as mulheres e a justiça socioambiental
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As Mulheres e a Justiça
Socioambiental:tema transversal ou sujeitos de transformação?
INTRODUÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MÔNICA LARANGEIRA JÁCOME
Trabalho elaborado como requisito à obtenção dos créditos da disciplina de “Ecologia Política”, ministrada pelo Professor Dr. Carlos Frederico Loureiro.
Rio de Janeiro, Agosto de 2011.
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O presente trabalho tem por objetivos percorrer as idéias principais das três
correntes do ambientalismo dominantes na contemporaneidade, de acordo com Joan
Martínez Alier, e analisar cada uma delas a partir de um enfoque que toma em conta as
inúmeras injustiças que marcam a vida das mulheres.
Para quem tem acompanhado o debate ambientalista ou ecológico no mundo, a
crescente preocupação com questões como o aquecimento global, o degelo no Ártico, a
destruição das florestas, a poluição dos rios, a extinção de espécies animais e vegetais, a
desertificação do planeta, o uso de agrotóxicos e os alimentos transgênicos, para citar
somente alguns, é indiscutível. Essa crescente preocupação seria animadora, não fosse a
crescente - em exponencial ainda maior que o da primeira – deteriorização da vida em geral.
No caso do Brasil, por exemplo, segundo a Pesquisa de Informações Básicas –
Suplemento de Meio Ambiente - MUNIC, realizada em 2002, pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério do Meio Ambiente, abrangendo
5.560 municípios brasileiros, em 38% das cidades brasileiras - 77% das quais encontram-se
no Rio de Janeiro (estado mais atingido) - já foi possível detectar a poluição em rios e
enseadas; a contaminação do solo afeta 33% dos municípios, sendo que, quatro das cinco
Grandes Regiões e 13 das 22 cidades brasileiras com mais de 500 mil habitantes já têm como
seu primeiro agressor os resíduos decorrentes da Saúde, em detrimento aos resíduos
industriais. Em 2002, enquanto 600 prefeituras tinham local específico para receber
embalagens de agrotóxicos, 978 descartavam tais recipientes em vazadouros a céu aberto.
Inundações, deslizamentos de encostas, secas e erosão são os desastres ambientais mais
comuns no Brasil: 41% das cidades do País foram atingidas por pelo menos um deles, e 47%
sofreram prejuízos na agricultura, pecuária ou pesca, devidos a problemas ambientais. Em
2002, 1.121 municípios brasileiros sofreram degradação em áreas legalmente protegidas.
Também foram destacados os problemas ambientais de duas regiões específicas: a Bacia
Hidrográfica do Rio São Francisco e a área de influência da rodovia Cuiabá – Santarém (BR
163)1.
A história da luta pelo meio ambiente no Brasil e no mundo é marcada pela
existência de diferentes correntes de pensamento e de frentes de luta política, principalmente
a partir do segundo pós-guerra, quando das primeiras campanhas pelo desarmamento
1 A pesquisa completa por ser acessada através do site do IBGE, mais especificamente no link: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=363&id_pagina=1. Acesso em 04/09/2011.
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nuclear, onde encontravam-se pacifistas e ambientalistas, vistos ainda durante bons anos
como os “alternativos”. Na década de 60, com a emergência dos novos movimentos sociais e
as manifestações estudantis da última metade da década, os “alternativos” deixam de ser os
únicos preocupados com as questões ambientais e novos atores sociais surgem nessa arena
de embates, diversificando e re-configurando o cenário das décadas seguintes.
É por essa década, também, que tem início a “segunda onda” do feminismo.
Enquanto a “primeira onda”, que percorreu o século XIX e primeira metade do século XX, era
de um feminismo liberal e ativista dos direitos políticos das mulheres, a segunda se
preocupou com as questões da igualdade e do fim das exclusões. E, assim como o
movimento ambientalista, nas décadas seguintes o feminismo se expandiu e se diversificou
em tantas correntes de pensamento e frentes de luta, que hoje fala-se em “femininos”, no
plural. Nesse processo, na década de 70, um grupo de mulheres unindo feminismo, pacifismo
e ecologismo cria o ecofeminismo, que firma-se como corrente específica, a partir da RIO-92,
com o Planeta Fêmea, no Rio de Janeiro.
O ecofeminismo seguindo os passos do feminismo, também se multiplica em
diversas correntes, desde as mais socialistas às mais liberais. Existe, além disso, aquelas
ecofeministas que defendem a tese da natureza como o princípio feminino, e aquelas que a
rejeitam. As primeiras consideram o ecofeminsmo “mais como uma corrente que trabalha com
mulheres dentro do movimento ambientalista, do que propriamente parte do movimento
feminista”2, enquanto para as segundas:
“Ser parte da natureza diz respeito a todos os
seres humanos; o problema com associação
entre mulher e natureza é que isso significa, na
ideologia patriarcal/capitalista, que, como parte
da natureza, as mulheres devem ser dominadas
e domesticadas. Inclusive, usa-se o próprio
conceito de domesticação da natureza assim
como se usa o conceito de domesticação das
mulheres nos textos do ‘pais’ fundadores da
2 SILIPRANDI, E. Ecofeminismo: contribuições e limites para a abordagem de políticas ambientais. In: Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável. Porto Alegre, v.1, nº 1, jan./mar. 2000, p. 61.
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visão do mundo que sustentou ideologicamente
a formação desse sistema”.3
A posição que defenderemos no presente trabalho diz respeito à segunda tese
acima apresentada, por compreender que defender a natureza como o princípio feminino, em
oposição à cultura como princípio masculino seria o mesmo que naturalizar a opressão e,
principalmente, a violência contra as mulheres.
Isso, no entanto, não significa defender a existência de uma escala hierárquica de
importância – ou de gravidade – na qual as questões específicas do feminismo, seriam mais
importantes do que as questões específicas da ecologia. Isso não faria nenhum sentido,
principalmente se considerarmos que: 1) tanto a opressão das mulheres, quanto a destruição
da natureza têm por trás o sistema patriarcal/capitalista hegemônico, hoje, no planeta; 2) as
maiores vítimas da destruição ambiental em todo o mundo têm sido as mulheres, pobres (não
no sentido do poder aquisitivo, mas do acesso aos direitos sociais básicos4), de etnia não
branca e do, incompreensívelmente ainda nominado, ‘Terceiro Mundo’; 3) abrir concorrência
entre os diversos movimentos sociais é enfraquecer a luta de cada um no seu campo, e a de
todos e todas na construção de um outro mundo mais justo e solidário.
Por fim, a opção pelo enfoque feminista se dá, ainda, por duas razões: a primeira,
porque em que pesem o surgimento nos últimos anos, de algumas abordagens
contemporâneas relativas às questões ambientais, nas quais as mulheres são levadas em
conta e elas próprias são tomadas como protagonistas de ações políticas em interações
sociais, no campo da ecologia ainda se encontram muito mais produções científicas e
acadêmicas feministas incorporando a perspectiva ambiental, do que o contrário, ou seja,
produções do campo teórico da ecologia, que incorporem a dimensão de gênero, ainda que já
o faça em relação à dimensão de raça/etnia (basta dar uma passada d’olhos nos textos
indicados para leitura nesta disciplina); a segunda, porque é do lugar do feminismo enquanto
campo teórico, prática pedagógica e projeto político que escrevo.
CORRENTES DO ECOLOGISMO
3 ÁVILA, M. B. “Mulher e Natureza”: dos sentidos da dominação no capitalismo e no sistema patriarcal. In: ARANTES, R. e GUEDES, V. (Orgs.). Mulheres, Trabalho e Justiça Socioambiental. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2010, p. 26. 4 LOUREIRO, C. F.; BARBOSA, G. L. et ZBOROWSKI, M. B. Os vários “ecologismos dos pobres” e as relações de dominação no campo ambiental. In: LOUREIRO, C. F., LAYRARGUES, P. P. et CASTRO, R. S. de. Repensar a Educação Ambiental: um olhar crítico. São Paulo: Cortez, 2009, p. 84.
5
O título desta primeira parte do trabalho é intencionalmente igual ao do capítulo
primeiro do livro “O Ecologismo dos Pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração”5,
de Joan Martinez Alier (2007, p. 21 – 39), catedrático do Departamento de Economia e
História Económica da Universitát Autònoma de Barcelona, pois é exatamente disso que irá
tratar, ou seja, das três correntes de ativismo ambiental que, hoje, ele identifica no mundo: o
“Culto ao Silvestre” (que alguns preferem chamar o “Conservacionismo”), o “Evangelho da
Ecoeficiência” e a ”Ecologia dos Pobres”.
A primeira, que denomina “culto ao silvestre”, tem por premissas básicas a
conservação da natureza intocada, o culto às suas belezas e o amor pela vida selvagem. Não
discute o crescimento econômico e suas conseqüências nefastas ao meio ambiente, se
empenhando em preservar o que ainda não foi destruído. Sua base científica é a Biologia da
Conservação, que desde 1960 vem se desenvolvendo. Dentre suas conquistas, o autor cita a
Convenção da Biodiversidade, no Rio de Janeiro, em 1992 (não assinada pelos EUA) e a Lei
das Espécies em Perigo dos Estados Unidos, que prioriza a preservação da biodiversidade
em detrimento à sua exploração para fins de comercialização, ainda que sua justificativa
esteja calcada em valores utilitaristas, como, por exemplo, a preservação, com vistas ao
futuro consumo da humanidade, de espécies alimentares e medicinais.
Dentre outros argumentos da corrente conservacionismo, destaca o autor o do
valor sagrado da natureza, importante tanto por conta do peso que em algumas culturas tem o
sagrado, quanto por ser um valor incomensurável diante do econômico. Conseqüentemente, o
“culto ao sagrado” há três décadas encontra-se representado no ativismo ocidental pelo
movimento biocentrista conhecido como “ecologia profunda”, cuja principal proposta política
consiste na criação e manutenção de reservas naturais ou áreas protegidas com gradações
diferentes acerca da presença humana, que pode variar da exclusão total desta até a gestão
conjunta da mesma com as populações locais. Esta última proposta contraria a tese dos
“fundamentalistas silvestres”, de exclusão de qualquer grau de habitação humana nessas
áreas, tolerando apenas visitantes
Nesta corrente conservacionista podem ser encontrados ativos biólogos e
filósofos ambientais radicados em capitais do Hemisfério Norte, e organizados em entidades
como IUCN (International Union for the Conservation of Nature), WWF (Worldwide Fund for
Nature) e NC (Nature Conservancy).
5 ALIER, J. M. O Ecologismo dos Pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto, 2007, pp. 21 – 39.
6
A segunda corrente, chamada pelo autor de “evangelho ou credo da
ecoeficiência”, preocupa-se com os efeitos do crescimento da economia na sua totalidade,
centrando-se nos impactos ambientais e nos riscos à saúde humana decorrentes das
atividades industriais, a urbanização e à agricultura moderna, frente a um projeto de
“desenvolvimento sustentável”, com “modernização ecológica” e com “boa utilização” dos
recursos, pois defende um crescimento econômico, mas não a qualquer custo. Nesse sentido,
preocupa-se menos com a perda dos atrativos da natureza ou de seus valores intrínsecos,
como na corrente anterior e mais com os impactos da produção de bens e com o manejo
sustentável dos recursos naturais.
Atualmente, seria um credo de engenheiros e economistas que não falam em
natureza, mas sim em “recursos naturais” ou “capital natural” ou “serviços ambientais”, uma
espécie de “religião da utilidade e da eficiência técnica desprovida da noção do sagrado”
(2007, p. 26-27), a dominar os debates ambientais, sociais e políticos nos Estados Unidos e
na Europa, esta última abrigando seu “templo mais importante” na década de 90, o Instituto
Wuppertal.
Independente de qual das duas correntes detenha a primazia, o fato é que ambas
sempre estiveram presentes na sociedade ocidental, convivem atualmente em
simultaneidade, e muitas vezes dormem juntas, e por trás de suas ações interesses outros
que não o ambiental, como no caso da “ecoeficiência” que tem sido descrita como o “vínculo
empresarial com o desenvolvimento sustentável, ou no caso do “conservadorismo” que, nos
Estados Unidos, por exemplo, é um movimento de forte ressonância na sociedade, no
entanto, convive com a realidade de ver muitos dos seus “parques nacionais” criados em
áreas de onde foram expulsos e mesmo eliminados muitos povos nativos.
Segundo LOUREIRO, BARBOSA e ZBOROWSKI (2009), tanto uma corrente
quanto a outra:
“... são correntes legitimadas pela ideologia
dominante, ou seja, funcionam segundo a lógica
do mercado ou sem questioná-la, naturalizando
as relações sociais vigentes, não existindo,
portanto, preocupação em alterar a estrutura do
sistema político-econômico hegemônico. Até
mesmo por isso, são aceitos sem dificuldade pela
7
opinião pública e reproduzidos largamente pelos
meios de comunicação de massa, dado que
reforçam o senso comum do que é mais indicado
para os problemas e as ameaças ao ambiente
natural.”6
Frente à essa realidade, Alier contrapõem uma terceira corrente a desafiá-las: o
“ecologismo dos pobres”, “ecologismo popular” ou “movimento de justiça ambiental”, que
expõe abertamente os impactos ao meio ambiente causados pelo crescimento econômico,
com atenção especial para o deslocamento geográfico das fontes de recursos e das áreas de
descarte dos resíduos.
Assim, o autor apresenta o eixo principal desta terceira corrente, já posicionando-
a em lado oposto à corrente conservacionista, ao afirmar que, ainda que eventualmente,
tendo em vista situações em que alguns grupos ameaçados apelam para o direito territorial
dos povos indígenas e mesmo para a sacralidade da natureza como forma de defender e
assegurar seu sustento, a mesma possa aceitar e defender esse argumento, no entanto, sua
prioridade não é uma reverência sagrada à natureza, mas sim um interesse material pelo
meio ambiente, enquanto condição si ne qua non de subsistência. Da mesma forma, sua
prioridade não é a preservação das demais espécies por conta dos direitos destas ou por
preocupação com as “futuras gerações de humanos, mas, sim, pelos humanos pobres de
hoje”. Sua ética, portanto, é outra, é aquela que “nasce da demanda por justiça social
contemporânea entre os humanos”7
Essa terceira corrente assinala a importância dos grupos indígenas e
camponeses que, co-evoluindo sustentavelmente com a natureza, asseguram a conservação
da biodiversidade, e denuncia a expropriação e monopolização dos conhecimentos dessas
populações tradicionais no âmbito do uso dos recursos naturais – conhecimentos sobre
sementes crioulas, praguicidas e ervas medicinais, para exploração comercial dos produtos
deles derivados e sem o reconhecimento que lhes é devido. É a famosa “biopirataria”.
Esta corrente não foi identificada até os anos '80 porque os seus atores não
utilizavam uma linguagem ambiental. A sua origem e crescimento a nível mundial se deve aos
6 LOUREIRO, C. F.; BARBOSA, G. L. et ZBOROWSKI, M. B. Os vários “ecologismos dos pobres” e as relações de dominação no campo ambiental. In: LOUREIRO, C. F., LAYRARGUES, P. P. et CASTRO, R. S. de. Repensar a Educação Ambiental: um olhar crítico. São Paulo: Cortez, 2009, p. 84.7 ALIER, opus sup. cit., p. 34.
8
conflitos ambientais distributivos, causados, em diferentes níveis, pelo crescimento econômico
e a desigualdade social, e os seus ativistas são as populações privadas do acesso aos
recursos e serviços ambientais, sofrendo muito mais contaminação, e entregues à própria
sorte diante do ritmo acelerado de destruição das condições ecológicas necessárias a uma
vida digna. Portanto, nos conflitos ecológicos distributivos, as pessoas pobres, em muitas
ocasiões, adotam de fato uma posição de defesa ambiental, ainda que não se reconheçam
como ecologistas.
Nesse conflito entre economia e meio ambiente, as novas tecnologias ainda não
deram mostras de que são uma solução para o mesmo. Pelo contrário, se tomarmos em
conta o caso das sementes transgênicas, o que temos é mais um problema e não uma
solução. Enquanto isso, o movimento pela justiça social sai em campo em busca de soluções
alternativas, fornecendo exemplos de uma ciência participativa, como no “Terceiro Mundo”,
quando combinam-se ciência formal e informal, numa concepção de “ciência com pessoas”,
saindo em defesa da agroecologia tradicional de grupos camponeses, quilombolas e
indígenas, saberes a serem aprendidos em uma relação dialógica.
Já o movimento pela “justiça ambiental”, surgiu nos Estados Unidos, no início dos
anos 80, a partir da luta do movimento negro, que começou a denunciar que os depósitos de
lixos tóxicos e de indústrias poluentes estavam sendo descartados nas áreas habitadas pela
população negra. Ao denunciar que a população negra estava sendo vítima de um racismo
ambiental, o movimento deu visibilidade à relação entre degradação ambiental e injustiça
social.8
Para Martínez Alier, a noção rural terceiro-mundista do ecologismo dos pobres e a
noção urbana de justiça social estadunidense convergem, podendo ser entendidos como
integrantes de uma só corrente, embora, enquanto o movimento pela justiça ambiental estaria
lutando em favor dos grupos minoritários e contra o racismo ambiental em seu país, o
ecologismo dos pobres está preocupado com a maioria da humanidade, que incluiria:
“...aqueles que dispõem de pouco espaço
ambiental; que têm gerenciado sistemas agrícolas
e agro-florestais sustentáveis; que realizam um
aproveitamento prudente dos depósitos
8 REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL. História. Disponível no site da Rede: http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=490. Acesso em 05/09/2011.
9
temporários e sumidouros de carbono; cuja
subsistência está ameaçada por minas, poços de
petróleo, barragens, desflorestamento e
plantations florestais para alimentar o crescente
uso de energia e matérias-primas dentro ou fora
de seus próprios países.” (ALIER, 2007, p.34).
Em seguida, reconhece que o que se considera maioria ou minoria depende do
contexto, e no caso da justiça ambiental dos negros dos EUA, as suas chamadas “minorias”
representam cerca de 1/3 da população total do país, o que não é pouco considerando-se o
tamanho e o grau de povoamento do país. Também reconhece sua importância potencial,
desde que saia do seu local de ação e se disponha a conversar com outros movimentos de
outros países, e não necessariamente com um recorte racial.
AS MULHERES E AS INJUSTIÇAS SOCIO-AMBIENTAIS
10
Entrando pela leitura do capítulo “As Relações entre a Ecologia Política e a
Economia Ecológica”9, nos deparamos com o reconhecimento de forma genérica, por parte do
autor, da importância da ‘dimensão de gênero’ na análise dos conflitos ecológicos e a
participação das mulheres nos movimentos sociais locais, principalmente, devido a seu papel
“(socialmente construído)” de ‘cuidadora’ familiar, já que, na maior parte das vezes detém a
menor parcela da propriedade privada, ainda que em diversos contextos, é ela quem domina
o conhecimento tradicional agrícola e medicinal10.
Relembra, por fim, a invisibilidade e conseqüente desvalorização econômica do
trabalho doméstico não remunerado, e a estreita relação entre a liberdade das mulheres e o
menor crescimento populacional e, conseqüentemente, a menor pressão ambiental, “velho
argumento que hoje em dia é mais relevante do que nunca.”11
Neste último caso, abre-se um parêntese na proposta inicial de analisar aqui as
três correntes do ecologismo propostas pelo autor, na perspectiva das mulheres, para chamar
a atenção para o quanto pode ser perigoso misturar alhos com bugalhos. Uma coisa é a
defesa do princípio da liberdade das mulheres decidirem sobre seu próprio corpo. Por
exemplo, decidirem quantos, quando e como ter filhos. Outra coisa é pensar o controle da
natalidade como meio para reduzir o crescimento populacional e, por tabela, a “pressão
ambiental”, pois neste caso, fica-se a um passo de ratificar o mesmo “velho argumento” que
durante anos prevaleceu neste país e em outros tantos do ‘Terceiro Mundo’, de que o
crescimento populacional – leia-se, aqui, a ‘quantidade exagerada’ de filhos que as mulheres
de mais baixa renda têm – era o responsável pela pobreza e pela miséria extrema e, por isso,
havia que se esterilizar as mulheres pobres. Sob essa justificativa, jogou-se sobre os ombros
da mulher pobre a responsabilidade por uma situação da qual, na verdade, ela era a principal
vítima - exatamente como acontece agora, com a degradação ambiental -, milhares delas
sendo esterilizadas nos hospitais públicos, principalmente na Região Nordeste, muitas delas
sem nem saber.
Aliás, já na RIO-92, quando as taxas de fertilidade no Brasil já estavam em
declínio e, no entanto, a pobreza continuava extensa, as mulheres receberam apoio na tese
que rejeita a associação linear entre a pobreza e o aumento da população.12 Como bem
colocam GARCIA e ABRAMOVAY:9 ALIER, J. M. O Ecologismo dos Pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto, 2007, pp. 333-357.10 Opus sup. cit., p. 340.11 Idem.
11
Segundo representantes das ONGs WEDO13 e
REDEH14, a principal causa da degradação
ambiental são os poluentes industriais e
militares, dejetos tóxicos e sistemas econômicos
que exploram e prejudicam a natureza e os
povos. Sentimo-nos insultadas com a insinuação
de que as taxas de fertilidade feminina
(eufemisticamente chamadas pressões
populacionais) são responsáveis pelo fenômeno
mencionado (GARCIA e ABRAMOVAY, 2005,
p.33).
Portanto, a “liberdade das mulheres” passa, principalmente, pela luta por seus
direitos reprodutivos, que diz respeito, dentre outros, à garantia, pelo Estado, do acesso
gratuito aos meios necessários para que elas possam ter a ‘liberdade de escolha’. Isso inclui
não apenas o aceso gratuito aos métodos contraceptivos, mas, também, ao aborto, no caso
de uma gravidez indesejada. O aborto é um tema tabu para os ecologistas de um modo geral,
e para as ecofeministas, e ecologistas das correntes conservacionista e da ecoeficiência, em
particular.
A abordagem da corrente conservacionista é expressa através de um discurso
puramente biologizante, que não considera a relação que homens e mulheres, e suas
distintas formas de organização, estabelecem com seu entorno, ou seja, as relações que,
enquanto seres humanos, estabelecem entre si e com a natureza. Também não leva em
conta que, historicamente, persiste a perspectiva de dominação da natureza por parte do
super-homem dos quadrinhos de hoje, como do todo poderoso herói mítico da antiguidade
clássica, que chega e domina a natureza, domina populações em geral e escolhe a mulher
que quer: “Toda a construção do ideário patriarcal sobre o homem está sustentado nisso: o
homem forte e dominador” (ÁVILA, 2010, p.27)15.
12 CASTRO, M. G. e ABRAMOVAY, M. Gênero e Meio Ambiente. 2ª ed. rev. e amp. São Paulo: Cortez, Brasília: UNESCO, 2005, p. 36.13 WEDO – Women , Enviroment and Development Organization.14 REDEH – Rede de Desenvolvimento Humano.15 ÁVILA, M. B. “Mulher e Natureza”: dos sentidos da dominação no capitalismo e no sistema patriarcal. In: ARANTES, R. e GUEDES, V. (Orgs.). Mulheres, Trabalho e Justiça Socioambiental. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2010, p. 26.
12
Nessa perspectiva, como outros/as autores/as aqui citados/as16, argumenta Maria
Betânia Ávila que o enfoque conservacionista repercute com facilidade na sociedade em
geral, governos e organizações financeiras internacionais, por não ir ao fundo do problema
ambiental, limitando-se a apontar soluções alternativas, sem considerar que, em muitos
casos, esse é um sintoma de uma problemática muito mais ampla, e que, efetivamente não se
aborda, porque engloba problemas econômicos, sociais, políticos e culturais17.
Como exemplo, no que diz respeito especificamente às mulheres, é sintomática a
declaração da Especialista Ambiental Sênior em Desenvolvimento Sustentável do Banco
Mundial, Adriana Moreira, para o site Rio + 10:
O Movimento da Ecologia Profunda, por
exemplo, relaciona a figura matriarcal com o
planeta Terra. Trata-se de uma filosofia baseada
nas relações sagradas entre os seres vivos e a
Terra, que busca viabilizar o futuro do planeta e
a realização pessoal. (MOREIRA, 2002, apud
ARACI, 2005, p. 13)18
Essa visão foi amplamente difundida entre o movimento de mulheres (não
necessariamente feministas, mas também feministas), que passou a incorporar na sua
agenda a pauta da segurança planetária, nos seus diversos aspectos: ambientais,
econômicos, sociais etc, levantando um debate bastante freqüente até hoje quando o assunto
é feminismo e ecologia, que como argumenta Maria Betânia Ávila, “apesar de se pretender
como de valorização das mulheres, tem como origem a mesma concepção essencialista da
relação feminino/mulher, na qual as mulheres são vistas como mais próximas da natureza”.19
E ela questiona em seguida: “Ora, os homens e as mulheres são parte da
natureza, então por que fazer essa nova qualificação de proximidade que recria e reproduz
elementos estruturantes das desigualdades de gênero?”20 Para esta feminista, ambos, 16 LOUREIRO, C. F.; BARBOSA, G. L. et ZBOROWSKI, M. B. Os vários “ecologismos dos pobres” e as relações de dominação no campo ambiental. In: LOUREIRO, C. F., LAYRARGUES, P. P. et CASTRO, R. S. de. Repensar a Educação Ambiental: um olhar crítico. São Paulo: Cortez, 2009, p. 84.17 ÁVILA, M. B. Opus sup. cit., pg. 26.18ARACI, N. Pós-fácio: Gênero e Meio Ambiente – qual a sustentabilidade possível? In: CASTRO, M. G. e ABRAMOVAY, M. Gênero e Meio Ambiente. 2ª ed. rev. e amp. São Paulo: Cortez, Brasília: UNESCO, 2005, pp. 11-23.19 ÁVILA, M. B. Opus supra cit, p. 29.20 ÁVILA, M. B. Opus supra cit, p. 29.
13
homens e mulheres têm de estar próximos/as e integrados/as à natureza, na construção de
uma outra vida em comum, o que não significa, no entanto, voltar à perspectiva biologizante,
cuja dinâmica se organiza na base do, os homens destroem a natureza e as mulheres a
refazem.”Isso interessa à reprodução desse sistema [capitalista e patriarcal], ao seu objetivo
de mercantilização da vida e que leva a formas instrumentais de utilização do trabalho das
mulheres”.21
Da mesma forma que a corrente conservacionista, a corrente do “credo da
ecoeficiência” inaugura a ‘era do desenvolvimento sustentável’, na RIO-92, sem nenhum
questionamento sobre o sistema político-econômico hegemônico por trás das questões
ambientais. Em conseqüência, o conceito de sustentabilidade, ainda que disseminado e, até
certo ponto, apropriado pela sociedade, com forte colaboração dos meios de comunicação de
massa, acaba passando pelo crivo crítico dos movimentos e organizações sociais
politicamente ‘mais à esquerda’, ganhando novo significado, mais aproximado à idéia da
justiça ambiental, posto que lhe confere a devida e necessária dimensão humana, e o que
esta implica em termos de conquista e acesso aos direitos.
Assim, argumenta Juliana Malerba, da Rede Brasileira de Justiça Ambiental:
A sustentabilidade é uma construção social e,
assim, é objeto de disputa política. Sob a ótica
da justiça ambiental, a sustentabilidade só pode
ser garantida por meio da participação efetiva
nos processos decisórios sobre o uso e acesso
aos recursos naturais. Esse princípio aponta
uma estreita relação entre sustentabilidade e
direitos, e estabelece que a superação das
desigualdades é condição para a garantia de
sustentabilidade. Por isso, um ecologismo
engajado tem de ser um ecologismo que se
comprometa com o combate a todas as formas
de discriminação, que incorpore as lutas
21 Idem.
14
antirracista, antissexista e contra o patriarcado.
(MALERBA, 2010, p. 17)22.
Nessa perspectiva de um desenvolvimento sustentável que só se concretiza,
efetivamente, com a justiça ambiental, pensar a problemática das mulheres é concordar com
Carmem Silva (2010, p. 61) que “Talvez o melhor fosse nos perguntarmos em que as
situações de injustiça ambiental agravam a já injusta situação das mulheres.”23
Argumentando que, diante da crise ambiental que ameaça a própria sobrevivência
humana, no esforço dos movimentos sociais de criação de “um outro mundo possível”, torna-
se urgente olhar essa crise a partir dos vários sujeitos políticos que estão construindo
alternativas de transformação social, para que estas favoreçam mudanças nas relações entre
os seres humanos e entre estes e a natureza, sem, no entanto, abrir mão de transformar as
relações sociais estruturantes das desigualdades entre as pessoas.24
Seguindo essa mesma linha de argumentação, e a partir de um levantamento que
realizaram sobre “escolas de estudos e ativismos feministas no meio ambiente”, Dianne
Rocheleau, Barbara Thomas-Slayter e Esther Wangari, após identificar, nomear e caracterizar
cinco escolas - a ecofeminista; a ambientalista feminista; a feminista socialista; a pós-
estruturalista feminista; e a ambientalista - a partir do enfoque de gênero e meio ambiente
dessas escolas, essas autoras propõem um novo marco conceitual que denominam “ecologia
política feminista”, cuja principal preocupação está centrada na distribuição desigual do
acesso aos recursos e do controle dos mesmos, fatores que dependem tanto da dimensão de
classe como da de etnia.25
Para essas autoras, a ecologia política feminista examina a interseção gênero-
meio ambiente através das lentes de três temas polêmicos: 1) a ciência estruturada com base
no gênero (domínio dos homens); 2) os direitos estruturados com base no gênero (tanto
referente ao direito de propriedade, quanto ao processo de manejo dos recursos; 3) as
22 MALERBA, J. A Luta por Justiça Socioambiental na Agenda Feminista: visibilizando alternativas e fortalecendo resistência. In: ARANTES, R. e GUEDES, V. (Orgs.). Mulheres, Trabalho e Justiça Socioambiental. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2010, p. 17.23 SILVA, C. Mulheres e Justiça Socioambiental: uma reflexão a partir do trabalho. . In: ARANTES, R. e GUEDES, V. (Orgs.). Mulheres, Trabalho e Justiça Socioambiental. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2010, p. 61. 24 Idem.25 LISBOA, T. K. e LUSA, M. G. Desenvolvimento Sustentável com Perspectiva de Gênero – Brasil, México e Cuba: mulheres protagonistas no meio rural. In: Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3): 871-887, setembro-dezembro/2010, p. 874.
15
organizações e atividades políticas que também dependem do gênero (a maioria das
posições de poder nas mãos dos homens)26.
Para Marcela Lagarde (1996) “ao excluir pelo menos metade da população do
acesso aos bens e aos espaços, o atual modelo de desenvolvimento atribui prioridade aos
interesses masculinos, gerando desigualdade e pobreza.”27 Daí sua defesa de uma nova
concepção de desenvolvimento, produto de uma visão feminista, que rompa com todas as
concepções anteriores, bem como a emergência no campo teórico-político desse novo
paradigma no qual se inscreve o feminismo. Não seria, somente, um novo enfoque, mas uma
nova concepção de mundo, na qual o desenvolvimento deveria: a) incluir e considerar
prioridade as necessidades das mulheres; b) modificar as necessidades humanas dos
homens, já que muitas delas “concretizam formas e mecanismos de opressão sobre as
mulheres”; c) modificar as necessidades comunitárias, nacionais e mundiais no sentido de um
“caminho de desenvolvimento mais humano, ou seja, centrado na escala humana”.28
Para se criar um novo modelo de desenvolvimento que não priorize os interesses
masculinos, e gere desigualdade e pobreza, no entanto, é necessário colocar em cheque –
mate a lógica do sistema capitalista e patriarcal e a construção das hierarquias humanas,
vigentes na sociedade androcêntrica, elitista, branca, heterossexual e adultocêntrica que a
mantém e através dela se perpetua. A lógica que perverteu o próprio conceito de
preservação, para servir aos interesses da acumulação capitalista e alimentar a lógica
produtivista e consumista.
Daí a necessidade de se estar constantemente buscando pontos de interseção
entre as várias lutas dentro do movimento social mais amplo. Como afirma Betânia Ávila:
Creio que tanto o feminismo como os
movimentos ecológicos têm como perspectiva a
justiça socioambiental e podem, de uma maneira
mais profunda, questionar a lógica que está aí,
porque podem questionar o pensamento crítico
que não colocou em questão o produtivismo, a
dominação das mulheres, da natureza e dos
povos originários. Os movimentos indígenas
26 LISBOA e LUSA. Opus sup. cit. p. 875.27 Idem, p. 873.28 Idem.
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estão entrando no âmago, na coisa mais
profunda de uma outra perspectiva de
sociabilidade, de socialização ou das relações
humanas. Os movimentos feministas e das
mulheres negras entram no âmago dos
imbricamentos do sistema de dominação e
exploração capitalista/patriarcal/racista. É da
confluência das lutas e da capacidade de
construirmos pensamento crítico por meio do
diálogo que, em um movimento dialético,
podemos avançar na construção de um outro
mundo possível. (ÁVILA, 2010, p. 37)29
A boa notícia é que com o crescimento da participação e envolvimento das
mulheres – camponesas, pescadoras, marisqueiras, catadoras de material reciclável,
raspadeiras de mandioca, quebradeiras de coco, ribeirinhas, indígenas, quilombolas, de
comunidades rurais e urbanas atingidas por desastres causados por ação humana ou por
grandes projetos ‘desenvolvimentistas’ – nas lutas ambientais, paulatinamente, elas próprias
estão reconceitualizando e redefinindo o privado, o público, o político, o meio ambiente, a
sustentabilidade, o que é justo e eqüitativo, e assim estão contribuindo na construção de um
projeto de desenvolvimento no qual, mais que tema transversal, elas são sujeitos
protagonistas da transformação.
29 ÁVILA, M. B. Opus sup. cit., pg. 37.