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ENTREVISTA VIDA JUDICIÁRIA - janeiro 2013 4 A presença da ‘troika’ em Portugal e o memorando de entendimento que com ela foi firmado no ano de 2011 deu “conti- nuidade” a uma “política de flexibilização” que já vinha de trás, nomeadamente em matéria da legislação laboral e de direitos sociais, convertendo o direito do trabalho numa “mera formalização das leis do mercado”. Em entrevista à “Vida Judiciária” por al- tura da reedição do seu livro “A Exceção de não cumprimento do contrato”, José João Abrantes, docente da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e especialista em Direito do Trabalho, diz que “as empresas não podem pensar que a falta de competitividade da economia se deve à legislação do trabalho”, mas também não deixa de apontar a “falta de representatividade sindical” e o facto de as duas centrais sindicais (CGTP e UGT) em Portugal adotarem “estratégias dife- rentes” na forma de lidar com os mesmos problemas. Rejeitando a ideia de que flexibilizar as leis do trabalho traz mais competitividade ao país, José João Abrantes não tem dúvidas: “é impossível que a aposta numa política baseada na compressão de custos sociais venha a produzir bons resultados”. Para este especialista, “o remédio mais eficaz para o desemprego é o crescimento económico”. Vida Judiciária - Acaba de publicar o seu livro “A Exceção de não cum- primento do contrato”, que resulta, creio, também, da sua tese e de ou- tras reflexões. Como especialista em Direito do Trabalho e professor uni- versitário nessa área, como olha para esta vertente do Direito hoje em dia? José João Abrantes - Em primeiro lugar, apenas um esclarecimento acerca do livro em causa. O livro reúne a minha tese de mestrado, publicada em 1986, que constitui um ensaio sobre a exceção de não cumprimento no plano do direito privado geral, do direito civil, e dois textos posteriores nos quais versei as aplicações desse instituto nos contratos de trabalho e de empreitada. Não tem, pois, de facto, a ver com a minha tese de doutoramento, essa, sim, especificamente virada para a temática dos direitos fundamentais dos trabalhadores e a sua relevância no qua- dro do contrato de trabalho. Mas, de qualquer modo, esta segunda edição da obra, agora publicada, tem uma parte dedicada ao contrato de trabalho, onde a exceção de não cumprimento assume caraterísticas muito próprias, que são bem demonstrativas dos vetores próprios deste ramo do direito, um seg- mento do ordenamento jurídico de feição protecionista. O que me permite passar para a sua pergunta acerca do direito do trabalho hoje em dia. VJ – Sim, como olha para esta área do Direito? JJA - Trata-se de um ramo do ordenamen- to que, no meu entender, continua – talvez até mais do que nunca – a fazer todo o sentido, porque os pressupostos que es- tiveram na sua génese ainda se mantêm, no essencial. Hoje como ontem, a relação laboral é uma relação de poder-sujeição, TERESA SILVEIRA [email protected] José João Abrantes, docente da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, alerta “As empresas não podem pensar que a falta de competitividade da economia se deve à legislação do trabalho”

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A presença da ‘troika’ em Portugal e o memorando de entendimento que com ela foi firmado no ano de 2011 deu “conti-nuidade” a uma “política de flexibilização” que já vinha de trás, nomeadamente em matéria da legislação laboral e de direitos sociais, convertendo o direito do trabalho numa “mera formalização das leis do mercado”.Em entrevista à “Vida Judiciária” por al-tura da reedição do seu livro “A Exceção de não cumprimento do contrato”, José João Abrantes, docente da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e especialista em Direito do Trabalho, diz que “as empresas não podem pensar que a falta de competitividade da economia se deve à legislação do trabalho”, mas também não deixa de apontar a “falta de representatividade sindical” e o facto de as duas centrais sindicais (CGTP e UGT) em Portugal adotarem “estratégias dife-rentes” na forma de lidar com os mesmos problemas.

Rejeitando a ideia de que flexibilizar as leis do trabalho traz mais competitividade ao país, José João Abrantes não tem dúvidas: “é impossível que a aposta numa política baseada na compressão de custos sociais venha a produzir bons resultados”. Para este especialista, “o remédio mais eficaz para o desemprego é o crescimento económico”.

Vida Judiciária - Acaba de publicar o seu livro “A Exceção de não cum-primento do contrato”, que resulta, creio, também, da sua tese e de ou-tras reflexões. Como especialista em Direito do Trabalho e professor uni-versitário nessa área, como olha para esta vertente do Direito hoje em dia? José João Abrantes - Em primeiro lugar, apenas um esclarecimento acerca do livro em causa. O livro reúne a minha tese de mestrado, publicada em 1986, que constitui um ensaio sobre a exceção de não cumprimento no plano do direito privado geral, do direito civil, e dois textos posteriores nos quais versei as aplicações desse instituto nos contratos de trabalho

e de empreitada. Não tem, pois, de facto, a ver com a minha tese de doutoramento, essa, sim, especificamente virada para a temática dos direitos fundamentais dos trabalhadores e a sua relevância no qua-dro do contrato de trabalho.Mas, de qualquer modo, esta segunda edição da obra, agora publicada, tem uma parte dedicada ao contrato de trabalho, onde a exceção de não cumprimento assume caraterísticas muito próprias, que são bem demonstrativas dos vetores próprios deste ramo do direito, um seg-mento do ordenamento jurídico de feição protecionista. O que me permite passar para a sua pergunta acerca do direito do trabalho hoje em dia.

VJ – Sim, como olha para esta área do Direito?JJA - Trata-se de um ramo do ordenamen-to que, no meu entender, continua – talvez até mais do que nunca – a fazer todo o sentido, porque os pressupostos que es-tiveram na sua génese ainda se mantêm, no essencial. Hoje como ontem, a relação laboral é uma relação de poder-sujeição,

TERESA SILVEIRA

[email protected]

José João Abrantes, docente da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, alerta

“As empresas não podem pensar que a falta de competitividade da economia se deve à legislação do trabalho”

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“A verdade é que, muitas vezes, a concertação social tem sido utilizada no nosso país como um álibi para os governos e as maiorias parlamentares, não servindo senão para, como diz, aqueles fi carem bem na fotografi a”, constata José João Abrantes.

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em que a liberdade de uma das partes é suscetível de ser feita perigar pelo maior poder da outra e por isso o direito do tra-balho continua a justificar-se, com a sua função social de reequilibrar uma relação originariamente desequilibrada.O grande desafio que se coloca ao direito do trabalho é o de encontrar soluções que garantam tanto a liberdade de empresa como os direitos do trabalhador, que não podem ser totalmente sacrificados aos interesses empresariais. Perante esse desafio, o Estado – o Estado de direito democrático, de que fala a lei fundamental e que, de acordo com a mesma, é baseado na dignidade da pessoa humana – não pode ser neutral, precisamente porque o que está em causa é, em última aná-lise, essa própria dignidade da pessoa humana.Por isso, o direito do trabalho continua, hoje como ontem, a fazer todo o sen-tido. Aliás, quando olhamos para a sua evolução, do liberalismo à atualidade,

vemos que, agora, mais do que novos problemas, há os mesmos problemas de sempre. Está em causa, como sempre esteve, a defesa dos mais fracos, dos mais desfavorecidos – que deve ser uma das funções do Estado, em consonância, aliás, com os ideais humanistas, que procla-mam a necessidade de cada um realizar a solidariedade que devemos aos nossos semelhantes, particularmente àqueles que não têm voz e não têm vez nesta sociedade profundamente desigual em que vivemos.Há, de facto, valores cuja prossecução não pode ser confiada ao mercado e o primeiro desses valores é a dignidade da pessoa humana, a dignidade que cada ser humano, pelo simples facto de o ser, possui. É isso que, hoje, como sempre, está em causa no direito do trabalho e, por isso, ele ainda faz todo o sentido. VJ - não crê que estejamos a assistir a um certo esvaziamento do Direito

do Trabalho em Portugal e/ou à sua deturpação?JJA - Creio que sim. De algum modo, é isso que se passa. Há uma subversão dos princípios e valores fundamentais da regulamentação jurídica tradicional deste ramo do direito. As últimas déca-das têm assistido a grandes mudanças na política legislativa do trabalho, no sentido da chamada flexibilização das leis laborais. Certas correntes de pensamento entendem que o que compete ao direito laboral é, fundamentalmente, garantir a flexibilização e a diminuição dos custos laborais, se necessário mesmo à custa da própria estabilidade da relação e dos direitos dos trabalhadores. Pretende-se, no fundo, converter o direito do trabalho numa mera formalização das leis do mer-cado. A verdade é que essas correntes têm influenciado instituições como a Comissão Europeia, a OCDE e o Banco Mundial. Invocando a desnecessidade de proteção do trabalhador e a rigidez das

“É natural que os trabalhadores e os sindicatos encarem com receio e desconfiança as referências à flexibilidade, porque esta tem sido entendida pelos setores empresarialistas de forma unilateral, identificando-seapenas com prerrogativas de gestão”, explica este especialista em Direito do Trabalho.

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leis laborais, preconizam o enfraqueci-mento dos direitos individuais e coletivos dos trabalhadores.Ora, não só não é correto responsabilizar as leis do trabalho pelo deficiente funcio-namento do aparelho produtivo como não é verdade que a essência e a função social deste ramo do direito tenham per-dido a razão de ser.Se não se pode deixar de concordar com a adaptação de algumas normas legais a novos condicionalismos, que são em si perfeitamente compatíveis com a filosofia tradicional deste ramo do direito, já mere-cerá censura, segundo cremos, tudo o que conduza a uma subversão dos princípios fundamentais da sua regulamentação jurídica tradicional. Há necessidade de achar soluções que garantam tanto a li-berdade de empresa como os direitos dos trabalhadores – tanto a eficácia produtiva como o reconhecimento desses direitos. Como disse atrás, o direito do trabalho continua a fazer sentido – hoje talvez até mais do que nunca. VJ - Admite que, a prosseguir este es-vaziamento, possamos vir a assistir à reformulação dos currículos dos cursos de Direito em Portugal e à eventual supressão desta Cadeira e à sua aglu-tinação numa qualquer outra? Ou isto não faz qualquer sentido?JJA - Acho que a questão que está a colo-car tem a ver com o poder considerar-se que este ramo do direito apenas teria uma mera autonomia sistemática – e não, tam-bém, dogmática –, que, no fundo, ele não passaria de um sub-ramo do direito civil.Há sintomas preocupantes, por exemplo, na minha própria Faculdade, em que há uma só cadeira (semestral), e facultativa, de direito do trabalho. Mas isto é uma constante, desde sempre. Tal como a própria história do direito do trabalho, também a história do seu ensino tem sido uma história sofrida, feita de sangue, suor e lágrimas. Repare-se que, num contraste absoluto com a sua indesmentível im-portância teórica e prática, este ramo do direito só muito tarde, já depois do 25 de Abril, obteve a atenção das Faculdades de Direito.Ora, isto não faz qualquer sentido. O direi-to do trabalho é muito importante tanto do ponto de vista teórico como prático. É, aliás, muito justamente considerado uma

verdadeira marca distintiva do Estado Social de Direito, já tendo mesmo sido definido como a grande invenção jurídica do século XX. Sendo particularmente sensível às trans-formações económicas, sociais e políticas, o direito do trabalho é dotado de grande dinamismo, pois constituiu desde sempre, ao longo da sua história, um laboratório para o ensaio de novas construções jurídicas e foi nele que a ciência jurídica despertou para temas hoje fulcrais, como a projeção dos direitos fundamentais nas relações privadas ou os níveis coletivos de regulação jurídica, etc. Nascido à revelia do direito civil, nele sur-giram, de uma forma pioneira, soluções e técnicas jurídicas que, depois, puderam ser ensaiadas noutras áreas, até mesmo ao nível da própria dogmática civilística. É, pois, essencial para a formação de qualquer jurista.Impõe-se, pois, que sejam tomadas medi-das que confiram a este ramo do direito todo o peso, no plano de estudos, que o seu grande interesse teórico e a sua cada vez maior importância prática o fazem merecer.

VJ - Tem havido, nos últimos anos, so-bretudo desde o primeiro Código do Trabalho (Lei 99/2003, de 27 de agosto), inúmeras mexidas nas leis laborais em Portugal, o que se tem acentuado nos ano 2011 e 2012. Que consequências decorrem para o ensino do Direito do Trabalho estas alterações, no que a alunos e professores diz respeito?JJA - É evidente que as consequências são contrárias ao que seria de desejar, com uma grande instabilidade (também) a nível do ensino, a desatualização das leis, a não consolidação do pensamento e da dogmática. Acho, aliás, que, em Portugal, se legisla de mais, não só, mas também, neste ramo do direito. Ora, isto não faz sentido. Penso que mais impor-tante do que estar sempre a modificar leis é torná-las efetivas, porque, falando especificamente do mundo laboral, o não cumprimento da legislação prejudica não só os trabalhadores como as próprias empresas cumpridoras, precisamente por causa do desnível de custos sociais, que beneficia as infratoras.

VJ - E que consequências decorrem

para os tribunais e para a fixação de jurisprudência?JJA - Com os tribunais e a jurisprudência, passa-se exatamente o mesmo que acabei de referir. Acrescentaria até que os efeitos se estendem a todos os operadores judi-ciários e a todos aqueles que atuam no mundo trabalho. A proliferação excessiva de leis e a não consolidação do pensamen-to e da dogmática afeta a todos.

VJ - As empresas são também afetadas pelas mudanças sucessivas na legisla-ção laboral. Admite que possa estar em causa uma boa aplicação prática das leis do trabalho?JJA - Como já disse, as empresas que cumprem a lei também são prejudicadas. Aliás, julgo que, quando muitas vezes se contrapõem as necessidades de gestão das empresas e da competitividade da economia à legislação laboral, isso é um falso problema. Pelo contrário, o fator humano deve ser o fator principal a ser tido em conta nessa gestão das empre-sas. Não penso que o problema possa ser visto de outra forma que não seja olhar a motivação dos trabalhadores como algo essencial para o bom funcionamento do aparelho produtivo.Isto é também uma questão cultural. As empresas não podem pensar que a falta de competitividade das empresas e da economia em geral se devem à legislação do trabalho. Não me digam que não se consegue gerir as empresas por causa das garantias e dos direitos dos trabalhadores.

“Julgo que um dos problemas maiores da concertação é o défice de crença dos parceiros sociais em si próprios. Os pactos sociais têm de ser pactos de confiança”, afirma José João Abrantes.

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As empresas têm que ter consciência de que o fator humano é muito importante. Por isso, só com motivação – e esta implica o respeito pelos direitos dos trabalhadores – é que se assegura um são funcionamen-to das empresas e da economia.Acho que é uma falsa questão pensar ape-nas em competitividade, produtividade e rentabilidade, esquecendo que há uma dimensão ética, social, na economia e nas empresas, que não pode ser esquecida e que, antes pelo contrário, é absolutamen-te fundamental.

VJ - Como olha para o papel da Concer-tação Social em todas estas mudanças no Direito do Trabalho nos últimos anos? O Professor Júlio Gomes dizia, numa entrevista à nossa revista há cerca de ano e meio, que a Concertação Social muitas vezes desvirtuava aquilo que os especialistas em Direito do Trabalho conseguiam. Partilha desta visão? JJA - O diálogo social é uma componente fundamental do chamado modelo social europeu e deve ser um instrumento primordial para a modernização da legis-lação laboral. A autonomia e a responsa-bilização dos parceiros sociais devem ser estimuladas, para se encontrar consensos em matérias que são decisivas para eles, os seus representados e a comunidade em geral.

Mas a verdade é que, muitas vezes, a con-certação social tem sido utilizada no nosso país como um álibi para os governos e as maiorias parlamentares, não servindo senão para, como diz, aqueles ficarem bem na fotografia.Concordo com a afirmação, que refere, do Professor Júlio Gomes. Entendo que seria possível a concertação social ter um papel mais importante do que aquele que, de facto, tem, se os parceiros sociais se preo-cupassem em obter entendimentos sobre as questões que são verdadeiramente decisivas e se falassem abertamente sobre essas questões, sem reserva mental e sem estarem, como muitas vezes acontece, em busca de algo que não tem a ver direta-mente com aquilo que deveria ser a razão da sua atuação.Julgo que um dos problemas maiores da concertação é o défice de crença dos parceiros sociais em si próprios. Os pactos sociais têm de ser pactos de confiança, correspondendo a uma contratualização das responsabilidades e dos riscos sociais a partilhar pelos parceiros duma forma solidária. Veja-se, por exemplo, o exemplo tão negativo que podemos encontrar na chamada “lei das 40 horas” – que, aliás, também é bem demonstrativa de outros riscos de perversão do diálogo social. Des-de logo, o risco de que este possa conflitu-ar com alguns dos princípios do Estado de direito democrático, como, por exemplo, o facto de os acordos envolverem muitas vezes, não o desenvolvimento e imple-mentação de leis, mas sim programas legislativos mais ou menos vastos, que depois o parlamento se limita a ratificar, e o facto de a concertação social ser mui-tas vezes instrumento de transferência e diluição de responsabilidades. VJ - Como analisa o desempenho das duas centrais sindicais (CGTP e UGT) em tudo isto?JJA - Têm revelado estratégias diferentes na forma de lidar com problemas comuns, que têm a ver com o ataque aos direitos dos trabalhadores e a própria crise por que passa o sindicalismo.Julgo absolutamente compreensível que, hoje em dia, as estruturas representativas dos trabalhadores revelem receios, que, no meu entender, são fundados, sempre que se perspetivem novas mudanças na legislação do trabalho, porque a ten-

dência acaba por ser sempre a mesma, ir sempre no mesmo sentido da flexibiliza-ção e da desregulamentação das relações de trabalho.Certos setores da nossa sociedade, de-signadamente os mais ligados aos meios empresariais, encaram qualquer reforma da legislação laboral como a hipótese de uma subversão do ordenamento jus-laboral, com a destruição da sua feição garantística, daquilo que corresponde à sua efetiva função social e à sua essência, e a sua substituição por aquilo que, no fundo, mais não seria que um direito civil do trabalho, baseado fundamentalmen-te nas ideias de autonomia da vontade e liberdade contratual, entendidas em sentido liberal, permitindo-se que tudo seja estipulado no contrato a pretexto do consenso das partes. Face a isto, é natural que os trabalhadores e os sindicatos encarem com receio e desconfiança as referências à flexibilidade, porque esta tem sido entendida pelos se-tores empresarialistas de forma unilateral, identificando-se apenas com prerrogati-vas de gestão, quando a flexibilidade não tem necessariamente de ser entendida nesse sentido restrito.Acho, aliás, que tudo isto parte de um grande problema de base, que é a res-ponsabilização do direito do trabalho pelo deficiente funcionamento do aparelho produtivo e da economia. A legislação do trabalho, com a sua feição tradicional, não pode ser responsabiliza-da, nem em exclusivo, nem sequer tam-bém principalmente, pelas deficiências do aparelho produtivo e da economia. Este ramo do direito não pode ser sen-tado no banco dos réus dos problemas da economia e da sociedade em geral. Como penso que já demonstrei atrás. Mas a verdade é que, como também já disse, tem sido uma tal conceção que tem dominado o pensamento de instituições como a própria Comissão Europeia, a OCDE e o Banco Mundial. A avaliação da legislação laboral que vem sendo regularmente publicada por algumas destas organizações carateriza a legislação do trabalho portuguesa como um sistema formalmente muito rígido, que dificultaria a adaptação das empresas aos ciclos económicos e criaria obstáculos desnecessários à inovação empresarial e social.

“Não há, na realidade, essa rigidez da legislação laboral, desde logo, porque, pura e simplesmente, a legislação não é cumprida. Esse, sim, é o problema maior – a inefectividade do direito”, adverte José João Abrantes.

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Mas as relações laborais no nosso país não são, de facto, assim tão rígidas. Aliás, como é que a legislação laboral pode ser tão rígida se, de facto, se batem recordes de precarização?

VJ – A legislação laboral em Portugal não é rígida? JJA - Não há, na realidade, essa rigidez, desde logo, porque, pura e simplesmente, a legislação não é cumprida. Esse, sim, é o problema maior – a inefectividade do direito, com o trabalho atípico, o falso trabalho “independente” e tudo aquilo que podemos designar como a fuga para o direito comum, para o direito civil, etc.Além do mais, está provado por estudos sérios e rigorosos, alguns dos quais até produzidos no seio de algumas daquelas organizações que referi, que não há uma ligação direta entre flexibilidade laboral e promoção do emprego.Mas, com tudo isto, estava a desviar--me da sua pergunta, sobre as posições assumidas pelas organizações sindicais. De qualquer forma, o que queria salientar era que compreendo o receio das mes-mas perante a evolução atual do direito laboral e das suas reformas face à preva-lência deste pensamento da necessidade de uma legislação mais flexível e menos proteccionista.

VJ - E como vê as clivagens existentes entre as duas centrais sindicais?JJA - Reagem de forma diferente, o que eu acho que tem a ver, desde logo, natural-mente para além das diferentes conceções sindicais, políticas e ideológicas de cada uma delas, com a representatividade e o peso social de cada uma dessas centrais.

VJ - A última e talvez maior manifes-tação em Portugal dos últimos anos foi a 15 de setembro de 2012 e não foi convocada por nenhuma das centrais sindicais, mas sim pelo Facebook. Os cidadãos estão ávidos de novas formas de participação cívica?JJA - Acho que sim. Há, de facto, uma grande desconfiança dos cidadãos face aos mecanismos próprios da representa-ção política, tal como, também, da repre-sentação sindical, por exemplo.

VJ - As taxas de sindicalização em Por-tugal estão também a decair. Quais são

as principais razões deste afastamento dos trabalhadores?JJA - A tal desconfiança, de que mesmo agora falava. De que os próprios sindicatos também são culpados. O que, contudo, não nos pode fazer esquecer os ataques que têm sido movidos a essas estruturas representativas dos trabalhadores.Ainda agora, e refiro isto, porque terá passado despercebido à generalidade da opinião pública, uma Resolução do Conselho de Ministros, de outubro, de-finiu critérios restritivos para a extensão das convenções coletivas, satisfazendo uma exigência da “troika” – que, desde o início, definira como prioritária a adoção de medidas restritivas do uso das portarias de extensão, com o objetivo de impor uma moderação salarial, dado os aumentos se-rem uma das matérias mais presentes na contratação coletiva. Ora, essas portarias são importantes para a estabilidade e a paz social e para o desenvolvimento da economia e a introdução dessas limita-ções à sua publicação poderá, para além disso, condenar a contratação coletiva, ao limitar a influência das associações sindicais e empresariais. Isto é apenas um aspeto parcelar de toda uma política de desvalorização da contratação coletiva e de deslegitimação dos sindicatos e dos parceiros sociais em geral, que está em contradição com aquilo que em palavras é apregoado pelo Governo. Repare-se que, inclusivamente, a introdução destes critérios foi contestada, não só pelos sindicatos como também pelas próprias confederações patronais com assento na concertação social.

VJ - O que precisaria de mudar, nas mentalidade e nos sindicatos, para que houvesse outra aproximação e partici-pação na vida sindical?JJA - Como disse antes, os sindicatos também têm as suas culpas na situação. Penso que o essencial terá a ver com o problema geral da não identificação entre representados e representantes. No fundo, é a questão da desconfiança relativamente aos mecanismos próprios da representação. Se os sindicatos se pau-tarem pela transparência e pelo apego à verdade e ao rigor, conseguindo transmitir aos trabalhadores a ideia de que a sua atuação tem por norte única e exclusiva-mente a defesa dos seus interesses, então

estarão a dar passos positivos para que essa aproximação se processe.

VJ - Que reflexos tem para Portugal e para a nossa legislação do trabalho a presença da ‘troika’ no país e o memo-rando de entendimento que com ela foi assinado?JJA - Creio que, em primeiro lugar, haverá que anotar uma linha de continuidade com a política de flexibilização de que falava atrás – agora, sem dúvida alguma, mais radical e mais agressiva do que anteriormente. Na sequência do Memo-randum assinado com a “troika” em 2011 e do Compromisso para o Crescimento, Competitividade e Emprego, celebrado na Comissão Permanente de Concertação Social em Janeiro de 2012, há uma grande novidade, que é uma mexida profunda ao nível das próprias soluções normativas concretas.Olhe-se, por exemplo, para as substanciais modificações legislativas introduzidas pela Lei 23/2012, de 25 de Junho. Facil-mente, poderemos descortinar que o sentido do diploma obedece à lógica, que temos vindo a criticar, de que é preciso diminuir os custos laborais e os direitos de

“Certas correntes de pensamento entendem que o que compete ao direito laboral é, fundamentalmente, garantir a flexibilização e a diminuição dos custos laborais, se necessário mesmo à custa da própria estabilidade da relação e dos direitos dos trabalhadores”

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quem trabalha. Em qualquer uma das qua-tro áreas fundamentais abrangidas, desde a organização do tempo de trabalho, passando pela fiscalização das condições de trabalho e a cessação do contrato por motivos objetivos, até ao regime aplicável aos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, isso é bem visível.Muitos aspetos poderiam ser trazidos à colação, todos demonstrando que se continua a apostar num modelo de flexibi-lidade identificada com a compressão de custos sociais e, consequentemente, redu-zida à precarização dos vínculos laborais, à adaptabilidade dos horários de trabalho e à mobilidade. Mais, aproveita-se a crise como oportunidade para retirar direitos sociais e proceder a um “ajuste de contas” com as conquistas dos trabalhadores ao longo das últimas décadas.O Governo, custe o que custar, como tantas vezes repete, prossegue numa via que privilegia a diminuição dos custos laborais e a redução dos direitos dos trabalhadores, mesmo que para isso se viole a Constituição, como nos parece que acontece com algumas das alterações mencionadas.De estranhar é que alguns juristas, nome-adamente constitucionalistas, digam, por estas ou outras palavras semelhantes, que o (único?) princípio a ter em conta é hoje o da necessidade, perante o qual todos os

outros devem ceder, ou que a situação em que estamos justifica uma adaptação das normas constitucionais que limite o seu alcance garantístico.Não é, de facto, legítimo que, em nome do combate ao défice das contas públicas, se esqueça a Lei Fundamental e com ela o próprio Estado democrático de direito, que, como se disse, impõe a reconciliação entre eficácia produtiva e direitos dos trabalhadores.

VJ - Como comenta as metas impostas a Portugal de reduzir, de forma drástica, nomeadamente, as indemnizações por despedimento e as remunerações por trabalho extraordinário?JJA - É mais uma parte da mesma receita de que tenho estado a falar. E há muita hipocrisia e até mentiras para funda-mentar a introdução dessas medidas. Por exemplo, quando se fala da busca de uma média da União Europeia no que toca às compensações por despedimento. Ou quando se refere que há países europeus onde não são pagos o 13.º e o 14.º meses e se aponta como exemplo o Reino Unido, onde os salários são pagos à semana e não ao mês. Ou quando se alega que o nosso país tem mais feriados do que a generali-dade dos países europeus, o que está por demonstrar (basta lembrar a quinta-feira da Ascensão, a segunda-feira de Páscoa, o segundo dia de Natal e outros casos de feriados nalguns desses países, que o não são em Portugal).Outra hipocrisia clara: em 2003, quando foi introduzida a majoração de férias, ela foi apontada como sendo uma das me-didas para a salvação da produtividade e da competitividade. Não deixa de ser curioso que agora essa majoração tenha sido suprimida.

VJ - Acredita numa maior competitivi-dade de Portugal e do tecido empresa-rial português por via destas mudanças na legislação do trabalho?JJA - Não, não acredito. É impossível que a aposta numa política baseada na com-pressão de custos sociais venha a produzir bons resultados. É mais do que evidente que essa não deverá ser a aposta. O remé-dio mais eficaz para o desemprego é antes o crescimento económico, que pressupõe melhor educação e formação profissional, melhor gestão das empresas, bem como

políticas ativas de emprego e de proteção social. Não há, não pode haver, produtivi-dade nem competitividade das empresas sem uma adequada organização e gestão das mesmas, sem progresso tecnológico, formação e valorização profissional, não podendo, obviamente, menosprezar--se a importância do fator humano e da motivação dos trabalhadores, do respeito pelos seus direitos, enquanto elemento essencial para o bem-estar e o dinamismo das empresas. Esses, sim, são os fatores verdadeiramente decisivos para a pro-dutividade.A crise financeira que assola a Europa é uma crise, também social, que claramente coloca a necessidade de o Velho Conti-nente conceber políticas concretas que previnam o empobrecimento e corrijam as desigualdades sociais.

VJ - O que espera que suceda à legisla-ção do trabalho em Portugal no pós--”troika”?JJA - Espero – e desejo – que as reformas legislativas sigam outros caminhos, to-talmente diferentes dos que estão a ser seguidos pelo atual Governo e pela atual maioria parlamentar. Caminhos mais ade-quados e em conformidade com aquilo que resulta da Lei Fundamental: que a questão central é o respeito pelos direitos dos trabalhadores.

“Acho que é uma falsa questão pensar apenas em competitividade, produtividade e rentabilidade, esquecendo que há uma dimensão ética, social, na economia e nas empresas, que não pode ser esquecida”

“Acho que, em Portugal, se legisla de mais, não só, mas também, neste ramo do direito [direito do trabalho]. Ora, isto não faz sentido. Penso que mais importante do que estar sempre a modificar leis é torná-las efectivas”