as notÍcias e os seus efeitos - jorge pedro sousa

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AS NOTCIAS E OS SEUS EFEITOS AS TEORIAS DO JORNALISMO E DOS EFEITOS SOCIAIS DOS MEDIA JORNALSTICOSJorge Pedro Sousa, Universidade Fernando Pessoa 1999 PRLOGO Este livro diz respeito a uma realidade que nos cerca e que largamente comentada e, quantas vezes, superficialmente criticada no meio social: o jornalismo. Por esta razo, trata-se de um texto com intenes predominantemente pedaggicas. Mas quando aqui falo de pedagogia, no quero com isto dizer que este seja um livro dirigido unicamente aos estudantes de jornalismo e comunicao. jornalstica. Pelo contrrio. Este livro pretende chegar a todos os que se interessam pelos meios de comunicao Atravs dele, procurarei exercer uma espcie de pedagogia social, contribuindo para afastar a crtica fcil do campo dos media jornalsticos, e, em contrapartida, contribuindo igualmente para permitir uma crtica fundamentada e pertinente do jornalismo. Apesar de se dirigir a um pblico vasto, no ser menos verdade que, sendo este um livro sobre jornalismo, nele procurarei aplanar o caminho aos jornalistas, aos que intentam tornar-se jornalistas e estudam jornalismo, aos profissionais equiparados e equiparveis e queles que apenas querem saber mais sobre a actividade jornalstica. , assim, um livro que aborda formulaes tericas, que, na minha opinio, so esclarecedoras e contextuais, mas tambm problemticas. Este no um livro amorfo ou sem ponto de vista. Por isso, em frequentes passagens, no me abstive de assumir posies pessoais.. Na primeira parte do livro, abordo a teoria e a histria do jornalismo, consagrando ateno especial imprensa. Tento explicar por que que as notcias so como so e por que que temos umas notcias e no outras, entrando no domnio da Teoria da Notcia e sugerindo um modelo explicativo para as mesmas, baseado na interaco de cinco foras: aco

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pessoal, aco social, aco ideolgica, aco cultural e aco tecnolgica, todas elas modeladas por uma sexta fora: a histria. Na segunda parte, atento nos efeitos da comunicao social jornalstica, descrevendo perspectivas e teorias diferenciadas, desde as primeiras hipteses behavioristas e funcionalistas s relativamente recentes teorias do agenda-setting ou da espiral do silncio, entre outras, passando por correntes de pensamento crticas, como a Escola de Frankfurt. Foi minha ambio procurar que a estrutura deste trabalho permitisse dar uma resposta s necessidades de vrias licenciaturas em Jornalismo e Cincias da Comunicao. Julgo, de facto, que este livro poder ser usado do primeiro ao ltimo ano desses cursos. De qualquer modo, no ambiciono a que as pginas aqui escritas sejam mais do que um texto-guia, necessariamente no exaustivo, antes sistemtico e sinttico. Aponto, alis, pistas bibliogrficas pertinentes para o aprofundamento do estudo. Este livro ser tanto mais til quanto mais contribuir para lanar luz sobre o jornalismo e os jornalistas. Se, alm disso, este livro contribuir para que os jornalistas e os estudantes de jornalismo encontrem formas de superar os muitos obstculos que juncam o seu caminho, o esforo ser ainda mais recompensado. No queria terminar sem deixar uma palavra de agradecimento minha editora, pois tenho plena conscincia que no domnio das publicaes cientficas e pedaggicas publicar ainda arriscado. Jorge Pedro Sousa (1999)

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PARTE I AS TEORIAS DA NOTCIA EXPLICAES PARA QUE AS NOTCIAS SEJAM AQUILO QUE SO

1. INTRODUO Este um livro sobre jornalismo. Por consequncia, quando aqui falo de notcias, falo delas no sentido jornalstico do termo. Defini-las-ia, assim, e chamando desde j a ateno para a rudimentaridade da definio que irei dar, como artefactos lingusticos1[1] que procuram representar2[2] determinados aspectos da realidade e que resultam de um processo de construo e fabrico onde interagem, entre outros, diversos factores de natureza pessoal, social, ideolgica, cultural e do meio fsico/tecnolgico, que so difundidos pelos meios jornalsticos e aportam novidades com sentido compreensvel num determinado momento histrico e num determinado meio scio-cultural, embora a atribuio ltima de sentido dependa do consumidor da notcia3[3]. sua mera existncia contribuem Registe-se ainda que embora as construir socialmente novas notcias representem determinados aspectos da realidade quotidiana, pela para realidades e novos referentes4[4]. Se bem que a notcia no se esgote na sua produo, fase que compreende essencialmente a recolha, seleco, processamento e hierarquizao da informao, provavelmente essa a etapa que mais concentra as atenes dos estudiosos, paradoxalmente talvez porque a menos visvel. Por conseguinte, a fase de que mais falaremos neste livro. Porm, e como1[1]

Isto , as notcias so construdas com base em linguagens: a lngua, a linguagem das imagens, etc. No vou aqui deter-me significativamente sobre a estafada teoria do espelho, a primeira viso que se teve das notcias, conforme nos assevera Nelson Traquina (1993, 133 e 167), avanando j para a perspectiva da representao da realidade, conforme resulta das teorias construcionistas da notcia. Porm, de relevar que do ponto de vista do espelho, que continua bem presente no campo jornalstico (consultese, para o efeito, a minha tese de doutoramento: Jorge Pedro Sousa (1997) Fotojornalismo Performativo. O Servio de Fotonotcia da Agncia Lusa de Informao), as notcias so perspectivadas como um espelho da realidade, j que, de acordo com as normas e tcnicas profissionais, os jornalistas, vistos como observadores neutros (ao contrrio do que a fenomenologia ensina), apenas reproduziriam os acontecimentos e as ideias sob a forma de notcias. As notcias seriam ento discursos centrados no referente, as notcias seriam como so porque a realidade assim o determinaria (Traquina, 1993, 133). 3[3] Esta uma abordagem patente em diversas teorias dos efeitos da comunicao mediada que qualquer manual sobre o tema aborda. Ver, por exemplo, o de Maria Dolores Montero (1993). 4[4] Falo, afinal, do til ponto de vista de construo social da realidade, retomando e aplicando ao jornalismo as ideias de Berger e Luckmann (1976), tal como antes de mim, entre muitos outros autores, fez Miquel Rodrigo Alsina (1993).2[2]

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Alsina (1993) faz notar, a essa fase h que juntar a circulao e o consumo, sendo esta ltima a fase decisiva na outorgao final de sentido, j que a fase em que intervm o consumidor das mensagens mediticas. De facto, nada garante que aquilo que os agentes que intervm no processo de construo e fabrico da informao jornalstica pem na notcia seja aquilo que o consumidor apreende e entende. E nada garante que o mesmo sentido dado a essas mensagens seja o sentido que lhe outorgado pelo consumidor. Se bem que no seja um exemplo jornalstico, eu lembro, neste campo, a famosa campanha publicitria de uma companhia de aviao na qual se realava o nmero assombroso de operaes de segurana que a companhia fazia aos avies antes de cada voo e que teve um efeito exactamente ao contrrio do pretendido junto de alguns dos receptores porque as pessoas pensaram que se era preciso fazer tantas operaes de segurana era porque voar era mesmo perigoso. Claro est que essa carssima campanha acabou por ser suspensa. Michael Schudson (1988) escreveu que poderamos explicar as notcias em funo de trs tipos de foras interligadas e interactuantes: uma aco pessoal, uma aco social e uma aco cultural. Desta forma, e com base na perspectiva do autor, seria possvel traar um quadro explicativo sistemtico e global para termos as notcias que temos em cada meio sciocultural e em cada momento histrico. Isto , com base no modelo schudsodiano no s podemos identificar os principais factores de influncia no processo de construo e fabrico das notcias como tambm podemos integrar essas explicaes num paradigma explicativo, com contornos de teoria cientfica, que se sirva de determinadas denominaes desses factores para se tornar de mais fcil apreenso e compreenso. Porm, se me parece que o modelo de Schudson possui virtualidades pedaggicas, tambm me parece que o mesmo modelo insuficiente para explicar por que razo as notcias que temos so estas e no outras. Mesmo os factores de influncia sobre as notcias que Schudson identifica so escassos (por exemplo, o autor no fala dos factores psicolgicos ao nvel da aco pessoal e resume a aco social aos mecanismos organizacionais). Alm disso, eu julgo que esse modelo, da forma como

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apresentado pelo socilogo norte-americano, promove, por vezes, uma certa indistino nominal entre as foras que identifica e as cincias que corporizam e validam essas explicaes. claro quando Schudson (1988, 24-25) Isto parece-me particularmente parece falar das variantes

explicativas das notcias fornecidas pela antropologia e pelas cincias literrias como sendo variantes da fora cultural que se faz sentir sobre as notcias. De qualquer modo, reorientando e alargando esse modelo, parece-me que encontramos uma forma fecunda e pertinente de explicar por que que as notcias so como so, conforme o ttulo que Michael Schudson (1988, 17) d ao seu artigo. Friso, todavia, que h um aspecto em que difiro de Schudson. Para este acadmico (1996, 31 et passim), as notcias so cultura, no ideologia, enquanto que, na minha viso, existe uma aco ideolgica que se faz sentir sobre as notcias; estas, alm do mais, segundo me parece, tm tambm efeitos ideolgicos. Sublinho, igualmente, que no domnio da influncia scio-cultural sobre o processo de construo e fabrico das notcias difundidas pelos meios jornalsticos haveria ainda que enfatizar o papel da histria na conformao das notcias, um tema que Schudson havia abordado em 1978, no livro Discovering the News, e ao qual retorna em 1996, no livro The Power of News, mas que surge relativamente ignorado no artigo de 1988 a que fui beber a proposio central do modelo explicativo para as notcias que apresento neste livro. Face ao exposto, organizarei este livro em funo de nveis de influncia sobre as notcias, um pouco semelhana do que fizeram Shoemaker e Reese (1996) em Mediating the Message, livro em que estes autores tentam construir uma teoria do contedo das notcias. Esses nveis, que se tm de observar como interdependentes, integrados, interactuantes e sem fronteiras rgidas e cuja denominao e caracterizao, como visvel, em parte vou buscar a Schudson (1988), so os seguintes: 1) Aco pessoal as notcias resultam parcialmente das pessoas e das suas intenes;

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2)

Aco

social

do

as

notcias sistema

so fruto das social,

dinmicas do

e

dos meio

constrangimentos

particularmente

organizacional, em que foram construdas e fabricadas; 3) Aco ideolgica as notcias so originadas por foras de interesse que do coeso aos grupos, seja esse interesse consciente e assumido ou no; 4) Aco cultural as notcias so um produto do sistema cultural em que so produzidas, que condiciona quer as perspectivas que se tm do mundo quer a significao que se atribui a esse mesmo mundo (mundividncia); 5) Aco do meio fsico e tecnolgico as notcias dependem dos dispositivos tecnolgicos que so usados no seu processo de fabrico e do meio fsico em que so produzidas; 6) Aco histrica as notcias so um produto da histria, durante a qual interagiram as restantes cinco foras que enformam as notcias que temos (aces pessoal, social, ideolgica, cultural e tecnolgica). Assumo neste livro uma viso construcionista5[5] das notcias, que representa simultaneamente uma ultrapassagem e um aproveitamento no que tm de pertinente das teorias organizacional6[6] e estruturalista7[7], bem como das teorias da aco pessoal, entre as quais as chamadas teorias da conspirao, to em voga numa altura como a presente em5[5]

Na perspectiva construcionista as notcias so vistas como uma construo resultante de um processo de interaces pessoais, sociais (sistema social, meio organizacional, gesto organizacional, estrutura de propriedade capitalista dos meios jornalsticos, mercado, etc.), culturais (sistema cultural, cultura profissional transorganizacional e por vezes transnacional, cultura organizacional, etc.), ideolgicas e outras. Nesta perspectiva no determinstica, os jornalistas so vistos como agentes possuidores de um certo grau de autonomia na aco, especialmente face aos poderes poltico e econmico, tendo particularmente um papel relevante em torno dos processos de construo negociada de sentido para os dados fornecidos por determinadas fontes mais ou menos interessadas na difuso com significao direccionada desses mesmos dados (por vezes unicamente como balo de ensaio para avaliar a reaco do pblico a determinadas medidas que se pretendem implementar). Porm, a perspectiva construcionista no nega que as notcias frequentemente sustentam as interpretaes que as fontes com poder, particularmente as oficiais, do aos acontecimentos e s ideias que caem no domnio pblico, at porque as relaes entre jornalistas e essas fontes de informao so problemticas, sendo frequentemente orientadas por interesses e amizades. Assim, as notcias poderiam ter um papel poltico-social enquanto, nomeadamente, instrumentos de sustentao do statu quo. Por outro lado, esta perspectiva analisa profundamente as rotinas de fornecimento e produo de informao jornalstica enquanto importantes elementos configuradores das notcias com que diariamente somos confrontados. Sobre isto consultar, por exemplo, o livro de Nelson Traquina (Org.) (1993) Jornalismo: Questes, Teorias e histrias, particularmente a parte sobre as teorias, pp. 131-248. 6[6] Das aportaes da teoria organizacional, que acaba por integrar as concepes da teoria construcionista, falo pormenorizadamente neste livro quando me refiro aco social, na sua vertente socio-organizacional. Com base nesta explicao, as notcias so vistas como um produto das organizaes e dos seus constrangimentos bem como das relaes das organizaes com o sistema social que as envolve. 7[7] Na perspectiva estruturalista as estruturas de propriedade capitalista seriam determinantes na configurao das notcias porque enquadrariam e enformariam o sistema meditico, muito embora aos jornalistas seja reconhecida uma certa autonomia nas lutas cruciais em torno dos significados dos acontecimentos, das problemticas e das ideias e na produo e difuso de informao sobre esses acontecimentos, problemticas e ideias, at porque factores como o profissionalismo contrabalanariam a dependncia econmica. De qualquer modo, de acordo com uma viso estruturalista que a teoria construcionista parcialmente recupera, as notcias tenderiam a reproduzir e amplificar uma hegemonia ideolgica, trabalhando no sentido da manuteno e inquestionao do statu quo, pois apesar da autonomia relativa dos jornalistas as fontes oriundas do poder, particularmente as fontes oficiais, teriam um papel quase determinstico (aqui diferencia-se dos pontos de vista organizacional e construcionista) na hora de atribuir significados aos acontecimentos, s problemticas e ideias que fazem o essencial da cobertura jornalstica. Sobre este ponto de vista aconselhamos tambm o livro de Nelson Traquina (Org.) (1993) Jornalismo: Questes, Teorias e histrias, particularmente a parte sobre as teorias, pp. 131-248.

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que se notam movimentos de concentrao pr-monopolista, oligoplica e intersectorial (agrupando telecomunicaes, meios jornalsticos, novas tecnologias, etc.) das empresas jornalsticas8[8] e em que, por via disso, se clama por uma nova regulamentao que garanta o pluralismo e o mercado livre das ideias nos meios jornalsticos e que defenda jornalistas e pblico de to poderosos patres. A assuno do referido ponto de vista representa tambm a rejeio de teorias estafadas como a teoria do espelho, que v as notcias como o espelho da realidade, embora no negue que esta viso ainda forte quer no meio social em geral, talvez ainda marcado pelos valores positivistas, quer mesmo em certos sectores do meio profissional dos jornalistas, onde permanece viva a ideologia da objectividade e os procedimentos que dela resultam9[9]. preciso que se note que o corpo da teoria da notcia (newsmaking) ou teoria do jornalismo vasto e que s recentemente se tm feito tentativas de sistematizao rumo ao que poderamos considerar como uma teoria do contedo das notcias. Entre esses trabalhos destaca-se, na minha opinio, o j referido Mediating the Message, de Shoemaker e Reese (1996), que subscrevo e que foi uma obra de referncia central, a par das de Schudson, para a elaborao do presente livro. Na mesma linha surge Mauro Wolf (1987), um outro autor cuja sntese dos temas marcantes do corpo terico do newsmaking me parece pertinente, embora o seu trabalho, precocemente interrompido, no seja to abrangente quanto a obra de Shoemaker e Reese. Entre os autores portugueses consultados realo, naturalmente, o professor Nelson Traquina, na minha opinio um dos pioneiros a trazer alguma cientificidade aos discursos que vm a ser produzidos sobre jornalismo em Portugal. Desse catedrtico saliento nomeadamente o livro Jornalismo: Questes, Teorias e histrias (1993), uma antologia por ele organizada que rene alguns dos artigos cientficos mais relevantes sobre jornalismo.

8[8]

No esquecer que este movimento, potencial ameaa ao pluralismo, encontra justificao entre os patres da comunicao social pela necessidade de sobrevivncia num mundo competitivo em que os oligoplios gigantes e intersectoriais da comunicao so uma realidade. Pinto Balsemo e Lus Silva, dois dos mais importantes patres dos media portugueses, defenderam-no durante o III Congresso dos Jornalistas Portugueses (1998). 9[9] Veja-se, por exemplo, o que se passa na Agncia Lusa, consultando-se, para o efeito, a minha tese de doutoramento: Jorge Pedro Sousa (1997) Fotojornalismo Performativo. O Servio de Fotonotcia da Agncia Lusa de Informao.

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No quero fazer deste livro nem um resumo das teorias da notcia nem um resumo das concluses das pesquisas que se fizeram no seu mbito, mas to s sistematizar algumas consideraes que me permitem demonstrar o paradigma explicativo que desenhei: as notcias so um artefacto construdo pela interaco de vrias foras que podemos situar ao nvel das pessoas, do sistema social, da ideologia, da cultura, do meio fsico e tecnolgico e da histria. A minha assuno primordial a seguinte: os meios noticiosos conferem notoriedade pblica a determinadas ocorrncias, ideias e temticas, que representam discursivamente, democratizando o acesso s (representaes das) mesmas e tornando habitual (ritual?) o seu consumo. Os meios jornalsticos contribuem ainda para dotar essas ocorrncias, ideias e temticas de significao, isto , contribuem para que a essas ocorrncias, ideias e temticas seja atribudo um determinado sentido, embora a outorgao ltima de sentido dependa do consumidor das mensagens mediticas e das vrias mediaes sociais (escola, famlia, grupos sociais em que o indivduo se integra, etc.). descrita exercida porque os meios Em parte, a aco integram essas jornalsticos

representaes de determinadas ocorrncias, ideias e temticas, enquanto fragmentos que so, num sistema racionalizado e organizado que globalmente fornece um quadro referencial explicativo do mundo, num processo que poderamos genericamente designar por construo social da realidade pelos media, a exemplo da noo avanada por Berger e Luckmann (1976). Adriano Duarte Rodrigues (1988) mostra at que entre a aco dos meios noticiosos e a funo do mito para o homem antigo haveria semelhanas, j que, semelhana do mito, os discursos mediticos organizariam racionalmente a experincia do aleatrio, integrariam representaes fragmentadas da realidade num discurso organizado e ofereceriam um quadro explicativo do mundo. A essa prosa do presente confia o homem moderno a funo remitificadora de uma perspectiva unitria securizante perante a desintegrao da identidade colectiva e de uma ordem identitria que lhe devolva uma imagem coerente do destino. (Rodrigues, 1988: 15)

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Assumo igualmente que os meios jornalsticos podem ser meios de debate que, em alguns casos, permitem alguma interactividade ao receptor (por exemplo, atravs das cartas ao director em determinados jornais). E tambm assumo que os meios jornalsticos funcionam, pelo menos em certas circunstncias, como agentes de vigilncia e controle dos poderes, embora dentro de limites mais ou menos amplos, consoante os poderes, os rgos de comunicao e os jornalistas (e os autores que se debruam sobre o problema). Assim sendo, parece-me inegvel que, especialmente em sistemas de democracia de partidos assentes em estados de direito ou noutros sistemas democrticos, os meios jornalsticos so um instrumento vital de troca de informaes e de estimulao da cidadania, em que o jornalista-mediador assume ou deve assumir um papel essencial. Pelo menos, ser este o enquadramento ideal da imprensa. Todavia, no ser menos certo, a acreditar em vrios estudos, designadamente entre os que orbitam em torno dos estudos culturais (Hoggart, Williams, Hall, etc.), da teoria crtica (Adorno, etc.) e da teoria da hegemonia (Gramsci, etc.), que os meios jornalsticos so tambm usados em funo de interesses particulares, como os interesses de determinados poderes, podendo, igualmente, contribuir para a amplificao dos poderes e para a sustentao do statu quo. Por vezes, determinados polticos, querendo avaliar a receptividade pblica de uma medida antes de esta ser tomada, podero tambm , ao abrigo do anonimato, dar a conhec-la em rgos de comunicao escolhidos, de forma a poder emendar a mo caso notem grandes protestos pblicos. Os prprios jornalistas podem recorrer a fontes com que partilhem pontos de vista para, por via da cobertura destas fontes, ser objecto de discurso jornalstico o que eles prprios gostariam de dizer. Mas nesta rea de estudos destaca-se sobretudo a ideia de que os meios jornalsticos so estruturas que tendem a representar as relaes sociais dominantes de poder, naturalizando-as, tornando difcil imaginar outras relaes de poder no seio da sociedade e, por consequncia, trabalhando no sentido de inviabilizar quaisquer mudanas sociais. Apesar de ocasionalmente identificar algumas salutares desconfianas em relao aos enunciados jornalsticos, no me parece que essa seja a viso

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dominante ou a viso de facto que a generalidade das pessoas tem do jornalismo nas sociedades ps-modernas. Ao invs, parece-me que formulaes retricas como a separao entre informao e opinio, entre o facto e o comentrio que os valores jornalsticos clssicos propem favorecem a construo de uma imagem do jornalismo como espelho da realidade. Se os media agirem, realmente, como agentes de sustentao do statu quo e de amplificao dos poderes, a sua imagem dominante, ao nvel do ser humano comum, poder, por consequncia, facilitar perigosamente a manipulao e a desinformao do pblico. Notese, inclusivamente, que o pblico, na minha opinio, no repara que factores como por exemplo (a) a relao entre jornalistas e os acontecimentos e as pessoas nestes envolvidas, (b) a seleco e hierarquizao dos elementos expostos nos enunciados jornalsticos e (c) a escolha de termos nos discursos jornalsticos pressupem j por si a existncia de critrios e juzos de valor. Estes critrios e juzos de valor, em maior ou menor grau, sero mesmo compartilhados, j que as construes discursivas em jornalismo so relativamente semelhantes.

1. O JORNALISMO E OS SEUS REFERENTES Determinados acontecimentos, ideias e temticas so, de algum modo, os referentes dos discursos jornalsticos. Porm, o acontecimento ganha na competio, at porque o ritmo do trabalho jornalstico dificultaria que se desse um nfase semelhante s problemticas (Tudescq, 1973) e aos processos sociais invisveis e de longa durao (Fontcuberta, 1993). Todavia, aquilo que, de uma forma geral, entendemos por acontecimento, e do qual podemos falar como acontecimento, parece-me que tem naturezas profundas distintas: no podemos, julgo, meter no mesmo bolso os Jogos Olmpicos, a Guerra do Golfo, uma conferncia de imprensa, um grave acidente automobilstico ou o homem que morde o co, embora todos estes exemplos sejam de acontecimentos.

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Se

pensarmos

no

que

une os

diversos

fenmenos

genericamente

denominados por acontecimentos talvez encontremos o seu carcter de notoriedade, dentro de um contexto social, histrico e cultural que codetermina essa notoriedade. Aparentemente, os acontecimentos so tambm ocorrncias singulares, concretas, observveis e delimitadas, quer no tempo, quer no espao, quer em relao a outros acontecimentos, que irrompem da superfcie aplanada dos factos (Rodrigues, 1988). Tal realidade , para mim, uma das razes que torna "manipulveis" essas ocorrncias, isto , que permite o seu tratamento atravs de determinadas linguagens, como a escrita ou a linguagem das imagens, pois os acontecimentos necessitam de ser comunicveis para se tornarem referentes dos discursos jornalsticos e serem, consequentemente, comunicados. Todavia, a percepo de que o acontecimento concreto e delimitado uma falcia, j que o real contnuo e os fenmenos so estreitamente interligados. Mas tambm uma falcia a que, de algum modo, os seres humanos necessitam de recorrer para interpretarem e estudarem o real o que se faz no jornalismo faz-se tambm na cincia, apesar de esta no perder de vista nem a ideia da infragmentabilidade do real nem mtodos cientficos que permitem reduzir as distores induzidas no processo de construo de conhecimentos sobre a realidade. Atentemos, agora, no que pode distinguir a natureza dos acontecimentos. A previsibibilidade ou imprevisibilidade dos acontecimentos poder ser uma marca distintiva, embora no em exclusivo. De qualquer modo, com base nesse pressuposto, poderemos classificar como, falta de melhor, verdadeiros acontecimentos os acontecimentos imprevistos, como uma catstrofe natural; por outro lado, em consonncia com Boorstin (1971), podemos falar de pseudo-acontecimentos, como as conferncias de imprensa, ou seja, acontecimentos provocados e fabricados com o fito de se tornarem objecto de discurso jornalstico, que seriam, obviamente, acontecimentos previsveis. Dentro desta ideia, tambm possvel falar dos acontecimentos mediticos, uma noo que Katz (1980) apresenta para designar acontecimentos programados e planeados para se tornarem

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notcia, mas que ocorreriam mesmo sem a presena dos meios de comunicao, como as ocasies de Estado (a cerimnia de assinatura de um tratado, por exemplo), as misses hericas (a partida de um vaivm espacial) ou as competies simblicas (jogos olmpicos). H alguns acontecimentos dificilmente categorizveis, talvez porque no o sejam dentro do sistema que propus. Guerra do Golfo? Por exemplo, como categorizar a Em grande medida, ter sido um acontecimento

previsvel, planeado para ser objecto de um determinado tipo de cobertura jornalstica (que enfatizou, por exemplo, o arsenal militar de alta-tecnologia americano, quase como se fosse um catlogo de vendas Sousa, 1999), pelo que poderamos falar do conflito como um acontecimento meditico, embora contaminado por vrios acontecimentos verdadeiros, os acasos da guerra. Assim sendo, h sempre ocorrncias que extravasam a Parcialmente, ganham, assim, relevo as Para eles, a actual existiriam pseudotaxionomizao a que procedi.

ideias de Pierre Nora (1983) e Tudescq (1973). diversificados acontecimentos, pelo que no

sociedade seria uma espcie de sociedade acontecedora, que segregaria acontecimentos ou similares. A diversificao seria, no obstante, Esta

acompanhada por uma uniformizao formal do desenvolvimento desses pseudo-acontecimentos e desses acontecimentos mediticos. uniformizao teria correspondncia nas prprias representaes

jornalsticas desses acontecimentos, que teriam caminhado para uma certa homogeneizao, apesar da segmentao dos mercados que permitiu a proliferao dos meios jornalsticos em funo de pblicos-alvo cada vez mais especficos. Tudescq j em 1973, em La presse et levnement, tinha percepcionado estes fenmenos. Recentemente, segundo Mar de Fontcuberta (1993), os news media comearam a difundir relatos de no-acontecimentos, ou seja, a construir, produzir e difundir notcias a partir de factos no sucedidos (como, por exemplo, o Conselho de Ministros no se pronunciar sobre o que nem sequer estava previsto que se pronunciasse), o que minaria aquelas que a autora considera serem as bases tradicionais do jornalismo: realidade, veracidade e actualidade (Fontcuberta, 1993: 26).

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Verificamos, pela exposio, que os referentes do discurso jornalstico so de diversa natureza, centrando-se, contudo, em torno de ocorrncias actuais. podero Para efeitos do presente livro, parece-me pertinente falar ser subclassificados em acontecimentos imprevistos (os genericamente dessa ocorrncias actuais como acontecimentos, que verdadeiros acontecimentos), pseudo-acontecimentos, acontecimentos mediticos, acontecimentos no categorizados e no acontecimentos. Apesar das dificuldades de categorizao, podemos afirmar, parece-me, que os acontecimentos imprevistos e notrios de alguma maneira se impem aos media. Mas podemos igualmente considerar que alguns dos acontecimentos previsveis, mais do que se imporem aos media, so quase como que "impostos" aos media (conferncias de imprensa) ou at mesmo "impostos" pelos media (alimentao de uma histria j encerrada, etc.). Seria para fazer face imprevisibilidade de alguns acontecimentos que as organizaes noticiosas procurariam impor alguma ordem ao tempo, atravs da agenda (Traquina, 1988), e ao espao, lanando uma "rede" que procuraria capturar os acontecimentos nas suas malhas (Tuchman, 1978). Essa rede seria tecida em trs vectores: 1) responsabilidade jornalstica em funo de reas geogrficas (emprego de correspondentes, delegaes, etc.); 2) especializao organizacional (instalao de um "sistema de vigia" nas principais organizaes produtoras de matria-prima jornalstica, como a Assembleia da Repblica); e 3) especializao temtica (diviso da redaco em seces). Frequentemente, porm, as redes dos rgos jornalsticos apresentam buracos de grandes dimenses (vd. Sousa, 1997, sobre a Agncia Lusa), sendo um facto que quase 60% dos rgos de comunicao social esto sedeados em Lisboa, conforme revelou o Segundo Inqurito Nacional aos Jornalistas Portugueses, dirigido por Jos Lus Garcia; outras vezes ainda, e apesar dos buracos que desequilibram a produo noticiosa, a rede captura mais temas do que aqueles que podem ser processados pelos recursos existentes, especialmente pelos jornalistas (Sousa, 1997).

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Quanto ao servio de agenda, ele faz parte integrante das rotinas organizadas de recolha de informao. Porm, a agenda revela, igualmente, o tipo de acontecimentos sobre os quais um determinado rgo de comunicao se concentra de forma mais ou menos estvel e, consequentemente, as representaes da realidade que oferece. A previsibilidade das informaes e a planificao norteiam, portanto, grande parte dos procedimentos de recolha de informao, pois permitem que, em cada perodo de trabalho, regulado pela agenda e pelas deadlines, no se comece do nada. Seria inclusivamente planificando que a imprensa poderia emergir para um jornalismo puro e duro, profundo e contextual, embora cativante, que a distinguisse dos restantes meios jornalsticos e que a fizesse regressar aos anos de glria das vendas, conforme a receita do consultor Juan Antnio Giner apresentada ao III Congresso dos Jornalistas Portugueses. A propsito da agenda, interessante notar que: () assiste-se ao fenmeno pelo qual as redaces esto, tecnologicamente, cada vez mais em condies de dar informaes em tempo real mas a propsito de um nmero de assuntos, temas e indivduos cada vez mais delimitado antecipadamente. (Wolf, 1987: 211-212) Miquel Rodrigo Alsina (1993: 96-109) estabelece como elementos principais do acontecimento jornalstico: a) a variao no sistema, uma vez que o acontecimento jornalstico suporia a ruptura espectacular das normas, embora a manuteno da variao levasse perda da novidade e normalizao, trazendo por consequncia acontecimento; b) c) a comunicabilidade dos factos, pois s existiria acontecimento jornalstico quando este comunicado e comunicvel; a implicao do sujeito, uma vez que os consumidores das mensagens mediticas participariam na construo de sentido para essas mensagens e adeririam a elas em maior ou menor grau, j que as mensagens poderiam afect-los directa e pessoalmente (subida de impostos...), directa mas no pessoalmente (vitria da equipa com a qual se a cessao do entendimento da ocorrncia como

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simpatiza...), indirectamente (vitria de outra equipa) ou at no os afectar de todo (baixa bolsista num pas distante sem repercusses fora da). Para Mar de Fontcuberta (1993), a actualidade seria o factor determinante para a converso de um acontecimento em notcia, ao ponto de o jornalismo se distinguir por difundir enunciados sobre acontecimentos actuais. A autora distingue, inclusivamente, a actualidade curta (acidentes...), da actualidade mdia (congressos partidrios) e da actualidade longa (moeda nica...). Rodrigo Alsina (1993) perspectiva o acontecimento em relao com o sistema que o suporta e lhe d sentido. O acontecimento seria assim um fenmeno de percepo do sistema, enquanto a notcia seria um fenmeno de gerao do sistema.

A unidade discursiva: a notcia Os acontecimentos so transformados em notcias pelo sistema jornalstico. Elas so, na ptica de McQuail (1991: 263), () uma das poucas aportaes originais dos meios jornalsticos ao reportrio das formas de expresso humanas. Segundo Rodrigues (1988), a notcia seria mesmo um meta-acontecimento, um acontecimento que se debrua sobre outro acontecimento, sendo acontecimento por ser notvel, singular e potencial fonte de acontecimentos notveis. Notcia e acontecimento estariam, alis, interligados. Muitas vezes, a prpria notcia funciona como acontecimento susceptvel de desencadear novos acontecimentos. Enquanto acontecimento, a notcia teria caractersticas especficas: 1) seria um acontecimento discursivo; 2) possuiria uma dimenso ilocutria, j que aconteceria ao dizer-se; e 3) possuiria igualmente uma dimenso perlocutria, j que produziria qualquer coisa pelo facto de a enunciar. (Rodrigues, 1988: 11-13) De qualquer modo, autores como Nora (1977) j anteriormente haviam referenciado que o jornalismo moderno transformava

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a notcia em acontecimento, legitimando o ingresso dos acontecimentos na histria. Seguindo a denominao tradicional anglo-saxnica extrada dos conhecimentos de rotina dos jornalistas (Tuchman, 1978), as notcias podem subdividir-se em hard news (notcias duras, respeitantes a acontecimentos) e soft news (notcias brandas, referentes a ocorrncias sem grande importncia e que, geralmente, so armazenadas e apenas difundidas quando tal conveniente para a organizao noticiosa). As hot news, notcias quentes, seriam aquelas que, sendo hard news, se reportam a acontecimentos muito recentes. As spot news so as notcias que dizem respeito a acontecimentos imprevistos. Finalmente, as running stories so notcias em desenvolvimento. Em consonncia com Denis McQuail (1991: 263), tambm podemos distinguir notcias programadas (como as notcias resultantes do servio de agenda) de notcias no programadas (notcias sobre acontecimentos inesperados) e de notcias fora do programa (geralmente soft news que no necessitariam de difuso imediata). De qualquer modo, toda a notcia notcia de determinada maneira devido aco enformadora de uma srie de foras, que, como vimos, podero, parece-me, ser categorizadas numa aco pessoal, numa aco social, numa aco ideolgica, numa aco cultural e numa aco fsica e tecnolgica, sem esquecermos que essas aces no so estanques e admitem vrias submodalidades, como a fora conformadora da histria, que se faria sentir, sobretudo, ao nvel socio-cultural, ou a fora conformadora da economia, quer a um nvel socio-organizacional quer ao nvel social mais abrangente dos mercados. A notcia no se esgota na sua produo. Engloba tambm a sua circulao e o seu consumo (Alsina, 1993). Para Maria Dolores Montero (1993: 67-68), haveria igualmente a considerar trs momentos com uma lgica prpria, ou seja, com uma estruturao diferente dos acontecimentos tidos por importantes para a sociedade e do seu significado, que fazem a notcia. Estes momentos, ademais, corresponderiam a agrupamentos tericos desenhados pelos resultados das investigaes empricas sobre a

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comunicao social (mas correspondero igualmente a uma viso das coisas sob o marco da sociologia perspectiva interpretativa)10[10]: ou 1. Produo, (...) processo pelo qual se seleccionam e elaboram os acontecimentos susceptveis de transformar-se em notcias (...). O processo de produo de notcias releva a inter-relao entre os interesses dos diferentes grupos (...): as empresas de comunicao e os profissionais do jornalismo e (...) as fontes e o pblico (..). As empresas de comunicao (...) estabelecem os seus fins econmicos ou polticos (...) e definem mecanismos de control que criam (...) uma perspectiva para a interpretao dos acontecimentos. Os profissionais do jornalismo estabelecem (...) os princpios do seu trabalho e os fundamentos das normas que os legitimam ante a sociedade (...). As fontes de informao e o pblico influenciam os contedos da informao de forma mais ou menos directa. Os meios de comunicao convertem-se num espao de mediao (...) e a informao deve rentabilizar-se de acordo com as necessidades e os gostos do pblico. 2. Circulao, (...) processo atravs do qual os temas do dia (...) se convertem em elemento de debate pblico (...). a etapa em que se produzem os efeitos da informao a curto prazo (...) os pblicos (...) estruturam o contedo da informao em funo das propostas explcitas ou implcitas da tematizao da informao, mas tambm segundo a sua prpria valorizao dos temas. 3. Objectivizao, (...) processo pelo qual alguns elementos da informao (...) se convertem em elementos consolidados e persistentes no pensamento colectivo e, por consequncia, em elementos que tomam parte da realidade social. (...) determinado em exclusivo um processo a longo prazo no meios de comunicao, mas pelos

dependente de outras situaes que do sentido ao mundo real.

2. UM S MUNDO, VRIOS JORNALISMOS

10[10]

Ver a Parte II.

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Alm das foras j mencionadas que enformam a notcia, h a considerar que no mundo existem vrios conceitos de jornalismo, que possuem uma natureza simultaneamente social, ideolgica e cultural. Esses conceitos, que se configuram como uma espcie de teorias da imprensa, procuram descrever aquilo que, dentro de determinadas perspectivas, o jornalismo deve ser. Esses modelos de jornalismo, que autores como Hachten (1996) ou McQuail (1991) procuram sistematizar e denominar (embora diferenciadamente), possuem componentes normativas e funcionais que direccionam, enformam e circunscrevem o jornalismo, os jornalistas e os discursos jornalsticos. Por isso, o jornalismo no igual em toda a parte. As teorias que abordo neste livro dizem respeito, principalmente, forma como o jornalismo ocidental funciona. No entanto, existem outras maneiras de olhar para os news media, cuja anlise pertinente. Antes de prosseguir, quero salientar duas coisas. Em primeiro lugar, alm das conceptualizaes genricas atrs referidas, cada pas ou grupos de pases tm as suas escolas de jornalismo. Embora de forma muito redutora, e apenas a ttulo superficialmente exemplificativo, poderia dizer que o jornalismo britnico de qualidade conhecido pelo rigor e pela sobriedade, o jornalismo italiano conhecido pela paixo na defesa de pontos de vista, o francs pelo envolvimento interpretativo, etc. Em segundo lugar, gostaria de salientar que as denominaes que aqui emprego para abordar os conceitos de jornalismo no so universais. Uso, portanto, aquelas que me pareceram mais adequadas, embora recorra aos contributos de Hachten (1996) e McQuail (1991) para a caracterizao dos diferentes paradimas de jornalismo.

Modelo Autoritrio de Jornalismo O primeiro modelo de jornalismo que nos surge na histria o Modelo Autoritrio. Este paradigma perdurou at ao presente em pases como a Indonsia ou a Tailndia, tendo sido o modelo vigente em Portugal at ao 25 de Abril de 1974.

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Nos pases que impuseram um Modelo Autoritrio de jornalismo, o exerccio da actividade jornalstica sujeito ao controle directo do estado, atravs do Governo ou de outras instncias. Geralmente existe censura. O jornalismo no pode ser usado para promover mudanas, para criticar o governo, os governantes e o estado ou para minar as relaes de poder e a soberania. Assim, o jornalismo aparece subordinado aos interesses de uma classe dominante, aquela que governa o pas, funcionando de cima para baixo: o poder autoritrio que decide, atravs dos organismos de censura e outros, o que deve e no deve e o que pode e no pode ser publicado. Assiste-se a uma monopolizao da verdade pelo poder estatal. e at subversivas. metas do poder As diferenas de pontos de vista so tidas como desnecessrias, quando no irresponsveis A estandardizao e o consenso tornam-se, assim, estatal adoptadas pelos meios jornalsticos. Os

correspondentes estrangeiros so, deste modo, frequentemente vistos como uma ameaa. Como evidente, os jornalistas ficam sujeitos autoridade do estado, no existindo liberdade de imprensa. Porm, o controle do estado sobre as Isto , os empresas de comunicao social nem sempre econmico.

rgos jornalsticos geralmente esto na posse de empresas privadas. Mas o estado pode impor multas, sanes econmicas, cdigos de conduta, penas de priso e a impossibilidade do exerccio profissional do jornalismo aos jornalistas, editores, directores e proprietrios que colidam com os princpios do Modelo Autoritrio de jornalismo. A suspenso das publicaes/emisses e a apreenso de jornais so tambm dispositivos usados pelos estados autoritrios para controlar o jornalismo e os jornalistas. Um dos argumentos mais usados para defesa do Modelo Autoritrio de jornalismo pelos seus promotores num determinado pas prende-se com as necessidades de desenvolvimento e sobrevivncia desse pas. Alis, o prprio paradigma Ocidental possui mecanismos capazes de impor a autoridade do estado sobre os rgos jornalsticos e os jornalistas em situaes de crise ou emergncia. Mas no Modelo Ocidental a assuno da autoridade do estado sempre provisria, dura unicamente enquanto

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existe uma crise ou uma emergncia e est claramente regulada na lei, o que no sucede em pases autoritrios.

Modelo Revolucionrio de Jornalismo Com a prtica de um jornalismo revolucionrio pretende-se, geralmente, derrubar um sistema poltico. Mais raramente, a sua prtica visa contribuir para o fim do controlo estrangeiro de uma nao ou persegue um objectivo similar. Assim, normalmente os media revolucionrios so clandestinos, embora nos estados de direito democrticos as liberdades cvicas propiciem a proliferao de publicaes underground com objectivos revolucionrios (como os jornais anarquistas portugueses). O Pravda, na poca anterior revoluo bolchevique, um bom exemplo de um jornal que se guiava por uma concepo revolucionria do jornalismo, tal como a imprensa dos partisans de Tito, na Juguslvia ocupada pelos nazis, durante a II Guerra Mundial. Publicaes e rdios clandestinas e revolucionrias surgiram tambm nas lutas pela libertao dos pases africanos e asiticos sujeitos a regimes coloniais e as gravaes udio de Khomeiny serviram para animar os revolucionrios iraquianos que derrubaram o X. Hoje em dia, as redes transnacionais (como a Internet) e as tecnologias da comunicao (faxes, fotocopiadoras, etc.) permitiram a proliferao de rgos de comunicao alternativos, muitos deles revolucionrios, j que se torna fcil e barato difundir informao.

Modelo Comunista de Jornalismo Nos pases sujeitos a uma concepo comunista do jornalismo, como a China ou o Vietname, o estado domina a imprensa e, normalmente, igualmente o proprietrio monopolista dos meios de comunicao. O acesso aos media fica, assim, restringido aos que perseguem os objectivos comunistas do estado, subordinado ditadura do proletariado enquanto a

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sociedade socialista se encontra em transio para uma sociedade comunista. Existe censura, at porque se entende que a imprensa socialista deve estar ao servio do proletariado, impedindo a contrarevoluo e a tomada do poder pela burguesia. A procura da verdade, um valor caro no Ocidente, torna-se, irrelevante se no contribuir para a construo do comunismo. A imprensa orienta-se, desta forma, por dois princpios: (1) h coisas que no se podem publicar; e (2) h coisas que se tm de publicar. Para a definio de notcia contribui uma outra categoria: deve ser informao que sirva os interesses e objectivos do estado socialista e do partido comunista, o nico partido consentido. Embora, em grande medida, tenha sido o Modelo Autoritrio de jornalismo a dar aos pais do comunismo, nomeadamente a Lenine, um ponto de partida para a concepo de um Modelo Comunista para a imprensa, este ltimo difere do primeiro porque nos estados socialistas todos os media so, quase sempre, propriedade do estado, devendo apoiar activamente o governo e o partido comunista.

Modelo de Jornalismo para o Desenvolvimento O Modelo de Jornalismo para o Desenvolvimento (foi) essencialmente praticado (ou tentou praticar-se) nos pases em vias de desenvolvimento, na sua maioria com passado colonial. Caracteriza-se por misturar ideias e influncias, tais como: 1) 2) 3) 4) 5) Concepes marxistas e neo-marxistas da imprensa; Teorias que atribuam comunicao uma grande importncia como motor das economias e at das sociedades; Ideias decorrentes dos debates e das publicaes da UNESCO; Reaces contra os conceitos do livre fluxo de informao; Reaces diferenciao entre pases pobres e ricos no que respeita capacidade de comunicao. Nos pases que implementaram um Modelo de Jornalismo para o Desenvolvimento, entende-se que todos os rgos de comunicao social

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devem ser usados para a construo da identidade nacional (quando os estados so multi-tnicos), para combater o analfabetismo e a pobreza e para desenvolver o pas. Assim, entende-se que os news media devem apoiar as autoridades, pelo que a liberdade de imprensa restringida de acordo com as necessidades de desenvolvimento da sociedade (existe censura), a informao tida como sendo propriedade do estado e os direitos liberdade de expresso so tidos como irrelevantes face aos enormes problemas de pobreza, doena, subdesenvolvimento, Para justificar a analfabetismo e/ou outros que esses pases enfrentam.

imposio de limites liberdade de imprensa e a adeso a um modelo de Jornalismo para o Desenvolvimento tem sido invocado um outro problema: a coexistncia de etnias em pases cujas fronteiras no coincidem com as das naes. No Modelo de Jornalismo para o Desenvolvimento presume-se tambm que cada pas tem o direito a controlar no s os jornalistas estrangeiros que a residem como tambm os fluxos de informao que nele penetram. Esse direito justificado com vrios argumentos: a necessidade de se equilibrarem os fluxos de informao entre pases ricos e pobres; o facto de a informao ser vista como riqueza e motor de progresso; o facto de a informao ser tida como um factor de hipottica instabilidade. Todavia, na actualidade os novos media, como a televiso por satlite ou a Internet, tornam quase impossvel controlar os fluxos de informao que circulam no mundo. Segundo Hachten (1996), alguns dos apoiantes do Jornalismo para o Desenvolvimento defendem-no unicamente como uma etapa antes da implementao de um Modelo Ocidental de Jornalismo.

Modelo Ocidental de Jornalismo O Modelo Ocidental de Jornalismo preconiza que a imprensa deve ser independente do estado e dos poderes,t endo o direito a reportar, comentar, interpretar e criticar as actividades dos agentes de poder,

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inclusivamente dos agentes institucionais, sem represso ou ameaa de represso. Teoricamente, os jornalistas seriam apenas limitados pela lei O campo jornalstico (tida por justa), pela tica e pela deontologia.

configurar-se-ia assim, teoricamente, como uma espcie de gora, ou seja, como uma espcie de espao pblico onde se ouviriam e, por vezes, onde se digladariam as diferentes correntes de opinio. Nestas ltimas ocasies, o jornalismo funcionaria como uma arena pblica. Teoricamente, o campo jornalstico funcionaria, assim, como um mercado livre das ideias. Na realidade, sabemos que factores como o acesso socialmente estratificado aos media11[11], entre outros, introduzem distores ao funcionamento terico do sistema. Hachten (1996) afirma que os estados que possuem uma imprensa livre normalmente possuem: 1) 2) 3) 4) 5) Leis que protegem as liberdades individuais e os direitos de propriedade; Elevados nveis de rendimento econmico, alfabetizao e educao; Sistemas de governo baseados em democracias constitucionais parlamentrias ou, pelo menos, existncia de oposio poltica legtima; Mercado publicitrio capaz de gerar receitas suficientes que sustentem os news media; Tradio de jornalismo independente. Subjacente implementao d Modelo Ocidental de Jornalismo esto as ideias de que o pluralismo e a democracia so benficos para o para a sociedade em geral e de que s uma populao informtica pode, em conscincia, participar nos processos de tomada de deciso (principalmente travs do voto). Segundo Hachten (1996), esta ideia ampliou-se e levou concepo do free-flow da informao a nvel mundial. As ideias de uma imprensa livre e do livre acesso imprensa foram exportadas para todo o planeta a partir do Ocidente. Porm, o fluxo livre de informao poder ter aspectos negativos, j que se faz, predominantemente, dos pases ricos (geralmente situados no Hemisfrio Norte) para os pases pobres (geralmente situados no Hemisfrio Sul). Para11[11]

Ver o captulo III.

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os crticos do free-flow da informao, segundo Hachten (1996), esta doutrina traduz-se numa ingerncia constante nos assuntos internos dos pases e na imposio de valores ocidentais a todo o mundo, mina os esforos de desenvolvimento e promove um alegado imperialismo cultural. Alm disso, para esses crticos o free-flow inscrever-se-ia numa estratgia de dominao dos mercados por parte dos grandes oligoplios ocidentais. As pessoas que advogam a filosofia do free-flow da informao afirmam que o acesso aos media ocidentais fornece vises alternativas s pessoas que vivem sob regimes autoritrios, frequentemente totalitrios. Alm disso, o free-flow da informao promoveria os direitos humanos, publicitaria os abusos a esses mesmos direitos e forneceria informao que poderia ser usada para as pessoas de diferentes pases tomarem melhores decises. Existem outros tipos de crticas que tm sido feitas ao Modelo Ocidental de Jornalismo, tendo em conta a forma como teorizado e a expresso dessa teorizao na Lei. Uma das crticas que pessoalmente considero mais pertinentes e consistentes foi feita por Chomsky e Herman (1988) ao jornalismo norte-americano, embora, pessoalmente, eu julgue que aquilo que se passa nos Estados Unidos ocorre igualmente noutros pases ocidentais. Para os autores, quando se renem um certo nmero de circunstncias o Modelo Ocidental de Jornalismo funciona, pontualmente, como um Modelo de Propaganda. Porm, esse sistema de propaganda de difcil deteco nos pases democrticos, onde os rgos jornalsticos geralmente so privados e onde a censura formal est ausente, at porque esses orgos criticam com frequncia o governo e as grandes empresas, surgindo como representantes e garantes da liberdade de expresso e defensores da comunidade (Chomsky e Herman, 1988). Dete modo, para Chomsky e Herman (1988) o mercado das ideias e das informaes no inteiramente livre. Um Modelo de Propaganda que beneficia os interesses governamentais e os grandes poderes econmicos estabelece-se pela limitao extra-jurdica e extra-deontolgica liberdade jornalstica, no contexto do mercado, regulado pelas leis da oferta e da

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procura. 1)

O funcionamento de um sistema de propaganda atravs do

jornalismo decorreria de quatro grandes factores: Recrutamento, pelas empresas, de jornalistas respeitadores dos (pre)conceitos e normas internas, dos constrangimentos organizacionais, das orientaes patronais e do mercado, regulado pelas leis da oferta e da procura; 2) 3) 4) Interiorizao, pelos jornalistas, das limitaes impostas pelos proprietrios e pelos poderes poltico e econmico; Auto-censura derivada dos mecanismos no-lineares de controlo; Existncia de elementos interactivos e que filtram as notcias, destacando as matrias favorveis aos interesses do governo e dos grandes interesses econmicos privados. naturalidade. Estes filtros actuariam com Assim, os jornalistas no colocariam em causa a sua

honestidade profissional e estariam convencidos de que escolhem e interpretam as notcias baseados em critrios jornalsticos desligados de presses externas. Esta situao tornaria difcil imaginar formas Segundo alternativas de se seleccionar e processar o que se noticia.

Chomsky e Herman (1988), os filtros que levariam o jornalismo americano a tornar-se um Modelo de Propaganda so os seguintes: Concentrao da propriedade (formao de oligoplios) e orientao lucrativa das empresas jornalsticas (menos pessoas dominam um grande nmero de rgos jornalsticos, facilitando as presses e a dependncia e impedindo os jornalistas descontentes de obterem empregos alternativos com facilidade); Publicidade como primeira fonte de rendimento das empresas jornalsticas (o que levaria as empresas jornalsticas a evitar ofender os clientes entre os quais os diversos rgos de governo e a administrao pblica com matrias que estes possam considerar indesejveis); Confiana nas informaes dadas por responsveis dos diversos rgos do governo e das empresas dominantes (por um lado, os meios jornalsticos, burocratizados e rotinizados, tm necessidade de fluxos contnuos de informao credvel, o que s pode ser

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assegurado por outros agentes burocratizados de produo de informao (como as agncias de relaes pblicas); por outro lado, torna-se menos dispendioso difundir as notcias oriundas de fontes credveis e prestigiadas do que notcias sujeitas a confirmao e pesquisa); Ditames da audincia e crticas do pblico (a imprensa seria criticada e abandonada quando atraioasse os valores e expectativas mais profundas do pblico); Anti-comunismo como mecanismo de controle, nos Estados Unidos (o que levaria o pblico americano a rejeitar a informao positiva para o comunismo e, por consequncia, os rgos jornalsticos que a veiculassem). Entre vrios outros estudos de caso apresentados pelos autores, na verso de Chomsky e Herman (1988) a invaso indonsia de Timor e os crimes subsequentemente perpetrados contra os timorenses foram temas pouco relatados na imprensa norte-americana porque a Indonsia era vista como um pas amigo dos Estados Unidos, como um pas vital para a poltica externa e para os interesses polticos e diplomticos dos EUA, que, ao invadir Timor, estava a impedir o alastramento do comunismo na sia. Pelo contrrio, os crimes perpetrados no Cambodja pelo sangrento regime comunista de Pol Pot e dos Khmer vermelhos foram amplamente noticiados pela imprensa norte-americana, isto porque, na verso de Chomsky e Herman (1988), esse ngulo de cobertura ia ao encontro das crenas e expectativas da audincia e servia os interesses polticos dos Estados Unidos.

3. NEWSMAKING E A VERSO SCHUDSODIANA DE SISTEMATIZAO DAS TEORIAS DA NOTCIA Vimos j que Michael Schudson (1988) oferece uma viso sistematizada das teorias e das razes que procuram explicar por que que as notcias so como so, viso essa que, devido ao seu carcter sinttico, me parece ser

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particularmente til e funcional e me parece ter virtualidades pedaggicas. Tentei, porm, complementar a viso schudsoniana com elementos que parecem ter-lhe passado mais ou menos despercebidos, como a tecnologia, ou elementos que ele no enfatiza, como a aco do meio social no organizacional. Segundo Schudson, a aco pessoal, a aco social e a aco cultural, em inter-relao, so as trs principais explicaes para que as notcias sejam como so. Em conformidade com a aco pessoal, as notcias so vistas como um produto das pessoas e das suas intenes; a aco social d nfase ao papel das organizaes (vistas como mais do que a soma das pessoas que as constituem) e dos seus constrangimentos na conformao da notcia; a aco cultural perspectiva as notcias como um produto da cultura e dos limites do que culturalmente concebvel no seio dessa cultura: isto , uma dada sociedade, num determinado momento, s consegue produzir uma determinada classe de notcias. (Schudson, 1988: 20) Esta ltima assero vai ao encontro do que diz McQuail (1991: 256), que refere que grande parte dos contedos das notcias resultam da reelaborao de temas e imagens procedentes do passado cultural. Se, na perspectiva da aco pessoal, as notcias dependem do que as fontes dizem, da forma como pessoas poderosas actuam sobre os news media (querendo lucro ou a promoo de determinados pontos de vista e a secundarizao de outros, etc.; estas ideias sobre a influncia aco pessoal muitas vezes orbitam em torno das chamadas teorias da conspirao) ou da maneira como os jornalistas e seus chefes percepcionam, avaliam, seleccionam e transformam a matria-prima informativa em notcias, na perspectiva da aco social, para alm desses factores, h a considerar que frequentemente os produtos de uma organizao podem () ser mais a consequncia no planeada de um pequeno nmero de pequenas escolhas do que o resultado de um pequeno nmero de decises crticas. (Schudson, 1988: 22) Por isso, () temos notcias que ningum queria (), a notcia [tambm] o resultado no planificado da dinmica organizacional. (Schudson, 1988: 23)

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Embora aceite as asseres de Schudson, para mim a aco social no se esgota nas organizaes noticiosas, pois estas relacionam-se com o meio social e sofrem as influncias deste, desde logo atravs das fontes e as relaes entre as fontes e os jornalistas so problemticas. Assim sendo, julgo que o contexto da aco social deve ser aferido de uma forma mais ampla. Por outro lado, ao falar-se de meio social, temos de pensar na cultura que lhe implcita e, na minha opinio, tambm da ideologia, a um nvel intermdio entre o social e o cultural. Schudson (1988: 23), porm, enfatiza sobretudo a questo cultural:

() o defensor de uma perspectiva de aco social pode muito bem explicar por que que um padro estabelecido logicamente persiste, mas no nos pode ajudar a compreender as suas origens. O ponto de vista da teoria da aco social explica por que que existem padres, por que que as rotinas e os rituais sobrevivem e tm poder, mas diz muito pouco sobre a razo pela qual as rotinas e os rituais so esses e no outros.

As limitaes explicativas da aco pessoal e da aco social seriam, na verso de Schudson (1988: 24), ultrapassadas pela adicionao da aco cultural as notcias seriam vistas no apenas como um produto das pessoas ou um artefacto produzido por organizaes sociais, mas tambm como um artefacto que, mesmo involuntariamente, se apoia e faz uso de padres culturais pr-existentes para ser realizado e para produzir sentido (por exemplo, na nossa cultura, notcia , de alguma forma, o que novo, a resposta questo Que novidades h?). A antropologia, com a ideia de sistema cultural, conjunto de categorias cognitivas atravs das quais uma sociedade v o mundo, ofereceria, neste campo, um contributo importante (Schudson, 1988: 24) o conceito de frame, ou seja, de enquadramento, por exemplo, enquadra-se aqui.

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Note-se, porm, que o contedo no se esgota numa manifestao de cultura. Os contedos dos news media tambm so uma fonte de cultura, tambm exercem um determinado papel na construo cultural, um processo activo e contnuo. Segundo Shoemaker e Reese (1996: 60), os media tomam at elementos da cultura, reenquadram-nos, relevam-nos e remetem-nos para a audincia aps este processo de mediao, impondo assim a sua prpria lgica na criao de um ecossistema simblico. Para os autores, se a cultura muda, se se adapta e evolui, os contedos mediticos podem funcionar quer como catalisadores, quer como traves da mudana. Por exemplo, neste ltimo campo, o contedo dos media poderia tomar as piores caractersticas da sociedade, dissemin-las e, por consequncia, fortalec-las, tornando a mudana difcil. Alm disso, numa abordagem mais estruturalista, as representaes sociais patentes nos contedos mediticos, podendo reflectir as relaes de poder existentes na sociedade, poderiam tambm levar a que dificilmente outros tipos de relacionamento fossem concebveis. (Shoemaker e Reese, 1996: 60) Nos pontos seguintes, aplicarei a proposta sistemtica de Schudson, complementada com as minhas prprias ideias, ao corpo terico do newsmaking, para testar da sua aplicabilidade.

Aco pessoal Desde que White (1950) lanou os estudos com base na til metfora do gatekeeping (seleco de informao em portes controlados por porteiros, havendo informao que passa e outra que fica retida) que se estuda o papel do jornalista, enquanto pessoa individual, na conformao da notcia. De facto, no seu estudo pioneiro, o autor conclua que a seleco das notcias era um processo altamente subjectivo, fortemente influenciado pelas experincias, valores e expectativas do gatekeeper mais do que por constrangimentos organizacionais. Ao chegar a essa concluso deu um forte impulso superao cientfica das teorias do espelho, que viam a notcia como um espelho dos acontecimentos.

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No obstante, se os estudos mais antigos (de que o de White exemplo) salientavam o papel individual dos reprteres e editores na seleco e configurao das notcias, os estudos mais recentes parecem indicar que factores ambientais, ecossistemticos, como as deadlines, o espao, as polticas organizacionais, as caractersticas do meio social e da cultura, entre outros, desempenham um papel importante na construo das notcias12[12]. Podemos mesmo afirmar que os factores ecossistemticos so vistos agora como o factor crtico para a construo das notcias e, consequentemente, para a dissonncia no pretendida (unwitting bias) entre as representaes da realidade que as notcias so e a realidade em si. Em relao com isto, podemos ainda dizer que, se as notcias so dissonantes da realidade, isso acontece menos ou tanto devido s pessoas que processam as notcias e mais ou tanto a factores que, de certa forma, escapam ao controle dessas pessoas, como as organizaes, o meio social e comunitrio e as culturas e ideologias em que os jornalistas trabalham. Contudo, preciso notar-se, tambm, que a nfase recente nos factores ecossistemticos teve, por consequncia, algum alheamento da comunidade acadmica em relao "ao que vai na mente" dos jornalistas, nomeadamente no campo do papel das cognies dos jornalistas para a construo das notcias, isto , um certo alheamento para a forma como a mente ajuda a construir as notcias, que um aspecto de aco pessoal conformativa das notcias, porventura to importante como o campo das intenes, crenas, valores e expectativas individuais de cada jornalista. Embora o campo da anlise da forma como os jornalistas operam em termos cognitivos escape um pouco ao esprito deste livro, importante referir que a investigao chegou a concluses interessantes. Por exemplo, como o ser humano s processa uma pequena quantidade de informao a cada momento, os jornalistas, sob a presso do tempo, faro um uso adaptado de rotinas cognitivas que lhes sejam familiares para organizar as informaes e produzir sentido. Por outro lado, tendero tambm a procurar e seleccionar informaes que confirmem as suas convices. (cf.12[12]

Ver, por exemplo: Warren Breed (1955) Social control in the newsroom; E. Herman e N. Chomsky (1988) Manufacturing Consent; T. Crouse (1973) The Boys on the Bus; M. Fishman (1980) Manufacturing the News. Gaye Tuchman (1978) Making News; P. J. Tichenor, G. A. Donohue e C. N. Olien (1980) Community Conflict and the Press; J. P. Sousa (1997) Fotojornalismo Performativo.

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Stocking e Gross, 1989: 4) Por exemplo, se aplicarmos estas concluses das pesquisas ao fotojornalismo, poderemos considerar que esses fenmenos so uma das razes pelas quais alguns fotojornalistas mantm abordagens fotogrficas mais ou menos padronizadas da realidade social convictamente, eles podem julgar que fotojornalismo isso e, sob a presso do tempo, fotografaro como esto habituados a fazer. (cf. Sousa, 1997) Outras pesquisas no campo da psicologia cognitiva mostraram que em condies de sobre-informao as pessoas e, por conseguinte, os jornalistas, recorrem a formas estereotipadas de pensamento (o que pode ajudar a explicar a padronizao noticiosa); e tambm que, quando fazem inferncias, as pessoas, como os jornalistas, baseiam-se mais em episdios anedticos do que em dados sistemticos, como os dados estatsticos. (cf. Stocking e Gross, 1989: 4) Alm disso, as dissonncias cognitivamente induzidas, em parte devidas rotinizao cognitiva, constrangem as percepes que uma pessoa tem da realidade, podendo, por conseguinte, favorecer a ocorrncia de erros de julgamento na avaliao do que noticioso (news judgement). (cf. Stocking e Gross, 1989: 4) Assim, um jornalista, constrangido pelas formas rotinizadas de avaliar as situaes e a sua prpria actividade, poder tender a fabricar informao padronizada (por exemplo, a redigir notcias com base na tcnica da pirmide invertida) e a seleccionar sempre como tendo valor noticioso o mesmo tipo de acontecimentos (por alguma razo as conferncias de imprensa dos polticos parece terem sempre valor noticioso aos olhos dos jornalistas enquanto, por exemplo, as dissertaes de mestrado e doutoramento, por mais relevantes que sejam, no o parecem ter) sem procurar outras vias de actuao (que poderiam ser, eventualmente, mais eficazes em certas circunstncias). Esta talvez seja at, provavelmente, uma das razes pela qual a imprensa diria est a perder leitores: fala sempre do mesmo e da mesma maneira, entediando e aborrecendo, sem atender s necessidades informativas dos leitores, que buscaro tambm no consumo de jornais e revistas gratificaes (ensina-nos a teoria dos usos e gratificaes dos meios de comunicao) que lhes evitem o tdio.

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A auto-imagem que os jornalistas tm do seu papel poder ser um factor de grande influncia na seleco de informao e, portanto, um elemento importante para a configurao da notcia. Por exemplo, Johnstone, Slawski e Bowman (1972) mostraram que alguns jornalistas se consideravam neutros, perspectivando as suas profisses como meros canais de transmisso, e que outros se viam como "participantes", acreditando que os jornalistas necessitariam de explorar, esquadrinhar e sacar a informao em ordem a descobrir e desenvolver as histrias. Os jornalistas "neutros" olhavam para as suas obrigaes profissionais como resumindo-se a recolher, processar e difundir rapidamente informao para uma audincia o mais vasta possvel, evitando histrias cujo contedo no estivesse suficientemente verificado; os participantes viam-se como ces de guarda, paladinos da investigao jornalstica, em ordem a controlar os poderes, pelo que investigavam as informaes governamentais, providenciavam anlises para problemas complexos, discutiam as polticas e desenvolviam interesses intelectuais e culturais. Parece, assim, ser mais ou menos claro que a forma como os jornalistas definem a sua profisso pode afectar o contedo que produzem: os jornalistas que se vem como neutros, em princpio, fabricaro histrias diferenciadas dos participantes (veja-se, por exemplo, as pedradas no charco que em Portugal foram o aparecimento da TSF, do Pblico, de O Independente e das televises privadas; ou a enorme diferena que existe entre a massa annima de grande parte jornalistas de agncia e a personalidade combativa, mas independente, de Miguel Sousa Tavares). No fotojornalismo, retomando um exemplo citado na minha tese de doutoramento (Sousa, 1997), um fotojornalista que se veja como neutro provavelmente abordar a realidade social usando essencialmente ngulos normais de captao de imagem (enquadramento ao nvel dos olhos), enquanto um participante poder procurar deliberadamente um ponto de vista, usando outros ngulos, como o picado (tendencialmente desvalorizante do motivo) ou o contrapicado (tendencialmente valorizante do motivo).

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A concepo tica do papel do jornalista na sociedade que cada jornalista possui tambm pode influenciar a construo de contedos para os news media. A tica, na definio de Altschull (1984), que partilho, corresponde, sinteticamente, definio dos valores morais e dos princpios do certo e do errado. Neste campo, o jornalista tem algum espao de manobra. Exemplificando, pode perceber como tico o servio humanidade em geral em detrimento da satisfao dos seus prprios fins ou dos desejos de uma determinada audincia; ou, pelo contrrio, poder ver-se, por exemplo, como um agente cuja funo somente ser fiel aos desejos de uma determinada audincia. que produz. Seguindo a opinio de Shoemaker e Resse (1996), que subscrevo, podemos associar a heurstica cognitiva (obteno de conhecimento por descoberta) aco pessoal na conformao da notcia. De facto, se, Mas parece ser claro que, em funo das consideraes do seu papel tico, o jornalista poder afectar os contedos

conforme enunciaram Niebett e Ross (1980: 36), as mensagens recebidas raramente so vistas como nicas ou originais, sendo antes categorizadas em funo de estruturas mentais pr-existentes, esta categorizao das mensagens que se apresentam nos pontos de seleco dos canais de gatekeeping em (a) mensagens que passam e (b) mensagens que no passam parece deixar um espao de deciso aos jornalistas que contraria ideias sobre a sua hipottica passividade. Pamela Shoemaker (1991: 39) fala mesmo da utilizao hipottica de um esquema noticioso (news schema, isto , uma espcie de esquema categorial relativo s notcias) para avaliar as mensagens as que so consideradas notcias, sendo que seleccionadas, e as que no so consideradas notcias, que no seriam seleccionadas mensagens seleccionadas seriam aquelas estivessem associadas a um esquema noticioso (news schema) (relembrese que Piaget tinha tambm uma aproximao semelhante para muitos dos nossos actos, que explicava atravs da ideia de uma espcie de esquema mental-comportamental).

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Tambm podemos associar a heurstica representativa a uma aco pessoal dos jornalistas na conformao da notcia que est bastante prxima da proposta do esquema noticioso. Basicamente, a heurstica representativa est relacionada com uma forma automtica e irreflectida de categorizao por comparao com outros itens j includos numa categoria. Exemplificando, um editor pode ter uma ideia do que a categoria notcia de uma conferncia de imprensa, pelo que as notcias que potencialmente seleccionar (aco pessoal) sero as que se inscrevem nessa categoria mental previamente existente. Todavia, estou em crer que a construo de categorias um processo que ultrapassa cada pessoa em particular, especialmente quando esta se integra num grupo, como sucederia na generalidade dos rgos de comunicao jornalstica. Os news items que atacam as crenas do gatekeeper podem, segundo Greenberg e Tannenbaum (1962), causar stress cognitivo e, assim, atrasar a seleco, bem como causar erros no news judgement, como por exemplo levar o jornalista a errar na classificao de uma mensagem como soft news ou hard news. Em conformidade com Shoemaker (1991: 22-23), os itens potencialmente capazes de passar os diversos pontos de seleco so aqueles que revelam maior qualidade e atractividade, enquanto de entre os menos reveladores dessa capacidade se encontram os itens que duplicam os que j atravessaram os canais de gatekeeping e aqueles que so desmerecedores de confiana, pelo menos na forma em que so recebidos. Para se ter uma ideia da influncia desse processo sobre o gatekeeping, Tuchman (1972) sugeriu que os jornalistas tendem a procurar reinterpretar os julgamentos dos seus superiores para tornarem as suas mensagens mais susceptveis de passarem pelos portes, sendo essa uma das razes hipotticas pelas quais as histrias de determinados jornalistas eram mais publicadas do que as de outros. Hickey (1966) sustentou, por seu turno, que uma interpretao mais eficaz do processo de gatekeeping passava pelas percepes que os gatekeepers tm uns dos outros e pelas reaces de cada gatekeeper sua funo. Epstein (1973: 29) tinha at salientado que as funes ocupadas pelos jornalistas e administrativos dentro de uma organizao noticiosa originava

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tenses, devido s distintas concepes dos valores jornalsticos. posio que ocupavam (redactores, correspondentes, chefes, etc.).

Os

prprios jornalistas teriam, por vezes, valores diferenciados consoante a Flegel e Chafee (1971) testaram a ideia original de White, segundo a qual o processo de gatekeeping seria subjectivo, inquirindo directamente a jornalistas de dois jornais de diferente orientao poltica se as suas opinies influenciavam os contedos das notcias. Os resultados mostraram que, pelo menos em parte, o processo de gatekeeping tambm depende da aco pessoal dos gatekeepers, j que os jornalistas inquiridos revelaram que eram fortemente influenciados pelas suas prprias opinies, a que se seguia as opinies de editores, leitores e anunciantes (aco social). Diferentes estilos e interpretaes diversificadas do que a administrao, direco e chefias de um rgo jornalstico querem tambm podem resultar em diferentes decises de seleco. (Shoemaker, 1991:26) Mas, segundo Schudson (1988: 21), preciso no esquecer que os jornalistas aparentam ser cada vez mais sensveis uns aos outros e cada vez menos sintonizados com os pontos de vista dos seus chefes, pelo que a aco social se sobreporia, aqui, aco pessoal. Por sua vez, o processo de tomada de deciso (decision making) ao nvel individual do gatekeeping pode ser visto como um processo de decises binrias, que consistiria na aplicao de uma srie de regras de deciso para se decidir se uma mensagem passa os portes (gates) ou no. (Gans, 1980) devero, pelo Todavia, se existem regras de deciso, elas, partida, menos parcialmente, depender da organizao. A

diversidade do produto ser, em princpio, tanto menor quanto maior for a mincia e exaustividade dessas regras, bem como quanto maior for o nvel de habituao a essas regras (rotinizao da aplicao das regras). A presso do tempo afectar tambm o processo de deciso, j que, a meu ver, quanto menor o tempo para a tomada de deciso, menores so as opes que podem ser consciencializadas e tomadas. Para falarmos de aco pessoal sobre as notcias teramos ainda de falar das teorias da conspirao, como as que vem as notcias como o resultado da definio pelos poderosos do que notcia e da forma como as notcias

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se devem apresentar (veja-se, por exemplo, a exposio que Schudson (1988) faz de algumas das teorias da conspirao). Embora algumas destas teorias toquem em pontos problemticos, como a relevante ou por vezes mesmo crucial ou definitiva influncia que certos agentes de poder, certos jornalistas e certos empresrios tm sobre as notcias, regra geral so teorias que pouco tm de cientfico e que se baseiam essencialmente num pequeno nmero de experincias concretas vividas por aqueles que apresentam essas teorias ou que lhes foram contadas por quem as viveu. Pecam, por isso, frequentemente, pelo exagero e pela tomada de diversas partes pelo todo (metonimizao terica). Em resumo, julgamos que os dados referidos permitem concluir que as notcias possuem sempre a marca da aco pessoal de quem as produz, embora temperada por outras foras conformadoras.

Jornalistas: os principais protagonistas do jornalismo Embora existam vrios agentes que com a sua aco pessoal podem modificar o que notcia e o modo como a notcia construda e fabricada, os jornalistas so, provavelmente, o elo mais relevante do processo, muito embora outros agentes, como as fontes, sejam tambm seus protagonistas destacados. Importa, ento, conhecer minimamente qual o perfil desses profissionais de comunicao. Em Portugal, de acordo com o Segundo Inqurito Nacional aos Jornalistas Portugueses, levado a cabo por uma equipa dirigida pelo socilogo Jos Lus Garcia e apresentado ao III Congresso dos Jornalistas Portugueses (1998), existiam, em 1997, 4247 profissionais, entre os quais 1394 mulheres, ou seja, 32,8%, estando-se a notar uma certa feminilizao da profisso, a acompanhar duas outras tendncias marcantes, que so a do aumento da formao acadmica (37,4% dos jornalistas inquiridos eram licenciados, enquanto 68,5% passaram pelo ensino superior ou ainda frequentam estabelecimentos desse grau de ensino) e a do rejuvenescimento da classe, uma vez que 66% dos jornalistas tem menos de 40 anos. Ora, no

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de excluir, muito pelo contrrio, que estas tendncias possam ter tido algum reflexo no processo jornalstico: por exemplo, juventude, em alguns casos, pode significar tambm inexperincia, mas o contraponto a esta hiptese a maior formao; e entre homens e mulheres podem existir diferenas de vria ordem, como em matria de sensibilidade, que acarretem diferenas nas notcias produzidas. Dos profissionais titulares de carteira, a maioria (57,7%) encontra-se na rea Metropolitana de Lisboa, aumentando os buracos na rede de cobertura jornalstica do pas, contando a rea Metropolitana do Porto com 13,9% dos jornalistas portugueses; 61,3% trabalham na imprensa escrita, enquanto a percentagem dos que trabalham em televiso se fica pelos 14,6% e na rdio pelos 18,5%. Os jornalistas no auferem salrios equivalentes. Atravs do inqurito e apesar de o responsvel pelo mesmo admitir uma margem de erro de cerca de cinco pontos percentuais notam-se alguns desequilbrios salariais, com cerca 11,3% dos inquiridos a responder que ganham menos de cem contos, 19,5% entre 101 contos e 150 contos, 19,9% entre 151 e 200 contos, 17,7% entre 201 e 250 contos e os restantes 31,6% acima disso. Honestidade e rigor so, por seu turno, as regras de ouro para a maioria dos jornalistas do pas (49,5%), sendo seguidas pela credibilidade (21,6%). grupo A objectividade/imparcialidade surge em terceiro lugar neste parmetros importantes para a actividade jornalstica, de

evidenciando que vai alguma crise no paradigma da objectividade enquanto regulador fundamental do trabalho jornalstico, como era h alguns anos atrs.

Aco social Podemos, intuitivamente, dizer que, independentemente da vontade dos jornalistas, apenas uma pequena parcela de todo o tipo de factos se converte em notcia, at porque grande parte deles no so promovidos ou representam situaes perspectivadas como normais numa sociedade.

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Por consequncia, podemos intuir que h notcias potenciais que acabam por participar na construo social da realidade e que outras no. Os estudos sobre newsmaking lanam alguma luz sobre esse fenmeno global, enfatizando vrios mecanismos que transcendem a aco pessoal do jornalista, entre os quais a aco social. Em termos de aco social, preciso fazer notar, por exemplo, que as organizaes burocratizadas em que os news media se tornaram tm uma grande dependncia dos canais de rotina (conferncias de imprensa, tribunais, agncias noticiosas, press-releases algumas organizaes tm mesmo agentes especializados em tornar as mensagens suficientemente atractivas para passarem todos os gates, acontecimentos mediticos, photo opportunities, etc.). Essa dependncia , provavelmente, mais elevada do que a dependncia das actividades empreendedoras dos jornalistas e dos canais informais (troca de informao em background, etc.). Por outro lado, a negociao entre os jornalistas e as fontes pode, julgo, situar-se ao nvel da aco social, uma vez que traduz interaces em sociedade que transcendem uma nica pessoa, embora no seja de excluir que a vontade de uma pessoa poderosa possa sobrepor-se e no compatibilizar-se com a do jornalista, representando, deste modo, um dispositivo categorizvel na aco pessoal. Porm, reportando-nos negociao entre os jornalistas e as fontes, importa dizer que 90,6% dos jornalistas inquiridos no Segundo Inqurito Nacional aos Jornalistas Portugueses, dirigido por Jos Lus Garcia, d conta de j ter sofrido presses no exerccio da sua actividade profissional, sendo que 30,3% revelam que essas presses se sentem muitas vezes e 60,3% poucas vezes. De acordo com os dados do mesmo inqurito, 43,2% dos jornalistas inquiridos afirmou que existem tantas presses internas como externas, 29,7% que existem mais presses externas do que internas e 24,5% que existem mais presses internas do que externas. As presses externas proviriam de grupos de interesse poltico-partidrios (85,8%), empresariais (61,5%), governamentais (57,1%), desportivos (41,6%), religiosos (20,8%) e jornalsticos (20,4%). As presses internas seriam principalmente

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provenientes da administrao (47,1%), da direco de informao (43,4%) e das chefias (41,2%). Os valores compartilhados pelos jornalistas tambm podem ser Por considerados como um mecanismo de aco social que se sobrepe aco pessoal, embora ambas sejam temperadas por uma aco cultural. exemplo, Gans (1980) defendeu e parece-me que com alguma

oportunidade que os valores partilhados pelos jornalistas dos rgos de comunicao social americanos que ele analisou eram um dos factores conformativos das notcias, uma vez que viriam ao de cima na hora de seleco dos acontecimentos e das notcias durante as reunies de coordenao editorial. Os valores identificados por Gans foram: etnocentrismo, democracia altrustica, capitalismo responsvel, nostalgia das pequenas cidades de provncia, individualismo, moderao, desejo de liderana nacional e desejo de ordem social. Todavia, apesar do seu interesse, o trabalho de Gans no est isento de crticas. Michael Schudson (1988) refere, nomeadamente, que as origens sociais comuns dos jornalistas explicao que Gans d para o carcter partilhado dos valores que identificou podem no determinar os seus valores: a socializao faria o jornalista abrir-se s opinies e valores que encontraria na redaco.

A tirania do factor tempo O factor tempo algo que conforma a notcia e que transcende a aco pessoal do jornalista, encontrando expresso nos constrangimentos socioorganizacionais e socio-econmicos que condicionam o sistema jornalstico e na prpria cultura profissional. Durkheim (citado por Schlesinger, 1977) defendeu que o tempo mais um produto objectivado na vida social do homem do que uma categoria a priori. uma ideia que partilho e que constitui o ponto de partida de Schlesinger (1977) para a anlise da tirania do factor tempo no jornalismo, profisso que necessitaria de um excepcional grau de preciso nos timings (Schlesinger, 1977: 178).

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Para este autor, a compreenso das origens das notcias aumenta quando se considera o factor tempo. Os jornalistas seriam membros de uma cultura cronometrada, teriam uma espcie de cronomentalidade que os faria at associar a classificao de notcias ao factor tempo (spot news, running story, hot news, etc.) e a perspectivar a capacidade de vencer o tempo como a demonstrao mais clara de competncia profissional. O curso segue um regular ciclo dirio, cuja cadncia pautada pelas deadlines. Estas e os inexorveis ponteiros do cronmetro so dois dos mais potentes smbolos na cultura profissional do jornalista. 179) (Schlesinger, 1977; 1993: E, As Consequentemente, julgo que o factor tempo afecta o news

judgement, logo at por estabelecer um conceito de actualidade. newsmaking, nomeadamente ao nvel da seleco (gatekeeping). portes.

afectando o julgamento noticioso, afectar igualmente o processo global de informaes mais actuais teriam, assim, mais hipteses de passar pelos As horas de fecho foram o jornalista a parar a recolha de informao e a apresentar a histria, classificando, hierarquizando, seleccionando e integrando apenas as informaes (pegando nas palavras de Giner recolhidas at esses limites horrios ao III Congresso dos Jornalistas

Portugueses, os jornalistas permanecero mesmo mais tempo a fechar do que a planificar, que seria aquilo que mais falta lhes faria). Tuchman (1977) nota que a situao relatada tende a causar buracos temporais na rede de captura de acontecimentos ( semelhana dos buracos geogrficos, institucionais e organizacionais), pois os acontecimentos fora das horas normais de trabalho apresentam menores hipteses de serem cobertos. Philip Schlesinger (1977; 1993: 179), referindo-se a Park (1966), faz notar que a notcia efmera, transitria, altamente deteriorvel e possuidora de um valor de utilizao que baixa rapidamente. A isto acresce que a noo de actualidade jornalstica variaria em funo do mercado para o qual se produzem as notcias. (Schlesinger, 1977; 1993) Para uma agncia, por exemplo, quase s a actualidade "quente" (valores do imediatismo e da rapidez) constituiria a actualidade, mas num semanrio a informao que j tem trs ou quatro dias poder ser informao considerada actual.

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Para Schlesinger (1977), foram as condies de mercado, nomeadamente a competitividade empresarial entre as empresas jornalsticas, a moldar inicialmente os valores temporais que hoje se encontram inseridos na cultura profissional dos jornalistas, ou seja, a ligao actual do jornalista ao factor tempo j mais baseada na cultura profissional do que no carcter da notcia como mercadoria rapidamente deteriorvel. Ainda assim, A definio da notcia como artigo deteriorvel, a concorrncia dentro de uma estrutura (restrita) de mercado, e uma atitude particular em relao passagem do tempo esto estritamente ligadas. (Schlesinger, 1977; 1993: 180) A presso do tempo, agudizada pela competitividade, levaria ainda os jornalistas a relatar frequentemente as histrias em situaes de incerteza, quer porque nem sempre renem os dados desejados quer porque necessitam de seleccionar rapidamente acontecimentos e informaes. O factor tempo impediria tambm a profundidade, razo pela qual as notcias se concentrariam no primeiro plano (foreground) em detrimento do plano contextual de fundo (background), o que contribuiria para abolir a conscincia histrica. (Schlesinger, 1977)

Rotinas Podemos considerar que rotinas so os processos convencionalizados e algo mecanicistas de produo de alguma coisa que, sem excluir que determinadas pessoas tenham rotinas prprias ou que a cultura e o meio social afectem essa produo, me parece obedecerem essencialmente a factores socio-organizacionais. Quer as cincias sociais quer o jornalismo tm rotinas e tanto num como noutro caso elas desenvolveram-se para ajudar as pessoas envolvidas a construir sentidos para o mundo e a interpretar situaes ambguas. (Tuchman, 1972; 1974; Kidder e Judd, 1986) No jornalismo, podem ser consideradas como respostas prticas s necessidades das organizaes noticiosas e dos jornalistas. (Shoemaker e Reese, 1996: 108)

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As rotinas, enquanto padres comportamentais estabelecidos, so, entre os processos de fabrico da informao jornalstica, os procedimentos que, sem grandes sobressaltos ou complicaes, asseguram ao jornalista, sob a presso do tempo, um fluxo constante e seguro de notcias e uma rpida transformao do acontecimento em notcia, isto , permitem ao jornalista que controle o seu trabalho (Traquina, 1988). Ao mesmo tempo, as rotinas defendem os jornalistas e as organizaes noticiosas das crticas e dos riscos elevados (o uso de aspas, ou a contrastao de fontes, tal como Tuchman (1972) chamou a ateno, seriam exemplos dessas rotinas defensivas). O facto de serem usadas como mecanismos de defesa no torna as rotinas jornalsticas em instrumentos perfeitos ou menos problemticos. sujeitas a distores (bias), at porque no haveria sistemas Pelo de contrrio, enquanto sistemas de processamento de informao, esto processamento de informao totalmente adequados, mesmo nas cincias sociais. (Tuchman, 1977) Ao invs, quer os cientistas sociais quer os jornalistas parecem recorrer rotineiramente ao que Kuhn (1962) designou por paradigmas, ou seja, a formas de representao da realidade baseadas em suposies largamente compartilhadas sobre como processar e interpretar a informao. aceitveis e so Estes paradigmas apenas nos do informao em crenas correntes e expectativas sobre coisas que consideramos teis em formas que consideramos baseados compartilhadas, pelo que as pessoas tendem a consider-los como dados adquiridos. (Shoemaker e Reese, 1996: 17) Um caso relatado por Shoemaker e Reese (1996: 251), que tem a ver com o exerccio profissional do fotojornalismo, pode ajudar-nos a compreender que os paradigmas jornalsticos no so directamente impostos (tal como acontece com as ideologias jornalsticas), embora sejam, parcialmente, um produto dos processos jornalsticos organizacionais, ideolgicos, culturais, etc. de mediao da informao. Os paradigmas esto continuamente a ser negociados, pois, frequentemente, os valores confrontam-se, como acontece no caso que a seguir relatamos: em 1993, Mike Meadows, um fotojornalista do Los Angeles Times, foi despedido por ter realizado uma

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fotografia encenada de um bombeiro aspergindo-se com gua de uma piscina, tendo por fundo uma casa a arder. O seu editor considerou que se tratava de uma forma de manipulao da notcia. ultrapassado o paradigma jornalstico que Ele tinha, afinal, determinados considera

procedimentos rituais e rotineiros de objectividade fotojornalstica a nica forma de reportar a realidade social, o mesmo paradigma que promove, de certa forma, na nossa opinio, a ideia de que a fotografia pode ser um espelho do real, quando, de facto, ela no o parece ser. As rotinas podem ser consideradas como meios para a prossecuo de um fim, que se institucionalizaram, adquirindo uma espcie de vida e legitimidade prprias. Tuchman (1977) assinalou at que os jornalistas que fizeram das rotinas os seus modos de processamento de notcias so valorizados pelo