as comunidades negras no rio grande do norte no …

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Universidade Federal do Maranhão UFMA Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros KWANISSA Revista de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros Kwanissa, São Luís, n. 5, p. 65-84, jan/jun, 2020. 65 ISSN 2595-1033 AS COMUNIDADES NEGRAS NO RIO GRANDE DO NORTE NO SÉCULO XXI: Invisibilidade social e econômica The black communities in the Rio Grande do Norte in the 21st century: social and economic invisibility Las comunidades negras en el Río Grande del Norte en el siglo xxi: invisibilidad social y económica Geraldo Barboza de Oliveira Junior Bacharel em Ciências Socias com Habilitação em Antropologia Social (UFRN) Mestre em Antropologia Social (UFSC) Doutorado em Demografia (UFRN) [email protected] Resumo Neste artigo é mostrada a pesquisa (de cunho individual) que venho realizando desde 1987, no Rio Grande do Norte, na área de antropologia afro-brasileira, em especial, sobre comunidades negras rurais, terreiros de matriz afro-brasileira e territórios urbanos. Assim, discorro sobre o conceito de comunidades quilombolas, a questão dos quilombos no Brasil e no estado do Rio Grande do Norte e, ainda, explanando sobre a literatura regional que trata dessas populações afro-brasileiras na região. Por fim, mostramos o resultado da citada pesquisa sobre a presença de comunidades e territórios negros no Rio Grande do Norte. Palavras-Chave: Quilombolas, Rio Grande do Norte, territórios negros. Abstract This article shows the research (individual) that I have been conducting since 1987, in Rio Grande do Norte, in the area of Afro-Brazilian anthropology, especially on rural black communities, afro- Brazilian matrix terreiros and urban territories. Thus, I discuss the concept of quilombola communities, the issue of quilombos in Brazil and the state of Rio Grande do Norte, and also explaining the regional literature dealing with these Afro-Brazilian populations in the region. Finally, we show the result of the aforementioned research on the presence of black communities and territories in Rio Grande do Norte. Key words: Quilombolas, Rio Grande do Norte, black territories. Resumen En este artículo se muestra la investigación (de cuño individual) que vengo realizando desde 1987, en Rio Grande do Norte, en el área de antropología afro-brasileña, en especial, sobre comunidades negras rurales, terreros de matriz afro-brasileña y territorios urbanos. Por lo tanto, discutí sobre el concepto de comunidades quilombolas, la cuestión de los quilombos en Brasil y en el estado de Rio Grande do Norte y, además, explicando sobre la literatura regional que trata de esas poblaciones afrobrasileñas en la región. Por último, mostramos el resultado de la citada investigación sobre la presencia de comunidades y territorios negros en Rio Grande do Norte. Palabras clave: Quilombolas, Rio Grande do Norte, territorios negros.

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Page 1: AS COMUNIDADES NEGRAS NO RIO GRANDE DO NORTE NO …

Universidade Federal do Maranhatildeo ndash UFMA Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros KWANISSA ndash Revista de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 65

ISSN 2595-1033

AS COMUNIDADES NEGRAS NO RIO GRANDE DO NORTE

NO SEacuteCULO XXI

Invisibilidade social e econocircmica

The black communities in the Rio Grande do Norte in the 21st

century social and economic invisibility

Las comunidades negras en el Riacuteo Grande del Norte en el siglo xxi

invisibilidad social y econoacutemica

Geraldo Barboza de Oliveira Junior Bacharel em Ciecircncias Socias com Habilitaccedilatildeo em Antropologia Social (UFRN)

Mestre em Antropologia Social (UFSC)

Doutorado em Demografia (UFRN)

geraldobarbozantroposgmailcom

Resumo

Neste artigo eacute mostrada a pesquisa (de cunho individual) que venho realizando desde 1987 no Rio

Grande do Norte na aacuterea de antropologia afro-brasileira em especial sobre comunidades negras

rurais terreiros de matriz afro-brasileira e territoacuterios urbanos Assim discorro sobre o conceito de

comunidades quilombolas a questatildeo dos quilombos no Brasil e no estado do Rio Grande do Norte e

ainda explanando sobre a literatura regional que trata dessas populaccedilotildees afro-brasileiras na regiatildeo Por

fim mostramos o resultado da citada pesquisa sobre a presenccedila de comunidades e territoacuterios negros no

Rio Grande do Norte

Palavras-Chave Quilombolas Rio Grande do Norte territoacuterios negros

Abstract

This article shows the research (individual) that I have been conducting since 1987 in Rio Grande do

Norte in the area of Afro-Brazilian anthropology especially on rural black communities afro-

Brazilian matrix terreiros and urban territories Thus I discuss the concept of quilombola

communities the issue of quilombos in Brazil and the state of Rio Grande do Norte and also

explaining the regional literature dealing with these Afro-Brazilian populations in the region Finally

we show the result of the aforementioned research on the presence of black communities and

territories in Rio Grande do Norte

Key words Quilombolas Rio Grande do Norte black territories

Resumen

En este artiacuteculo se muestra la investigacioacuten (de cuntildeo individual) que vengo realizando desde 1987 en

Rio Grande do Norte en el aacuterea de antropologiacutea afro-brasilentildea en especial sobre comunidades negras

rurales terreros de matriz afro-brasilentildea y territorios urbanos Por lo tanto discutiacute sobre el concepto de

comunidades quilombolas la cuestioacuten de los quilombos en Brasil y en el estado de Rio Grande do

Norte y ademaacutes explicando sobre la literatura regional que trata de esas poblaciones afrobrasilentildeas en

la regioacuten Por uacuteltimo mostramos el resultado de la citada investigacioacuten sobre la presencia de

comunidades y territorios negros en Rio Grande do Norte

Palabras clave Quilombolas Rio Grande do Norte territorios negros

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Introduccedilatildeo

A desigualdade entre brancos e negros eacute hoje reconhecida como uma das mais

perversas dimensotildees do tecido social no Brasil A extensa e perioacutedica divulgaccedilatildeo de

indicadores socioeconocircmicos sob responsabilidade de organismos de estatiacutestica e de pesquisa

como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) o Instituto de Pesquisa

Econocircmica Aplicada (Ipea) o Departamento Intersindical de Estatiacutestica e Estudos

Socioeconocircmicos (Dieese) ou o Fundo de Desenvolvimento das Naccedilotildees Unidas para a Mulher

(Unifem) mostra que grandes diferenciais raciais marcam praticamente todos os campos da

vida social brasileira Seja no que diz respeito agrave educaccedilatildeo sauacutede renda acesso a empregos

estaacuteveis violecircncia ou expectativa de vida os negros se encontram submetidos agraves piores

condiccedilotildees Em algumas dessas dimensotildees as variaccedilotildees observadas ao longo do tempo no

sentido de uma reduccedilatildeo das desigualdades mostram-se modestas em alcance e lentas em sua

trajetoacuteria Em outras as desigualdades natildeo apenas continuam estaacuteveis como ateacute vecircm se

ampliando em alguns casos

A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 representa um marco na luta pela terra e cidadania dos

povos tradicionais remanescentes de quilombos pois com a inclusatildeo do artigo 681 no Ato das

Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias garante a titulaccedilatildeo das terras que estas comunidades

utilizam para sua moradia e trabalho Vale lembrar ainda os compromissos internacionais

assumidos pelo Estado Brasileiro em favor das comunidades negras desde a Declaraccedilatildeo

Universal dos Direitos Humanos que em 2008 completa 60 anos

A Constituiccedilatildeo proiacutebe qualquer forma de discriminaccedilatildeo contra uma comunidade

remanescente de quilombo ou pessoa que a integra como tambeacutem o faz em relaccedilatildeo a todos os

cidadatildeos brasileiros Da mesma forma as terras tradicionalmente ocupadas por essas

comunidades devem ter proteccedilatildeo e seguranccedila

A Convenccedilatildeo 169 da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) da qual tratamos

nesta cartilha eacute um exemplo Eacute um acordo internacional firrmado em 1989 no acircmbito da OIT

que reuacutene organizaccedilotildees de trabalhadores e empregadores no mundo No Brasil soacute foi

1 Art 68 Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras eacute reconhecida a

propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivos

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ratificada em junho de 2002 e entrou em vigor em julho de 2003 A Convenccedilatildeo 169 dispotildee

sobre direitos de povos indiacutegenas tribais e populaccedilotildees tradicionais em geral

As associaccedilotildees de remanescentes de comunidades de quilombos se incluem nesta

convenccedilatildeo por conta do artigo 68 contido nos Atos das Disposiccedilotildees Constitucionais

Transitoacuterias (ADCT) da Constituiccedilatildeo

As deacutecadas de 1980 e 1990 foram marcadas por um contexto onde o debate era

mobilizado pela questatildeo da existecircncia ou natildeo da discriminaccedilatildeo racial no paiacutes A democracia

racial ainda se colocava como um paradigma a ser questionado e o reconhecimento das

desigualdades raciais e a reflexatildeo sobre suas causas precisava se consolidar A partir de

meados dos anos 90 entretanto os termos do debate se transformaram Reconhecida a

injustificaacutevel desigualdade racial que ao longo do seacuteculo marca a trajetoacuteria dos grupos

negros e brancos assim como sua estabilidade ao correr do tempo a discussatildeo passa

progressivamente a se concentrar nas iniciativas necessaacuterias em termos da accedilatildeo puacuteblica para

o seu enfrentamento

Fazendo frente a esse conjunto cada vez mais evidente de desigualdades o debate

puacuteblico tem se intensificado assim como as iniciativas no campo das poliacuteticas de governo De

fato desde a deacutecada de 1980 um conjunto diverso de accedilotildees passou a ser implementado De

iniacutecio as proposiccedilotildees tecircm origem em governos estaduais e municipais e progressivamente

passam a ser desenvolvidas tambeacutem pela esfera federal Mas foi nos anos 2000 que as

iniciativas ganharam relevo proliferando no acircmbito do governo federal nos governos

estaduais e municipais e tambeacutem de forma autocircnoma em algumas instituiccedilotildees puacuteblicas

como as universidades e o Ministeacuterio Puacuteblico do Trabalho Programas como os de

estabelecimento de cotas visando ampliar o acesso de estudantes negros ao Ensino Superior

assim como programas de combate ao racismo institucional vecircm sendo adotados em vaacuterias

localidades do paiacutes Accedilotildees no campo da educaccedilatildeo e do mercado de trabalho tecircm sido

igualmente adotadas visando limitar a reproduccedilatildeo de estereoacutetipos e comportamentos que

afetam o acesso a oportunidades iguais e a possibilidade de seu usufruto

As desigualdades raciais no Brasil configuram-se como um fenocircmeno complexo

constituindo-se em um enorme desafio para governos e para a sociedade em geral Enfrentar

as dificuldades que se colocam face agrave consolidaccedilatildeo da temaacutetica da desigualdade e da

discriminaccedilatildeo na agenda puacuteblica e no espaccedilo de governo e integrar e ampliar as iniciativas

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em curso parecem ser hoje os grandes desafios no campo das poliacuteticas puacuteblicas para

igualdade racial

Compreendendo as desigualdades raciais como produto de um amplo e complexo

processo de reproduccedilatildeo de iniquidades e de hierarquias sociais seu enfrentamento natildeo deve

ficar restrito a accedilotildees que possam ser implementadas por um nuacutecleo especiacutefico da accedilatildeo puacuteblica

O reconhecimento da desigualdade racial e da necessidade de seu enfrentamento assim como

da eliminaccedilatildeo do preconceito e da discriminaccedilatildeo raciais pressupotildee o reconhecimento de que

esse problema perpassa os mais diferentes espaccedilos da vida social

O enfrentamento de uma questatildeo com a centralidade da temaacutetica racial que perpassa o

tecido e as relaccedilotildees sociais no paiacutes natildeo pode prescindir de uma accedilatildeo de Estado desenvolvida

mediante uma Poliacutetica Nacional que inclua a adoccedilatildeo de um posicionamento efetivo das

instacircncias governamentais e natildeo apenas a Secretaria Especial de Poliacuteticas de Promoccedilatildeo da

Igualdade Racial - SEPPIR Eacute necessaacuterio que as desigualdades raciais sejam incorporadas

como desafios em cada uma das poliacuteticas setoriais Os indicadores superiores de repetecircncia e

evasatildeo de crianccedilas negras nas escolas brasileiras aguardam serem transformados em metas

para a intervenccedilatildeo da poliacutetica de educaccedilatildeo da mesma forma que as taxas reduzidas de

cobertura de mulheres negras em exames e procedimentos de sauacutede a violecircncia policial

contra jovens negros entre inuacutemeros exemplos que podem ser citados Ministeacuterios e oacutergatildeos

setoriais aleacutem do Legislativo e do Judiciaacuterio devem ser envolvidos em uma poliacutetica que

tenha diretrizes e metas balizadoras da accedilatildeo puacuteblica sinalizando para os estados e municiacutepios

e para a sociedade sobre a importacircncia da intervenccedilatildeo governamental na busca da igualdade

racial Neste sentido as poliacuteticas puacuteblicas dependem de informaccedilotildees ndashsempre- atualizadas em

dados referentes agraves Comunidades quilombolas em seus contextos sociopoliacutetico

Neste artigo eacute mostrada a pesquisa (de cunho individual) que venho realizando desde

1987 no Rio Grande do Norte na aacuterea de antropologia afro-brasileira em especial sobre

comunidades negras rurais terreiros de matriz afro-brasileira e territoacuterios urbanos

Neste texto discorro sobre o conceito de comunidades quilombolas a questatildeo dos

quilombos no Brasil e no estado do Rio Grande do Norte explanando sobre a literatura

regional que trata dessas populaccedilotildees afro-brasileiras na regiatildeo Por fim mostramos o

resultado da citada pesquisa sobre a presenccedila de comunidades e territoacuterios negros no Rio

Grande do Norte

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A pesquisa sobre comunidades tradicionais afro-brasileiras no Rio Grande no Norte

Como recursos metodoloacutegicos foram utilizadas teacutecnicas proacuteprias da Antropologia e

da Histoacuteria De forma geral continuamos realizando uma pesquisa histoacuterico-documental com

a utilizaccedilatildeo de diversas teacutecnicas como entrevistas visita de campo e registro audiovisual

durante os trabalhos na regiatildeo

Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo da fotografia como recurso ldquoauxiliarrdquo na pesquisa

salientamos sua importacircncia aleacutem do aspecto meramente ilustrativo pois eacute sabido que

A construccedilatildeo de narrativas atraveacutes da imagem fotograacutefica vem a ser articulada com

o texto verbal e a legitimidade que este alcanccedilou contribuir no sentido de enriquecer

e agregar aleacutem de outras formas narrativas como e literatura ou a poesia

complexidade aos esforccedilos de interpretaccedilatildeo de universos sociais cada vez mais

densos e complexos onde imagens por sua vez tornam-se cada vez mais um

elemento da proacutepria sociabilidade (ACHUTTI 199738-39)

Neste trabalho entendemos a fotografia ou fotoetnografia como elemento necessaacuterio agrave

composiccedilatildeo do Relatoacuterio Antropoloacutegico Neste sentido

Parece significativa a ideia dos colegas do Nuacutecleo de Antropologia Visual da

UFRGS quando afirmam que a antropologia visual natildeo se trata de uma disciplina

independente mas ldquosim da mesma e velha antropologia de sempre poreacutem

apresentada sobre esse outro continente que eacute a comunicaccedilatildeo audiovisual Natildeo eacute

uma Antropologia da Imagem mas uma antropologia em imagensrdquo (Rodolpho et

alli 1995169) Uma antropologia em imagens poderaacute ser feita mediante o domiacutenio

das teacutecnicas de construccedilatildeo de um viacutedeo etnograacutefico de um filme etnograacutefico ou de

um trabalho fotoetnograacutefico Futuramente estaremos fazendo a ldquovelhardquo e tradicional

antropologia tambeacutem atraveacutes de uma linguagem multimiacutedia (ACHUTTI 199739)

Em termos metodoloacutegicos

A proposta aqui eacute do emprego da antropologia visual enquanto um recurso narrativo

autocircnomo na funccedilatildeo de convergir significaccedilotildees e informaccedilotildees a respeito de uma

dada situaccedilatildeo social (ACHUTTI 199713)

Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria Oral presente nos discursos e entrevistas partimos do

princiacutepio que ldquoAtraveacutes da memoacuteria individual seraacute possiacutevel recuperar a memoacuteria coletiva de

um periacuteodo sobre o qual existe muito pouca documentaccedilatildeo Essa histoacuteria aleacutem de contribuir

para um melhor conhecimento da comunidaderdquo (Becker 2001286) Assim podemos

entender em consenso que

Usando a histoacuteria oral como meacutetodo e praacutetica de pesquisa somada agraves formas

tradicionais percorreremos juntamente com nossos personagens lugares da

memoacuteria e do esquecimento para ldquoreconstruirrdquo as suas trajetoacuterias de vida tentando

assim montar um quadro histoacuterico do periacuteodo pesquisado (BECKER 2001286)

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Assim a antropologia visual e a histoacuteria oral vecircm como recurso metodoloacutegico e

teacutecnico dar maior suporte agraves pesquisas envolvendo populaccedilotildees tradicionais em particular as

comunidades negras rurais que ainda encontram-se em um processo de invisibilidade social

Para o historiador Josemir Camilo de Melo (2001189)

Quando se analisa a histoacuteria do povo negro natildeo se deve usar da mesma metodologia

que se usa para abordar a histoacuteria dos povos europeus e seus descendentes nos

troacutepicos A histoacuteria dos brancos eacute feita de documentos oficiais e particulares jaacute que

estamos tratando aiacute de uma sociedade letrada No caso dos africanos sequestrados e

trazidos para o Brasil e seus descendentes aqui nascidos e mantidos como iletrados

os documentos para estudar sua histoacuteria natildeo satildeo mais do mesmo caraacuteter ou seja

material escrito Portanto o historiador deveria proceder um desvio metodoloacutegico e

teoacuterico optando entatildeo pela etnografia e buscar a fala do povo negro nas fontes

antropoloacutegicas e etnoloacutegicas

Neste sentido optou-se por uma leitura criacutetica na literatura regional que trata das

comunidades quilombolas Para isto foram consultados textos acadecircmicos de autores locais

em eacutepocas diversas procurando ver a fala do povo negro representada nestes textos-discursos

Inicialmente percebe-se que a literatura produzida no Seacuteculo XX (mesmo a da aacuterea

antropoloacutegica) estaacute impregnada de uma visatildeo racista etnocecircntrica e comprometida com

valores regionais No Seacuteculo XXI houve uma alteraccedilatildeo substancial a inclusatildeo de acadecircmicos

militantes do Movimento Negro (mesmo que informalmente) e estudantes originaacuterios de

comunidades quilombolas

Ao fim colocamos uma listagem (atualizada em 2017) sobre as comunidades negras

localizadas no Rio Grande do Norte

Comunidades Quilombolas um conceito poliacutetico

O conceito mais atualizado para definir Comunidades Quilombolas tangencia de uma

concepccedilatildeo histoacuterica que vincula estas com lutas e fugas de escravos Este conceito eacute assim

tambeacutem entendido pelo Estado Entatildeo podemos entender que comunidades quilombolas satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo (Decreto 48872003)

Por ser um conceito definido por Decreto e com fins juriacutedicos tem uma base legal

constituiacuteda a partir da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 em seus artigos 215 e 216 da

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Constituiccedilatildeo Federal que tratam do ldquoDireito agrave preservaccedilatildeo de sua proacutepria culturardquo e

tambeacutem

Do Artigo 68 do ADCT ndash Direito agrave propriedade das terras de comunidades

remanescentes de quilombos

Da Convenccedilatildeo 169 da OIT (Dec 50512004) ndash Direito agrave autodeterminaccedilatildeo de Povos e

Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 4887 de 20 de novembro de 2003 ndash Trata da regularizaccedilatildeo fundiaacuteria de

terras de quilombos e define as responsabilidades dos oacutergatildeos governamentais

Do Decreto nordm 6040 de 7 de fevereiro de 2007 ndash Institui a Poliacutetica Nacional de

Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 6261 de 20 de novembro de 2007 ndash Dispotildee sobre a gestatildeo integrada

para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola no acircmbito do Programa Brasil

Quilombola

Da Portaria Fundaccedilatildeo Cultural Palmares nordm 98 de 26 de novembro de 2007 ndash Institui o

Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundaccedilatildeo Cultural

Palmares tambeacutem autodenominadas Terras de Preto Comunidades Negras Mocambos

Quilombos entre outras denominaccedilotildees congecircneres

Da Instruccedilatildeo Normativa INCRA nordm 57 de 20 de outubro de 2009 ndash Regulamenta o

procedimento para identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo desintrusatildeo

titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos

Entretanto devemos perceber este conceito como resultado de toda uma accedilatildeo da

Antropologia brasileira que vem se debruccedilando sobre a questatildeo das comunidades tradicionais

ao colocar que

Natildeo haacute duacutevidas de que a antropologia constitui campo consolidado e dinacircmico no

Brasil que tem obtido reconhecimento nacional e internacional pelos seus patamares

de excelecircncia cientiacutefica Combinando o interesse em compreender o mundo com a

preocupaccedilatildeo em desvendar coacutedigos culturais e os interstiacutecios sociais da vida

cotidiana a pesquisa antropoloacutegica eacute extremamente relevante para desvendar

problemaacuteticas que estatildeo na ordem do dia sobre a produccedilatildeo da diferenccedila cultural e

desigualdades sociais saberes e praacuteticas tradicionais patrimocircnio cultural e inclusatildeo

social e ainda desenvolvimento econocircmico e social (BELA 201319)

Para a antropoacuteloga Ilka Boaventura Leite eacute importante entender o fenocircmeno da

invisibilidade social e poliacutetica dessas populaccedilotildees como algo construiacutedo em nossa histoacuteria foi

inculcado cultural e principalmente politicamente nas populaccedilotildees mais vulneraacuteveis na

histoacuteria de construccedilatildeo de uma naccedilatildeo com moldes europeus Nestes termos as populaccedilotildees

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afro-brasileiras foram ignoradas ao pensar a o projeto de naccedilatildeo para o Brasil A invisibilidade

gerando uma marginalizaccedilatildeo histoacuterica geograacutefica e poliacutetica Pode-se ainda pensar que

A consolidaccedilatildeo da naccedilatildeo obteve o suporte ideoloacutegico do racialismo reforccedilando com

ele um projeto de orientaccedilatildeo liberal inspirado num tipo de universalismo iluminista

que invisibilizou as pautas poliacuteticas e sociais dos grupos negros e indiacutegenas O tipo

de ocupaccedilatildeo do espaccedilo territorial e a manutenccedilatildeo da fronteira eacutetnica pelos grupos

foram portanto um relevante fator de reorganizaccedilatildeo das diferenccedilas com perdas

significativas para os que jaacute se encontravam anteriormente na terra ndash principalmente

os africanos os indiacutegenas e os chamados ldquocaboclos (LEITE 200896)

Essa espeacutecie de topografia eacutetnica traduziu-se na continuidade das estrateacutegias de

expropriaccedilatildeo das terras e na forma como esse projeto se tornou hegemocircnico e se

reproduziu com sucesso ateacute os dias atuais Eacute tambeacutem possiacutevel depreender as formas

de resistecircncia daqueles que foram excluiacutedos do direito de se apropriar bem como de

titular suas terras As linhas demarcatoacuterias dos grupos para aleacutem das diferenccedilas

culturais tornaram-se formas matriciais de continuidade da hierarquizaccedilatildeo de novas

formas de exploraccedilatildeo e principalmente da perpetuaccedilatildeo das desigualdades sociais

(LEITE 2008967)

No momento histoacuterico que se iniciou com a promulgaccedilatildeo da Consttuiccedilatildeo Federal

(1988) podemos inferir que

Tais comunidades se revestem de grande atualidade no paiacutes em virtude do avanccedilo

das poliacuteticas puacuteblicas no sentido de fazer cumprir os dispositivos constitucionais do

tombamento salvaguarda e preservaccedilatildeo delas consideradas que foram pelo Artigo

216 da CF integrantes do patrimocircnio Cultural Nacional e pelo Artigo 68 dos

ADCTs como justamente merecedoras do seu reconhecimento e da atribuiccedilatildeo de

posse definitiva do seu territoacuterio por parte do Estado Nacionalrdquo (MEDEIROS In

TAMASO e LIMA Filho 2012 377)

Neste sentido podemos vislumbrar um cenaacuterio com novas possibilidades para a

elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para esta parcela consideraacutevel da populaccedilatildeo

brasileira a populaccedilatildeo das comunidades quilombolas

Evidentemente esta situaccedilatildeo eleva questionamentos de ordem conceitual e histoacuterica

ao tratar de um tema novo as comunidades quilombolas que estatildeo espalhadas em todo o

territoacuterio nacional e tecircm como caracteriacutestica comum a pobreza e a dificuldade de acesso agraves

poliacuteticas sociais especiacuteficas para este grupo Satildeo viacutetimas constantes de Racismo Xenofobia e

outras formas de violecircncia que resultam na manutenccedilatildeo eou dificuldades de alteraccedilatildeo

positiva em relaccedilatildeo ao quadro de pobreza da maioria destas comunidades

Os quilombos no Brasil

Para uma melhor compreensatildeo da situaccedilatildeo das terras quilombolas e de outros

territoacuterios tradicionais no Brasil eacute fundamental fazer-se referecircncia agrave Lei de Concessatildeo de

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Terras de 1850 Eacute nesse momento que se vincula definitivamente a posse e a propriedade da

terra agravequele que possui recurso monetaacuterio para adquiri-la e legalizaacute-la cartorialmente Essa lei

tornaria ainda mais difiacutecil a inclusatildeo do negro apoacutes a Aboliccedilatildeo de 1888 realizada sem

qualquer reparaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo escravizada

A luta contemporacircnea dos quilombolas por direitos territoriais pode ser interpretada

como o reconhecimento do fracasso da realidade juriacutedica estabelecida tanto pela ldquoLei de

Terrasrdquo que pretendeu moldar a sociedade brasileira na perspectiva da propriedade privada de

terras quanto pela forma mesma com que se daacute a aboliccedilatildeo da escravidatildeo A noccedilatildeo de terra

coletiva como satildeo pensadas as terras de comunidades quilombolas contraria o modelo

baseado na propriedade privada como uacutenica forma de acesso e uso da terra o qual exclui

outros usos e relaccedilotildees com o territoacuterio como ocorre entre povos e comunidades tradicionais

Aleacutem dos quilombos constituiacutedos no periacuteodo escravocrata muitos foram formados

apoacutes a aboliccedilatildeo formal da escravatura pois essa forma de organizaccedilatildeo comunitaacuteria

continuaria a ser para muitos a uacutenica possibilidade de viver em liberdade Constituir um

quilombo tornou-se um imperativo de sobrevivecircncia posto que a Lei Aacuteurea diferentemente

do propugnado pelo movimento abolicionista natildeo levou em conta mecanismos de

redistribuiccedilatildeo de terras

De um modo geral os territoacuterios quilombolas originaram-se em diferentes situaccedilotildees

tais como doaccedilotildees de terras realizadas a partir da desagregaccedilatildeo da lavoura de monoculturas

como a cana-de-accediluacutecar e o algodatildeo compra de terras pelos proacuteprios sujeitos possibilitada

pela desestruturaccedilatildeo do sistema escravista terras que foram conquistadas por meio da

prestaccedilatildeo de serviccedilos inclusive de guerra bem como aacutereas ocupadas por negros que fugiam

da escravidatildeo Haacute tambeacutem as chamadas terras de preto terras de santo ou terras de santiacutessima

que indicam uma territorialidade vinda de propriedades de ordens religiosas da doaccedilatildeo de

terras para santos e do recebimento de terras em troca de serviccedilos religiosos prestados a

senhores de escravos por sacerdotes de religiotildees afro-brasileiras

Os quilombos permaneceram invisibilizados durante todo o periacuteodo republicano e

reaparecem como resultado da accedilatildeo dos movimentos negros apenas com a Constituiccedilatildeo de

1988 como territoacuterios detentores de direitos Transcorreram portanto cerca de cem anos da

aboliccedilatildeo ateacute a aprovaccedilatildeo do Artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias

(ADCT) o qual assegura o seguinte Aos quilombolas que estejam ocupando suas terras eacute

reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivos

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Tais comunidades se distinguem pela identidade eacutetnica tendo desenvolvido praacuteticas

de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo de modos de vida caracteriacutesticos num determinado lugar Satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida

As comunidades quilombolas localizam-se em 24 estados da federaccedilatildeo sendo a

maior parte nos estados do Maranhatildeo Bahia Paraacute Minas Gerais e Pernambuco Os uacutenicos

estados que natildeo registram ocorrecircncias dessas comunidades satildeo o Acre e Roraima aleacutem do

Distrito Federal

As populaccedilotildees afro-brasileiras na literatura do Rio Grande do Norte

A literatura que trata da questatildeo da populaccedilatildeo negra no Estado pode ser

classificada por dois momentos distintos inicialmente estudos sobre a populaccedilatildeo

escravizada e aspectos das irmandades religiosas (Cascudo Medeiros Melo e Mattos) e

mais atualmente os relatoacuterios antropoloacutegicos e textos acadecircmicos sobre comunidades

negras rurais

O folclorista e historiador Luiacutes da Cacircmara Cascudo mostra uma anaacutelise importante

sobre as diferenccedilas na condiccedilatildeo de escravo nos engenhos de cana de accediluacutecar e nas fazendas

do sertatildeo No primeiro caso era demandado um grande nuacutemero de matildeo-de-obra cujo

controle baseava-se em regras riacutegidas de separaccedilatildeo entre senhores e escravos enquanto que

no sertatildeo as relaccedilotildees entre escravo e senhor garantiam ao primeiro um espaccedilo de atuaccedilatildeo

poliacutetica e econocircmica mais definido Cascudo incita-nos com a seguinte descriccedilatildeo

Na criaccedilatildeo do gado os donos e os escravos estatildeo na mesma linha tenaz de

coragem e batalha Satildeo dois vaqueiros Vestem a mesma veacutestia de couro

Encontraram o mesmo perigo o mesmo carrascal a mesma grota o aclive suacutebito

e escabroso

Assim a fazenda de gado rude de missatildeo imediata individual criou o homem na

semelhanccedila do seu uso

Esta escola determinou no escravo uma personalidade superior e sentida Sentia-

se senhor de seu campo na sela do seu cavalo como um baratildeo guerreiro Vezes

inuacutemeras o senhor entrega a fazenda ao escravo vaqueiro e vai-se embora O

negro era senhor de vidas e de gado vendendo colhendo discutindo escolhendo

sua escala de tarefas sabendo mandar planejar arriscar vencer(BRITO

199747)

Tarciacutesio Medeiros de maneira etnocecircntrica relega aos negros no Rio Grande do

Norte pouca importacircncia como ator social Ele mostra o negro balizado em conceitos

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relacionados ao mito da democracia racial Nega o legado cultural do negro para a cultura

local Ignora por conseguinte a religiosidade a culinaacuteria o vocabulaacuterio e expressotildees

culturais como a danccedila do espontatildeo e as cantorias Com exemplo podemos ver o trato

preconceituoso que ele daacute agraves religiotildees afro-brasileiras no Rio Grande do Norte quando cita

Do negro escravo no Estado ficaram poucas tradiccedilotildees De crendices e

supersticcedilotildees das que viveram nos canaviais ficou o canjerecirc feiticcedilo a cousa-feita

mas desconhecem o padecirc Exu Xangocirc Aacuteguas de Iemanjaacute que surgiram apoacutes a

deacutecada de 1950 produtos de importaccedilatildeo made in Bahia Rio de Janeiro

Pernambuco O ambiente canavieiro facilitou a supersticcedilatildeo dessa natureza mais

acentuadamente que nas fazendas de gado com escravaria reduzida (Medeiros

973229)

Por outro lado seu texto eacute rico em informaccedilotildees etnograacuteficas ndash que muitas vezes

contradiz suas afirmaccedilotildees generalizadas ndash quando cita sobre a presenccedila negra no RN por

exemplo Eacute sua a citaccedilatildeo que diz

Evidentemente nesse iniacutecio do seacuteculo XVII com o portuguecircs chega no Rio

Grande do Norte o elemento negro A presenccedila entre noacutes tem que ser estudada

diretamente com o fenocircmeno da escravidatildeo e esta no momento de sua

permissibilidade ocorreu em 1600 quando os primeiros escravos chegaram agrave vila

de Natal (MEDEIROS 198847)

Os textos acadecircmicos iniciais no Rio Grande do Norte procuravam exaltar aspectos

que folclorizavam os aspectos culturais da vida das populaccedilotildees negras rurais ignorando

aspectos eacuteticos na conduccedilatildeo de pesquisas antropoloacutegicas envolvendo populaccedilotildees

vulneraacuteveis resultando muitas vezes em textos no qual se expotildee situaccedilotildees no miacutenimo

constrangedoras destas pessoas

Na deacutecada seguinte este olhar privilegiando o exoacutetico sobre populaccedilotildees

quilombolas no Estado do Rio Grande do Norte chegou agrave academia em forma de dissertaccedilatildeo

de um historiador da regiatildeo em um mestrado na Antropologia (Assunccedilatildeo 1994) sobre uma

comunidade quilombola Como exemplo ele cita de forma preconceituosa e racista sem o

menor constrangimento em seu trabalho Os negros do Riacho estrateacutegias de sobrevivecircncia

e identidade social duas situaccedilotildees de caraacuteter iacutentimo da comunidade a praacutetica da

religiosidade afro-ameriacutendia e a tipologia de ldquorelaccedilotildees matrimoniais natildeo convencionais

(bigamia e incesto)rdquo

Em relaccedilatildeo agrave religiosidade Assunccedilatildeo chama simplesmente de feiticcedilo todo um

conjunto de conhecimento e praacuteticas que evocam a memoacuteria do grupo na afirmaccedilatildeo de uma

identidade proacutepria a religiosidade afro-brasileira e ameriacutendia Seu texto eacute carregado de

preconceitos quando cita assim

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Os ldquocaboclosrdquo acreditam no feiticcedilo como se fosse ldquouma coisa que numa pessoa eacute

uma coisa botadardquo Tanto os homens quanto as mulheres acreditam no feiticcedilo mas

apenas as mulheres o praticam Essa praacutetica se daacute para o mal e para o bem

(ASSUNCcedilAtildeO 199436)

No que diz respeito agraves relaccedilotildees matrimoniais Assunccedilatildeo afirma (atraveacutes das falas

dos moradores) que era comum a de um homem com vaacuterias mulheres como nesta sua

citaccedilatildeo

A uniatildeo de um homem com mais de uma mulher eacute uma praacutetica que vem desde os

tempos mais antigos

Outra questatildeo eacute que estes casamentos sempre ocorreram entre pessoas do

mesmo grupo entre membros que pertencem agraves famiacutelias existentes no grupordquo

A autora desse depoimento e sua irmatilde ldquovivemrdquo com o mesmo homem que eacute

primo em terceiro grau (ASSUNCcedilAtildeO 19944041 e 42)

E Assunccedilatildeo tambeacutem cita contrariando agrave vontade da comunidade dois casos de

uniatildeo incestuosa

Os ldquonegrosrdquo mais velhos viveram na eacutepoca e se lembram de casos como o do pai

que teve filhos com sua filha todos residindo na mesma unidade Tiveram trecircs

filhos estando vivo apenas um filho que natildeo reside no grupo Esta crianccedila foi

dada para uma outra famiacutelia externa ao grupo Houve tambeacutem o caso de um

irmatildeo que teve um filho com sua irmatilde Estes estatildeo vivos e residem no proacuteprio

grupo Mas desses casos os ldquonegrosrdquo natildeo gostam de falar (ASSUNCcedilAtildeO

199443)

Mais um dado de questionaacutevel ldquoimportacircnciardquo antropoloacutegica nos eacute ofertado ainda

por Assunccedilatildeo quando em seu afatilde de ver tudo folclorizado ateacute uma simples separaccedilatildeo eacute

colocada de forma atiacutepica

Outra situaccedilatildeo que existe desde o tempo dos antigos eacute a praacutetica de separaccedilatildeo entre

os cocircnjuges quando consideram que o casamento se esgotou Nesse caso tanto o

homem como a mulher podem se casar novamente chegando ateacute a se casar por

trecircs vezes dando-se o evento seja por motivo de morte seja por separaccedilatildeo

(ASSUNCcedilAtildeO199443)

Este texto de Luiz Assunccedilatildeo eacute exemplo de um discurso tiacutepico dos ldquobrancosrdquo do

Seridoacute Discurso este que aqui se transforma em ldquoverdade cientiacuteficardquo atraveacutes da publicaccedilatildeo

e consequentemente a exposiccedilatildeo de dramas particulares de uma comunidade negra A

consequecircncia desta atitude eacute o conhecimento deste texto por pessoas da regiatildeo e atraveacutes

dele a justificativa da exclusatildeo da comunidade em poliacuteticas sociais

Para o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira que tem uma ampla experiecircncia com

populaccedilotildees tradicionais vale a observaccedilatildeo sobre a responsabilidade dos antropoacutelogos que

trabalham com estas comunidades

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Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

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ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

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colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

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oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

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Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

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Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

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conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

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Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

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Introduccedilatildeo

A desigualdade entre brancos e negros eacute hoje reconhecida como uma das mais

perversas dimensotildees do tecido social no Brasil A extensa e perioacutedica divulgaccedilatildeo de

indicadores socioeconocircmicos sob responsabilidade de organismos de estatiacutestica e de pesquisa

como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) o Instituto de Pesquisa

Econocircmica Aplicada (Ipea) o Departamento Intersindical de Estatiacutestica e Estudos

Socioeconocircmicos (Dieese) ou o Fundo de Desenvolvimento das Naccedilotildees Unidas para a Mulher

(Unifem) mostra que grandes diferenciais raciais marcam praticamente todos os campos da

vida social brasileira Seja no que diz respeito agrave educaccedilatildeo sauacutede renda acesso a empregos

estaacuteveis violecircncia ou expectativa de vida os negros se encontram submetidos agraves piores

condiccedilotildees Em algumas dessas dimensotildees as variaccedilotildees observadas ao longo do tempo no

sentido de uma reduccedilatildeo das desigualdades mostram-se modestas em alcance e lentas em sua

trajetoacuteria Em outras as desigualdades natildeo apenas continuam estaacuteveis como ateacute vecircm se

ampliando em alguns casos

A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 representa um marco na luta pela terra e cidadania dos

povos tradicionais remanescentes de quilombos pois com a inclusatildeo do artigo 681 no Ato das

Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias garante a titulaccedilatildeo das terras que estas comunidades

utilizam para sua moradia e trabalho Vale lembrar ainda os compromissos internacionais

assumidos pelo Estado Brasileiro em favor das comunidades negras desde a Declaraccedilatildeo

Universal dos Direitos Humanos que em 2008 completa 60 anos

A Constituiccedilatildeo proiacutebe qualquer forma de discriminaccedilatildeo contra uma comunidade

remanescente de quilombo ou pessoa que a integra como tambeacutem o faz em relaccedilatildeo a todos os

cidadatildeos brasileiros Da mesma forma as terras tradicionalmente ocupadas por essas

comunidades devem ter proteccedilatildeo e seguranccedila

A Convenccedilatildeo 169 da Organizaccedilatildeo Internacional do Trabalho (OIT) da qual tratamos

nesta cartilha eacute um exemplo Eacute um acordo internacional firrmado em 1989 no acircmbito da OIT

que reuacutene organizaccedilotildees de trabalhadores e empregadores no mundo No Brasil soacute foi

1 Art 68 Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras eacute reconhecida a

propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivos

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ratificada em junho de 2002 e entrou em vigor em julho de 2003 A Convenccedilatildeo 169 dispotildee

sobre direitos de povos indiacutegenas tribais e populaccedilotildees tradicionais em geral

As associaccedilotildees de remanescentes de comunidades de quilombos se incluem nesta

convenccedilatildeo por conta do artigo 68 contido nos Atos das Disposiccedilotildees Constitucionais

Transitoacuterias (ADCT) da Constituiccedilatildeo

As deacutecadas de 1980 e 1990 foram marcadas por um contexto onde o debate era

mobilizado pela questatildeo da existecircncia ou natildeo da discriminaccedilatildeo racial no paiacutes A democracia

racial ainda se colocava como um paradigma a ser questionado e o reconhecimento das

desigualdades raciais e a reflexatildeo sobre suas causas precisava se consolidar A partir de

meados dos anos 90 entretanto os termos do debate se transformaram Reconhecida a

injustificaacutevel desigualdade racial que ao longo do seacuteculo marca a trajetoacuteria dos grupos

negros e brancos assim como sua estabilidade ao correr do tempo a discussatildeo passa

progressivamente a se concentrar nas iniciativas necessaacuterias em termos da accedilatildeo puacuteblica para

o seu enfrentamento

Fazendo frente a esse conjunto cada vez mais evidente de desigualdades o debate

puacuteblico tem se intensificado assim como as iniciativas no campo das poliacuteticas de governo De

fato desde a deacutecada de 1980 um conjunto diverso de accedilotildees passou a ser implementado De

iniacutecio as proposiccedilotildees tecircm origem em governos estaduais e municipais e progressivamente

passam a ser desenvolvidas tambeacutem pela esfera federal Mas foi nos anos 2000 que as

iniciativas ganharam relevo proliferando no acircmbito do governo federal nos governos

estaduais e municipais e tambeacutem de forma autocircnoma em algumas instituiccedilotildees puacuteblicas

como as universidades e o Ministeacuterio Puacuteblico do Trabalho Programas como os de

estabelecimento de cotas visando ampliar o acesso de estudantes negros ao Ensino Superior

assim como programas de combate ao racismo institucional vecircm sendo adotados em vaacuterias

localidades do paiacutes Accedilotildees no campo da educaccedilatildeo e do mercado de trabalho tecircm sido

igualmente adotadas visando limitar a reproduccedilatildeo de estereoacutetipos e comportamentos que

afetam o acesso a oportunidades iguais e a possibilidade de seu usufruto

As desigualdades raciais no Brasil configuram-se como um fenocircmeno complexo

constituindo-se em um enorme desafio para governos e para a sociedade em geral Enfrentar

as dificuldades que se colocam face agrave consolidaccedilatildeo da temaacutetica da desigualdade e da

discriminaccedilatildeo na agenda puacuteblica e no espaccedilo de governo e integrar e ampliar as iniciativas

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em curso parecem ser hoje os grandes desafios no campo das poliacuteticas puacuteblicas para

igualdade racial

Compreendendo as desigualdades raciais como produto de um amplo e complexo

processo de reproduccedilatildeo de iniquidades e de hierarquias sociais seu enfrentamento natildeo deve

ficar restrito a accedilotildees que possam ser implementadas por um nuacutecleo especiacutefico da accedilatildeo puacuteblica

O reconhecimento da desigualdade racial e da necessidade de seu enfrentamento assim como

da eliminaccedilatildeo do preconceito e da discriminaccedilatildeo raciais pressupotildee o reconhecimento de que

esse problema perpassa os mais diferentes espaccedilos da vida social

O enfrentamento de uma questatildeo com a centralidade da temaacutetica racial que perpassa o

tecido e as relaccedilotildees sociais no paiacutes natildeo pode prescindir de uma accedilatildeo de Estado desenvolvida

mediante uma Poliacutetica Nacional que inclua a adoccedilatildeo de um posicionamento efetivo das

instacircncias governamentais e natildeo apenas a Secretaria Especial de Poliacuteticas de Promoccedilatildeo da

Igualdade Racial - SEPPIR Eacute necessaacuterio que as desigualdades raciais sejam incorporadas

como desafios em cada uma das poliacuteticas setoriais Os indicadores superiores de repetecircncia e

evasatildeo de crianccedilas negras nas escolas brasileiras aguardam serem transformados em metas

para a intervenccedilatildeo da poliacutetica de educaccedilatildeo da mesma forma que as taxas reduzidas de

cobertura de mulheres negras em exames e procedimentos de sauacutede a violecircncia policial

contra jovens negros entre inuacutemeros exemplos que podem ser citados Ministeacuterios e oacutergatildeos

setoriais aleacutem do Legislativo e do Judiciaacuterio devem ser envolvidos em uma poliacutetica que

tenha diretrizes e metas balizadoras da accedilatildeo puacuteblica sinalizando para os estados e municiacutepios

e para a sociedade sobre a importacircncia da intervenccedilatildeo governamental na busca da igualdade

racial Neste sentido as poliacuteticas puacuteblicas dependem de informaccedilotildees ndashsempre- atualizadas em

dados referentes agraves Comunidades quilombolas em seus contextos sociopoliacutetico

Neste artigo eacute mostrada a pesquisa (de cunho individual) que venho realizando desde

1987 no Rio Grande do Norte na aacuterea de antropologia afro-brasileira em especial sobre

comunidades negras rurais terreiros de matriz afro-brasileira e territoacuterios urbanos

Neste texto discorro sobre o conceito de comunidades quilombolas a questatildeo dos

quilombos no Brasil e no estado do Rio Grande do Norte explanando sobre a literatura

regional que trata dessas populaccedilotildees afro-brasileiras na regiatildeo Por fim mostramos o

resultado da citada pesquisa sobre a presenccedila de comunidades e territoacuterios negros no Rio

Grande do Norte

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A pesquisa sobre comunidades tradicionais afro-brasileiras no Rio Grande no Norte

Como recursos metodoloacutegicos foram utilizadas teacutecnicas proacuteprias da Antropologia e

da Histoacuteria De forma geral continuamos realizando uma pesquisa histoacuterico-documental com

a utilizaccedilatildeo de diversas teacutecnicas como entrevistas visita de campo e registro audiovisual

durante os trabalhos na regiatildeo

Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo da fotografia como recurso ldquoauxiliarrdquo na pesquisa

salientamos sua importacircncia aleacutem do aspecto meramente ilustrativo pois eacute sabido que

A construccedilatildeo de narrativas atraveacutes da imagem fotograacutefica vem a ser articulada com

o texto verbal e a legitimidade que este alcanccedilou contribuir no sentido de enriquecer

e agregar aleacutem de outras formas narrativas como e literatura ou a poesia

complexidade aos esforccedilos de interpretaccedilatildeo de universos sociais cada vez mais

densos e complexos onde imagens por sua vez tornam-se cada vez mais um

elemento da proacutepria sociabilidade (ACHUTTI 199738-39)

Neste trabalho entendemos a fotografia ou fotoetnografia como elemento necessaacuterio agrave

composiccedilatildeo do Relatoacuterio Antropoloacutegico Neste sentido

Parece significativa a ideia dos colegas do Nuacutecleo de Antropologia Visual da

UFRGS quando afirmam que a antropologia visual natildeo se trata de uma disciplina

independente mas ldquosim da mesma e velha antropologia de sempre poreacutem

apresentada sobre esse outro continente que eacute a comunicaccedilatildeo audiovisual Natildeo eacute

uma Antropologia da Imagem mas uma antropologia em imagensrdquo (Rodolpho et

alli 1995169) Uma antropologia em imagens poderaacute ser feita mediante o domiacutenio

das teacutecnicas de construccedilatildeo de um viacutedeo etnograacutefico de um filme etnograacutefico ou de

um trabalho fotoetnograacutefico Futuramente estaremos fazendo a ldquovelhardquo e tradicional

antropologia tambeacutem atraveacutes de uma linguagem multimiacutedia (ACHUTTI 199739)

Em termos metodoloacutegicos

A proposta aqui eacute do emprego da antropologia visual enquanto um recurso narrativo

autocircnomo na funccedilatildeo de convergir significaccedilotildees e informaccedilotildees a respeito de uma

dada situaccedilatildeo social (ACHUTTI 199713)

Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria Oral presente nos discursos e entrevistas partimos do

princiacutepio que ldquoAtraveacutes da memoacuteria individual seraacute possiacutevel recuperar a memoacuteria coletiva de

um periacuteodo sobre o qual existe muito pouca documentaccedilatildeo Essa histoacuteria aleacutem de contribuir

para um melhor conhecimento da comunidaderdquo (Becker 2001286) Assim podemos

entender em consenso que

Usando a histoacuteria oral como meacutetodo e praacutetica de pesquisa somada agraves formas

tradicionais percorreremos juntamente com nossos personagens lugares da

memoacuteria e do esquecimento para ldquoreconstruirrdquo as suas trajetoacuterias de vida tentando

assim montar um quadro histoacuterico do periacuteodo pesquisado (BECKER 2001286)

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Assim a antropologia visual e a histoacuteria oral vecircm como recurso metodoloacutegico e

teacutecnico dar maior suporte agraves pesquisas envolvendo populaccedilotildees tradicionais em particular as

comunidades negras rurais que ainda encontram-se em um processo de invisibilidade social

Para o historiador Josemir Camilo de Melo (2001189)

Quando se analisa a histoacuteria do povo negro natildeo se deve usar da mesma metodologia

que se usa para abordar a histoacuteria dos povos europeus e seus descendentes nos

troacutepicos A histoacuteria dos brancos eacute feita de documentos oficiais e particulares jaacute que

estamos tratando aiacute de uma sociedade letrada No caso dos africanos sequestrados e

trazidos para o Brasil e seus descendentes aqui nascidos e mantidos como iletrados

os documentos para estudar sua histoacuteria natildeo satildeo mais do mesmo caraacuteter ou seja

material escrito Portanto o historiador deveria proceder um desvio metodoloacutegico e

teoacuterico optando entatildeo pela etnografia e buscar a fala do povo negro nas fontes

antropoloacutegicas e etnoloacutegicas

Neste sentido optou-se por uma leitura criacutetica na literatura regional que trata das

comunidades quilombolas Para isto foram consultados textos acadecircmicos de autores locais

em eacutepocas diversas procurando ver a fala do povo negro representada nestes textos-discursos

Inicialmente percebe-se que a literatura produzida no Seacuteculo XX (mesmo a da aacuterea

antropoloacutegica) estaacute impregnada de uma visatildeo racista etnocecircntrica e comprometida com

valores regionais No Seacuteculo XXI houve uma alteraccedilatildeo substancial a inclusatildeo de acadecircmicos

militantes do Movimento Negro (mesmo que informalmente) e estudantes originaacuterios de

comunidades quilombolas

Ao fim colocamos uma listagem (atualizada em 2017) sobre as comunidades negras

localizadas no Rio Grande do Norte

Comunidades Quilombolas um conceito poliacutetico

O conceito mais atualizado para definir Comunidades Quilombolas tangencia de uma

concepccedilatildeo histoacuterica que vincula estas com lutas e fugas de escravos Este conceito eacute assim

tambeacutem entendido pelo Estado Entatildeo podemos entender que comunidades quilombolas satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo (Decreto 48872003)

Por ser um conceito definido por Decreto e com fins juriacutedicos tem uma base legal

constituiacuteda a partir da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 em seus artigos 215 e 216 da

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Constituiccedilatildeo Federal que tratam do ldquoDireito agrave preservaccedilatildeo de sua proacutepria culturardquo e

tambeacutem

Do Artigo 68 do ADCT ndash Direito agrave propriedade das terras de comunidades

remanescentes de quilombos

Da Convenccedilatildeo 169 da OIT (Dec 50512004) ndash Direito agrave autodeterminaccedilatildeo de Povos e

Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 4887 de 20 de novembro de 2003 ndash Trata da regularizaccedilatildeo fundiaacuteria de

terras de quilombos e define as responsabilidades dos oacutergatildeos governamentais

Do Decreto nordm 6040 de 7 de fevereiro de 2007 ndash Institui a Poliacutetica Nacional de

Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 6261 de 20 de novembro de 2007 ndash Dispotildee sobre a gestatildeo integrada

para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola no acircmbito do Programa Brasil

Quilombola

Da Portaria Fundaccedilatildeo Cultural Palmares nordm 98 de 26 de novembro de 2007 ndash Institui o

Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundaccedilatildeo Cultural

Palmares tambeacutem autodenominadas Terras de Preto Comunidades Negras Mocambos

Quilombos entre outras denominaccedilotildees congecircneres

Da Instruccedilatildeo Normativa INCRA nordm 57 de 20 de outubro de 2009 ndash Regulamenta o

procedimento para identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo desintrusatildeo

titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos

Entretanto devemos perceber este conceito como resultado de toda uma accedilatildeo da

Antropologia brasileira que vem se debruccedilando sobre a questatildeo das comunidades tradicionais

ao colocar que

Natildeo haacute duacutevidas de que a antropologia constitui campo consolidado e dinacircmico no

Brasil que tem obtido reconhecimento nacional e internacional pelos seus patamares

de excelecircncia cientiacutefica Combinando o interesse em compreender o mundo com a

preocupaccedilatildeo em desvendar coacutedigos culturais e os interstiacutecios sociais da vida

cotidiana a pesquisa antropoloacutegica eacute extremamente relevante para desvendar

problemaacuteticas que estatildeo na ordem do dia sobre a produccedilatildeo da diferenccedila cultural e

desigualdades sociais saberes e praacuteticas tradicionais patrimocircnio cultural e inclusatildeo

social e ainda desenvolvimento econocircmico e social (BELA 201319)

Para a antropoacuteloga Ilka Boaventura Leite eacute importante entender o fenocircmeno da

invisibilidade social e poliacutetica dessas populaccedilotildees como algo construiacutedo em nossa histoacuteria foi

inculcado cultural e principalmente politicamente nas populaccedilotildees mais vulneraacuteveis na

histoacuteria de construccedilatildeo de uma naccedilatildeo com moldes europeus Nestes termos as populaccedilotildees

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afro-brasileiras foram ignoradas ao pensar a o projeto de naccedilatildeo para o Brasil A invisibilidade

gerando uma marginalizaccedilatildeo histoacuterica geograacutefica e poliacutetica Pode-se ainda pensar que

A consolidaccedilatildeo da naccedilatildeo obteve o suporte ideoloacutegico do racialismo reforccedilando com

ele um projeto de orientaccedilatildeo liberal inspirado num tipo de universalismo iluminista

que invisibilizou as pautas poliacuteticas e sociais dos grupos negros e indiacutegenas O tipo

de ocupaccedilatildeo do espaccedilo territorial e a manutenccedilatildeo da fronteira eacutetnica pelos grupos

foram portanto um relevante fator de reorganizaccedilatildeo das diferenccedilas com perdas

significativas para os que jaacute se encontravam anteriormente na terra ndash principalmente

os africanos os indiacutegenas e os chamados ldquocaboclos (LEITE 200896)

Essa espeacutecie de topografia eacutetnica traduziu-se na continuidade das estrateacutegias de

expropriaccedilatildeo das terras e na forma como esse projeto se tornou hegemocircnico e se

reproduziu com sucesso ateacute os dias atuais Eacute tambeacutem possiacutevel depreender as formas

de resistecircncia daqueles que foram excluiacutedos do direito de se apropriar bem como de

titular suas terras As linhas demarcatoacuterias dos grupos para aleacutem das diferenccedilas

culturais tornaram-se formas matriciais de continuidade da hierarquizaccedilatildeo de novas

formas de exploraccedilatildeo e principalmente da perpetuaccedilatildeo das desigualdades sociais

(LEITE 2008967)

No momento histoacuterico que se iniciou com a promulgaccedilatildeo da Consttuiccedilatildeo Federal

(1988) podemos inferir que

Tais comunidades se revestem de grande atualidade no paiacutes em virtude do avanccedilo

das poliacuteticas puacuteblicas no sentido de fazer cumprir os dispositivos constitucionais do

tombamento salvaguarda e preservaccedilatildeo delas consideradas que foram pelo Artigo

216 da CF integrantes do patrimocircnio Cultural Nacional e pelo Artigo 68 dos

ADCTs como justamente merecedoras do seu reconhecimento e da atribuiccedilatildeo de

posse definitiva do seu territoacuterio por parte do Estado Nacionalrdquo (MEDEIROS In

TAMASO e LIMA Filho 2012 377)

Neste sentido podemos vislumbrar um cenaacuterio com novas possibilidades para a

elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para esta parcela consideraacutevel da populaccedilatildeo

brasileira a populaccedilatildeo das comunidades quilombolas

Evidentemente esta situaccedilatildeo eleva questionamentos de ordem conceitual e histoacuterica

ao tratar de um tema novo as comunidades quilombolas que estatildeo espalhadas em todo o

territoacuterio nacional e tecircm como caracteriacutestica comum a pobreza e a dificuldade de acesso agraves

poliacuteticas sociais especiacuteficas para este grupo Satildeo viacutetimas constantes de Racismo Xenofobia e

outras formas de violecircncia que resultam na manutenccedilatildeo eou dificuldades de alteraccedilatildeo

positiva em relaccedilatildeo ao quadro de pobreza da maioria destas comunidades

Os quilombos no Brasil

Para uma melhor compreensatildeo da situaccedilatildeo das terras quilombolas e de outros

territoacuterios tradicionais no Brasil eacute fundamental fazer-se referecircncia agrave Lei de Concessatildeo de

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Terras de 1850 Eacute nesse momento que se vincula definitivamente a posse e a propriedade da

terra agravequele que possui recurso monetaacuterio para adquiri-la e legalizaacute-la cartorialmente Essa lei

tornaria ainda mais difiacutecil a inclusatildeo do negro apoacutes a Aboliccedilatildeo de 1888 realizada sem

qualquer reparaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo escravizada

A luta contemporacircnea dos quilombolas por direitos territoriais pode ser interpretada

como o reconhecimento do fracasso da realidade juriacutedica estabelecida tanto pela ldquoLei de

Terrasrdquo que pretendeu moldar a sociedade brasileira na perspectiva da propriedade privada de

terras quanto pela forma mesma com que se daacute a aboliccedilatildeo da escravidatildeo A noccedilatildeo de terra

coletiva como satildeo pensadas as terras de comunidades quilombolas contraria o modelo

baseado na propriedade privada como uacutenica forma de acesso e uso da terra o qual exclui

outros usos e relaccedilotildees com o territoacuterio como ocorre entre povos e comunidades tradicionais

Aleacutem dos quilombos constituiacutedos no periacuteodo escravocrata muitos foram formados

apoacutes a aboliccedilatildeo formal da escravatura pois essa forma de organizaccedilatildeo comunitaacuteria

continuaria a ser para muitos a uacutenica possibilidade de viver em liberdade Constituir um

quilombo tornou-se um imperativo de sobrevivecircncia posto que a Lei Aacuteurea diferentemente

do propugnado pelo movimento abolicionista natildeo levou em conta mecanismos de

redistribuiccedilatildeo de terras

De um modo geral os territoacuterios quilombolas originaram-se em diferentes situaccedilotildees

tais como doaccedilotildees de terras realizadas a partir da desagregaccedilatildeo da lavoura de monoculturas

como a cana-de-accediluacutecar e o algodatildeo compra de terras pelos proacuteprios sujeitos possibilitada

pela desestruturaccedilatildeo do sistema escravista terras que foram conquistadas por meio da

prestaccedilatildeo de serviccedilos inclusive de guerra bem como aacutereas ocupadas por negros que fugiam

da escravidatildeo Haacute tambeacutem as chamadas terras de preto terras de santo ou terras de santiacutessima

que indicam uma territorialidade vinda de propriedades de ordens religiosas da doaccedilatildeo de

terras para santos e do recebimento de terras em troca de serviccedilos religiosos prestados a

senhores de escravos por sacerdotes de religiotildees afro-brasileiras

Os quilombos permaneceram invisibilizados durante todo o periacuteodo republicano e

reaparecem como resultado da accedilatildeo dos movimentos negros apenas com a Constituiccedilatildeo de

1988 como territoacuterios detentores de direitos Transcorreram portanto cerca de cem anos da

aboliccedilatildeo ateacute a aprovaccedilatildeo do Artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias

(ADCT) o qual assegura o seguinte Aos quilombolas que estejam ocupando suas terras eacute

reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivos

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Tais comunidades se distinguem pela identidade eacutetnica tendo desenvolvido praacuteticas

de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo de modos de vida caracteriacutesticos num determinado lugar Satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida

As comunidades quilombolas localizam-se em 24 estados da federaccedilatildeo sendo a

maior parte nos estados do Maranhatildeo Bahia Paraacute Minas Gerais e Pernambuco Os uacutenicos

estados que natildeo registram ocorrecircncias dessas comunidades satildeo o Acre e Roraima aleacutem do

Distrito Federal

As populaccedilotildees afro-brasileiras na literatura do Rio Grande do Norte

A literatura que trata da questatildeo da populaccedilatildeo negra no Estado pode ser

classificada por dois momentos distintos inicialmente estudos sobre a populaccedilatildeo

escravizada e aspectos das irmandades religiosas (Cascudo Medeiros Melo e Mattos) e

mais atualmente os relatoacuterios antropoloacutegicos e textos acadecircmicos sobre comunidades

negras rurais

O folclorista e historiador Luiacutes da Cacircmara Cascudo mostra uma anaacutelise importante

sobre as diferenccedilas na condiccedilatildeo de escravo nos engenhos de cana de accediluacutecar e nas fazendas

do sertatildeo No primeiro caso era demandado um grande nuacutemero de matildeo-de-obra cujo

controle baseava-se em regras riacutegidas de separaccedilatildeo entre senhores e escravos enquanto que

no sertatildeo as relaccedilotildees entre escravo e senhor garantiam ao primeiro um espaccedilo de atuaccedilatildeo

poliacutetica e econocircmica mais definido Cascudo incita-nos com a seguinte descriccedilatildeo

Na criaccedilatildeo do gado os donos e os escravos estatildeo na mesma linha tenaz de

coragem e batalha Satildeo dois vaqueiros Vestem a mesma veacutestia de couro

Encontraram o mesmo perigo o mesmo carrascal a mesma grota o aclive suacutebito

e escabroso

Assim a fazenda de gado rude de missatildeo imediata individual criou o homem na

semelhanccedila do seu uso

Esta escola determinou no escravo uma personalidade superior e sentida Sentia-

se senhor de seu campo na sela do seu cavalo como um baratildeo guerreiro Vezes

inuacutemeras o senhor entrega a fazenda ao escravo vaqueiro e vai-se embora O

negro era senhor de vidas e de gado vendendo colhendo discutindo escolhendo

sua escala de tarefas sabendo mandar planejar arriscar vencer(BRITO

199747)

Tarciacutesio Medeiros de maneira etnocecircntrica relega aos negros no Rio Grande do

Norte pouca importacircncia como ator social Ele mostra o negro balizado em conceitos

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relacionados ao mito da democracia racial Nega o legado cultural do negro para a cultura

local Ignora por conseguinte a religiosidade a culinaacuteria o vocabulaacuterio e expressotildees

culturais como a danccedila do espontatildeo e as cantorias Com exemplo podemos ver o trato

preconceituoso que ele daacute agraves religiotildees afro-brasileiras no Rio Grande do Norte quando cita

Do negro escravo no Estado ficaram poucas tradiccedilotildees De crendices e

supersticcedilotildees das que viveram nos canaviais ficou o canjerecirc feiticcedilo a cousa-feita

mas desconhecem o padecirc Exu Xangocirc Aacuteguas de Iemanjaacute que surgiram apoacutes a

deacutecada de 1950 produtos de importaccedilatildeo made in Bahia Rio de Janeiro

Pernambuco O ambiente canavieiro facilitou a supersticcedilatildeo dessa natureza mais

acentuadamente que nas fazendas de gado com escravaria reduzida (Medeiros

973229)

Por outro lado seu texto eacute rico em informaccedilotildees etnograacuteficas ndash que muitas vezes

contradiz suas afirmaccedilotildees generalizadas ndash quando cita sobre a presenccedila negra no RN por

exemplo Eacute sua a citaccedilatildeo que diz

Evidentemente nesse iniacutecio do seacuteculo XVII com o portuguecircs chega no Rio

Grande do Norte o elemento negro A presenccedila entre noacutes tem que ser estudada

diretamente com o fenocircmeno da escravidatildeo e esta no momento de sua

permissibilidade ocorreu em 1600 quando os primeiros escravos chegaram agrave vila

de Natal (MEDEIROS 198847)

Os textos acadecircmicos iniciais no Rio Grande do Norte procuravam exaltar aspectos

que folclorizavam os aspectos culturais da vida das populaccedilotildees negras rurais ignorando

aspectos eacuteticos na conduccedilatildeo de pesquisas antropoloacutegicas envolvendo populaccedilotildees

vulneraacuteveis resultando muitas vezes em textos no qual se expotildee situaccedilotildees no miacutenimo

constrangedoras destas pessoas

Na deacutecada seguinte este olhar privilegiando o exoacutetico sobre populaccedilotildees

quilombolas no Estado do Rio Grande do Norte chegou agrave academia em forma de dissertaccedilatildeo

de um historiador da regiatildeo em um mestrado na Antropologia (Assunccedilatildeo 1994) sobre uma

comunidade quilombola Como exemplo ele cita de forma preconceituosa e racista sem o

menor constrangimento em seu trabalho Os negros do Riacho estrateacutegias de sobrevivecircncia

e identidade social duas situaccedilotildees de caraacuteter iacutentimo da comunidade a praacutetica da

religiosidade afro-ameriacutendia e a tipologia de ldquorelaccedilotildees matrimoniais natildeo convencionais

(bigamia e incesto)rdquo

Em relaccedilatildeo agrave religiosidade Assunccedilatildeo chama simplesmente de feiticcedilo todo um

conjunto de conhecimento e praacuteticas que evocam a memoacuteria do grupo na afirmaccedilatildeo de uma

identidade proacutepria a religiosidade afro-brasileira e ameriacutendia Seu texto eacute carregado de

preconceitos quando cita assim

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Os ldquocaboclosrdquo acreditam no feiticcedilo como se fosse ldquouma coisa que numa pessoa eacute

uma coisa botadardquo Tanto os homens quanto as mulheres acreditam no feiticcedilo mas

apenas as mulheres o praticam Essa praacutetica se daacute para o mal e para o bem

(ASSUNCcedilAtildeO 199436)

No que diz respeito agraves relaccedilotildees matrimoniais Assunccedilatildeo afirma (atraveacutes das falas

dos moradores) que era comum a de um homem com vaacuterias mulheres como nesta sua

citaccedilatildeo

A uniatildeo de um homem com mais de uma mulher eacute uma praacutetica que vem desde os

tempos mais antigos

Outra questatildeo eacute que estes casamentos sempre ocorreram entre pessoas do

mesmo grupo entre membros que pertencem agraves famiacutelias existentes no grupordquo

A autora desse depoimento e sua irmatilde ldquovivemrdquo com o mesmo homem que eacute

primo em terceiro grau (ASSUNCcedilAtildeO 19944041 e 42)

E Assunccedilatildeo tambeacutem cita contrariando agrave vontade da comunidade dois casos de

uniatildeo incestuosa

Os ldquonegrosrdquo mais velhos viveram na eacutepoca e se lembram de casos como o do pai

que teve filhos com sua filha todos residindo na mesma unidade Tiveram trecircs

filhos estando vivo apenas um filho que natildeo reside no grupo Esta crianccedila foi

dada para uma outra famiacutelia externa ao grupo Houve tambeacutem o caso de um

irmatildeo que teve um filho com sua irmatilde Estes estatildeo vivos e residem no proacuteprio

grupo Mas desses casos os ldquonegrosrdquo natildeo gostam de falar (ASSUNCcedilAtildeO

199443)

Mais um dado de questionaacutevel ldquoimportacircnciardquo antropoloacutegica nos eacute ofertado ainda

por Assunccedilatildeo quando em seu afatilde de ver tudo folclorizado ateacute uma simples separaccedilatildeo eacute

colocada de forma atiacutepica

Outra situaccedilatildeo que existe desde o tempo dos antigos eacute a praacutetica de separaccedilatildeo entre

os cocircnjuges quando consideram que o casamento se esgotou Nesse caso tanto o

homem como a mulher podem se casar novamente chegando ateacute a se casar por

trecircs vezes dando-se o evento seja por motivo de morte seja por separaccedilatildeo

(ASSUNCcedilAtildeO199443)

Este texto de Luiz Assunccedilatildeo eacute exemplo de um discurso tiacutepico dos ldquobrancosrdquo do

Seridoacute Discurso este que aqui se transforma em ldquoverdade cientiacuteficardquo atraveacutes da publicaccedilatildeo

e consequentemente a exposiccedilatildeo de dramas particulares de uma comunidade negra A

consequecircncia desta atitude eacute o conhecimento deste texto por pessoas da regiatildeo e atraveacutes

dele a justificativa da exclusatildeo da comunidade em poliacuteticas sociais

Para o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira que tem uma ampla experiecircncia com

populaccedilotildees tradicionais vale a observaccedilatildeo sobre a responsabilidade dos antropoacutelogos que

trabalham com estas comunidades

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Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

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ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

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colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

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oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

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Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

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Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

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conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

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Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

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ratificada em junho de 2002 e entrou em vigor em julho de 2003 A Convenccedilatildeo 169 dispotildee

sobre direitos de povos indiacutegenas tribais e populaccedilotildees tradicionais em geral

As associaccedilotildees de remanescentes de comunidades de quilombos se incluem nesta

convenccedilatildeo por conta do artigo 68 contido nos Atos das Disposiccedilotildees Constitucionais

Transitoacuterias (ADCT) da Constituiccedilatildeo

As deacutecadas de 1980 e 1990 foram marcadas por um contexto onde o debate era

mobilizado pela questatildeo da existecircncia ou natildeo da discriminaccedilatildeo racial no paiacutes A democracia

racial ainda se colocava como um paradigma a ser questionado e o reconhecimento das

desigualdades raciais e a reflexatildeo sobre suas causas precisava se consolidar A partir de

meados dos anos 90 entretanto os termos do debate se transformaram Reconhecida a

injustificaacutevel desigualdade racial que ao longo do seacuteculo marca a trajetoacuteria dos grupos

negros e brancos assim como sua estabilidade ao correr do tempo a discussatildeo passa

progressivamente a se concentrar nas iniciativas necessaacuterias em termos da accedilatildeo puacuteblica para

o seu enfrentamento

Fazendo frente a esse conjunto cada vez mais evidente de desigualdades o debate

puacuteblico tem se intensificado assim como as iniciativas no campo das poliacuteticas de governo De

fato desde a deacutecada de 1980 um conjunto diverso de accedilotildees passou a ser implementado De

iniacutecio as proposiccedilotildees tecircm origem em governos estaduais e municipais e progressivamente

passam a ser desenvolvidas tambeacutem pela esfera federal Mas foi nos anos 2000 que as

iniciativas ganharam relevo proliferando no acircmbito do governo federal nos governos

estaduais e municipais e tambeacutem de forma autocircnoma em algumas instituiccedilotildees puacuteblicas

como as universidades e o Ministeacuterio Puacuteblico do Trabalho Programas como os de

estabelecimento de cotas visando ampliar o acesso de estudantes negros ao Ensino Superior

assim como programas de combate ao racismo institucional vecircm sendo adotados em vaacuterias

localidades do paiacutes Accedilotildees no campo da educaccedilatildeo e do mercado de trabalho tecircm sido

igualmente adotadas visando limitar a reproduccedilatildeo de estereoacutetipos e comportamentos que

afetam o acesso a oportunidades iguais e a possibilidade de seu usufruto

As desigualdades raciais no Brasil configuram-se como um fenocircmeno complexo

constituindo-se em um enorme desafio para governos e para a sociedade em geral Enfrentar

as dificuldades que se colocam face agrave consolidaccedilatildeo da temaacutetica da desigualdade e da

discriminaccedilatildeo na agenda puacuteblica e no espaccedilo de governo e integrar e ampliar as iniciativas

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em curso parecem ser hoje os grandes desafios no campo das poliacuteticas puacuteblicas para

igualdade racial

Compreendendo as desigualdades raciais como produto de um amplo e complexo

processo de reproduccedilatildeo de iniquidades e de hierarquias sociais seu enfrentamento natildeo deve

ficar restrito a accedilotildees que possam ser implementadas por um nuacutecleo especiacutefico da accedilatildeo puacuteblica

O reconhecimento da desigualdade racial e da necessidade de seu enfrentamento assim como

da eliminaccedilatildeo do preconceito e da discriminaccedilatildeo raciais pressupotildee o reconhecimento de que

esse problema perpassa os mais diferentes espaccedilos da vida social

O enfrentamento de uma questatildeo com a centralidade da temaacutetica racial que perpassa o

tecido e as relaccedilotildees sociais no paiacutes natildeo pode prescindir de uma accedilatildeo de Estado desenvolvida

mediante uma Poliacutetica Nacional que inclua a adoccedilatildeo de um posicionamento efetivo das

instacircncias governamentais e natildeo apenas a Secretaria Especial de Poliacuteticas de Promoccedilatildeo da

Igualdade Racial - SEPPIR Eacute necessaacuterio que as desigualdades raciais sejam incorporadas

como desafios em cada uma das poliacuteticas setoriais Os indicadores superiores de repetecircncia e

evasatildeo de crianccedilas negras nas escolas brasileiras aguardam serem transformados em metas

para a intervenccedilatildeo da poliacutetica de educaccedilatildeo da mesma forma que as taxas reduzidas de

cobertura de mulheres negras em exames e procedimentos de sauacutede a violecircncia policial

contra jovens negros entre inuacutemeros exemplos que podem ser citados Ministeacuterios e oacutergatildeos

setoriais aleacutem do Legislativo e do Judiciaacuterio devem ser envolvidos em uma poliacutetica que

tenha diretrizes e metas balizadoras da accedilatildeo puacuteblica sinalizando para os estados e municiacutepios

e para a sociedade sobre a importacircncia da intervenccedilatildeo governamental na busca da igualdade

racial Neste sentido as poliacuteticas puacuteblicas dependem de informaccedilotildees ndashsempre- atualizadas em

dados referentes agraves Comunidades quilombolas em seus contextos sociopoliacutetico

Neste artigo eacute mostrada a pesquisa (de cunho individual) que venho realizando desde

1987 no Rio Grande do Norte na aacuterea de antropologia afro-brasileira em especial sobre

comunidades negras rurais terreiros de matriz afro-brasileira e territoacuterios urbanos

Neste texto discorro sobre o conceito de comunidades quilombolas a questatildeo dos

quilombos no Brasil e no estado do Rio Grande do Norte explanando sobre a literatura

regional que trata dessas populaccedilotildees afro-brasileiras na regiatildeo Por fim mostramos o

resultado da citada pesquisa sobre a presenccedila de comunidades e territoacuterios negros no Rio

Grande do Norte

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A pesquisa sobre comunidades tradicionais afro-brasileiras no Rio Grande no Norte

Como recursos metodoloacutegicos foram utilizadas teacutecnicas proacuteprias da Antropologia e

da Histoacuteria De forma geral continuamos realizando uma pesquisa histoacuterico-documental com

a utilizaccedilatildeo de diversas teacutecnicas como entrevistas visita de campo e registro audiovisual

durante os trabalhos na regiatildeo

Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo da fotografia como recurso ldquoauxiliarrdquo na pesquisa

salientamos sua importacircncia aleacutem do aspecto meramente ilustrativo pois eacute sabido que

A construccedilatildeo de narrativas atraveacutes da imagem fotograacutefica vem a ser articulada com

o texto verbal e a legitimidade que este alcanccedilou contribuir no sentido de enriquecer

e agregar aleacutem de outras formas narrativas como e literatura ou a poesia

complexidade aos esforccedilos de interpretaccedilatildeo de universos sociais cada vez mais

densos e complexos onde imagens por sua vez tornam-se cada vez mais um

elemento da proacutepria sociabilidade (ACHUTTI 199738-39)

Neste trabalho entendemos a fotografia ou fotoetnografia como elemento necessaacuterio agrave

composiccedilatildeo do Relatoacuterio Antropoloacutegico Neste sentido

Parece significativa a ideia dos colegas do Nuacutecleo de Antropologia Visual da

UFRGS quando afirmam que a antropologia visual natildeo se trata de uma disciplina

independente mas ldquosim da mesma e velha antropologia de sempre poreacutem

apresentada sobre esse outro continente que eacute a comunicaccedilatildeo audiovisual Natildeo eacute

uma Antropologia da Imagem mas uma antropologia em imagensrdquo (Rodolpho et

alli 1995169) Uma antropologia em imagens poderaacute ser feita mediante o domiacutenio

das teacutecnicas de construccedilatildeo de um viacutedeo etnograacutefico de um filme etnograacutefico ou de

um trabalho fotoetnograacutefico Futuramente estaremos fazendo a ldquovelhardquo e tradicional

antropologia tambeacutem atraveacutes de uma linguagem multimiacutedia (ACHUTTI 199739)

Em termos metodoloacutegicos

A proposta aqui eacute do emprego da antropologia visual enquanto um recurso narrativo

autocircnomo na funccedilatildeo de convergir significaccedilotildees e informaccedilotildees a respeito de uma

dada situaccedilatildeo social (ACHUTTI 199713)

Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria Oral presente nos discursos e entrevistas partimos do

princiacutepio que ldquoAtraveacutes da memoacuteria individual seraacute possiacutevel recuperar a memoacuteria coletiva de

um periacuteodo sobre o qual existe muito pouca documentaccedilatildeo Essa histoacuteria aleacutem de contribuir

para um melhor conhecimento da comunidaderdquo (Becker 2001286) Assim podemos

entender em consenso que

Usando a histoacuteria oral como meacutetodo e praacutetica de pesquisa somada agraves formas

tradicionais percorreremos juntamente com nossos personagens lugares da

memoacuteria e do esquecimento para ldquoreconstruirrdquo as suas trajetoacuterias de vida tentando

assim montar um quadro histoacuterico do periacuteodo pesquisado (BECKER 2001286)

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Assim a antropologia visual e a histoacuteria oral vecircm como recurso metodoloacutegico e

teacutecnico dar maior suporte agraves pesquisas envolvendo populaccedilotildees tradicionais em particular as

comunidades negras rurais que ainda encontram-se em um processo de invisibilidade social

Para o historiador Josemir Camilo de Melo (2001189)

Quando se analisa a histoacuteria do povo negro natildeo se deve usar da mesma metodologia

que se usa para abordar a histoacuteria dos povos europeus e seus descendentes nos

troacutepicos A histoacuteria dos brancos eacute feita de documentos oficiais e particulares jaacute que

estamos tratando aiacute de uma sociedade letrada No caso dos africanos sequestrados e

trazidos para o Brasil e seus descendentes aqui nascidos e mantidos como iletrados

os documentos para estudar sua histoacuteria natildeo satildeo mais do mesmo caraacuteter ou seja

material escrito Portanto o historiador deveria proceder um desvio metodoloacutegico e

teoacuterico optando entatildeo pela etnografia e buscar a fala do povo negro nas fontes

antropoloacutegicas e etnoloacutegicas

Neste sentido optou-se por uma leitura criacutetica na literatura regional que trata das

comunidades quilombolas Para isto foram consultados textos acadecircmicos de autores locais

em eacutepocas diversas procurando ver a fala do povo negro representada nestes textos-discursos

Inicialmente percebe-se que a literatura produzida no Seacuteculo XX (mesmo a da aacuterea

antropoloacutegica) estaacute impregnada de uma visatildeo racista etnocecircntrica e comprometida com

valores regionais No Seacuteculo XXI houve uma alteraccedilatildeo substancial a inclusatildeo de acadecircmicos

militantes do Movimento Negro (mesmo que informalmente) e estudantes originaacuterios de

comunidades quilombolas

Ao fim colocamos uma listagem (atualizada em 2017) sobre as comunidades negras

localizadas no Rio Grande do Norte

Comunidades Quilombolas um conceito poliacutetico

O conceito mais atualizado para definir Comunidades Quilombolas tangencia de uma

concepccedilatildeo histoacuterica que vincula estas com lutas e fugas de escravos Este conceito eacute assim

tambeacutem entendido pelo Estado Entatildeo podemos entender que comunidades quilombolas satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo (Decreto 48872003)

Por ser um conceito definido por Decreto e com fins juriacutedicos tem uma base legal

constituiacuteda a partir da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 em seus artigos 215 e 216 da

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Constituiccedilatildeo Federal que tratam do ldquoDireito agrave preservaccedilatildeo de sua proacutepria culturardquo e

tambeacutem

Do Artigo 68 do ADCT ndash Direito agrave propriedade das terras de comunidades

remanescentes de quilombos

Da Convenccedilatildeo 169 da OIT (Dec 50512004) ndash Direito agrave autodeterminaccedilatildeo de Povos e

Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 4887 de 20 de novembro de 2003 ndash Trata da regularizaccedilatildeo fundiaacuteria de

terras de quilombos e define as responsabilidades dos oacutergatildeos governamentais

Do Decreto nordm 6040 de 7 de fevereiro de 2007 ndash Institui a Poliacutetica Nacional de

Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 6261 de 20 de novembro de 2007 ndash Dispotildee sobre a gestatildeo integrada

para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola no acircmbito do Programa Brasil

Quilombola

Da Portaria Fundaccedilatildeo Cultural Palmares nordm 98 de 26 de novembro de 2007 ndash Institui o

Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundaccedilatildeo Cultural

Palmares tambeacutem autodenominadas Terras de Preto Comunidades Negras Mocambos

Quilombos entre outras denominaccedilotildees congecircneres

Da Instruccedilatildeo Normativa INCRA nordm 57 de 20 de outubro de 2009 ndash Regulamenta o

procedimento para identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo desintrusatildeo

titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos

Entretanto devemos perceber este conceito como resultado de toda uma accedilatildeo da

Antropologia brasileira que vem se debruccedilando sobre a questatildeo das comunidades tradicionais

ao colocar que

Natildeo haacute duacutevidas de que a antropologia constitui campo consolidado e dinacircmico no

Brasil que tem obtido reconhecimento nacional e internacional pelos seus patamares

de excelecircncia cientiacutefica Combinando o interesse em compreender o mundo com a

preocupaccedilatildeo em desvendar coacutedigos culturais e os interstiacutecios sociais da vida

cotidiana a pesquisa antropoloacutegica eacute extremamente relevante para desvendar

problemaacuteticas que estatildeo na ordem do dia sobre a produccedilatildeo da diferenccedila cultural e

desigualdades sociais saberes e praacuteticas tradicionais patrimocircnio cultural e inclusatildeo

social e ainda desenvolvimento econocircmico e social (BELA 201319)

Para a antropoacuteloga Ilka Boaventura Leite eacute importante entender o fenocircmeno da

invisibilidade social e poliacutetica dessas populaccedilotildees como algo construiacutedo em nossa histoacuteria foi

inculcado cultural e principalmente politicamente nas populaccedilotildees mais vulneraacuteveis na

histoacuteria de construccedilatildeo de uma naccedilatildeo com moldes europeus Nestes termos as populaccedilotildees

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afro-brasileiras foram ignoradas ao pensar a o projeto de naccedilatildeo para o Brasil A invisibilidade

gerando uma marginalizaccedilatildeo histoacuterica geograacutefica e poliacutetica Pode-se ainda pensar que

A consolidaccedilatildeo da naccedilatildeo obteve o suporte ideoloacutegico do racialismo reforccedilando com

ele um projeto de orientaccedilatildeo liberal inspirado num tipo de universalismo iluminista

que invisibilizou as pautas poliacuteticas e sociais dos grupos negros e indiacutegenas O tipo

de ocupaccedilatildeo do espaccedilo territorial e a manutenccedilatildeo da fronteira eacutetnica pelos grupos

foram portanto um relevante fator de reorganizaccedilatildeo das diferenccedilas com perdas

significativas para os que jaacute se encontravam anteriormente na terra ndash principalmente

os africanos os indiacutegenas e os chamados ldquocaboclos (LEITE 200896)

Essa espeacutecie de topografia eacutetnica traduziu-se na continuidade das estrateacutegias de

expropriaccedilatildeo das terras e na forma como esse projeto se tornou hegemocircnico e se

reproduziu com sucesso ateacute os dias atuais Eacute tambeacutem possiacutevel depreender as formas

de resistecircncia daqueles que foram excluiacutedos do direito de se apropriar bem como de

titular suas terras As linhas demarcatoacuterias dos grupos para aleacutem das diferenccedilas

culturais tornaram-se formas matriciais de continuidade da hierarquizaccedilatildeo de novas

formas de exploraccedilatildeo e principalmente da perpetuaccedilatildeo das desigualdades sociais

(LEITE 2008967)

No momento histoacuterico que se iniciou com a promulgaccedilatildeo da Consttuiccedilatildeo Federal

(1988) podemos inferir que

Tais comunidades se revestem de grande atualidade no paiacutes em virtude do avanccedilo

das poliacuteticas puacuteblicas no sentido de fazer cumprir os dispositivos constitucionais do

tombamento salvaguarda e preservaccedilatildeo delas consideradas que foram pelo Artigo

216 da CF integrantes do patrimocircnio Cultural Nacional e pelo Artigo 68 dos

ADCTs como justamente merecedoras do seu reconhecimento e da atribuiccedilatildeo de

posse definitiva do seu territoacuterio por parte do Estado Nacionalrdquo (MEDEIROS In

TAMASO e LIMA Filho 2012 377)

Neste sentido podemos vislumbrar um cenaacuterio com novas possibilidades para a

elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para esta parcela consideraacutevel da populaccedilatildeo

brasileira a populaccedilatildeo das comunidades quilombolas

Evidentemente esta situaccedilatildeo eleva questionamentos de ordem conceitual e histoacuterica

ao tratar de um tema novo as comunidades quilombolas que estatildeo espalhadas em todo o

territoacuterio nacional e tecircm como caracteriacutestica comum a pobreza e a dificuldade de acesso agraves

poliacuteticas sociais especiacuteficas para este grupo Satildeo viacutetimas constantes de Racismo Xenofobia e

outras formas de violecircncia que resultam na manutenccedilatildeo eou dificuldades de alteraccedilatildeo

positiva em relaccedilatildeo ao quadro de pobreza da maioria destas comunidades

Os quilombos no Brasil

Para uma melhor compreensatildeo da situaccedilatildeo das terras quilombolas e de outros

territoacuterios tradicionais no Brasil eacute fundamental fazer-se referecircncia agrave Lei de Concessatildeo de

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Terras de 1850 Eacute nesse momento que se vincula definitivamente a posse e a propriedade da

terra agravequele que possui recurso monetaacuterio para adquiri-la e legalizaacute-la cartorialmente Essa lei

tornaria ainda mais difiacutecil a inclusatildeo do negro apoacutes a Aboliccedilatildeo de 1888 realizada sem

qualquer reparaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo escravizada

A luta contemporacircnea dos quilombolas por direitos territoriais pode ser interpretada

como o reconhecimento do fracasso da realidade juriacutedica estabelecida tanto pela ldquoLei de

Terrasrdquo que pretendeu moldar a sociedade brasileira na perspectiva da propriedade privada de

terras quanto pela forma mesma com que se daacute a aboliccedilatildeo da escravidatildeo A noccedilatildeo de terra

coletiva como satildeo pensadas as terras de comunidades quilombolas contraria o modelo

baseado na propriedade privada como uacutenica forma de acesso e uso da terra o qual exclui

outros usos e relaccedilotildees com o territoacuterio como ocorre entre povos e comunidades tradicionais

Aleacutem dos quilombos constituiacutedos no periacuteodo escravocrata muitos foram formados

apoacutes a aboliccedilatildeo formal da escravatura pois essa forma de organizaccedilatildeo comunitaacuteria

continuaria a ser para muitos a uacutenica possibilidade de viver em liberdade Constituir um

quilombo tornou-se um imperativo de sobrevivecircncia posto que a Lei Aacuteurea diferentemente

do propugnado pelo movimento abolicionista natildeo levou em conta mecanismos de

redistribuiccedilatildeo de terras

De um modo geral os territoacuterios quilombolas originaram-se em diferentes situaccedilotildees

tais como doaccedilotildees de terras realizadas a partir da desagregaccedilatildeo da lavoura de monoculturas

como a cana-de-accediluacutecar e o algodatildeo compra de terras pelos proacuteprios sujeitos possibilitada

pela desestruturaccedilatildeo do sistema escravista terras que foram conquistadas por meio da

prestaccedilatildeo de serviccedilos inclusive de guerra bem como aacutereas ocupadas por negros que fugiam

da escravidatildeo Haacute tambeacutem as chamadas terras de preto terras de santo ou terras de santiacutessima

que indicam uma territorialidade vinda de propriedades de ordens religiosas da doaccedilatildeo de

terras para santos e do recebimento de terras em troca de serviccedilos religiosos prestados a

senhores de escravos por sacerdotes de religiotildees afro-brasileiras

Os quilombos permaneceram invisibilizados durante todo o periacuteodo republicano e

reaparecem como resultado da accedilatildeo dos movimentos negros apenas com a Constituiccedilatildeo de

1988 como territoacuterios detentores de direitos Transcorreram portanto cerca de cem anos da

aboliccedilatildeo ateacute a aprovaccedilatildeo do Artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias

(ADCT) o qual assegura o seguinte Aos quilombolas que estejam ocupando suas terras eacute

reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivos

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Tais comunidades se distinguem pela identidade eacutetnica tendo desenvolvido praacuteticas

de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo de modos de vida caracteriacutesticos num determinado lugar Satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida

As comunidades quilombolas localizam-se em 24 estados da federaccedilatildeo sendo a

maior parte nos estados do Maranhatildeo Bahia Paraacute Minas Gerais e Pernambuco Os uacutenicos

estados que natildeo registram ocorrecircncias dessas comunidades satildeo o Acre e Roraima aleacutem do

Distrito Federal

As populaccedilotildees afro-brasileiras na literatura do Rio Grande do Norte

A literatura que trata da questatildeo da populaccedilatildeo negra no Estado pode ser

classificada por dois momentos distintos inicialmente estudos sobre a populaccedilatildeo

escravizada e aspectos das irmandades religiosas (Cascudo Medeiros Melo e Mattos) e

mais atualmente os relatoacuterios antropoloacutegicos e textos acadecircmicos sobre comunidades

negras rurais

O folclorista e historiador Luiacutes da Cacircmara Cascudo mostra uma anaacutelise importante

sobre as diferenccedilas na condiccedilatildeo de escravo nos engenhos de cana de accediluacutecar e nas fazendas

do sertatildeo No primeiro caso era demandado um grande nuacutemero de matildeo-de-obra cujo

controle baseava-se em regras riacutegidas de separaccedilatildeo entre senhores e escravos enquanto que

no sertatildeo as relaccedilotildees entre escravo e senhor garantiam ao primeiro um espaccedilo de atuaccedilatildeo

poliacutetica e econocircmica mais definido Cascudo incita-nos com a seguinte descriccedilatildeo

Na criaccedilatildeo do gado os donos e os escravos estatildeo na mesma linha tenaz de

coragem e batalha Satildeo dois vaqueiros Vestem a mesma veacutestia de couro

Encontraram o mesmo perigo o mesmo carrascal a mesma grota o aclive suacutebito

e escabroso

Assim a fazenda de gado rude de missatildeo imediata individual criou o homem na

semelhanccedila do seu uso

Esta escola determinou no escravo uma personalidade superior e sentida Sentia-

se senhor de seu campo na sela do seu cavalo como um baratildeo guerreiro Vezes

inuacutemeras o senhor entrega a fazenda ao escravo vaqueiro e vai-se embora O

negro era senhor de vidas e de gado vendendo colhendo discutindo escolhendo

sua escala de tarefas sabendo mandar planejar arriscar vencer(BRITO

199747)

Tarciacutesio Medeiros de maneira etnocecircntrica relega aos negros no Rio Grande do

Norte pouca importacircncia como ator social Ele mostra o negro balizado em conceitos

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relacionados ao mito da democracia racial Nega o legado cultural do negro para a cultura

local Ignora por conseguinte a religiosidade a culinaacuteria o vocabulaacuterio e expressotildees

culturais como a danccedila do espontatildeo e as cantorias Com exemplo podemos ver o trato

preconceituoso que ele daacute agraves religiotildees afro-brasileiras no Rio Grande do Norte quando cita

Do negro escravo no Estado ficaram poucas tradiccedilotildees De crendices e

supersticcedilotildees das que viveram nos canaviais ficou o canjerecirc feiticcedilo a cousa-feita

mas desconhecem o padecirc Exu Xangocirc Aacuteguas de Iemanjaacute que surgiram apoacutes a

deacutecada de 1950 produtos de importaccedilatildeo made in Bahia Rio de Janeiro

Pernambuco O ambiente canavieiro facilitou a supersticcedilatildeo dessa natureza mais

acentuadamente que nas fazendas de gado com escravaria reduzida (Medeiros

973229)

Por outro lado seu texto eacute rico em informaccedilotildees etnograacuteficas ndash que muitas vezes

contradiz suas afirmaccedilotildees generalizadas ndash quando cita sobre a presenccedila negra no RN por

exemplo Eacute sua a citaccedilatildeo que diz

Evidentemente nesse iniacutecio do seacuteculo XVII com o portuguecircs chega no Rio

Grande do Norte o elemento negro A presenccedila entre noacutes tem que ser estudada

diretamente com o fenocircmeno da escravidatildeo e esta no momento de sua

permissibilidade ocorreu em 1600 quando os primeiros escravos chegaram agrave vila

de Natal (MEDEIROS 198847)

Os textos acadecircmicos iniciais no Rio Grande do Norte procuravam exaltar aspectos

que folclorizavam os aspectos culturais da vida das populaccedilotildees negras rurais ignorando

aspectos eacuteticos na conduccedilatildeo de pesquisas antropoloacutegicas envolvendo populaccedilotildees

vulneraacuteveis resultando muitas vezes em textos no qual se expotildee situaccedilotildees no miacutenimo

constrangedoras destas pessoas

Na deacutecada seguinte este olhar privilegiando o exoacutetico sobre populaccedilotildees

quilombolas no Estado do Rio Grande do Norte chegou agrave academia em forma de dissertaccedilatildeo

de um historiador da regiatildeo em um mestrado na Antropologia (Assunccedilatildeo 1994) sobre uma

comunidade quilombola Como exemplo ele cita de forma preconceituosa e racista sem o

menor constrangimento em seu trabalho Os negros do Riacho estrateacutegias de sobrevivecircncia

e identidade social duas situaccedilotildees de caraacuteter iacutentimo da comunidade a praacutetica da

religiosidade afro-ameriacutendia e a tipologia de ldquorelaccedilotildees matrimoniais natildeo convencionais

(bigamia e incesto)rdquo

Em relaccedilatildeo agrave religiosidade Assunccedilatildeo chama simplesmente de feiticcedilo todo um

conjunto de conhecimento e praacuteticas que evocam a memoacuteria do grupo na afirmaccedilatildeo de uma

identidade proacutepria a religiosidade afro-brasileira e ameriacutendia Seu texto eacute carregado de

preconceitos quando cita assim

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Os ldquocaboclosrdquo acreditam no feiticcedilo como se fosse ldquouma coisa que numa pessoa eacute

uma coisa botadardquo Tanto os homens quanto as mulheres acreditam no feiticcedilo mas

apenas as mulheres o praticam Essa praacutetica se daacute para o mal e para o bem

(ASSUNCcedilAtildeO 199436)

No que diz respeito agraves relaccedilotildees matrimoniais Assunccedilatildeo afirma (atraveacutes das falas

dos moradores) que era comum a de um homem com vaacuterias mulheres como nesta sua

citaccedilatildeo

A uniatildeo de um homem com mais de uma mulher eacute uma praacutetica que vem desde os

tempos mais antigos

Outra questatildeo eacute que estes casamentos sempre ocorreram entre pessoas do

mesmo grupo entre membros que pertencem agraves famiacutelias existentes no grupordquo

A autora desse depoimento e sua irmatilde ldquovivemrdquo com o mesmo homem que eacute

primo em terceiro grau (ASSUNCcedilAtildeO 19944041 e 42)

E Assunccedilatildeo tambeacutem cita contrariando agrave vontade da comunidade dois casos de

uniatildeo incestuosa

Os ldquonegrosrdquo mais velhos viveram na eacutepoca e se lembram de casos como o do pai

que teve filhos com sua filha todos residindo na mesma unidade Tiveram trecircs

filhos estando vivo apenas um filho que natildeo reside no grupo Esta crianccedila foi

dada para uma outra famiacutelia externa ao grupo Houve tambeacutem o caso de um

irmatildeo que teve um filho com sua irmatilde Estes estatildeo vivos e residem no proacuteprio

grupo Mas desses casos os ldquonegrosrdquo natildeo gostam de falar (ASSUNCcedilAtildeO

199443)

Mais um dado de questionaacutevel ldquoimportacircnciardquo antropoloacutegica nos eacute ofertado ainda

por Assunccedilatildeo quando em seu afatilde de ver tudo folclorizado ateacute uma simples separaccedilatildeo eacute

colocada de forma atiacutepica

Outra situaccedilatildeo que existe desde o tempo dos antigos eacute a praacutetica de separaccedilatildeo entre

os cocircnjuges quando consideram que o casamento se esgotou Nesse caso tanto o

homem como a mulher podem se casar novamente chegando ateacute a se casar por

trecircs vezes dando-se o evento seja por motivo de morte seja por separaccedilatildeo

(ASSUNCcedilAtildeO199443)

Este texto de Luiz Assunccedilatildeo eacute exemplo de um discurso tiacutepico dos ldquobrancosrdquo do

Seridoacute Discurso este que aqui se transforma em ldquoverdade cientiacuteficardquo atraveacutes da publicaccedilatildeo

e consequentemente a exposiccedilatildeo de dramas particulares de uma comunidade negra A

consequecircncia desta atitude eacute o conhecimento deste texto por pessoas da regiatildeo e atraveacutes

dele a justificativa da exclusatildeo da comunidade em poliacuteticas sociais

Para o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira que tem uma ampla experiecircncia com

populaccedilotildees tradicionais vale a observaccedilatildeo sobre a responsabilidade dos antropoacutelogos que

trabalham com estas comunidades

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Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

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ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

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colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

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oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

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Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

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Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

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conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

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coletado-a-ceu-aberto-queimado-ou-enterrado acesso em 200615

Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

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em curso parecem ser hoje os grandes desafios no campo das poliacuteticas puacuteblicas para

igualdade racial

Compreendendo as desigualdades raciais como produto de um amplo e complexo

processo de reproduccedilatildeo de iniquidades e de hierarquias sociais seu enfrentamento natildeo deve

ficar restrito a accedilotildees que possam ser implementadas por um nuacutecleo especiacutefico da accedilatildeo puacuteblica

O reconhecimento da desigualdade racial e da necessidade de seu enfrentamento assim como

da eliminaccedilatildeo do preconceito e da discriminaccedilatildeo raciais pressupotildee o reconhecimento de que

esse problema perpassa os mais diferentes espaccedilos da vida social

O enfrentamento de uma questatildeo com a centralidade da temaacutetica racial que perpassa o

tecido e as relaccedilotildees sociais no paiacutes natildeo pode prescindir de uma accedilatildeo de Estado desenvolvida

mediante uma Poliacutetica Nacional que inclua a adoccedilatildeo de um posicionamento efetivo das

instacircncias governamentais e natildeo apenas a Secretaria Especial de Poliacuteticas de Promoccedilatildeo da

Igualdade Racial - SEPPIR Eacute necessaacuterio que as desigualdades raciais sejam incorporadas

como desafios em cada uma das poliacuteticas setoriais Os indicadores superiores de repetecircncia e

evasatildeo de crianccedilas negras nas escolas brasileiras aguardam serem transformados em metas

para a intervenccedilatildeo da poliacutetica de educaccedilatildeo da mesma forma que as taxas reduzidas de

cobertura de mulheres negras em exames e procedimentos de sauacutede a violecircncia policial

contra jovens negros entre inuacutemeros exemplos que podem ser citados Ministeacuterios e oacutergatildeos

setoriais aleacutem do Legislativo e do Judiciaacuterio devem ser envolvidos em uma poliacutetica que

tenha diretrizes e metas balizadoras da accedilatildeo puacuteblica sinalizando para os estados e municiacutepios

e para a sociedade sobre a importacircncia da intervenccedilatildeo governamental na busca da igualdade

racial Neste sentido as poliacuteticas puacuteblicas dependem de informaccedilotildees ndashsempre- atualizadas em

dados referentes agraves Comunidades quilombolas em seus contextos sociopoliacutetico

Neste artigo eacute mostrada a pesquisa (de cunho individual) que venho realizando desde

1987 no Rio Grande do Norte na aacuterea de antropologia afro-brasileira em especial sobre

comunidades negras rurais terreiros de matriz afro-brasileira e territoacuterios urbanos

Neste texto discorro sobre o conceito de comunidades quilombolas a questatildeo dos

quilombos no Brasil e no estado do Rio Grande do Norte explanando sobre a literatura

regional que trata dessas populaccedilotildees afro-brasileiras na regiatildeo Por fim mostramos o

resultado da citada pesquisa sobre a presenccedila de comunidades e territoacuterios negros no Rio

Grande do Norte

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A pesquisa sobre comunidades tradicionais afro-brasileiras no Rio Grande no Norte

Como recursos metodoloacutegicos foram utilizadas teacutecnicas proacuteprias da Antropologia e

da Histoacuteria De forma geral continuamos realizando uma pesquisa histoacuterico-documental com

a utilizaccedilatildeo de diversas teacutecnicas como entrevistas visita de campo e registro audiovisual

durante os trabalhos na regiatildeo

Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo da fotografia como recurso ldquoauxiliarrdquo na pesquisa

salientamos sua importacircncia aleacutem do aspecto meramente ilustrativo pois eacute sabido que

A construccedilatildeo de narrativas atraveacutes da imagem fotograacutefica vem a ser articulada com

o texto verbal e a legitimidade que este alcanccedilou contribuir no sentido de enriquecer

e agregar aleacutem de outras formas narrativas como e literatura ou a poesia

complexidade aos esforccedilos de interpretaccedilatildeo de universos sociais cada vez mais

densos e complexos onde imagens por sua vez tornam-se cada vez mais um

elemento da proacutepria sociabilidade (ACHUTTI 199738-39)

Neste trabalho entendemos a fotografia ou fotoetnografia como elemento necessaacuterio agrave

composiccedilatildeo do Relatoacuterio Antropoloacutegico Neste sentido

Parece significativa a ideia dos colegas do Nuacutecleo de Antropologia Visual da

UFRGS quando afirmam que a antropologia visual natildeo se trata de uma disciplina

independente mas ldquosim da mesma e velha antropologia de sempre poreacutem

apresentada sobre esse outro continente que eacute a comunicaccedilatildeo audiovisual Natildeo eacute

uma Antropologia da Imagem mas uma antropologia em imagensrdquo (Rodolpho et

alli 1995169) Uma antropologia em imagens poderaacute ser feita mediante o domiacutenio

das teacutecnicas de construccedilatildeo de um viacutedeo etnograacutefico de um filme etnograacutefico ou de

um trabalho fotoetnograacutefico Futuramente estaremos fazendo a ldquovelhardquo e tradicional

antropologia tambeacutem atraveacutes de uma linguagem multimiacutedia (ACHUTTI 199739)

Em termos metodoloacutegicos

A proposta aqui eacute do emprego da antropologia visual enquanto um recurso narrativo

autocircnomo na funccedilatildeo de convergir significaccedilotildees e informaccedilotildees a respeito de uma

dada situaccedilatildeo social (ACHUTTI 199713)

Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria Oral presente nos discursos e entrevistas partimos do

princiacutepio que ldquoAtraveacutes da memoacuteria individual seraacute possiacutevel recuperar a memoacuteria coletiva de

um periacuteodo sobre o qual existe muito pouca documentaccedilatildeo Essa histoacuteria aleacutem de contribuir

para um melhor conhecimento da comunidaderdquo (Becker 2001286) Assim podemos

entender em consenso que

Usando a histoacuteria oral como meacutetodo e praacutetica de pesquisa somada agraves formas

tradicionais percorreremos juntamente com nossos personagens lugares da

memoacuteria e do esquecimento para ldquoreconstruirrdquo as suas trajetoacuterias de vida tentando

assim montar um quadro histoacuterico do periacuteodo pesquisado (BECKER 2001286)

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Assim a antropologia visual e a histoacuteria oral vecircm como recurso metodoloacutegico e

teacutecnico dar maior suporte agraves pesquisas envolvendo populaccedilotildees tradicionais em particular as

comunidades negras rurais que ainda encontram-se em um processo de invisibilidade social

Para o historiador Josemir Camilo de Melo (2001189)

Quando se analisa a histoacuteria do povo negro natildeo se deve usar da mesma metodologia

que se usa para abordar a histoacuteria dos povos europeus e seus descendentes nos

troacutepicos A histoacuteria dos brancos eacute feita de documentos oficiais e particulares jaacute que

estamos tratando aiacute de uma sociedade letrada No caso dos africanos sequestrados e

trazidos para o Brasil e seus descendentes aqui nascidos e mantidos como iletrados

os documentos para estudar sua histoacuteria natildeo satildeo mais do mesmo caraacuteter ou seja

material escrito Portanto o historiador deveria proceder um desvio metodoloacutegico e

teoacuterico optando entatildeo pela etnografia e buscar a fala do povo negro nas fontes

antropoloacutegicas e etnoloacutegicas

Neste sentido optou-se por uma leitura criacutetica na literatura regional que trata das

comunidades quilombolas Para isto foram consultados textos acadecircmicos de autores locais

em eacutepocas diversas procurando ver a fala do povo negro representada nestes textos-discursos

Inicialmente percebe-se que a literatura produzida no Seacuteculo XX (mesmo a da aacuterea

antropoloacutegica) estaacute impregnada de uma visatildeo racista etnocecircntrica e comprometida com

valores regionais No Seacuteculo XXI houve uma alteraccedilatildeo substancial a inclusatildeo de acadecircmicos

militantes do Movimento Negro (mesmo que informalmente) e estudantes originaacuterios de

comunidades quilombolas

Ao fim colocamos uma listagem (atualizada em 2017) sobre as comunidades negras

localizadas no Rio Grande do Norte

Comunidades Quilombolas um conceito poliacutetico

O conceito mais atualizado para definir Comunidades Quilombolas tangencia de uma

concepccedilatildeo histoacuterica que vincula estas com lutas e fugas de escravos Este conceito eacute assim

tambeacutem entendido pelo Estado Entatildeo podemos entender que comunidades quilombolas satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo (Decreto 48872003)

Por ser um conceito definido por Decreto e com fins juriacutedicos tem uma base legal

constituiacuteda a partir da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 em seus artigos 215 e 216 da

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Constituiccedilatildeo Federal que tratam do ldquoDireito agrave preservaccedilatildeo de sua proacutepria culturardquo e

tambeacutem

Do Artigo 68 do ADCT ndash Direito agrave propriedade das terras de comunidades

remanescentes de quilombos

Da Convenccedilatildeo 169 da OIT (Dec 50512004) ndash Direito agrave autodeterminaccedilatildeo de Povos e

Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 4887 de 20 de novembro de 2003 ndash Trata da regularizaccedilatildeo fundiaacuteria de

terras de quilombos e define as responsabilidades dos oacutergatildeos governamentais

Do Decreto nordm 6040 de 7 de fevereiro de 2007 ndash Institui a Poliacutetica Nacional de

Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 6261 de 20 de novembro de 2007 ndash Dispotildee sobre a gestatildeo integrada

para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola no acircmbito do Programa Brasil

Quilombola

Da Portaria Fundaccedilatildeo Cultural Palmares nordm 98 de 26 de novembro de 2007 ndash Institui o

Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundaccedilatildeo Cultural

Palmares tambeacutem autodenominadas Terras de Preto Comunidades Negras Mocambos

Quilombos entre outras denominaccedilotildees congecircneres

Da Instruccedilatildeo Normativa INCRA nordm 57 de 20 de outubro de 2009 ndash Regulamenta o

procedimento para identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo desintrusatildeo

titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos

Entretanto devemos perceber este conceito como resultado de toda uma accedilatildeo da

Antropologia brasileira que vem se debruccedilando sobre a questatildeo das comunidades tradicionais

ao colocar que

Natildeo haacute duacutevidas de que a antropologia constitui campo consolidado e dinacircmico no

Brasil que tem obtido reconhecimento nacional e internacional pelos seus patamares

de excelecircncia cientiacutefica Combinando o interesse em compreender o mundo com a

preocupaccedilatildeo em desvendar coacutedigos culturais e os interstiacutecios sociais da vida

cotidiana a pesquisa antropoloacutegica eacute extremamente relevante para desvendar

problemaacuteticas que estatildeo na ordem do dia sobre a produccedilatildeo da diferenccedila cultural e

desigualdades sociais saberes e praacuteticas tradicionais patrimocircnio cultural e inclusatildeo

social e ainda desenvolvimento econocircmico e social (BELA 201319)

Para a antropoacuteloga Ilka Boaventura Leite eacute importante entender o fenocircmeno da

invisibilidade social e poliacutetica dessas populaccedilotildees como algo construiacutedo em nossa histoacuteria foi

inculcado cultural e principalmente politicamente nas populaccedilotildees mais vulneraacuteveis na

histoacuteria de construccedilatildeo de uma naccedilatildeo com moldes europeus Nestes termos as populaccedilotildees

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afro-brasileiras foram ignoradas ao pensar a o projeto de naccedilatildeo para o Brasil A invisibilidade

gerando uma marginalizaccedilatildeo histoacuterica geograacutefica e poliacutetica Pode-se ainda pensar que

A consolidaccedilatildeo da naccedilatildeo obteve o suporte ideoloacutegico do racialismo reforccedilando com

ele um projeto de orientaccedilatildeo liberal inspirado num tipo de universalismo iluminista

que invisibilizou as pautas poliacuteticas e sociais dos grupos negros e indiacutegenas O tipo

de ocupaccedilatildeo do espaccedilo territorial e a manutenccedilatildeo da fronteira eacutetnica pelos grupos

foram portanto um relevante fator de reorganizaccedilatildeo das diferenccedilas com perdas

significativas para os que jaacute se encontravam anteriormente na terra ndash principalmente

os africanos os indiacutegenas e os chamados ldquocaboclos (LEITE 200896)

Essa espeacutecie de topografia eacutetnica traduziu-se na continuidade das estrateacutegias de

expropriaccedilatildeo das terras e na forma como esse projeto se tornou hegemocircnico e se

reproduziu com sucesso ateacute os dias atuais Eacute tambeacutem possiacutevel depreender as formas

de resistecircncia daqueles que foram excluiacutedos do direito de se apropriar bem como de

titular suas terras As linhas demarcatoacuterias dos grupos para aleacutem das diferenccedilas

culturais tornaram-se formas matriciais de continuidade da hierarquizaccedilatildeo de novas

formas de exploraccedilatildeo e principalmente da perpetuaccedilatildeo das desigualdades sociais

(LEITE 2008967)

No momento histoacuterico que se iniciou com a promulgaccedilatildeo da Consttuiccedilatildeo Federal

(1988) podemos inferir que

Tais comunidades se revestem de grande atualidade no paiacutes em virtude do avanccedilo

das poliacuteticas puacuteblicas no sentido de fazer cumprir os dispositivos constitucionais do

tombamento salvaguarda e preservaccedilatildeo delas consideradas que foram pelo Artigo

216 da CF integrantes do patrimocircnio Cultural Nacional e pelo Artigo 68 dos

ADCTs como justamente merecedoras do seu reconhecimento e da atribuiccedilatildeo de

posse definitiva do seu territoacuterio por parte do Estado Nacionalrdquo (MEDEIROS In

TAMASO e LIMA Filho 2012 377)

Neste sentido podemos vislumbrar um cenaacuterio com novas possibilidades para a

elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para esta parcela consideraacutevel da populaccedilatildeo

brasileira a populaccedilatildeo das comunidades quilombolas

Evidentemente esta situaccedilatildeo eleva questionamentos de ordem conceitual e histoacuterica

ao tratar de um tema novo as comunidades quilombolas que estatildeo espalhadas em todo o

territoacuterio nacional e tecircm como caracteriacutestica comum a pobreza e a dificuldade de acesso agraves

poliacuteticas sociais especiacuteficas para este grupo Satildeo viacutetimas constantes de Racismo Xenofobia e

outras formas de violecircncia que resultam na manutenccedilatildeo eou dificuldades de alteraccedilatildeo

positiva em relaccedilatildeo ao quadro de pobreza da maioria destas comunidades

Os quilombos no Brasil

Para uma melhor compreensatildeo da situaccedilatildeo das terras quilombolas e de outros

territoacuterios tradicionais no Brasil eacute fundamental fazer-se referecircncia agrave Lei de Concessatildeo de

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Terras de 1850 Eacute nesse momento que se vincula definitivamente a posse e a propriedade da

terra agravequele que possui recurso monetaacuterio para adquiri-la e legalizaacute-la cartorialmente Essa lei

tornaria ainda mais difiacutecil a inclusatildeo do negro apoacutes a Aboliccedilatildeo de 1888 realizada sem

qualquer reparaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo escravizada

A luta contemporacircnea dos quilombolas por direitos territoriais pode ser interpretada

como o reconhecimento do fracasso da realidade juriacutedica estabelecida tanto pela ldquoLei de

Terrasrdquo que pretendeu moldar a sociedade brasileira na perspectiva da propriedade privada de

terras quanto pela forma mesma com que se daacute a aboliccedilatildeo da escravidatildeo A noccedilatildeo de terra

coletiva como satildeo pensadas as terras de comunidades quilombolas contraria o modelo

baseado na propriedade privada como uacutenica forma de acesso e uso da terra o qual exclui

outros usos e relaccedilotildees com o territoacuterio como ocorre entre povos e comunidades tradicionais

Aleacutem dos quilombos constituiacutedos no periacuteodo escravocrata muitos foram formados

apoacutes a aboliccedilatildeo formal da escravatura pois essa forma de organizaccedilatildeo comunitaacuteria

continuaria a ser para muitos a uacutenica possibilidade de viver em liberdade Constituir um

quilombo tornou-se um imperativo de sobrevivecircncia posto que a Lei Aacuteurea diferentemente

do propugnado pelo movimento abolicionista natildeo levou em conta mecanismos de

redistribuiccedilatildeo de terras

De um modo geral os territoacuterios quilombolas originaram-se em diferentes situaccedilotildees

tais como doaccedilotildees de terras realizadas a partir da desagregaccedilatildeo da lavoura de monoculturas

como a cana-de-accediluacutecar e o algodatildeo compra de terras pelos proacuteprios sujeitos possibilitada

pela desestruturaccedilatildeo do sistema escravista terras que foram conquistadas por meio da

prestaccedilatildeo de serviccedilos inclusive de guerra bem como aacutereas ocupadas por negros que fugiam

da escravidatildeo Haacute tambeacutem as chamadas terras de preto terras de santo ou terras de santiacutessima

que indicam uma territorialidade vinda de propriedades de ordens religiosas da doaccedilatildeo de

terras para santos e do recebimento de terras em troca de serviccedilos religiosos prestados a

senhores de escravos por sacerdotes de religiotildees afro-brasileiras

Os quilombos permaneceram invisibilizados durante todo o periacuteodo republicano e

reaparecem como resultado da accedilatildeo dos movimentos negros apenas com a Constituiccedilatildeo de

1988 como territoacuterios detentores de direitos Transcorreram portanto cerca de cem anos da

aboliccedilatildeo ateacute a aprovaccedilatildeo do Artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias

(ADCT) o qual assegura o seguinte Aos quilombolas que estejam ocupando suas terras eacute

reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivos

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Tais comunidades se distinguem pela identidade eacutetnica tendo desenvolvido praacuteticas

de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo de modos de vida caracteriacutesticos num determinado lugar Satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida

As comunidades quilombolas localizam-se em 24 estados da federaccedilatildeo sendo a

maior parte nos estados do Maranhatildeo Bahia Paraacute Minas Gerais e Pernambuco Os uacutenicos

estados que natildeo registram ocorrecircncias dessas comunidades satildeo o Acre e Roraima aleacutem do

Distrito Federal

As populaccedilotildees afro-brasileiras na literatura do Rio Grande do Norte

A literatura que trata da questatildeo da populaccedilatildeo negra no Estado pode ser

classificada por dois momentos distintos inicialmente estudos sobre a populaccedilatildeo

escravizada e aspectos das irmandades religiosas (Cascudo Medeiros Melo e Mattos) e

mais atualmente os relatoacuterios antropoloacutegicos e textos acadecircmicos sobre comunidades

negras rurais

O folclorista e historiador Luiacutes da Cacircmara Cascudo mostra uma anaacutelise importante

sobre as diferenccedilas na condiccedilatildeo de escravo nos engenhos de cana de accediluacutecar e nas fazendas

do sertatildeo No primeiro caso era demandado um grande nuacutemero de matildeo-de-obra cujo

controle baseava-se em regras riacutegidas de separaccedilatildeo entre senhores e escravos enquanto que

no sertatildeo as relaccedilotildees entre escravo e senhor garantiam ao primeiro um espaccedilo de atuaccedilatildeo

poliacutetica e econocircmica mais definido Cascudo incita-nos com a seguinte descriccedilatildeo

Na criaccedilatildeo do gado os donos e os escravos estatildeo na mesma linha tenaz de

coragem e batalha Satildeo dois vaqueiros Vestem a mesma veacutestia de couro

Encontraram o mesmo perigo o mesmo carrascal a mesma grota o aclive suacutebito

e escabroso

Assim a fazenda de gado rude de missatildeo imediata individual criou o homem na

semelhanccedila do seu uso

Esta escola determinou no escravo uma personalidade superior e sentida Sentia-

se senhor de seu campo na sela do seu cavalo como um baratildeo guerreiro Vezes

inuacutemeras o senhor entrega a fazenda ao escravo vaqueiro e vai-se embora O

negro era senhor de vidas e de gado vendendo colhendo discutindo escolhendo

sua escala de tarefas sabendo mandar planejar arriscar vencer(BRITO

199747)

Tarciacutesio Medeiros de maneira etnocecircntrica relega aos negros no Rio Grande do

Norte pouca importacircncia como ator social Ele mostra o negro balizado em conceitos

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relacionados ao mito da democracia racial Nega o legado cultural do negro para a cultura

local Ignora por conseguinte a religiosidade a culinaacuteria o vocabulaacuterio e expressotildees

culturais como a danccedila do espontatildeo e as cantorias Com exemplo podemos ver o trato

preconceituoso que ele daacute agraves religiotildees afro-brasileiras no Rio Grande do Norte quando cita

Do negro escravo no Estado ficaram poucas tradiccedilotildees De crendices e

supersticcedilotildees das que viveram nos canaviais ficou o canjerecirc feiticcedilo a cousa-feita

mas desconhecem o padecirc Exu Xangocirc Aacuteguas de Iemanjaacute que surgiram apoacutes a

deacutecada de 1950 produtos de importaccedilatildeo made in Bahia Rio de Janeiro

Pernambuco O ambiente canavieiro facilitou a supersticcedilatildeo dessa natureza mais

acentuadamente que nas fazendas de gado com escravaria reduzida (Medeiros

973229)

Por outro lado seu texto eacute rico em informaccedilotildees etnograacuteficas ndash que muitas vezes

contradiz suas afirmaccedilotildees generalizadas ndash quando cita sobre a presenccedila negra no RN por

exemplo Eacute sua a citaccedilatildeo que diz

Evidentemente nesse iniacutecio do seacuteculo XVII com o portuguecircs chega no Rio

Grande do Norte o elemento negro A presenccedila entre noacutes tem que ser estudada

diretamente com o fenocircmeno da escravidatildeo e esta no momento de sua

permissibilidade ocorreu em 1600 quando os primeiros escravos chegaram agrave vila

de Natal (MEDEIROS 198847)

Os textos acadecircmicos iniciais no Rio Grande do Norte procuravam exaltar aspectos

que folclorizavam os aspectos culturais da vida das populaccedilotildees negras rurais ignorando

aspectos eacuteticos na conduccedilatildeo de pesquisas antropoloacutegicas envolvendo populaccedilotildees

vulneraacuteveis resultando muitas vezes em textos no qual se expotildee situaccedilotildees no miacutenimo

constrangedoras destas pessoas

Na deacutecada seguinte este olhar privilegiando o exoacutetico sobre populaccedilotildees

quilombolas no Estado do Rio Grande do Norte chegou agrave academia em forma de dissertaccedilatildeo

de um historiador da regiatildeo em um mestrado na Antropologia (Assunccedilatildeo 1994) sobre uma

comunidade quilombola Como exemplo ele cita de forma preconceituosa e racista sem o

menor constrangimento em seu trabalho Os negros do Riacho estrateacutegias de sobrevivecircncia

e identidade social duas situaccedilotildees de caraacuteter iacutentimo da comunidade a praacutetica da

religiosidade afro-ameriacutendia e a tipologia de ldquorelaccedilotildees matrimoniais natildeo convencionais

(bigamia e incesto)rdquo

Em relaccedilatildeo agrave religiosidade Assunccedilatildeo chama simplesmente de feiticcedilo todo um

conjunto de conhecimento e praacuteticas que evocam a memoacuteria do grupo na afirmaccedilatildeo de uma

identidade proacutepria a religiosidade afro-brasileira e ameriacutendia Seu texto eacute carregado de

preconceitos quando cita assim

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Os ldquocaboclosrdquo acreditam no feiticcedilo como se fosse ldquouma coisa que numa pessoa eacute

uma coisa botadardquo Tanto os homens quanto as mulheres acreditam no feiticcedilo mas

apenas as mulheres o praticam Essa praacutetica se daacute para o mal e para o bem

(ASSUNCcedilAtildeO 199436)

No que diz respeito agraves relaccedilotildees matrimoniais Assunccedilatildeo afirma (atraveacutes das falas

dos moradores) que era comum a de um homem com vaacuterias mulheres como nesta sua

citaccedilatildeo

A uniatildeo de um homem com mais de uma mulher eacute uma praacutetica que vem desde os

tempos mais antigos

Outra questatildeo eacute que estes casamentos sempre ocorreram entre pessoas do

mesmo grupo entre membros que pertencem agraves famiacutelias existentes no grupordquo

A autora desse depoimento e sua irmatilde ldquovivemrdquo com o mesmo homem que eacute

primo em terceiro grau (ASSUNCcedilAtildeO 19944041 e 42)

E Assunccedilatildeo tambeacutem cita contrariando agrave vontade da comunidade dois casos de

uniatildeo incestuosa

Os ldquonegrosrdquo mais velhos viveram na eacutepoca e se lembram de casos como o do pai

que teve filhos com sua filha todos residindo na mesma unidade Tiveram trecircs

filhos estando vivo apenas um filho que natildeo reside no grupo Esta crianccedila foi

dada para uma outra famiacutelia externa ao grupo Houve tambeacutem o caso de um

irmatildeo que teve um filho com sua irmatilde Estes estatildeo vivos e residem no proacuteprio

grupo Mas desses casos os ldquonegrosrdquo natildeo gostam de falar (ASSUNCcedilAtildeO

199443)

Mais um dado de questionaacutevel ldquoimportacircnciardquo antropoloacutegica nos eacute ofertado ainda

por Assunccedilatildeo quando em seu afatilde de ver tudo folclorizado ateacute uma simples separaccedilatildeo eacute

colocada de forma atiacutepica

Outra situaccedilatildeo que existe desde o tempo dos antigos eacute a praacutetica de separaccedilatildeo entre

os cocircnjuges quando consideram que o casamento se esgotou Nesse caso tanto o

homem como a mulher podem se casar novamente chegando ateacute a se casar por

trecircs vezes dando-se o evento seja por motivo de morte seja por separaccedilatildeo

(ASSUNCcedilAtildeO199443)

Este texto de Luiz Assunccedilatildeo eacute exemplo de um discurso tiacutepico dos ldquobrancosrdquo do

Seridoacute Discurso este que aqui se transforma em ldquoverdade cientiacuteficardquo atraveacutes da publicaccedilatildeo

e consequentemente a exposiccedilatildeo de dramas particulares de uma comunidade negra A

consequecircncia desta atitude eacute o conhecimento deste texto por pessoas da regiatildeo e atraveacutes

dele a justificativa da exclusatildeo da comunidade em poliacuteticas sociais

Para o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira que tem uma ampla experiecircncia com

populaccedilotildees tradicionais vale a observaccedilatildeo sobre a responsabilidade dos antropoacutelogos que

trabalham com estas comunidades

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Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

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ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

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colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

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oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

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Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

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Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

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conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

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Aprovado em 17102019

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A pesquisa sobre comunidades tradicionais afro-brasileiras no Rio Grande no Norte

Como recursos metodoloacutegicos foram utilizadas teacutecnicas proacuteprias da Antropologia e

da Histoacuteria De forma geral continuamos realizando uma pesquisa histoacuterico-documental com

a utilizaccedilatildeo de diversas teacutecnicas como entrevistas visita de campo e registro audiovisual

durante os trabalhos na regiatildeo

Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo da fotografia como recurso ldquoauxiliarrdquo na pesquisa

salientamos sua importacircncia aleacutem do aspecto meramente ilustrativo pois eacute sabido que

A construccedilatildeo de narrativas atraveacutes da imagem fotograacutefica vem a ser articulada com

o texto verbal e a legitimidade que este alcanccedilou contribuir no sentido de enriquecer

e agregar aleacutem de outras formas narrativas como e literatura ou a poesia

complexidade aos esforccedilos de interpretaccedilatildeo de universos sociais cada vez mais

densos e complexos onde imagens por sua vez tornam-se cada vez mais um

elemento da proacutepria sociabilidade (ACHUTTI 199738-39)

Neste trabalho entendemos a fotografia ou fotoetnografia como elemento necessaacuterio agrave

composiccedilatildeo do Relatoacuterio Antropoloacutegico Neste sentido

Parece significativa a ideia dos colegas do Nuacutecleo de Antropologia Visual da

UFRGS quando afirmam que a antropologia visual natildeo se trata de uma disciplina

independente mas ldquosim da mesma e velha antropologia de sempre poreacutem

apresentada sobre esse outro continente que eacute a comunicaccedilatildeo audiovisual Natildeo eacute

uma Antropologia da Imagem mas uma antropologia em imagensrdquo (Rodolpho et

alli 1995169) Uma antropologia em imagens poderaacute ser feita mediante o domiacutenio

das teacutecnicas de construccedilatildeo de um viacutedeo etnograacutefico de um filme etnograacutefico ou de

um trabalho fotoetnograacutefico Futuramente estaremos fazendo a ldquovelhardquo e tradicional

antropologia tambeacutem atraveacutes de uma linguagem multimiacutedia (ACHUTTI 199739)

Em termos metodoloacutegicos

A proposta aqui eacute do emprego da antropologia visual enquanto um recurso narrativo

autocircnomo na funccedilatildeo de convergir significaccedilotildees e informaccedilotildees a respeito de uma

dada situaccedilatildeo social (ACHUTTI 199713)

Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria Oral presente nos discursos e entrevistas partimos do

princiacutepio que ldquoAtraveacutes da memoacuteria individual seraacute possiacutevel recuperar a memoacuteria coletiva de

um periacuteodo sobre o qual existe muito pouca documentaccedilatildeo Essa histoacuteria aleacutem de contribuir

para um melhor conhecimento da comunidaderdquo (Becker 2001286) Assim podemos

entender em consenso que

Usando a histoacuteria oral como meacutetodo e praacutetica de pesquisa somada agraves formas

tradicionais percorreremos juntamente com nossos personagens lugares da

memoacuteria e do esquecimento para ldquoreconstruirrdquo as suas trajetoacuterias de vida tentando

assim montar um quadro histoacuterico do periacuteodo pesquisado (BECKER 2001286)

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Assim a antropologia visual e a histoacuteria oral vecircm como recurso metodoloacutegico e

teacutecnico dar maior suporte agraves pesquisas envolvendo populaccedilotildees tradicionais em particular as

comunidades negras rurais que ainda encontram-se em um processo de invisibilidade social

Para o historiador Josemir Camilo de Melo (2001189)

Quando se analisa a histoacuteria do povo negro natildeo se deve usar da mesma metodologia

que se usa para abordar a histoacuteria dos povos europeus e seus descendentes nos

troacutepicos A histoacuteria dos brancos eacute feita de documentos oficiais e particulares jaacute que

estamos tratando aiacute de uma sociedade letrada No caso dos africanos sequestrados e

trazidos para o Brasil e seus descendentes aqui nascidos e mantidos como iletrados

os documentos para estudar sua histoacuteria natildeo satildeo mais do mesmo caraacuteter ou seja

material escrito Portanto o historiador deveria proceder um desvio metodoloacutegico e

teoacuterico optando entatildeo pela etnografia e buscar a fala do povo negro nas fontes

antropoloacutegicas e etnoloacutegicas

Neste sentido optou-se por uma leitura criacutetica na literatura regional que trata das

comunidades quilombolas Para isto foram consultados textos acadecircmicos de autores locais

em eacutepocas diversas procurando ver a fala do povo negro representada nestes textos-discursos

Inicialmente percebe-se que a literatura produzida no Seacuteculo XX (mesmo a da aacuterea

antropoloacutegica) estaacute impregnada de uma visatildeo racista etnocecircntrica e comprometida com

valores regionais No Seacuteculo XXI houve uma alteraccedilatildeo substancial a inclusatildeo de acadecircmicos

militantes do Movimento Negro (mesmo que informalmente) e estudantes originaacuterios de

comunidades quilombolas

Ao fim colocamos uma listagem (atualizada em 2017) sobre as comunidades negras

localizadas no Rio Grande do Norte

Comunidades Quilombolas um conceito poliacutetico

O conceito mais atualizado para definir Comunidades Quilombolas tangencia de uma

concepccedilatildeo histoacuterica que vincula estas com lutas e fugas de escravos Este conceito eacute assim

tambeacutem entendido pelo Estado Entatildeo podemos entender que comunidades quilombolas satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo (Decreto 48872003)

Por ser um conceito definido por Decreto e com fins juriacutedicos tem uma base legal

constituiacuteda a partir da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 em seus artigos 215 e 216 da

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Constituiccedilatildeo Federal que tratam do ldquoDireito agrave preservaccedilatildeo de sua proacutepria culturardquo e

tambeacutem

Do Artigo 68 do ADCT ndash Direito agrave propriedade das terras de comunidades

remanescentes de quilombos

Da Convenccedilatildeo 169 da OIT (Dec 50512004) ndash Direito agrave autodeterminaccedilatildeo de Povos e

Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 4887 de 20 de novembro de 2003 ndash Trata da regularizaccedilatildeo fundiaacuteria de

terras de quilombos e define as responsabilidades dos oacutergatildeos governamentais

Do Decreto nordm 6040 de 7 de fevereiro de 2007 ndash Institui a Poliacutetica Nacional de

Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 6261 de 20 de novembro de 2007 ndash Dispotildee sobre a gestatildeo integrada

para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola no acircmbito do Programa Brasil

Quilombola

Da Portaria Fundaccedilatildeo Cultural Palmares nordm 98 de 26 de novembro de 2007 ndash Institui o

Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundaccedilatildeo Cultural

Palmares tambeacutem autodenominadas Terras de Preto Comunidades Negras Mocambos

Quilombos entre outras denominaccedilotildees congecircneres

Da Instruccedilatildeo Normativa INCRA nordm 57 de 20 de outubro de 2009 ndash Regulamenta o

procedimento para identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo desintrusatildeo

titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos

Entretanto devemos perceber este conceito como resultado de toda uma accedilatildeo da

Antropologia brasileira que vem se debruccedilando sobre a questatildeo das comunidades tradicionais

ao colocar que

Natildeo haacute duacutevidas de que a antropologia constitui campo consolidado e dinacircmico no

Brasil que tem obtido reconhecimento nacional e internacional pelos seus patamares

de excelecircncia cientiacutefica Combinando o interesse em compreender o mundo com a

preocupaccedilatildeo em desvendar coacutedigos culturais e os interstiacutecios sociais da vida

cotidiana a pesquisa antropoloacutegica eacute extremamente relevante para desvendar

problemaacuteticas que estatildeo na ordem do dia sobre a produccedilatildeo da diferenccedila cultural e

desigualdades sociais saberes e praacuteticas tradicionais patrimocircnio cultural e inclusatildeo

social e ainda desenvolvimento econocircmico e social (BELA 201319)

Para a antropoacuteloga Ilka Boaventura Leite eacute importante entender o fenocircmeno da

invisibilidade social e poliacutetica dessas populaccedilotildees como algo construiacutedo em nossa histoacuteria foi

inculcado cultural e principalmente politicamente nas populaccedilotildees mais vulneraacuteveis na

histoacuteria de construccedilatildeo de uma naccedilatildeo com moldes europeus Nestes termos as populaccedilotildees

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afro-brasileiras foram ignoradas ao pensar a o projeto de naccedilatildeo para o Brasil A invisibilidade

gerando uma marginalizaccedilatildeo histoacuterica geograacutefica e poliacutetica Pode-se ainda pensar que

A consolidaccedilatildeo da naccedilatildeo obteve o suporte ideoloacutegico do racialismo reforccedilando com

ele um projeto de orientaccedilatildeo liberal inspirado num tipo de universalismo iluminista

que invisibilizou as pautas poliacuteticas e sociais dos grupos negros e indiacutegenas O tipo

de ocupaccedilatildeo do espaccedilo territorial e a manutenccedilatildeo da fronteira eacutetnica pelos grupos

foram portanto um relevante fator de reorganizaccedilatildeo das diferenccedilas com perdas

significativas para os que jaacute se encontravam anteriormente na terra ndash principalmente

os africanos os indiacutegenas e os chamados ldquocaboclos (LEITE 200896)

Essa espeacutecie de topografia eacutetnica traduziu-se na continuidade das estrateacutegias de

expropriaccedilatildeo das terras e na forma como esse projeto se tornou hegemocircnico e se

reproduziu com sucesso ateacute os dias atuais Eacute tambeacutem possiacutevel depreender as formas

de resistecircncia daqueles que foram excluiacutedos do direito de se apropriar bem como de

titular suas terras As linhas demarcatoacuterias dos grupos para aleacutem das diferenccedilas

culturais tornaram-se formas matriciais de continuidade da hierarquizaccedilatildeo de novas

formas de exploraccedilatildeo e principalmente da perpetuaccedilatildeo das desigualdades sociais

(LEITE 2008967)

No momento histoacuterico que se iniciou com a promulgaccedilatildeo da Consttuiccedilatildeo Federal

(1988) podemos inferir que

Tais comunidades se revestem de grande atualidade no paiacutes em virtude do avanccedilo

das poliacuteticas puacuteblicas no sentido de fazer cumprir os dispositivos constitucionais do

tombamento salvaguarda e preservaccedilatildeo delas consideradas que foram pelo Artigo

216 da CF integrantes do patrimocircnio Cultural Nacional e pelo Artigo 68 dos

ADCTs como justamente merecedoras do seu reconhecimento e da atribuiccedilatildeo de

posse definitiva do seu territoacuterio por parte do Estado Nacionalrdquo (MEDEIROS In

TAMASO e LIMA Filho 2012 377)

Neste sentido podemos vislumbrar um cenaacuterio com novas possibilidades para a

elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para esta parcela consideraacutevel da populaccedilatildeo

brasileira a populaccedilatildeo das comunidades quilombolas

Evidentemente esta situaccedilatildeo eleva questionamentos de ordem conceitual e histoacuterica

ao tratar de um tema novo as comunidades quilombolas que estatildeo espalhadas em todo o

territoacuterio nacional e tecircm como caracteriacutestica comum a pobreza e a dificuldade de acesso agraves

poliacuteticas sociais especiacuteficas para este grupo Satildeo viacutetimas constantes de Racismo Xenofobia e

outras formas de violecircncia que resultam na manutenccedilatildeo eou dificuldades de alteraccedilatildeo

positiva em relaccedilatildeo ao quadro de pobreza da maioria destas comunidades

Os quilombos no Brasil

Para uma melhor compreensatildeo da situaccedilatildeo das terras quilombolas e de outros

territoacuterios tradicionais no Brasil eacute fundamental fazer-se referecircncia agrave Lei de Concessatildeo de

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Terras de 1850 Eacute nesse momento que se vincula definitivamente a posse e a propriedade da

terra agravequele que possui recurso monetaacuterio para adquiri-la e legalizaacute-la cartorialmente Essa lei

tornaria ainda mais difiacutecil a inclusatildeo do negro apoacutes a Aboliccedilatildeo de 1888 realizada sem

qualquer reparaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo escravizada

A luta contemporacircnea dos quilombolas por direitos territoriais pode ser interpretada

como o reconhecimento do fracasso da realidade juriacutedica estabelecida tanto pela ldquoLei de

Terrasrdquo que pretendeu moldar a sociedade brasileira na perspectiva da propriedade privada de

terras quanto pela forma mesma com que se daacute a aboliccedilatildeo da escravidatildeo A noccedilatildeo de terra

coletiva como satildeo pensadas as terras de comunidades quilombolas contraria o modelo

baseado na propriedade privada como uacutenica forma de acesso e uso da terra o qual exclui

outros usos e relaccedilotildees com o territoacuterio como ocorre entre povos e comunidades tradicionais

Aleacutem dos quilombos constituiacutedos no periacuteodo escravocrata muitos foram formados

apoacutes a aboliccedilatildeo formal da escravatura pois essa forma de organizaccedilatildeo comunitaacuteria

continuaria a ser para muitos a uacutenica possibilidade de viver em liberdade Constituir um

quilombo tornou-se um imperativo de sobrevivecircncia posto que a Lei Aacuteurea diferentemente

do propugnado pelo movimento abolicionista natildeo levou em conta mecanismos de

redistribuiccedilatildeo de terras

De um modo geral os territoacuterios quilombolas originaram-se em diferentes situaccedilotildees

tais como doaccedilotildees de terras realizadas a partir da desagregaccedilatildeo da lavoura de monoculturas

como a cana-de-accediluacutecar e o algodatildeo compra de terras pelos proacuteprios sujeitos possibilitada

pela desestruturaccedilatildeo do sistema escravista terras que foram conquistadas por meio da

prestaccedilatildeo de serviccedilos inclusive de guerra bem como aacutereas ocupadas por negros que fugiam

da escravidatildeo Haacute tambeacutem as chamadas terras de preto terras de santo ou terras de santiacutessima

que indicam uma territorialidade vinda de propriedades de ordens religiosas da doaccedilatildeo de

terras para santos e do recebimento de terras em troca de serviccedilos religiosos prestados a

senhores de escravos por sacerdotes de religiotildees afro-brasileiras

Os quilombos permaneceram invisibilizados durante todo o periacuteodo republicano e

reaparecem como resultado da accedilatildeo dos movimentos negros apenas com a Constituiccedilatildeo de

1988 como territoacuterios detentores de direitos Transcorreram portanto cerca de cem anos da

aboliccedilatildeo ateacute a aprovaccedilatildeo do Artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias

(ADCT) o qual assegura o seguinte Aos quilombolas que estejam ocupando suas terras eacute

reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivos

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Tais comunidades se distinguem pela identidade eacutetnica tendo desenvolvido praacuteticas

de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo de modos de vida caracteriacutesticos num determinado lugar Satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida

As comunidades quilombolas localizam-se em 24 estados da federaccedilatildeo sendo a

maior parte nos estados do Maranhatildeo Bahia Paraacute Minas Gerais e Pernambuco Os uacutenicos

estados que natildeo registram ocorrecircncias dessas comunidades satildeo o Acre e Roraima aleacutem do

Distrito Federal

As populaccedilotildees afro-brasileiras na literatura do Rio Grande do Norte

A literatura que trata da questatildeo da populaccedilatildeo negra no Estado pode ser

classificada por dois momentos distintos inicialmente estudos sobre a populaccedilatildeo

escravizada e aspectos das irmandades religiosas (Cascudo Medeiros Melo e Mattos) e

mais atualmente os relatoacuterios antropoloacutegicos e textos acadecircmicos sobre comunidades

negras rurais

O folclorista e historiador Luiacutes da Cacircmara Cascudo mostra uma anaacutelise importante

sobre as diferenccedilas na condiccedilatildeo de escravo nos engenhos de cana de accediluacutecar e nas fazendas

do sertatildeo No primeiro caso era demandado um grande nuacutemero de matildeo-de-obra cujo

controle baseava-se em regras riacutegidas de separaccedilatildeo entre senhores e escravos enquanto que

no sertatildeo as relaccedilotildees entre escravo e senhor garantiam ao primeiro um espaccedilo de atuaccedilatildeo

poliacutetica e econocircmica mais definido Cascudo incita-nos com a seguinte descriccedilatildeo

Na criaccedilatildeo do gado os donos e os escravos estatildeo na mesma linha tenaz de

coragem e batalha Satildeo dois vaqueiros Vestem a mesma veacutestia de couro

Encontraram o mesmo perigo o mesmo carrascal a mesma grota o aclive suacutebito

e escabroso

Assim a fazenda de gado rude de missatildeo imediata individual criou o homem na

semelhanccedila do seu uso

Esta escola determinou no escravo uma personalidade superior e sentida Sentia-

se senhor de seu campo na sela do seu cavalo como um baratildeo guerreiro Vezes

inuacutemeras o senhor entrega a fazenda ao escravo vaqueiro e vai-se embora O

negro era senhor de vidas e de gado vendendo colhendo discutindo escolhendo

sua escala de tarefas sabendo mandar planejar arriscar vencer(BRITO

199747)

Tarciacutesio Medeiros de maneira etnocecircntrica relega aos negros no Rio Grande do

Norte pouca importacircncia como ator social Ele mostra o negro balizado em conceitos

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relacionados ao mito da democracia racial Nega o legado cultural do negro para a cultura

local Ignora por conseguinte a religiosidade a culinaacuteria o vocabulaacuterio e expressotildees

culturais como a danccedila do espontatildeo e as cantorias Com exemplo podemos ver o trato

preconceituoso que ele daacute agraves religiotildees afro-brasileiras no Rio Grande do Norte quando cita

Do negro escravo no Estado ficaram poucas tradiccedilotildees De crendices e

supersticcedilotildees das que viveram nos canaviais ficou o canjerecirc feiticcedilo a cousa-feita

mas desconhecem o padecirc Exu Xangocirc Aacuteguas de Iemanjaacute que surgiram apoacutes a

deacutecada de 1950 produtos de importaccedilatildeo made in Bahia Rio de Janeiro

Pernambuco O ambiente canavieiro facilitou a supersticcedilatildeo dessa natureza mais

acentuadamente que nas fazendas de gado com escravaria reduzida (Medeiros

973229)

Por outro lado seu texto eacute rico em informaccedilotildees etnograacuteficas ndash que muitas vezes

contradiz suas afirmaccedilotildees generalizadas ndash quando cita sobre a presenccedila negra no RN por

exemplo Eacute sua a citaccedilatildeo que diz

Evidentemente nesse iniacutecio do seacuteculo XVII com o portuguecircs chega no Rio

Grande do Norte o elemento negro A presenccedila entre noacutes tem que ser estudada

diretamente com o fenocircmeno da escravidatildeo e esta no momento de sua

permissibilidade ocorreu em 1600 quando os primeiros escravos chegaram agrave vila

de Natal (MEDEIROS 198847)

Os textos acadecircmicos iniciais no Rio Grande do Norte procuravam exaltar aspectos

que folclorizavam os aspectos culturais da vida das populaccedilotildees negras rurais ignorando

aspectos eacuteticos na conduccedilatildeo de pesquisas antropoloacutegicas envolvendo populaccedilotildees

vulneraacuteveis resultando muitas vezes em textos no qual se expotildee situaccedilotildees no miacutenimo

constrangedoras destas pessoas

Na deacutecada seguinte este olhar privilegiando o exoacutetico sobre populaccedilotildees

quilombolas no Estado do Rio Grande do Norte chegou agrave academia em forma de dissertaccedilatildeo

de um historiador da regiatildeo em um mestrado na Antropologia (Assunccedilatildeo 1994) sobre uma

comunidade quilombola Como exemplo ele cita de forma preconceituosa e racista sem o

menor constrangimento em seu trabalho Os negros do Riacho estrateacutegias de sobrevivecircncia

e identidade social duas situaccedilotildees de caraacuteter iacutentimo da comunidade a praacutetica da

religiosidade afro-ameriacutendia e a tipologia de ldquorelaccedilotildees matrimoniais natildeo convencionais

(bigamia e incesto)rdquo

Em relaccedilatildeo agrave religiosidade Assunccedilatildeo chama simplesmente de feiticcedilo todo um

conjunto de conhecimento e praacuteticas que evocam a memoacuteria do grupo na afirmaccedilatildeo de uma

identidade proacutepria a religiosidade afro-brasileira e ameriacutendia Seu texto eacute carregado de

preconceitos quando cita assim

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Os ldquocaboclosrdquo acreditam no feiticcedilo como se fosse ldquouma coisa que numa pessoa eacute

uma coisa botadardquo Tanto os homens quanto as mulheres acreditam no feiticcedilo mas

apenas as mulheres o praticam Essa praacutetica se daacute para o mal e para o bem

(ASSUNCcedilAtildeO 199436)

No que diz respeito agraves relaccedilotildees matrimoniais Assunccedilatildeo afirma (atraveacutes das falas

dos moradores) que era comum a de um homem com vaacuterias mulheres como nesta sua

citaccedilatildeo

A uniatildeo de um homem com mais de uma mulher eacute uma praacutetica que vem desde os

tempos mais antigos

Outra questatildeo eacute que estes casamentos sempre ocorreram entre pessoas do

mesmo grupo entre membros que pertencem agraves famiacutelias existentes no grupordquo

A autora desse depoimento e sua irmatilde ldquovivemrdquo com o mesmo homem que eacute

primo em terceiro grau (ASSUNCcedilAtildeO 19944041 e 42)

E Assunccedilatildeo tambeacutem cita contrariando agrave vontade da comunidade dois casos de

uniatildeo incestuosa

Os ldquonegrosrdquo mais velhos viveram na eacutepoca e se lembram de casos como o do pai

que teve filhos com sua filha todos residindo na mesma unidade Tiveram trecircs

filhos estando vivo apenas um filho que natildeo reside no grupo Esta crianccedila foi

dada para uma outra famiacutelia externa ao grupo Houve tambeacutem o caso de um

irmatildeo que teve um filho com sua irmatilde Estes estatildeo vivos e residem no proacuteprio

grupo Mas desses casos os ldquonegrosrdquo natildeo gostam de falar (ASSUNCcedilAtildeO

199443)

Mais um dado de questionaacutevel ldquoimportacircnciardquo antropoloacutegica nos eacute ofertado ainda

por Assunccedilatildeo quando em seu afatilde de ver tudo folclorizado ateacute uma simples separaccedilatildeo eacute

colocada de forma atiacutepica

Outra situaccedilatildeo que existe desde o tempo dos antigos eacute a praacutetica de separaccedilatildeo entre

os cocircnjuges quando consideram que o casamento se esgotou Nesse caso tanto o

homem como a mulher podem se casar novamente chegando ateacute a se casar por

trecircs vezes dando-se o evento seja por motivo de morte seja por separaccedilatildeo

(ASSUNCcedilAtildeO199443)

Este texto de Luiz Assunccedilatildeo eacute exemplo de um discurso tiacutepico dos ldquobrancosrdquo do

Seridoacute Discurso este que aqui se transforma em ldquoverdade cientiacuteficardquo atraveacutes da publicaccedilatildeo

e consequentemente a exposiccedilatildeo de dramas particulares de uma comunidade negra A

consequecircncia desta atitude eacute o conhecimento deste texto por pessoas da regiatildeo e atraveacutes

dele a justificativa da exclusatildeo da comunidade em poliacuteticas sociais

Para o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira que tem uma ampla experiecircncia com

populaccedilotildees tradicionais vale a observaccedilatildeo sobre a responsabilidade dos antropoacutelogos que

trabalham com estas comunidades

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Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

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ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

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colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

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oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

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Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

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Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

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conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

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Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

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Assim a antropologia visual e a histoacuteria oral vecircm como recurso metodoloacutegico e

teacutecnico dar maior suporte agraves pesquisas envolvendo populaccedilotildees tradicionais em particular as

comunidades negras rurais que ainda encontram-se em um processo de invisibilidade social

Para o historiador Josemir Camilo de Melo (2001189)

Quando se analisa a histoacuteria do povo negro natildeo se deve usar da mesma metodologia

que se usa para abordar a histoacuteria dos povos europeus e seus descendentes nos

troacutepicos A histoacuteria dos brancos eacute feita de documentos oficiais e particulares jaacute que

estamos tratando aiacute de uma sociedade letrada No caso dos africanos sequestrados e

trazidos para o Brasil e seus descendentes aqui nascidos e mantidos como iletrados

os documentos para estudar sua histoacuteria natildeo satildeo mais do mesmo caraacuteter ou seja

material escrito Portanto o historiador deveria proceder um desvio metodoloacutegico e

teoacuterico optando entatildeo pela etnografia e buscar a fala do povo negro nas fontes

antropoloacutegicas e etnoloacutegicas

Neste sentido optou-se por uma leitura criacutetica na literatura regional que trata das

comunidades quilombolas Para isto foram consultados textos acadecircmicos de autores locais

em eacutepocas diversas procurando ver a fala do povo negro representada nestes textos-discursos

Inicialmente percebe-se que a literatura produzida no Seacuteculo XX (mesmo a da aacuterea

antropoloacutegica) estaacute impregnada de uma visatildeo racista etnocecircntrica e comprometida com

valores regionais No Seacuteculo XXI houve uma alteraccedilatildeo substancial a inclusatildeo de acadecircmicos

militantes do Movimento Negro (mesmo que informalmente) e estudantes originaacuterios de

comunidades quilombolas

Ao fim colocamos uma listagem (atualizada em 2017) sobre as comunidades negras

localizadas no Rio Grande do Norte

Comunidades Quilombolas um conceito poliacutetico

O conceito mais atualizado para definir Comunidades Quilombolas tangencia de uma

concepccedilatildeo histoacuterica que vincula estas com lutas e fugas de escravos Este conceito eacute assim

tambeacutem entendido pelo Estado Entatildeo podemos entender que comunidades quilombolas satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofridardquo (Decreto 48872003)

Por ser um conceito definido por Decreto e com fins juriacutedicos tem uma base legal

constituiacuteda a partir da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 em seus artigos 215 e 216 da

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Constituiccedilatildeo Federal que tratam do ldquoDireito agrave preservaccedilatildeo de sua proacutepria culturardquo e

tambeacutem

Do Artigo 68 do ADCT ndash Direito agrave propriedade das terras de comunidades

remanescentes de quilombos

Da Convenccedilatildeo 169 da OIT (Dec 50512004) ndash Direito agrave autodeterminaccedilatildeo de Povos e

Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 4887 de 20 de novembro de 2003 ndash Trata da regularizaccedilatildeo fundiaacuteria de

terras de quilombos e define as responsabilidades dos oacutergatildeos governamentais

Do Decreto nordm 6040 de 7 de fevereiro de 2007 ndash Institui a Poliacutetica Nacional de

Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 6261 de 20 de novembro de 2007 ndash Dispotildee sobre a gestatildeo integrada

para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola no acircmbito do Programa Brasil

Quilombola

Da Portaria Fundaccedilatildeo Cultural Palmares nordm 98 de 26 de novembro de 2007 ndash Institui o

Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundaccedilatildeo Cultural

Palmares tambeacutem autodenominadas Terras de Preto Comunidades Negras Mocambos

Quilombos entre outras denominaccedilotildees congecircneres

Da Instruccedilatildeo Normativa INCRA nordm 57 de 20 de outubro de 2009 ndash Regulamenta o

procedimento para identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo desintrusatildeo

titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos

Entretanto devemos perceber este conceito como resultado de toda uma accedilatildeo da

Antropologia brasileira que vem se debruccedilando sobre a questatildeo das comunidades tradicionais

ao colocar que

Natildeo haacute duacutevidas de que a antropologia constitui campo consolidado e dinacircmico no

Brasil que tem obtido reconhecimento nacional e internacional pelos seus patamares

de excelecircncia cientiacutefica Combinando o interesse em compreender o mundo com a

preocupaccedilatildeo em desvendar coacutedigos culturais e os interstiacutecios sociais da vida

cotidiana a pesquisa antropoloacutegica eacute extremamente relevante para desvendar

problemaacuteticas que estatildeo na ordem do dia sobre a produccedilatildeo da diferenccedila cultural e

desigualdades sociais saberes e praacuteticas tradicionais patrimocircnio cultural e inclusatildeo

social e ainda desenvolvimento econocircmico e social (BELA 201319)

Para a antropoacuteloga Ilka Boaventura Leite eacute importante entender o fenocircmeno da

invisibilidade social e poliacutetica dessas populaccedilotildees como algo construiacutedo em nossa histoacuteria foi

inculcado cultural e principalmente politicamente nas populaccedilotildees mais vulneraacuteveis na

histoacuteria de construccedilatildeo de uma naccedilatildeo com moldes europeus Nestes termos as populaccedilotildees

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afro-brasileiras foram ignoradas ao pensar a o projeto de naccedilatildeo para o Brasil A invisibilidade

gerando uma marginalizaccedilatildeo histoacuterica geograacutefica e poliacutetica Pode-se ainda pensar que

A consolidaccedilatildeo da naccedilatildeo obteve o suporte ideoloacutegico do racialismo reforccedilando com

ele um projeto de orientaccedilatildeo liberal inspirado num tipo de universalismo iluminista

que invisibilizou as pautas poliacuteticas e sociais dos grupos negros e indiacutegenas O tipo

de ocupaccedilatildeo do espaccedilo territorial e a manutenccedilatildeo da fronteira eacutetnica pelos grupos

foram portanto um relevante fator de reorganizaccedilatildeo das diferenccedilas com perdas

significativas para os que jaacute se encontravam anteriormente na terra ndash principalmente

os africanos os indiacutegenas e os chamados ldquocaboclos (LEITE 200896)

Essa espeacutecie de topografia eacutetnica traduziu-se na continuidade das estrateacutegias de

expropriaccedilatildeo das terras e na forma como esse projeto se tornou hegemocircnico e se

reproduziu com sucesso ateacute os dias atuais Eacute tambeacutem possiacutevel depreender as formas

de resistecircncia daqueles que foram excluiacutedos do direito de se apropriar bem como de

titular suas terras As linhas demarcatoacuterias dos grupos para aleacutem das diferenccedilas

culturais tornaram-se formas matriciais de continuidade da hierarquizaccedilatildeo de novas

formas de exploraccedilatildeo e principalmente da perpetuaccedilatildeo das desigualdades sociais

(LEITE 2008967)

No momento histoacuterico que se iniciou com a promulgaccedilatildeo da Consttuiccedilatildeo Federal

(1988) podemos inferir que

Tais comunidades se revestem de grande atualidade no paiacutes em virtude do avanccedilo

das poliacuteticas puacuteblicas no sentido de fazer cumprir os dispositivos constitucionais do

tombamento salvaguarda e preservaccedilatildeo delas consideradas que foram pelo Artigo

216 da CF integrantes do patrimocircnio Cultural Nacional e pelo Artigo 68 dos

ADCTs como justamente merecedoras do seu reconhecimento e da atribuiccedilatildeo de

posse definitiva do seu territoacuterio por parte do Estado Nacionalrdquo (MEDEIROS In

TAMASO e LIMA Filho 2012 377)

Neste sentido podemos vislumbrar um cenaacuterio com novas possibilidades para a

elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para esta parcela consideraacutevel da populaccedilatildeo

brasileira a populaccedilatildeo das comunidades quilombolas

Evidentemente esta situaccedilatildeo eleva questionamentos de ordem conceitual e histoacuterica

ao tratar de um tema novo as comunidades quilombolas que estatildeo espalhadas em todo o

territoacuterio nacional e tecircm como caracteriacutestica comum a pobreza e a dificuldade de acesso agraves

poliacuteticas sociais especiacuteficas para este grupo Satildeo viacutetimas constantes de Racismo Xenofobia e

outras formas de violecircncia que resultam na manutenccedilatildeo eou dificuldades de alteraccedilatildeo

positiva em relaccedilatildeo ao quadro de pobreza da maioria destas comunidades

Os quilombos no Brasil

Para uma melhor compreensatildeo da situaccedilatildeo das terras quilombolas e de outros

territoacuterios tradicionais no Brasil eacute fundamental fazer-se referecircncia agrave Lei de Concessatildeo de

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Terras de 1850 Eacute nesse momento que se vincula definitivamente a posse e a propriedade da

terra agravequele que possui recurso monetaacuterio para adquiri-la e legalizaacute-la cartorialmente Essa lei

tornaria ainda mais difiacutecil a inclusatildeo do negro apoacutes a Aboliccedilatildeo de 1888 realizada sem

qualquer reparaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo escravizada

A luta contemporacircnea dos quilombolas por direitos territoriais pode ser interpretada

como o reconhecimento do fracasso da realidade juriacutedica estabelecida tanto pela ldquoLei de

Terrasrdquo que pretendeu moldar a sociedade brasileira na perspectiva da propriedade privada de

terras quanto pela forma mesma com que se daacute a aboliccedilatildeo da escravidatildeo A noccedilatildeo de terra

coletiva como satildeo pensadas as terras de comunidades quilombolas contraria o modelo

baseado na propriedade privada como uacutenica forma de acesso e uso da terra o qual exclui

outros usos e relaccedilotildees com o territoacuterio como ocorre entre povos e comunidades tradicionais

Aleacutem dos quilombos constituiacutedos no periacuteodo escravocrata muitos foram formados

apoacutes a aboliccedilatildeo formal da escravatura pois essa forma de organizaccedilatildeo comunitaacuteria

continuaria a ser para muitos a uacutenica possibilidade de viver em liberdade Constituir um

quilombo tornou-se um imperativo de sobrevivecircncia posto que a Lei Aacuteurea diferentemente

do propugnado pelo movimento abolicionista natildeo levou em conta mecanismos de

redistribuiccedilatildeo de terras

De um modo geral os territoacuterios quilombolas originaram-se em diferentes situaccedilotildees

tais como doaccedilotildees de terras realizadas a partir da desagregaccedilatildeo da lavoura de monoculturas

como a cana-de-accediluacutecar e o algodatildeo compra de terras pelos proacuteprios sujeitos possibilitada

pela desestruturaccedilatildeo do sistema escravista terras que foram conquistadas por meio da

prestaccedilatildeo de serviccedilos inclusive de guerra bem como aacutereas ocupadas por negros que fugiam

da escravidatildeo Haacute tambeacutem as chamadas terras de preto terras de santo ou terras de santiacutessima

que indicam uma territorialidade vinda de propriedades de ordens religiosas da doaccedilatildeo de

terras para santos e do recebimento de terras em troca de serviccedilos religiosos prestados a

senhores de escravos por sacerdotes de religiotildees afro-brasileiras

Os quilombos permaneceram invisibilizados durante todo o periacuteodo republicano e

reaparecem como resultado da accedilatildeo dos movimentos negros apenas com a Constituiccedilatildeo de

1988 como territoacuterios detentores de direitos Transcorreram portanto cerca de cem anos da

aboliccedilatildeo ateacute a aprovaccedilatildeo do Artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias

(ADCT) o qual assegura o seguinte Aos quilombolas que estejam ocupando suas terras eacute

reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivos

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Tais comunidades se distinguem pela identidade eacutetnica tendo desenvolvido praacuteticas

de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo de modos de vida caracteriacutesticos num determinado lugar Satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida

As comunidades quilombolas localizam-se em 24 estados da federaccedilatildeo sendo a

maior parte nos estados do Maranhatildeo Bahia Paraacute Minas Gerais e Pernambuco Os uacutenicos

estados que natildeo registram ocorrecircncias dessas comunidades satildeo o Acre e Roraima aleacutem do

Distrito Federal

As populaccedilotildees afro-brasileiras na literatura do Rio Grande do Norte

A literatura que trata da questatildeo da populaccedilatildeo negra no Estado pode ser

classificada por dois momentos distintos inicialmente estudos sobre a populaccedilatildeo

escravizada e aspectos das irmandades religiosas (Cascudo Medeiros Melo e Mattos) e

mais atualmente os relatoacuterios antropoloacutegicos e textos acadecircmicos sobre comunidades

negras rurais

O folclorista e historiador Luiacutes da Cacircmara Cascudo mostra uma anaacutelise importante

sobre as diferenccedilas na condiccedilatildeo de escravo nos engenhos de cana de accediluacutecar e nas fazendas

do sertatildeo No primeiro caso era demandado um grande nuacutemero de matildeo-de-obra cujo

controle baseava-se em regras riacutegidas de separaccedilatildeo entre senhores e escravos enquanto que

no sertatildeo as relaccedilotildees entre escravo e senhor garantiam ao primeiro um espaccedilo de atuaccedilatildeo

poliacutetica e econocircmica mais definido Cascudo incita-nos com a seguinte descriccedilatildeo

Na criaccedilatildeo do gado os donos e os escravos estatildeo na mesma linha tenaz de

coragem e batalha Satildeo dois vaqueiros Vestem a mesma veacutestia de couro

Encontraram o mesmo perigo o mesmo carrascal a mesma grota o aclive suacutebito

e escabroso

Assim a fazenda de gado rude de missatildeo imediata individual criou o homem na

semelhanccedila do seu uso

Esta escola determinou no escravo uma personalidade superior e sentida Sentia-

se senhor de seu campo na sela do seu cavalo como um baratildeo guerreiro Vezes

inuacutemeras o senhor entrega a fazenda ao escravo vaqueiro e vai-se embora O

negro era senhor de vidas e de gado vendendo colhendo discutindo escolhendo

sua escala de tarefas sabendo mandar planejar arriscar vencer(BRITO

199747)

Tarciacutesio Medeiros de maneira etnocecircntrica relega aos negros no Rio Grande do

Norte pouca importacircncia como ator social Ele mostra o negro balizado em conceitos

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relacionados ao mito da democracia racial Nega o legado cultural do negro para a cultura

local Ignora por conseguinte a religiosidade a culinaacuteria o vocabulaacuterio e expressotildees

culturais como a danccedila do espontatildeo e as cantorias Com exemplo podemos ver o trato

preconceituoso que ele daacute agraves religiotildees afro-brasileiras no Rio Grande do Norte quando cita

Do negro escravo no Estado ficaram poucas tradiccedilotildees De crendices e

supersticcedilotildees das que viveram nos canaviais ficou o canjerecirc feiticcedilo a cousa-feita

mas desconhecem o padecirc Exu Xangocirc Aacuteguas de Iemanjaacute que surgiram apoacutes a

deacutecada de 1950 produtos de importaccedilatildeo made in Bahia Rio de Janeiro

Pernambuco O ambiente canavieiro facilitou a supersticcedilatildeo dessa natureza mais

acentuadamente que nas fazendas de gado com escravaria reduzida (Medeiros

973229)

Por outro lado seu texto eacute rico em informaccedilotildees etnograacuteficas ndash que muitas vezes

contradiz suas afirmaccedilotildees generalizadas ndash quando cita sobre a presenccedila negra no RN por

exemplo Eacute sua a citaccedilatildeo que diz

Evidentemente nesse iniacutecio do seacuteculo XVII com o portuguecircs chega no Rio

Grande do Norte o elemento negro A presenccedila entre noacutes tem que ser estudada

diretamente com o fenocircmeno da escravidatildeo e esta no momento de sua

permissibilidade ocorreu em 1600 quando os primeiros escravos chegaram agrave vila

de Natal (MEDEIROS 198847)

Os textos acadecircmicos iniciais no Rio Grande do Norte procuravam exaltar aspectos

que folclorizavam os aspectos culturais da vida das populaccedilotildees negras rurais ignorando

aspectos eacuteticos na conduccedilatildeo de pesquisas antropoloacutegicas envolvendo populaccedilotildees

vulneraacuteveis resultando muitas vezes em textos no qual se expotildee situaccedilotildees no miacutenimo

constrangedoras destas pessoas

Na deacutecada seguinte este olhar privilegiando o exoacutetico sobre populaccedilotildees

quilombolas no Estado do Rio Grande do Norte chegou agrave academia em forma de dissertaccedilatildeo

de um historiador da regiatildeo em um mestrado na Antropologia (Assunccedilatildeo 1994) sobre uma

comunidade quilombola Como exemplo ele cita de forma preconceituosa e racista sem o

menor constrangimento em seu trabalho Os negros do Riacho estrateacutegias de sobrevivecircncia

e identidade social duas situaccedilotildees de caraacuteter iacutentimo da comunidade a praacutetica da

religiosidade afro-ameriacutendia e a tipologia de ldquorelaccedilotildees matrimoniais natildeo convencionais

(bigamia e incesto)rdquo

Em relaccedilatildeo agrave religiosidade Assunccedilatildeo chama simplesmente de feiticcedilo todo um

conjunto de conhecimento e praacuteticas que evocam a memoacuteria do grupo na afirmaccedilatildeo de uma

identidade proacutepria a religiosidade afro-brasileira e ameriacutendia Seu texto eacute carregado de

preconceitos quando cita assim

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Os ldquocaboclosrdquo acreditam no feiticcedilo como se fosse ldquouma coisa que numa pessoa eacute

uma coisa botadardquo Tanto os homens quanto as mulheres acreditam no feiticcedilo mas

apenas as mulheres o praticam Essa praacutetica se daacute para o mal e para o bem

(ASSUNCcedilAtildeO 199436)

No que diz respeito agraves relaccedilotildees matrimoniais Assunccedilatildeo afirma (atraveacutes das falas

dos moradores) que era comum a de um homem com vaacuterias mulheres como nesta sua

citaccedilatildeo

A uniatildeo de um homem com mais de uma mulher eacute uma praacutetica que vem desde os

tempos mais antigos

Outra questatildeo eacute que estes casamentos sempre ocorreram entre pessoas do

mesmo grupo entre membros que pertencem agraves famiacutelias existentes no grupordquo

A autora desse depoimento e sua irmatilde ldquovivemrdquo com o mesmo homem que eacute

primo em terceiro grau (ASSUNCcedilAtildeO 19944041 e 42)

E Assunccedilatildeo tambeacutem cita contrariando agrave vontade da comunidade dois casos de

uniatildeo incestuosa

Os ldquonegrosrdquo mais velhos viveram na eacutepoca e se lembram de casos como o do pai

que teve filhos com sua filha todos residindo na mesma unidade Tiveram trecircs

filhos estando vivo apenas um filho que natildeo reside no grupo Esta crianccedila foi

dada para uma outra famiacutelia externa ao grupo Houve tambeacutem o caso de um

irmatildeo que teve um filho com sua irmatilde Estes estatildeo vivos e residem no proacuteprio

grupo Mas desses casos os ldquonegrosrdquo natildeo gostam de falar (ASSUNCcedilAtildeO

199443)

Mais um dado de questionaacutevel ldquoimportacircnciardquo antropoloacutegica nos eacute ofertado ainda

por Assunccedilatildeo quando em seu afatilde de ver tudo folclorizado ateacute uma simples separaccedilatildeo eacute

colocada de forma atiacutepica

Outra situaccedilatildeo que existe desde o tempo dos antigos eacute a praacutetica de separaccedilatildeo entre

os cocircnjuges quando consideram que o casamento se esgotou Nesse caso tanto o

homem como a mulher podem se casar novamente chegando ateacute a se casar por

trecircs vezes dando-se o evento seja por motivo de morte seja por separaccedilatildeo

(ASSUNCcedilAtildeO199443)

Este texto de Luiz Assunccedilatildeo eacute exemplo de um discurso tiacutepico dos ldquobrancosrdquo do

Seridoacute Discurso este que aqui se transforma em ldquoverdade cientiacuteficardquo atraveacutes da publicaccedilatildeo

e consequentemente a exposiccedilatildeo de dramas particulares de uma comunidade negra A

consequecircncia desta atitude eacute o conhecimento deste texto por pessoas da regiatildeo e atraveacutes

dele a justificativa da exclusatildeo da comunidade em poliacuteticas sociais

Para o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira que tem uma ampla experiecircncia com

populaccedilotildees tradicionais vale a observaccedilatildeo sobre a responsabilidade dos antropoacutelogos que

trabalham com estas comunidades

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Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

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ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

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colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

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oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

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Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

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Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

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conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

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Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

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Constituiccedilatildeo Federal que tratam do ldquoDireito agrave preservaccedilatildeo de sua proacutepria culturardquo e

tambeacutem

Do Artigo 68 do ADCT ndash Direito agrave propriedade das terras de comunidades

remanescentes de quilombos

Da Convenccedilatildeo 169 da OIT (Dec 50512004) ndash Direito agrave autodeterminaccedilatildeo de Povos e

Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 4887 de 20 de novembro de 2003 ndash Trata da regularizaccedilatildeo fundiaacuteria de

terras de quilombos e define as responsabilidades dos oacutergatildeos governamentais

Do Decreto nordm 6040 de 7 de fevereiro de 2007 ndash Institui a Poliacutetica Nacional de

Desenvolvimento Sustentaacutevel dos Povos e Comunidades Tradicionais

Do Decreto nordm 6261 de 20 de novembro de 2007 ndash Dispotildee sobre a gestatildeo integrada

para o desenvolvimento da Agenda Social Quilombola no acircmbito do Programa Brasil

Quilombola

Da Portaria Fundaccedilatildeo Cultural Palmares nordm 98 de 26 de novembro de 2007 ndash Institui o

Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundaccedilatildeo Cultural

Palmares tambeacutem autodenominadas Terras de Preto Comunidades Negras Mocambos

Quilombos entre outras denominaccedilotildees congecircneres

Da Instruccedilatildeo Normativa INCRA nordm 57 de 20 de outubro de 2009 ndash Regulamenta o

procedimento para identificaccedilatildeo reconhecimento delimitaccedilatildeo demarcaccedilatildeo desintrusatildeo

titulaccedilatildeo e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos

Entretanto devemos perceber este conceito como resultado de toda uma accedilatildeo da

Antropologia brasileira que vem se debruccedilando sobre a questatildeo das comunidades tradicionais

ao colocar que

Natildeo haacute duacutevidas de que a antropologia constitui campo consolidado e dinacircmico no

Brasil que tem obtido reconhecimento nacional e internacional pelos seus patamares

de excelecircncia cientiacutefica Combinando o interesse em compreender o mundo com a

preocupaccedilatildeo em desvendar coacutedigos culturais e os interstiacutecios sociais da vida

cotidiana a pesquisa antropoloacutegica eacute extremamente relevante para desvendar

problemaacuteticas que estatildeo na ordem do dia sobre a produccedilatildeo da diferenccedila cultural e

desigualdades sociais saberes e praacuteticas tradicionais patrimocircnio cultural e inclusatildeo

social e ainda desenvolvimento econocircmico e social (BELA 201319)

Para a antropoacuteloga Ilka Boaventura Leite eacute importante entender o fenocircmeno da

invisibilidade social e poliacutetica dessas populaccedilotildees como algo construiacutedo em nossa histoacuteria foi

inculcado cultural e principalmente politicamente nas populaccedilotildees mais vulneraacuteveis na

histoacuteria de construccedilatildeo de uma naccedilatildeo com moldes europeus Nestes termos as populaccedilotildees

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afro-brasileiras foram ignoradas ao pensar a o projeto de naccedilatildeo para o Brasil A invisibilidade

gerando uma marginalizaccedilatildeo histoacuterica geograacutefica e poliacutetica Pode-se ainda pensar que

A consolidaccedilatildeo da naccedilatildeo obteve o suporte ideoloacutegico do racialismo reforccedilando com

ele um projeto de orientaccedilatildeo liberal inspirado num tipo de universalismo iluminista

que invisibilizou as pautas poliacuteticas e sociais dos grupos negros e indiacutegenas O tipo

de ocupaccedilatildeo do espaccedilo territorial e a manutenccedilatildeo da fronteira eacutetnica pelos grupos

foram portanto um relevante fator de reorganizaccedilatildeo das diferenccedilas com perdas

significativas para os que jaacute se encontravam anteriormente na terra ndash principalmente

os africanos os indiacutegenas e os chamados ldquocaboclos (LEITE 200896)

Essa espeacutecie de topografia eacutetnica traduziu-se na continuidade das estrateacutegias de

expropriaccedilatildeo das terras e na forma como esse projeto se tornou hegemocircnico e se

reproduziu com sucesso ateacute os dias atuais Eacute tambeacutem possiacutevel depreender as formas

de resistecircncia daqueles que foram excluiacutedos do direito de se apropriar bem como de

titular suas terras As linhas demarcatoacuterias dos grupos para aleacutem das diferenccedilas

culturais tornaram-se formas matriciais de continuidade da hierarquizaccedilatildeo de novas

formas de exploraccedilatildeo e principalmente da perpetuaccedilatildeo das desigualdades sociais

(LEITE 2008967)

No momento histoacuterico que se iniciou com a promulgaccedilatildeo da Consttuiccedilatildeo Federal

(1988) podemos inferir que

Tais comunidades se revestem de grande atualidade no paiacutes em virtude do avanccedilo

das poliacuteticas puacuteblicas no sentido de fazer cumprir os dispositivos constitucionais do

tombamento salvaguarda e preservaccedilatildeo delas consideradas que foram pelo Artigo

216 da CF integrantes do patrimocircnio Cultural Nacional e pelo Artigo 68 dos

ADCTs como justamente merecedoras do seu reconhecimento e da atribuiccedilatildeo de

posse definitiva do seu territoacuterio por parte do Estado Nacionalrdquo (MEDEIROS In

TAMASO e LIMA Filho 2012 377)

Neste sentido podemos vislumbrar um cenaacuterio com novas possibilidades para a

elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para esta parcela consideraacutevel da populaccedilatildeo

brasileira a populaccedilatildeo das comunidades quilombolas

Evidentemente esta situaccedilatildeo eleva questionamentos de ordem conceitual e histoacuterica

ao tratar de um tema novo as comunidades quilombolas que estatildeo espalhadas em todo o

territoacuterio nacional e tecircm como caracteriacutestica comum a pobreza e a dificuldade de acesso agraves

poliacuteticas sociais especiacuteficas para este grupo Satildeo viacutetimas constantes de Racismo Xenofobia e

outras formas de violecircncia que resultam na manutenccedilatildeo eou dificuldades de alteraccedilatildeo

positiva em relaccedilatildeo ao quadro de pobreza da maioria destas comunidades

Os quilombos no Brasil

Para uma melhor compreensatildeo da situaccedilatildeo das terras quilombolas e de outros

territoacuterios tradicionais no Brasil eacute fundamental fazer-se referecircncia agrave Lei de Concessatildeo de

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Terras de 1850 Eacute nesse momento que se vincula definitivamente a posse e a propriedade da

terra agravequele que possui recurso monetaacuterio para adquiri-la e legalizaacute-la cartorialmente Essa lei

tornaria ainda mais difiacutecil a inclusatildeo do negro apoacutes a Aboliccedilatildeo de 1888 realizada sem

qualquer reparaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo escravizada

A luta contemporacircnea dos quilombolas por direitos territoriais pode ser interpretada

como o reconhecimento do fracasso da realidade juriacutedica estabelecida tanto pela ldquoLei de

Terrasrdquo que pretendeu moldar a sociedade brasileira na perspectiva da propriedade privada de

terras quanto pela forma mesma com que se daacute a aboliccedilatildeo da escravidatildeo A noccedilatildeo de terra

coletiva como satildeo pensadas as terras de comunidades quilombolas contraria o modelo

baseado na propriedade privada como uacutenica forma de acesso e uso da terra o qual exclui

outros usos e relaccedilotildees com o territoacuterio como ocorre entre povos e comunidades tradicionais

Aleacutem dos quilombos constituiacutedos no periacuteodo escravocrata muitos foram formados

apoacutes a aboliccedilatildeo formal da escravatura pois essa forma de organizaccedilatildeo comunitaacuteria

continuaria a ser para muitos a uacutenica possibilidade de viver em liberdade Constituir um

quilombo tornou-se um imperativo de sobrevivecircncia posto que a Lei Aacuteurea diferentemente

do propugnado pelo movimento abolicionista natildeo levou em conta mecanismos de

redistribuiccedilatildeo de terras

De um modo geral os territoacuterios quilombolas originaram-se em diferentes situaccedilotildees

tais como doaccedilotildees de terras realizadas a partir da desagregaccedilatildeo da lavoura de monoculturas

como a cana-de-accediluacutecar e o algodatildeo compra de terras pelos proacuteprios sujeitos possibilitada

pela desestruturaccedilatildeo do sistema escravista terras que foram conquistadas por meio da

prestaccedilatildeo de serviccedilos inclusive de guerra bem como aacutereas ocupadas por negros que fugiam

da escravidatildeo Haacute tambeacutem as chamadas terras de preto terras de santo ou terras de santiacutessima

que indicam uma territorialidade vinda de propriedades de ordens religiosas da doaccedilatildeo de

terras para santos e do recebimento de terras em troca de serviccedilos religiosos prestados a

senhores de escravos por sacerdotes de religiotildees afro-brasileiras

Os quilombos permaneceram invisibilizados durante todo o periacuteodo republicano e

reaparecem como resultado da accedilatildeo dos movimentos negros apenas com a Constituiccedilatildeo de

1988 como territoacuterios detentores de direitos Transcorreram portanto cerca de cem anos da

aboliccedilatildeo ateacute a aprovaccedilatildeo do Artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias

(ADCT) o qual assegura o seguinte Aos quilombolas que estejam ocupando suas terras eacute

reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivos

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Tais comunidades se distinguem pela identidade eacutetnica tendo desenvolvido praacuteticas

de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo de modos de vida caracteriacutesticos num determinado lugar Satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida

As comunidades quilombolas localizam-se em 24 estados da federaccedilatildeo sendo a

maior parte nos estados do Maranhatildeo Bahia Paraacute Minas Gerais e Pernambuco Os uacutenicos

estados que natildeo registram ocorrecircncias dessas comunidades satildeo o Acre e Roraima aleacutem do

Distrito Federal

As populaccedilotildees afro-brasileiras na literatura do Rio Grande do Norte

A literatura que trata da questatildeo da populaccedilatildeo negra no Estado pode ser

classificada por dois momentos distintos inicialmente estudos sobre a populaccedilatildeo

escravizada e aspectos das irmandades religiosas (Cascudo Medeiros Melo e Mattos) e

mais atualmente os relatoacuterios antropoloacutegicos e textos acadecircmicos sobre comunidades

negras rurais

O folclorista e historiador Luiacutes da Cacircmara Cascudo mostra uma anaacutelise importante

sobre as diferenccedilas na condiccedilatildeo de escravo nos engenhos de cana de accediluacutecar e nas fazendas

do sertatildeo No primeiro caso era demandado um grande nuacutemero de matildeo-de-obra cujo

controle baseava-se em regras riacutegidas de separaccedilatildeo entre senhores e escravos enquanto que

no sertatildeo as relaccedilotildees entre escravo e senhor garantiam ao primeiro um espaccedilo de atuaccedilatildeo

poliacutetica e econocircmica mais definido Cascudo incita-nos com a seguinte descriccedilatildeo

Na criaccedilatildeo do gado os donos e os escravos estatildeo na mesma linha tenaz de

coragem e batalha Satildeo dois vaqueiros Vestem a mesma veacutestia de couro

Encontraram o mesmo perigo o mesmo carrascal a mesma grota o aclive suacutebito

e escabroso

Assim a fazenda de gado rude de missatildeo imediata individual criou o homem na

semelhanccedila do seu uso

Esta escola determinou no escravo uma personalidade superior e sentida Sentia-

se senhor de seu campo na sela do seu cavalo como um baratildeo guerreiro Vezes

inuacutemeras o senhor entrega a fazenda ao escravo vaqueiro e vai-se embora O

negro era senhor de vidas e de gado vendendo colhendo discutindo escolhendo

sua escala de tarefas sabendo mandar planejar arriscar vencer(BRITO

199747)

Tarciacutesio Medeiros de maneira etnocecircntrica relega aos negros no Rio Grande do

Norte pouca importacircncia como ator social Ele mostra o negro balizado em conceitos

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relacionados ao mito da democracia racial Nega o legado cultural do negro para a cultura

local Ignora por conseguinte a religiosidade a culinaacuteria o vocabulaacuterio e expressotildees

culturais como a danccedila do espontatildeo e as cantorias Com exemplo podemos ver o trato

preconceituoso que ele daacute agraves religiotildees afro-brasileiras no Rio Grande do Norte quando cita

Do negro escravo no Estado ficaram poucas tradiccedilotildees De crendices e

supersticcedilotildees das que viveram nos canaviais ficou o canjerecirc feiticcedilo a cousa-feita

mas desconhecem o padecirc Exu Xangocirc Aacuteguas de Iemanjaacute que surgiram apoacutes a

deacutecada de 1950 produtos de importaccedilatildeo made in Bahia Rio de Janeiro

Pernambuco O ambiente canavieiro facilitou a supersticcedilatildeo dessa natureza mais

acentuadamente que nas fazendas de gado com escravaria reduzida (Medeiros

973229)

Por outro lado seu texto eacute rico em informaccedilotildees etnograacuteficas ndash que muitas vezes

contradiz suas afirmaccedilotildees generalizadas ndash quando cita sobre a presenccedila negra no RN por

exemplo Eacute sua a citaccedilatildeo que diz

Evidentemente nesse iniacutecio do seacuteculo XVII com o portuguecircs chega no Rio

Grande do Norte o elemento negro A presenccedila entre noacutes tem que ser estudada

diretamente com o fenocircmeno da escravidatildeo e esta no momento de sua

permissibilidade ocorreu em 1600 quando os primeiros escravos chegaram agrave vila

de Natal (MEDEIROS 198847)

Os textos acadecircmicos iniciais no Rio Grande do Norte procuravam exaltar aspectos

que folclorizavam os aspectos culturais da vida das populaccedilotildees negras rurais ignorando

aspectos eacuteticos na conduccedilatildeo de pesquisas antropoloacutegicas envolvendo populaccedilotildees

vulneraacuteveis resultando muitas vezes em textos no qual se expotildee situaccedilotildees no miacutenimo

constrangedoras destas pessoas

Na deacutecada seguinte este olhar privilegiando o exoacutetico sobre populaccedilotildees

quilombolas no Estado do Rio Grande do Norte chegou agrave academia em forma de dissertaccedilatildeo

de um historiador da regiatildeo em um mestrado na Antropologia (Assunccedilatildeo 1994) sobre uma

comunidade quilombola Como exemplo ele cita de forma preconceituosa e racista sem o

menor constrangimento em seu trabalho Os negros do Riacho estrateacutegias de sobrevivecircncia

e identidade social duas situaccedilotildees de caraacuteter iacutentimo da comunidade a praacutetica da

religiosidade afro-ameriacutendia e a tipologia de ldquorelaccedilotildees matrimoniais natildeo convencionais

(bigamia e incesto)rdquo

Em relaccedilatildeo agrave religiosidade Assunccedilatildeo chama simplesmente de feiticcedilo todo um

conjunto de conhecimento e praacuteticas que evocam a memoacuteria do grupo na afirmaccedilatildeo de uma

identidade proacutepria a religiosidade afro-brasileira e ameriacutendia Seu texto eacute carregado de

preconceitos quando cita assim

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Os ldquocaboclosrdquo acreditam no feiticcedilo como se fosse ldquouma coisa que numa pessoa eacute

uma coisa botadardquo Tanto os homens quanto as mulheres acreditam no feiticcedilo mas

apenas as mulheres o praticam Essa praacutetica se daacute para o mal e para o bem

(ASSUNCcedilAtildeO 199436)

No que diz respeito agraves relaccedilotildees matrimoniais Assunccedilatildeo afirma (atraveacutes das falas

dos moradores) que era comum a de um homem com vaacuterias mulheres como nesta sua

citaccedilatildeo

A uniatildeo de um homem com mais de uma mulher eacute uma praacutetica que vem desde os

tempos mais antigos

Outra questatildeo eacute que estes casamentos sempre ocorreram entre pessoas do

mesmo grupo entre membros que pertencem agraves famiacutelias existentes no grupordquo

A autora desse depoimento e sua irmatilde ldquovivemrdquo com o mesmo homem que eacute

primo em terceiro grau (ASSUNCcedilAtildeO 19944041 e 42)

E Assunccedilatildeo tambeacutem cita contrariando agrave vontade da comunidade dois casos de

uniatildeo incestuosa

Os ldquonegrosrdquo mais velhos viveram na eacutepoca e se lembram de casos como o do pai

que teve filhos com sua filha todos residindo na mesma unidade Tiveram trecircs

filhos estando vivo apenas um filho que natildeo reside no grupo Esta crianccedila foi

dada para uma outra famiacutelia externa ao grupo Houve tambeacutem o caso de um

irmatildeo que teve um filho com sua irmatilde Estes estatildeo vivos e residem no proacuteprio

grupo Mas desses casos os ldquonegrosrdquo natildeo gostam de falar (ASSUNCcedilAtildeO

199443)

Mais um dado de questionaacutevel ldquoimportacircnciardquo antropoloacutegica nos eacute ofertado ainda

por Assunccedilatildeo quando em seu afatilde de ver tudo folclorizado ateacute uma simples separaccedilatildeo eacute

colocada de forma atiacutepica

Outra situaccedilatildeo que existe desde o tempo dos antigos eacute a praacutetica de separaccedilatildeo entre

os cocircnjuges quando consideram que o casamento se esgotou Nesse caso tanto o

homem como a mulher podem se casar novamente chegando ateacute a se casar por

trecircs vezes dando-se o evento seja por motivo de morte seja por separaccedilatildeo

(ASSUNCcedilAtildeO199443)

Este texto de Luiz Assunccedilatildeo eacute exemplo de um discurso tiacutepico dos ldquobrancosrdquo do

Seridoacute Discurso este que aqui se transforma em ldquoverdade cientiacuteficardquo atraveacutes da publicaccedilatildeo

e consequentemente a exposiccedilatildeo de dramas particulares de uma comunidade negra A

consequecircncia desta atitude eacute o conhecimento deste texto por pessoas da regiatildeo e atraveacutes

dele a justificativa da exclusatildeo da comunidade em poliacuteticas sociais

Para o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira que tem uma ampla experiecircncia com

populaccedilotildees tradicionais vale a observaccedilatildeo sobre a responsabilidade dos antropoacutelogos que

trabalham com estas comunidades

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Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

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ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

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colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

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oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

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Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

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Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

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conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

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Aprovado em 17102019

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afro-brasileiras foram ignoradas ao pensar a o projeto de naccedilatildeo para o Brasil A invisibilidade

gerando uma marginalizaccedilatildeo histoacuterica geograacutefica e poliacutetica Pode-se ainda pensar que

A consolidaccedilatildeo da naccedilatildeo obteve o suporte ideoloacutegico do racialismo reforccedilando com

ele um projeto de orientaccedilatildeo liberal inspirado num tipo de universalismo iluminista

que invisibilizou as pautas poliacuteticas e sociais dos grupos negros e indiacutegenas O tipo

de ocupaccedilatildeo do espaccedilo territorial e a manutenccedilatildeo da fronteira eacutetnica pelos grupos

foram portanto um relevante fator de reorganizaccedilatildeo das diferenccedilas com perdas

significativas para os que jaacute se encontravam anteriormente na terra ndash principalmente

os africanos os indiacutegenas e os chamados ldquocaboclos (LEITE 200896)

Essa espeacutecie de topografia eacutetnica traduziu-se na continuidade das estrateacutegias de

expropriaccedilatildeo das terras e na forma como esse projeto se tornou hegemocircnico e se

reproduziu com sucesso ateacute os dias atuais Eacute tambeacutem possiacutevel depreender as formas

de resistecircncia daqueles que foram excluiacutedos do direito de se apropriar bem como de

titular suas terras As linhas demarcatoacuterias dos grupos para aleacutem das diferenccedilas

culturais tornaram-se formas matriciais de continuidade da hierarquizaccedilatildeo de novas

formas de exploraccedilatildeo e principalmente da perpetuaccedilatildeo das desigualdades sociais

(LEITE 2008967)

No momento histoacuterico que se iniciou com a promulgaccedilatildeo da Consttuiccedilatildeo Federal

(1988) podemos inferir que

Tais comunidades se revestem de grande atualidade no paiacutes em virtude do avanccedilo

das poliacuteticas puacuteblicas no sentido de fazer cumprir os dispositivos constitucionais do

tombamento salvaguarda e preservaccedilatildeo delas consideradas que foram pelo Artigo

216 da CF integrantes do patrimocircnio Cultural Nacional e pelo Artigo 68 dos

ADCTs como justamente merecedoras do seu reconhecimento e da atribuiccedilatildeo de

posse definitiva do seu territoacuterio por parte do Estado Nacionalrdquo (MEDEIROS In

TAMASO e LIMA Filho 2012 377)

Neste sentido podemos vislumbrar um cenaacuterio com novas possibilidades para a

elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas para esta parcela consideraacutevel da populaccedilatildeo

brasileira a populaccedilatildeo das comunidades quilombolas

Evidentemente esta situaccedilatildeo eleva questionamentos de ordem conceitual e histoacuterica

ao tratar de um tema novo as comunidades quilombolas que estatildeo espalhadas em todo o

territoacuterio nacional e tecircm como caracteriacutestica comum a pobreza e a dificuldade de acesso agraves

poliacuteticas sociais especiacuteficas para este grupo Satildeo viacutetimas constantes de Racismo Xenofobia e

outras formas de violecircncia que resultam na manutenccedilatildeo eou dificuldades de alteraccedilatildeo

positiva em relaccedilatildeo ao quadro de pobreza da maioria destas comunidades

Os quilombos no Brasil

Para uma melhor compreensatildeo da situaccedilatildeo das terras quilombolas e de outros

territoacuterios tradicionais no Brasil eacute fundamental fazer-se referecircncia agrave Lei de Concessatildeo de

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Terras de 1850 Eacute nesse momento que se vincula definitivamente a posse e a propriedade da

terra agravequele que possui recurso monetaacuterio para adquiri-la e legalizaacute-la cartorialmente Essa lei

tornaria ainda mais difiacutecil a inclusatildeo do negro apoacutes a Aboliccedilatildeo de 1888 realizada sem

qualquer reparaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo escravizada

A luta contemporacircnea dos quilombolas por direitos territoriais pode ser interpretada

como o reconhecimento do fracasso da realidade juriacutedica estabelecida tanto pela ldquoLei de

Terrasrdquo que pretendeu moldar a sociedade brasileira na perspectiva da propriedade privada de

terras quanto pela forma mesma com que se daacute a aboliccedilatildeo da escravidatildeo A noccedilatildeo de terra

coletiva como satildeo pensadas as terras de comunidades quilombolas contraria o modelo

baseado na propriedade privada como uacutenica forma de acesso e uso da terra o qual exclui

outros usos e relaccedilotildees com o territoacuterio como ocorre entre povos e comunidades tradicionais

Aleacutem dos quilombos constituiacutedos no periacuteodo escravocrata muitos foram formados

apoacutes a aboliccedilatildeo formal da escravatura pois essa forma de organizaccedilatildeo comunitaacuteria

continuaria a ser para muitos a uacutenica possibilidade de viver em liberdade Constituir um

quilombo tornou-se um imperativo de sobrevivecircncia posto que a Lei Aacuteurea diferentemente

do propugnado pelo movimento abolicionista natildeo levou em conta mecanismos de

redistribuiccedilatildeo de terras

De um modo geral os territoacuterios quilombolas originaram-se em diferentes situaccedilotildees

tais como doaccedilotildees de terras realizadas a partir da desagregaccedilatildeo da lavoura de monoculturas

como a cana-de-accediluacutecar e o algodatildeo compra de terras pelos proacuteprios sujeitos possibilitada

pela desestruturaccedilatildeo do sistema escravista terras que foram conquistadas por meio da

prestaccedilatildeo de serviccedilos inclusive de guerra bem como aacutereas ocupadas por negros que fugiam

da escravidatildeo Haacute tambeacutem as chamadas terras de preto terras de santo ou terras de santiacutessima

que indicam uma territorialidade vinda de propriedades de ordens religiosas da doaccedilatildeo de

terras para santos e do recebimento de terras em troca de serviccedilos religiosos prestados a

senhores de escravos por sacerdotes de religiotildees afro-brasileiras

Os quilombos permaneceram invisibilizados durante todo o periacuteodo republicano e

reaparecem como resultado da accedilatildeo dos movimentos negros apenas com a Constituiccedilatildeo de

1988 como territoacuterios detentores de direitos Transcorreram portanto cerca de cem anos da

aboliccedilatildeo ateacute a aprovaccedilatildeo do Artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias

(ADCT) o qual assegura o seguinte Aos quilombolas que estejam ocupando suas terras eacute

reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivos

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Tais comunidades se distinguem pela identidade eacutetnica tendo desenvolvido praacuteticas

de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo de modos de vida caracteriacutesticos num determinado lugar Satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida

As comunidades quilombolas localizam-se em 24 estados da federaccedilatildeo sendo a

maior parte nos estados do Maranhatildeo Bahia Paraacute Minas Gerais e Pernambuco Os uacutenicos

estados que natildeo registram ocorrecircncias dessas comunidades satildeo o Acre e Roraima aleacutem do

Distrito Federal

As populaccedilotildees afro-brasileiras na literatura do Rio Grande do Norte

A literatura que trata da questatildeo da populaccedilatildeo negra no Estado pode ser

classificada por dois momentos distintos inicialmente estudos sobre a populaccedilatildeo

escravizada e aspectos das irmandades religiosas (Cascudo Medeiros Melo e Mattos) e

mais atualmente os relatoacuterios antropoloacutegicos e textos acadecircmicos sobre comunidades

negras rurais

O folclorista e historiador Luiacutes da Cacircmara Cascudo mostra uma anaacutelise importante

sobre as diferenccedilas na condiccedilatildeo de escravo nos engenhos de cana de accediluacutecar e nas fazendas

do sertatildeo No primeiro caso era demandado um grande nuacutemero de matildeo-de-obra cujo

controle baseava-se em regras riacutegidas de separaccedilatildeo entre senhores e escravos enquanto que

no sertatildeo as relaccedilotildees entre escravo e senhor garantiam ao primeiro um espaccedilo de atuaccedilatildeo

poliacutetica e econocircmica mais definido Cascudo incita-nos com a seguinte descriccedilatildeo

Na criaccedilatildeo do gado os donos e os escravos estatildeo na mesma linha tenaz de

coragem e batalha Satildeo dois vaqueiros Vestem a mesma veacutestia de couro

Encontraram o mesmo perigo o mesmo carrascal a mesma grota o aclive suacutebito

e escabroso

Assim a fazenda de gado rude de missatildeo imediata individual criou o homem na

semelhanccedila do seu uso

Esta escola determinou no escravo uma personalidade superior e sentida Sentia-

se senhor de seu campo na sela do seu cavalo como um baratildeo guerreiro Vezes

inuacutemeras o senhor entrega a fazenda ao escravo vaqueiro e vai-se embora O

negro era senhor de vidas e de gado vendendo colhendo discutindo escolhendo

sua escala de tarefas sabendo mandar planejar arriscar vencer(BRITO

199747)

Tarciacutesio Medeiros de maneira etnocecircntrica relega aos negros no Rio Grande do

Norte pouca importacircncia como ator social Ele mostra o negro balizado em conceitos

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relacionados ao mito da democracia racial Nega o legado cultural do negro para a cultura

local Ignora por conseguinte a religiosidade a culinaacuteria o vocabulaacuterio e expressotildees

culturais como a danccedila do espontatildeo e as cantorias Com exemplo podemos ver o trato

preconceituoso que ele daacute agraves religiotildees afro-brasileiras no Rio Grande do Norte quando cita

Do negro escravo no Estado ficaram poucas tradiccedilotildees De crendices e

supersticcedilotildees das que viveram nos canaviais ficou o canjerecirc feiticcedilo a cousa-feita

mas desconhecem o padecirc Exu Xangocirc Aacuteguas de Iemanjaacute que surgiram apoacutes a

deacutecada de 1950 produtos de importaccedilatildeo made in Bahia Rio de Janeiro

Pernambuco O ambiente canavieiro facilitou a supersticcedilatildeo dessa natureza mais

acentuadamente que nas fazendas de gado com escravaria reduzida (Medeiros

973229)

Por outro lado seu texto eacute rico em informaccedilotildees etnograacuteficas ndash que muitas vezes

contradiz suas afirmaccedilotildees generalizadas ndash quando cita sobre a presenccedila negra no RN por

exemplo Eacute sua a citaccedilatildeo que diz

Evidentemente nesse iniacutecio do seacuteculo XVII com o portuguecircs chega no Rio

Grande do Norte o elemento negro A presenccedila entre noacutes tem que ser estudada

diretamente com o fenocircmeno da escravidatildeo e esta no momento de sua

permissibilidade ocorreu em 1600 quando os primeiros escravos chegaram agrave vila

de Natal (MEDEIROS 198847)

Os textos acadecircmicos iniciais no Rio Grande do Norte procuravam exaltar aspectos

que folclorizavam os aspectos culturais da vida das populaccedilotildees negras rurais ignorando

aspectos eacuteticos na conduccedilatildeo de pesquisas antropoloacutegicas envolvendo populaccedilotildees

vulneraacuteveis resultando muitas vezes em textos no qual se expotildee situaccedilotildees no miacutenimo

constrangedoras destas pessoas

Na deacutecada seguinte este olhar privilegiando o exoacutetico sobre populaccedilotildees

quilombolas no Estado do Rio Grande do Norte chegou agrave academia em forma de dissertaccedilatildeo

de um historiador da regiatildeo em um mestrado na Antropologia (Assunccedilatildeo 1994) sobre uma

comunidade quilombola Como exemplo ele cita de forma preconceituosa e racista sem o

menor constrangimento em seu trabalho Os negros do Riacho estrateacutegias de sobrevivecircncia

e identidade social duas situaccedilotildees de caraacuteter iacutentimo da comunidade a praacutetica da

religiosidade afro-ameriacutendia e a tipologia de ldquorelaccedilotildees matrimoniais natildeo convencionais

(bigamia e incesto)rdquo

Em relaccedilatildeo agrave religiosidade Assunccedilatildeo chama simplesmente de feiticcedilo todo um

conjunto de conhecimento e praacuteticas que evocam a memoacuteria do grupo na afirmaccedilatildeo de uma

identidade proacutepria a religiosidade afro-brasileira e ameriacutendia Seu texto eacute carregado de

preconceitos quando cita assim

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Os ldquocaboclosrdquo acreditam no feiticcedilo como se fosse ldquouma coisa que numa pessoa eacute

uma coisa botadardquo Tanto os homens quanto as mulheres acreditam no feiticcedilo mas

apenas as mulheres o praticam Essa praacutetica se daacute para o mal e para o bem

(ASSUNCcedilAtildeO 199436)

No que diz respeito agraves relaccedilotildees matrimoniais Assunccedilatildeo afirma (atraveacutes das falas

dos moradores) que era comum a de um homem com vaacuterias mulheres como nesta sua

citaccedilatildeo

A uniatildeo de um homem com mais de uma mulher eacute uma praacutetica que vem desde os

tempos mais antigos

Outra questatildeo eacute que estes casamentos sempre ocorreram entre pessoas do

mesmo grupo entre membros que pertencem agraves famiacutelias existentes no grupordquo

A autora desse depoimento e sua irmatilde ldquovivemrdquo com o mesmo homem que eacute

primo em terceiro grau (ASSUNCcedilAtildeO 19944041 e 42)

E Assunccedilatildeo tambeacutem cita contrariando agrave vontade da comunidade dois casos de

uniatildeo incestuosa

Os ldquonegrosrdquo mais velhos viveram na eacutepoca e se lembram de casos como o do pai

que teve filhos com sua filha todos residindo na mesma unidade Tiveram trecircs

filhos estando vivo apenas um filho que natildeo reside no grupo Esta crianccedila foi

dada para uma outra famiacutelia externa ao grupo Houve tambeacutem o caso de um

irmatildeo que teve um filho com sua irmatilde Estes estatildeo vivos e residem no proacuteprio

grupo Mas desses casos os ldquonegrosrdquo natildeo gostam de falar (ASSUNCcedilAtildeO

199443)

Mais um dado de questionaacutevel ldquoimportacircnciardquo antropoloacutegica nos eacute ofertado ainda

por Assunccedilatildeo quando em seu afatilde de ver tudo folclorizado ateacute uma simples separaccedilatildeo eacute

colocada de forma atiacutepica

Outra situaccedilatildeo que existe desde o tempo dos antigos eacute a praacutetica de separaccedilatildeo entre

os cocircnjuges quando consideram que o casamento se esgotou Nesse caso tanto o

homem como a mulher podem se casar novamente chegando ateacute a se casar por

trecircs vezes dando-se o evento seja por motivo de morte seja por separaccedilatildeo

(ASSUNCcedilAtildeO199443)

Este texto de Luiz Assunccedilatildeo eacute exemplo de um discurso tiacutepico dos ldquobrancosrdquo do

Seridoacute Discurso este que aqui se transforma em ldquoverdade cientiacuteficardquo atraveacutes da publicaccedilatildeo

e consequentemente a exposiccedilatildeo de dramas particulares de uma comunidade negra A

consequecircncia desta atitude eacute o conhecimento deste texto por pessoas da regiatildeo e atraveacutes

dele a justificativa da exclusatildeo da comunidade em poliacuteticas sociais

Para o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira que tem uma ampla experiecircncia com

populaccedilotildees tradicionais vale a observaccedilatildeo sobre a responsabilidade dos antropoacutelogos que

trabalham com estas comunidades

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Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

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ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

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colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

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oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

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Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

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Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

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conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

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Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

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Terras de 1850 Eacute nesse momento que se vincula definitivamente a posse e a propriedade da

terra agravequele que possui recurso monetaacuterio para adquiri-la e legalizaacute-la cartorialmente Essa lei

tornaria ainda mais difiacutecil a inclusatildeo do negro apoacutes a Aboliccedilatildeo de 1888 realizada sem

qualquer reparaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo escravizada

A luta contemporacircnea dos quilombolas por direitos territoriais pode ser interpretada

como o reconhecimento do fracasso da realidade juriacutedica estabelecida tanto pela ldquoLei de

Terrasrdquo que pretendeu moldar a sociedade brasileira na perspectiva da propriedade privada de

terras quanto pela forma mesma com que se daacute a aboliccedilatildeo da escravidatildeo A noccedilatildeo de terra

coletiva como satildeo pensadas as terras de comunidades quilombolas contraria o modelo

baseado na propriedade privada como uacutenica forma de acesso e uso da terra o qual exclui

outros usos e relaccedilotildees com o territoacuterio como ocorre entre povos e comunidades tradicionais

Aleacutem dos quilombos constituiacutedos no periacuteodo escravocrata muitos foram formados

apoacutes a aboliccedilatildeo formal da escravatura pois essa forma de organizaccedilatildeo comunitaacuteria

continuaria a ser para muitos a uacutenica possibilidade de viver em liberdade Constituir um

quilombo tornou-se um imperativo de sobrevivecircncia posto que a Lei Aacuteurea diferentemente

do propugnado pelo movimento abolicionista natildeo levou em conta mecanismos de

redistribuiccedilatildeo de terras

De um modo geral os territoacuterios quilombolas originaram-se em diferentes situaccedilotildees

tais como doaccedilotildees de terras realizadas a partir da desagregaccedilatildeo da lavoura de monoculturas

como a cana-de-accediluacutecar e o algodatildeo compra de terras pelos proacuteprios sujeitos possibilitada

pela desestruturaccedilatildeo do sistema escravista terras que foram conquistadas por meio da

prestaccedilatildeo de serviccedilos inclusive de guerra bem como aacutereas ocupadas por negros que fugiam

da escravidatildeo Haacute tambeacutem as chamadas terras de preto terras de santo ou terras de santiacutessima

que indicam uma territorialidade vinda de propriedades de ordens religiosas da doaccedilatildeo de

terras para santos e do recebimento de terras em troca de serviccedilos religiosos prestados a

senhores de escravos por sacerdotes de religiotildees afro-brasileiras

Os quilombos permaneceram invisibilizados durante todo o periacuteodo republicano e

reaparecem como resultado da accedilatildeo dos movimentos negros apenas com a Constituiccedilatildeo de

1988 como territoacuterios detentores de direitos Transcorreram portanto cerca de cem anos da

aboliccedilatildeo ateacute a aprovaccedilatildeo do Artigo 68 do Ato das Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias

(ADCT) o qual assegura o seguinte Aos quilombolas que estejam ocupando suas terras eacute

reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os tiacutetulos respectivos

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Tais comunidades se distinguem pela identidade eacutetnica tendo desenvolvido praacuteticas

de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo de modos de vida caracteriacutesticos num determinado lugar Satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida

As comunidades quilombolas localizam-se em 24 estados da federaccedilatildeo sendo a

maior parte nos estados do Maranhatildeo Bahia Paraacute Minas Gerais e Pernambuco Os uacutenicos

estados que natildeo registram ocorrecircncias dessas comunidades satildeo o Acre e Roraima aleacutem do

Distrito Federal

As populaccedilotildees afro-brasileiras na literatura do Rio Grande do Norte

A literatura que trata da questatildeo da populaccedilatildeo negra no Estado pode ser

classificada por dois momentos distintos inicialmente estudos sobre a populaccedilatildeo

escravizada e aspectos das irmandades religiosas (Cascudo Medeiros Melo e Mattos) e

mais atualmente os relatoacuterios antropoloacutegicos e textos acadecircmicos sobre comunidades

negras rurais

O folclorista e historiador Luiacutes da Cacircmara Cascudo mostra uma anaacutelise importante

sobre as diferenccedilas na condiccedilatildeo de escravo nos engenhos de cana de accediluacutecar e nas fazendas

do sertatildeo No primeiro caso era demandado um grande nuacutemero de matildeo-de-obra cujo

controle baseava-se em regras riacutegidas de separaccedilatildeo entre senhores e escravos enquanto que

no sertatildeo as relaccedilotildees entre escravo e senhor garantiam ao primeiro um espaccedilo de atuaccedilatildeo

poliacutetica e econocircmica mais definido Cascudo incita-nos com a seguinte descriccedilatildeo

Na criaccedilatildeo do gado os donos e os escravos estatildeo na mesma linha tenaz de

coragem e batalha Satildeo dois vaqueiros Vestem a mesma veacutestia de couro

Encontraram o mesmo perigo o mesmo carrascal a mesma grota o aclive suacutebito

e escabroso

Assim a fazenda de gado rude de missatildeo imediata individual criou o homem na

semelhanccedila do seu uso

Esta escola determinou no escravo uma personalidade superior e sentida Sentia-

se senhor de seu campo na sela do seu cavalo como um baratildeo guerreiro Vezes

inuacutemeras o senhor entrega a fazenda ao escravo vaqueiro e vai-se embora O

negro era senhor de vidas e de gado vendendo colhendo discutindo escolhendo

sua escala de tarefas sabendo mandar planejar arriscar vencer(BRITO

199747)

Tarciacutesio Medeiros de maneira etnocecircntrica relega aos negros no Rio Grande do

Norte pouca importacircncia como ator social Ele mostra o negro balizado em conceitos

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relacionados ao mito da democracia racial Nega o legado cultural do negro para a cultura

local Ignora por conseguinte a religiosidade a culinaacuteria o vocabulaacuterio e expressotildees

culturais como a danccedila do espontatildeo e as cantorias Com exemplo podemos ver o trato

preconceituoso que ele daacute agraves religiotildees afro-brasileiras no Rio Grande do Norte quando cita

Do negro escravo no Estado ficaram poucas tradiccedilotildees De crendices e

supersticcedilotildees das que viveram nos canaviais ficou o canjerecirc feiticcedilo a cousa-feita

mas desconhecem o padecirc Exu Xangocirc Aacuteguas de Iemanjaacute que surgiram apoacutes a

deacutecada de 1950 produtos de importaccedilatildeo made in Bahia Rio de Janeiro

Pernambuco O ambiente canavieiro facilitou a supersticcedilatildeo dessa natureza mais

acentuadamente que nas fazendas de gado com escravaria reduzida (Medeiros

973229)

Por outro lado seu texto eacute rico em informaccedilotildees etnograacuteficas ndash que muitas vezes

contradiz suas afirmaccedilotildees generalizadas ndash quando cita sobre a presenccedila negra no RN por

exemplo Eacute sua a citaccedilatildeo que diz

Evidentemente nesse iniacutecio do seacuteculo XVII com o portuguecircs chega no Rio

Grande do Norte o elemento negro A presenccedila entre noacutes tem que ser estudada

diretamente com o fenocircmeno da escravidatildeo e esta no momento de sua

permissibilidade ocorreu em 1600 quando os primeiros escravos chegaram agrave vila

de Natal (MEDEIROS 198847)

Os textos acadecircmicos iniciais no Rio Grande do Norte procuravam exaltar aspectos

que folclorizavam os aspectos culturais da vida das populaccedilotildees negras rurais ignorando

aspectos eacuteticos na conduccedilatildeo de pesquisas antropoloacutegicas envolvendo populaccedilotildees

vulneraacuteveis resultando muitas vezes em textos no qual se expotildee situaccedilotildees no miacutenimo

constrangedoras destas pessoas

Na deacutecada seguinte este olhar privilegiando o exoacutetico sobre populaccedilotildees

quilombolas no Estado do Rio Grande do Norte chegou agrave academia em forma de dissertaccedilatildeo

de um historiador da regiatildeo em um mestrado na Antropologia (Assunccedilatildeo 1994) sobre uma

comunidade quilombola Como exemplo ele cita de forma preconceituosa e racista sem o

menor constrangimento em seu trabalho Os negros do Riacho estrateacutegias de sobrevivecircncia

e identidade social duas situaccedilotildees de caraacuteter iacutentimo da comunidade a praacutetica da

religiosidade afro-ameriacutendia e a tipologia de ldquorelaccedilotildees matrimoniais natildeo convencionais

(bigamia e incesto)rdquo

Em relaccedilatildeo agrave religiosidade Assunccedilatildeo chama simplesmente de feiticcedilo todo um

conjunto de conhecimento e praacuteticas que evocam a memoacuteria do grupo na afirmaccedilatildeo de uma

identidade proacutepria a religiosidade afro-brasileira e ameriacutendia Seu texto eacute carregado de

preconceitos quando cita assim

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Os ldquocaboclosrdquo acreditam no feiticcedilo como se fosse ldquouma coisa que numa pessoa eacute

uma coisa botadardquo Tanto os homens quanto as mulheres acreditam no feiticcedilo mas

apenas as mulheres o praticam Essa praacutetica se daacute para o mal e para o bem

(ASSUNCcedilAtildeO 199436)

No que diz respeito agraves relaccedilotildees matrimoniais Assunccedilatildeo afirma (atraveacutes das falas

dos moradores) que era comum a de um homem com vaacuterias mulheres como nesta sua

citaccedilatildeo

A uniatildeo de um homem com mais de uma mulher eacute uma praacutetica que vem desde os

tempos mais antigos

Outra questatildeo eacute que estes casamentos sempre ocorreram entre pessoas do

mesmo grupo entre membros que pertencem agraves famiacutelias existentes no grupordquo

A autora desse depoimento e sua irmatilde ldquovivemrdquo com o mesmo homem que eacute

primo em terceiro grau (ASSUNCcedilAtildeO 19944041 e 42)

E Assunccedilatildeo tambeacutem cita contrariando agrave vontade da comunidade dois casos de

uniatildeo incestuosa

Os ldquonegrosrdquo mais velhos viveram na eacutepoca e se lembram de casos como o do pai

que teve filhos com sua filha todos residindo na mesma unidade Tiveram trecircs

filhos estando vivo apenas um filho que natildeo reside no grupo Esta crianccedila foi

dada para uma outra famiacutelia externa ao grupo Houve tambeacutem o caso de um

irmatildeo que teve um filho com sua irmatilde Estes estatildeo vivos e residem no proacuteprio

grupo Mas desses casos os ldquonegrosrdquo natildeo gostam de falar (ASSUNCcedilAtildeO

199443)

Mais um dado de questionaacutevel ldquoimportacircnciardquo antropoloacutegica nos eacute ofertado ainda

por Assunccedilatildeo quando em seu afatilde de ver tudo folclorizado ateacute uma simples separaccedilatildeo eacute

colocada de forma atiacutepica

Outra situaccedilatildeo que existe desde o tempo dos antigos eacute a praacutetica de separaccedilatildeo entre

os cocircnjuges quando consideram que o casamento se esgotou Nesse caso tanto o

homem como a mulher podem se casar novamente chegando ateacute a se casar por

trecircs vezes dando-se o evento seja por motivo de morte seja por separaccedilatildeo

(ASSUNCcedilAtildeO199443)

Este texto de Luiz Assunccedilatildeo eacute exemplo de um discurso tiacutepico dos ldquobrancosrdquo do

Seridoacute Discurso este que aqui se transforma em ldquoverdade cientiacuteficardquo atraveacutes da publicaccedilatildeo

e consequentemente a exposiccedilatildeo de dramas particulares de uma comunidade negra A

consequecircncia desta atitude eacute o conhecimento deste texto por pessoas da regiatildeo e atraveacutes

dele a justificativa da exclusatildeo da comunidade em poliacuteticas sociais

Para o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira que tem uma ampla experiecircncia com

populaccedilotildees tradicionais vale a observaccedilatildeo sobre a responsabilidade dos antropoacutelogos que

trabalham com estas comunidades

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Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

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ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

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colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

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oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

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Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

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Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

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conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

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coletado-a-ceu-aberto-queimado-ou-enterrado acesso em 200615

Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

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Tais comunidades se distinguem pela identidade eacutetnica tendo desenvolvido praacuteticas

de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo de modos de vida caracteriacutesticos num determinado lugar Satildeo

grupos eacutetnico-raciais segundo criteacuterios de autoatribuiccedilatildeo com trajetoacuteria histoacuterica proacutepria

dotados de relaccedilotildees territoriais especiacuteficas com presunccedilatildeo de ancestralidade negra

relacionada com a resistecircncia agrave opressatildeo histoacuterica sofrida

As comunidades quilombolas localizam-se em 24 estados da federaccedilatildeo sendo a

maior parte nos estados do Maranhatildeo Bahia Paraacute Minas Gerais e Pernambuco Os uacutenicos

estados que natildeo registram ocorrecircncias dessas comunidades satildeo o Acre e Roraima aleacutem do

Distrito Federal

As populaccedilotildees afro-brasileiras na literatura do Rio Grande do Norte

A literatura que trata da questatildeo da populaccedilatildeo negra no Estado pode ser

classificada por dois momentos distintos inicialmente estudos sobre a populaccedilatildeo

escravizada e aspectos das irmandades religiosas (Cascudo Medeiros Melo e Mattos) e

mais atualmente os relatoacuterios antropoloacutegicos e textos acadecircmicos sobre comunidades

negras rurais

O folclorista e historiador Luiacutes da Cacircmara Cascudo mostra uma anaacutelise importante

sobre as diferenccedilas na condiccedilatildeo de escravo nos engenhos de cana de accediluacutecar e nas fazendas

do sertatildeo No primeiro caso era demandado um grande nuacutemero de matildeo-de-obra cujo

controle baseava-se em regras riacutegidas de separaccedilatildeo entre senhores e escravos enquanto que

no sertatildeo as relaccedilotildees entre escravo e senhor garantiam ao primeiro um espaccedilo de atuaccedilatildeo

poliacutetica e econocircmica mais definido Cascudo incita-nos com a seguinte descriccedilatildeo

Na criaccedilatildeo do gado os donos e os escravos estatildeo na mesma linha tenaz de

coragem e batalha Satildeo dois vaqueiros Vestem a mesma veacutestia de couro

Encontraram o mesmo perigo o mesmo carrascal a mesma grota o aclive suacutebito

e escabroso

Assim a fazenda de gado rude de missatildeo imediata individual criou o homem na

semelhanccedila do seu uso

Esta escola determinou no escravo uma personalidade superior e sentida Sentia-

se senhor de seu campo na sela do seu cavalo como um baratildeo guerreiro Vezes

inuacutemeras o senhor entrega a fazenda ao escravo vaqueiro e vai-se embora O

negro era senhor de vidas e de gado vendendo colhendo discutindo escolhendo

sua escala de tarefas sabendo mandar planejar arriscar vencer(BRITO

199747)

Tarciacutesio Medeiros de maneira etnocecircntrica relega aos negros no Rio Grande do

Norte pouca importacircncia como ator social Ele mostra o negro balizado em conceitos

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relacionados ao mito da democracia racial Nega o legado cultural do negro para a cultura

local Ignora por conseguinte a religiosidade a culinaacuteria o vocabulaacuterio e expressotildees

culturais como a danccedila do espontatildeo e as cantorias Com exemplo podemos ver o trato

preconceituoso que ele daacute agraves religiotildees afro-brasileiras no Rio Grande do Norte quando cita

Do negro escravo no Estado ficaram poucas tradiccedilotildees De crendices e

supersticcedilotildees das que viveram nos canaviais ficou o canjerecirc feiticcedilo a cousa-feita

mas desconhecem o padecirc Exu Xangocirc Aacuteguas de Iemanjaacute que surgiram apoacutes a

deacutecada de 1950 produtos de importaccedilatildeo made in Bahia Rio de Janeiro

Pernambuco O ambiente canavieiro facilitou a supersticcedilatildeo dessa natureza mais

acentuadamente que nas fazendas de gado com escravaria reduzida (Medeiros

973229)

Por outro lado seu texto eacute rico em informaccedilotildees etnograacuteficas ndash que muitas vezes

contradiz suas afirmaccedilotildees generalizadas ndash quando cita sobre a presenccedila negra no RN por

exemplo Eacute sua a citaccedilatildeo que diz

Evidentemente nesse iniacutecio do seacuteculo XVII com o portuguecircs chega no Rio

Grande do Norte o elemento negro A presenccedila entre noacutes tem que ser estudada

diretamente com o fenocircmeno da escravidatildeo e esta no momento de sua

permissibilidade ocorreu em 1600 quando os primeiros escravos chegaram agrave vila

de Natal (MEDEIROS 198847)

Os textos acadecircmicos iniciais no Rio Grande do Norte procuravam exaltar aspectos

que folclorizavam os aspectos culturais da vida das populaccedilotildees negras rurais ignorando

aspectos eacuteticos na conduccedilatildeo de pesquisas antropoloacutegicas envolvendo populaccedilotildees

vulneraacuteveis resultando muitas vezes em textos no qual se expotildee situaccedilotildees no miacutenimo

constrangedoras destas pessoas

Na deacutecada seguinte este olhar privilegiando o exoacutetico sobre populaccedilotildees

quilombolas no Estado do Rio Grande do Norte chegou agrave academia em forma de dissertaccedilatildeo

de um historiador da regiatildeo em um mestrado na Antropologia (Assunccedilatildeo 1994) sobre uma

comunidade quilombola Como exemplo ele cita de forma preconceituosa e racista sem o

menor constrangimento em seu trabalho Os negros do Riacho estrateacutegias de sobrevivecircncia

e identidade social duas situaccedilotildees de caraacuteter iacutentimo da comunidade a praacutetica da

religiosidade afro-ameriacutendia e a tipologia de ldquorelaccedilotildees matrimoniais natildeo convencionais

(bigamia e incesto)rdquo

Em relaccedilatildeo agrave religiosidade Assunccedilatildeo chama simplesmente de feiticcedilo todo um

conjunto de conhecimento e praacuteticas que evocam a memoacuteria do grupo na afirmaccedilatildeo de uma

identidade proacutepria a religiosidade afro-brasileira e ameriacutendia Seu texto eacute carregado de

preconceitos quando cita assim

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Os ldquocaboclosrdquo acreditam no feiticcedilo como se fosse ldquouma coisa que numa pessoa eacute

uma coisa botadardquo Tanto os homens quanto as mulheres acreditam no feiticcedilo mas

apenas as mulheres o praticam Essa praacutetica se daacute para o mal e para o bem

(ASSUNCcedilAtildeO 199436)

No que diz respeito agraves relaccedilotildees matrimoniais Assunccedilatildeo afirma (atraveacutes das falas

dos moradores) que era comum a de um homem com vaacuterias mulheres como nesta sua

citaccedilatildeo

A uniatildeo de um homem com mais de uma mulher eacute uma praacutetica que vem desde os

tempos mais antigos

Outra questatildeo eacute que estes casamentos sempre ocorreram entre pessoas do

mesmo grupo entre membros que pertencem agraves famiacutelias existentes no grupordquo

A autora desse depoimento e sua irmatilde ldquovivemrdquo com o mesmo homem que eacute

primo em terceiro grau (ASSUNCcedilAtildeO 19944041 e 42)

E Assunccedilatildeo tambeacutem cita contrariando agrave vontade da comunidade dois casos de

uniatildeo incestuosa

Os ldquonegrosrdquo mais velhos viveram na eacutepoca e se lembram de casos como o do pai

que teve filhos com sua filha todos residindo na mesma unidade Tiveram trecircs

filhos estando vivo apenas um filho que natildeo reside no grupo Esta crianccedila foi

dada para uma outra famiacutelia externa ao grupo Houve tambeacutem o caso de um

irmatildeo que teve um filho com sua irmatilde Estes estatildeo vivos e residem no proacuteprio

grupo Mas desses casos os ldquonegrosrdquo natildeo gostam de falar (ASSUNCcedilAtildeO

199443)

Mais um dado de questionaacutevel ldquoimportacircnciardquo antropoloacutegica nos eacute ofertado ainda

por Assunccedilatildeo quando em seu afatilde de ver tudo folclorizado ateacute uma simples separaccedilatildeo eacute

colocada de forma atiacutepica

Outra situaccedilatildeo que existe desde o tempo dos antigos eacute a praacutetica de separaccedilatildeo entre

os cocircnjuges quando consideram que o casamento se esgotou Nesse caso tanto o

homem como a mulher podem se casar novamente chegando ateacute a se casar por

trecircs vezes dando-se o evento seja por motivo de morte seja por separaccedilatildeo

(ASSUNCcedilAtildeO199443)

Este texto de Luiz Assunccedilatildeo eacute exemplo de um discurso tiacutepico dos ldquobrancosrdquo do

Seridoacute Discurso este que aqui se transforma em ldquoverdade cientiacuteficardquo atraveacutes da publicaccedilatildeo

e consequentemente a exposiccedilatildeo de dramas particulares de uma comunidade negra A

consequecircncia desta atitude eacute o conhecimento deste texto por pessoas da regiatildeo e atraveacutes

dele a justificativa da exclusatildeo da comunidade em poliacuteticas sociais

Para o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira que tem uma ampla experiecircncia com

populaccedilotildees tradicionais vale a observaccedilatildeo sobre a responsabilidade dos antropoacutelogos que

trabalham com estas comunidades

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Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

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ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

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colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

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oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

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Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

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Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

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conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

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coletado-a-ceu-aberto-queimado-ou-enterrado acesso em 200615

Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

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relacionados ao mito da democracia racial Nega o legado cultural do negro para a cultura

local Ignora por conseguinte a religiosidade a culinaacuteria o vocabulaacuterio e expressotildees

culturais como a danccedila do espontatildeo e as cantorias Com exemplo podemos ver o trato

preconceituoso que ele daacute agraves religiotildees afro-brasileiras no Rio Grande do Norte quando cita

Do negro escravo no Estado ficaram poucas tradiccedilotildees De crendices e

supersticcedilotildees das que viveram nos canaviais ficou o canjerecirc feiticcedilo a cousa-feita

mas desconhecem o padecirc Exu Xangocirc Aacuteguas de Iemanjaacute que surgiram apoacutes a

deacutecada de 1950 produtos de importaccedilatildeo made in Bahia Rio de Janeiro

Pernambuco O ambiente canavieiro facilitou a supersticcedilatildeo dessa natureza mais

acentuadamente que nas fazendas de gado com escravaria reduzida (Medeiros

973229)

Por outro lado seu texto eacute rico em informaccedilotildees etnograacuteficas ndash que muitas vezes

contradiz suas afirmaccedilotildees generalizadas ndash quando cita sobre a presenccedila negra no RN por

exemplo Eacute sua a citaccedilatildeo que diz

Evidentemente nesse iniacutecio do seacuteculo XVII com o portuguecircs chega no Rio

Grande do Norte o elemento negro A presenccedila entre noacutes tem que ser estudada

diretamente com o fenocircmeno da escravidatildeo e esta no momento de sua

permissibilidade ocorreu em 1600 quando os primeiros escravos chegaram agrave vila

de Natal (MEDEIROS 198847)

Os textos acadecircmicos iniciais no Rio Grande do Norte procuravam exaltar aspectos

que folclorizavam os aspectos culturais da vida das populaccedilotildees negras rurais ignorando

aspectos eacuteticos na conduccedilatildeo de pesquisas antropoloacutegicas envolvendo populaccedilotildees

vulneraacuteveis resultando muitas vezes em textos no qual se expotildee situaccedilotildees no miacutenimo

constrangedoras destas pessoas

Na deacutecada seguinte este olhar privilegiando o exoacutetico sobre populaccedilotildees

quilombolas no Estado do Rio Grande do Norte chegou agrave academia em forma de dissertaccedilatildeo

de um historiador da regiatildeo em um mestrado na Antropologia (Assunccedilatildeo 1994) sobre uma

comunidade quilombola Como exemplo ele cita de forma preconceituosa e racista sem o

menor constrangimento em seu trabalho Os negros do Riacho estrateacutegias de sobrevivecircncia

e identidade social duas situaccedilotildees de caraacuteter iacutentimo da comunidade a praacutetica da

religiosidade afro-ameriacutendia e a tipologia de ldquorelaccedilotildees matrimoniais natildeo convencionais

(bigamia e incesto)rdquo

Em relaccedilatildeo agrave religiosidade Assunccedilatildeo chama simplesmente de feiticcedilo todo um

conjunto de conhecimento e praacuteticas que evocam a memoacuteria do grupo na afirmaccedilatildeo de uma

identidade proacutepria a religiosidade afro-brasileira e ameriacutendia Seu texto eacute carregado de

preconceitos quando cita assim

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Os ldquocaboclosrdquo acreditam no feiticcedilo como se fosse ldquouma coisa que numa pessoa eacute

uma coisa botadardquo Tanto os homens quanto as mulheres acreditam no feiticcedilo mas

apenas as mulheres o praticam Essa praacutetica se daacute para o mal e para o bem

(ASSUNCcedilAtildeO 199436)

No que diz respeito agraves relaccedilotildees matrimoniais Assunccedilatildeo afirma (atraveacutes das falas

dos moradores) que era comum a de um homem com vaacuterias mulheres como nesta sua

citaccedilatildeo

A uniatildeo de um homem com mais de uma mulher eacute uma praacutetica que vem desde os

tempos mais antigos

Outra questatildeo eacute que estes casamentos sempre ocorreram entre pessoas do

mesmo grupo entre membros que pertencem agraves famiacutelias existentes no grupordquo

A autora desse depoimento e sua irmatilde ldquovivemrdquo com o mesmo homem que eacute

primo em terceiro grau (ASSUNCcedilAtildeO 19944041 e 42)

E Assunccedilatildeo tambeacutem cita contrariando agrave vontade da comunidade dois casos de

uniatildeo incestuosa

Os ldquonegrosrdquo mais velhos viveram na eacutepoca e se lembram de casos como o do pai

que teve filhos com sua filha todos residindo na mesma unidade Tiveram trecircs

filhos estando vivo apenas um filho que natildeo reside no grupo Esta crianccedila foi

dada para uma outra famiacutelia externa ao grupo Houve tambeacutem o caso de um

irmatildeo que teve um filho com sua irmatilde Estes estatildeo vivos e residem no proacuteprio

grupo Mas desses casos os ldquonegrosrdquo natildeo gostam de falar (ASSUNCcedilAtildeO

199443)

Mais um dado de questionaacutevel ldquoimportacircnciardquo antropoloacutegica nos eacute ofertado ainda

por Assunccedilatildeo quando em seu afatilde de ver tudo folclorizado ateacute uma simples separaccedilatildeo eacute

colocada de forma atiacutepica

Outra situaccedilatildeo que existe desde o tempo dos antigos eacute a praacutetica de separaccedilatildeo entre

os cocircnjuges quando consideram que o casamento se esgotou Nesse caso tanto o

homem como a mulher podem se casar novamente chegando ateacute a se casar por

trecircs vezes dando-se o evento seja por motivo de morte seja por separaccedilatildeo

(ASSUNCcedilAtildeO199443)

Este texto de Luiz Assunccedilatildeo eacute exemplo de um discurso tiacutepico dos ldquobrancosrdquo do

Seridoacute Discurso este que aqui se transforma em ldquoverdade cientiacuteficardquo atraveacutes da publicaccedilatildeo

e consequentemente a exposiccedilatildeo de dramas particulares de uma comunidade negra A

consequecircncia desta atitude eacute o conhecimento deste texto por pessoas da regiatildeo e atraveacutes

dele a justificativa da exclusatildeo da comunidade em poliacuteticas sociais

Para o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira que tem uma ampla experiecircncia com

populaccedilotildees tradicionais vale a observaccedilatildeo sobre a responsabilidade dos antropoacutelogos que

trabalham com estas comunidades

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Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

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ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

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colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

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oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

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Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

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Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

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conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARRUTI Joseacute Mauriacutecio Etnicidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves

Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

ASSUNCcedilAtildeO Luiz carvalho de Os Negros do Riaacho estrateacutegias de sobrevivecircncia e

identidade social Natal UFRN ndash CCHLA 1994 (Coleccedilatildeo Humanas LetrasCooperativa

Cultural

GODOI Emiacutelia Pietrafesa de Territorialidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio

Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

GUSMAtildeO Neusa Maria Mendes de Heranccedila quilombola negros terras e direitos In

Moura 2001

LEITE Ilka Boaventura CARDOSO Luiacutes Fernando Cardoso e MOMBELLI Raquel (Org)

Territoacuterios quilombolas reconhecimento e titulaccedilatildeo das terras Boletim informativo do

NUER Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas ndash v2 n2- Florianoacutepolis

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politicas patrimoniais e processos de negociaccedilatildeo In TAMASO Izabela Maria e LIMA

FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos

Brasiacutelia ABA 2012

MELO Josemir Camilo de Quilombos do Catucaacute uma heranccedila dos Palmares no

Pernambuco oitocentista In Moura 2001

MOURA Cloacutevis (Org) Os quilombos na dinacircmica social do Brasil Maceioacute EdUFAL

2001

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SILVA Dimas Salustiano da Constituiccedilatildeo e diferenccedila eacutetnica o problema juriacutedico das

comunidades negras remanescentes de quilombos no Brasil contemporacircneo In Moura

2001

SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos

paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador EDUFBA 2014

SUNDFELD Carlos Ari (Org) Sociedade Brasileira de Direito puacuteblico comunidades

quilombolas Direito agrave terra (art 68 de ADCT) Brasiacutelia Fundaccedilatildeo Cultural Palmares

MinCEditorial Abareacute 2002

TAMASO Izabela Maria e LIMA FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e

patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos Brasiacutelia ABA 2012

THEODORO Maacuterio (Org) As poliacuteticas puacuteblicas e a desigualdade racial no Brasil 120

anos apoacutes a aboliccedilatildeo Brasiacutelia IPEA 2008

Sites consultados

httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=240030ampsearch=rio-grande-

do-norte|afonso-bezerra|infograficos-informacoes-completas acesso em 25062015

httpwwwcprmgovbrrehiatlasrgnorterelatoriosAFBE003PDF acesso em 25062015

httpadconrngovbrACERVOidemaDOCDOC000000000016668PDF acesso em

25062015

httpwww2ufersaedubrportalviewuploadssetores232TCC20-

20Pedro20de20LC3A9lispdf acesso em 25062015

httpwwwdeepaskcomgoespage=Confira-a-coleta-de-lixo-no-seu-municipio---lixo-

coletado-a-ceu-aberto-queimado-ou-enterrado acesso em 200615

Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

Page 12: AS COMUNIDADES NEGRAS NO RIO GRANDE DO NORTE NO …

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Os ldquocaboclosrdquo acreditam no feiticcedilo como se fosse ldquouma coisa que numa pessoa eacute

uma coisa botadardquo Tanto os homens quanto as mulheres acreditam no feiticcedilo mas

apenas as mulheres o praticam Essa praacutetica se daacute para o mal e para o bem

(ASSUNCcedilAtildeO 199436)

No que diz respeito agraves relaccedilotildees matrimoniais Assunccedilatildeo afirma (atraveacutes das falas

dos moradores) que era comum a de um homem com vaacuterias mulheres como nesta sua

citaccedilatildeo

A uniatildeo de um homem com mais de uma mulher eacute uma praacutetica que vem desde os

tempos mais antigos

Outra questatildeo eacute que estes casamentos sempre ocorreram entre pessoas do

mesmo grupo entre membros que pertencem agraves famiacutelias existentes no grupordquo

A autora desse depoimento e sua irmatilde ldquovivemrdquo com o mesmo homem que eacute

primo em terceiro grau (ASSUNCcedilAtildeO 19944041 e 42)

E Assunccedilatildeo tambeacutem cita contrariando agrave vontade da comunidade dois casos de

uniatildeo incestuosa

Os ldquonegrosrdquo mais velhos viveram na eacutepoca e se lembram de casos como o do pai

que teve filhos com sua filha todos residindo na mesma unidade Tiveram trecircs

filhos estando vivo apenas um filho que natildeo reside no grupo Esta crianccedila foi

dada para uma outra famiacutelia externa ao grupo Houve tambeacutem o caso de um

irmatildeo que teve um filho com sua irmatilde Estes estatildeo vivos e residem no proacuteprio

grupo Mas desses casos os ldquonegrosrdquo natildeo gostam de falar (ASSUNCcedilAtildeO

199443)

Mais um dado de questionaacutevel ldquoimportacircnciardquo antropoloacutegica nos eacute ofertado ainda

por Assunccedilatildeo quando em seu afatilde de ver tudo folclorizado ateacute uma simples separaccedilatildeo eacute

colocada de forma atiacutepica

Outra situaccedilatildeo que existe desde o tempo dos antigos eacute a praacutetica de separaccedilatildeo entre

os cocircnjuges quando consideram que o casamento se esgotou Nesse caso tanto o

homem como a mulher podem se casar novamente chegando ateacute a se casar por

trecircs vezes dando-se o evento seja por motivo de morte seja por separaccedilatildeo

(ASSUNCcedilAtildeO199443)

Este texto de Luiz Assunccedilatildeo eacute exemplo de um discurso tiacutepico dos ldquobrancosrdquo do

Seridoacute Discurso este que aqui se transforma em ldquoverdade cientiacuteficardquo atraveacutes da publicaccedilatildeo

e consequentemente a exposiccedilatildeo de dramas particulares de uma comunidade negra A

consequecircncia desta atitude eacute o conhecimento deste texto por pessoas da regiatildeo e atraveacutes

dele a justificativa da exclusatildeo da comunidade em poliacuteticas sociais

Para o antropoacutelogo Joatildeo Pacheco de Oliveira que tem uma ampla experiecircncia com

populaccedilotildees tradicionais vale a observaccedilatildeo sobre a responsabilidade dos antropoacutelogos que

trabalham com estas comunidades

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Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

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ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

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colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

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oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 81

ISSN 2595-1033

Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 82

ISSN 2595-1033

Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 83

ISSN 2595-1033

conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARRUTI Joseacute Mauriacutecio Etnicidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves

Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

ASSUNCcedilAtildeO Luiz carvalho de Os Negros do Riaacho estrateacutegias de sobrevivecircncia e

identidade social Natal UFRN ndash CCHLA 1994 (Coleccedilatildeo Humanas LetrasCooperativa

Cultural

GODOI Emiacutelia Pietrafesa de Territorialidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio

Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

GUSMAtildeO Neusa Maria Mendes de Heranccedila quilombola negros terras e direitos In

Moura 2001

LEITE Ilka Boaventura CARDOSO Luiacutes Fernando Cardoso e MOMBELLI Raquel (Org)

Territoacuterios quilombolas reconhecimento e titulaccedilatildeo das terras Boletim informativo do

NUER Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas ndash v2 n2- Florianoacutepolis

NUERUSFC 2005

MEDEIROS Bartolomeu Tito Figuerocirca de Quando o campo eacute o quilombo etnicidade

politicas patrimoniais e processos de negociaccedilatildeo In TAMASO Izabela Maria e LIMA

FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos

Brasiacutelia ABA 2012

MELO Josemir Camilo de Quilombos do Catucaacute uma heranccedila dos Palmares no

Pernambuco oitocentista In Moura 2001

MOURA Cloacutevis (Org) Os quilombos na dinacircmica social do Brasil Maceioacute EdUFAL

2001

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 84

ISSN 2595-1033

SILVA Dimas Salustiano da Constituiccedilatildeo e diferenccedila eacutetnica o problema juriacutedico das

comunidades negras remanescentes de quilombos no Brasil contemporacircneo In Moura

2001

SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos

paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador EDUFBA 2014

SUNDFELD Carlos Ari (Org) Sociedade Brasileira de Direito puacuteblico comunidades

quilombolas Direito agrave terra (art 68 de ADCT) Brasiacutelia Fundaccedilatildeo Cultural Palmares

MinCEditorial Abareacute 2002

TAMASO Izabela Maria e LIMA FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e

patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos Brasiacutelia ABA 2012

THEODORO Maacuterio (Org) As poliacuteticas puacuteblicas e a desigualdade racial no Brasil 120

anos apoacutes a aboliccedilatildeo Brasiacutelia IPEA 2008

Sites consultados

httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=240030ampsearch=rio-grande-

do-norte|afonso-bezerra|infograficos-informacoes-completas acesso em 25062015

httpwwwcprmgovbrrehiatlasrgnorterelatoriosAFBE003PDF acesso em 25062015

httpadconrngovbrACERVOidemaDOCDOC000000000016668PDF acesso em

25062015

httpwww2ufersaedubrportalviewuploadssetores232TCC20-

20Pedro20de20LC3A9lispdf acesso em 25062015

httpwwwdeepaskcomgoespage=Confira-a-coleta-de-lixo-no-seu-municipio---lixo-

coletado-a-ceu-aberto-queimado-ou-enterrado acesso em 200615

Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

Page 13: AS COMUNIDADES NEGRAS NO RIO GRANDE DO NORTE NO …

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 77

ISSN 2595-1033

Devassar a intimidade dos grupos e famiacutelias revelar foacutermulas secretas ou privativas

de certos segmentos coletar indiscriminadamente peccedilas ou espeacutecies naturais satildeo

praacuteticas daninhas que natildeo podem nem devem ser atualizadas Fazer quaisquer

formas de registros natildeo estritamente individuais reproduziacuteveis mecanicamente e

passiacuteveis de apropriaccedilatildeo uso e comercializaccedilatildeo teraacute que ser objeto de uma

negociaccedilatildeo direta com os indiacutegenas precedida de lima ldquoconsulta esclarecidardquo que

rigorosamente os informes das implicaccedilotildees e dos direitos que estatildeo em jogo

(OLIVEIRA 201361)

Textos mais recentes os do Seacuteculo XXI tem uma outra versatildeo sobre a histoacuteria e a

vida dessa comunidade Como exemplo temos o texto de Joelma Tito da Silva (2009) que

dentre as inuacutemeras citaccedilotildees escolhemos algumas que revelam um olhar sobre a comunidade

isento de preconceitos e muito longe do discurso coloquial dos ldquobrancosrdquo do Seridoacute Ela nos

incita a ver a populaccedilatildeo dos Negros do Riacho sob uma perspectiva humana sem colocar

em relevo aspectos de foacuterum iacutentimo Um texto eacutetico enfim que assim cita

Em meados de 2006 os moradores do Riacho dos Angicos (pequena comunidade

rural localizada no municiacutepio de Currais NovosRN e formada por uma

populaccedilatildeo de maioria negra) passam a lidar com uma nova questatildeo o

reconhecimento do grupo como remanescente de quilombos A certificaccedilatildeo pela

Fundaccedilatildeo Cultural Palmares ocorreu em um contexto de intensificaccedilatildeo das accedilotildees

do Estado em funccedilatildeo das demandas geradas a partir das poliacuteticas puacuteblicas

afirmativas que objetivam reparar as perdas sociais sofridas por comunidades

afro-brasileiras e revalorizar a cultura negra cuja populaccedilatildeo eacute identificada como

historicamente privada de direito agrave cidadania agrave terra enfim agraves condiccedilotildees baacutesicas

de sobrevivecircncia (SILVA 2009 35)

Outro aspecto particularmente importante para esse estudo eacute a introduccedilatildeo do

conceito ldquoremanescente de quilombordquo que entra na comunidade com as poliacuteticas

assistencialistas do governo do Estado No plano nacional a questatildeo quilombola aparece em

um contexto de lutas dos movimentos sociais organizados como o Movimento Negro e as

associaccedilotildees camponesas (Arruti 2006)

No caso particular do Riacho os poderes puacuteblicos foram idealizadores e gestores de

uma poliacutetica ldquoquilombolardquo Ali a praacutexis poliacutetica esteve associada ao assistencialismo puacuteblico

Ainda assim eacute interessante analisar as novas possibilidades de reafirmaccedilatildeo da identidade

eacutetnica abertas pela utilizaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo do termo ldquoremanescente de quilombosrdquo pelos

membros da comunidade Negros do Riacho enquanto discurso de afirmaccedilatildeo de uma

identidade poliacutetica

A produccedilatildeo de uma memoacuteria acerca do passado e a legitimaccedilatildeo histoacuterica do

sentimento de pertenccedila vinculado a terra com base em laccedilos de parentesco garante

agrave comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos criteacuterios

de auto atribuiccedilatildeo presentes no Decreto nordm 4887 Na tessitura histoacuterica de

identidades entre os habitantes do Riacho a palavra ldquoquilombolardquo constitui uma

terminologia recente que nos dizeres da liacuteder Tereza Filha aparece como

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 78

ISSN 2595-1033

ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 79

ISSN 2595-1033

colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 80

ISSN 2595-1033

oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 81

ISSN 2595-1033

Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

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ISSN 2595-1033

Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 83

ISSN 2595-1033

conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARRUTI Joseacute Mauriacutecio Etnicidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves

Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

ASSUNCcedilAtildeO Luiz carvalho de Os Negros do Riaacho estrateacutegias de sobrevivecircncia e

identidade social Natal UFRN ndash CCHLA 1994 (Coleccedilatildeo Humanas LetrasCooperativa

Cultural

GODOI Emiacutelia Pietrafesa de Territorialidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio

Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

GUSMAtildeO Neusa Maria Mendes de Heranccedila quilombola negros terras e direitos In

Moura 2001

LEITE Ilka Boaventura CARDOSO Luiacutes Fernando Cardoso e MOMBELLI Raquel (Org)

Territoacuterios quilombolas reconhecimento e titulaccedilatildeo das terras Boletim informativo do

NUER Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas ndash v2 n2- Florianoacutepolis

NUERUSFC 2005

MEDEIROS Bartolomeu Tito Figuerocirca de Quando o campo eacute o quilombo etnicidade

politicas patrimoniais e processos de negociaccedilatildeo In TAMASO Izabela Maria e LIMA

FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos

Brasiacutelia ABA 2012

MELO Josemir Camilo de Quilombos do Catucaacute uma heranccedila dos Palmares no

Pernambuco oitocentista In Moura 2001

MOURA Cloacutevis (Org) Os quilombos na dinacircmica social do Brasil Maceioacute EdUFAL

2001

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 84

ISSN 2595-1033

SILVA Dimas Salustiano da Constituiccedilatildeo e diferenccedila eacutetnica o problema juriacutedico das

comunidades negras remanescentes de quilombos no Brasil contemporacircneo In Moura

2001

SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos

paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador EDUFBA 2014

SUNDFELD Carlos Ari (Org) Sociedade Brasileira de Direito puacuteblico comunidades

quilombolas Direito agrave terra (art 68 de ADCT) Brasiacutelia Fundaccedilatildeo Cultural Palmares

MinCEditorial Abareacute 2002

TAMASO Izabela Maria e LIMA FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e

patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos Brasiacutelia ABA 2012

THEODORO Maacuterio (Org) As poliacuteticas puacuteblicas e a desigualdade racial no Brasil 120

anos apoacutes a aboliccedilatildeo Brasiacutelia IPEA 2008

Sites consultados

httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=240030ampsearch=rio-grande-

do-norte|afonso-bezerra|infograficos-informacoes-completas acesso em 25062015

httpwwwcprmgovbrrehiatlasrgnorterelatoriosAFBE003PDF acesso em 25062015

httpadconrngovbrACERVOidemaDOCDOC000000000016668PDF acesso em

25062015

httpwww2ufersaedubrportalviewuploadssetores232TCC20-

20Pedro20de20LC3A9lispdf acesso em 25062015

httpwwwdeepaskcomgoespage=Confira-a-coleta-de-lixo-no-seu-municipio---lixo-

coletado-a-ceu-aberto-queimado-ou-enterrado acesso em 200615

Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

Page 14: AS COMUNIDADES NEGRAS NO RIO GRANDE DO NORTE NO …

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 78

ISSN 2595-1033

ldquoPirambolardquo quando ao seu lado algueacutem citou o termo Essa alteraccedilatildeo da palavra

presente na fala de Tereza acena para a emergecircncia de uma nova identificaccedilatildeo ainda

precaacuteria entre os moradores do Riacho (SILVA 200943)

Sobre o termo ldquoQuilombordquo

Em outras palavras o termo ldquoquilombordquo recente na comunidade legitima a partir

de uma nova categoria o sentimento de pertenccedila a um territoacuterio no qual vivem haacute

mais de um seacuteculo No entanto haacute resistecircncias entre os moradores do Riacho em

aderir agrave identificaccedilatildeo ldquoquilombolardquo (SILVA 200945)

Sobre ancestralidade negra como requisito de autoafirmaccedilatildeo

A ideia de quilombo pressupotildee uma ancestralidade negra que natildeo estaacute marcada

apenas na cor da pele mas estaacute entranhada na histoacuteria dos grupos Reconhecer-se

dentro dessa categoria significa ressaltar laccedilos com a escravidatildeo sempre negados

por tais comunidades como forma de defesa Isto eacute considerar-se quilombola

implica em ressignificar as maneiras de conceber o ldquoserrdquo negro e repensar a proacutepria

identidade sempre construiacuteda como o oposto do ldquoserrdquo branco Assim os grupos

precisam refazer-se a partir de uma identificaccedilatildeo continuamente estigmatizada

(SILVA 200950)

Sem pretender estender a discussatildeo que ora se apresenta entendemos este uacuteltimo

texto como uma referecircncia positiva em relaccedilatildeo ao deacutebito histoacuterico e acadecircmico para com a

populaccedilatildeo dos Negros do Riacho

De forma geral os textos que seguem apresentam este novo olhar Um olhar que vecirc o

outro apenas diferente em aspectos que lhe conferem particularidades socioculturais Uma

maneira de ver as populaccedilotildees negras rurais das comunidades quilombolas como grupos que

detecircm um saber tradicional sobre o territoacuterio (meio ambiente) que ocupam com praacuteticas de

manejo tradicional Ou seja as particularidades satildeo exemplos acumulados por experiecircncia

testados e repassados agraves geraccedilotildees que se seguem

Em relaccedilatildeo agraves questotildees quilombolas aqui discutidas o Relatoacuterio Antropoloacutegico da

Comunidade Negra Rural de Macambira realizado pelo Antropoacutelogo Edmundo Pereira no

ano de 2011 manteacutem este olhar mais socioambiental e poliacutetico e menos exoacutetico sobre a

comunidade estudada

Neste texto Pereira (2011) demonstra a rede de inter-relaccedilotildees que ligam as

comunidades negras rurais em um processo de construccedilatildeo de uma identidade proacutepria na

regiatildeo do Seridoacute Chama a atenccedilatildeo para a escolha de estabelecimento destas comunidades

geralmente em serras (dificultando o acesso de estranhos) e com uma preocupaccedilatildeo tambeacutem

em relaccedilatildeo agrave aacutegua e agrave qualidade da terra Existe uma histoacuteria seacuteria e grandiosa que deve ser

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 79

ISSN 2595-1033

colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 80

ISSN 2595-1033

oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 81

ISSN 2595-1033

Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 82

ISSN 2595-1033

Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 83

ISSN 2595-1033

conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARRUTI Joseacute Mauriacutecio Etnicidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves

Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

ASSUNCcedilAtildeO Luiz carvalho de Os Negros do Riaacho estrateacutegias de sobrevivecircncia e

identidade social Natal UFRN ndash CCHLA 1994 (Coleccedilatildeo Humanas LetrasCooperativa

Cultural

GODOI Emiacutelia Pietrafesa de Territorialidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio

Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

GUSMAtildeO Neusa Maria Mendes de Heranccedila quilombola negros terras e direitos In

Moura 2001

LEITE Ilka Boaventura CARDOSO Luiacutes Fernando Cardoso e MOMBELLI Raquel (Org)

Territoacuterios quilombolas reconhecimento e titulaccedilatildeo das terras Boletim informativo do

NUER Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas ndash v2 n2- Florianoacutepolis

NUERUSFC 2005

MEDEIROS Bartolomeu Tito Figuerocirca de Quando o campo eacute o quilombo etnicidade

politicas patrimoniais e processos de negociaccedilatildeo In TAMASO Izabela Maria e LIMA

FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos

Brasiacutelia ABA 2012

MELO Josemir Camilo de Quilombos do Catucaacute uma heranccedila dos Palmares no

Pernambuco oitocentista In Moura 2001

MOURA Cloacutevis (Org) Os quilombos na dinacircmica social do Brasil Maceioacute EdUFAL

2001

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 84

ISSN 2595-1033

SILVA Dimas Salustiano da Constituiccedilatildeo e diferenccedila eacutetnica o problema juriacutedico das

comunidades negras remanescentes de quilombos no Brasil contemporacircneo In Moura

2001

SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos

paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador EDUFBA 2014

SUNDFELD Carlos Ari (Org) Sociedade Brasileira de Direito puacuteblico comunidades

quilombolas Direito agrave terra (art 68 de ADCT) Brasiacutelia Fundaccedilatildeo Cultural Palmares

MinCEditorial Abareacute 2002

TAMASO Izabela Maria e LIMA FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e

patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos Brasiacutelia ABA 2012

THEODORO Maacuterio (Org) As poliacuteticas puacuteblicas e a desigualdade racial no Brasil 120

anos apoacutes a aboliccedilatildeo Brasiacutelia IPEA 2008

Sites consultados

httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=240030ampsearch=rio-grande-

do-norte|afonso-bezerra|infograficos-informacoes-completas acesso em 25062015

httpwwwcprmgovbrrehiatlasrgnorterelatoriosAFBE003PDF acesso em 25062015

httpadconrngovbrACERVOidemaDOCDOC000000000016668PDF acesso em

25062015

httpwww2ufersaedubrportalviewuploadssetores232TCC20-

20Pedro20de20LC3A9lispdf acesso em 25062015

httpwwwdeepaskcomgoespage=Confira-a-coleta-de-lixo-no-seu-municipio---lixo-

coletado-a-ceu-aberto-queimado-ou-enterrado acesso em 200615

Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

Page 15: AS COMUNIDADES NEGRAS NO RIO GRANDE DO NORTE NO …

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 79

ISSN 2595-1033

colocada agrave mostra A participaccedilatildeo das comunidades negras rurais na dinacircmica de ocupaccedilatildeo

das terras e na demografia da regiatildeo do Seridoacute deve ser incluiacuteda na histoacuteria regional

Esta primeira versatildeo ponto inicial deste trabalho abarca o periacuteodo que vai de sua

fundaccedilatildeo em meados do seacuteculo XIX atraveacutes da compra de algumas datas de terra

por um mulato alforriado (homem livre que na chatilde da Serra de Santana constituiria

numerosa famiacutelia) passando por sua descendecircncia de cujos intra e extracasamentos

se formariam os troncos velhos (as famiacutelias mais antigas tradicionais) de que os

membros atuais descendem e a partir dos quais ateacute a atualidade estes se organizam

e se pensam como um grupo eacutetnico (Weber 1999275 Barth 200027-28)

Conforme apontou o processo de pesquisa para elaboraccedilatildeo deste documento para

entender a formaccedilatildeo soacutecio histoacuterica da Comunidade e em especial as caracteriacutesticas

da negritude nela encontrada eacute mister refazer tambeacutem a formaccedilatildeo do campo

intersocietaacuterio mais amplo dentro no qual esta se desenvolveu a saber a ocupaccedilatildeo

dos sertotildees setentrionais do Seridoacute pela produccedilatildeo pastoril no caso em particular no

entorno do accedilude do Totoroacute local de fundaccedilatildeo das primeiras fazendas que levariam

a formaccedilatildeo da cidade de Currais Novos (Lima 1990) Isto natildeo soacute por conta dos

recursos teoacuterico-metodoloacutegicos utilizados para pensar algumas das situaccedilotildees sociais

(Gluckman 1987 Oliveira 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na

Serra de Santana mas tambeacutem pela proacutepria natureza do processo de formaccedilatildeo

soacuteciohistoacuterico da Comunidade no que pesam as relaccedilotildees que esta estabeleceu e

estabelece com as demais comunidades da Serra e a populaccedilatildeo de cidades como

Currais Novos Lagoa Nova Bodoacute e Santana dos Matos (PEREIRA 2011)

Podemos entender que a histoacuteria destas comunidades comeccedila a ser contada em um

contexto diferente do que foi anteriormente Uma histoacuteria agora contada a partir do discurso

dos moradores destas comunidades Uma nova histoacuteria para o Rio Grande do Norte

contemplando de forma honesta e eacutetica a vida e a contribuiccedilatildeo destas populaccedilotildees para o

entendimento de suas condiccedilotildees atuais

Um outro fator que merece destaque na atualidade eacute a crescente produccedilatildeo acadecircmica

sobre estas comunidades feitas pelos proacuteprios quilombolas Se antes eram comunidades

pesquisadas hoje se situam como donos e divulgadores de sua proacutepria histoacuteria (Cruz 2005

Andreia 2014 Cacircndido 2012)

As comunidades negras no Rio Grande do Norte

O Rio Grande do Norte eacute um Estado que mostra formas de apropriaccedilotildees territoriais

bastantes complexas e distintas pelos diversos grupos de negros habitantes em todo o Rio

Grande do Norte A escravidatildeo no Rio Grande do Norte foi basicamente em funccedilatildeo dos

engenhos de cana-de-accediluacutecar (proacuteximo do litoral) e da pecuaacuteria nas fazendas do sertatildeo As

comunidades negras encontradas no Rio Grande do Norte satildeo em sua grande maioria

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 80

ISSN 2595-1033

oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 81

ISSN 2595-1033

Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 82

ISSN 2595-1033

Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 83

ISSN 2595-1033

conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARRUTI Joseacute Mauriacutecio Etnicidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves

Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

ASSUNCcedilAtildeO Luiz carvalho de Os Negros do Riaacho estrateacutegias de sobrevivecircncia e

identidade social Natal UFRN ndash CCHLA 1994 (Coleccedilatildeo Humanas LetrasCooperativa

Cultural

GODOI Emiacutelia Pietrafesa de Territorialidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio

Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

GUSMAtildeO Neusa Maria Mendes de Heranccedila quilombola negros terras e direitos In

Moura 2001

LEITE Ilka Boaventura CARDOSO Luiacutes Fernando Cardoso e MOMBELLI Raquel (Org)

Territoacuterios quilombolas reconhecimento e titulaccedilatildeo das terras Boletim informativo do

NUER Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas ndash v2 n2- Florianoacutepolis

NUERUSFC 2005

MEDEIROS Bartolomeu Tito Figuerocirca de Quando o campo eacute o quilombo etnicidade

politicas patrimoniais e processos de negociaccedilatildeo In TAMASO Izabela Maria e LIMA

FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos

Brasiacutelia ABA 2012

MELO Josemir Camilo de Quilombos do Catucaacute uma heranccedila dos Palmares no

Pernambuco oitocentista In Moura 2001

MOURA Cloacutevis (Org) Os quilombos na dinacircmica social do Brasil Maceioacute EdUFAL

2001

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 84

ISSN 2595-1033

SILVA Dimas Salustiano da Constituiccedilatildeo e diferenccedila eacutetnica o problema juriacutedico das

comunidades negras remanescentes de quilombos no Brasil contemporacircneo In Moura

2001

SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos

paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador EDUFBA 2014

SUNDFELD Carlos Ari (Org) Sociedade Brasileira de Direito puacuteblico comunidades

quilombolas Direito agrave terra (art 68 de ADCT) Brasiacutelia Fundaccedilatildeo Cultural Palmares

MinCEditorial Abareacute 2002

TAMASO Izabela Maria e LIMA FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e

patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos Brasiacutelia ABA 2012

THEODORO Maacuterio (Org) As poliacuteticas puacuteblicas e a desigualdade racial no Brasil 120

anos apoacutes a aboliccedilatildeo Brasiacutelia IPEA 2008

Sites consultados

httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=240030ampsearch=rio-grande-

do-norte|afonso-bezerra|infograficos-informacoes-completas acesso em 25062015

httpwwwcprmgovbrrehiatlasrgnorterelatoriosAFBE003PDF acesso em 25062015

httpadconrngovbrACERVOidemaDOCDOC000000000016668PDF acesso em

25062015

httpwww2ufersaedubrportalviewuploadssetores232TCC20-

20Pedro20de20LC3A9lispdf acesso em 25062015

httpwwwdeepaskcomgoespage=Confira-a-coleta-de-lixo-no-seu-municipio---lixo-

coletado-a-ceu-aberto-queimado-ou-enterrado acesso em 200615

Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

Page 16: AS COMUNIDADES NEGRAS NO RIO GRANDE DO NORTE NO …

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 80

ISSN 2595-1033

oriundas desses dois processos de organizaccedilatildeo econocircmica a pecuaacuteria no Seridoacute e a cana-de-

accediluacutecar

Na regiatildeo do Semiaacuterido ou Seridoacute (ou ainda zona da caatinga) os fazendeiros natildeo

podiam sustentar muitos escravos devido aos longos periacuteodos de estiagem Os poucos que

existiam viviam como vaqueiros ou em funccedilatildeo de suas habilidades barbeiros ferreiros

muacutesicos seleiros amansadores de cavalos e burros Era comum a fuga de escravos da

regiatildeo do Brejo na Paraiacuteba para a regiatildeo do Seridoacute no Rio Grande do Norte Aqui

conseguiam facilmente trabalho nestas ocupaccedilotildees Natildeo foram poucos os casos de escravos

que ganharam glebas de terra gado e ateacute dinheiro como alforria Explica-se nas secas os

patrotildees ficavam numa situaccedilatildeo muito difiacutecil E assim muitos faliam Os escravos por sua

vez sempre tinham algum dinheiro em funccedilatildeo de seus ofiacutecios Em algumas situaccedilotildees

tinham o suficiente para emprestar Estas negociaccedilotildees (que envolviam juros) eram

organizadas sob a tutela de sua ordem religiosa Catoacutelica a Irmandade de Nossa Senhora do

Rosaacuterio dos Pretos

Na regiatildeo proacutexima agrave Capital se situavam diversos engenhos em cidades vizinhas

como Macaiacuteba Satildeo Joseacute de Mipibu Cearaacute-Mirim que demandavam uma quantidade

expressiva de matildeo-de-obra escrava Estes engenhos proporcionaram vaacuterias fugas que por

sua vez originaram diversas comunidades quilombolas como Sibauacutema em Tibau do Sul

Capoeiras em MacaiacutebaBom Jesus e Coqueiros em Cearaacute-Mirim

Hoje o Estado do Rio Grande do Norte tem mais de 70 comunidades negras

identificadas Destas 28 (comunidades negras rurais) estatildeo certificadas como

remanescentes de quilombos A seguir satildeo mostrados dois mapas o primeiro com a

localizaccedilatildeo das 28 comunidades certificadas

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 81

ISSN 2595-1033

Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 82

ISSN 2595-1033

Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 83

ISSN 2595-1033

conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARRUTI Joseacute Mauriacutecio Etnicidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves

Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

ASSUNCcedilAtildeO Luiz carvalho de Os Negros do Riaacho estrateacutegias de sobrevivecircncia e

identidade social Natal UFRN ndash CCHLA 1994 (Coleccedilatildeo Humanas LetrasCooperativa

Cultural

GODOI Emiacutelia Pietrafesa de Territorialidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio

Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

GUSMAtildeO Neusa Maria Mendes de Heranccedila quilombola negros terras e direitos In

Moura 2001

LEITE Ilka Boaventura CARDOSO Luiacutes Fernando Cardoso e MOMBELLI Raquel (Org)

Territoacuterios quilombolas reconhecimento e titulaccedilatildeo das terras Boletim informativo do

NUER Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas ndash v2 n2- Florianoacutepolis

NUERUSFC 2005

MEDEIROS Bartolomeu Tito Figuerocirca de Quando o campo eacute o quilombo etnicidade

politicas patrimoniais e processos de negociaccedilatildeo In TAMASO Izabela Maria e LIMA

FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos

Brasiacutelia ABA 2012

MELO Josemir Camilo de Quilombos do Catucaacute uma heranccedila dos Palmares no

Pernambuco oitocentista In Moura 2001

MOURA Cloacutevis (Org) Os quilombos na dinacircmica social do Brasil Maceioacute EdUFAL

2001

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 84

ISSN 2595-1033

SILVA Dimas Salustiano da Constituiccedilatildeo e diferenccedila eacutetnica o problema juriacutedico das

comunidades negras remanescentes de quilombos no Brasil contemporacircneo In Moura

2001

SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos

paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador EDUFBA 2014

SUNDFELD Carlos Ari (Org) Sociedade Brasileira de Direito puacuteblico comunidades

quilombolas Direito agrave terra (art 68 de ADCT) Brasiacutelia Fundaccedilatildeo Cultural Palmares

MinCEditorial Abareacute 2002

TAMASO Izabela Maria e LIMA FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e

patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos Brasiacutelia ABA 2012

THEODORO Maacuterio (Org) As poliacuteticas puacuteblicas e a desigualdade racial no Brasil 120

anos apoacutes a aboliccedilatildeo Brasiacutelia IPEA 2008

Sites consultados

httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=240030ampsearch=rio-grande-

do-norte|afonso-bezerra|infograficos-informacoes-completas acesso em 25062015

httpwwwcprmgovbrrehiatlasrgnorterelatoriosAFBE003PDF acesso em 25062015

httpadconrngovbrACERVOidemaDOCDOC000000000016668PDF acesso em

25062015

httpwww2ufersaedubrportalviewuploadssetores232TCC20-

20Pedro20de20LC3A9lispdf acesso em 25062015

httpwwwdeepaskcomgoespage=Confira-a-coleta-de-lixo-no-seu-municipio---lixo-

coletado-a-ceu-aberto-queimado-ou-enterrado acesso em 200615

Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

Page 17: AS COMUNIDADES NEGRAS NO RIO GRANDE DO NORTE NO …

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 81

ISSN 2595-1033

Figura 1 Mapa do RN com as comunidades quilombolas certificadas

Vale ressaltar que entre as mais de 70 comunidades negras com maioria estabelecida

na zona rural algumas estatildeo situadas em aacutereas urbanas Assim chegamos ao conceito de

territoacuterios negros como locais de referecircncia negra (aspectos culturais e sociais como o

nuacutemero expressivo de casas de religiatildeo de matriz africana e ameriacutendia grupos de escolas de

samba e capoeira enfim dados que revelam uma raiacutez proacutepria da cultura negra) Ou seja

A territorialidade como processo de construccedilatildeo de um territoacuterio recobre assim ao

menos dois conteuacutedos diferentes a ligaccedilatildeo a lugares precisos resultado de um longo

investimento material e simboacutelico e que se exprime por um sistema de

representaccedilotildees de um lado e de outro lado os princiacutepios de organizaccedilatildeo ndash a

distribuiccedilatildeo e os arranjos dos lugares de morada de trabalho de celebraccedilotildees as

hierarquias sociais as relaccedilotildees com os grupos vizinhos Quando falamos na

territorialidade enquanto processo de construccedilatildeo de um territoacuterio o aspecto

processual merece destaque pois confere ao territoacuterio um caraacuteter plaacutestico isto eacute em

permanente conformaccedilatildeo natildeo se refere pois a uma construccedilatildeo definitivamente

acabada (GODOI In SANSONE e FURTADO 2014 443)

O territoacuterio eacute assim concebido como um espaccedilo dinacircmico e constantemente sendo

avaliado e manejado de acordo com as demandas que surgem para as populaccedilotildees

quilombolas

O mapa a seguir mostra os municiacutepios que tem comunidades quilombolas

identificadas (incluindo as que ainda natildeo estatildeo certificadas) E os outros territoacuterios de

referecircncia de ocupaccedilatildeo para as populaccedilotildees afro-brasileiras no Estado do Rio Grande do Norte

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 82

ISSN 2595-1033

Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 83

ISSN 2595-1033

conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARRUTI Joseacute Mauriacutecio Etnicidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves

Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

ASSUNCcedilAtildeO Luiz carvalho de Os Negros do Riaacho estrateacutegias de sobrevivecircncia e

identidade social Natal UFRN ndash CCHLA 1994 (Coleccedilatildeo Humanas LetrasCooperativa

Cultural

GODOI Emiacutelia Pietrafesa de Territorialidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio

Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

GUSMAtildeO Neusa Maria Mendes de Heranccedila quilombola negros terras e direitos In

Moura 2001

LEITE Ilka Boaventura CARDOSO Luiacutes Fernando Cardoso e MOMBELLI Raquel (Org)

Territoacuterios quilombolas reconhecimento e titulaccedilatildeo das terras Boletim informativo do

NUER Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas ndash v2 n2- Florianoacutepolis

NUERUSFC 2005

MEDEIROS Bartolomeu Tito Figuerocirca de Quando o campo eacute o quilombo etnicidade

politicas patrimoniais e processos de negociaccedilatildeo In TAMASO Izabela Maria e LIMA

FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos

Brasiacutelia ABA 2012

MELO Josemir Camilo de Quilombos do Catucaacute uma heranccedila dos Palmares no

Pernambuco oitocentista In Moura 2001

MOURA Cloacutevis (Org) Os quilombos na dinacircmica social do Brasil Maceioacute EdUFAL

2001

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 84

ISSN 2595-1033

SILVA Dimas Salustiano da Constituiccedilatildeo e diferenccedila eacutetnica o problema juriacutedico das

comunidades negras remanescentes de quilombos no Brasil contemporacircneo In Moura

2001

SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos

paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador EDUFBA 2014

SUNDFELD Carlos Ari (Org) Sociedade Brasileira de Direito puacuteblico comunidades

quilombolas Direito agrave terra (art 68 de ADCT) Brasiacutelia Fundaccedilatildeo Cultural Palmares

MinCEditorial Abareacute 2002

TAMASO Izabela Maria e LIMA FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e

patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos Brasiacutelia ABA 2012

THEODORO Maacuterio (Org) As poliacuteticas puacuteblicas e a desigualdade racial no Brasil 120

anos apoacutes a aboliccedilatildeo Brasiacutelia IPEA 2008

Sites consultados

httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=240030ampsearch=rio-grande-

do-norte|afonso-bezerra|infograficos-informacoes-completas acesso em 25062015

httpwwwcprmgovbrrehiatlasrgnorterelatoriosAFBE003PDF acesso em 25062015

httpadconrngovbrACERVOidemaDOCDOC000000000016668PDF acesso em

25062015

httpwww2ufersaedubrportalviewuploadssetores232TCC20-

20Pedro20de20LC3A9lispdf acesso em 25062015

httpwwwdeepaskcomgoespage=Confira-a-coleta-de-lixo-no-seu-municipio---lixo-

coletado-a-ceu-aberto-queimado-ou-enterrado acesso em 200615

Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

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ISSN 2595-1033

Figura 2 Comunidades e territoacuterios negros no Rio Grande do Norte

Consideraccedilotildees finais

Pensar a questatildeo das comunidades negras rurais (quilombolas) e tambeacutem dos

territoacuterios urbanos no seacuteculo XXI remete a pensamos duas categorias presentes neste

contexto a invisibilidade social destas populaccedilotildees e a sua pouca acessibilidade agraves poliacuteticas

puacuteblicas que lhes satildeo destinadas

Por outro lado novos atores sociais surgem ampliando assim o olhar sobre este

universo A maior novidade eacute o ldquopuacuteblico-alvordquo (os quilombolas) sendo autores de sua proacutepria

histoacuteria Estes novos trabalhos revelam o olhar interno destas comunidades A vontade maior

eacute mostrar o racismo e ao mesmo tempo a capacidade de lutar e resistir destas comunidades

O momento atual exige um maior comprometimento da academia com este novo

paradigma Eacute necessaacuterio que exista um diaacutelogo permanente entre pesquisadores (externos agraves

comunidades) e as comunidades que satildeo objeto de pesquisa Um novo tempo com novos

atores e um novo olhar que seja o mais fiel possiacutevel agraves demandas destas populaccedilotildees Menos

exotismo e mais objetividade nestes textos novos

O reconhecimento das praacuteticas de manejo dos territoacuterios ocupados por populaccedilotildees

tradicionais como uma forma sistematizada de conhecimento torna este tatildeo vaacutelido quanto o

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 83

ISSN 2595-1033

conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARRUTI Joseacute Mauriacutecio Etnicidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves

Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

ASSUNCcedilAtildeO Luiz carvalho de Os Negros do Riaacho estrateacutegias de sobrevivecircncia e

identidade social Natal UFRN ndash CCHLA 1994 (Coleccedilatildeo Humanas LetrasCooperativa

Cultural

GODOI Emiacutelia Pietrafesa de Territorialidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio

Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

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GUSMAtildeO Neusa Maria Mendes de Heranccedila quilombola negros terras e direitos In

Moura 2001

LEITE Ilka Boaventura CARDOSO Luiacutes Fernando Cardoso e MOMBELLI Raquel (Org)

Territoacuterios quilombolas reconhecimento e titulaccedilatildeo das terras Boletim informativo do

NUER Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas ndash v2 n2- Florianoacutepolis

NUERUSFC 2005

MEDEIROS Bartolomeu Tito Figuerocirca de Quando o campo eacute o quilombo etnicidade

politicas patrimoniais e processos de negociaccedilatildeo In TAMASO Izabela Maria e LIMA

FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos

Brasiacutelia ABA 2012

MELO Josemir Camilo de Quilombos do Catucaacute uma heranccedila dos Palmares no

Pernambuco oitocentista In Moura 2001

MOURA Cloacutevis (Org) Os quilombos na dinacircmica social do Brasil Maceioacute EdUFAL

2001

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 84

ISSN 2595-1033

SILVA Dimas Salustiano da Constituiccedilatildeo e diferenccedila eacutetnica o problema juriacutedico das

comunidades negras remanescentes de quilombos no Brasil contemporacircneo In Moura

2001

SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos

paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador EDUFBA 2014

SUNDFELD Carlos Ari (Org) Sociedade Brasileira de Direito puacuteblico comunidades

quilombolas Direito agrave terra (art 68 de ADCT) Brasiacutelia Fundaccedilatildeo Cultural Palmares

MinCEditorial Abareacute 2002

TAMASO Izabela Maria e LIMA FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e

patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos Brasiacutelia ABA 2012

THEODORO Maacuterio (Org) As poliacuteticas puacuteblicas e a desigualdade racial no Brasil 120

anos apoacutes a aboliccedilatildeo Brasiacutelia IPEA 2008

Sites consultados

httpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=240030ampsearch=rio-grande-

do-norte|afonso-bezerra|infograficos-informacoes-completas acesso em 25062015

httpwwwcprmgovbrrehiatlasrgnorterelatoriosAFBE003PDF acesso em 25062015

httpadconrngovbrACERVOidemaDOCDOC000000000016668PDF acesso em

25062015

httpwww2ufersaedubrportalviewuploadssetores232TCC20-

20Pedro20de20LC3A9lispdf acesso em 25062015

httpwwwdeepaskcomgoespage=Confira-a-coleta-de-lixo-no-seu-municipio---lixo-

coletado-a-ceu-aberto-queimado-ou-enterrado acesso em 200615

Recebido em 06062019

Aprovado em 17102019

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ISSN 2595-1033

conhecimento acadecircmico Como resultado as comunidades quilombolas passam a ser vistas a

partir de seu contexto histoacuterico poliacutetico e social como detentoras de direitos sobre o territoacuterio

onde vivem e como interagem enquanto atores sociais com outras instacircncias numa rede de

relaccedilotildees definidoras para poliacuteticas puacuteblicas inclusivas Neste sentido as comunidades

quilombolas do estado do Rio Grande do Norte buscam mais espaccedilos por visibilidade e acesso

agraves poliacuteticas puacuteblicas especiacuteficas para estas populaccedilotildees

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARRUTI Joseacute Mauriacutecio Etnicidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves

Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

EDUFBA 2014

ASSUNCcedilAtildeO Luiz carvalho de Os Negros do Riaacho estrateacutegias de sobrevivecircncia e

identidade social Natal UFRN ndash CCHLA 1994 (Coleccedilatildeo Humanas LetrasCooperativa

Cultural

GODOI Emiacutelia Pietrafesa de Territorialidade In SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio

Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador

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GUSMAtildeO Neusa Maria Mendes de Heranccedila quilombola negros terras e direitos In

Moura 2001

LEITE Ilka Boaventura CARDOSO Luiacutes Fernando Cardoso e MOMBELLI Raquel (Org)

Territoacuterios quilombolas reconhecimento e titulaccedilatildeo das terras Boletim informativo do

NUER Nuacutecleo de Estudos sobre Identidade e Relaccedilotildees Intereacutetnicas ndash v2 n2- Florianoacutepolis

NUERUSFC 2005

MEDEIROS Bartolomeu Tito Figuerocirca de Quando o campo eacute o quilombo etnicidade

politicas patrimoniais e processos de negociaccedilatildeo In TAMASO Izabela Maria e LIMA

FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos

Brasiacutelia ABA 2012

MELO Josemir Camilo de Quilombos do Catucaacute uma heranccedila dos Palmares no

Pernambuco oitocentista In Moura 2001

MOURA Cloacutevis (Org) Os quilombos na dinacircmica social do Brasil Maceioacute EdUFAL

2001

Kwanissa Satildeo Luiacutes n 5 p 65-84 janjun 2020 84

ISSN 2595-1033

SILVA Dimas Salustiano da Constituiccedilatildeo e diferenccedila eacutetnica o problema juriacutedico das

comunidades negras remanescentes de quilombos no Brasil contemporacircneo In Moura

2001

SANSONE Liacutevio e FURTADO Claacuteudio Alves Dicionaacuterio criacutetico das ciecircncias sociais dos

paiacuteses de fala oficial portuguesa Salvador EDUFBA 2014

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quilombolas Direito agrave terra (art 68 de ADCT) Brasiacutelia Fundaccedilatildeo Cultural Palmares

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patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos Brasiacutelia ABA 2012

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anos apoacutes a aboliccedilatildeo Brasiacutelia IPEA 2008

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quilombolas Direito agrave terra (art 68 de ADCT) Brasiacutelia Fundaccedilatildeo Cultural Palmares

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TAMASO Izabela Maria e LIMA FILHO Manuel Ferreira (Orgs) Antropologia e

patrimocircnio cultural trajetoacuterias e conceitos Brasiacutelia ABA 2012

THEODORO Maacuterio (Org) As poliacuteticas puacuteblicas e a desigualdade racial no Brasil 120

anos apoacutes a aboliccedilatildeo Brasiacutelia IPEA 2008

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