as leis da imitação - gabriel de tarde

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GABRIEL DE TARDE

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Texto Clássico de Gabriel Tarde sobre a imitação.

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GABRIEL DE TARDE

Consultor científico

Paulo Ferreira da Cunha

Título original

«LES LOIS DE L 'IM ITATIO N»

Tradução de

Carlos Fernandes Maia com^ colaboração de Maria Manuela Maia

Reservados os direitos desta edição por RÉS-Editora, Lda.Pr. Marquês de Pombal, 78 4000 PORTO-PORTUGAL

PREFÁCIO

da segunda edição

Desde a primeira edição deste livro, já publiquei a sua continuação e o complemento, com título Lógica Social.

Por isso, creio ter já respondido implicitamente a certas objecções que a leitura - de Leis da Imitação pudesse te r . feito. nascer..,Não é, contudo, inútil dar a este respeito algumas breves explicações.

Censuraram-me aqui e acolá por "ter muitas vezes chamado imitação a factos aos quais este nome não con­vém de forma alguma". Reparo que me admira por vir da pena de um filósofo. Com efeito ,. sempre que o filósofo tem necessidade de um termo para exprimir uma genera- „ lização nova só lhe resta.a escolha entre duas saídas: ouo neologismo, se nãc pode fazer de outro modo, ou, o que vale incontestavelmente muito mais, a extensão de um antigo vocábulo. Toda a questão está em saber se eu estendi abusivamente .— não digo sob o ponto de vista das definições de dicionário, mas a partir de uma noção mais profunda das coisas _ o significado, da palavra imi­tação.

Ora, eu sei perfeitamente que não está conforme ao uso corrente dizer.de um homem, quando ele sem dár conta e involuntariamente reflecte uma opinião de outro ou se deixa sujestionar por uma acçãó de outro, que ele imita essa ideia ou esse actó. Mas, se é consciente èdeliberadamente que ele recebe o seu. vizinho uma forma de pensar ou de agir, concorda-se que o emprego do

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Comte aperfeiçoado, condensado, clarificado, pensou du­rante toda a sua vida no homem e que nem mesmo depois da sua morte é muito conhecido, como ousaria eu quei­xar-me por não ter tido mais sucesso?

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CAPÍTULO I

A repetição universal

I '.íH r í

Há lugar para uma ciência ou somente_para uma ■ história e ainda mais para uma filosofia dos factos so­ciais? A questão é sempre pendente, ainda que, para fa ­lar verdade, estes factos, se o.s olharmos de perto e sob um certo ângulo, sejam susceptíveis, tal como os outros,

--de se resolverem em séries de pequenos factas„.Jajrmlares e em fórmulas chamadas leis que resumem essas séries. Porquê, então, a ciência social ainda está a nascer ou a acabar de nascer no meio de todas as suas irmãs adultas e vigorosas? A principal razão, a meu ver, é que se dei­xou . aqui a presa pela sombra, |as realidades. pelas._pal.a-. vrasl- Ninguém acreditou poder dar à sociologia uma feição cientrfica._.seDãO-.,d.ando-jhe..um ar biológico, ou, melhor ainda, urn_ar macâniçn. Éra procurar esclarecer o conhe­

cido pelo desconhecido, era transformar um sistema so­lar em nebulosa não resolúvel para melhor o compreender.Em matéria -social tem-se à mão, por um.~esps.cial. privi.- lêgio, as causas verdadeiras, os actos individuais de .que õs factos são feitos, o que está absolutamente „fora—dos nossos, oÍhos-ern_qualquer_ouir.a .roa.téria..iEstá-sè, portan-j. \ \ j

tõ, dispensado, parece, de ter de recorrer, para a expli-l ^ , cação dos fenómenos da sociedade, a estas causas, ditas: gerais, que os 'físicos e os naturalistas são obrigados a criar com o nome de forças, de energias, de condições ^ de existência e de outros paliativos verbais da sua igno-,. rância sobre o fundo ni'tido das coisas.''}

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AS LEIS DA IMITAÇÃO

Mas considerar os actos humanos como os únicos factores da história...! Isso é muito simples. Impôs-se a obrigação de forjar outras causas sobre o tipo destas ficções úteis que têm, por outro lado, um curso predeterminado; e felicitamo-nos por ter assim dado por vezes aos factos humanos, vistos de muito alto, perdidos de vista, por assim dizer, uma cor completamente impessoal. Acautelemo-nos deste idealismo vago; acautelemo-nos também do individua­lismo banal que consiste em explicar as transformações so­ciais pelo capricho de alguns grandes homens. Digamos an­tes de mais que elas se explicam pela aparição, acidental em certa medida, quanto ao seu lugar e ao seu momento, de algumas grandes ideias, ou antes, de um número conside­rável de ideias pequenas ou grandes, fáceis ou difíceis, o mais das vezes imperceptíveis à nascença, raramente glo­riosas, em geral anónimas, mas ideias sempre novas, e que em razão desta novidade eu me permitirei de bapti­zar colectivamente de invenções ou descobertas. Por estes dois termos entendo uma inovação qualquer ou um aperfei­çoamento, por mais ténue que seja, acrescentado a uma inovação anterior, em qualquer ordem de fenómenos so­ciais (linguagem, religião, política, direito, indústria, arte).

I Nio morilento em que esta novidade, pequena ou grande, é concebida ou resolvida por um homem, nada mudou apa­rentemente no corpo social, como nada mudou no aspecto físico de um organismo em que üm mfcróbío, quer nefas­to, quer benéfico, entroujr e as mutações graduais que acarreta a introdução deste elemento novo no corpo so­cial parecem dar continuação, sem descontinuidade visí­vel, às mutações anteriores na corrente das quais elas se inserem. Daí uma enganadora ilusão que leva os filó-, sofos historiadores a afirmar a continuidade real e funda­mental. das metamorfoses históricas.' As suas verdadeiras càusas, contudo, resolvem-se numa série de ideias muito numerosas na verdade, mas distintas e descontínuas, ain­da qüe unidas entre èlas pelos actos de imitação, muito- màis numerosos ainda, que as tomam por modelos./

É preciso partir daqui, isto é, de iniciativas reno­vadoras, que, trazendo ao mundo ao mesmo tempo necessi­

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A REPETIÇÃO UNIVERSAL

dades novas e novas satisfações,fnele se propagam em se­guida ou tendem a propagar-se por imitação forçada ou espontânea, electiva ou inconsciente, mais ou menos ra­pidamente, mas em passo regul.ajL^A maneira duma onda luminosa ou de umaffãmTlia de formiga^.} A regularidade dê" que fà[õ~f\'âõ~~ê~ cTeTõ rm a nenhuma evidente nos factos sociais, mas descobrir-se-a se os decompusermos em tan­tos elementos quanto neles haja, até ao mais simples dentre eles, às invenções distintas combinadas, aos clarões de génios acumulados e tornados luzes banais: análise, é verdade, bem difícil. Socialmente, não passa tudo de in­venções e imitações, e estas são os rios de que aquelas são as montanhas; nada menos subtil, de certeza absoluta, que esta visão; mas, seguindo-a ousadamente, sem reser­va, desdobrando-a desde o mais pequeno detalhe até ao mais completo conjunto dos factos, talvez se observe co­mo ela é apta a pôr em rei evo. todo o pitoresco e, por sua vez, toda a simplicidade da história, para revelar pers­pectivas ou tão bizarras como uma paisagem de rochedos ou tão regulares como um planalto, l isto é_ ainda idealis­mo, se se quiser mas idealismo,.que..:consiste em expjjj.ar. a j?istória_pejas idejas dos seus autores e não__pelas do filsto.riadori .Antes de mais, ao considerar sob este ângulo a ciência social, vê-se a sociologia humana atrelar-se às sociolo- gias animais (por assim dizer) como a espécie ao género: espécie singular e infinitamente superior às outras, quer dizer, fraterna. No seu belo livro sobre as Sociedades anim ais, que é muito anterior à primeira edição da 'pres­sente obra, M. Espinas diz expressamente que os traba­lhos das formigas se explicam muitíssimo bem pelo prin­cípio "da iniciativa individual seguida da im itação". Esta iniciativa é sempre uma inovação, uma invenção igual às nossas em arrojo de espírito. Para ter a ideia de cons­truir um arco, um túnel aqui ou acolá, antes aqui do que acolá, uma formiga deve ser dotada de uma inclina­ção inovadora que iguala ou ultrapassa a dos nossos en­genheiros construtores de ístmos ou de montanhas. Entre parêntesis, segue-se daqui que a imitação destas iniciáti-

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AS LEIS DA IMITAÇÃO

vas tão novas pela massa das formigas desmente de uma maneira evidente o pretenso misoneismo dos animais (1 ). Muitas vezes M. Espinas, nestas observações sobre..ps__nos- sos irmãos inferiores, ficõu impressionado com o papel importante que neles desempenha a iniciativa individual. Cada manada de bois selvagens tem os seus leaders, as suas cabeças influentes. Os aperfeiçoamentos do instinto dos pássaros, segundo o mesmo autor, explicam-se por "uma invenção parcial, transmitida em seguida de geração em geração por ensinamento directo". Se se pensa que as modificações do instinto se ligam provavelmente ao mesmo principio que as modificações da espécie e da génese de novas espécies, talvez se seja tentado a pergun­tar se o princípio da invenção imitada, ou de qualquer outra coisa análoga fisiologicamente, não seria a expli­cação mais clara possível para o problema sempre pen­dente das origens específicas. Mas deixemos esta questão e limitemo-nos a constatar que, animais ou humanas, as sociedades se deixam explicar por esta maneira de ver.,f Em segundo lugar, e é a tese especial do presente xapítulo, sob este ponto de vista nota-se que o objecto da ciência social apresenta uma analogia considerável com outros domínios da ciência geraJ e se reincorpora tam­bém, por assim dizer, no resto do universo no seio do qual

ífazia efeito de um corpo estranho.• Em qualquer domtnlõ-*-ée estudos, as constatações

puras e simples excedem prodigiosamente as explicações. E por tudo o qué é simplesmente constatado entende-se os

(1) Nas espécies superiores de formigas, segundo M. Espinas, "0 IN­DIVÍDUO DESENVOLVE UMA INICIATIVA ESPANTOSA". Como iniciam os tra­balhos, as migrações de formigueiros? E por um impulso comum, ins­tintivo, espontâneo, partido de todos os associados ao mesmo tempo, sob a pressão das circunstâncias exteriores suportadas ao mesmo tempo por todas as formigas? Não; um indivíduo isola-se, mete-se ao trabalho era primeiro, e bate nos seus vizinhos com as sua antenas para os advertir que têm de lhe dar a sua mão forte. 0 contágio imitativo faz o resto.

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primeiros dados, acidentais e bizarros, premissas e origens donde deriva tudo o que é explicado. Há ou houve certas nebulosas, certos globos celestes, de certa massa, de certo volume, a certa distância; há certas substâncias químicas; há certos tipos de vibrações etéreas, chamadas luz, electricidade, magnetismo; há certos tipos orgânicos principais, e, antes de mais, há animais, há plantas; há certas cadeias de montanhas, chamadas os Alpes ou os Andes, -etc. Quando nos ensinam estes factos capitais donde se deduz tudo o rasto, o astrónomo, o qufmico, o físico, o naturalista, o geógrafo têm papel de cien­tistas propriamente ditos? Não, fazem uma simples cons­tatação e não diferem em nada do cronista que relata a expedição de Alexandre ou a descoberta da imprensa. Se há uma diferença, vê-lo-emos, é antes de mais do his­toriador. Que sabemos nós, portanto, no’ sentido erudito da palavra? Alguém responderá., sem dúvida: as causas e os fins; e quando nós conseguimos ver que dois factos diferentes são produzidos um pejo outro ou colaboram

^para o mesm« #lm, chamamos a isso tê-los explicado. [^Entretanto, suponhamos um mundo em que nada se asse-

í melha e nada se repete, hipótese estranha, mas inteligf- \ vel em rigor; um mundo todo de imprevisto e de novidade,! no qual, sem memória de qualquer espécie, a imaginação

J criadora fizesse carreira, em que os movimentos dos as- \ tros não tenham ciclo, as agitações do éter não tenhamI ritmo vibratório, as gerações sucessivas não tenham ca-i racteres comuns nemi tipo hereditário. Nada impede, ape- | sar disso, que cada aparição nesta fantasmagoria seja

produzida e determinada por uma outra, que ela trabalhe ; mesmo para conduzir a uma outra. Poderia a í haver ainda

fins e causas. Mas haveria lugar para uma ciência qual- quer nesse mundo? Não; eporquê?...Porque, uma vez mgjs,. não haveria á f nem semelharicas^nám. repeiíçqesj

Aqui está o essencial. Conhecer as causas, isso per­mite prever, por vezes; mas conhecer as semelhanças, isso permite numerar e medir sempre, e a ciência, antes de mais, vive de número e de medida. De resto, essencial não, significa suficiente. Uma vez encontrado o seu campo dé

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AS LEIS DA IMITAÇÃO

semelhanças e de repetições próprias, uma. ciência nova deve compará-las entre si e observar o laço de solidarie­dade que une as suas variações concomitantes. Mas, para dizer a verdade, o espírito não compreende bem, não _ad- mite a título definitivo o laço entre causa e efeito, a não ser na medida em que o efeito se assemelha à causa, re­pete a causa, quando, por exemplo, uma ondulação sonora gera outra ondulação sonora, ou uma célula outra célula semelhante. Nada de mais misterioso, dir-se-á, do que essas reproduções. É verdade; mas, aceite este mistério, nada de mais claro do que tais sér.ies. E cada vez que pro­duzir não significa reproduzir-se, tudo se torna escuridão para nós (1).

Quando as coisas semelhantes são as partes de um todo ou julgadas tais, como as moléculas de um mesmo volume de hidrogénio, ou as células lenhosas duma mesma árvore, ou os soldados de um mesmo regimento, a seme­lhança recebe o nome de quantidade e não simplesmente de grupo. Quando, dito de outra maneira, as coisa que se repetem permanecem unidas umas às outras ao multipli­carem-se, como as vibrações calóricas ou eléctricas, que, ao acumularem-se no interior de um corpo, o aquecem ou electrizam cada vez mais, ou como as formações de células similares que se multiplicam no corpo duma crian­ça em vias de crescimento, ou como as adesões a uma mesma religião pela conversão dos infiéis, a repetição, então chama-se crescimento, e não simplesmente série. Em tudo isto não vejo nada que singularize o objecto da ciência social.

(1) "0 conhecimento científico não deve partir necessariamente das mais pequenas coisas hipotéticas e desconhecidas. Ele encontra o seu começo em qualquer lado onde a matéria formou unidades de ordem semelhante, que podem comparar-se entre elas e medirem-se umas pe­las outras; emqualquer lado onde estas unidades se reunem em uni- dadès compostas de ordem mais elevada, fornecendo elas mesmas a medida de comparação destas últimas". (Von Naegeli, DISCURSO NO CONGRESSO DOS NATURALISTAS. ALEMÃES, em 1877).

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Interiores ou exteriores, aliás, quantidades ou gru­pos, crescimentos ou séries, as semelhanças, as repetições fenomenais são os temas necessários das diferenças e das variações universais, as tramas destes bordados, as pautas desta música. O mundo fantasmagórico que eu supunha há pouco seria, no fundo, o menos ricamente diferenciado dos mundos possíveis. Como nas nossas sociedades o trabalho, acumulação de acções decalcadas umas sobre as outras, não é mais renovador que as revoluções! E que há de mais monótono do que a vida emancipada do selvagem compa­rada com a vida subjugada do homem civilizado? Sem a hereditariedade haveria um progresso orgânico possível? Sem a periodicidade dos movimentos celestes, sem o ritmo ondulatório dos movimentos terrestres, a exuberante varie­dade das idades geológicas e das criações vivas teria des­pontado?

As repetições existem pelas variações. Se se admi­tisse o contrário, a necessidade da'morte — problema con­siderado quase insolúvel por M. Delboeuf no seu livro so­bre a matéria bruta e a matéria viva — não se compreen­deria; pois porque é que o pião da vida, uma vez lançado, não rodaria eternamente? Mas se as repetições só têm uma razão de existir, a de mostrar sob todas as suas faces uma originalidade única que procura tornar-se clara, nesta hipótese a morte deve fatalmente sobrevir com o esgota­mento das modulações expressas. Observemos de passa­gem, a este propósito, que a relação do universal com o particular, alimento de toda a controvérsia filosófica da Idade Média sobre o nominalismo e o realismo, é precisa­mente o da repetição na variação. O nominalismo é a doutrina .segundo a qual os indivíduos são as únicas rea­lidades que contam; e por indivíduos é preciso entender os seres encarados pelo seu lado diferencial. O realism o, pelo contrário, não considera como dignas de atenção e do nome de realidade, num dado indivíduo, a não ser os caracteres pelos quais ele se assemelha a outros indiví­duos e tende a reproduzir-se em outros indivíduos seme­lhantes. O interesse deste género de especulação aparece quando se pensa que o liberalismo individualista em polí/r

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tica é uma espécie particular de nominalismo, e que o socialismo é uma espécie particular de realismo.

Qualquer repetição, social, orgânica ou física, não importa, isto é, im itativa, hereditária ou vibratória (para ligarmos unicamente às formas mais impressionantes e mais típicas da Repetição universal), procede de uma ino­vação, como toda a luz procede de um fogo; e assim o normal, em toda a ordem do conhecimento, parece deri­var do acidental. Porque, assim como a propagação de uma força atractiva ou duma vibração luminosa a partir de um astro, ou a de uma raça animal a partir de umprimeiro casal, ou a de uma ideia, de uma necessidade, de um rito religioso, numa nação inteira, a partir de um cientista, de um inventor, de um missionário, são aos nos­sos olhos fenómenos naturais e regularmente ordenados, também a ordem em parte informal na qual apareceram ou se justapuseram os focos de todas estas irradiações, por exemplo, as diversas indústrias, religiões, instituições sociais, os diversos tipos orgânicos, as diversas substâncias químicas ou massas celestes, nos surpreendem sempre pe­la sua estranheza. Todas estas belas uniformidades ou estas belas séries — o hidrogénio idêntico a si mesmo nainfinita multidão dos seus átomos dispersos por todos osastros do céu, ou a expansão da luz de uma estrela haimensidade do espaço; o protoplasma idêntico a si mesmo de um extremo ao oütro da escala viva, ou a continua­ção invariável de incalculáveis gerações de espécies ma­rinhas desde os tempos biológicos; as raízes verbais das línguas indo-europeias idênticas em quase todas a huma­nidade civilizada, ou a transmissão notoriamente fiel das palavras, da língua copta dos antigos Egípcios até nós, etc. — todas estas multidões incontestáveis de coisas se­melhantes e semelhantemente ligadas, de que admiramos a coexistência ou a sucessão igualmente harmoniosas, re­lacionam-se com acidentes físicos, biológicos, sociais, cuja ligação nos confunde:

Ainda aqui a analogia prossegue entre os factos sociais e os Outros fenómenos da natureza. Se, contudo, os primeiros, considerados a partir dos historiadores e mesmo

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A REPETIÇÃO UNIVERSAL

dos sociólogos, nos dão a impressão de um caos, enquanto que os outros, encarados a partir dos físicos, dos quími­cos, dos fisiologistas, deixam a impressão de mundos mui­to bem ordenados, não há que ficar surpreendido com isso. Estes últimos cientistas só nos mostram o objecto da sua ciência pelo lado das semelhanças e das repetições que ihe são próprias, relegando para uma sombra prudente o lado das heterogeneidades e das transformações (ou trans- substanciações) correspondentes. Os historiadores e os so­ciólogos, ao invés, lançam um véu sobre a face monótona e regular dos factos sociais, sobre os factos sociais na medida em que eles se assemelham e se repetem, e não apresentam aos nossos olhos a não ser o seu aspecto aci­dentado e interessante, renovado e diversificado ao infini­to. Se se trata dos Galo-Romanos, o historiador, mesmo filósofo, nunca terá ideia, imediatamente depois da con­quista de César, de nos passear-passo a passo por toda a Gália para nos mostrar cada palavra latina, cada rito romano, cada ordem; cada manobra militar, em uso pelas legiões romanas, cada ofício, cada uso, cada serviço, cada lei, cada ideia especial, enfim e cada necessidade especial importadas de Roma, em vias de irradiar progressivamente dos Pirinéus ao Reno e de ganhar sucessivamente, após uma luta mais ou menos viva contra as antigas ideias e os antigos costumes celtas, todas as bocas, todos os bra­ços, todos os corações e todos os espíritos gauleses, co­pistas entusiastas de César e de Roma. Certamente se ele nos obrigasse a fazer uma vez esta longa caminhada, não no-la faria refazer tantas vezes quantas as palavras ou as formas gramaticais da língua romana, quantas as formalidades rituais da religião romana ou as manobras ensinadas aos legionários pelos seus oficiais de instrução, quantas as variedades de arquitectura romana, templos, basílicas, teatros, circos, aquedutos, casas de campo com o seu átrio, etc., quantos os versos de Vírgilio ou de Horácio ensinados nas escolas a milhares de alunos, quan­tas as léis da legislação romana, quantos os processos industriais e artísticos transmitidos fielmente e indefini­damente de operário a aprendiz e de mestre a aluno na

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civilizaçao romana. Contudo, e só por este preço que se pode ter uma ideia exacta da dose enorme de regulari­dade que as mais agitadas sociedades cont ê r r i ' / -'v

Depois, quando o cristianismo tiver aparecido, pp mesmo historiador terá muito cuidado, sem duvida algu­ma, em nos fazer recomeçar esta cansativa peregrinação a propósito de cada rito cristão que se propague na Gália pagã, não sem resistência, à maneira de uma onda sonora num ar já vibrante. — Em contrapartida, ensinar-nos-á que, em tal data, Júlio César conquistou a Gália, e que em tal outra data certos santos vieram pregar a doutrina cristã nesta região. Enumerar-nos-á talvez também os di­versos elementos de que se compõem a civilização romana ou a fé e a moral cristãs, introduzidas no mundo gaulês.O problema, então, pôr-se-á para ele em compreender, em apresentar com uma feição racional, lógica, científi­ca esta sobreposição bizarra do cristianismo ao romanis- mo, ou melhor, da cristianização gradual à romani.zação gradual; e â dificuldade não será menor em explicar ra- -

- cionalmente, no romanismó e no cristianismo tomados à parte, a justaposição estranha de fragmentos etruscos, gregos, orientais e outros, muito heterogéneos entre si, que constituem um, e de ideias judias, egípcias, bizanti­nas, muito p óúco coe rentes tâm bém, mesmo em cada gru­po'"distinto| qué òònstitúem o outro. É, contudo, esta ár­dua tarefa que o filósofo'da história se proporá; nãò acre­ditará poder iludi-la se quiser fazer obra de cientista,; è cansará a cabeça a pôr ordem nesta' desordem, a procurar • a lei destes acasos ’ e à razão destes encontros. Seria melhor procurar como e porquê ele sai por vezes dèstes encontros dé harmonias e em que é que estas consistem. Tentá-lo-emos mais adiante.; ' Em suma, é còmo se um botânico pensasse erri ne-

gligenciàr-túdo o'qüe diz respeito à geração dos vegetais dê umà'- mèshiá espécie ou de uma mesma variedade, e também' o sèu crescimento e a sua nutrição, espécie de geração celular ou de regeneração dos tecidos; ou ainda é còmo sé um físico desdenhasse do estudo das ondula­ções sonoras, luminosas, calóricas, e do seu modo de pro-

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A REPETIÇÃO UNIVERSAL

pagação através dos diferentes meios, eles próprios ondu­latórios. Apresenta-se-nos um persuadido de que o objec­to próprio e exclusivo da sua ciência é o encadeamento dos tipos específicos dissemelhantes, desde a primeira alga até à última orquídea, e a justificação profunda des­te encadeamento; e outro convencido de que os seus es­tudos têm por fim único procurar por que razão há pre­cisamente os sete modos de ondulação luminosa que nós conhecemos, assim como a electricidade e o magnetismo, e não outras espécies de vibração etérea? Questões inte­ressantes seguramente e que o filósofo pode agitar, mas não o cientista, porque a sua solução não parece nunca susceptível de comportar o alto grau de probabilidade exigido por este último. É claro que a primeira condição para ser anatomista ou fisiologista é o estudo dos tec i­dos, agregados de células, de fibras, de vasos semelhan­tes, ou o estudo das funções, acumulações de pequenas contracções, de pequenas enervações, de pequenas oxida­ções ou desoxidações semelhantes, enfim, e antes de tu­do, a fé na hereditariedade, esta grande obreira da vida. E não é menos claro qüe, para ser químico ou físico, an­tes de tudo é preciso examinar muitos volumes gasosos líquidos e sólidos, feitos de corpúsculos muito parecidos, ou as chamadas forças físicas que são massas prodigiosas de pequenas vibrações similares acumuladas. Tudo se res­tabelece, com efeito, ou está em vias de se restabelecer, no mundo físico, na ondulação; a í tudo se reveste cada vez mais de um carácter essencialmente ondulatório, do mesmo modo que no mundo vivo a faculdade geradora, a propriedade de transmitir hereditariamente as mais peque­nas particularidades (nascidas a maior parte das vezes, não se sabe como) está cada vez mais considerada ine­rente à mais pequena célula.

Por conseguinte, reconhecer-se-á talvez, ao ler es­te trabalho, que o ser social, na medida em que é social, é imitador por essência, e que a imitação desempenha nas sociedades um papel análogo ao da hereditariedade nos organismos ou da ondulação nos corpos brutos. Se as­sim é, dever-se-á admitir por conseguinte, que uma in­

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venção humana, pela qual um novo género de imitação é inaugurado (uma nova série aberta, por exemplo, a in­venção da pólvora de canhão (1), ou dos moinhos de ven­to, ou do telégrafo de Morse), está para a cjência social como a formulação duma nova espécie vegetal ou mineral (ou ainda, na hipótese da evolução lenta,, cada uma das modificações lentas que a introduziram) está para a bio­logia e como estará para a física o aparecimento de um novo modo de movimento vindo tomar lugar ao lado da electricidade, da luz, etc., ou como está para a quí­mica a formação de um novo corpo. Ao filósofo historia­dor que se esforça por encontrar uma lei de invenções científicas, industriais, artísticas, políticas sucessivamente aparecidas ou bizarramente agrupadas, seria preciso com­parar, para fazer uma justa comparação, não o fisiolo- gista ou o físico tal como nós o conhecemos (Claude Bernard ou Tyndall especialmente) mas um filósofo da na­tureza como Schelling o foi, tal como Haeckel parecia sê-lo nas suas horas de embriaguês imaginativa..

Apercebia-se então que a incoerência indigesta dos factos da história, todos resolúveis em correntes de exem­plos diferentes de que eles são o encontro (este mesmo destinado a ser copiado mais ou menos exactamente), na­da prova contra a regularjdade fundamental do mundo so­cial e contra a possibilidade de uma ciência social; que, para falar verdade, esta ciência existe, em estado disper­so, na pequena experiência de cada um e que basta reu­nir-lhe os fragmentos. Quanto ao resto, a recolha dos fac­tos históricos estará longe de parecer mais incoerente, de certeza, do que a colecção dos tipos vivos e das subs­tâncias químicas; e porque se exigiria do filósofo da his­tória a bela ordem simétrica e racional que nem sequer se

(1) Quando digo . invenção da pólvora de canhão,, ou telégrafo, ou caminhos de' ferro, etc., é bera entendido que quero dizer o grupo de invenções acumuladas (distintas portanto e numerosas) que foram necessárias para produzir, a pólvora do canhão, o telégrafo, os caminhos de ferro.

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sonha em pedir ao filósofo da natureza? Mas há qui. uma diferença totalmente a favor do primeiro: é que enquanto os naturalistas só conseguiram recentemente com alguma clareza ver que as espécies vivas procedem umas das ou­tras, os historiadores não esperavam um tempo tão longo para saber que os factos da história se encadeiam.. Quanto aos químicos e aos físicos, não falemos disso. Não ousam ainda prever a época em que lhes será permitido organi­zar, por sua vez, a árvore genéalógica das substâncias simples e em que um deles publicará sobre a Origem dos átomos um livro destinado a tanto sucesso como a Origem das espécies de Darwin. É verdade que M. Lecoq de Bois- baudran e M. Mendeleef acreditaram entrever uma série natural de corpos simples e que as especulações totalmen­te filosóficas do primeiro a este respeito não são estra­nhas à descoberta do Gallium . Mas se repararmos de per­to nisso, talvsz não se encontre nestes notáveis ensaios, e também nos diversos sistemas dos nossos evolucionistas sobre a ramificação genealógica dos tipos vivos, mais pre­cisão e certeza do que se vê brilhar nas ideias de Herbert Spencer e mesmo de Vico sobre as evoluções sociais di­tas periódicas e fatais. A origem dos átomos é bem mais misteriosa que a das espécies. A qual o é bem mais que a das diversas civilizações-. Podemos comparar as espécies, vivas, actuais, às espécies que as precederam e de que nós encontramos os vestígios nas camadas do solo; mas não nos resta o menor traço das substâncias químicas que deveram preceder, na pré-história astronómica, por assim dizer, em insondáveis e inimagináveis passados, as subs­tâncias químicas actualmente existentes sobre a terra ou nas estrelas. Por conseguinte, a química, pára a qual não pode mesmo pôr-se o problema das origens, está menos avançada, neste sentido essencial, do que a biologia; e é pela mesma razão que a biologia o está, no fundo, menos do que a sociologia.

Do que precede, ressalta que uma coisa é a ciên­cia, outra coisa é a filosofia social; que a ciência social deve orientar-sé exclusivamente, como outra qualquer, sobre

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factos similares1 mdltiplos, cui los historiadores, e que os factos novos e dissemelhantes, os factos: históricos propriamente ditos, são o domínio re­servado para a filosofia social; que sob este ponto de vis­ta a ciência social poderia muito bem estar tão avançada como as outras ciências e que a filosofia social o está mais do que as outras filosofias.

No presente volume, é da ciência social somente que nos ocupamos; assim, não haverá aqui outra questão para além da imitação e das suas leis. Para além disso, e mais tarde, iremos estudar as leis ou as pseudo-leis da invenção, o que é uma questão diferente, embora não inteiramente separável da primeira (1).

I I

Terminados estes longos preliminares, devo retirar uma tese importante que a í se encontra envolvida e obs­cura. Não existe ciência, disse eu, a não sér das quanti­dades e dos crescimentos, ou, em termos mais gerais, das semelhanças e das repetições fenomenais.

Mas, para dizer a verdade, esta distinção é supér­flua e superficial. Câda progresso do saber, com efeito, tendei a fortalecer-rios. na convicção de que todas as se­melhanças^ :sãodevidas i às repetições. Haveria, creio eu, que désenvolvèr está proposição nas três leis seguintes:

:12 Tõdas 'as semelhançàs qúe se observam rió rriurido químico, f ísiçç>,‘ ;ásíronómico (átomos de um mesmo cor­po, ondas de um mesmo raio luminoso', carfiadas concên­tricas de atracção de que cada globo celeste é o centro, etc.) têm ;com o. Cínica explicação e causa possível movi­mentos periódicos e principalmente vibratórios.: v 22 Todàs-as-semelhanças, dé origem viva, do mundo fayò, 'hereditária, da geração sejaintrá^sejà^extrà1 orgânica; É péló parentesco dás células

AS LEIS OA IMAGINAÇÃO

(.1) Depois destas linhas terem sido escritas, esboçamos uma teoria da Invenção na nossa Lógica social (F. Alcan, 1895).

SSsS adadosamente guardados pe-

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e pelo parentesco das espécies que se explicam hoje as analogias ou homologias de todas as espécies reveladas pela anatomia comparada entre as espécies; e pela his­tologia, entre os elementos corporais.

32 Todas as semelhanças de origem social que se observam no mundo social são o fruto directo ou indirec­to da imitação sob todas as suas formas: imitação-cos- tume ou imitação-moda, imitação-simpatia ou imitação- -obediência, imitação-instrução ou imitação-educação, imi- tação-espontânea ou imitação-reflectida, etc.. Daí a ex­celência do método contemporâneo que explica as dou­trinas ou as instituições peia sua história. Esta tendên­cia só pode generalizar-se. Diz-se que os grandes génios, os grandes inventores se encontram; mas, antes de mais, estas coincidências são muito raras. Depois, quando são provadas, elas têm sempre a sua origem num fundo da instrução comum onde beberam 'independentemente um e outro os autores da mesma invenção; e este fundo con­siste num amontoado de tradições do passado,^de expe­riências brutas ou mais ou menos organizadas, e trans­mitidas imitativamente pelo grande veiculo de todas as imitações, a linguagem.

Foi notemo-lo, baseando-se implicitamente sobre a nossa terceira proposição que os filólogos do nosso sé­culo, pela comparação analógica do sânscrito com o la­tim, o grego, o alemão, o russo e outras línguas da mes­ma família foram levados a admitir que existe a í uma fámília, e que ela tem como primeirò antepassado umá mesma linguagem tradicionalmente transmitida com mo­dificações próximas, das quais cada uma foi uma verda­deira invenção lingüística anónima, ela própria perpetuada por imitação. Mas voltaremos a esta terceira tese para a desenvolver e a rectificar, no capítulo seguinte.

Não existe senão uma única grandé categoria de semelhanças universais que não parece à primeira vista poder ter. sido produzida por uma repetição qualquer: é a semelhança das partes consideradas justapostas e imóveis do espaço imenso, condições de todo o movimento quer vibratório, quer gerador, quer propagador e conquistador.

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AS LEIS DA IMITAÇÃO

Mas não paremos nesta excepção aparente, que nos basta indicar. A sua discussão !evar-no-ia muito longe.

Deixando, portanto, de lado esta anomalia, talvez ilusória, tomemos por verdadeira a nossa proposição geral, e assinalemos uma consequência que daí deriva directa­mente. Se quantidade significa semelhança, se toda a se­melhança provém de uma repetição, e se toda a repeti­ção é uma vibração, (ou outro movimento periódico qual­quer), uma geração ou uma imitação, segue-se dar que, na hipótese de nenhum movimento ser ou ter sido vibra­tório, nenhuma função hereditária, nenhuma acção ou ideia aprendida e copiada, não haveria absolutamente nenhuma quantidade no universo, e as matemáticas não teriam a í emprego possfvei, nem aplicação concebível. Segue-se também que, na hipótese inversa, se o nosso universo f í ­sico, vivo, social, desdobrasse mais vastamente ainda as suas actividades vibratórias, genitais, propagadoras, o cam­po do cálculo seria a í ainda mais estendido e profundo. Isso é visível nas nossas sociedades europeias em que os progressos extraordinários da moda sob todas as formas (da moda aplicada às roupas, aos alimentos, às habita­ções, às necessidades, às ideias, às instituições, às artes) estão em viás de fazer da Europa a edição de um mesmo tipo de homem com tiragens de várias centenas de mi­lhares, de exemplares. Não se vê, desde os seus inícios, este prodigioso nivelamento tornar possível o nascimento e o desenvolvimento da estatística e do que tão bem se chamou a física social, a economia política? Sem a moda e o costume,.,não haveria quantidade social, especialmen­te valor, dinheiro, e, portanto, ciência dás riquezas e das finanças. (Como é, portanto, possível que os economistas tenham pensado em dar. teorias do valor em que a ideia de imitação nunca, interyém?). Mas esta aplicação do nú­mero e da medida às sociedades, que se tenta no presen­te, não. poderia ser ainda senão tímida e parcial, o futu­ro reserva-nos sobre este assunto muitas surpresas!

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A REPETIÇÃO UNIVERSAL

I I I

Seria aqui o momento de desenvolver as analogjas flagrantes, as diferenças não menos instrutivas e as re­lações mútuas que apresentam as três principais formas da repetição universal. Achar íamos bem procurar a razão destes ritmos grandiosos escalonados e entrelaçados, per­guntamo-nos se a matéria destas espécies se lhes asse­melha ou não, se o substracto activo e substancial destes fenómenos bem ordenados participa da sua sábia unifor­midade, ou se não contrastaria talvez com eles pela sua heterogeneidade essencial, tal como um povo em que nada apresenta, à superfície administrativa e militar, originalidade tumultuosas que o constituem e que fazem andar essa máquina.

Este duplo assunto seria muito vasto. Todavia, sobre o primeiro ponto, há analogias manifestas que nós deve­mos assinalar. E, primeiramente, estas repetições são ao mesmo tempo multiplicações, transmissões que se espa-»- Iham. Uma pedra cai na água, e a primeira onda produ­zida repete-se alargando-se até aos limites do charcó; acendo um fósforo., e a primeira ondulação que imprimo ao éter propaga-se num instante num vasto espaço. Basta um par de formigas brancas ou de filoxeras transportado para um continente para .0 devastar em alguns anos; 0 Erigeron do Canadá,. erva daninha importada pela Euro­pa muito recentemente, abunda já pòr toda a parte nos campos incultos. Conhecem-se as leis de • Malthus e de Dárwin sobre a tendência dos indivíduos de uma espécie para progredir geometricamente; verdadeira lei da irra­diação geradora dos indivíduos vivos. Do mesmo modo, um dialecto local, em uso por algumas famílias, torna-se pou­co a pouco, por imitação, um idioma nacional. No início das sociedade, a arte de talhar 0 sílex, de domesticar o cão, de fabricar um arco, mais tarde de fazer levedar o pão, de trabalhar o bronze, de extraír 0 ferro, etc., prò- pagou-se contagiosamente, sendo cada flecha, cada bocado de pão, cada fivela de bronze, cada sílex talhado ao mes­mo tempo cópia e modelo. Assim se opera em nossos dias

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AS LEIS DA IMITAÇÃO

a difusão irradiante das boas receitas de toda a espécie, com a pequena diferença de que a densidade crescente da população e os progressos conseguidos aceleram prodi­giosamente esta extensão, como a rapidez do som se faz em razão da densidade do meio. Cada coisa social, isto é, cada invenção ou cada descoberta, teride a estender-se no seu meio social, meio que, ele próprio, acrescentarei eu, tende a estender-se, dado que se compõe essencialmente de. coisas semelhantes, todas ambiciosas ao infinito.

Mas esta tendência, aqui como na natureza exte­rior, é insucedida o mais das vezes por efeito da concor­rência das tendências rivais, o que importa pouco em teo­ria. Por outro lado, ela é metafórica; não mais à onda e à espécie do que à ideia se poderia atribuir um desejo próprio, e é preciso entender por isso que as forças dis­persas, individuais, inerentes aos inumeráveis seres de que se compõe o meio onde estas forças se propagam se atri­buíram uma direcção comum. Assim entendida, esta ten­dência supõe que o meio. em questão seja homogéneo, condição que o meio étereo ou aéreo da onda parece realizar numa boa medida, o meio geográfico e químico da espécie muito menos, e o meio social da ideia num grau: infinitamente mais fraco ainda. Mas não se tem o direito, creio eu, de exprimir esta diferença dizendo que o meio soclaj è m§is .complexo que os outros. É ao con­trário, talyez porque - ale^é .numericamente bem mais sim­ples,, que ele está mais longe de apresentar a homogenei- dade _requerida, porque .uma . homogeneidade superficial­mente real basta. Também, à medida que as aglomerações hwtnanas se estendem, a difusão das ideias, seguindo uma progressão geométrica regular, é mais vincada. Levemos até ào,.fim esta argumentação numérica: suponhamos que a. esferaysocjfelonde uma ideia se pode espalhar seja com- ppstar;n|o,;.somêpfe- por um...grupo bastante numeroso para f azéx0d^ab,r_p^hàr as principais variedades morais da es­pécie humana, mas ainda de colecções completas dessa espécie repetidas uniformemente milhares de vezes, de tal modo que a uniformidade destas repetições torne o todo homogéneo à superfície, apesar da complexidade inter-

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A REPETIÇÃO UNIVERSAL

terna de cada uma das suas partes. Não temos algumas razões para pensar que está a í o género de homogeneida­de próprio de tudo o que a natureza exterior nos apre^ senta de realidades simples e uniformes em aspecto? ■ Nes­ta hipótese, éciaroque o sucesso mais ou menos grande, a velocidade de propagação maior ou menor de uma ideia, o dia da sua aparição, daria a razão matemática em qual­quer espécie da sua progressão ulterior* Desde agora, os produtores de artigos que respondem a necessidades de primeira ordem e por conseguinte destinados a um con­sumo universal, podem predizer, a partir da procura de um ano a tal preço, qual será a procura do ano seguinte ao mesmo preço, se pelo menos nenhum entrave proibi- cionista ou outro intervier, ou se nenhum artigo similar e mais aperfeiçoado for descoberto.

Diz-se: sem capacidade de previsão, nada de ciên­cia. Rectifiquemos: sim, sem faculdade de previsão con­dicional. Ao ver uma ffor, o botânico pode dizer de ime­diato qual será a forma, a cor do fruto que ela produ­zirá, a menos que a seca a nrate ou que uma variedade individual nova e inesperada (espécie de invenção bioló­gica secundária) apareça. O físico pode anunciar que es­te tiro de espingarda saído neste mesmo instante será ou­vido num certo número de segundos, a tal distância, con­tando que nada intercepte o som sobre o trajecto ou que, neste intervalo de tempo', um barulho mais forte, um ti rõ

"de .canhão, por exemplo, não se faça ouvir. Pois bem, é pre­cisamente a este mesmo tftulo que o sociólogo merece o nome de sábio propriamente falando; sendo dado que há hoje certos focos de irradiação imitativos e que eles ten­dem a caminhar separadamente ou concorren tem ente com velocidades aproximadas, ele está em condições de pre­dizer qual será o estado social em dez, em vinte anos, çom a condição de que nenhuma reforma ou revolução PQlítiça venha a entravar esta expansão e de que não süf- jam focos rivais.

Sem dúvida o acontecimento condicional é aqui mui- t.q provável, talvez mais provável que lá. Mas só é uma di­ferença de grau. Reparemos, por outro lado, que numa cer-

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AS LEIS DA IMITAÇÃO

ta medida (que é a tarefa da filosofia e não da ciência da história), as descobertas, as iniciativas já feitas e propa­gadas com sucesso determinam vagamente o sentido no qual terão lugar as descobertas e as iniciativas bem su­cedidas do futuro. Depois, as forças sociais que agem com uma importância real numa dada época compõem-se não de irradiações imitativas necessariamente ainda fracas, emanadas de invenções recentes, mas sim de irradiações imitativas emanadas de invenções antigas, ao mesmo tem­po mais estendidas e mais intensas porque tiveram o tem­po necessário para se desdobrarem e se estabelecerem em hábitos, em costumes, em "instintos de raças" ditos fisiológicos (1). Portanto, a ignorância em que estamos àcerca das descobertas inatingidas que se realizarão den­tro de dez, vinte, cinquenta anos, àcerca das obras-primas renovadoras da arte que a í aparecerão, àcerca das bata­lhas e dos golpes de estado ou de força que a í farão o seu barulho não nos impedirá de predizer quase de cer­teza absoluta, na hipótese em que me coloquei mais aci- maj segundo que direcção e a que profundidade correrá o rio das aspirações e das ideias que os engenheiros po­líticos, os grandes generais, os grandes poetas, os gran­des músicos terão de descer ou de subir, de canalizar ou de combater.1- i

Como exemplos em apoio da progressão geométrica das imitações; poderia invocar as estatísticas relativas ao consumo-do café, do tabaco etc., desde a sua primeira importação 'até^à época em que o mercado começou a estar inundado dele; oü ainda relativas ao número de lo­comotivas construídas desde a primeira, etc. (2). Citarei

(1) Ninguém se dignará atribuir-me a ideia absurda de negar em tudo isto a influência da raça nos factos sociais. Mas ei) creio que, pelo número dos seus traços adquiridos, a raça é filha e não mãe destes factos, e é somente por este aspecto esquecido que ela roe parece entrar no domínio próprio do sociólogo.(2) Alguém me objectará que as progressões crescentes ou decrescen­tes reveladas por estatísticas contínua num certo número de anos

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A REPETIÇÃO UNIVERSAL

uma descoberta menos favorável na aparência à minha te­se, a descoberta da América. Ela foi imitada no sentido em que a primeira viagem da Europa à América, imagina­da e executada por Colombo, foi repetida um número sem­pre crescente de vezes por outros navios com variantes de que cada uma foi uma pequena descoberta, enxertada so­bre a do grande Genovês, e teve, por seu turno, imitadores.

Aproveito deste exemplo para abrir um parêntesis. A América poderia ter sido aportada dois séculos mais cedo ou dois séculos mais tarde por um navegador de ima­ginação. Dois séculos mais cedo, em 1292, no reinado de Filipe, o Belo, durante as desavenças deste monarca com Roma e a sua tentativa audaciosa da laicização e de cen­tralização administrativa; uma tal saída dum mundo novo oferecida à sua ambição não poderia ter deixado de a so- brexcitar e de precipitar o advento do mundo moderno. Dois séculos mais tarde, em 1692, eJa teria aproveitado à França de Henrique IV, mais do que à Espanha, segura­mente, que, não tendo tido esta rica presa para devorar durante duzentos anos ficou menos rica e menos próspera então. Quem sabe se, na primeira hipótese, a guerra dos Cem Anos não teria sido evitada, e, na segunda, o Impé­rio de Carlos V ? Em todos os casos, a necessidade de ter colónias, necessidade criada e satisfeita ao mesmo tempo pela descoberta de Cristóvão Colombo, e que de­sempenhou um papel tão capital na vida política da Europa

(cont.) nunca são regulares e são frequentemente cortadas por pa­ragens ou por movimentos inversos. Sera entrar neste detalhe, devo dizer que na minha maneira de ver estas paragens ou estes recuos são sempre o indício da intervenção de qualquer nova intervenção que se torna, por sua vez, contagiosa. Explico da mesma maneira as progressões decrescentes, donde seria preciso evitar de in­duzir que ao fim de algum tempo, depois de ter sido imitada cada vez mais uma coisa social tende a ser DESIMITADA. Não; a sua ten­dência para invadir o mundo permanece sempre a mesma; e se ela não é desimitada, mas sim cáda vez menos imitada, o mal deve-se aos seus rivais.

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A^iEI^PA, IMITAÇÍO

desdfciip .século XV , nasceu no século XVI I somente; nes­sa altura,!, aAmér i ca do Sul seria francesa, a América do . Norte não contaria politicamente. Que diferença para hds! E não. faltou tanto como um cabelo para que Cristóvão Coíombo fracassasse no seu empreendimento! — Mas aca­bemos com estas especulações sobre os passados contin­gentes, não menos importantes, contudo, a meu ver e não menos fundados que os futuros contingentes.

Outro exemplo, e o mais elucidativo de todos. O império romano cafu; mas, já foi dito muito bem, a con­quista romana vive e prolonga-se sempre. Por Carlos Magno, ela estendeu-se aos Germanos que, ao cristianizarem-se, se romanizaram; por Guilherme, o Conquistador, aos Anglo- -Saxões; por Colombo, à América; pelos Russos e os In­gleses, à Âsia, à Austrália, e em breve à Oceania in­teira. O Japão, por seu lado, já quer ser invadido; somen­te a China parece dever oferecer uma séria resistência. Admitamos que ela também se assimila um dia. Poder-se- -á dizer, então, que Atenas e Roma, e Jerusalém incluí­da, fsto é, o tipo de civilização formado pelo facho das suas inciciativas e das suas ideias de génio, coorde­nadas e combinadas, conquistaram todo o mundo. Todas as raças, todas as nacionalidades terão concorrido para este contágio imitativo ilimitado da civilização greco-ro- mana., Não teria acontecido o mesmo certamente se Dario ou Xerxes tivessem vencido .e reduzido a Grécia a provín­cia persa, ou se o Islamismo tivesse triunfado sobre Carlos Martel e invadido a Europa ou se a China, depois de três mil anosj‘ tiyesse sido tão guerreira quanto industrial e virado para as armas tão bem como para as artes da pazo seu espírito de invenção, ou se, no momento da desco­berta da América, os europeus não tivesse ainda inventado a pólyora..g_,a? imprensa e se se tivesse encontrado num es­tado de inferioridade militar face aos Aztecas e aos Incas. Mas o acasp iquis? que de todos os tipos de civilização, de todos, ps- jfeixes ligados de invenções irradiantes que tinham espontaneamente brotado em diversos pontos do globo, o tipo ao qual nós pertencemos os tenha, superado. Se ele não tivesse prevalecido, todavia, um outro teria

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A REPETIÇÃO UNIVERSAL

acabado por triunfar, porque o que era certo e inevitá­vel era que a longo prazo um qualquer de' entre eles se tornaria universal, dado que todos pretendiam a universa­lidade, isto é, todos tendiam a propagar-se imitativamente segundo uma progressão geométrica como qualquer onda luminosa ou sonora, como quqlquer espécie animal ou ve­getal.

IV

Indiquemos agora uma nova ordem de analogias. As imitações (palavras de uma língua, mitos de uma religião, segredos de uma arte militar, formas literárias, etc.) mo­dificam-se ao passarem de uma raça ou de uma nação para outra, dos Hindus aos Germanos, por exemplo, ou dos Latinos aos Gauleses, como as ondas físicas ou os tipos vivos ao passarem de um meio para outro. Em cer­tos, casos, as modificações da espécie constatadas foram bastante numerosas para permitir observar o sentido ge­ral e uniforme segundo o qual elas se operam. Ê o caso das línguas em especial: também se pode dizer das leis de Grimm e melhor ainda de Raynouard em filologia que são leis de refracção em linguística.

Ensinam-nos estas que, ao passar do meio romano para o meio espanhol ou gaulês, as palavras latinas di­versas foram transformadás de uma maneira idêntica e característica, tornando-se cada letra uma outra letra determinada; e aquelas que tal consoante do alemão ou do inglês equivale a uma tal outra consoante do sânscrito ou do grego, o que significa no fundo que ao passar do meio ariano primitivo para o meio germânico, heleno ou hindu, a língua-mãe permutou as suas consoantes no sen­tido indicado, aqui substituindo o aspirado pela forte, acolá a forte pela aspirada, etc.i Se as religiões fossem tão numerosas como as lín­guas (que elas próprias não o são demasiado para dar uma base de comparação suficiente para observações gerais formuláveis em leis) e sobretudo se, em cada religião, as ideias religiosas fossem tão numerosas como o são as pa­

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AS LEIS OA IMITAÇXO

lavras em cada língua, poderia haver em mitologia com­parada leis de refracçio mitológica análogas às preceden­tes. Ora, podemos muito bem seguir um dado mito, o de Ceres ou de Apoio através das modificações que lhe im­primiu o génio dos diversos povos que o adoptaram. Mas há tão poucos mitos da espécie a comparar que não se poderia ver nas marcas que eles receberam em separado de um povo traços comuns palpáveis e outra coisa para além de um ar familiar. Apesar de tudo, no estudo das formas de que as mesmas ideias religiosas se revestiram ao passarem do vedismo (1) para o bramanismo ou para Zoroastro, do moseísmo para Cristo ou para Maomé, ou ao circularem através das seitas cristãs dissidentes e das diversas Igrejas, grega, romana, anglicana, galicana, não há muitas observações a fazer? Ou, então, tudo o que é possível observar foi dito em matéria semelhante e não há mais nada a fazer do que seleccionar.

Os críticos de arte também não falharam ao pres­sentirem confusamente o que se poderia chamar as leis da refracção artística própria de cada povo, de cada um dos seus momentos, de cada região artística determinada, holandesa, italiana, francesa, em pintura, em música, em arquitectura, em poesia. Não insisto mais. Contudo, será uma pura metáfora ou uma infantilidade dizer que Teócrito se refractou em Virgílio, Menandro em Terêncio, Platão em Cícerò’, Eúrípides erri Ràcine?

Outra analogia. Há interferências de imitações, de coisas sociais,- tal como interferências de ondàs e de ti­pos vivos. Quando duás ondas, duas coisas físicas mais ou menos semelhantes, depois de se terem propagado sepa­radamente a partir de dois centros distintos, se vêm a encontrar num mesmo ser físico, numa mesma partícula da matéria, as suas impulsões fortalecem-se ou neutra­lizam-se, conforme têm lugar no mesmo sentido ou em

. dois sentidos precisamente contrários sobre a mesma linha direita; No primeiro cásò, uma onde nova, complexa e mais

(1) Nome europeu da religião Hindu primitiva. (N. T.).

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A REPETIÇÃO UNIVERSAL

forte surge, a qual tende ela própria a propagar-se. No segundo caso, há luta e destruição parcial até que uma das duas rivais leve a melhor sobre a outra. Do mesmo modo, quando, após se terem reproduzido separadamente de geração em geração dois tipos específicos bastante vizinhos, duas coisas vitais, se vêm a reencontrar, não sim­plesmente num mesmo lugar (animais diferentes que se digladiam ou se comem), o que seria um encontro pura­mente físico, mas além disso, num mesmo ser vital, numa mesma célula ovular fecundada por uma união híbrida, único género de encontro e de interferência verdadeiramen­te vital, sabe-se o que acontece então. Ou o produto, de uma vitalidade superior à dos seus pais, e ao mesmo tempo mais fecundo e mais prolífero, transmite a uma posteridade sempre mais numerosa as suas característi­cas distintivas, verdadeira descoberta da vida; ou então, muito mais fraco, dá origem a alguns descendentes dege­nerados em que caracteres incompatíveis dos progenitores, violentamente aproximados, não tardam em operar o seu divórcio pelo triunfo definitivo de um e a expulsão do outro. — Do mesmo modo, ainda, quando duas crenças e dois desejos ou um desejo e uma crença, quando duas coi­sas sociais, numa palavra (porque não existe senão isto em última análise nos factos sociais, sob os nomes diver­sos de dogmas, de sentimpntos, de leis, de necessidades, de. hábitos, de costumes, etc.), fizeram durante um cer­to tempo e separadamente o seu caminho no mundo, em virtude da educação ou do exemplo, quer dizer da imi­tação, elas acabam muitas vezes por se encontrar. É pre­ciso, para que o seu encontro e a sua interferência ver­dadeiramente psicológica e social tenha lugar, não somen­te que elas coexistam num mesmo cérabro*e façam ao mesmo tempo parte de um mesmo estado de espírito ou de coração, mas, por outro lado, que uma se apresente, quer como um meio, ou um obstáculo em face da outra, quer como um princípio de que a outra é consequência ou uma afirmação de que a outra é a negação. Quanto àquelas que parecem nem se ajudar, nem se prejudicar, nem se confirmar, nem se contradizer, elas não saberiam

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AS LEIS OA IMITAÇÍO

interferir mais do que duas ondas heterogéneas ou dois tipos vivos muito distanciados para se poderem unir. Se elas parecem ajudar-se ou confirmar-se, combinam-se só pelo facto desta aparência, desta percepção, numa des­coberta nova, prática ou teórica, destinada a espalhar-se por sua vez como as suas componentes num contágio imi- tativo. Houve, neste caso, aumento de força de desejo ou de força de fé; como nos casos correspondentes de in­terferências físicas ou biológicas felizes, houve aumento de força motriz e de vitalidade. Se, pelo contrário, as coisas sociais interferentes, teses ou projectos, dogmas ou interesses, convicções ou paixões, se estorvam ou se contradizem numa alma ou nas almas de um povo, há es­tagnação moral dessa alma, desse povo, na indecisão e na dúvida, até que, por um esforço brusco ou lento, essa alma ou esse povo se separa em dois e sacrifica a sua crença ou a sua paixão menos querida. Assim faz a vida a sua opção entre dois tipos mal acoplados. Um caso ligeiramente distinto do precedente e particularmente im­portante é aquele em que as duas crenças, os dois dese­jos ou ainda a crença e o dèsejo que interferem de uma maneira favorável ou desfavorável no espíçito do indivíduo, pertencem não somente a esse homem mas em parte a ele, em parte a qualquer um dos seus semelhantes. A interferência consiste então em que o indivíduo de que se trata percebe a confirmação ou o desmentido dados pela ideia de outlró, a vantagem ou o prejuízo causados pela vontade:de outro à suá: jdèia e à sua vontade pró­prias. Daí uma simpatia é um contrato, ou então uma antipatia e uma guerra (1).

(1) A semelhança que êu estabeleci entre a hereditariedade e a imi­tação verifica-se-até na relação de cada uma destas duas formas da Repetiçaò-urii versai com a forma de Criação, de. Invenção, qüe lhé é espfciàl. Quanto mais tempo uma sociedade é jovem, ascenden­te, transbordante: de vida, mais nós aí vemos as invenções, os pro­jectos novos, as iniciativas conseguidas, sucederem-se com rapidez é acélerâr aá frariformações sociais; depois, quando a seiva inven-

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A REPETIÇÃO.'UNIVEKS*!

Mas tudo isto tem necessidade, eu sinto-o, deílès- clarecimento. Distinguimos três hipótese: irtterferência’; fe ­liz de duas crenças, de dois desejos, de uma crença e de um desejo; e subdividimos cada uma destas divisões con­forme as coisas interferentes pertençam ou não ao mes­mo indivíduo. Depois diremos uma palavra àcerca das in­terferências desfavoráveis.

12 Quando uma conjectura que eu olhava como bas­tante provável vem a coexistir em mim, no mesmo estado de espírito, com a leitura ou a reminiscência de um fac­to que eu tenho por quase certo, se eu m§ aperceber de repente que este facto confirma essa conjectura, que daí deriva (quer dizer que a proposição particular exprimindo este facto está incluída na proposição geral que exprime essa hipótese), em breve essa hipótese se torna muito mais provável a meus olhos, e ao mesmo tempo este facto me

'(cont.) tiva se esgota, a imitação, contudo, prossegue o seu curso, como na Índia, como na China, como nos últimos séculos do Império Romano. Ora, no'mundo vivo, é a mesma coisa. E por exemplo, nos

. ENCADEAMENTOS 00 MUNDO ANIMAL (período secundário) M. Gaudry diz incidentemente a propósito dos CRINOIDES (equinodermes): "eles perderam esta maravilhosa diversidade de formas que foi um dos lu-

:xos dos tempos primitivos; NÃO TENDO JS A FORÇA' PARA SE TRANSFOR­MAR MUITO, GUARDARAM AINDA A DE REPRODUZIR INDIVÍDUOS SEMELHANTES

■■■ELES". Mas nem sempre e assim. Certas famílias, certos generos ^de"animais desaparecem nos tempos geológicos depois do seu período de maior fragmentação. Assim foi com a amonite, este maravilhoso fós­s il que nos tempos secundários se expandiu na exuberante diversida­de das suas mutações e depois desapareceu para sempre. Assim foi também com essas brilhantes e breves cit/TliMçfes que se acende­

ram ura dia e que bruscamente se extinguiram como estrelas efémeras ;no/céú da história: a Pérsia de Ciro, cértas repúblicas gregas, Çõ^mêfidiOnal da França no momento da guerra dos Albigenses^ as repúblicas italianas, etc. Quando estas civilizações ficaram can­sadas de produzir, não lhes restou mais força para se reproduzi- rem. E verdade que, o mais das vezes, elas foram nisso impedidas [pelá sua destruição violenta.

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parece inteiramente certo. De tal sorte que houve ganho de fé em todo o processo. E o resultado é uma descober­ta. Porque não se trata de outra coisa para além da percepção dessa inclusão lógica. Newton não descobriu outra coisa quando, depois de ter conjecturado a lei da atracção, a confrontou com o cálculo da distância da luz à terra e percebeu a confirmação dessa hipótese por este facto. Supondo que todo um povo, todo um século, na continuação de um dos seus doutores, de S. Tomás de Aquino, por exemplo, ou Arnaud, ou Bossuet, constata ou crê constatar um acordo semelhante entre os seus dog­mas e o estado momentâneo das suas ciências, e vereis espalhar-se este rio transbordante de fé que fecunda o século XIII, argumentador, inventivo e guerreiro, e tam­bém o século XVII, jansenista e galilaico. Essa harmonia, também ela, não passa de uma descoberta de que a sú­mula, o catecismo de Port-Royal e do clero de França, e em diversos graus todos os sistemas filosóficos da mes­ma época desde Descartes até Leibniz, são a expressão diversa. Modificamos um pouco a nossa hipótese geral agora. Inclino-me a admitir um princípio que um dos meus amigos, com quem eu converso, não admite de forma ne­nhuma. Mas. eu aprendo por ele factos que ele tem por verdadeiros e cuja prova, no meu pensar, não foi feita. Depois* parece-me, o.u melhor mostrava-se-me, que es­tes factos, se. fossem provados, confirmariam plenamente o meu princípio. Desde então, inclino-me também a aceitá- -los; mas. não houve aumento de fé a não ser relativamen­te ao que lhes diz respeito, não relativamente ao princí­pio. Também esta espécie de descoberta está incompleta e não terá nenhum efeito social antes que o meu amigo tenha conseguido comunicar-me a sua crença, superior à minha, na realidade destes factos, fo.rnecendo-me as pro­vas, ou que eu tenha conseguido eu próprio demonstrar- -Ihe a verdade, .do meu princípio. Mas trata-se justamen­te da primazia de um comércio intelectual mais livre e mais. vasto.

~ ® primeiro comerciante da Idade Média, aomesmo tempo ávido e vaidoso, desejoso de enriquecer pelo

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comércio e aflito por não ser nobre, que previu a possi­bilidade de fazer servir a sua avidez aos fins da sua vai­dade e de adquirir mais tarde para si e para os seus a nobreza a preço de dinheiro, julgou fazer uma bela des­coberta. E de facto teve muitos imitadores. Não é ver­dade que a partir dessa perspectiva inesperada ele sen­tiu redobrar ao mesmo tempo as suas duas paixões, uma porque o ouro tomava um novo válor a .seus olhos, e ou­tra porque o objecto do seu sonho ambicioso e desmorali­zado se tornava acessível? Sem ir tão longe talvez no passa­do, também não foi uma muito má ideia nem uma inicia­tiva pouco seguida a do primeiro advogado que teve a ideia contrária de fazer política para fazer a sua fortu­na. — Outros exemplos: estou apaixonado e tenho a ins­piração de versificar, e faço servir o meu amor, que se exalta, para inspirar a minha veia versejadora, que se tor­na acentuada. Quantas obras poéticas nasceram de uma interferência semelhante! Sou filantropo- e gosto de fazer falar de mim, e procuro esclarecer-me para fazer melhor aos-meus semelhantes ou para lhes ser útil para me da- rèni um nome, etc., etc. Encarado historicamente, o mes­mo facto exprime-se especialmente pelo espírito das cru­zadas, devido ao mútuo apoio que se prestava à paixão das expedições guerreiras e ao fervor cristão, depois de terem sido muito tempo opostos, ou ainda pela invasão do;. Islão, pelas revoltas de 85} e dos anos seguintes e por todas as revoluções, em que tantas paixões vis se atrelam a^paixões nobres. — Mas, por acaso, mais contagioso ain­da, indo à origem das spciedades, foi o exemplo do pri­meiro homem que disse: eu tenho fome e o meu vizinho :tèm frio, ofereçamos-lhe esta roupa que me é inútil em troca daquele alimento que ele tem a mais, e assim a minha necessidade de comer serve para satisfazer a sua necessidade de se vestir, e reciprocamente. Excelente ideia, bem simples hoje, bem original no começo da his­toria, e donde o trabalho, o comércio, a moda, o direito

todas as artes nasceram (não digo de onde nasceu a sociedade, porque ela existia já sem dúvida, antes da tro­ca-,'desde o dia em que um homem qualquer copiou um outfo).

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.. . Note-se que cada novo género -de trabalho profis­sional, cada novo oficio nasceu na continuação de uma descoberta análoga à precedente, o mais das vezes anó­nima, mas não menos certa, não menos importante por isso.

32 Como importância histórica, contudo, nenhuma interferência mental iguala a de um desejo e de uma crença. Mas não é preciso fazer entrar nesta categoria os casos numerosos em que uma convicção, uma opinião que se vem enxertar numa tendência só age sobre ela susci­tando um desejo diferente. Eliminados estes casos, resta ainda um número considerável em que a ideia surgida age enquanto proposição sobre ò desejo encontrado e redobra­do por ela. Eu queria muito ser orador no Parlamento, e um cumprimento de amigo me persuade de que eu acabo de revelar de repente um verdadeiro talento oratório; es­ta persuasão aumenta a minha ambição, que contribui, dé resto, para me deixar persuadir. Pela mesmà razão não é com erro histórico, com calúnia atroz ou extrava­gante, com loucura que se acredita facilmentè a favor de uma paixão política, que ela concorre precisamente para.avivar. Uma crença, aliás, aviva um desejo, tanto por­que elá faz julgar mais realizável 0 objecto deste, como pòrqúe ela é a aprovação dele. Sucede também, para con­tinuar até áóf í rh^o riòsso paralelismo, que um homem percèbe cfprovéitò qüe éle jsodè tirar para os seus desíg­nios próprios de unia òrènça ‘ própria de outro ainda que não pártilhe dela e que "b oütro não partilhe do seu de­sígnio. Esta descoberta é üm achado, que muitos impos­tores exploraram ou exploram ainda.7 : Estè género especial de interferências e as desco-bérta"s inumeráveis é maiores que são frutò delas contam nó^méio' dás^fórçãs cápitàis que governam ò mundo. Que ê-o patriotismo dó dregd e do Romano senão uma pai- ^ãò^^Yimén^da^ de. uma1 íiüsaó; e‘ vice-versa: urna 'paixão, à aitibição^-a avidez,'o amior dá glória; uma ilusão, a fé èxàgérãdá^ná sua superioridade, o preconceito antropo- cêncr»cò;; o erro dé se imaginar qUe este pequeno ponto no espaço, a terra, era o universo, e que sobre este pe-

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glièno ponto só Roma ou Atenas seriam dignas. db^fflti^T dós deuses? E qüe é em’ grande parte o fanatismo A"rabe, o proselitismo cristão, a propaganda' jacóbinà Ce íêvõlucionária senão tais crescimentos prodigiosos' de jsafc Soes, sobre ilusões, ilusões sobre paixões, umas alimehtàrtr- 'àò as outras? E é sempre a partir de um homem, de úm centro, que estas forças nascem (muito antes, é verdade, do momento em que elas rebentam e formam corrente historicamente). Um homem apaixonado, roído pelo de­sejo. impotente de conquista, de imortalidade, de regene­ração humana, encontra uma ideia que abre às suas as­pirações uma saída inesperada: a ideia da ressurreição, do milénio, o dogma da soberania do povo e as outras fórmulas do Contrato social. Ele abraça-a, ela exalta-o; e ei-lo que se faz apóstolo. Assim se espalha um contágio político ou religioso. Assim se opera a conversão de todo um povo ao cristianismo, ao islamismo,. ao socialismo, tal­vez amanhã.

No que precede só foi assunto as interferênciás- -combinações de que resulta uma descoberta, uma adição, um , crescimento, de desejo e de fé, as duas quantidades psicológicas. Contudo, a história, essa longa sequência de operações de aritmética moral ■, faz despontar pelo menos tantas interferências-lutas, tantos antagonismos internos xjuiffjíquando se produzem entre desejos* ou crenças pró­prias dé um mesmo indivíduo, mas não fora deste caso-, sãq: acompanhadas de lima baixa de maré, de uma sub- ■traçção destas quantidades. Quando estas interferências |êmí lugar aqui e acolá, obscuramente, em indivíduos' iso- íados, são fenómenos pouco reparados, a não ser pelo psi­cólogo; temos então: 12, por um lado, as decepções e a dijvida gradual dos teóricos temerários, dos profetas po­liticos, que vêm os factos desmentir as suas teorias, rir dasr; suas previsões; a frustração intelectual dos crentes sinceros e instruídos, que sentem a sua ciência éiti còn- pTfSr com a sua religião ou com os seus sistemas; pór outro lado, as discussões privadas, judiciais, parlamentares; enfj que a fé se reanima, pelo contrário, em vez de se esfriar. Temos ainda: 22, por um lado, a inacção forçada,

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pungente, o suicídio lento de um homem que se bate en­tre duas aptidões ou duas correntes incompatíveis, entre os seus apetites de ciência e as suas aspirações literá­rias, entre o seu amor e a sua ambição, entre a sua pre­guiça e o seu orgulho; por outro lado, as competições de toda a espécie que põem em actividade todos os esforços, o que se chama nos nossos dias a luta pela vida. Temos, enfim: 32, por um lado, a doença do desencorajamento, estado de uma alma que quer muito forte e crê muito for­te não poder, abismo em que caem os amorosos e os par­tidos cansados de esperar tanto a angústia do escrúpulo como a do remorso,, estado de uma alma que julga mau o objecto dos seus desejos ou que julga bom o objecto das suas repulsões; por outro lado, as resistências feitas aos empreendimentos e às paixões das crianças, que que­rem muito fortemente qualquer coisa, pelos seus pais que crêem firmemente que ela é impossível ou perigosa, ou ainda aos empreendimentos e às paixões de quaisquer ino­vadores pelas pessoas prudentes e experimentadas: resis- têncjas de forma nenhuma acalmantes, sabe-se bem.

, .. Realizados em 'grande escala, multiplicados pelavirtude de uma larga corrente social, de um potente ar­rebatamento imitativo, estes mesmos fenómenos, sempre os m.esmos; no fundo,, obtêm com outros nomes as honras da histórià- Eles tornam-se::T2, por um lado, o cepticismo ene.rvan.te deWum povo preso entre duas religiões ou duas igrejas opostas,^ ou entre os seus sacerdotes e os seus sábios que. se contradizem; por outro lado, as guerras re­ligiosas de . um povo com outro quando elas têm o desa­cordo das crenças por único e principal motivo; — 22, por um ladò, a inércia e o fracasso de um povo ou de uma classe, que';r.: criou necessidades novas opostas aos seus interesses.: permanentes (a necessidade do conforto e da paz,v pór a.exernpldj. quando.‘.'um redobramento do espírito militar, lhe seria indispensável, ou . paixões factícias con­trárias aòs-seus instintos naturais (quer dizer, no fundo, a paixões, que .começaram também por ser factícias, impor­tadas e adoptadas, mas que são muito mais antigas); por outro lado, a maior parte das guerras políticas exteriores;

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— 3 2 , por um lado, o desespero amargo de um povo ou de uma classe que entra por degraus no nada histórico, de onde um fmpeto de entusiasmo ou de fé o tinha fe i­to sair, ou ainda o mal-estar e a opressão penosa de uma sociedade cujas velhas máximas tradicionais, cristãs e ca­valheirescas não condizem com as suas aspirações novas, laboriosas e utilitárias; por outro, lado, as oposições pro­priamente ditas, as lutas dos conservadores e dos revolu­cionários, e as guerras civis.

Ora, quer se trate de indivfduos ou de povos, es­tes estados dolorosos, cepticismo, inércia, desespero, e ainda mais os estados violentos, disputas, combates, opo­sições, pressionam o homem a transpô-los. Mas como os últimos, embora mais penosos, são até certo ponto e mo­mentaneamente, fontes de fé e de desejo, são precisa^- mente esses que ele nunca transpõe ou de que ele não sai. senão para neles em breve entrar, enquanto que, mui­tas vezes e por longos períodos, consegue libertar-se dos primeiros, que são enfraquecimentos imediatos das suas duas forças mestras. Daí estas intermináveis dissidências, ri­validades, contrariedades, entre homens de que cada um se pôs finalmente de acordo consigo mesmo pela adopção de um sistema lógico de ideias e de uma conduta conse­quente. Daí a impossibilidade ou a quase impossibilidade, parece, de eliminar a guerra e os processos de que toda a gente sofre, apesar da batalha interna dos desejos e das opiniões de que alguns sofrem conduzir o mais das vezes rijBIes a tratados de paz definitivos. Daí o renascimento infinito dessa hidra de cem cabeças, dessa eterna ques­tão social, que não é própria da nossa época mas de to­dos os tempos, porque não consiste em perguntar como términarão os estados debilitantes, mas como terminarão os-; estados violentos. Noutras palavras, não consiste em perguntar: da ciência ou da religião, qual prevalecerá ou deverá prevalecer na maioridade dos espíritos? É a neces­sidade de disciplina social ou os ímpetos de inveja, de orgulho e de raiva em revolta que prevalecerão e devem prevalecer finalmente nos corações? É por uma resignação corajosa, activa, e uma abdicação das suas pretensões pas­

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sadas, ou,- ao contrário, por uma nova explosão de espe­rança e de fé no sucesso, que as classes antigamente dijigentes sairão, por sua honra, do seu torpor actual? E a nova sociedade refundirá legitimamente a moral e o ponto de honra da sua imagem, ou a velha moral terá a força e o direito de ferir de novo a sociedade? Problemas que certamente não tardarão muito a ser resolvidos e de que ê fácil desde já pressentir a solução. Mas, pelo contrário, árduos e difíceis de exterminar são os problemas seguin­tes, que constituem verdadeiramente a questão social: é um bem, é um mal, que a unanimidade completa dos es­píritos se estabeleça um dia para a expulsão ou a con­versão mais ou menos forçada de uma minoria dissidente, e vê-la-emos alguma vez estabelecer-se? É um bem, é um mal, que a concorrência comercial, profissional, ambiciosa dos indivíduos e também a concorrência política e militar dos povos venham a ser suprimidas pela organização tão sonhada do trabalho ou pelo menos pelo socialismo de Es­tado, por uma vasta confederação universal ou pelo menos por um novo equilíbrio europeu, primeiro passo para os Estados Unidos da Europa; e o futuro reserva-nos isso? É um bem, ou será um mal que, libertando-se de todo o controlo e de toda a resistência, uma autoridade social forte e livre, absolutamente;, soberana e susceptível de muito grandes coisas, se mostre enfim, pelo poder aberto ou convencional de um partido ou de um povo, o mais filantrópica aliás e, o mais inteligente que se possa ima­ginar, e é preciso, esperarmos por esta perspectiva?

Eis a questão e é porque ela é assim colocada que é temível. Porque não existe humanidade, nem homem que se sacrifique sempre no sentido da maior verdade e do ,maior poder,, da maior soma de convicção e de con-

j-ílançã^.-d^lè^numa. palavra, a obter;, e pode-se duvidar se, é pelo .desenvolvimento da discussão, da concorrência

i^^a^cr.Mça/ ou, ao, invés, pelo seu abafamento, pela ex- p.ansJi.Q;J.rriitativa ilimitada de um pensamento único, de umá: vontade única, consolidada ao expandir-se, que este maximum pode ser atingido.

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A REPETIÇÍO UNjyíRS^L

V

Mas a digressão que precede fez-nos antecipar al­gumas das questões que serão melhor tratadas algures. Voitemos ao assunto deste capítulo e, depois de ter pas­sado em revista as principais analogias das três formas da Repetição, digamos uma palavra sobre as suas diferen­ças, que não são menos instrutivas. Primeiro, a solidarie­dade destas três formas é unilateral, não recíproca. A geração não saberia passar da ondulação, que não tem necessidade dela, e a imitação depende das outras duas, que não dependem dela. Após dois mil anos, o manuscrito da República de Cícero é encontrado, imprimem-no e inspiram-se nele: imitação póstuma que não teria tido lugar se as moléculas do pergaminho não tivessem durado e certamente vibrado (e isto a não ser por efeito da tem­peratura ambiente) e se, por outro lado, a geração hu­mana não tivesse funcionado sem interrupção desde Cícero ,atè nós. É notável, aqui .como em qualquer parte, que o |ermo mais complexo, mais livre, é servido pelos que o são menos. A desigualdade dos três termos a este res­peito é, com efeito, manifesta. Enquanto que as ondas sé encadeiam, insócronas e contíguas, os seres vivos, de uma duração bastante variável, destacam-se e separaram- {-sè, cada vez mais independentes quanto mais são eleva-? Hg?*. A geração é uma onduíação jivre cujas ondas fazem TnÇfndo à parte. A imitação faz ainda mais, exerce-sè, nao. só de muito longe, mas com grandes intervalos de terripo. Ela estabelece uma relação fecunda entre um inventor e um copista separados por milhões de anos, en­tre. Li curgo e um convencional de Paris, entre o pintor rpmãno que pintou um fresco de Pompeia e o desenhador .moderno que se inspira nele. A imitação é uma geração à distância (1). Dir-se-á que éstas três formas da Repeti-

como acredita Ribot, a memória não é senão a forma cere- firal da nutrição; se, por outro lado, a nutrição não passa de uma, geração interna; se, enfio, a Imitação não é mais do que uma ner:

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