do quimbundo kirimbu, significando marca (cf.

    Antenor Nascentes, Dicionrio Etimolgico Resumido, Rio, 1966, ed. INL)Sobre as marcas a fogo, cf. Robert Conrad, Tumbeiros, cit., p. 51.

    Pena Pblica e Escravismo 313

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    36/43

    60 Por alvar de 24 de novembro de 1813, o Prncipe Regente D. Joo, entre vrias medidas objetivando humanizar o transporte de escravos da frica para oBrasil, proibiu se continuasse a marcar negros pelo brbaro sistema da carnetostada, deslocando o sinal para uma coleira que o escravo traria ao pesco-o. Cf. Goulart, Jos Alpio, Da Palmatria ao Patbulo Castigos de Escravos no Brasil, Rio, 1971, ed. Conquista, p. 67-68. Estamos abstraindo aqui amarca a fogo penal, que alvar real de 7.mar.1741 preconizou para negrosque forem achados em quilombos, em cuja espdua se imprimiria a letra F ;caso fosse ele achado j com a mesma marca, se lhe cortar uma orelha. AConstituio de 1824 proibiria marcas a fogo (art. 179, inc. XIX).

    61 Como se sabe, o Code Civil (art. 1.582) afastou-se do paradigma romano, se-gundo o qual s a tradio da coisa operava a transferncia do domnio, parareconhec-la na simples manifestao da vontade livre no contrato (cf. BarrosMonteiro, W., Curso de Direito Civil Direito das Obrigaes, S. Paulo,1962, ed. Saraiva, v. 2, p. 79). Esta viragem, aparentemente banal ou apenasde tcnica jurdica, sinalizava para as novas e quase ilimitadas funes davontade proprietria no direito burgus, e teve entre ns ardorosos defensoresat no campo progressista, como Jos de Alencar (A Propriedade, Rio, 1883

    ed. Garnier, p. 151). A coisa vendida j no precisaria ser entregue (traditio)na mo do comprador, nessa mo (manus) que no direito romano tambm si-gnificava o poder senhorial que podia aoitar ou conceder liberdade (manu-missio): basta agora, num mundo com distncias desconhecidas da antiguida-de, que a vontade proprietria se manifeste, e o domnio estar transferido, esteja a coisa onde estiver.

    62 El Derecho de Propiedad Privada, Bogot, 1979, ed. Temis, p. 15.63 Para estas excees, Perdigo Malheiro, op. cit., p. 57.

    64 Perdigo Malheiro, op. cit., p. 49; Wehling, Arno, O escravo ante a lei civil a lei penal no Imprio, em Wolkmer, Antnio Carlos (org.) Fundamentos deHistria do Direito, B. Horizonte, 2001, ed. Del Rey, pp. 373 ss.

    65 Para segurana dos particulares (...) o direito de usar o gldio do castigo(deve ser ) transferido a algum homem ou conselho (e) necessariamente se en-tende que este tenha direito ao poder supremo na cidade. Pois quem tem o direito de punir sua discrio tem direito a compelir todos os homens a faze-rem todas as coisas que ele prprio quiser, e no se pode imaginar poder mai

    or que este (Thomas Hobbes, Do Cidado, trad. R. Janine Ribeiro, S. Paulo1952, ed. M. Fontes, p. 118).66 Cf. Gonsalves de Mello, Jos Antnio, Joo Fernandes Vieira Mestre-de

    Campo do Tero de Infantaria de Pernambuco, Lisboa, 2000, ed. CNCDP, p.365.

    Nilo Batista 314 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    37/43

    67 As trs cartas rgias transcritas em Goulart, Jos Alpio, Da Palmatria ao Patbulo, cit., pp. 186 e 187.

    68 Benci, Jorge, op. cit., p. 156. Tambm em Goulart, Jos Alpio, Da Palmatria, cit., p. 189.

    69 Histria do Brasil, B. Horizonte, 1982, ed. Itatiaia, p. 143.70 Cf. Salgado, Graa (org.), Fiscais e Meirinhos a Administrao no Brasi

    Colonial, Rio, 1985, ed. N. Fronteira, p. 78.71 Cf. Prado Junior, Caio, Histria Econmica do Brasil, S. Paulo, 1973, ed. Bra

    siliense, p. 52.72 Cartas Chilenas, Carta 3, versos 247 ss. Na vida real, o ouvidor Toms Anto

    nio Gonzaga informava ranha, sobre o governador Lus da Cunha Menesesque ele aoita com instrumentos de castigar os escravos as pessoas livressem mais culpa ou processo do que uma simples informao dos comandan-tes (Obras Completas, Rio, 1957, ed. INL, v. II, p. 194).

    73 Melo e Souza, Laura de, Desclassificados do Ouro, Rio, 1982, ed. Graal, p109. Esta carta tambm mencionada por Hunold Lara, Slvia, Campos da Violncia, Rio, 1988, ed. Paz e Terra, p. 39. Apoiando-se em Boxer, e atribuindoa proposta Cmara de Mariana, Almeida Barbosa, Waldemar de, Negros eQuilombos em Minas Gerais, B. Horizonte, 1972, p. 25. Sobre escravido e justia criminal nas Minas setecentistas, cf. ainda Silveira, Marco Antonio, OUniverso do Indistinto, S. Paulo, 1997, ed. Hucitec, pp. 111 ss.

    74 Gerson, Brasil, A Escravido no Imprio, Rio, 1975, ed. Pallas, p. 33.75 Apud Figueiredo, Ariosvaldo, O Negro e a Violncia do Branco, Rio, 1977,

    ed. J. lvaro, p. 66.76 Aviso n 47, de 30.jan.1832, transcrito em Goulart, Jos Alpio, Da Palmat

    ria, cit., p. 197. Outro Aviso, de 11.nov.1835, voltava ao tema da proibio decastigos excessivos.

    77 Num estudo sobre uma legislao penal da alta idade mdia, no reino visigtico ibrico, observvamos que a graa o contraponto seguro da pena pblica (Batista, Nilo, Matrizes Ibricas do Sistema Penal Brasileiro, Rio, 2000ed. Revan, v. I, p. 84). Para referncias histricas, uma sntese em Saraiva deMoraes, Railda, O Poder da Graa, Rio, 1979, ed. Forense, pp. 1 ss.

    78 Zagrebelsky, Gustavo, Amnistia, Indulto e Grazia, Milo, 1974, ed. Giuffr,pp. 27 e 28.

    79 Cf. nota n 18.80 Rusche, Georg e Kirchheimer, Otto, Punio e Estrutura Social, trad. G. Neder, Rio, 1999, ed. Revan, p. 18.

    81 Para uma descrio e classificao dos instrumentos de castigo, RamosArthur, Castigos de escravos, em Rev. Arq. Mun. de S. Paulo, n 47, pp. 79 ss

    82 O Medo na Cidade do Rio de Janeiro, Rio, 2003, ed. Revan, p. 23.

    Pena Pblica e Escravismo 315

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    38/43

    83 Deputado Lino Coutinho; cf. Pereira Pinto, A. (org.), Annaes do ParlamentoBrazileiro Cmara dos Senhores Deputados, Rio, 1879, ed. H. J. Pinto,1830, t. 2, pp. 508 e 512 (sesses de 14 e 15.set.1830).

    84 Deputado Paula e Souza, cf. Pereira Pinto, A. (org.), Annaes, cit., 1830, t. 2p. 514 (sesso de 15.set.1830).

    85 Apud Malaguti Batista, Vera, op. cit., p. 191 (Aurora Fluminense).86 Apud Malaguti Batista, Vera, op. cit., p. 192 (O Po dAssucar).87 Formao Econmica do Brasil, Rio, 1964, ed. F. de Cultura, p. 137.88 Florentino, Manolo Garcia, Em Costas Negras, cit., p. 82.89 O Nordeste e o Norte, em visvel deteriorao econmica, intensificam a ex

    portao para o Sul do pas Figueiredo, Ariosvaldo, op. cit., p. 33.90 Cf. Conrad, Robert, Os ltimos Anos da Escravatura no Brasil, Rio, 1978, ed

    Civ. Bras., p. 346.91 Cf. Stein, Stanley J., Vassouras, Rio, 1990, ed. N. Fronteira, p. 109.92 De Giorgi, Alessandro, Il governo delleccedenza postfordismo e controllo

    della moltitudine, Verona, 2003, ed. Ombre Corte, p. 113.93 Para a origem peninsular da continuidade pblico-privado, cf. Batista, Nilo

    Matrizes Ibricas, cit., pp. 126 ss.94 Cd. IX, XIV, 1 ( De emendatione servorum).95 Ord. Afo. V, LXXXXII. Sem esta exposio de motivos, a mesma matria em

    Ord. Man. V, LXVIII e Ord. Fil. V, XCV.96 Uma constituio de Zeno, dada na Constantinopla de 486, proibia o crcer

    privado ( Iubemus nemini penitus licere [...] privati carceris exercere custo-diam), e quem o praticasse incorreria sem dvida em lesa-majestade (maiesta-tis crimen procul dubio incursurus est ). Posteriormente, Justiniano responde-ria ao crcere privado com priso talional quanto durao. Cf. Cod. IX, V, 1e 2. Tais textos, obviamente, eram inaplicveis ao encarceramento do escravopelo senhor.

    97 Cf. Ord. Fil. V, XCV, 4. Nas Afonsinas, ca em tal caso os poder cada um livremente prender sem embargo desta nossa lei (V, LXXXXII, 6).

    98 Mellii Freirii, Paschalis Josephi, Institutionum Juris Criminalis Lusitani,Co-imbra, 1829, ed. Typ. Ac.-Regia Conimbricae, p. 60. Mello Freire mudariasua opinio quando redigiu seu anteprojeto, mantendo-a para a hiptese paralela de pais e filhos. Entre senhores e escravos no existe, escreveu ele,aquella affeio natural que faz cessar nos pais o receio de excesso no casti-go (Ensaio do Cdigo Criminal, Lisboa, 1823, ed. Typ. Maigrense, p. 91).

    99 Vieira de Arajo, Joo, Cdigo Criminal Brasileiro, Recife, 1889, ed. J. NSouza, p. 297.

    100 Paula Pessoa, Vicente Alves, Cdigo Criminal do Imprio do Brazil, Rio1885, ed. A.A. C. Coutinho, p. 59.

    Nilo Batista 316 Cap. Crim. Vol. 34, N 3 (Julio-Septiembre 2006) 279 - 321

  • 8/12/2019 BATISTA, Nilo. Pena Pblica e Escravismo

    39/43

    101 Ferreira Tinoco, Antonio Luiz, Cdigo Criminal do Imprio do Brazil, Rio1886, ed. Imp, Ind., p. 39.

    102 Alves Jnior, Thomaz, Annotaes Theoricas e Prticas ao Cdigo CriminaRio, 1864, ed. F. L. Pinto, t. I, p. 285.

    103 Op. cit., p. 47.104 Op. cit., p. 38.105 Art. 179, inc. XIX: Desde j ficam abolidos os aoites, a tortura, a marca d

    ferro quente, e todas as mais penas cruis.106 Op. cit., p. 138. Os dispositivos sobre processo legislativo da Constituio d

    1824 (tit. 4, cap. IV arts. 52 ss) no estabeleciam quorum especial paraemend-la, e alis assemelhavam-se a um regimento de frmulas cerimoniaisNo era ento corrente a idia de supremacia constitucional, embora o Chief Justice Marshall j houvesse advertido, em 1803, que ou a Constituio pre-pondera sobre as leis ou o Poder Legislativo pode alterar a Constituio atra-vs de lei ordinria (Marbury versus Madison). Cf. Cappelletti, Mauro, OControle Judicial da Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado, tradA. P. Gonalves, P. Alegre, 1984, ed. Fabris, p. 47. Embora no corrente, al-guns deputados, nos debates parlamentares sobre a redao do Cdigo Criminal de 1830, objetaram que a pena de morte estaria proibida pela Constituiode 1824, e Bernardo Pereira de Vasconcellos respondeu-lhes t-la consultado(procurei ver se nella havia algum artigo que rejeitasse a pena de morte) epelo contrario, acho(u) um artigo que admite