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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 1 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php M.A.M.O.N.: disputa, pertencimento e resistência na fronteira México/Estados Unidos 1 M.A.M.O.N.: dispute, forms of belonging and resistance in the border Mexico/USA Marina Caminha 2 Maurício Bragança 3 Resumo: Analisamos o curta-metragem M.A.M.O.N., dirigido por Alejandro Damiani e lançado em 2016, que trata da construção do muro entre o México e os Estados Unidos. O filme elaborou uma crítica contrária à principal plataforma de campanha de Donald Trump, então candidato do Partido Republicano à Presidência da República dos Estados Unidos. Matizado pelas referências cômicas, discute as disputas territoriais entre os dois países, utilizando a imagem do muro como espaço de luta. Na primeira parte, discorremos sobre as questões relacionadas à fronteira, sistematizadas pela presença do muro dispositivo emblemático do contexto geopolítico contemporâneo. Na segunda, evidenciamos as marcas cômicas do filme, enfatizando os traços do deboche e da caricatura - instâncias importantes de um projeto imagético que se organiza através da ideia de ocupação e resistência. Palavras-Chave: Fronteira. Imigração. Humor. Abstract: We analyze the short film M.A.M.O.N., directed by Alejandro Damiani and launched in 2016, which deals with the construction of the wall between Mexico and the United States. The film produced a criticism against the main campaign platform of Donald Trump, then Republican Party candidate for the Presidency of the United States. Organized by the comic references, M.A.M.O.N. points the territorial disputes between the two countries, using the image of the wall as a space of struggle. In the first part, we will discuss issues related to the border, systematized by the presence of the wall - emblematic device of the contemporary geopolitical context. In the second, we will highlight the comic marks of the film, emphasizing the presence of debauch and caricature - important instances of an imaginary project that is organized through the idea of occupation and resistance. Keywords: Border. Immigration. Humor. 1. Introdução A eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, em novembro de 2016, recrudesceu as ameaças à permanência dos imigrantes no território americano e intensificou de maneira violenta o controle das fronteiras com o México. Ainda em 2015, na disputa para ser 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho CULTURA DAS MÍDIAS XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019. 2 PPGCOM/ESPM-SP, Doutora, email: [email protected] 3 UFF, Doutor, e-mail: [email protected]

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019

1 www.compos.org.br

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M.A.M.O.N.: disputa, pertencimento e resistência na fronteira México/Estados Unidos 1

M.A.M.O.N.: dispute, forms of belonging and resistance in the border Mexico/USA

Marina Caminha 2

Maurício Bragança3

Resumo: Analisamos o curta-metragem M.A.M.O.N., dirigido por Alejandro Damiani e lançado

em 2016, que trata da construção do muro entre o México e os Estados Unidos. O

filme elaborou uma crítica contrária à principal plataforma de campanha de Donald

Trump, então candidato do Partido Republicano à Presidência da República dos

Estados Unidos. Matizado pelas referências cômicas, discute as disputas territoriais

entre os dois países, utilizando a imagem do muro como espaço de luta. Na primeira

parte, discorremos sobre as questões relacionadas à fronteira, sistematizadas pela

presença do muro – dispositivo emblemático do contexto geopolítico contemporâneo.

Na segunda, evidenciamos as marcas cômicas do filme, enfatizando os traços do

deboche e da caricatura - instâncias importantes de um projeto imagético que se

organiza através da ideia de ocupação e resistência.

Palavras-Chave: Fronteira. Imigração. Humor.

Abstract: We analyze the short film M.A.M.O.N., directed by Alejandro Damiani and launched in

2016, which deals with the construction of the wall between Mexico and the United

States. The film produced a criticism against the main campaign platform of Donald

Trump, then Republican Party candidate for the Presidency of the United States.

Organized by the comic references, M.A.M.O.N. points the territorial disputes

between the two countries, using the image of the wall as a space of struggle. In the

first part, we will discuss issues related to the border, systematized by the presence

of the wall - emblematic device of the contemporary geopolitical context. In the

second, we will highlight the comic marks of the film, emphasizing the presence of

debauch and caricature - important instances of an imaginary project that is

organized through the idea of occupation and resistance.

Keywords: Border. Immigration. Humor.

1. Introdução

A eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, em novembro de 2016,

recrudesceu as ameaças à permanência dos imigrantes no território americano e intensificou de

maneira violenta o controle das fronteiras com o México. Ainda em 2015, na disputa para ser

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho CULTURA DAS MÍDIAS XXVIII Encontro Anual da Compós,

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019. 2 PPGCOM/ESPM-SP, Doutora, email: [email protected]

3 UFF, Doutor, e-mail: [email protected]

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o representante do Partido Republicano à campanha presidencial do ano seguinte, o candidato

reforçou seu discurso xenófobo contra a presença dos latinos no território dos Estados Unidos,

fazendo polêmicas declarações que se afastavam de forma radical das políticas de maior

acolhimento às comunidades de imigrantes latinos levadas a cabo no governo anterior de Barak

Obama.

No discurso de lançamento oficial da sua candidatura à Presidência da República,

Trump já anunciou aquela que se converteria na promessa emblemática do seu governo:

construir um enorme muro na fronteira com o México, aumentando a barreira que já existe e

intensificando ainda mais os riscos de atravessá-la. Essa proposta veio acompanhada de toda

sorte de xingamentos contra os mexicanos que, ao longo da campanha foram chamados pelo

candidato de estupradores, criminosos, propagadores de doença, traficantes de droga,

reforçando um discurso que opunha de forma irreconciliável o Eu americano e o Outro

mexicano, como se pode perceber no discurso de lançamento de sua campanha em junho de

2015.

Quando México envia seu povo, eles não estão enviando o seu melhor. Eles não estão

enviando você. Eles não estão enviando você. Eles estão enviando pessoas cheias de

problemas, e eles estão trazendo estes problemas para nós. Eles estão trazendo

drogas. Eles estão trazendo crime. Eles são estupradores4.

A fala, atravessada de teor racista, evidencia o acirramento da disputa espacial que

organiza o imaginário nacional estadunidense desde sua conformação territorial em meados do

século XIX. Os conflitos entre Estados Unidos e México que sustentaram o modelo de nação

que surgia eram, em parte, traduzidos através dos estereótipos raciais que a indústria cultural

americana disseminava ao longo da história, ressaltando as relações entre raça, colonialidade e

território que pautavam os sentimentos de nação. Tais declarações racistas e xenófobas foram

a marca da campanha de Donald Trump e produziram uma enorme indignação junto às

comunidades negras e hispânicas, e em todo o corpo progressista do eleitorado estadunidense5.

4 Discurso de lançamento da campanha pela disputa da candidatura do Partido Republicano à Presidência da

República dos Estados Unidos. O discurso, proferido em 16 de junho de 2015, intitulado “Our country needs a

truly great leader”, pode ser acessado em https://blogs.wsj.com/washwire/2015/06/16/donald-trump-transcript-

our-country-needs-a-truly-great-leader/

As traduções presentes neste texto são de responsabilidade dos autores do artigo: “When Mexico sends its people,

they're not sending their best. They're not sending you. They're not sending you. They're sending people that have

lots of problems, and they're bringing those problems with us. They're bringing drugs. They're bringing crime.

They're rapists”. 5 Os Estados Unidos vêem crescer de forma acelerada o acirramento das relações raciais nos últimos anos e que

ganha novo ímpeto com a eleição do atual presidente, Donald Trump. No dia 12 de agosto de 2017, o movimento

nacionalista branco - que junto com representantes da Klu Klux Klan e membros neonazistas formam uma

ideologia supremacista branca – promoveu uma passeata em Charlottesville, na Virginia, protestando contra a

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E é na mesma chave das acusações raciais que Trump tentava se defender da indignação da

comunidade mexicano-americana:

Eu nunca posso me desculpar pela verdade. Eu não me importo em me desculpar por

coisas, mas não posso me desculpar pela verdade. Eu disse que um tremendo crime

vem acontecendo. Todo mundo sabe que isso é verdade. E está acontecendo o tempo

todo. Então, por que, quando falo, de repente sou racista. Não sou racista. Eu não

tenho sequer um osso racista no meu corpo6.

É desta forma, através do discurso que pauta questões nacionais (implicadas com seus

construtos raciais) e de pertencimento territorial que pretendemos abordar o cenário das

relações geopolíticas contemporâneas, tomando a imagem do muro entre México e Estados

Unidos como detonador de uma disputa que se dá também no âmbito do imaginário, do

simbólico e das políticas de representação midiáticas. Percebemos a configuração de um

cenário geopolítico no qual a construção de muros, barreiras e outras formas de contenção de

fronteiras marca o contexto contemporâneo7. Esses monumentos da interdição estão presentes

em várias narrativas e afetam as políticas de mobilidade que conformam as experiências

espaço-temporais dos fluxos migratórios em escala global, seja numa perspectiva de trânsito

entre nações e continentes diferentes, seja também em dinâmicas mais regionais e locais no

interior de um mesmo país.

Neste artigo, vamos analisar o curta-metragem M.A.M.O.N. (Monitors Against

Mexicans Over Nationwide)8, uma co-produção entre Uruguai e México, dirigido por

Alejandro Damiani e lançado em 2016, antes da eleição de Donald Trump. O filme trata da

retirada de uma estátua, de um parque da cidade, do general Robert E. Lee, herói do movimento escravocrata dos

EUA. A manifestação acabou ocasionando a morte de três ativistas que se opunham à reivindicação racista,

ganhando espaço e repercussão na imprensa internacional. 6 Ye Hee Lee, M. (2015). Donald Trump’s false comments connecting Mexican immigrants and crime. The

Washington Post. https://www.washingtonpost.com/news/fact-checker/wp/2015/07/08/donald-trumps-false-

comments-connecting-mexican-immigrants-and-crime/?utm_term=.8060db33886c. Acesso em 17 de dezembro

de 2017. “I can never apologize for the truth. I don’t mind apologizing for things. But I can’t apologize for the

truth. I said tremendous crime is coming across. Everybody knows that’s true. And it’s happening all the time.

So, why, when I mention, all of a sudden I’m a racist. I’m not a racist. I don’t have a racist bone in my body”. 7 Aqui nos interessa particularmente o muro México/Estados Unidos, mas podemos nos remeter a um panorama

de muros que inclui, dentre outros: o Muro do Saara, Marrocos/Argélia, Botswana/Zimbábwe, Israel/Síria,

Israel/Jordânia, Hungria/Sérvia, Quênia/Somália, Índia/Paquistão, Índia/Bangladesh, Paquistão/Irã,

Paquistão/Afeganistão, China/Coréia do Norte, Coréia do Sul/Coréia do Norte, sem contar os muros internos

nacionais, que também diagnosticam efeitos de exclusão social e acirram discursos de estigmatização e

criminalização da pobreza, como o muro erigido na Rodovia dos Imigrantes, em São Paulo, como forma de isolar

a comunidade de Vila Esperança, em Cubatão. Podemos mencionar ainda o muro de contenção das margens da

Linha Vermelha, no Rio de Janeiro, que isola visualmente o usuário da rodovia expressa do entorno formado pelo

Complexo da Maré. Por fim, o muro que envolve algumas favelas no Rio de Janeiro, como a da comunidade de

Santa Marta, no morro Dona Marta. Sem dúvida, a presença destas barreiras oferece uma importante dimensão da

organização dos espaços de conflitos numa ordem geopolítica contemporânea. 8 M.A.M.O.N. (Monitores contra mexicanos em toda a nação). A palavra mamón também é uma grosseria no

espanhol mexicano e é o equivalente ao que xingamos em português uma pessoa “escrota”.

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construção do muro entre o México e os Estados Unidos, elaborando uma crítica contrária à

principal plataforma de campanha de Trump, então candidato do Partido Republicano à

Presidência da República dos Estados Unidos9. Matizado pelas referências cômicas, discute as

disputas territoriais entre os dois países, utilizando a imagem do muro como espaço de luta.

Nosso próximo passo será discorrer sobre as questões contidas nas disputas territoriais em

torno do muro, envolvendo a noção de espaço como metáfora importante para

compreendermos os fluxos migratórios contemporâneos.

2. Espaço: disputas territoriais e fluxos migratórios

Seguimos David Harvey (2002), ao propor o espaço como uma palavra-chave para

pensarmos questões fundamentais no âmbito das políticas sociais, econômicas e culturais que

atravessam as sociedades contemporâneas e como um conceito que alimenta as diversas teorias

sociais, seja a partir de acepções mais ligadas à compreensão de geografias concretas sobre o

terreno, seja no emprego do termo vinculado a metáforas espaciais. “Considerar o espaço como

uma palavra-chave consiste, neste sentido, em compreender a maneira pela qual o conceito

pode ser vantajosamente integrado dentro das metateorias sociais, literárias e culturais

existentes, e examinar os efeitos” (HARVEY, 2002, p. 18).

O que está em jogo, na provocação do discurso de Donald Trump, que a partir de 2017

se converteria em política do Estado, é a disputa territorial que essa noção do espaço da

fronteira evoca, na qual a ideia de território se define como um espaço delimitado por relações

de poder (HAESBAERT, 2014, p.1). Tais relações de poder se manifestam em sentido amplo,

vetorial e em diferentes niveis escalares (como macro e microterritórios), bem como a partir

de um viés multidimensional, acolhendo marcos politicos, econômicos e simbólicos, na

construção de processos de hegemonia. Este território é compreendido em seu movimento,

dentro de um processo, numa “dinâmica de construção e reconstrução permanente – o que

impede, portanto, que se visualize o território apenas enquanto uma zona, uma área bem

9 No momento de escrita desse artigo Donald Trump voltou a discutir sobre a necessidade de construção do muro

e a demanda por financiamento da obra. A disputa entre o presidente e a negativa do partido democrata em

concordar com o projeto mantém o governo americano paralisado desde o dia 22 de dezembro. No dia 08/01/2019

Trump afirmou que o governo permanecerá fechado, sustentando a ideia de que a segurança do país está

ameaçada. A contrapartida apareceu na resposta da presidente da Câmara dos deputados, Nancy Pelosi, que

rebateu o presidente dizendo que o mesmo deveria cessar de fabular crises e reabrir o governo. Ataques ao projeto

de Trump voltaram a aparecer midiaticamente por meio de charges, instalações artísticas, memes, por exemplo.

A capa da revista americana The New Yorker do dia 28/01/2019 é um desenho do presidente construindo um

muro em volta de si mesmo. Desenhada pelo artista John Cuneo. Pode ser vista em

https://www.newyorker.com/culture/cover-story/cover-story-2019-01-28, acesso em 28/01/2019.

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delimitada” (idem, p. 6). O muro é um emblema dessa política de reordenamento espacial

sistêmico, uma vez que se pauta pela ideia de fluxos que instauram uma lógica ambigua que

combina contenção e trânsito presente na fronteira.

Segundo o geógrafo Michel Foucher (2013), a fronteira é um objeto geopolítico

clássico, lugar onde se tornam visíveis as múltiplas funções que exerce no território: política,

na ordem da soberania; legal, regida pelo mundo do direito; fiscal, no exercício das atividades

alfandegárias; policial, como mecanismo de controle; militar, nas práticas de defesa da

soberania nacional. Ela evidencia um tempo inscrito no espaço determinado, marcando uma

descontinuidade de longa duração. Nos conturbados processos políticos que mudaram as

cartografias do planeta nas últimas décadas, as fronteiras fazem com que os limites políticos

internacionais se tornem mais visíveis. Foucher (2013, p. 30) apresenta informações

interessantes para pensarmos acerca da reacomodação dos mapas que se sucederam nas últimas

décadas:

Se considerarem-se as duas últimas décadas, uma topografia rápida oferece os

resultados seguintes: 27 mil quilômetros de fronteiras novas desde 1991 foram

instituídos, essencialmente na Europa e Eurásia e na África; mais de 24 mil

quilômetros de fronteiras foram objeto de acordos de delimitação e demarcação;

quase 18 mil quilômetros de programas de muros, fechamentos e barreiras metálicos

e eletrônicos foram anunciados; a territorialização dos espaços marítimos

desembocou em acordos em 39% dos 450 limites potenciais em zonas de

superposição.

Os fluxos migratórios e diaspóricos contribuiram, como vimos na fala de Foucher, para

uma desorganização da distribuição dos espaços e para um desordenamento dos territórios em

escala mundial. Os muros são um projeto que decorre desta desagregação territorial. Toda essa

movimentação acaba por constituir um processo de múltiplas territorialidades surgidas a partir

destes conflitos e geradas em torno das experiências de espaço-temporalidades que atravessam

do local ao global, passando pelo nacional e regional, reconfigurando processos identitários a

partir de desterritorializações e reterritorializações e múltiplas acepções de pertencimentos

territoriais. É nesse sentido que os estudos diaspóricos – experiência decorrente de um processo

de acirramento das desigualdades sociais – devem ser compreendidos no marco dos

deslocamentos e mobilidades contemporâneas que se dão a partir de uma dialética marcada

pelas ideias de contenção e trânsito, lógica presente na construção do muro México/EUA.

Nesse movimento se revelam alguns paradoxos que marcam de forma determinante a

geopolítica contemporânea: os processos de fluidez globalizada das redes e as

multiterritorialidades decorrentes destes movimentos ocorrem simultaneamente aos projetos

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de fechamento de fronteiras e tentativas de impedimentos de trânsito que organizam os fluxos

limítrofes dos Estados-Nação, em nome de soberanias e dos discursos em torno da segurança

nacional. Segundo Rogerio Haesbaert (2016), esta evocação à Nação engendra uma outra

contradição que se torna evidente quanto mais ela se apresenta no jogo pela disputa destas

fronteiras, indicando uma dupla função do muro contemporâneo: explicita de forma violenta a

força de um poder do Estado que se encontra em crise, evidenciada justamente na tentativa de

controle dos fluxos de fronteira10. Além disso, controla o trânsito em fronteiras de um mundo

cada vez mais globalizado, onde essas barreiras físicas vão se tornando ineficientes nas relações

de controle da circulação. Dessa forma, os muros fronteiriços fazem notar a demonstração de

poder de um Estado que precisa tornar evidente sua força, mesmo debilitado e posto em xeque.

Claire Rodier (2013) aponta algumas razões que organizam essa lógica da contenção e

trânsito evocada por Haesbaert. Em primeiro lugar, é difícil pensar um bloqueio de fronteiras

de caráter totalmente hermético para os clandestinos sem colocar em risco os princípios da

própria globalização e do fluxo daqueles que se nutrem destas mobilidades. Um outro aspecto

é a própria questão da economia dos países industrializados que se apropriam de uma mão de

obra flexível e exportável que se adequa perfeitamente aos indocumentados. Em terceiro lugar,

ressalta a autora, “a mobilidade, mesmo que reduzida, continua sendo um mecanismo de

regulação, uma forma de ajuste necessário nas crises que a comunidade internacional não sabe

resolver, como certos conflitos ou catástrofes ambientais11” (RODIER, 2013, p. 12).

Ao evocar “o negócio da xenofobia”, Claire Rodier (2013) demonstra que o controle e

vigilância da fronteira também faz parte de um grande investimento que mobiliza um

verdadeiro “negócio da segurança”, que envolve não apenas os altos investimentos feitos em

pesquisa e desenvolvimento de projetos dedicados à vigilância, mas também aciona toda uma

economia informal construída em torno dos ilegalismos em áreas de fronteiras, que inclui

despachantes, atravessadores e falsificadores de documentos, além dos subornos e propinas

pagas. No caso do México, não podemos deixar de mencionar o trabalho profissional dos

coyotes, responsáveis por possibilitar o trânsito de qualquer indocumentado disposto a pagar

para se arriscar na travessia clandestina. Além disso, essa prática de vigilância ostensiva, de

10 Devemos lembrar que as fronteiras como limites geolocalizáveis foram imprescindíveis para a delimitação das

cartografias nacionais e confecção dos mapas como dispositivos que regulavam o controle dos poderes e das

soberanias dos Estados modernos. 11 “La movilidad, aunque reducida, sigue siendo una válvula de regulación, una forma de ajuste necessária en las

crisis que la comunidade internacional no sabe resolver, como ciertos conflitos o catástrofes medio ambientales”.

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certa forma, legitima o uso de uma violência extremada por parte da polícia da fronteira que é

responsável por uma política de assassinato e encarceramento de populações vulneráveis que,

em grande medida, desnuda o funcionamento de ações de “controle social” postas em prática

pelo Estado. Esta “legitimidade” se dá através da difusão de discursos de xenofobia e

criminalização dos imigrantes, como os que fazem parte da plataforma de governo do atual

presidente dos EUA Donald Trump, como vimos acima.

Em vez de enfrentar a questão das diásporas contemporâneas como consequência de

políticas que acarretam a desordem social - especialmente nas áreas marcadas por processos

crescentes de desterritorialização por conta das desigualdades e precarizações ocorridas no seio

dos processos econômicos implementados em escala mundial – e propor medidas que busquem

um maior equilíbrio da distribuição de recursos no planeta, os governos enfrentam estas

populações como invasores e buscam através dos muros provocar impedimentos.

É nesse contexto que surgem os processos de resistência e denúncia, como podemos

constatar também nas plataformas digitais através de uma série de produções de imagens

relacionadas ao muro. Durante a campanha de Donald Trump, a internet foi ocupada por

centenas de memes que, através do deboche e da ridicularização, potencializavam uma crítica

ao projeto do candidato republicano12. Essa produção veio acompanhada de vários outros

produtos culturais, como os corridos de fronteira13, as paródias a filmes, clipes musicais e

também curtas-metragens. Neles, a mesma estratégia de mobilizar a opinião pública contra os

absurdos proferidos por Donald Trump, além de acionar, frequentemente através do humor,

uma espectatorialidade própria relacionada a este gênero narrativo.

3. M.A.M.O.N.: ocupação midiática, deboche e caricatura

O filme começa com uma câmera subjetiva14 de alguém sendo operado e em estado

grave. Nesse momento um dos médicos presentes no enquadramento pergunta: “onde está Dr.

12 Como uma amostragem dessa produção de memes sobre o muro e a plataforma de Donald Trump, conferir o

seguinte vídeo que compila vários deles: https://www.youtube.com/watch?v=5q3JRiYlxHc 13 Os corridos são um tipo de gênero musical mexicano relacionados, geralmente, aos acontecimentos da fronteira

norte do país. De forte teor documental, os corridos apresentam variações temáticas relacionadas às questões deste

espaço, como os narcocorridos, por exemplo, que narram os acontecimentos do mundo do crime de tráfico de

drogas. Os corridos de fronteira se dedicam a contar histórias relacionadas aos processos de imigração ilegal de

mexicanos aos Estados Unidos, geralmente narrando as dificuldades e perigos do trânsito de indocumentados

entre os dois países. 14 É um modo de enquadrar a imagem cuja proposta é inserir o espectador no filme. Nesse sentido, a câmera é

posicionada como forma de coincidir o olhar da personagem com o olhar do espectador em cena.

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Gonzales?”. Após esse começo a narrativa aponta para uma sequência de imagens, como uma

espécie de mundo paralelo, quando vemos Dr. Gonzales sendo arremessado, através de um

muro, para um espaço desértico, o território mexicano.

O médico, que está segurando o coração do paciente em suas mãos, faz gestos de

limpeza tentando proteger o órgão humano. O filme reivindica um lugar de posição social da

comunidade mexicano-americana que não se restringe aos postos subalternos de trabalho, mas

identificando a participação de mexicanos nos Estados Unidos também pela ocupação de

lugares científicos, como o trabalho de médico. Além disso, a narrativa tem no primeiro

arremesso “para o outro lado” o próprio coração, emblema maior de um discurso que vincula

os sentimentos e tudo o que está relacionado a ele às tradições latinas (intuição, afeto,

melodrama, instinto, etc). O coração seria um elemento simbólico, segundo o filme, não

pertencente ao território e cultura anglo-saxã.

Assim como ele, vários personagens, identificados por características latinas, começam

a ser lançados para o outro lado do muro. É nesse momento que reconhecemos que se trata de

uma história espelhada nos discursos proferidos por Donald Trump em sua campanha

presidencial15. Baseada nos estereótipos encontrados na cultura mexicana, a narrativa propõe

corporificar o discurso de Donald Trump, chamando a atenção para o refreamento das

diferenças na conformação da cultura estadunidense. Através da exclusão de personagens

arquetípicos o filme aponta uma discussão territorial que remarca a significação do outro (o

estrangeiro) em contraponto à visão colonial do discurso oficial do presidenciável.

A discussão balizada entre a ideia de pertencimento daqueles que são considerados

como parte constituinte do Estados Unidos e os que não são é o ponto principal para a

confluência de uma comicidade paródica matizada pelo deboche, pois a narrativa correlaciona

dois planos plenos de significados em oposição. Uma disputa que assistimos tanto como ação

dramática, mexicanos versus Donald Trump, quanto como processo ético/moral.

Antes de prosseguirmos com a análise das marcas cômicas inscritas no filme

gostaríamos de destacar duas imaginações ambivalentes que atribuem sentido à palavra

comicidade e atravessa o senso comum. Esse repertório é importante para entendermos os usos

15 Podemos relacionar a temática de M.A.M.O.N. ao filme dirigido por Sergio Arau em 2004, Um dia sem

mexicanos que, também através da chave do realismo mágico, expõe uma narrativa na qual os mexicanos seriam

fantasticamente retirados da sociedade estadunidense. No filme de Arau não há uma explicação lógica para que

isso aconteça: os mexicanos simplesmente desaparecem do território dos Estados Unidos.

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do riso na ressemantização proposta em M.A.M.O.N. dos discursos de campanha de Donald

Trump.

Desse modo, partimos do pressuposto de que o riso, como arte narrativa, é uma força

desenhada pela afetividade, pois só se constitui plenamente quando ativa no corpo do

espectador um sentimento que ultrapassa a escuta e o olhar. Assim, ao conclamar o corpo do

espectador como resposta, as narrativas atravessadas por marcas cômicas acenam para a

formulação de uma moral preponderante, sempre em disputa por significados. Desse modo,

concordamos com Cleise Furtado Mendes ao pensar o gênero cômico como um gênero afetivo,

ou seja, “certas famílias de obras aparentadas por um mesmo modo de dispor ou mover os

afetos do leitor ou espectador” (MENDES: 2008, p. 212).

A força cômica aparece quando joga com as nossas sensações, estabelecendo visões de

mundo, entrepostas entre a gargalhada e nossa compreensão sobre o porquê de nosso riso. Está

vinculada às nossas experiências culturais e históricas, refletindo posicionamentos e

imaginações. Nesse sentido, há contido no termo a ideia dupla entre o corpo e o intelecto. O

reconhecimento sobre aquilo que estamos rindo é a energia motriz dessa duplicidade.

A segunda imaginação está vinculada a um modo de interpretação da comicidade,

desdobrada na oposição entre um riso ofensivo e um inocente. Essa oposição, historicamente16

construída, expressa um modo de interpretação que corrobora para que as marcas cômicas se

tornem uma potente ferramenta de projeções ideológicas, justamente por friccionar entre o mal-

dizer e o imaculado, como uma espécie de brincadeira “sem a intenção de ferir”. Assim,

conclama o espectador pelo arremate do prazer propondo um jogo, uma “trapaça”, uma dança

entre o sentidos.

Essas duas imaginações amibivalentes: o riso formado entre a sensação e o

reconhecimento e o riso negociado entre a inocência e o maldizer – podem ser pensados como

arquiteturas simbólicas através das quais o gênero cômico torna-se legitimado. Entendemos

16 Do ponto de vista crítico, o autor Sigmund Freud (2006) em seu Livro Os chistes e a relação com o inconsciente,

concebeu o riso em dois tipos: o riso inocente, formulado pela inexistência de um determinado propósito ou alvo;

e o tendencioso, violento e hostil, designado a um alvo específico. Para sermos justos, gostaríamos de lembrar

que a teoria de Freud é mais complexa do que as tipologias descritas, e abrange um complexo estudo entre a piada

e o inconsciente. Não é nossa intenção aprofundarmos essa questão. Citamos a perspectiva do autor apenas para

estabelecermos uma percepção histórica nos entendimentos que a palavra comicidade pode sugerir. Nesse sentido,

podemos pensar o riso em suas dimensões artísticas através da figura do palhaço que encarna múltiplas

significações, desde a inocência ao maldizer, conferindo uma ambiguidade ao seu corpo e que, dependendo do

tipo de dramatização, tende mais para um lado ou para outro. Para aprofundar essas questões, consultar FREUD

(2006); BOLOGNESI (2003).

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que, carregada na palavra comicidade, há uma expectativa antecipada inscrita no espectador ao

disponibilizar seu corpo para a recepção desse tipo de narrativa.

Essa expectativa de comicidade já estava presente nas estratégias de lançamento do

filme, direcionando as sensações do público para gerar uma audiência desejante em consumir

o curta-metragem. No Twitter da produtora Aparato Filmes foi postado um cartaz17 com o

seguinte comentário: “Fique atento para o curta-metragem que vai fazer a América grande de

novo: M.A.M.O.N.”, seguindo pela Hashtag #MakeAmericaGreatAgain. No cartaz, vemos um

mexicano, em frente ao muro, tentando falar com uma máquina que encontramos em

estacionamentos de carro em que uma voz indica como o usuário deve pegar e pagar seu ticket.

Abaixo do nome do filme vemos frases como logomarcas de festivais de cinema, como se o

filme já tivesse sido premiado. São essas: “Pense Grande” (Think Big), “Cinema será ótimo

novamente” (cinema will be great again), “Vai ser enorme” (It´s gonna be huge), “Casa”,

entrecortado por um símbolo chinês, “China”. Abaixo desses comentários, uma frase com um

tamanho de fonte maior, situado no meio do cartaz, pergunta a nós espectadores: “quem vai

pagar?”

É importante pensar na camada paródica presente nesses comentários a partir da relação

que eles estabelecem com o slogan citado da campanha de Donald Trump: “Make America

Great Again” (Faça a América grande de novo), produzindo um duplo sentido para o dito. As

alusões contidas nessas expressões são proposições de um contrato de audiovisualidade,

projetando no espectador uma expectativa de comicidade, antes mesmo da exibição do filme.

Além disso, há a frase-síntese: “quem vai pagar?” em diálogo com a imagem escolhida

para ilustrar o cartaz. Em um primeiro momento, podemos interpretá-la como um convite para

assistir ao filme, mas há um questionamento mais amplo, voltado para a temática do filme.

Lembramos que o curta-metragem foi lançado antes da vitória de Donald Trump. Essa frase,

portanto, interpela os espectadores, uma provocação que se monta entre a sensação e o

reconhecimento, a inocência e o tendencioso, uma vez que o projeto de construção do muro

previa que o empreendimento fosse financiado pelo governo mexicano.

Esse questionamento aciona uma imaginação sobre o outro, construída territorialmente

e que demarca, entre outras coisas, uma proposição de cultura estadunidense alheia às

características latinas. Esses elementos latinos, formadores de uma cultura material e de um

17 O cartaz foi lançando no dia 26 de outubro de 2016, quatro dias antes da exibição do filme.

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imaginário sobre a nação estadunidense, devem ser expurgados de acordo com os ataques de

Trump. O muro que aparece no cartaz e na maioria das cenas é a materialização desse projeto

e sua presença ativa a memória do espectador sobre a ideia de separação/assepsia/segregação.

Desse modo, a narrativa fronteiriça é organizada como um discurso duplo em disputa por

ocupação. O cartaz produz camadas de sentidos que, simultaneamente, conclama pelo prazer e

retira o espectador de um lugar de conforto e comodidade.

Retomando a análise da narrativa fílmica, sugerimos pensar as figuras arquetípicas que

aparecem sendo jogadas para fora dos Estados Unidos. A caricatura é uma instância importante

para a projeção do deboche, e assim é necessário repensarmos o propósito afetivo que norteia

a história. Na cena da chuva de mexicanos, observamos que uma verdadeira cartografia dos

estereótipos mexicanos é construída através dos arremessos: a miss universo, a estatueta do

Oscar18, a própria televisão (que na previsão do homem do tempo que está no ar quando ela é

arremessada, é divulgado o fenômeno de uma chuva de mexicanos na fronteira), o vendedor

de taco, o mariachi, a mãe; sem contar ainda as inúmeras outras referências a uma cultura

mexicana reconhecida internacionalmente que passeiam pela película, como a quinceañera19,

a máscara dos lutadores de luta livre, la calavera, Chapolin Colorado, a Virgem de Guadalupe,

Quetzalcóatl20, o galo de briga, as pirâmides da cultura maya e azteca, um cancioneiro popular

típico da fronteira, dentre outras mais.

No filme, quando o vendedor de taco chega à máquina para tomar satisfações pelo

ocorrido, recebe como resposta do aparato a seguinte declaração: “Obrigado por sua

colaboração e, lembre-se, não volte novamente”. A máquina libera ainda uma fatura onde se

lê: “taxa da fronteira dos Estados Unidos” com um valor a cobrar de US$ 450.000,00. Diante

do fato, o rapaz volta-se para os demais expulsos e diz: “E o gringo ainda quer nos cobrar pelo

muro”, ao que os outros acompanham: “Diga-lhe foda-se, seu maldito gringo racista!” e a

sentença final dirigida à maquininha: “Nós não te pagaremos nada!”. É nesse momento que a

música muda, ouvimos uma melodia que provoca o suspense. O muro se abre e entra em cena

18 Aqui a referência ao Oscar nos remete aos até então premiados diretores mexicanos Alfonso Cuarón, por

Gravidade (em 2014), e Alejandro González Iñarritu, por Birdman em 2015, e O Regresso, em 2016. Em 2018,

outro diretor mexicano levaria o Oscar: Guillermo del Toro, por A forma da água. Como podemos perceber, nos

últimos anos a mais famosa estatueta de premiação de melhor diretor da indústria cinematográfica tem sido quase

uma exclusividade do México. 19 Quinceañera é como se chama a menina debutante que, ao fazer 15 anos, organiza uma cerimônia de

comemoração que inclui um vestido de princesa própria desta festa. 20 Quetzalcóatl é uma das principais divindades astecas, sendo traduzido como “a serpente emplumada”. A

interpretação de sua historia está comumente relacionada à chegada de Hernán Cortez a Teotihuacan.

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um robô gigante, segurando uma bandeira com a imagem de Trump e os seguintes dizeres: “Eu

não quero você”. A figura maquínica é análoga às encontradas no filme Transformers (2007),

meio carro, meio boneco. Sua face é marcada pela expressão raivosa, com características

similares as de Donald Trump, reconhecido por nós espectadores e pelos personagens do filme,

sobretudo pelo detalhe exacerbado de uma de suas características físicas: o topete de seu cabelo

amarelo.

O robô, encarnado na figura do presidenciável, gera dois contrapontos em comparação

aos personagens. Em primeiro, pelo tamanho, pois em todas as cenas ele é enquadrado em

contra-plongée, para dar a ver ao espectador uma ideia de superioridade, que se completa pelos

personagens latinos sempre olhando para cima. Em segundo, pela relação entre máquina e

homem, contemplando imaginários norte-americanos de fabricação de máquinas simbólicas e

materiais para a guerra, a preponderância de grandes indústrias, o domínio das tecnologias,

entre outros21. Em paralelo, a característica latina baseada no excesso do afeto, com referentes

claros de elementos narrativos inscritos na cultura popular, tais como o melodrama e o riso. O

mesmo vendedor de tacos olha para cima e diz: “Sr. Trump, somos pessoas honradas e só

gostaríamos de pedir”, quando é esmagado pelos pés do robô antes de terminar a fala.

Essa relação entre a defesa da fronteira e o uso da tecnologia corrobora, no âmbito da

representação cômica, o argumento de Claire Rodier (2013) acerca da existência de toda uma

rede de investimentos nos controles migratórios, convertendo a questão da xenofobia num

negócio altamente lucrativo, citando, especialmente o desenvolvimento de tecnologias de ponta

associadas aos veículos utilizados no controle dos fluxos migratórios das fronteiras.

Dentro do hit-parade da tecnologia de fronteira, os veículos aéreos não tripulados

representam o futuro. Estes veículos não apenas se multiplicam no campo militar:

entre os usos civis, os mais frequentes são a segurança, o controle de fronteiras para

a prevenção e a repressão da imigração ilegal, da pirataria e do contrabando22

(RODIER, 2013, p. 41).

Esses elementos representativos nessa luta fronteiriça foram construídos

imageticamente como arcos narrativos para deixar claro para o espectador a disputa de forças

entre dominados e dominantes. Incluso nessa discussão, há todo um repertório colonizador,

21 Podemos pensar também que a imagem perfomatizada de um robô “surtado” no filme pode ser entendida

enquanto uma paródia à autoimagem do norte-americano como um povo racional e com objetivos claros,

vinculada a ideia de secularização, progresso e modernidade. 22 As traduções deste artigo são de responsabilidade dos autores. “Dentro del hit-parade de la tecnologia fronteriza,

los vehículos aéreos no tripulados representan el futuro. Estos vehículos no sólo se multiplican en el ámbito

militar: entre los usos civiles, los más frecuentes conciernen a la seguridade, el control de fronteras para la

prevención y la represión de la inmigración ilegal, de la piratería y del contrabando”.

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sistematizada pela projeção de uma imagem limpa, sem rasuras para legitimar uma percepção

de identidade nacional norte-americana sem mestiçagem. O curta-metragem alude a esses

repertórios, tanto do ponto de vista da construção dos personagens, como já apontamos, quanto

dos estatutos imagéticos como um todo. Em todas as sequências, os processos de captação e

pós-produção são utilizados para imprimir uma nitidez completa, sem traços de desfoques ou

efeitos que possam granular a imagem. Dessa forma o filme “ocupa” não apenas um território

simbólico relacionado à instância da narração, mas também faz questão de “ocupar” uma

materialidade da imagem, geralmente relacionada às produções hegemônicas estadunidenses,

conferindo um padrão de imagem que muito nos remete às produções seriadas das plataformas

de streaming, bem como aos filmes de ação da indústria do cinema industrial.

Por tudo isso, partimos do pressuposto que há dois entrecruzamentos sobre essa

trajetória filmada. Primeiro, o uso da caricatura como ferramenta para projetação de uma ideia.

Em segundo, a perspectiva de uma ocupação midiática através dos usos de estéticas visíveis

em filmes e séries televisivas norte-americanas, que projetam uma imagem hiper-real,

supostamente limpa de ruídos e desenhada pela total nitidez inscritas nas câmeras de alta

definição, como estratégia subversiva.

Do ponto de vista da caricatura como comédia, Charles Baudelaire (2008) vai dizer que

a hipérbole na representação pode ser entendida por duas nuances: aquilo que ele chama de

cômico significativo – mais evidente em termos comparativos com a imagem original que

possui como instância central um discurso duplicado entre a ideia e a moral – e o cômico

grotesco ou absoluto23 que “apresenta-se sob uma espécie una, e que quer ser apreendida por

intuição” (BAUDELAIRE, 2008, p. 44). O autor pontua ainda que essas nuances podem se

complementar, e aparecer presentificadas simultaneamente em um mesmo espaço caricatural.

Para ele, a força semântica que diferencia uma da outra é a presença da violência no cômico

23É preciso esclarecer que Baudelaire entende que o riso é constituído por um sentimento duplo e em contradição:

“o riso e a dor exprimem-se pelos órgãos onde residem o comando e a ciência do bem ou do mal: os olhos e a

boca”. Para ele, o riso é formado pela sensação de superioridade do homem não sobre outro homem, mas sobre a

natureza. A palavra natureza em seu ensaio se configura como um contraponto à santidade - espírito das ideias

que seguem o senhor. Desse modo, a natureza pode ser entendida como determinadas representações que

compõem as formações culturais. Seguindo essa perspectiva, o autor trata de se defender sobre os usos da palavra

absoluto. Esta representa a imaginação de uma “humanidade decaída”, a superioridade, portanto, representa um

modo de descortinar determinadas visões de mundo que se colocam como única verdade. Diz ele: “sinal de

superioridade em relação aos animais, e entendendo sob essa denominação numerosos párias da inteligência”

(BAUDELAIRE, 2007, p.34 e 40).

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grotesco, “exagerando e levando aos últimos limites as consequências do cômico significativo”

(BAUDELAIRE, 2008, p. 46).

Guardadas as devidas proporções, acreditamos que as imagens caricaturais formuladas

em M.A.M.O.N. são atravessadas por essas referências estéticas descritas em Baudelaire. São

variantes do cômico significativo e do grotesco na escolha por imagens emblemáticas e

reconhecidas pelos espectadores, que aludem a uma ideia de latinidade, construída pela cultura

mexicana.

Em paralelo, também são catapultados determinados símbolos consolidados na cultura

norte-americana, tais como a estatueta do Oscar. Estes elementos colocam em cena traços de

uma cultura latina presente nas formações culturais estadunidenses, que são expulsos não

apenas pela sua história, mas na relação com o presente. É pelo perigo de miscigenação que

esses elementos “devem” ser renegados, adensando no filme uma perspectiva ambivalente no

que se refere a formação do outro e da fronteira.

As figuras cômicas blasfematórias, excessivas e escatológicas que se assentam na

modernidade24 só podem ser compreendidas quando atravessadas por uma imaginação

normalizadora e asséptica de sua cosmovisão. Partimos do pressuposto que esse novo modelo

de sensibilidade cômica atravessou as diferentes modernizações, conformando um modo de rir

em que o grotesco aparece “suavizado”. É através desse quadro geral de novas sensibilidades

que as marcas da comicidade são inseridas e entendidas como tais nos universos midiáticos25.

Há um pressuposto importante na ordem das sensações e situado na violência que nos

ajuda a identificar o que chamamos de deboche. Baudelaire aprofunda essa sensação no cômico

grotesco direcionando seu sentido para um ataque proposital a determinados padrões. É essa

ofensiva que se institui como ação violenta, tendo em vista que desestabiliza as

experiências/sensibilidades com as quais conferimos em nós uma impressão de mundo. Para

além, a força que modela o reconhecimento desse ataque não se configura no espectador pela

análise racional, mas através de clarões intuitivos que emergem de um riso repentino. Assim,

24 Há dois autores que pensam as transformações do cômico popular na passagem para a modernidade, discorrendo

como fatores políticos e culturais, ancorados na produção de uma visão de mundo racional, foram campos

importantes para uma assepsia das figuras cômicas. Esse movimento de silenciamento se deu por dois caminhos:

na criação de manuais pedagógios que aturam na construção de uma outra moralidade e na perseguição violenta

contra um tipo de riso que não se encaixava nos padrões dessa moralidade emergente. Para um maior

aprofundamento dessa temática conferir Burke (2000) e Bakthin (1996). 25 De certa maneira essas imagens cômicas grotescas não fogem de nossa cultura midiatizada, mas são comumente

associadas a outros gêneros narrativos, tais como a pornografia e o horror.

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o autor propõe a existência de um riso ascendente: “um riso que se sabe, alegre, violento e

irresistivelmente, da liberação das frustrações corporais e dos poderes de uma imaginação e,

ignorando-se a si mesmo, devolve-se numa experiência coletiva” (MENDES, 2008, p.106).

Buscamos como referência essa base teórica para conceituar o que chamamos de

deboche. Acreditamos que essa marca cômica é a principal instância de comoção/afetação

visualizada em M.A.M.O.N. Em primeiro, entendemos o deboche como parte constituinte de

marcas inscritas nas trajetórias estéticas do popular, que é atravessado pela duplicação de

sentidos em contradição e, do ponto de vista figurativo, é forjado dialogicamente entre o

excesso e a limpeza do mesmo. Em segundo, a sua força cômica se manifesta no ataque

direcionado a um alvo, uma ideia, um sujeito. Assim, abre-se uma “ferida” que se torna cômica

nas disposições entre as sensações e o reconhecimento, a “pretensa inocência” e o maldizer. O

prazer contido na expectativa que a comicidade debochada evoca no espectador é a armadilha

necessária de formulação do ataque. Em terceiro, as imagens em contradição ressoadas no

deboche são fraturas sensíveis que variam da inferioridade para a superioridade e vice-e-versa,

tendo em vista que são aglutinações que acariciam um corpo em dor/angústia. Desse modo, a

imagem de decadência, ou de sujeitos em tormenta, torna-se o caminho pelo qual o deboche

trafega, construindo para essa imaginação um abandono do seu próprio corpo moral na luta

pela possibilidade de produzir outra imaginação física/mental de si mesmo.

O deboche, portanto, é arma que os personagens em inferioridade, expurgados de sua

experiência fronteiriça, possuem como processo operacional. Diante da superior Máquina-

Trump que impõe a condição de não poder voltar para o Estados Unidos, eles precisam achar

uma maneira de se sobressair. Quando o El Mariachi morre no filme (através de uma arma que

aparece no lugar do pênis do robô), uma das personagens pergunta para si mesma: “E agora?

Quem poderá nos defender?”, uma alusão direta ao herói televisivo, mexicano, atrapalhado e

cômico Chapolin Colorado. Em sequência, a narrativa nos mostra uma lápide, travestida com

a touca vermelha de Chapolin e sua arma de plástico, indicando para os espectadores e para os

personagens fílmicos que ele também morreu.

Um último suspiro se origina pela esperança contida na padroeira do México, a Virgem

de Guadalupe. É ela que aparece no céu, em formato de uma nave espacial que se parece a uma

pirâmide azteca turbinada, uma também máquina. Na chegada dessa nave, que evoca a proteção

religiosa, depreende-se o projeto de mestiçagem que conformou o popular colonial latino-

americano, onde a santa se hibridiza com as formas da arquitetura pré-colombiana. Esta

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imagem maior da fé popular, em briga direta com a máquina Trump, traz aquele que parece ser

o único possível a derrotar a máquina mortífera da xenofobia e do racismo: um galo de briga

que, inusitadamente, acaba por soltar um ovo que faz tombar a Máquina-Trump, estabelecendo

a vitória dos mais fracos sobre o mais forte. O deboche está nos deslocamentos de sentidos que

se formulam entre inversão e subversão de ideias personificadas em sujeitos. Um galo que

através de um ovo mata a máquina, um pênis-arma, a memória de um herói televisivo

atrapalhado, uma santa católico-azteca que se assemelha ao poder de Donald Trump, ambos

máquinas, e personagens estereotipados sendo catapultados para o outro lado do muro.

São todas essas alusões e representações, arrebanhadas por um realismo fantástico, que

confere a esse riso um matiz caricatural e debochado cujo principal alvo é demover, através do

prazer cômico, uma das principais ações ideológicas da campanha eleitoral de Donald Trump.

Através da vitória experimentada pelos personagens, o curta-metragem ataca também os

espectadores por que abre/toca uma ferida. Não sem dor, conclama o espectador a barganhar

sua inferioridade/superioridade com o mundo e os “homens decaídos” através do riso e, desse

modo, estabelecendo ainda que provisoriamente, uma vitória sensorial em quem assiste ao

filme.

Concordamos com Mendes (2008) quando pensa os dramas cômicos atravessados pelas

sensações, em contraponto à ideia histórica de um fabulação pautada pelo distanciamento -

forjado pela ideia de insensibilidade como analogia ao discernimento crítico, inscrita, por

exemplo, em Henri Bergson (2004). A autora propõe analisar os referentes catárticos contidos

na comédia e, para tal, ressignifica o conceito proposto por Aristóteles:

a catarse dramática é um fenômeno que não se reduz nem à experiência puramente

emocional, nem à aprendizagem lógico-racional. Por não ser uma estrutura nem um

sentido, mas um processo e um acontecimento, a catarse (se e quando procede ou

acontece) conecta a produção e a recepção da obra, mobilizando o repertório afetivo

e intelectual do espectador (MENDES: 2008, p. 12).

Aproximando essa conceituação com o que já dissemos sobre as duas imagens

ambivalentes contidas na comédia, podemos personificar essa articulação à imagem de um

objeto/ideia em suspensão, que circula entre os imaginários opostos. Isso não é o mesmo que

sugerir a inexistência de lados/posições políticas. Ao contrário, é entender que o acontecimento

cômico é modelado no diálogo entre múltiplas negociações, ocupando determinados modos

comportamentais monolíticos para tonar visíveis as fissuras e, através delas, apontar uma saída.

Se entendermos as circularidades e fluxos que dificultam encontrar um ponto de

partida/um centro no riso, podemos acreditar que essa metáfora da suspensão, ainda que

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embalada pela ficção, é passível de conjecturar no espectador sensações fragmentadas, de

reconhecimento das dores, mas também possibilidades de lutas.

4. Considerações finais

Nesse artigo procuramos pensar as ambivalências contidas nas cartografias

geopolíticas, figuradas pelas relações fronteiriças inscritas nas disputas territoriais em torno do

muro que separa o México dos Estados Unidos. Para tanto, dissertamos sobre a metáfora do

espaço como uma chave de leitura para se pensar as relações políticas, sociais e culturais no

cenário contemporâneo. O pensamento espacial é algo que marca um processo de leitura

possível nas dinâmicas sociais e processos culturais na epistemologia contemporânea, como

nos esclareceu David Harvey. Assim, conceber o espaço e as possibilidades de ocupá-lo é uma

forma de situar as tensões que atravessam as sociedades em suas disputas por pertencimento,

representação e existência.

Pensar as políticas espaciais no seio das dinâmicas coloniais que permanecem como

práticas nas relações entre o México e os Estados Unidos consiste em direcionar nosso olhar

para as fissuras materiais e simbólicas que emergem dos fluxos migratórios entre os dois países

e que redesenham as noções identitárias do Eu e do Outro. Recorremos ao curta-metragem

M.A.M.O.N., como forma de redirecionar uma reflexão que aciona um imaginário em torno

das identidades nacionais e culturais racializadas pelas assimetrias coloniais que insistem em

atualizar o estatuto da fronteira que separa as duas nações. Toda essa materialidade do muro

representado no filme confirmam que as políticas de campanha de Donald Trump, assumidas

como políticas de estado quando este é eleito presidente dos Estados Unidos, ganham corpo

num discurso racista e xenófobo.

Tensionando imagens estereotipadas formadoras de um consenso sobre a identidade

nacional mexicana, o filme adota o humor como estratégia de denúncia. Dessa forma o cômico

se organiza em torno do deboche e da caricatura como traços importantes para estabelecer o

próprio audiovisual como um lugar a ser ocupado, conclamando o espectador para uma leitura

político-afetiva da história que está sendo narrada.

Acreditamos que M.A.M.O.N. interpela o espectador, convocando a perseverança

como força “co-movente” (MENDES: 2008) e à medida que a narrativa é colocada em análise,

como propomos aqui, torna-se artefato de posicionamento político, tanto do ponto de vista

catártico, no arrebatamento de espectadores, quando narrativamente, através dos

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compartilhamentos, releituras e ressignificações. Por essa duplicidade final apontada,

acreditamos que os mecanismos cômicos projetados no filme ocupam um lugar de resistência

contra uma imaginação do outro sintetizada pelas falas Donald Trump e de re-existência desse

outro colonizado, em situação de disputa pelos territórios e lados do muro

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, o contexto de François Rabelais.

São Paulo: Hucitec, 1996.

BAUDELAIRE. Charles. Escritos sobre a arte. São Paulo: Hedra: 2008.

BERGSON, Henry. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

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