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*Beatriz Kara José é Arquiteta e Urbanista, Mestre em Estruturas Ambientais e Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. É professora nas disciplinas de Desenho Urbano no Bacharelado de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Senac. "As intervenções 'res' - contribuindo para o debate". Profa. Dra. Beatriz Kara José* Mundo afora as intervenções em áreas urbanas ambientalmente degradadas têm recebido desde meados do século XX uma gama variável de nomenclaturas “re”: revitalização, renovação, requalificação, reabilitação urbana, etc. Procurar entender os conceitos ou mecanismos que dão base às cada vez mais em voga intervenções “res” é, em verdade, procurar entender as formas contemporâneas de estruturação das políticas urbanas e dos projetos políticos onde estão ancoradas. Se por um lado os grandes projetos urbanos são apresentados como sinônimo de resgate urbano e econômico de áreas descartadas pelo capital, por outro, é possível notar evidências destas intervenções como sinônimo de expulsão dos pobres e o conflito com a preservação do patrimônio histórico. Neste texto iremos apresentar um resumido apanhado histórico sobre a estruturação conceitual de tais intervenções, a fim de fomentar o debate sobre as formas “re” de intervenção no urbano. 1. A renovação das áreas centrais . A substituição do “velho” pelo “novo” Após a segunda guerra mundial (final dos anos 40 e década de 50) a reconstrução das cidades destruídas na guerra, especialmente de seu parque habitacional, foi o principal foco das políticas urbanas europeias. Esta época apresentou-se como oportunidade de se colocar em prática novas teorias sobre a cidade e o planejamento urbano desenvolvidas pelos arquitetos do Movimento Moderno. A ideia era aproveitar a experiência de produção e planejamento de massa da época da guerra para realizar um grande programa de produção habitacional e reorganização social via reconstrução da cidade. Para os arquitetos modernos, as grandes intervenções urbanas em áreas degradadas da cidade eram vistas como forma de colocar a tecnologia e o progresso industrial a favor da produção de melhores condições de vida e moradia. De uma perspectiva fundamentada pela inseparabilidade entre ordem morfológica e ordem social, verdadeiras cirurgias de renovação do espaço eram vistas como único remédio para a transformação da degradação social e urbana. As intervenções de renovação do tecido existente traziam

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Page 1: As intervenções 'res' - contribuindo para o debate. · estruturação das políticas urbanas e dos projetos ... colocar em prática novas teorias sobre a cidade e o ... museal”

*Beatriz Kara José é Arquiteta e Urbanista, Mestre em Estruturas Ambientais e Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. É professora nas disciplinas de Desenho Urbano no Bacharelado de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Senac.

"As intervenções 'res' - contribuindo para o debate". Profa. Dra. Beatriz Kara José*

Mundo afora as intervenções em áreas urbanas ambientalmente degradadas têm

recebido desde meados do século XX uma gama variável de nomenclaturas “re”:

revitalização, renovação, requalificação, reabilitação urbana, etc.

Procurar entender os conceitos ou mecanismos que dão base às cada vez mais em

voga intervenções “res” é, em verdade, procurar entender as formas contemporâneas de

estruturação das políticas urbanas e dos projetos políticos onde estão ancoradas.

Se por um lado os grandes projetos urbanos são apresentados como sinônimo de

resgate urbano e econômico de áreas descartadas pelo capital, por outro, é possível notar

evidências destas intervenções como sinônimo de expulsão dos pobres e o conflito com a

preservação do patrimônio histórico.

Neste texto iremos apresentar um resumido apanhado histórico sobre a

estruturação conceitual de tais intervenções, a fim de fomentar o debate sobre as formas

“re” de intervenção no urbano.

1. A renovação das áreas centrais

. A substituição do “velho” pelo “novo”

Após a segunda guerra mundial (final dos anos 40 e década de 50) a reconstrução

das cidades destruídas na guerra, especialmente de seu parque habitacional, foi o principal

foco das políticas urbanas europeias. Esta época apresentou-se como oportunidade de se

colocar em prática novas teorias sobre a cidade e o planejamento urbano desenvolvidas

pelos arquitetos do Movimento Moderno. A ideia era aproveitar a experiência de produção

e planejamento de massa da época da guerra para realizar um grande programa de

produção habitacional e reorganização social via reconstrução da cidade. Para os

arquitetos modernos, as grandes intervenções urbanas em áreas degradadas da cidade

eram vistas como forma de colocar a tecnologia e o progresso industrial a favor da

produção de melhores condições de vida e moradia. De uma perspectiva fundamentada

pela inseparabilidade entre ordem morfológica e ordem social, verdadeiras cirurgias de

renovação do espaço eram vistas como único remédio para a transformação da

degradação social e urbana. As intervenções de renovação do tecido existente traziam

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como postulado a substituição das estruturas físicas “confusas e obsoletas” para adaptação

das cidades às condições resultantes das transformações ocorridas na vida moderna.

Delicada, no entanto, era a relação deste princípio com a preservação patrimônio

histórico urbano. A renovação da cidade era vista, segundo as regras do Urbanismo

Funcionalista, dominante a partir dos anos 30, como forma de reorganizar e melhorar as

condições de vida na cidade segundo princípios racionais, enquanto a preservação do

traçado dos bairros antigos era apontada na Carta de Atenas, o documento que reuniu 12

diretrizes do Movimento Moderno, como ato de “espíritos mais ciosos do esteticismo do que

da solidariedade”, que “militam a favor da conservação de velhos bairros pitorescos, sem se

preocupar com a miséria, a promiscuidade e a doença que eles abrigam”.1 A valorização do

patrimônio urbano era então restringida ao monumento, consagrado por seu valor

intrínseco e a relação com a cidade aparecia a partir da valorização deste, em

recomendações de cuidados especiais com as áreas vizinhas e com as perspectivas do

objeto monumental.

Alguns anos antes da redação da Carta de Atenas a rejeição dos CIAM à noção de

cidade histórica ou ao que consideravam “museal” havia sido traduzida por Le Corbusier

no Plano Voisin (1925), para o centro de Paris. O Plano continha os principais elementos

que fundamentaram o modelo de renovação proposto para os centros históricos.

Propunha-se a destruição da malha dos velhos bairros centrais, substituindo-a por

arranha-céus padronizados. Segundo Corbusier, o objetivo era descongestionar os centros

com a demolição dos antigos edifícios e construir, num campo desobstruído, prédios mais

altos aumentando a densidade por metro quadrado. Estas medidas teriam, segundo o

arquiteto, a vantagem de melhorar a circulação e aumentar o número de espaços públicos.

Para Corbusier a explicação sobre a decadência das cidades era física e decorrente da

ausência de uma construção geometricamente elaborada. O arquiteto defendia a

destruição dos centros antigos como questão de vida ou morte da cidade grande: “as

estatísticas mostram que os negócios são conduzidos no centro. Isto significa que avenidas

precisam passar pelos centros de nossas cidades. Portanto os centros existentes precisam vir

abaixo. Para salvar-se, a cidade grande deve reconstruir seu centro”. (LE CORBUSIER, 1929

Apud HALL, 1996:209) Isto não queria dizer, contudo, que a nova estrutura urbana tivesse

que ser uniforme. No centro da cidade estariam os arranha-céus, sediando os escritórios

de uma elite de industriais, cientistas e artistas. Fora desta zona, as áreas residenciais

seriam divididas entre prédios luxuosos para estes mesmos grupos e acomodações mais

modestas para os trabalhadores. “Os apartamentos seriam produzidos em massa para uma

1 Carta de Atenas (1933), in IPHAN, Cartas Patrimoniais, Site do Ministério da Cultura. www.minc.gov.br

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vida em massa”. (HALL, 1996:209) No plano de Paris, apenas alguns monumentos de

relevância permaneceriam inalterados: a Notre-Dame, o Arco do Triunfo, o Sacre-Coer e a

torre Eifel – segundo Françoise Choay, um “inventário que já anuncia a concepção

midiática dos monumentos signos”. (CHOAY, 2001: 194)

Plan Voisin. Fonte: BOESIGER, W; GIRSBERGER, H. Le Corbusier: 1910-1965. Barcelona: Gustavo

Gili, 1971.

. Urban Renewal_ As operações de renovação nas cidades americanas

Transplantada para os Estados Unidos nos anos 50, a visão romântica dos

modernos sobre a metodologia “arrasa –quarteirão” seria plenamente cooptada pelos

empreendedores urbanos, apoiados por subsídios governamentais, fundamentando as

políticas de renovação urbana. Além dos aspectos diretamente relacionados à reprodução

do capital, as operações de renovação urbana realizadas nas cidades americanas, com

destaque para Nova Iorque, foram transformadas em um eficaz instrumento de higiene

social.

O “urban renewal” foi direcionado para áreas centrais consideradas

ambientalmente degradadas e sem dinamismo econômico. Estas áreas, originalmente

moradia da classe média, ao serem trocadas pelos bairros periféricos passaram a ser

ocupadas por uma população de menor poder aquisitivo e em sua maioria afro-americana.

Os projetos de intervenção baseavam-se na demolição de quarteirões inteiros, dando lugar

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para a construção de edifícios comerciais e residenciais. Segundo David Harvey, a solução

americana também se apoiava na produção em massa, nos sistemas de construção

industrializada e numa “arrasadora concepção sobre como fazer emergir um espaço urbano

racionalizado ligando-o (...) por meio de formas individualizadas de transporte através do

uso de infra-estruturas fornecidas pelo Estado”. (HARVEY, 1992: 72) A grande inovação foi

a forma encontrada para combinar o direcionamento da aplicação de fundos públicos com

a satisfação dos interesses de empreendedores privados, especialmente das grandes

corporações, ou “coalisões de crescimento”. As “growth coalitions” eram formadas por

jovens empreendedores - banqueiros, incorporadores, corretores e agentes imobiliários -

apoiados por políticos liberais, sindicatos, construtoras, planejadores urbanos e “lobbies”

na área de habitação popular. (HALL, 1996: 229-330) Formava-se, portanto, um grupo de

“executores da renovação urbana”, que conferia imenso poder aos empreendedores

apoiados pela máquina governamental.

Em suas análises sobre o papel do planejamento urbano no estado capitalista,

Manuel Castells (1972) mostrava como as operações de renovação urbana eram excelente

negócio para os empreendedores urbanos. Com pesados subsídios federais, as autoridades

municipais compravam imóveis “degradados” nas regiões de intervenção, demoliam o que

existisse deixando a superfície liberada para novas construções. Após devidamente limpo

e equipado com a recuperação da infra-estrutura urbana, o terreno era vendido aos

empreendedores que construíam novas estruturas e exploravam-nas normalmente,

conforme o jogo do mercado. O detalhe é que, com o apoio dos subsídios federais, o preço

de venda do terreno era fixado em aproximadamente 30% do que havia custado para

deixá-lo em condições de aproveitamento, configurando-se assim uma grande

oportunidade imobiliária. Sendo assim, a ocupação do solo renovado era destinada

prioritariamente para imóveis de empresas, comércio e apartamentos de luxo, aptos a

pagar pela nova infra-estrutura. (CASTELLS, 2000: 420)

Para o município, estas operações de “melhoria” das áreas centrais significavam

uma “fonte de rendas para o futuro”, pelo aumento previsto na arrecadação tributária.

Para justificar o emprego de fundo público, o governo reservava parte das habitações

construídas para a população de baixa renda ocupante das áreas de intervenção. Após

realizadas as obras, entretanto, percebia-se que as moradias eram para populações de

renda mais alta dos que lá estavam antes das obras. Como descreve Peter Hall (1996: 228),

esta produção habitacional foi direcionada para os que foram chamados “pobres

merecedores”, ou seja, aqueles desempregados há pouco tempo, que poderiam

rapidamente se reintegrar no mercado assim que a economia se recuperasse e comprar

suas casas. Ficavam de fora os “antigos pobres”: a população predominante negra e muito

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abaixo da linha de pobreza, para estes não era dada nenhuma solução. Além da capacidade

futura de comprar, as famílias deveriam ter a capacidade de arcar com o aluguel antes, já

que o subsídio do governo federal se restringia à aquisição fundiária mas não cobria os

demais custos, as serem assumidos pelo mercado.

Boston, 1950

Além de suas dimensões e da lucratividade proporcionada, estas operações

significaram, ao menos durante quase vinte anos, um ganho político para o governo, que

capitalizava em cima de seu caráter publicitário. A implosão das antigas estruturas

possibilitava a construção de uma nova imagem urbana para os locais renovados. Nestes

processos, a idéia de renovação urbana originada no Movimento Moderno tornou-se “um

dos pilares da ideologia tecnocrática de reforma social através de intervenções físicas”.

(CASTELLS, 1971 Apud DEL RIO, 1991: 27)

As obras de renovação urbana nas cidades européias começaram mais tarde e, com

exceção da Inglaterra, não chegaram a apresentar a mesma escala massiva que nas

americanas. (HARVEY, 1992; HALL, 1996) Um dos motivos para isto talvez tenha sido a

existência de uma maior consciência da população em relação à preservação do

patrimônio, o que mobilizou uma reação muito mais rápida, mesmo que às vezes

infrutífera, às intervenções que ocorreram. Mesmo assim, em alguns casos, como Paris, o

quadro de destruição no antigo centro foi semelhante.

A partir de 1960, com a recuperação econômica da Europa, começam a se conectar

investimentos privados em complexos comerciais e de escritórios, com investimentos

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públicos substanciais em infra-estrutura urbana, especialmente viária, seguindo o modelo

americano. As instituições governamentais, administrativas e financeiras, assim como as

corporações e serviços continuaram no centro da cidade, levando à substituição de

edifícios antigos por novos maiores e com outro desenho arquitetônico, significando a

destruição de boa parte da cidade antiga e remoção de antigos moradores.

. O caso de Les Halles, Paris

Um exemplo emblemático que durou muitos anos foi o caso do projeto de

renovação de parte do centro de Paris, iniciado em 1961, mais especificamente a região

antigo mercado, Lês Halles. Na França as intervenções de renovação urbana foram

regulamentadas por um decreto presidencial em 1958, sendo ratificadas como justificativa

para grandes intervenções na política nacional de urbanismo estabelecida em 1962/64.

Neste contexto desenvolveu-se o controverso projeto de renovação que culminou com a

demolição das estruturas do antigo mercado em 1971. A transferência do mercado central

foi alvo de longo debate entre 1950 e 1960. Em 1960 o governo central propôs a remoção

que foi decretada em 1962. No ano seguinte a administração municipal formou uma

organização que ficaria responsável pelo plano de renovação de uma área de 470 hectares,

e em 1967 uma outra organização foi responsabilizada pela execução do projeto. Após a

transferência do mercado, foi proposta para o lugar a construção de um grande complexo

comercial de uso misto, acoplado com uma estação regional de transportes urbanos,

incluindo a demolição da antiga estrutura. Apesar das propostas elaboradas pelo governo

central visando manter a estrutura do mercado no projeto, a municipalidade votou contra,

procedendo à demolição em 1971.

Os protestos contra a demolição dos edifícios vieram de todos os lados, mas não

surtiram efeito a ponto de evitar as demolições. O projeto foi, no entanto, modificado com

a mudança da gestão administrativa, sendo o complexo comercial enterrado dando lugar a

um grande espaço aberto. No lugar de antigos edifícios demolidos, foi construído no

Plateau Beaubourg o Centro Georges Pompidou. O centro cultural, de autoria dos

arquitetos Renzo Piano e Richard Rogers, configurou-se como foco desencadeador da

revitalização do bairro Le Marais. O entorno residencial, com densidade de trezentas

pessoas por hectare, foi reabilitado para densidades menores, e destinado a uma

população de maior faixa de renda. Tratou-se de transformar a imagem do espaço com a

remoção da população e do comércio local, substituídos por boutiques e restaurantes. Foi

uma operação eficaz para a atração de um público residente de maior poder aquisitivo e

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de turistas, configurando um processo de gentrificação típico de operações de renovação

urbana.

2. A oposição à renovação urbana

No início dos anos 60 movimentos de defesa da cidade existente e de seu

patrimônio histórico passaram a formar a oposição às intervenções com caráter

renovador. Estes movimentos lutavam contra um tipo de planejamento imposto de cima

para baixo, expressando a demanda das comunidades locais por participar nas

reformulações de seus bairros. As pressões influenciariam na reformulação das políticas

de renovação urbana ocorrida nas cidades americanas após 1964 e se fariam visíveis em

conflitos ocorridos em torno de projetos de reconstrução de centros históricos em cidades

européias no final dos anos 60 e início dos 70.

Este novo posicionamento nos países do primeiro mundo, especialmente na

Europa, contribuiria para modificar a noção de patrimônio até então vigente, resultando

na institucionalização de instrumentos de preservação e tombamentos de áreas históricas.

Os centros urbanos seriam grande foco desta onda, levando à formulação de planos

pioneiros para distritos históricos em vários países, como o da cidade de Bologna (ao qual

voltaremos adiante), em 1969, cuja metodologia e resultados tornaram-se exemplares.

A oposição à renovação urbana configurava-se em dois blocos: um preocupado

com a conservação física da cidade antiga e sua substituição por edifícios modernos e

sistemas de transporte; e outro comprometido com o lado social das intervenções, ou seja,

contra o deslocamento da população residente nas áreas de intervenção. Algumas vezes os

dois movimentos atuavam juntos, outras vezes separados, acabando por se desconectar de

vez e até a assumir lados diferentes ao longo do século XX.

A promulgação da lei Malraux na França em1962 seria o início da mudança na

ideologia da tabula rasa. A pesar de não ter apresentado força política suficiente para

barrar o episódio do Lês Halles, contribuiria para abrandar a destruição indiscriminada de

edifícios de valor histórico em operações de renovação urbana. Além disto, introduziria a

idéia de conservação de áreas urbanas pelo seu valor de conjunto (ainda sem abarcar a

preservação do tecido urbano). Entretanto, apesar de significar um avanço no arcabouço

de instrumentos voltados à preservação do patrimônio até então existentes, a lei Malraux

fundamentava-se num espírito “museal”, entendendo como resguardo a permanência

intocável dos setores salvaguardados a fim de evitar sua substituição por obras de

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renovação urbana. Com o tempo a concepção museal da lei foi sendo abrandada, da mesma

forma como foi se esfumando, por falta de bases teóricas, a sua dimensão urbanística,

especialmente no que tange o entendimento sobre “valorização”. Segundo Choay, “a noção

de valorização implícita na designação do instrumento jurídico, ´que é o plano de proteção e

de valorização´, rivaliza com a da proteção e põe a serviço de um conceito que serve para

tudo – o de desenvolvimento”. (CHOAY, 2001: 223) Esta rivalidade ficaria ainda mais

evidente nas décadas seguintes, como veremos adiante.

. Londres, Convent Garden

A renovação urbana destruidora do existente acontecia em larga escala na

Inglaterra até meados da década de 60. Entretanto, um episódio se tornaria emblemático

na Europa como vitória em relação a este modelo de intervenção: o da reurbanização do

Convent Garden, em Londres. Ao contrário do ocorrido em Paris, onde os movimentos de

oposição foram insuficientes para evitar a destruição das estruturas do antigo mercado,

em Londres a resistência da população organizada foi decisiva para mudança na forma de

intervenção sobre o patrimônio histórico. Situado na área central e cerca do famoso

Picadilly Circus, o mercado de Convent Garden teve em 1963 sua mudança determinada

como parte do projeto de renovação urbana do bairro, julgado física e socialmente

deteriorado. Em 1965 um consórcio reunindo autoridades locais começou a elaborar um

plano de desenvolvimento para o mercado incluindo uma área extensa de seu entorno,

ocupada por aproximadamente 3.300 habitantes e 1.700 pequenas empresas. (HALL,

1996:265) O projeto, finalizado em 1971, envolvia uma combinação de conservação,

particularmente na parte histórica envolta do mercado, e uma grande renovação visando

atrair investidores imobiliários como forma de pagar pelas obras, a maioria viárias. Neste

mesmo ano, no entanto, opondo-se a um tipo de intervenção já vivida com a implantação

dos projetos modernistas do pós-guerra, e neste caso com vantagens explicitamente

voltadas para os investidores imobiliários, a população forçou a instalação de um processo

de consulta popular (public inquiry). A partir de então o projeto de reformulação da área

do mercado foi desenvolvido com participação de comissões populares organizadas no

bairro, resultando na reciclagem do mercado para novos usos (lojas e restaurantes), ao

invés de sua destruição, e em um programa de recuperação do entorno.

O episódio do Convent Garden (1963/83) simbolizou a mudança nas intervenções

arrasa-quarteirão na Europa. A “ironia” neste caso, é que no final das contas, a mudança no

tipo de intervenção acabou se mostrando praticamente tão lucrativa para os investidores

quanto as grandes demolições, tendo para a população resultados semelhantes aos da

renovação urbana, apesar do impacto não ser imediato. No caso do Convent Garden, o

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comércio local foi sendo substituído por boutiques, lojas e ateliers, criando uma atmosfera

atrativa para turistas. Segundo o comentário de um dos líderes no movimento contra a

renovação: “uma mercearia ou um simples bloco habitacional podem ser destruídos por

meios diferentes que sob tratores...a padaria local vira um estúdio profissional, o café barato

vira um restaurante, o quadro de dardos é removido do bar que gradualmente vende mais

gins e sodas”. (ANSON, 1981 Apud HALL, 1996: 266)

Nos Estados Unidos os movimentos contra as operações de renovação urbana se

organizaram mais cedo, tendo grande destaque em cidades como Nova Iorque e São

Francisco. Uma das atuações de maior relevância, que viria a influenciar as mudanças no

pensamento corrente sobre este tipo de intervenção, foi a da jornalista Jane Jacobs, em

Nova Iorque.

Moradora de Greenwich Village, Jacobs mobilizou a opinião local após saber das

intenções de demolição do bairro presente nos planos de Robert Moses - figura de

destaque no programa de urban renewal - a fim de barrar as obras. Vitoriosa, acabou

publicando um dos livros mais conhecidos da história do planejamento urbano, The death

and life of great american cities (1961). Sua pregação contrapunha-se às obras de

renovação que teriam como resultado a descaracterização da vida urbana local com a

construção de novos edifícios sem nenhuma ligação com a área ou com a comunidade.

Segundo a autora, a “grande influência maligna da estupidez” que direcionara a construção

da cena urbana a partir de 1945 (os alvos principais de seus ataques eram Ebenezer

Howard e Le Corbusier, incluindo planejadores urbanos, formuladores de políticas

federais e financeiras etc) tinha como base a “incompreensão do que são as cidades” e de

sua diversidade. Havia, na visão de Jacobs, “alguns processos de mercado em ação que

tendiam a contrariar a afinidade humana ´natural´ com a diversidade e a produzir uma

rígida conformidade de usos da terra. Mas esse problema tinha a grande contribuição da

maneira como os planejadores se declararam inimigos da diversidade, temendo o caos e a

complexidade por considera-los desorganizados, feios e irremediavelmente irracionais”.

(HARVEY, 1992: 75-76) Para Jacobs, a solução estava na mistura de usos, formas e

funções, de modo que num mesmo bairro existissem pessoas que estivessem lá por

diferentes propósitos, em horários diferentes, mas utilizando serviços e espaços em

comum. Mal sabia Jane Jacobs que a defesa da diversidade se tornaria, vinte anos depois, a

base para a “yupificação”2 da cidade. Apesar de não terem se tornado visão dominante, as

idéias de Jacobs influenciaram urbanistas mundo afora, contribuindo para uma mudança

de visão da classe média em relação aos bairros antigos. Se por um lado contribuiu para a

2 Expressão de P. Hall (1996), para designar o resultado da atuação de uma classe de jovens profissionais da gentrificação urbana.

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preservaçao da diversidade urbana em certas areas, por outro acabou ajudando os

empreendedores imobiliários, como veremos adiante.

3. A Intervenção na cidade existente ou Revitalização Urbana

Durante a década de 60, a concepção sobre a intervenção nos centros históricos foi

se modificando, a metodologia de renovação urbana foi perdendo progressivamente sua

importância política e maior ênfase passou a ser dada para procedimentos de reabilitação

de edifícios antigos e intervenções renovadoras de menor porte.

Particularmente nas cidades da Europa, onde o êxodo da classe média e alta para

os subúrbios não fora tão intenso como no continente americano, uma série de fatores

mobilizariam um movimento de retorno ao centro, intensificado durante as décadas de 70

e 80.

Segundo Portas (1985), este movimento foi decorrência de fatores como: a

ampliação do conceito de patrimônio arquitetônico; a tomada de consciência dos órgãos

governamentais sobre os ganhos econômicos do aproveitamento do estoque construído

para produção habitacional; a mobilização dos movimentos sociais opondo-se à

erradicação das famílias existentes a pretexto de melhorar as condições ambientais; e a

crise entre os profissionais da área após a decepção com os resultados das intervenções

dos anos 60. (PORTAS, 1985: 9) Some-se a estes aspectos o desenvolvimento da indústria

do turismo e a crescente abertura à participação do setor privado nos programas

habitacionais voltados para classe média.

Uma experiência de grande importância neste processo foi a realizada no centro

histórico de Bologna, na Itália, a partir do final dos anos 60. A partir de então, novos

métodos para intervenção em áreas centrais passariam a caracterizar as políticas voltadas

para os centros históricos em várias cidades do mundo, especialmente da Europa.

. Bologna e a Conservação Integrada (CI)

A experiência realizada em Bologna, a partir de 1969, introduziu mudanças nas

formas de atuação com o patrimônio e com a população residente em centros históricos. A

idéia de preservação física e social foi central neste episódio. O caso de Bologna tornou-se

exemplar por romper com uma visão tradicionalista de preservação do patrimônio com

atuação restrita aos conjuntos salvaguardados e/ou monumentais, estendendo o princípio

da recuperação ao conjunto do tecido urbano. Um aspecto decisivo neste caso foi a relação

política estabelecida com a intervenção na cidade; a reabilitação do centro histórico fazia

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parte da elaboração e implantação do plano diretor, na época conduzido por políticos e

administradores ligados às demandas da população. Todos os aspectos do planejamento

da intervenção foram inspirados pelos mesmos princípios: o crescimento da cidade deve

ser limitado e controlado pelas autoridades públicas com o máximo aproveitamento da

legislação existente; é necessário equilibrar residência e equipamentos públicos;

participação e democracia devem ser priorizadas e desenvolvidas. (BANDARIN, 1979:

188) Vinculados a estes princípios, Francesco Bandarin (1979) destaca três aspectos

fundamentais para compreensão do sucesso da experiência de Bologna: a condução do

crescimento da cidade no período pós-guerra; a implantação de um sistema decisório

descentralizado, baseado na formação de conselhos comunitários articuladores da

administração municipal no bairro, com poder de decisão; e a formação de uma nova

metodologia de atuação no centro histórico, que consistia em duas partes: i) a definição de

critérios a serem seguidos para adaptação da tipologia arquitetônica às necessidades da

vida moderna, sem destruir as características originais do centro; ii) o estabelecimento do

princípio de que conservação também significa conservação cultural, ou seja, preservar a

população residente e sua cultura.

Nesta época a população foi deslocada somente durante as obras, retornando ao

centro após a finalização da recuperação. Cabe frisar, contudo, que os procedimentos

visando a manutenção da população foram eficientes na época da intervenção, não

perdurando, no entanto, durante os anos seguintes, quando as mudanças na orientação

política do país contribuíram para a ocorrência do mesmo processo de troca de atividades

e população comum em outros centros recuperados.

Bologna, Itália

Da experiência italiana se originaria o conceito de “Conservação Integrada”,

integrando desenvolvimento urbano com conservação do patrimônio em geral e

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participação popular. Os princípios da Conservação Integrada, dirigida para áreas

históricas centrais com grande concentração de população de baixa renda, orientavam a

recuperação da estrutura física, econômica e social das áreas de intervenção, associada à

manutenção dos antigos habitantes nos edifícios recuperados.

Esta nova metodologia, privilegiando a “intervenção na cidade existente”, rompeu,

segundo o urbanista Nuno Portas, com a concepção dominante de renovação urbana via

substituição sistemática da edificação antiga das áreas centrais, e com o conceito de centro

histórico classificado, “limitado a certos episódios de patrimônio arquitetônico e objeto de

medidas de conservação e restauro que não tinham cuidado de outras dimensões econômicas

e sociais do sistema urbano”. (PORTAS, 1985: 9)

Segundo Portas, por “intervenção na cidade existente” deveriam ser entendidas as

iniciativas do poder público ou de setores privados que visem a reestruturação ou

revitalização funcional do tecido urbano (atividades e redes de serviços); a sua

recuperação ou reabilitação arquitetônica (edificação e espaços não construídos,

designadamente os de uso público); e a sua reapropriação social e cultural (grupos sociais

que habitam ou trabalham em tais estruturas, etc.). Sendo assim, a nova política de

intervenção deveria tomar como “dado econômico e cultural a estrutura e forma da cidade,

dos seus bairros e centros, dos seus edifícios, ruas ou quintais” e como “dado social a trama

das relações sociais e de atividades que aquelas estruturas físicas suportam e refletem”.

(PORTAS, 1985: 8)

Portas também chamava a atenção para uma gama de conflitos que ocorrem em

tipos de intervenção como este, similares, em verdade, aos das intervenções de renovação

urbana. A diferença seria que, se na renovação urbana estes não eram levados em

consideração, agora não deveriam ser subestimados. Dentre eles, Portas chamava a

atenção para o aumento do valor imobiliário resultante da reabilitação, que repercutindo

nos aluguéis se contraporia às intenções de proteger as famílias residentes nas áreas de

intervenção – um tipo mais “brando” de expulsão da população. Por outro lado, ao mesmo

tempo em que o patrimônio e a população deveriam ser protegidos, Portas questionava o

isolamento dos locais reabilitados do mercado ao limitá-los estritamente para a população

local. Reconhecendo os efeitos nocivos do abandono de operações como estas à dinâmica

do mercado – que, ainda por cima com subsídios ficais ou crédito, havia erradicado a

população residente -, o urbanista remetia à possibilidade de sucesso onde o Estado se

fizer presente indicando os limites das operações. “Em termos políticos, a CI representou a

primeira grande tentativa de participação popular no processo decisório municipal,

especialmente na Itália (Bandarin, 1979) e na Espanha (Pol, 1993)”.(ZANCHETTI, 2000)

Nestes dois países os princípios da CI seriam incorporados pelas administrações

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municipais de esquerda da década de 70 como bandeira para construção de uma imagem

política de eficiência administrativa, justiça social e participação popular nas decisões do

planejamento urbano e regional.

. A revitalização urbana como proposta de revitalização econômica

Se, por um lado, a transformação da visão sobre o modo de intervenção em áreas

históricas teve como premissa alcançar modos mais orgânicos de trabalho com o tecido

urbano e social, por outro uma versão mais economicista da intervenção no existente veio

preencher uma lacuna deixada pelo declínio das formas convencionais de regulamentação

urbana. O princípio de revitalização urbana que seria desenvolvido na Inglaterra e nos

Estados Unidos nasceu fundamentado pelo vínculo entre desenvolvimento urbano e

crescimento econômico.

A raiz das mudanças era econômica. Passado o ´boom´ dos anos 50 e 60, em que o

planejamento convencional do uso da terra floresceu junto com o período de maior

crescimento da economia capitalista, a grande recessão que caracterizou os anos 70 e 80

mudaria a natureza dos problemas enfrentados pelo planejamento urbano. O

desaparecimento das indústrias manufatureiras teria como resultado, além de um alto

número de desempregados, a decadência de várias cidades européias. Neste processo, os

objetivos das políticas urbanas transcenderiam aspectos como controle e orientação do

crescimento, direcionando-se para “geração de atividades capazes de promover

crescimento” (HALL, 1996: 344). Situação semelhante ocorria nos Estados Unidos, onde

regiões tradicionalmente industriais foram atacadas pelo “vírus da competição

internacional”, queda de lucros e reestruturação econômica.

É neste contexto em que o retorno aos centros das cidades e a recuperação de seu

patrimônio passa a ser motivado por políticas voltadas para revitalização econômica,

começando pela Inglaterra. Contudo, apesar de medidas como estimulo à instalação de

novas indústrias, redirecionamento de recursos federais, expansão do programa urbano e

parcerias entre governo central e local, a economia das áreas centrais continuou em

decadência.

O mesmo direcionamento para os antigos centros foi dado nos Estados Unidos,

onde, no entanto, o incremento da já tradicional relação entre poder público e capital

privado levaria ao sucesso das empreitadas de revitalização urbana. “A receita mágica de

revitalização urbana – a expressão chave americana que começou a circular nesses meios –

pareceu consistir num novo tipo de parceria criativa, uma palavra usada incessantemente

pelos americanos, entre governo municipal e setor privado”. (HALL, 1996: 348) Tratava-se

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da plena conscientização de que os dias da economia manufatureira já eram passado, e

que o sucesso agora consistia na criação de um novo papel para a área central, conectado

ao setor de serviços. Como atrativo para uma população comodamente instalada nos

subúrbios, a idéia de um centro renovado era vendida como resgate de uma qualidade de

vida jamais encontrada num shopping center.

Para gerenciar as operações de revitalização criou-se uma classe de jovens

“profissionais da gentrificação urbana”3, ou, segundo a palavra que se consagraria nos

anos 80, os “yuppies”. A atuação destes grupos era caracterizada pela remoção da

população residente4 e pela injeção de capital em novos serviços como bares, boutiques e

restaurantes, criando uma nova dinâmica econômica para a área.

A receita perfeita, no entanto, foi mais longe em termos de ingredientes

estratégicos. Além das coalisões pró-crescimento formadas pela jovem elite dos negócios –

experts em combinar fundos públicos e privados em empreendimentos de larga escala –

uma sorte de fatores garantiu o sucesso de empreendimentos emblemáticos, como o

Baltimore Inner Habor, em Baltmore, o Quincy Market and Boston Waterfront, ambos em

Boston. Tratava-se da combinação de diferentes atividades: recreação, cultura, compras,

habitação para faixas de renda diversificadas. Estes empreendimentos também

introduziram o conceito de reabilitação e reciclagem de antigas estruturas arquitetônicas

para novos usos. Vale frisar, no entanto, que apesar da lucratividade em termos de

especulação imobiliária para os agentes privados, que também direcionavam o programa a

ser implantado, a maior porcentagem de recursos investidos vinha do governo federal, em

seguida da municipalidade, arcando o setor privado com a menor parte dos custos totais.

O resultado final era a criação de um grande cenário espetacular em que uma nova base

econômica estaria criada, apoiada na atração de milhares de turistas para o consumo da

cidade.5 A reabilitação da arquitetura vernacular, a implementação de programas

turísticos e culturais, novos hotéis e restaurantes fazem parte das atribuições que

preparam o novo local a ser consumido.

3 Tradução da expressão “urban-professional gentrifiers” usada por Peter Hall. In HALL (1996),p. 264. 4 Segundo um estudo do departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano americano, nestas operações primeiro eram retirados os idosos, depois as minorias, os locatários e a classe operária. HALL(1996), p. 264. 5 De 22 milhões de visitantes atraídos anualmente para Baltimore, 7 milhões são turistas – movimento comparável ao da Disneyworld. Idem, Ib., loc. cit. Um dos exemplos de maior relevância sobre este tipo de operação é o caso da transformação das Docklands, em Londres, que representou o maior empreendimento de revitalização urbana da Europa. Sobre isto ver HALL (1996), pp. 351-355 e HARVEY (1992).

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Inner habor, Baltmore

Estas intervenções representaram uma revolução nos padrões dos

empreendimentos de desenvolvimento urbano. A essência das parcerias já existia nos

estímulos e subsídios públicos que viabilizaram as operações imobiliárias características

da época predominada pelas políticas de renovação urbana. Neste outro tipo de

empreendimento, no entanto, as vantagens não eram apenas baseadas no lucro

imobiliário, mas numa mistura deste com os resultados econômicos das novas atividades

“culturais”, como passariam a ser cada vez mais designadas as variantes da industria do

entretenimento, e principalmente com a valorização simbólica de um lugar antes

desprestigiado entre as classes de maior poder aquisitivo.

As estratégias de valorização simbólica encontraram sucesso prioritariamente em

áreas desorganizadas pelo declínio econômico, como por exemplo áreas abandonadas pela

atividade industrial que não foram apropriadas por outros ramos do capital, por serem

consideradas sem valor para outros propósitos. Em seu livro Loft Living (1989), a

socióloga americana Sharon Zukin analisa o modo como a ocupação de antigas áreas

industriais por grupos de artistas e intelectuais que buscavam preços mais baixos e grande

vitalidade urbana funcionou como “preparação de campo” para revalorização imobiliária.

Alguns autores passaram a chamar os novos grupos de “pioneiros”, por sua atuação no

resgate simbólico de áreas que foram logo em seguida dominadas pelo capital imobiliário.

Os pioneiros são normalmente bem vindos e no começo não chegam a afetar o cotidiano

das áreas onde se inserem. Com o tempo, no entanto, passam a investir em sua

propriedade, reabilitando o patrimônio e diferenciando-o das condições comuns entre os

antigos moradores. Estas áreas vão assim se tornando cada vez mais atrativas para grupos

que buscam um estilo de vida “não convencional”, que mistura grande diversidade social

com preservação histórica e um toque de “modernidade”. O valor simbólico do bairro é

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revertido aos olhos de uma classe com maior poder aquisitivo. Os edifícios desvalorizados

vão sendo adquiridos por especuladores imobiliários, estes os “gentrificadores”, que os

convertem e vendem como “novo estilo de vida”. No caso de bairros como o SoHo, em

Nova Iorque, os antigos galpões industriais adaptados inicialmente de forma precária para

residência e ateliers acabaram se transformando em lofts luxuosos e caríssimos,

expulsando das redondezas a antiga população, inclusive os pioneiros. Este tipo de

processo representa um dos nichos do que Zukin conceituou como “economia simbólica”,

caracterizada - muito resumidamente - pela conexão entre símbolos culturais e capital.

(ZUKIN, 1995)

Soho em dois momentos; anos 1959 e 2000

. A criação de novas imagens urbanas

As manobras de espetacularização do espaço características dos empreendimentos

de revitalização urbana contariam cada vez mais com as mudanças ocorridas nas políticas

culturais.

Assim como ocorria no planejamento urbano, a partir do final da década de 70 as

políticas culturais foram ampliadas para compensar campos da economia; fato que se

consolidaria na década de 80, quando os objetivos estratégicos das políticas em geral

parecem transferir-se de vez das concepções sociais e políticas, levantadas em diversos

campos da sociedade desde o final da década de 60, para prioridades relacionadas ao

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desenvolvimento econômico. 6 De campo de contestação a cultura é cada vez mais

apropriada como fonte de dividendos e como capital simbólico a ser explorado pelo

mercado.

A mudança de direcionamento político rumo ao neo-liberalismo nas

administrações da maioria dos países do primeiro mundo e as crescentes pressões por

geração de recursos locais, decorrentes das descentralizações administrativas, resultaram

em cortes econômicos que tiveram como decorrências a redução dos recursos aplicados

em políticas sociais e a diminuição de medidas voltadas à inclusão cultural de minorias.

Alguns autores interpretaram a emergência das políticas culturais urbanas da década de

70 como uma forma parcial de compensação diante da “inabilidade” das autoridades locais

em manter as políticas sociais. Vista de uma perspectiva crítica, no entanto, a cultura

passou a ser utilizada pelos políticos nacionais e locais como meio de camuflar o

crescimento da desigualdade social, a polarização e o conflito entre cidades, conseqüências

da reestruturação econômica.

Aos poucos as administrações públicas foram percebendo o grande potencial da

cultura (grandes eventos, centros culturais) e dos grandes projetos arquitetônicos num

contexto de reestruturação da economia urbana. Além do peso simbólico na recuperação

de bases econômicas locais, o investimento em atividades e serviços culturais passou a ser

visto como requisito básico em cidades interessadas em conquistar seu posto na

competição originada pela mobilidade, ou "desterritorialização", do capital financeiro.

Durante os anos 80, para atração de turistas e investimentos financeiros, cidades

com diferentes posições na hierarquia urbana de seus países e continentes passaram a

utilizar as políticas culturais como meio de melhorar sua imagem interna e externa.

Projetos culturais de prestígio passaram a ser utilizados como símbolos de

renascimento, confiabilidade e dinamismo onde a existência de uma base econômica

decadente passou a motivar a busca por novas funções e nichos de reprodução do capital

(Bilbao anos 90). Em cidades com alto status econômico mas com baixa atratibilidade

internacional, o incremento das políticas culturais tornou-se meio para criação de uma

imagem de cidade cosmopolita, elegante e sofisticada (Frankfurt anos 80). Em outros

casos, o desenvolvimento destas políticas atuaria como matéria prima para o

desenvolvimento de novos setores da economia como moda, design, industria de alta

tecnologia, alimentadas pela inovação e experimentação estética. Grandes marcos

culturais foram implantados como poderosos símbolos físicos de renascimento urbano,

6 Excelentes análises já foram feitas sobre este processo. Vide, por exemplo JAMESON, F (1998). The Cultural Turn; HARVEY, David (1989). A condição pós-moderna.; ARANTES, Otília. “Uma estratégia fatal. A cultura nas novas gestões urbanas”. 2000.

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como por exemplo as estruturas da Cidade Olímpica e todas as demais intervenções

ocorridas em Barcelona por ocasião da Olimpíadas de 1992.

O marco mais representativo na história da utilização da cultura como atributo de

prestígio foi o pacote de empreendimentos arquitetônicos-culturais realizado nos anos 80

em Paris, durante o governo de François Miterrand na presidência da França. A semente já

havia sido plantada, com o Centro Georges Pompidou - construído na época da demolição

do Lês Halles, mencionado anteriormente -, sucesso tanto como “consolo” ideológico

diante das transformações ocorridas no bairro, como na atração de milhares de turistas. A

partir da década de 80, sob o mote “a Cultura é nosso petróleo e como tal deve ser

encarada”, (ARANTES, 1993: 160) foi lançado um pacote de Grandes Projetos, unindo

arquitetura espetacular e cultura: o Museu d´Orsay, o Museu de Ciência e Tecnologia no

Parque La Villette, a Pirâmide do Louvre, o Instituto do Mundo Árabe, a Ópera da Bastille.

Para elaboração destes projetos foram convocados arquitetos de renome na arquitetura

internacional, gerando uma grande movimentação no meio, naquele momento com suas

atenções inteiramente voltadas para Paris. Em conseqüência, como marcou Arantes

(1993), uma grande animação invadiu o campo da arquitetura na França, relacionada, por

um lado, à vinda para o país “do que de melhor havia no ramo”, e por outro, à força

transformadora que os Grandes Projetos exerceram no entorno, levando à recuperação e

reconstrução de sua vizinhança. Nesta dinâmica a arquitetura acabava assumindo papel de

maior destaque, concorrendo com a arte à qual dá abrigo.7

Parque la Villete Museu do Louvre

7Este episódio que aparece aqui como exemplo resumido é exemplarmente analisado pela filósofa Otília Arantes no texto citado, destacando-se aspectos como o significado destas obras no contexto francês; o papel instrumental crescentemente atribuído à cultura, à arquitetura e à valorização do patrimônio (“o passado cultural é oferecido em espetáculo”,p.199).

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Embora datados, os processos mencionados neste texto tiveram diversas

ramificações e foram reproduzidos como modelos em vária cidades do mundo.

As preocupações e procedimento levantados nas cidades italianas, por exemplo,

contribuiram para criação de metodologias como a que se viu na década de 90 em

Portugal, na reabilitação do centro de Lisboa,8 e mesmo no Brasil, na elaboração de

programas como os Perímetros de Reabilitação Integrada do Habitat (Prih), em São Paulo

nos anos 2000. Projetos que tiveram como eixo condutor o trabalho com a realidade local,

tendo em vista combinar a melhoria urbana, geração de renda, preservação do patrimônio

e a permanência da população residente nas áreas reabilitadas.

Entretanto, o que se tem observado via de regra, especialmente a partir de meados

dos anos 90 com o crescimento do neoliberalismo, é a contínua repetição dos mesmos

jargões nos planos de intervenção em setores consolidados das cidades, históricos ou não.

São definidos os planos estratégicos, fundamentados nas parcerias entre setor público e

setor privado, privilegiando a criação de atmosfera propícia para a realização de bons

negócios. Além dos planos elaborados pelas administrações locais, em parceria com os

setores de capital mais próximos, estão aí as Olimpíadas, Copas do Mundo, Jogos

Panamericanos, motivadores de verdadeiras renovações urbanas, executadas agora por

coalizões que mesclam setores de poder e capital local e internacional. Neste sentido,

apesar de anacrônico, o modelo de renovação urbana persiste como um fantasma nas

intervenções urbanas contemporâneas, seja por favorecer a valorização do espaço urbano

deslegitimando usos e configurações consolidadas, seja pela expulsão da população

residente. Muda-se a roupagem e mesmo as engrenagens que viabilizam as intervenções,

mas não a essência de uma forma de aproximação do urbano geradora de desequilíbrios

sociais e espaciais.

8 Sobre ela ver LOPES, Felipe. A Reabilitação Urbana em Lisboa. In ZANCHETI, Sílvio Mendes (org). Estratégias de Intervenção em Áreas Históricas. Revalorização de áreas urbanas centrais. Pernambuco, UFPE, 1995.

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