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: Universidade Federal do Rio de Janeiro AS CARTOGRAFIAS DOS SONHOS NAS ESQUINAS DA MEMÓRIA: uma análise de Sonhos azuis pelas esquinas, de Ondjaki Laize Santos de Oliveira 2017

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Page 1: AS CARTOGRAFIAS DOS SONHOS NAS ESQUINAS DA … · dos vários contos/sonhos do referido livro de Ondjaki. Serão estudadas as relações entre geografia e literatura, assim como o

:

Universidade Federal do Rio de Janeiro

AS CARTOGRAFIAS DOS SONHOS NAS

ESQUINAS DA MEMÓRIA: uma análise de

Sonhos azuis pelas esquinas, de Ondjaki

Laize Santos de Oliveira

2017

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AS CARTOGRAFIAS DOS SONHOS NAS ESQUINAS DA MEMÓRIA: uma análise de Sonhos azuis pelas esquinas, de Ondjaki

Laize Santos de Oliveira

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de

Janeiro como quesito para a obtenção do Título

de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas

Portuguesa e Africanas).

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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AS CARTOGRAFIAS DOS SONHOS NAS ESQUINAS DA MEMÓRIA: uma análise de Sonhos azuis pelas esquinas , de Ondjaki

Laize Santos de Oliveira

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro

- UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de

Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

Examinada por:

_________________________________________________ Presidente, Dra. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco – UFRJ

_____________________________________________ Dra. Fernanda Antunes Gomes da Costa – UFRJ Macaé

_____________________________________________ Dr. Nazir Ahmed Can – UFRJ

_____________________________________________ Dra. Renata Flávia da Silva – UFF

_____________________________________________ Dra. Viviane Mendes de Moraes – UFRJ

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).

OO48cOliveira, Laize Santos de As cartografias dos sonhos nas esquinas damemória: uma análise de Sonhos azuis pelas esquinas,de Ondjaki / Laize Santos de Oliveira. -- Rio deJaneiro, 2017. 95 f.

Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal doRio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de PósGraduação em Letras Vernáculas, 2017.

1. Cartografia. 2. Ondjaki. 3. Sonho. 4. Memória.5. Intertextualidade. I. Secco, Carmen Lucia TindóRibeiro, orient. II. Título.

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SINOPSE

A(s) representações espaciais em Sonhos azuis pelas esquinas, de Ondjaki: a influência que os imaginários urbanos geram na ficção deste autor. Os lugares e as personagens que os habitam como epicentro desta investigação. O espaço urbano e suas cartografias como fonte memorialística, lugar de preservação da tradição e inspiração literária, e a descoberta dos múltiplos lugares que se abrigam dentro de diversos contos/sonhos do referido livro de Ondjaki.

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À minha vó, porque tudo sempre foi senão por ela

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AGRADECIMENTOS

À minha vó, lembro ainda hoje de estar sempre inquieta por ainda não saber

ler. Você sempre sábia, me disse que esperasse que tudo tem seu tempo, mas

eu nasci com urgências imaginárias e não conseguia esperar, queria saber ler

as orações e poder falar com Deus. Foi quando me ensinaste essa canção:

“Mãezinha do céu, eu não sei rezar, eu só sei dizer que eu quero te amar” e

aquilo me bastou. Aprendi que só o amor já bastava e esta foi sua gra nde

lição. Mais tarde voltei com a cisma de querer ler, e passei os dias a te pedir

que me ensinasse a ler e escrever, e não sabias. Mas, incapaz de dizer não às

minhas urgências, deu um jeito de ensinar o que desconhecias, e as mãos

calejadas manchavam de terra e sangue minhas lições, assim aprendi a ler. E

passei a ser suas mãos e seus olhos, com muito orgulho do ofício, ainda hoje.

Assim, fiz de mim uma extensão de ti. Corri atrás de cada oportunidade que lhe foi

negada. E se hoje escrevo esta dissertação é porque lá atrás me ensinaste a ler,

mesmo analfabeta. Porque nosso amor é mesmo da ordem do inexplicável. Há quem

me olhe e te veja, porque estás sempre lá comigo. Só peço ao tempo que me dê mais

este instante e que mostre a você, mais uma das conquistas que conquistamos

juntas. “Bença”, vó.

À minha mãe, Ivete, é lindo te ver feito leoa transformando dor em grito de luta.

Obrigado pelo ensinamento, pela torcida. Obrigado pela oportunidade de

caminharmos juntas nessa jornada, nem sempre tão fácil, mas bela porque ao seu

lado.

Aos meus amigos, sobretudo a Ana Cristina, por tanto amor e carinho inclusive nos

momentos em que a vida nos põe em xeque.

Ao Tiago, porque de todos os caminhos que percorri, foi por entre as tuas pegadas que

encontrei a paz e um amor tão belo e verde quanto seus olhos. Que muitos caminhos

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mais nos esperem e nos amadureçam. Que eu possa, todos os dias, “reaprender o amor

na respiração das tuas mãos”1 entrelaçadas às minhas.

Aos professores, por despertarem em mim o prazer da leitura, e por

compartilharem comigo o desejo de transformar o mundo através da poesia .

Ao professor Cléber Costa, pelo carinho e pelos ensinamentos que me tornaram

capazes de seguir seus passos no mundo das letras. In memoriam

Ao Ondjaki, por suas obras que foram o despertar de um afeto para com o universo

das literaturas africanas.

À minha prima Renata Fraga, pelos últimos momentos de afeto que pôde dedicar a

mim no leito do hospital, por me ensinar a ser forte e a ter fé na vida. Obrigada por me

permitir retribuir um pouco dos cuidados que dedicou a mim todos esses anos. In

memoriam

À CAPES, pelo auxílio financeiro que permitiu melhor qualidade de pesquisa

acadêmica.

À professora Carmen Tindó, faltam palavras capazes de significar sua importância

em minha vida acadêmica e pessoal. Agradeço por confiar a mim esta

responsabilidade tão grande que é amar e estudar as literaturas africanas. Obrigada

por acreditar que sou capaz de fazer ecoar e frutificar seus ensinamentos. Nada

disto existiria, não fosse sua sabedoria e simplicidade. Beça, ngana!

1 Verso extraído do livro Dentro de mim faz sul. Disponível em: <https://www.kazukuta.com/ondjaki/dentro_de_mim.html>. Acessado em: 22 fev. 2017.

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RESUMO

AS CARTOGRAFIAS DOS SONHOS NAS ESQUINAS DA MEMÓRIA: uma análise de Sonhos azuis pelas esquinas, de Ondjaki

Laize Santos de Oliveira

Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-

graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio

de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

Esta dissertação tem como objetivo central a análise de Sonhos azuis pelas

esquinas, de Ondjaki, efetuando uma leitura dos espaços ficcionais neste livro e de

seus diversos simbolismos. Serão estudadas estas representações espaciais e a

influência que os imaginários coletivos urbanos geram na ficção do autor.

Os espaços ficcionais e as personagens que os habitam serão o epicentro desta

investigação. As cidades e suas cartografias serão analisadas enquanto fonte

memorialística, lugar de preservação da tradição e inspiração literária.

A cartografia destes lugares se nutrirá de atmosferas oníricas, reais e

imaginárias, levando à descoberta das múltiplas cidades que se abrigam dentro

dos vários contos/sonhos do referido livro de Ondjaki.

Serão estudadas as relações entre geografia e literatura, assim como o jogo

intertextual tecido em diversos contos do referido livro de Ondjaki.

Palavras-chave: Cartografia. Ondjaki. Sonho. Memória. Intertextualidade.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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ABSTRACT

THE CARTOGRAPHIES OF DREAMS IN MEMORY CORNERS: An analysis of Sonhos azuis pelas esquinas, by Ondjaki

Laize Santos de Oliveira

Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-

graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio

de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

The main goal of this dissertation is to analyze Ondjaki’s book, Sonhos

azuis pelas esquinas, by doing a reading of the fictional spaces in this book and

their diverse symbolisms. We will study these spatial representations and the

influence that urban imaginaries generate in the fiction of this author.

The fictional spaces and the characters that inhabit them will be the

epicenter of this investigation. We will analyze the cities and their cartographies

as a memorialistic source, place of preservation of tradition and literary

inspiration.

The cartography of these places will nourish with dreamlike, real and

imaginary atmospheres, leading to the discovery of the multiple cities that are

housed within several tales/dreams of Ondjaki's mentioned book.

We will study the relations between geography and literature, as well as

the intertextual game that is woven into several tales of Ondjaki's book.

Keywords: Cartography. Ondjaki. Dream. Memory. Intertextuality.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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RÉSUMÉ

LES CARTOGRAPHIES DES RÊVES SUR LES COINS DE LA MEMOIRE: Une analyse du livre Sonhos azuis pelas esquinas, par Ondjaki

Laize Santos de Oliveira

Orientadora: Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Résumé da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em

Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

Ce mémoire a pour but principal l’analyse du livre Sonhos azuis pelas

esquinas, écrit par Ondjaki, en effectuant une lecture des villes ficcionalisées et

de leurs divers symbolismes. Les représentations du espace et l'influence que les

imaginaires coletives urbains génèrent dans la fiction de l'auteur.

Les espaces fictifs et les personnages qu’y habitent sont l'épicentre de

cette enquête. La thèse analysera les villes et leurs cartographies en tant que

source mémorialiste, lieu de préservation de la tradition et de l'inspiration

littéraire.

Les cartographies de ceux endroits se concentrera sur d’espaces réels,

oniriques et imaginaires ménant a la découverte des multiples villes qui se cachent

au sein de plusieurs contes/rêves de ce livre de Ondjaki.

Les relátions entre géographie et litteráture seront etudiées bien comme

les jeux intertexctuelles tissées entre plusiers contes.

Mots-clés: Cartographie.Ondjaki . Rêve. Mémoire. Intertextualité.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2017

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ___________________________________________________ 14

2. CARTOGRAFIAS LITERÁRIAS: MAPEANDO A ESCRITA DE ONDJAKI

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2.1 Por uma teoria da cartografia________________________________________ 19

2.2 Lugares reais e inventados: a subversão da geografia física ________________ 27

3. AS CIDADES DE PAPEL: DIÁLOGOS INTERTEXTUAIS _____________ 31

3.1 O labirinto das intertextualidades ____________________________________ 31

3.2 Um passeio com Borges pelas esquinas das intertextualidades _____________ 34

3.3 Outras viagens da escrita de Sonhos azuis pelas esquinas _________________ 42

4. ENTRE COR E LETRA: AS CIDADES E O SONHO ___________________ 58

4.1 Os sonhos: para onde nos atrai o azul _________________________________ 58

4.2 Guarda-se o lugar em memórias: deslimites entre sonho e memória _________ 65

4.3 Todos os sonhos do mundo _________________________________________ 75

5. CONCLUSÃO ____________________________________________________ 86

6. REFERÊNCIAS __________________________________________________ 88

ANEXOS ____________________________________________________________ 94

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Deus fez o campo, o homem fez a cidade. William Cowper2

A cidade não é um lugar. É a moldura da vida. A moldura à procura de um retrato, é isso que eu vejo quando revisito o meu lugar de nascimento. Não são ruas, não são casas. O que revejo é um tempo, o que escuto é a fala desse tempo. Um dialecto chamado memória, numa nação chamada infância.

Mia Couto3

2 COWPER, 1885, p. 43. 3 COUTO, 2005, p. 145.

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1. INTRODUÇÃO

Ninguém sabe melhor do que tu, sábio Kublai, que nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve. No entanto, há uma relação entre ambos.

Italo Calvino

Sobre o autor

Ondjaki, pseudônimo criado por Ndalu de Almeida, pertence a nova geração de

escritores angolanos. Nascido em Luanda, capital de Angola, o sociólogo de formação

destacou-se pela sua produção literária conhecida mundialmente, tendo suas obras traduzidas

em diversos idiomas – inglês, francês, alemão entre outros – e tendo sido laureado com

diversos prêmios literários, como os prêmios: Jabuti e José Saramago.

Entretanto, os interesses pessoais de Ondjaki ultrapassam os caminhos literários. O

escritor nutre profundo interesse pelas artes plásticas e pelo teatro – tendo já exposto suas

obras em Angola e no Brasil – somando-se a estas paixões iniciou incursões pelo universo

cinematográfico, concretizando este caminho através da coprodução do documentário Oxalá

cresçam pitangas, de 2006.

Inúmeros são os estudos, sejam no Brasil ou em África, que tratam de suas obras. Foi

com base nestes estudos que pautei minha leitura e análise do livro Sonhos azuis pelas

esquinas, um livro de contos publicado em 2014. Dos vinte contos que constituem o referido

livro, optei pela análise de oito, são eles: “Buenos Aires”, “Budapeste”, “Madrid”, “Gorée”,

“Zanzibar”, “Moçâmedes”, “Massoxiangango” e “Mussulo”.

A escolha destes contos dentre todos para o estudo a seguir baseia-se ademais de uma

escolha afetiva e pessoal desta “mão que escreve”, uma tentativa de destacar aqueles que são

contos-matriz de uma questão a ser levantada nesta dissertação: Intertextualidade, – e para tal

estabelecer um diálogo com Paula Tavares, Borges, o ficcionista, Pär Lagerkvist, entre outros

– sonho e memória conjugados a uma cartografia literária idiossincrática. Longe de desejar

esgotar os estudos sobre o autor ou a referida obra, este estudo tem como objetivo estreitar

laços entre literatura e geografia, a partir de um mundo contemporâneo no qual autor, obra e

leitor estão inseridos.

Luanda é uma cidade partida. Por um lado, mantém tradições antigas, por outro, busca,

cada vez mais, se estabelecer num panorama econômico e cultural dito globalizado. Parte

significativa da literatura do país procura afirmar sua voz e revisitar, criticamente, suas

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tradições. Nesse clima de efervescência literária, novos autores e poetas vêm surgindo, como

é o caso de Ondjaki.

A importância da história para a literatura angolana é irrefutável. A “contação” de

histórias para a construção desse imaginário coletivo e para a preservação das tradições

também é de notório conhecimento. Entretanto, as novas definições de fronteiras e as relações

de política externa, num mundo, cada vez mais, “globalizado”, têm colocado estes valores em

questão. Preservar a tradição, tornou-se sinônimo de resistência.

Esta dissertação de mestrado, intitulada As cartografias dos sonhos nas esquinas da

memória: uma análise do livro Sonhos azuis pelas esquinas, de Ondjaki, tenciona investigar

as relações entre literatura e geografia, ou seja, observar como os espaços, sobretudo os

urbanos, influenciam e são influenciados pela literatura a partir de um estudo da obra de

Ondjaki.. Busca, principalmente, avaliar que trapaças a literatura encontra para os becos sem

saída surgidos neste espaço contemporâneo, em meio à crise da “modernidade”, período em

que um sentimento coletivo de (des)limites de fronteiras cinde o sujeito entre uma identidade

local e cosmopolita.

A viagem iniciática da minha trajetória acadêmica no mundo das literaturas africanas

se deu por intermédio da professora Carmen Tindó. Quando indagada pela professora sobre o

porquê do meu interesse pelo continente, disse que estava ali buscando minha identidade. Será

que há algo em nós, algum movimento da nossa interioridade que não esteja em busca de uma

identidade?

As leituras feitas, as escolhas feitas e também as renúncias estão sempre a tentar

responder perguntas que fizemos a nós mesmos. Desde o primórdio de nossa existência, nos

relacionamos com o mundo através de experiências corpóreas. Mas essas relações nem

sempre são harmônicas, somos feitos das coisas que nos afetam e também existimos de forma

a afetar o mundo em que vivemos.

A busca pela identidade inequívoca e acabada é como a busca pelo não-lugar. Ao se

crer aceder a aquilo que nós somos percebemos que este lugar ideal se liquefez, restando a nós

a árdua tarefa de nos reconstruir.

Ondjaki fez a partir da escrita um novo mapa para sua identidade. Ondjaki, o nome

que era para ter sido e acabou sendo4, uma identidade inserida de viés. Se o nome confere a

existência do ser ou da coisa, a autonomeação marca um novo nascimento.

4 Ondjaki explica a origem do seu nome artístico em entrevista concedida ao programa Roda Viva – Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=lJIrqHFgFQk>. Acessado em: 21 dez. 2016.

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Dando luz a uma identidade, originalmente da escrita, Ondjaki fez de si outro, o da

escrita, ou apagou o eu, Ndalu de Almeida? Que cartografia dá conta da pluralidade de sua

existência?

Sobre esta questão da onomástica, Deleuze e Guattari afirmam:

O nome próprio só vem a ser um caso extremo de nome comum, compreendendo nele mesmo sua multiplicidade já domesticada e relacionando-a a um ser ou objeto posto como único. O que é comprometido, tanto do lado das palavras quanto das coisas, é a relação do nome próprio como intensidade com a multiplicidade que ele apreende instantaneamente. (...). Ora, o nome próprio não designa um indivíduo: ao contrário, quando o indivíduo se abre às multiplicidades que o atravessam de lado a lado, ao fim do mais severo exercício de despersonalização, é que ele adquire seu verdadeiro nome próprio. O nome próprio é a apreensão instantânea de uma multiplicidade. O nome próprio é o sujeito de um puro infinitivo compreendido como tal num campo de intensidade. (DELEUZE et GUATTARI, 1995, p. 39;49)

Sabendo ser o nome de batismo, uma fera já domada, uma apreensão instantânea de

uma multiplicidade, Ondjaki criou pra si um pseudonimo. O pseudonimo passa a ser então, o

verdadeiro nome, o nome que leva a despersonalização, a desterritorialização. O nome

Ondjaki é o campo de intensidade, uno que é também múltiplo.

Ondjaki e Ndalu são duas “essências”5 dentro de uma mesma materialidade. Se por um

lado, Ondjaki é o escritor angolano internacionalmente famoso, ganhador de diversos prêmios

e grande revelação da literatura angolana contemporânea, Ndalu por sua vez, é o nome íntimo,

da família, o nome de batismo, do sociólogo que deixou a África para se auto exilar no Brasil.

Mas será que estas identidades são independentes, duais?

Após a leitura das obras do Ondjaki, conhecemos mais sobre Ndalu, ou temos o

fingimento da intimidade. Vemos o reflexo da pintura, do cinema, das leituras, da sociologia,

da identidade angolana, da escrita em diáspora, do desejo pelo deslocamento, do saudosismo

de um tempo e de um lugar que ainda lhe diz. Esses são os rizomas que multiplamente

conectados formam uma singela cartografia de um lugar da escrita do Ondjaki.

Mas será que estes rizomas se interconectam de forma harmônica? Será que num

mundo contemporâneo em que temos o simulacro dos deslimites, a aparência de um

rompimento de fronteiras e a crença numa globalização em sua máxima potência, é possível

dar conta de uma territorialidade local e íntima? Esta pesquisa de dissertação de mestrado visa

responder esta e outras perguntas.

5 O termo ‘essência’ não foi aqui empregado em alusão a dialética platônica. Essência foi empregada enquanto

elemento central formador do ser.

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Deleuze e Guatari em seu livro Mil platôs ao definirem os primeiros princípios de um

rizoma – conexão e heterogeneidade – afirmam que qualquer ponto de um rizoma é

conectável e deve, por sua vez, ser conectado.

Foi buscando estabelecer conexões entre os rizomas da escrita do Ondjaki que tracei

os caminhos desta pesquisa. A partir da análise dos versos de “escrevo a palavra luanda”,

poema pertencente a um livro anterior, encontramos os temas principais a serem abordados

em nossa dissertação: intertextualidade, sonho e memória. Tais temas estão conjugados a uma

cartografia que é puramente literária, ficcional, mas que também parte do factum. Assim,

pensamos poder evidenciar que a escrita de Ondjaki consegue revelar, através do influxo dos

sonhos, uma tensão entre tradição e contemporaneidade, entre local e cosmopolitismo. A

partir desses três temas-nucleares, conseguimos estruturar nossa dissertação em três capítulos:

a) O primeiro buscará traçar a trajetória de análise cartográfica proposta nesta

dissertação, a partir de uma leitura de Deleuze e Guattari, este capítulo buscará

salientar as relações entre literatura e geografia, e propor a ideia de uma escrita

cartográfica.

b) O segundo focalizará as intertextualidades e intratextualidades presentes em

contos do livro Sonhos azuis pelas esquinas (2014). Baseando-nos em Antoine

Compagnon, buscaremos provar que toda escrita é, na verdade, uma reescrita e

que as múltiplas intertextualidades em Ondjaki evidenciam sua face

cosmopolita por nós deflagrada;

c) O terceiro efetuará uma análise da atmosfera onírica, interpretando as

memórias e os sonhos que emergem num entrelugar, ou seja, num espaço entre

o sono e a vigília. Utilizando a teoria de Ecléa Bosi, procuraremos comprovar

que o passado “coexiste”6 no presente através de um inconsciente maquínico,

expressando a necessidade de o sujeito revisitar sua origem e suas tradições.

Nossa hipótese é a de que o sujeito contemporâneo é um sujeito múltiplo e cindido,

fraturado entre o seu desejo de ser um cidadão do mundo e cidadão nacional (no caso deste

estudo, ser um cidadão angolano), que deseja valorizar sua identidade local e sua origem.

Intentamos, assim, ao final de nossa dissertação, comprovar que o desejo de

contemporaneidade altera os moldes das identidades individuais e coletivas, utilizando para

tal a escrita de Ondjaki, que revela a preocupação com a preservação dos valores nacionais,

6 “O passado coexiste com o presente que ele foi; o passado se conserva em si, como o passado em geral (não-cronológico); o tempo se desdobra a cada instante em presente e passado, presente que passa e passado que se conserva. ” (DELEUZE, 2007, p. 103)

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das origens africanas bem como sente uma sede de mundo, uma urgência de romper

fronteiras.

Buscaremos por fim demonstrar que ambos os anseios dessa escrita podem conviver

de forma harmônica, desde que o cosmopolitismo não se torne uma forma de globalização

hegemônica de uma atmosfera de poder, mas que, a partir do conhecer o outro, possa gerar

uma melhor compreensão da própria sociedade angolana e de si mesmo.

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2. CARTOGRAFIAS LITERÁRIAS: MAPEANDO A ESCRITA DE ONDJAKI

2.1 Por uma teoria da cartografia

Toda cidade tem seus mapas. Cartografias concretas e imaginárias combinadas

harmoniosamente. E cada vez que evoco Luanda é uma Luanda prismada que se materializa

diante dos meus olhos. Cidade furta-cor ora se revela reino de Nzinga, ora se esconde nos

becos de um musseque.

Embora jamais tenha ido a Luanda, já estive em cada pedaço desta terra. Visitei o

Mussulo, já andei de candongueiro e ainda hoje visito o mercado Roque Santeiro, extinto há

alguns anos. Mas toda essa viagem só é possível através da literatura, lugar das cartografias

inventadas.

Como já afirmava Milton Santos, o que compõe a cidade não é apenas e

necessariamente a paisagem geográfica, mas as relações estabelecidas neste e com este

espaço. Baseando-se nas teorias de Milton Santos, a crítica Tânia Macedo tece a afirmação:

Esse ponto de partida parece-nos interessante à medida que as cidades são examinadas não apenas enquanto paisagem geográfica, mas como espaço (para usarmos aqui uma definição cara à geografia contemporânea), e, portanto, sua função, sua funcionalidade e o imaginário de que as mesmas são investidas contam decisivamente em seu desenho. (MACEDO, 2008, p. 31)

Literatura e cidade sempre se imiscuíram e se enriqueceram, mas foi a modernidade e

as flores do mal que nos trouxeram para dentro da cidade. Na persona de um flâneur, fomos

descobrindo a cidade que nos habita, caminho sem volta. Para conhecer os (des)caminhos a

que a literatura nos leva não é preciso bússola, basta compactuar com a ficção.

Nos caminhos angolanos, “contar histórias” esteve sempre presente. O que se iniciou

através da oralidade e caminhou em círculos temporais na voz de um mais velho tornou-se na

atualidade uma necessidade inconsciente e coletiva; ainda hoje, os povos angolanos vivem de

contar histórias; a arte de narrar resistiu, transgrediu e transcendeu o tempo.

Sobre esta relação da sociedade com o narrar e como isto se reflete na literatura,

Ondjaki afirma:

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Luanda é uma cidade cheia de histórias. (...). É uma cidade onde as pessoas estão viciadas em histórias, há uma teatralidade muito grande. Acho que Luanda é de facto uma cidade de histórias, uma cidade onde normalmente a própria realidade escreve melhor que os escritores. E são os escritores que seguem a realidade tentando entender um pouco de como poderão trazer essa realidade às histórias. Uma cidade de ficção, uma cidade de fantasia. O povo angolano sofreu muito por várias razões – a guerra e outras privações –, mas nunca perdeu essa capacidade de sonhar. (ONDJAKI, 2009, site7)

A produção de Ondjaki tem por desejo contar as estórias que da cidade evolam,

tornando sua escrita, uma escrita geográfica, mas uma geografia articulada, a geografia da

memória, dos afetos, dos lugares por onde a poesia exala: e, se, num instante, revela o local,

em outro transgride os limites da geografia física. É Luanda, o mundo e lugar nenhum.

Escrevo a palavra luanda veio a melodia e me soprou a noite pelas entranhas aden- tro — eu era um peixe-lua solto nos acordes dessa viola tonta. sorri com os dedos da mão. quase matei um mosqui- to que passava [ mosquitos tem quantas vidas...?] a cidade está dormir a esta hora [ a cidade sonha...?] todas pessoas muitas todas histórias bonitas amanhã vão acontecer de novo [a beleza das estórias gasta?] Luanda és uma palavra deitada nas cicatrizes de uma guerreira bela. (ONDJAKI, 2009, p. 42)

A dimensão geográfica dessa poética apresenta-se como um aparente paradoxo, pois,

ao mesmo tempo que rompe barreiras geográficas, está repleta de traços íntimos, em que

perpassam os caminhos da identidade e alcançam Luanda em seu nascimento como nação

independente.

Paradoxo aparente, pois a cartografia criada por Ondjaki em suas obras é o que o

próprio poeta descreve como a “geografia-literária”: os lugares evocados só se sustentam

enquanto vestígios de uma literatura contemporânea, na qual os limites se esbarram e se

confundem até quase não existirem.

Afinal, o que dá vida a cidade são as relações humanas e as relações do homem com o

7 Entrevista concedida ao portal Saraiva Conteúdo. Disponível em: <http://www.saraivaconteudo.com.br/Materias/Post/10079>. Acessado em: 02 mar. 2015.

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espaço e tempo, sempre modificando-os e sendo por eles também modificado. Tendo ciência

disto, a chamada nova geografia cultural8 se propôs a analisar o topos e as ações do homem

nesses espaços.

Desde o surgimento da nova geografia cultural, nos anos noventa, tendo como foco de

análise as interferências culturais no espaço, a exemplo da globalização e a ocidentalização, a

interdisciplinaridade tornou-se ainda mais evidente, estreitando os laços entre literatura e

geografia pois, ainda que ficção, a escrita literária reflete e refrata os acontecimentos de seu

tempo.

Através da literatura – e um exemplo mais claro disso é a literatura regionalista

produzida no Brasil por expoentes como Raquel de Queiroz – é possível entender a seca

nordestina e suas consequências do ponto de vista humano. Há em O quinze, a descrição de

uma geografia física, a partir do relato do chão rachado, do clima árido mas, o que permanece

de forma mais pungente enquanto documental é a riqueza de experiências humanas numa

paisagem de secura é o quanto o espaço modifica as relações humanas. Em Angola, a escrita

de Luandino Vieira descreve com maestria a atmosfera onde se desenvolvem as ações de suas

“estórias”. Somos transportados para o calor insuportável de uma cubata, sentimos o cheiro de

chuva fértil em chão de barro. É a literatura construindo mapas.

Partindo dos pressupostos da geografia cultural visando alargar tais conceitos e nos

apropriar de tais conceitos técnicos, num movimento de antropofagia, desenvolvemos esta

pesquisa com o suporte teórico de nomes como Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro e

Franco Moretti. Este, em sua análise do romance europeu a partir de uma visão cartográfica

evidencia o seguinte:

Um atlas do romance. Por trás dessas palavras, há uma idéia muito simples: a de que a geografia não é um recipiente inerte, não é uma caixa onde a história cultural “ocorre”, mas uma força ativa, que impregna o campo literário e o conforma em profundidade. Tornar explícita a ligação entre geografia e literatura, portanto – mapeá-la: porque um mapa é exatamente isso, uma ligação que se torna visível -, nos permitirá ver algumas relações significativas que até agora nos escaparam. (MORETTI, 2003, p. 13).

Moretti então assume a existência de uma profunda influência do geográfico sobre o

literário (e vice-versa) e nos coloca enquanto leitores na posição de cartógrafo. As relações já

estão lá em potência, a ligação já existe, nos resta tornar estas relações visíveis. O pesquisador

8 Ver Atlas do romance europeu: 1800-1900, de Franco Moretti e O mapa e a trama, de Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro.

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é um cartógrafo ao delinear alguns dos caminhos possíveis no projeto de escrita de um autor.

A monografia de Naiara Vinaud é um importante instrumento de navegação por entre

os mares da geografia cultural e literária, em seu capítulo intitulado “Quando a geografia

encontra a literatura” a autora traça todo o percurso dessa área de pesquisa da geografia – a

geografia cultural – sublinhando os autores essenciais desse campo.

Em seu estudo, Naiara disserta sobre a importância da literatura afirmando que esta é o

meio de entender a percepção que um indivíduo tem de seu mundo, a forma como este

experimenta e interage com o mundo.

Naiara cita ainda o geógrafo Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, em seu livro O

mapa e a trama, texto em que o autor define a trama como metáfora da condição humana.

O sustentáculo dessa concepção aparentemente estranha (ou anticientífica), advinda daquilo que se atribui à “revelação literária”, é a natureza holística identificável

quando a literatura atinge foros de “universalidade”, ou seja, quando ela transcende a

um caso particular de uma dada região – fisicamente vária – para falar da “condição

humana” – basicamente una. (MONTEIRO, 2002, p. 15)

O mapa é a trama criada pelo escritor, ou seja, o escritor também constrói mapas, estes

mapas da escrita são feitos das memórias vividas e inventadas transformando-se na invenção

de um novo lugar ou até mesmo de um não-lugar, como veremos adiante.

Deleuze e Guattari em seu livro intitulado Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia,

que no Brasil tornou-se uma coletânea de cinco volumes, abordam filosoficamente as

definições contemporâneas de cartografia, que em muito coaduna com a leitura de uma

cartografia essencialmente literária, como a que propusemos aqui.

Entre os muitos princípios e conceitos lançados, alguns a partir de uma “antropofagia”

de termos da biologia para a filosofia, Deleuze e Guatari criaram o conceito de rizoma e de

trama. O rizoma é, como afirma o tradutor de Guattari para o alemão, Joseph Vogl9, um

labirinto sem começo nem fim. Como um abismo abissal, um rizoma não propõe um caminho,

uma direção, uma saída. A escrita cartografica é uma escrita rizomática, todas as partes do

mapa são interconectáveis, não há privilégio e muito menos bússula.

O que une as instâncias dos rizomas assim como o que une um viajante a um destino é

o desejo de movimento. A introdução de Mil platôs salienta para a diferença entre o que seria

uma árvore da definição dada de um rizoma. Enquanto a árvore é enraizamento e hierarquia

9 VOGL, Joseph et KLUGE, Alexander. <https://www.youtube.com/watch?v=2k-wWziPk-g>. Acessado em: 21 dez. 2016.

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entre ramos, caule e tronco, o rizoma permanece subsolo e em constante trocas.

Outra forma encontrada pelos filósofos Deleuze e Guatari para definirem as relações

rizomáticas foi o conceito de rede. A rede é um entrelaçamento de fios que formam uma

coesão dinâmica mas, enquanto rede, o rizoma não possui uma corporeidade, numa analogia à

informática, o rizoma é a rede cibernética, uma estrutura subterrânea e invisível responsável

por trocas diversas num sistema ordenado e inrterconectado.

A trama, anteriormente citada na definição de Carlos Augusto Monteiro, é teorizada de

forma semelhante em Mil platôs. Para os autores, a trama é o fio condutor capaz de promover

os agenciamentos entre os rizomas.

Os fios da marionete, considerados como rizoma ou multiplicidade, não remetem à vontade suposta una de um artista ou de um operador, mas à multiplicidade das fibras nervosas que formam por sua vez uma outra marionete seguindo outras dimensões conectadas às primeiras. "Os fios ou as hastes que movem as marionetes — chamemo-los a trama. (DELEUZE et GUATTARI, 1995, p. 15)

Os conceitos criados por Deleuze e Guattari servirão de base em nossa análise, bem

como as tensões que o modelo cartográfico propõe.

A dissertação de mestrado de Sara Pozzato se propôs a fazer – a partir de uma análise

de Tânia Macedo sobre a trajetória da literatura angolana desde sua origem – um caminho

semelhante ao proposto nesta pesquisa embora culminando em resultados diferentes, visto que

há diferenças numa escrita em diáspora. Sara se propôs a analisar as cartografias da escrita de

Luandino Vieira, com ênfase no livro A cidade e a Infância.

Ainda que a independência política e territorial tenha se concretizado, Angola, de uma forma geral, ainda enfrenta diversos problemas: a má divisão de renda, os conflitos internos, o recente processo de urbanização e sua falta, questões básicas, relativas à saúde, à educação e ao saneamento. Esse estado de falta influenciou e continua refletindo na obra de muitos escritores, tanto daqueles da primeira geração como Alda Lara quanto dos mais novos como Ondjaki. (POZZATO, 2013, p. 34)

Em sua pesquisa, Sara Pozzato salienta características da literatura angolana pós-

independência que encontraremos em Ondjaki: O deslocamento espacial, a fusão temporal, a

fratura identitária, a reinvenção do passado, a reinvenção linguística e a narrativa fantástica/

insólita. Para Pozzato, esses são mecanismos encontrados para “enfrentar o real”.

Em “escrevo a palavra luanda”, esta geografia se esbarra com a terra natal do poeta,

com a descrição de uma noite em Luanda, na qual o eu-lírico desfruta do som do violão que

ele mesmo toca; ele e o violão são agentes e pacientes da música, ora um toca e o outro se

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deixa embriagar pela música e vice-versa. Um passa os dedos por entre as cordas e o vilão

sopra música por entre suas entranhas, numa visceralidade poética capaz de transportar o

leitor para esta noite e de adentrar o sopro do violão nas vísceras de quem lê.

A viola está também entorpecida, tonta, envolvida pelos dedos que a tocam, pela

melodia que dela mesmo provém e pela cena desvelada por esta noite. O eu-lírico por sua vez

é um peixe-lua solto a se movimentar quase involuntariamente, absorto pela melodia, pela

noite, por Luanda. E deleitando-se, sorri, mas o faz com as mãos, com os dedos que dedilham

a viola. Perdido pela melodia, o eu-lírico acidentalmente quase mata um mosquito, um ser que

perambula pela cena e pelo poema. E se indaga quantas vidas esses insetos têm. Já num quase

despertar (e o quase despertar é também metáfora pungente), o eu-lírico começa a olhar ao

redor e perceber que a cidade “está a dormir”. E logo acrescenta: “será que a cidade sonha...?”

Essa indagação tipicamente juvenil, mas profundamente lírica, ganha dimensões

locais, ao inferirmos, a partir de certa reflexão, que um país em guerra não sonha com certa

facilidade, são sonhos difíceis, são noites difíceis e não menos belas por seu contexto.

O sujeito lírico reflete a condição da cidade, do ponto de vista interno, inserido nesta

cidade, nesta Luanda que descreve. Será que há no espaço da cidade, geográfico ou

metafórico, lugar para sonhar? Será que há espaço para a utopia?

Esta reflexão da possibilidade do sonho vai da significação mais simples ao desejo

utópico de um futuro próspero para uma cidade recém-nascida, a partir da perspectiva ampla,

universal, descreve “a” cidade, a bela guerreira que carrega desde seu nascimento uma

cicatriz, uma fissura, a “luanda” com letra minúscula, a cidade íntima das memórias do poeta.

O eu-lírico aproxima o sonhar das cidades do sonhar a cidade em seu futuro como

mulher/terra independente.

As cidades dormem, mas será que sonham? Metonimicamente referindo-nos aos seres

que habitam as cidades, quando os vaga-lumes urbanos se apagam, será que estão todos a

dormir e sonhar? Esses versos contemplativos nos remetem principalmente ao universo

infantil, em que as crianças, antes de dormir, passam horas a pensar e indagar sobre as mais

variadas coisas, a filosofar, a poetizar a vida.

Os últimos versos revelam a cidade por uma de suas faces: a Luanda pela perspectiva

da guerra. Luanda é uma palavra que adormece por entre as cicatrizes de uma luta sem fim.

E a guerra é um dos fatores transformadores do corpo da cidade, como afirma

Raymond: “Numa época de guerra, crescimento populacional e crise social internacional, a

imagem da cidade sofreu mais um desenvolvimento acelerado". (WILLIAMS, 1990, p. 371)

Luanda é, contudo, uma guerreira bela. Uma cidade que, mesmo em sua natureza

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bélica, preserva a sua beleza através dos seres que a habitam e dessas histórias que estão

sempre a se repetir.

Assim como o eu-lírico se indaga, nós também nos indagamos. Será que a beleza

permanece numa história que está sempre a se repetir? A incerteza e o cansaço de uma rotina

bélica podem intentar tirar o brilho das retinas luandenses e as histórias podem perder sua

beleza, mas a cidade não pode deixar de sonhar e acreditar que é capaz de modificar o curso

deste círculo vicioso. Acordar sem deixar de sonhar.

O poema revela a cidade em duas de suas potencialidades: a cidade numa perspectiva

macroscópica, e nesta podemos identificar as cidades do mundo; e a cidade num recorte

geográfico em que só cabe Luanda. O plural e o particular.

Há uma forte confluência do particular para o universal e vice-versa, como marca

recorrente na poética de Ondjaki. O poema parte de um cosmo particular, da noite do eu-

lírico, na cena ao violão, vai em direção à cidade, às cidades, às pessoas e termina em Luanda.

Ondjaki sempre visa trabalhar o eu sem negligenciar o outro, o particular sem deixar de ser

universal, ou transnacional, como preferem denominar alguns pesquisadores.

O título “Escrevo a palavra luanda” revela os andaimes do artifício, o fingimento

acaba, ou finge que acaba. Já no título uma outra Luanda é revelada. A Luanda de papel, a

Luanda por escrito, deitada, que só existe enquanto discurso, enquanto imaginário. A

cartografia da memória do poeta.

A partir da escrita de um tempo e espaço do “antigamente”, de uma noite que “veio” e

passou, de um tempo em que o sujeito poético “era” e não mais é um peixe-lua, Ondjaki

revela a cidade (Luanda) sempre nostálgica e pura sob um espectro infantil. Luanda é um

cosmo de magia, onde nem a mais dura das realidades é capaz de suplantar o brilho de

tradições que esta cidade apresenta.

Este antigamente, figura recorrente da poética de Ondjaki, remete-nos às histórias

angolanas, mais especificamente às estórias “caluandas” do escritor Luandino Vieira. Este

escritor é uma das vozes que ecoam na poesia de Ondjaki.

A infância é em Ondjaki o eu que recorda, é ponto de partida destas narrativas

memorialísticas. É na infância que o escritor constrói sua primeira identidade e é por meio

dela que vai buscar enxergar a busca da multifacetada identidade nacional.

Dessa forma, podemos inferir que “dentro desta ampla mobilidade, que é a história

cotidiana de nosso mundo, a literatura continua a corporificar a variedade quase infinita de

experiências e interpretações” (WILLIAMS, 1990, p. 385). Ou seja, embora a literatura não

tenha a função de veículo do cotidiano, é capaz de (re)interpretá-lo e transformá-lo.

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A escrita do poeta angolano Ondjaki é intencionalmente esta literatura engajada com o

real e de viés utópico, tendo como crença o poder transformador de realidades que a literatura

também possui. A literatura em sua polivalência é sonho possível e também uma “babel

feliz”. (BARTHES, 1996, p. 10)

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2.2 Lugares reais e inventados: a subversão da geografia física

O mapa de uma cidade é estático, como uma fotografia de uma cidade vista de cima, o

mapa é uma carta inerte e prismada. Entretanto, a cidade representada pelo mapa é puro

movimento e transformação. Um mapa nunca compreende a totalidade do que representa, é

símbolo.

Assim como esta geografia física de que dá conta um mapa, a literatura também nos

apresenta um prisma de cidade. Sem a obsessão de uma representação fidedigna da cidade, a

literatura subverte a inércia do mapa, dando mobilidade a cidade através da trama, do

desenvolvimento e das relações que perpassam a cidade.

A geografia física tem por principal anseio a representação dos topos existentes,

conferindo portanto um estatuto de realidade, de factual. A literatura nos apresenta os topos

reais transvertidos pela memória e imaginação. Transvertidos também pela utopia, pois, os

não-lugares também estão presentes na cartografia literária.

Em Sonhos azuis pelas esquinas, temos os mais diversos tipos de lugares

representados. O lugar que tem como ponto de partida um vestígio de factual, como a cidade

da infancia reveladora de uma Luanda em eterna auto-construção, bem como uma cidade

utópica que parte de uma experiência mística e íntima.

A geografia por sua vez, também possui seu caráter ficcional quando faz uso de

conceitos abstratos para dar conta de relações políticas existentes no mundo. Meridianos,

trópicos e linhas imaginárias que conferem a imaginação um estatuto de factualidade.

Um destes conceitos abstratos usados pela geografia é o conceito de Null island10,

como a toponímia nos leva a crer, trata-se de um não-lugar, uma ilha inexistente. O conceito

de null island foi criado para conferir existência a uma ilha ficcional que se localizaria

próxima ao golfo da Guiné, foi criado com o único objetivo de orientação cartográfica. O Null

Island é um lugar ficticio representado por uma bóia em mar aberto, serve como orientação de

satélites. É portanto, um não-lugar que nos dá a direção.

Em Ondjaki, encontramos também uma null island, ou seja, um lugar ficcional –e

10 ST.ONGE, Tim. Null Island is One of the Most Visited Places on Earth. Too Bad It Doesn't Exist The ocean spot is the center of the world's geocoded map mistakes. In: Atlas obscura, 09 de maio de 2016. Disponível em: <http://www.atlasobscura.com/articles/null-island-is-one-of-the-most-visited-places-on-earth-too-bad-it-doesnt-exist>. Acessado em: 21 dez. 2016.

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todos os lugares da literatura o são – que não tem um parâmetro correlato na realidade.

Alcunhamos nesta dissertação um não-lugar para o lugar apenas acessível através de Sonhos

azuis pelas esquinas, assim podemos definir “Massoxiangango”.

O viajante que chega a “Massoxiangango” cartografa a cidade com o olhar e com o

corpo, passa os olhos por entre as montanhas, assiste o espetáculo dos seres que habitam esta

terra, sente o vento, percebe um céu azul e limpo em contraste com a escuridão da montanha e

se deixa contemplar.

Esta cidade marca-se sobretudo pelo deslocamento não apenas dos viajantes que

chegam como dos próprios seres da cidade. Ser em “Massoxiangango” é narrar. E esta

narrativa se tece com os pés, com as mãos, com o corpo.

A cidade essencialmente feminina narra suas dores e marca seus enraízamentos pelo

bailado. A dança é portanto, identidade.

O corpo movia o mundo. Esse corpo com mil crianças dentro dele, e as suas bermas, e o seu som surdo, e as suas mãos aladas, pontiagudas, sibilantes. Gritavam as crianças dentro daquele corpo e ainda assim – tudo era mansidão. Desejei que chovesse porque a qualquer momento eu estaria prestes a chorar. (ONDJAKI, 2014, p. 126)

A força do deslocamento desse corpo feminino traz consigo toda a energia criadora,

gritavam a gravidade dos sons e seus silêncios, gritavam as gravidezes e suas bermas.

Multidão e calmaria, som e fúria, o paradoxo constituindo a identidade da mulher.

Em todos os contos a presença feminina se mostra se não mais numerosa que a

masculina, mais evidente e marcante. Personagens secundárias que culminam por roubar a

cena. Seja uma velha muito velha em “Santiago de Compostela”, seja a moça do vestido

encarnado em “Budapeste” ou a misteriosa mulher em “Giurgiu”. Todas essas personagens

marcam as silhuetas das cidades com mistério e erotismo.

O conto “Massoxiangango” foi publicado no jornal O país junto com uma ilustração

de Vânia Medeiros11. Na representação pictórica de Vânia, uma figura feminina dança a

mover braços e pernas em multicores enquanto se permite derrarmar lágrimas.

Em “Massoxiangango” temos a primeira impressão de se tratar de uma cidade de

mulheres, pois apenas elas são narradas. Ou talvez o olhar do viajante só seja capaz de

enxergá-las, apenas elas causam relevo na geografia da cidade. A primeira suspeita se

confirma ao final do conto num diálogo entre “Dissoxi” e o viajante de “Massoxiangango”.

11 Ver figura 1 do anexo.

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–Sabe o que é “massoxi”? – agora também a voz dela dançava. –Lágrimas. –E “massoxiangango”? –Isso eu não sei. –É o lugar das mulheres chamadas Dissoxi. (ONDJAKI, 2014, p. 128)

A personagem principal do conto chama-se “Dissoxi”, uma auto-referência, que será

trabalha no capítulo das inter e intratextualidades. “Dissoxi” ao dissertar sobre a dança, afirma

que a dança é como “uma fala que não sabemos terminar” (ONDJAKI, 2014, p. 126). Assim

como a definição de rizoma para Deleuze e Guattari, para “Dissoxi”, o corpo está em um

movimento sem início nem fim, numa constante comunicação. “Ela sorri. Não para o corpo. O

corpo não pode parar. Não sabe. Não quer.” (Idem, ibidem)

O corpo em “Massoxiangango” é a força que move o mundo. Tudo neste conto está

em movimento, até a fala é também uma dança das letras e sons. O corpo em movimento é

metonímia dessa cidade. Em constante confluência, o corpo da cidade está a contar uma

história para o viajante. Uma história de dor não completamente apreensível mas uma dor

afetiva que leva o narrador as lágrimas. “Desejei que chovesse porque a qualquer momento eu

estaria prestes a chorar.” (ONDJAKI, 2014, p. 126)

O narrador/personagem deseja a confluência entre o seu corpo e o corpo da cidade.

Assim como “Dissoxi”, o narrador viajante quer ser “enraizamento e temperatura”

(ONDJAKI, 2014, p. 128) Há um desejo de pertencimento, de enraízamento e territorialidade

Quis agarrar o momento na ponta dos meus dedos trémulos. Quis, com o vento, ser o momento. Mas eu era, como sempre, um mero espectador. Quem não toca, não dança, não se deixa embalar, está de fora. Julgava sentir o que apenas podia olhar. Julgava apreender o que apenas contemplava. (ONDJAKI, 2014, p. 127)

Michel Onfray, em seu livro Teoria da viagem: uma poética da geografia, divide os

seres humanos em dois tipos, aos moldes dos personagens bíblicos. O pastor e o camponês. O

primeiro tem em si o desejo de mundo, vive como andarilho com seus rebanhos a desbravar o

mundo. O segundo sente o desejo da terra, vive a povoar e construir a sociedade.

Para representar estes dois modos de estar no mundo, o relato genealógico e mitológico criou o pastor e o campones. Estes dois mundos apoiam-se e opõem-se. Ao longo dos tempos, servem de pretexto teórico a questões metafísicas, ideológicas e, mais tarde, políticas. A oposição entre cosmopolitismo dos viajantes nómadas e nacionalismo dos camponeses sedentários atravessa a história, do Neolítico às formas mais contemporâneas do imperialismo, (...) universal. (ONFRAY, 2009, p. 10)

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Para Deleuze e Guattari, o desejo de enraizamento é uma construção social de uma

esfera de poder12. O nomadismo, por sua vez, é a máquina de guerra contra os tentáculos do

governo. Deslocamento é luta, é a forma de resistir à hegemonia de poder.

Os nômades inventaram uma máquina de guerra contra o aparelho de Estado. Nunca a história compreendeu o nomadismo, nunca o livro compreendeu o fora. (...). É pretensão do Estado ser imagem interiorizada de uma ordem do mundo e enraizar o homem. (DELEUZE et GUATTARI, 1995, p. 35)

Entretanto, a complexidade que abarca a existência humana nem sempre dá conta de

um binarismo epistemológico. Ainda que haja indivíduos ligados a terra e dedicados a serem

metáforas dos camponeses, há também o ser cindido entre o desejo de ir e o dever de ficar. Ou

mais, entre o desejo de ir e também ficar.

A escrita cartográfica de Ondjaki assume seu viés cosmopolita que quer guardar o

mundo através da narrativa, e nesta ânsia de ler o mundo vemos as múltiplas interferências

externas, múltiplas intertextualidades.

Entretanto, a escrita de Ondjaki deixa escapar também um desejo de enraízamento,

como podemos observar através do seu desejo de confluência com o espaço13, através das

memórias infantis em terra natal e através do fluxo da máquina desejante do inconsciente que

nos desvela em sonhos um desejo de territorialidade, como será abordado nesta pesquisa.

12 Vale ressaltar que os autores são contra o binarismo, preferindo a multiplicidade. O nomadismo se refere sobretudo as ideias 13 Ver tese de Andréa Muraro, “Luanda: entre camaradas e mujimbos”, sobre o espaço e discurso nas narrativas

angolanas de Ondjaki e Manuel Rui.

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3. AS CIDADES DE PAPEL: DIÁLOGOS INTERTEXTUAIS

3.1 O labirinto das intertextualidades

Diálogo consigo mesmo com a noite os astros os mortos as idéias o sonho o passado o mais que futuro

Carlos Drummond de Andrade

Toda escrita é uma escrita em diálogo. A escrita dialoga com as variadas tradições,

seja para ecoá-las ou desconstruí-las; a tradição é o alicerce da literatura. Sobre esta colcha de

retalhos que é a intertextualidade, nos apoiaremos no que diz a filósofa Júlia Kristeva:

(...) todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade instala-se a de intertextualidade, e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla. (KRISTEVA, 2005, p. 68)

Drummond em “O constante diálogo” teoriza a intertextualidade em forma de poema.

Tudo é dialogo e até o silêncio nos fala. Dialogamos, com os mortos, com as ideias, com o

passado, com os sonhos.

A intertextualidade se divide em três principais formas encontradas numa obra, são

estas: citações, plágios e alusões. Entretanto, a sua percepção e compreensão dependem de

uma relação texto e extratexto, de uma relação autor – texto – leitor.

Deleuze e Guattari afirmam em Mil platôs que um livro só existe enquanto

agenciamento, enquanto conexão com outros “corpos sem órgãos”. O livro é uma maquina

literária.

Considerado como agenciamento, ele está somente em conexão com outros agenciamentos, em relação com outros corpos sem órgãos. Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. (...). Fomos criticados por invocar muito freqüentemente literatos. Mas a única questão, quando se escreve, é saber com que outra máquina a máquina literária pode estar ligada, e deve ser ligada, para funcionar. Kleist e uma louca máquina de guerra,

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Kafka e uma máquina burocrática inaudita... (DELEUZE et GUATTARI, 1995, p. 11)

Para Júlia Kristeva, foi a partir dos estudos de Mikhail Bakhtin que se tornou possível

desconstruir a tese dos formalistas russos de uma análise textual que cerceie a crítica e a

interpretação apenas a partir de elementos textuais, desconsiderando tudo aquilo que for

biográfico ou paratextual, não há, portanto, “entrelinhas”.

Segundo afirma Kristeva, Bakhtin inseriu uma linha de pensamento que dinamiza as

noções estruturalistas, considerando a palavra literária, não mais em sua inércia, mas a partir

de relações e cruzamentos textuais.

Essa dinamização do estruturalismo só é possível a partir de uma concepção segundo a qual a palavra literária não é um ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto cultural atual ou anterior. (KRISTEVAR, 2005, p. 66)

Bakhtin insere, portanto, a história nessa análise. Todo texto possui uma época da qual

fala, um contexto em qual se insere, uma sociedade que representa.

O texto também é capaz de transcender a linearidade histórica, a partir da interação do

leitor com a obra, inserindo esta em sua realidade presente, o leitor transforma a leitura

diacrônica em sincrônica ao fazer um recorte deste tempo e levá-lo para o seu tempo de

leitura.

Kristeva define três dimensões espaciais com as quais um texto dialoga: o sujeito que

escreve (autor), o destinatário (leitor) e os “textos exteriores” (intertextualidade).

Considerando a partir disso que a palavra pertence “horizontalmente” tanto ao leitor quanto ao

escritor e verticalmente tanto à sincronia quanto à diacronia, texto e contexto.

Compagnon, em seu texto “Ilusão referencial e intertextualidade” traça o percurso do

termo intertextualidade desde sua alcunha por Júlia Kristeva, num seminário em Paris,

calcando-se em ideias de Bakhtin até os questionamentos ao dialogismo bakhtiniano por parte

de outros autores.

Compagnon por sua vez afirma que a intertextualidade está tanto no texto enquanto

potência a ser descoberta como no leitor, que a partir de suas vivências, seu conhecimento

enciclopédico atua revelando novas interações, conscientes ou inconscientemente postas pelo

autor no texto. O autor conclui afirmando que a obra é aberta, “senão ao mundo, pelo menos

aos livros, à biblioteca. (COMPAGNON, 1999, p. 111)

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Utilizando, portanto, esse conhecimento enciclopédico que possuímos como bagagem,

não podemos nos remeter às bibliotecas sem lembrarmos de Jorge Luís Borges. A biblioteca

de Babel proposta por Borges seria aquela capaz de abrigar toda a forma de conhecimento já

existente.

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3.2 Um passeio com Borges pelas esquinas das intertextualidades

Curiosamente, uma anedota da história pessoal de Borges14 está ligada à

intertextualidade. Como um jogo irônico que a vida criou de forma a balançar as estruturas

literárias, conhecemos o caso da falsa tradução de Oscar Wilde atribuída a seu pai. O texto em

questão foi o conto do irlandês denominado El príncipe feliz, publicado no jornal El país

sobre a autoria de Jorge Borges, quando na verdade havia sido traduzido por seu filho de

apenas nove anos.

Acredita-se que a partir dessa confusão, o autor tenha adquirido especial prazer em

quebrar as regras de autoria do jogo ficcional. A ficção Borgeana faz uso de constantes

diálogos, abusa das múltiplas intertextualidades literárias, e sobretudo faz delas jogo irônico

ao criar em suas obras, referências externas que não existem, ou melhor só existem no próprio

texto literário. Ficcionalizando a estrutura literária que é a intertextualidade.

Borges almejava em suas obras o desaparecimento do autor. Se por um lado desejava

o apagamento dessa mão que ficcionaliza, por outro lado não pôde controlar a ficção de si

mesmo, por outras mãos. Referência literária em muitas obras, instaurador, portanto, de uma

nova forma de tradição literária, a figura de Borges tornou-se personagem de ficção.

Assim como Humberto Eco em O nome da Rosa criou para representar Borges, um

monge apaixonado por sua labiríntica biblioteca, outros poetas e ficcionistas também optaram

por revelar essa referência que o escritor argentino se tornou na escrita contemporânea. Caso

de Ondjaki, em diversas obras, a exemplo do poema “Personagem” no livro Materiais para

confecção de um espanador de tristezas e do livro Sonhos azuis pelas esquinas.

O primeiro conto do livro nos leva até a cidade de Buenos Aires, não exatamente à

geografia literal desta cidade, mas a cartografia poética unicamente presentificada neste conto

pelo encontro com o personagem e com as simbologias da escrita de Borges.

A pista para o universo Borgeano está na ambientação dos contos: o espaço onírico15.

Este espaço, caro ao escritor argentino, autor de O livro dos sonhos, é um espaço

14 A figura a que aludimos nesta análise intertextual é a de um Borges ficcionista e ficcional, distanciando-nos da representação política que este possuiu em vida. 15 Vale ressaltar que o conto “Mussulo” se apresenta mais como uma rememoração em vigília, destoando, portanto, dos demais contos do livro. A temática do onírico será pormenorizada no capítulo 4, intitulado “Entre

cor e letra: as cidades e o sonho”

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memorialístico, uma escrita memorialística que atormenta, ou parafraseando Borges, instaura

um gênero literário pois, o sonho é o mais antigo, e nem por isso menos complexo, gênero da

literatura. A temática do onírico será aprofundada no capítulo 4, entitulado “Entre cor e letra:

as cidades e o sonho”.

Uma leitura literal da metáfora de Addison poderia conduzir-nos à tese perigosamente atraente de que os sonhos constituem o mais antigo e o não menos complexo dos gêneros literários. Esta curiosa tese, que não nos custa nada aprovar para a boa execução deste prólogo e para a leitura do texto, poderia justificar a composição de uma história geral dos sonhos e de seu influxo sobre as letras. (BORGES, 1982, p. 4)

O influxo dos sonhos nas letras, ou melhor, a escrita dos sonhos, é de certa forma,

engodo literário, ficção dentro da ficção, pois sabemos, a escrita se produziu em vigília, ou

pelo menos neste entrelugar entre sonho e vigília.

Toda narrativa do sonho, altera a verdade do sonho. O consciente altera o conjunto de

imagens produzido pelo inconsciente, o narrar do sonho é em si alteração da cena do filme,

devemos separar, portanto, “os sonhos inventados pelo sono e os sonhos inventados pela

vigília.” (BORGES, 1982, p. 4)

O impulso para a formação do sonho é inconsciente e o processo para sua formação perpassa por uma instância a que Freud denomina de Pré-consciente. Nesta os pensamentos oníricos passam, sofrem modificações, devido à resistência da censura do Consciente, mas ainda conseguem irromper à consciência – algo que não ocorre na vigília, devido a uma atuação mais forte da censura – formando o conteúdo dos sonhos. Esse conteúdo trata-se de um discurso engendrado numa lógica diferenciada do que costumeiramente o eu de vigília realiza ao tecer seus relatos. O eu de vigília ao compor uma narrativa efetua escolhas daquilo que considera fatos importantes, que persistem na memória construída numa relação de causa e consequência. Quem constrói o discurso onírico não opta necessariamente, mas age contrariamente às escolhas do eu de vigília: investe de importância aquilo que o eu de vigília considera acessório e irrelevante, e, ainda, resgata impressões primitivas esquecidas pelo eu de vigília ou por ele ignoradas (FONSECA, 2013, p. 73) [grifo meu]

Atentos quanto ao caráter exclusivamente ficcional de uma literatura onírica, Borges

afasta da literatura onírica uma leitura de viés psicanalista16. Na medida em que não se acede a

matéria sonhada, mas, a uma memória do sonhado.

16 A leitura de cartografia que propomos a partir da teoria de Deleuze e Guattari também se opõe à teoria freudiana sobre o sonho e o inconsciente.

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O exame dos sonhos oferece uma dificuldade especial, não podemos examinar os sonhos diretamente. Podemos falar das memórias dos sonhos. E, possivelmente, a memória dos sonhos não corresponde diretamente aos sonhos. Um grande escritor do século dezoito, Sir Thomas Browne, acreditava que nossa memória dos sonhos é mais pobre do que a esplendida realidade. Outros, pelo contrário, acreditam que melhoramos nossos sonhos; se pensarmos que o sonho é uma obra de ficção (e eu acredito que seja) possivelmente continuamos fabulando no momento em que despertamos e, depois, quando o narramos. (BORGES, In: PRIETO, 2006, p. 26)

A teoria levantada por Borges em Sete noites coaduna com a leitura que fazemos da

escrita de Ondjaki em Sonhos azuis pelas esquinas. É sintomático, que justamente na primeira

esquina nos deparemos com Borges, refletido e refratado no conto enigmático de “Buenos

Aires”.

Ondjaki se deixa influenciar pelas leituras que fez de Borges e tal influência decai

sobre sua escrita. Sobre esta relação com Borges e com as demais intertextualidades, o

escritor em entrevista ao jornal Rede Angola afirma:

Entrevistador: O livro começa em “Buenos Aires”, com uma atmosfera fantástica à Borges Ondjaki: Há uma reminiscência: quem será? Quem não será? Se está? Se não está? Entrevistador: E depois termina num tom mais africano. Ondjaki: Eu acho que somos influenciados pelos lugares, é óbvio, a não ser que fosse uma coisa completamente terra à terra. Num conto chamado “Buenos Aires”,

em que há algum mistério sobre quem será um e quem será o outro, um leitor minimamente atento vai para uma ideia de Borges. Mas a única coisa que eu sabia é que o “Mussulo” tinha de ser o último, o resto fui dividindo em nome daquelas

quatro pequenas divisões que fiz [“para onde vou”, “ferve a luz”, “sonhos azuis”,

“guardamos o lugar”], a partir do verso da Ana Paula [Tavares]. Há contos que ficaram de fora. Os livros de contos são sempre assim, encontra-se uma espécie de falsa coerência e cria-se uma colectânea de contos. Sim, alguma coisa terão uns a ver com os outros, mas há dois que são em prosa poética que também destoam e eu resolvi pô-los no fim de capítulos, porque achei que também não faz mal impingir uma prosa poética num livro de contos. (REDE ANGOLA, 2014)

Há uma reminiscência. Desde a atmosfera onírica, este entre-lugar que tem espaço

privilegiado na narrativa borgeana, passando pela estrutura labiríntica da escrita de Borges

que através de uma estrutura irônica, uma espécie de mîse-em-abyme, cria uma narrativa

ficcional dentro da própria ficção, levando até a última potência a capacidade imaginativa do

narrar.

Além da presença de borges a partir desse jogo intertextual, de antropofagia desse

estilo borgeano de narrar, há também a figura de um personagem muito singular, um mulato

careca, que ainda não se aproxime por características físicas ao escritor argentino, possui

muito desse caráter irônico e enigmático que atribuímos a sua existência.

“Você nunca sonhou com um homem careca que atende pelo nome de Oriegn Artse?”

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(ONDJAKI, 2014, p. 13). Este personagem, que mais adiante descobriremos também ser um

mulato careca, indaga sobre uma existência semelhante à sua, um personagem duplo. A

pergunta possui tom demasiado íntimo, visando possivelmente causar afetação neste narrador

que se assemelha a um alter-ego do escritor angolano.

Todo diálogo, ou melhor, toda citação é uma forma de afetar e ser afetado. O narrador

envolvido pelo discurso deste personagem misterioso toma uma reflexão antes de responder.

“Gostaria de não ter respondido. (...) Há dias – e pessoas – que se revelam mais poderosos que

bons momentos de ficção. (ONDJAKI, 2014, p. 13)

O narrador deste conto é um personagem escritor, assim como o quadro ‘mãos’ de

Escher, temos aqui um personagem dentro da ficção estabelecendo uma estrutura labiríntica

de um escritor que é escrita de outras mãos. Ondjaki torna-se ficção de si mesmo neste livro

de contos usando desta estrutura metafórica da ficção borgeana. Este escritor narrador aceita a

provocação de seu interlocutor, respondendo, portanto: “ – ‘Nunca’ é uma palavra forte de

mais.” (Idem, p. 14).

O narrador deste conto se sente mero coadjuvante neste diálogo, ao que diz acreditar

que esta estranha figura parece lhe falar apenas para cumprir uma urgência outra. “Mas a

verdade é que, em todos os momentos, o homem parecia falar comigo apenas para cumprir a

urgência de uma outra preocupação. Como se falar comigo fosse um atalho para outros

lugares. Outras palavras até. (ONDJAKI, 2014, p. 14)

O diálogo seria então um atalho para outros lugares, outras palavras. A

intertextualidade é uma forma de viagem, um meio de conhecer outros lugares, de se ver

representado em outras palavras. Compagnon, em seu livro O trabalho da citação, disserta

sobre a força de deslocamento que a intertextualidade possui:

Há uma dialética toda-poderosa da citação, uma das vigorosas mecânicas do deslocamento, ainda mais forte que a cirurgia. Mas é típico dos atos de escrita, ou de linguagem, autorizar a confusão dos contrários ou dos contraditórios, dissolver as' fronteiras em uma transação metonímica. Assim, a oposição maior que se dissipa no vocabulário da arte de escrever é aquela entre o vazio e o pleno, o conteúdo e o continente, o potencial e o atual. Encontraríamos muitos exemplos de um tal deslocamento que aliena o sentido das práticas linguageiras. (...) A citação, uma manipulação que é em si mesma uma força e um deslocamento, é o espaço privilegiado do trabalho do texto. (COMPAGNON, 1996, p. 33; p. 58)

A presença de um escritor dentro da ficção restabelece a estrutura em mise-en-abyme

da qual, já dissemos, característica da narrativa de Borges. Esta estrutura espiralar tende a

provocar no leitor o riso, ou talvez o desconserto.

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Ondjaki, leitor assumido de Borges desde os seus primeiros contatos com a literatura

da América Latina, faz a partir dessa leitura de bricolagem – citamos ainda Compagnon, a

partir de uma leitura de Lévi-Strauss – a apropriação dessa estrutura de escrita espiralar.

Insere, portanto, nesse conto um personagem escritor, aparentemente a ficção de si

mesmo, um álter ego, que diante de um diálogo insólito, de um diálogo fantástico com a

figura de um outro escritor, Borges, cita a ficção "Há dias e personagens mais valorosos do

que bons momentos de ficção”. É a ficção dentro da ficção, portanto um exercício meta-

ficcional de uma escrita que se reflete. O que chamamos aqui portanto de mise-en-abyme

ficcional.

Em seu conto “Pierre Menard, autor do Quixote” Borges provoca toda a tradição

literária ao afirmar que o escritor de Dom Quixote não teria sido Miguel de Cervantes mas,

Pierre Menard. Pierre Menard, este, um personagem de Borges que não existe para além da

ficção. Como poderia um personagem fruto da ficção ser ele inventor de uma obra real, uma

obra concreta que existe para além do conto de Borges. Estrutura irônica de uma ficção que

desautoriza a realidade, de uma ficção que cria um desregulamento entre um e outro, através

de um personagem ficcional criador de uma obra literária real.

A obra de Borges representa, sem dúvida, a exploração mais aguda do campo da reescrita, sua extenuação. Pois se a escrita é sempre uma reescrita, mecanismos sutis de regulação, variáveis segundo as épocas, trabalham para que ela não seja simplesmente uma cópia, mas uma tradução, uma citação. É com esse mecanismo que Borges organiza a violação. "Pierre Menard, autor do Quijote’, um dos contos reunidos sob o título de Fictions (Ficções), realiza o ideal do texto e pretende que ele se distinga da cópia. (COMPAGNON, 1996, p. 42)

Compagnon afirma que a citação é todo aquele trabalho de recuperar para si toda uma

escrita que nos afirma, toda escrita com a qual nos identificamos. Possuímos para com os

textos que lemos e escrevemos uma relação identitária, toda citação fora antes um trecho que

nos provocou excitação, que nos provocou encantamento porque aquele texto fala de nós,

aquele texto nos desvela.

Há sempre um livro pelo qual desejo que minha escrita mantenha uma relação privilegiada, “relação” em seu duplo sentido, o da narrativa (da recitação) e o da

ligação (da afinidade eletiva). Isso não quer dizer que eu teria gostado de escrever esse livro, que o invejo, que o recopiaria de bom grado ou retomaria por minha conta, como modelo, que o imitaria, que o atualizaria ou citaria por extenso se pudesse; isso também não demonstra meu amor por esse livro. Não, o texto que é para mim “escriptível” é aquele cuja postura de enunciação me convém (o que cita

como eu). É por isso que esse texto nunca é o mesmo livro, é por isso que Quijote, de Menard, é também outro Quixote. ” (COMPAGNON, 1996, p. 43)

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O diálogo seria então um atalho para outros lugares, para outras palavras. A

intertextualidade é uma forma de viagem, um meio de conhecer outros lugares, de se ver

representado em outras palavras. Sentir-se também escritor daquela história, assim como

Pierre Menard, autores de Dom Quixote.

Sabemos que esse misterioso interlocutor tem uma missão, uma urgência anterior ao

diálogo. Mas, é a partir do diálogo – a recolha de citações, de relatos de sonhos – que tem

com pessoas que encontra, com leituras que faz, que o misterioso personagem consegue reunir

o quebra-cabeça, a mensagem que Oriegn Artse deixa nos sonhos dos outros.

É através das leituras das múltiplas citações, das intertextualidades que fazemos que

somos capazes de exercer a auto-interrogação. Pergunta esta nunca respondida,

questionamento identitário que sempre ansiamos responder, mas que assim como uma linha

no horizonte, à medida que caminhamos em sua direção percebemos que a resposta se afasta.

Podemos ver outra reminiscência a Borges dentro desta realidade dos sonhos através

do corpo sem mãos, do corpo sem rosto e do rosto sem fisionomia de um personagem sem

nome. "Mas do pouco que sonha, lembra-se de algum rosto? Alguém que não seja sua família,

que apareça inusitadamente no sonho.... Um intruso, digamos assim. Sabe?" (ONDJAKI,2014,

p. 15)

Novamente a prosa se auto-analisa, se auto-interpreta, ao inserir a figura do intruso

dentro do sonho do personagem, o próprio conto se põe a explicar a figura do intruso.

Na perfeição fílmica dos sonhos, o intruso aparece desfocado, mal resolvido. Ou se destaca dos outros por fatores físicos, como a cor, a dimensão, ou pelo comportamento, digamos, fala uma língua que ninguém entende, fala de coisas que nada têm a ver com a ação que o sonho pretende. (ONDJAKI, 2014, p. 15)

Quem será o intruso desse sonho dentro do sonho? Dentro de uma atmosfera de

sonhos, dois personagens dissertam sobre um segundo sonho. Um dos personagens é o intruso

que pergunta de um intruso no segundo sonho, estrutura labiríntica.

Freud, em seu livro A interpretação dos sonhos, tece uma narrativa sobre a sua

experiência em relação a figura do intruso, tecendo análises psicológicas a partir de um

vivencia pessoal. Freud estava em uma viagem de trem quando a porta do banheiro abre de

repente, Freud vê refletida no espelho a figura de um homem. Ao se dirigir a este homem

como quem se dirige a um intruso, percebe ser ele mesmo.

Para Deleuze, o duplo é justamente o oposto do descrito por Freud, o duplo é uma

absorção do exterior por parte do indivíduo. O duplo não é uma parte do eu que se projeta,

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que se extrapola mas, uma parte do(s) outro(s) que se interioriza. “Não é nunca o outro que é

um duplo; eu não me encontro no exterior, eu encontro o outro em mim” (DELEUZE, 1988,

p. 105)

Surge então o espanto, o intruso em questão nada mais é que seu duplo, seu reflexo,

seu espelhamento e é isso que causa estranhamento. Seria então o personagem estranho, o

personagem intruso do sonho de Ondjaki um espelhamento dele mesmo? Um reflexo deste

narrador? Ou seria o narrador um reflexo deste personagem intruso?

Seria Ondjaki ao tentar ser Borges, o ficcionista? Partindo de uma leitura da citação

proposta por Compagnon, Ondjaki é também Borges, pois quando citamos alguém nos

apropriamos da escrita desse alguém. Ou melhor, a escrita desse alguém é que se apropria de

nós, nos toma de assalto. Ondjaki, assim como Pierre Menard, na brevidade de um conto, é

autor de Borges.

Sendo intruso, Ondjaki ou Borges, seguimos em mais um trecho:

“E quanto a isto, não há o que enganar: nalguma frase, nalguma janela embaciada, nalgum bilhete, nalguma carta, nalguma mensagem seja de que tipo for, este homem, mulato, careca, bem vestido, deixa o seu nome nos sonhos. É o que ele faz. Foi o que me fez a mim. (Idem, p. 15)

Um homem que deixa as mensagens nos sonhos dos outros. Seria então a

intertextualidade, um conjunto de mensagens codificadas que os escritores deixam em seus

livros para que nós leitores interpretemos, para que nós adentremos nesse labirinto e o

decodifiquemos? Será toda escrita, uma tentativa de se fixar em nós? Uma tentativa de deixar

a presença daquele que escreve, em nossos sonhos? De fazer de nós ecos de suas palavras? O

livro de contos de Ondjaki nos faz crer que sim.

O interlocutor dirige-se ao narrador dizendo "homens como nós sonham até o fim."

(ONDJAKI, 2014, p. 16). Que tipo de homem como nós? Os escritores? Seria o escritor um

sonhador e toda vez que essa porta da escrita é aberta, é para sempre? Seria essa viagem do

narrador-escritor por todas as cidades na verdade a procura dessas mensagens espalhadas por

essa figura misteriosa que aparece nos sonhos?

Afinal, essa estranha figura, este mulato careca, assim afirma: "A mim, resta-me

encontrar esses pedaços espalhados pelo mundo e sobreviver à humilhação de ter essas

conversas aparentemente loucas." (Idem, p. 17). Será essa narrativa de viagem uma forma de

estabelecer uma cartografia de sonhos, uma cartografia literária de busca da origem, uma

busca identitária, uma busca da origem da literatura? Faço perguntas para quais é quase

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evidente uma resposta, de forma a tornar clara nossa intenção de análise, a de provar os

questionamentos e desejos do “eu” que se libertam no inconsciente a partir do sonho.

É interessante notar que há sempre na descrição dos contos uma característica ou um

detalhe, algo quase imperceptível que cria uma atmosfera de incerteza, como a fumaça de um

cigarro, o torpor de um uísque, etc. Vale ressaltar também o estranhamento que a figura do

intruso causa.

Etimologicamente, as palavras “estranho” e “estrangeiro” possuem a mesma origem

latina, advinda da palavra “extraneus”. Por estranho entendemos estrangeiro, o outro, aquele

que não se conhece, não se sabe do que é capaz. Ou ainda, aquele indivíduo que não pertence

a determinada cultura, não se encaixa nesta cultura.

Embora seja este narrador alter ego de Ondjaki o suposto estranho à cidade de

“Buenos Aires”, aquele que está de passagem, no ambiente em que ele é o sonhador, a figura

estrangeira é seu interlocutor não nomeado. O narrador passa, portanto, a repelir este

personagem íntimo mas, desconhecido: "Há dias – e pessoas – que se revelam mais temerosos

que bons momentos de ficção. Tive medo. Levantei-me e parti."(ONDJAKI, 2014, p. 19).

Ainda não reconhecendo ser este personagem, o seu espelhamento, o seu duplo, parte

desconhecida de si mesmo, teve medo.

A figura do duplo nem sempre coaduna com todas as características em ambos os

personagens, tendo as vezes alguns de seus traços exagerados. O conto termina com "Na noite

em que sonhei com Oriegn Artse eu não o reconheci, porque era ele que me sonhava a

mim."(Idem, p. 19). Não o reconheceu, pois, o personagem álter ego de Ondjaki, o narrador,

não coaduna com todas as parcas características que se tem deste interlocutor, não se vê neste

personagem careca. Entretanto, foi apenas ao sonhar dentro do sonho que pôde perceber que

se sonhava a si mesmo.

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3.3 Outras viagens da escrita de Sonhos azuis pelas esquinas

Seguindo por esta seleção de contos que revelam uma forte intertextualidade, e em

alguns também uma intratextualidade, adentramos na cidade de “Budapeste”. Assim como o

conto “Buenos Aires”, “Budapeste” é um conto que revela um clima de mistério, insólito.

Em “Budapeste”, a primeira característica da cidade que atrai o olhar deste narrador

viajante álter ego de Ondjaki é a língua húngara: "Budapeste é um mistério. A própria língua

húngara é um mistério. Para nós, claro.". (ONDJAKI, 2014, p. 21)

A língua húngara marca o limite entre o viajante e a cidade, faz com que este narrador

se identifique enquanto estrangeiro a este local e define a distância que há entre a língua

húngara e a língua (des)portuguesa. O narrador tem a ciência do não pertencimento àquele

território quando afirma que a língua húngara é um mistério, ou seja, acredita-se que

desconheça esta língua.

Entretanto, logo no parágrafo seguinte o narrador afirma com ar de certa estranheza

que apesar da distância nítida entre as duas línguas, de diferentes origens, encontrou muitas

pessoas que falavam português em “Budapeste”, o que para nós causa certa desconfiança. Há

a possibilidade de haver muita difusão da língua portuguesa na Hungria, mas um leitor atento

perceberia que em se tratando de um livro chamado Sonhos Azuis pelas Esquinas e tendo

adentrado a atmosfera onírica do conto anterior, então o fato de muitos falarem a língua

portuguesa é um deslocamento de realidade causado pelo inconsciente. Não tendo esse

narrador fluência em língua húngara, é preciso que os seus interlocutores falem português

para que haja desse modo, o diálogo.

Vale salientar o neologismo criado como forma irônica de apropriação da língua

portuguesa por parte da criação de um prefixo “des”, língua desportuguesa, ou seja, tira a

autoridade e a posse de Portugal sobre uma língua que é também angolana. A língua

desportuguesa é uma língua africana, brasileira, etc. Descoloniza a língua ao descentralizá-la,

“deseuropeizá-la”, torna a sua, ao assumir na língua portuguesa uma identidade africana.

Guattari e Deleuze, em Mil platôs, dissertam sobre a heterogeneidade da língua e sobre

o uso da língua enquanto ato político seja para uma hegemonia de poder seja para desmontar

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este império. A língua (des)portuguesa17 delineia a cartografia da resistência.

A língua é, segundo uma fórmula de Weinreich, "uma realidade essencialmente heterogênea". Não existe uma língua-mãe, mas tomada de poder por uma língua dominante dentro de uma multiplicidade política. A língua se estabiliza em torno de uma paróquia, de um bispado, de uma capital. Ela faz bulbo. (DELEUZE et GUATTARI, 1995, p. 15)

A narrativa de Ondjaki em “Budapeste” é marcada pela incerteza. O conto é permeado

por dúvidas como quem tenta agora relembrar uma memória do passado, ou seja, o discurso

do sonho se dá através de uma memória do passado: "Eu tinha saído de Lisboa num voo via

Frankfurt. Acho eu. Tudo nessa viagem são memórias que agora procuro resgatar. Digo

"agora" depois da viagem e dos estranhos eventos que a caracterizaram."(Idem, p. 21).

Há a preocupação do narrador em todo tempo fazer a pausa do relato de viagem para

então situar o leitor em um espaço e tempo desejado ou nos situar quanto aos sentimentos

desse próprio narrador. “Agora” marca oposição ao “antes” que é o tempo da vivência, a

viagem à “Budapeste”.

Assim como percebemos no conto anterior “Buenos Aires”, há neste conto, de maneira

mais afetiva, este lugar do sonho que é marcado pela incerteza e pelo estranhamento. Esta

estranheza e os insólitos eventos vivenciados pelo narrador situam “Budapeste” nesta

atmosfera limiar entre sonho e pesadelo.

Enquanto o conto anterior se passava em um bar, em “Budapeste” a ação se

desenvolve entre duas cidades, começando em Frankfurt à espera de um voo, ou seja, o conto

não se inicia na Hungria, mas na Alemanha e o ambiente em que se discorre parte da ação,

parte do conto, é no aeroporto, local que no conto é metáfora da espera e do atraso.

Em uma atmosfera de incerteza, em um ambiente hostil, o olhar que nos olha é uma

metáfora ameaçadora que intenta nos repelir. Em “Budapeste”, o olhar de estranhamento e

ameaça com que os guardas encaram esse narrador, o afetam. "Os guardas decidiram parar

toda a fila para revistar, olhando para nós com miradas ameaçadoras. (ONDJAKI, 2014, p. 22)

O interlocutor – como quem soubesse ler os pensamentos desse narrador – difere esta

frase que é como um tratado filosófico sobre o olhar. “– O olhar é um instrumento poderoso...

– disse-me o monge careca." (ONDJAKI, 2014, p. 22). Sobre os simbolismos do olhar na

literatura nos apoiaremos nas teorias de Georges Didi-Huberman em O que vemos, o que nos

17 É importante ter ciência da complexidade cultural e linguística em um país como Angola que além da língua oficial portuguesa possui diversas línguas locais.

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olha.

O olhar – objeto de investigação tradicional da filosofia, da História, da Teoria da Arte francesas desde Descartes até Lacan, na medida em que dos abismos do olhar se passa sempre ao ser do corpo – chega a desempenhar um papel tátil, qual o paradigma da pintura encontra sua confirmação: ‘o sentido tátil conforme Aristóteles, é ao mesmo tempo aquilo sem o que a visão não pode acontecer e aquilo que constitui o eschaton da visão, seu limite – mas também, por essa mesma razão, fantasticamente, seu telos: tocar seria como a visée (obsessão ou fobia da visão). (DIDI-HUBERMAN apud HUCHET, 1998, p. 23)

Desde a cegueira profética de Tirésias na Grécia antiga, passando pelo ciclope de

Odisseu, desaguando nos olhos oblíquos e dissimulados de Capitu, e indo até uma cegueira

coletiva em Saramago, o olhar enquanto simbologia literária tem como uma de suas metáforas

enxergar além do superficial, sendo também metonímia para uma leitura psicológica dos

personagens.

O olhar em “Budapeste”, conto de Ondjaki, se mantém tão misterioso quanto os

olhares proferidos por Capitu. Com base na teoria filosófica de Didi-Huberman, percebemos

que no conto há mais do que a duplicidade do diálogo, do que a própria comunicabilidade

entre narrador viajante e monge careca. Vemos também o dialogismo do olhar, pois como

afirma o narrador "Há duas vias num olhar." Temos a descrição do olhar de Capitu a partir da

afetação que este olhar causava em Bentinho. Quando Bentinho mirava Capitu, era Bentinho

quem se revelava. A mesma dialogia pode ser vista em “Budapeste”.

Se os olhos são as janelas da alma, aquele que nos olha nos vê por dentro. A partir da

nossa maneira de olhar é possível perceber o que sentimos, é possível perceber aquilo que

conscientemente tentamos velar como forma de esconder nosso verdadeiro eu. Através do

olhar é possível enxergar além das máscaras. Nessa lógica, ao nos olharmos no espelho vemos

nós mesmos, nossa interioridade, nos conhecemos pela matéria de que somos feitos por

dentro. O papel do duplo, portanto é aquela parte da exterioridade que absorvida por nossa

interioridade nos torna outro e nos impulsiona a uma nova viagem de autoconhecimento.

Sobre as duas vias do olhar, Georges Didi-Huberman afirma:

O que vemos só vale – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 29)

Beatriz Berrini em seu texto de crítica machadiana afirma que: "Na nossa cultura os

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olhos são vistos desde os gregos como o mais importante instrumento para o homem conhecer

o que existe fora de si: permite contato com o mundo exterior." (BERRINI, 2008, p. 1)

O olhar, esse espaço limítrofe entre eu e o outro permite uma dialogia, por assim dizer

é também uma forma de intertextualidade. O olhar, possui também uma percepção

sociocultural e histórica, trazendo à tona questões identitárias, de ambivalência entre o “eu” e

o “outro” levantadas pelo tempo e espaço da contemporaneidade do sujeito, que muitos

alcunham, a “pós-modernidade”.

Enquanto “Fílide”, a cidade de Calvino, em Cidades invisíveis, caracteriza-se por ser

uma cidade que evita os olhares, “Budapeste” é uma cidade que provoca olhares, que encara,

intimida o visitante.

No encalço das intertextualidades escondidas, ou desveladas pelo próprio narrador dos

contos, seguimos a análise do conto “Budapeste” quando nos deparamos com uma mensagem

misteriosa deixada para o narrador ainda quando este estava em Lisboa. Antes mesmo de

chegar a “Budapeste”, a cidade já marcava sua presença.

Um estranho, novamente um intruso dos sonhos, envia ao narrador uma mensagem de

cunho íntimo. Se apresenta, diz que descobriu sobre o paradeiro do narrador através de um

jornal – sabemos então um escritor famoso dando mais um elemento que corrobora ser este

narrador um alter-ego de Ondjaki – indica-lhe um lugar a visitar e pede-lhe que mande

notícias de um anão.

A figura do anão possui múltiplas significações míticas no senso comum . Essas

simbologias têm muita influência da literatura de um modo geral. A partir de histórias que se

instauraram na memória coletiva, seja por best-sellers ou por suas respectivas representações

cinematográficas. A trilogia O Senhor dos anéis, de J.R.R Tolkien é uma das mais populares

destas referências no mundo ocidental. Há ainda a clássica referência atualizada pelos estúdios

Disney, a história da Branca de neve e os sete anões. Muitas são as representações e

esteriótipos que marcam este figura.

Sendo a literatura uma obra aberta, esta figura no conto do Ondjaki pode vir a

rememorar diversas representações diferentes de anão, de acordo com o conhecimento do

leitor pois, como afirma Koch:

Assim, identificar a presença de outro(s) texto(s) em uma produção escrita depende e muito do conhecimento do leitor, do seu repertório de leitura. Para o processo de compreensão e produção de sentido, esse conhecimento é de fundamental importância. (KOCH; ELIAS, 2007, p. 78).

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A leitura pretendida por esta dissertação é a da intertextualidade entre o anão de

“Budapeste” com o livro O anão, obra-prima do escritor sueco vencedor do nobel de literatura

Pär Lagerkvist.

O anão, figura estereotipada de forma ambígua seja por sua amabilidade seja por sua

agressividade, se apresenta no livro de Lagerkvist em sua faceta mais cruel. Vivendo numa

sociedade em que não consegue se integrar de forma plena, o anão repudia toda forma de

existência humana e seu objetivo de vida é tentar exterminá-la.

Os anões, em sua grande maioria, são bufões. Devem dizer coisas engraçadas, contar piadas ou fazer palhaçadas que provoquem o riso de seus amos. Jamais me rebaixei a tais manifestações. E ninguém, verdade seja dita, me propôs ainda que as tivesse. Basta o meu aspecto para impedir que façam tal uso de mim. Minha fisionomia não se presta, absolutamente, a facécias ridículas. E nunca riu. (LAGERKVIST, 1970, p. 2)

A narrativa em primeira pessoa mostra o interior desse personagem que já no início do

livro deseja distanciar sua imagem daquela imagem púbere dos anões da Disney. Em Ondjaki,

o anão não se enuncia enquanto interlocutor, aparece apenas pela narrativa de terceiros.

Primeiro, num bilhete enviado ao escritor, depois numa pergunta dirigida a este escritor numa

sessão de leituras. A forma abrupta como esse personagem se insere sem ser convidado ao

sonho/conto, causa no narrador apreensão.

–Não tenho pergunta alguma. Mas queria dizer-lhe uma coisa: hoje estava em casa, de manhã, e tocaram à porta. Fui espreitar e não vi ninguém. Tocaram de novo. Aproximei-me e ouvi uma voz: ‘aqui em baixo. Abra por favor’. Tratava-se de um verdadeiro anão. O meu coração acelerou. Não era o que eu procurava, era o que o tal alfarrabista tinha dito na mensagem que me disparava um alarme interno. Devo ter feito uma cara estranha. (ONDJAKI, 2014, p. 24)

A figura desse anão todo vestido de preto, algo entre um roqueiro punk e um agente

funerário associa cada vez mais a um campo semântico hostil, imagem de medo. Este

personagem que embora nunca avistado pelo protagonista está sempre sendo enunciado

parece existir no sonho/conto apenas para causar temor no protagonista, como uma mensagem

que deseja dizer: sua presença não é bem-vinda aqui.

Partindo do pressuposto de que há duas vias num olhar, o anão de Pär Lagerkvist

enxerga a sociedade em que vive a partir dos olhares que esta lhe dirige. É o afeto causado por

este olhar coletivo que ele retorna com um olhar crítico sobre essa sociedade. Em uma

estrutura espelhada parece mostrar um lado da sociedade que esta não consegue ver.

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O anão de Pär Lagerkvist é o protagonista do romance, sua presença é fundamental

para o desenvolvimento da trama pois, todos os demais personagens dependem dele.

Entretanto, estes personagens não reconhecem sua importância, colocando-o em perigo,

tratando-o de forma quase animalizada.

Embora o anão possua o conhecimento, o discernimento sobre sua realidade, está

preso à uma sociedade a qual não pertence, na qual não se encaixa. O anão está limitado por

sua estrutura física e econômica, sendo, portanto, submisso ao príncipe.

A consciência do não pertencimento, o sentimento de rejeição, transborda o eu de

Piccolo de cólera. A partir da visão de uma sociedade que para ele se revela sem máscaras,

cruel e totalmente voltada para a aparência e o espetáculo, o anão se enraivece. Esta rejeição

transformada em cólera retorna o olhar para esta sociedade de forma a revelar como um

espelho aquilo que os personagens do romance buscam esconder.

Notei que, em algumas ocasiões, inspiro temor. Mas cada um tem, sobretudo, medo de si próprio. Os homens imaginam, erroneamente, ser eu a causa de sua inquietação. O que os atemoriza, na verdade, é o anão que se oculta neles, a caricatura humana do rosto simiesco que, por vezes, põe a cabeça de fora das profundezas do seu ser. (LAGERKVIST, 1970, p. 18)

O anão de “Budapeste” como uma intromissão do personagem de Lagerkvist em

Ondjaki é também ameaçador e violento. Toda vez que sua presença é enunciada, o narrador

recebe ameaças por escrito.

O anão envia inúmeras mensagens ameaçadoras de forma a repelir esse sujeito como

se por metonímia, fosse a cidade de “Budapeste” quem expulsasse este sujeito. De maneira

correlata, há um paradoxo neste conto pois, se o anão é o intruso do sonho do narrador de

Ondjaki, o desconhecido, o estrangeiro; o narrador viajante de “Budapeste” é quem representa

o intruso na cidade de “Budapeste”.

Há um jogo de caça entre dois personagens intrusos do conto. O alfarrabista e o anão.

O desenrolar da trama faz parecer que o narrador de “Budapeste” nada mais é do que uma

isca, um atalho para o encontro entre os dois.

– E falou-te do anão? – Sim. Como é que sabes? – Ele sempre faz isso. Sempre fala do anão. Bem, vou apanhar este elétrico. O teu é no sentido inverso. Quatro paragens. Até amanhã. Deviam ser duas da madrugada. Não queria ir para o hotel. Tinha receio, é verdade, de encontrar outro bilhete. Ou de sonhar com o anão. (ONDJAKI, 2014, p. 26)

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As conversas sobre o anão são sempre diálogos escorregadios, como se quem soubesse

a história não pudesse revelar ou por medo, ou pelo desejo de pregar uma peça neste viajante.

A cada vez que indaga sobre o anão, o seu tempo em “Budapeste” torna-se mais curto.

“Você tem 24h para partir” (Idem, p. 27). As ameaças aumentam e o medo desse narrador

também. Entretanto, sua curiosidade o impulsiona a tentar descobrir mais sobre o anão.

– Quem é este anão de Budapeste – perguntei sem rodeios. – E eu é que sei? O jovem parecia levemente embriagado. O que poderia facilitar o interrogatório. – Alguma ligação entre a casa de Zóltan e o anão? – Não sei do que estás a falar. O meu telefone tocou. Um número de Portugal: “saia de Budapeste assim que

puder”, dizia o homem num estranho sotaque, “você corre perigo. ” Era o número do

alfarrabista, confirmei depois. (ONDJAKI, 2014, p. 28)

O jovem, ao que parece, está sempre a evitar dar detalhes do que sabe sobre o anão.

Ademais esse fato de um mistério insolúvel, temos uma lógica de verossimilhança só

permitida ao sonho/literatura.

O telefone tocou, descobri depois era o alfarrabista. Um personagem que o narrador

desconhece, mas que sabe aparentemente tudo sobre ele. Seu destino, seu local de

hospedagem, seu número de telefone. A forma como ele descobriu ser o número do

alfarrabista também não fica evidente.

O personagem Zóltan é o índice de factual dentro deste relato, aquilo que coaduna com

a realidade. Houve um ator húngaro chamado Zóltan Latinovits e este suicidou-se em 1976

por via férrea. Sua morte está marcada na memória coletiva do povo húngaro e há hoje um

memorial em homenagem a este ator.

Em Ondjaki, percebemos há um suicídio coletivo. O narrador suspeita haver alguma

ligação com o anão. Suspeita essa que não será confirmada pois, quem sabe detalhes não

conta e o narrador é impedido de permanecer na cidade e pesquisar por si.

Há nessa figura do anão a mesma atmosfera ameaçadora e sombria que é revelada em

Piccolo, personagem de Lagerkvist. “O mesmo envelope: ‘diga ao alfarrabista que, se quer

encontrar o anão, que venha pessoalmente. Outras nacionalidades não servem’. ” (ONDJAKI,

2014, p. 29)

Outras nacionalidades não servem. Há neste conto uma marcada diferença entre o eu e

o outro, a partir da noção de nacionalidade. O olhar com que os guardas olham este

estrangeiro, a necessidade de mostrar o passaporte para entrar no hotel à noite, um

personagem vem lhe trazer o passaporte supostamente esquecido no hotel. Há uma simbologia

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identitária e está metaforizada através do passaporte.

A nacionalidade multifacetada representa também, de maneira metafórica, a

fragmentação da identidade angolana, que comprovamos a partir de personagens duplos em

“Buenos Aires” e “Madrid”, bem como o espelhamento neste último conto.

As viagens reais ou imaginárias se apresentam como uma forma de

desterritorialização, possuem a força capaz de “desenraizar o verbo ser” (DELEUZE e

GUATTARI, 1995, p. 36). A metáfora do passaporte salienta as multiplicidades que formam a

identidade, neste conto marcado pela estrutura rígida, pelas linhas molares da subjetividade.

O conto se inicia como uma busca. Aparentemente, este narrador não viaja até

Budapeste simplesmente enquanto um escritor que vai expor suas obras. A apresentação é

apenas pretexto para uma outra urgência, um atalho para outras palavras.

O monge, que repete novamente a figura de um personagem careca já visto em

“Buenos Aires”, afirma ao narrador: “às vezes o que procuramos não está no mesmo lugar que

nós” (ONDJAKI, 2014, p. 24)

O narrador nunca enunciou seus reais motivos para este personagem, nem

demonstrava conhecê-lo. Mas, esta figura dotada do misticismo, de uma simbologia do

sagrado que a figura de um monge possui, parecia ler o estado de dentro das pessoas, ou pelo

menos, deste narrador.

Uma mensagem anônima lhe diz: “O que você procura, não está aqui” (Idem, p. 24)

Essas contradições e essa constante necessidade de afirmação simbólica da identidade nos

remete ao livro de Stuart Hall e suas considerações no livro A identidade cultural na pós-

modernidade.

Dentre os resultados da falência do projeto, logo na fronteira entre o colonialismo e o momento pós-colonial, estava a crise identitária do sujeito, citada por Stuart Hall: “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em

declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno. (HALL, 2005, p. 7) De fato, prossegue Hall, “o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas” (HALL, 2005, p. 12) (AUGUSTONI apud HALL, 2010, p. 198)

A identidade, em Sonhos azuis pelas esquinas, é fragmentada e multifacetada dando

conta de refletir o monólogo (ou seria diálogo?) no interior desse sujeito contemporâneo. A

intertextualidade por sua vez, compreende essa fluidez, uma vez que é a partir da absorção de

outras identidades, outras palavras, que se forma esse caleidoscópio que é a identidade

moderna.

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Se vemos Borges em “Buenos Aires” – também na estrutura espelhada e na atmosfera

onírica do livro –, se vemos Pär Lagerkvist em “Budapeste”, o mesmo podemos dizer sobre

Ana Paula Tavares. A presença desta escritora é notória, já está desvelada no título do livro de

Ondjaki, nas partes introdutórias de cada seção de contos e de forma implícita no conto

“Zanzibar”.

A intertextualidade com Ana Paula se faz, sobretudo, a partir de um poema sem título,

presente no posfácio do livro Como veias finas na terra. Este livro de poemas de Paula

Tavares tem como seu campo semântico mais forte, a força telúrica.

Buscando o enraizamento, a total confluência entre o “eu” e o “solo”, a poetisa faz

uma redescoberta geográfica de sua terra natal. Numa poética em direção ao sul e ao

feminino, Paula Tavares articula diversas intertextualidades, como por exemplo, através de

epígrafes.

Como veias finas na terra é uma forma de cantar uma identidade angolana, mas,

também articulá-la com o mundo, com o ocidente. Em “A cabeça de Nerfetiti”, os versos

finais afirmam “Como ela não sei quem sou/ Estou diante do espelho/ Com uma moldura de

bronze à volta. ” (TAVARES,2011, p. 229). Há nestes versos a mesma questão identitária

latente em Sonhos azuis pelas esquinas. Diante do espelho busca compreender de todas estas

metamorfoses o verdadeiro eu.

O título Sonhos azuis pelas esquinas é a primeira das apropriações, dos diálogos

perceptíveis neste livro. Pois como afirma Koch, nenhum texto caminha sozinho, Ondjaki

escolheu percorrer junto com Ana Paula as esquinas azuis de seu livro.

O texto redistribui a língua. Uma das vias dessa reconstrução é a de permutar textos, fragmentos de textos, que existiram ou existem ao redor do texto considerado, e, por fim, dentro dele mesmo; todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis. (BARTHES apud KOCH, 1997, p. 46).

No encalço dos fios finos da literatura de Ondjaki adentramos na cidade de

“Zanzibar”. Zanzibar é um arquipélago na Tanzânia. As ilhas, apesar de anexas à Tanzânia

possuem administração própria, são independentes. A cidade/ilha que pertence a si mesma,

cidade/ilha autônoma.

Zanzibar é um nome de origem árabe e significa “a costa dos negros” pois, foi a

primeira impressão que os árabes tiveram ao chegar às ilhas. O arquipélago tem em sua

identidade uma cartografia africana e negra.

A escrita de “Zanzibar” se aproxima da poética de Ana Paula – tanto pelos elementos

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que preenchem o conto com a natureza, a chuva, o corpo – e também da poesia, do lirismo.

Ao que podemos dizer se tratar de uma prosa poética.

A prosa poética, termo complexo visto que prosa e poesia se auto influenciam, surgiu

a partir do simbolismo francês que decidiu romper com os formalismos da escrita vigente. A

prosa poética se definiu como um texto narrativo que possui o ritmo, a musicalidade, os jogos

formais como aliteração, assonância, enjambements, todas características típicas de um

poema. Para Massaud Moisés,

[...] a prosa poética se definiria como o texto literário em que se realizasse o nexo íntimo entre as duas formas de expressão, a do “eu” e a do “não-eu”. Longe de ser

pacífico, o encontro é marcado por uma tensão, de que o texto extrai toda a sua função comunicativa. No binômio, o substantivo é representado pela prosa, ou a expressão do “não-eu”, ao passo que a poesia funciona como um qualificativo.

Estamos, pois, diante de um tipo específico de prosa, assinalado pela fusão da poesia e da prosa. (MOISES, 1997, p. 26)

A prosa poética em Ondjaki é o recurso utilizado nos contos: “Zanzibar”, “Gorée”,

“Massoxiangango” e “Moçâmedes”. Em “Zanzibar”, é a chuva que dá o tom poético do conto

e é também a chuva este elemento que mais aproxima sua escrita de uma intertextualidade

com a poetisa Ana Paula Tavares.

Diferindo-se do demais contos na maneira de refletir outros textos, “Zanzibar” não

apresenta um diálogo direto à Ana Paula mas, apresenta um fazer poético, fala de um tempo

da escrita semelhante ao de Ana Paula.

A delicadeza e a harmonia entre os elementos da natureza, a busca de uma confluência

entre o corpo do eu-lírico/narrador e natureza são os motes principais dessa escrita. O conto

goteja pouco a pouco palavras úmidas que fazem chover poesia. “Chove sobre mim. os meus

dedos respiram. os meus olhos celebram a chuva numa alegria seca” (ONDJAKI, 2014, p. 71)

Em Como veias finas na terra temos o contrário da prosa poética, um poema em prosa

chamado “A chuva”. Tanto a chuva deste poema quanto a do conto “Zanzibar” tem

semelhante simbolismo, de cura, em oposição a um tempo/estado de secura.

A chuva TALVEZ O PRINCÍPIO fosse a chuva assim descendo sobre a terra para a cobrir de lama fértil e cogume- los. A chuva costuma anunciar-se de longe e avan- ça sobre a distância ligando o chão gretado da seca e dos tempos. A chuva sara o próprio ar e é a mãe, pai, tecto, templo para todos os viventes grandes e pequenos. Cai sobre a terra ávida vinda não se sabe

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bem de onde e lambe-lhe as cicatrizes até criar vida de novo a cada ciclo de vento e terra. De onde eu venho a chuva usa uma voz fininha para falar uma língua de sopros, rente-ao-chão e faz crescer com a lava dessa voz o mundo em volta. Os miúdos aprendem cedo a conhecer os sons da fala, a forma como muda na dobra do vento. Be- bem dela a ciência da sede e esticam as asas sob a sua cortina de pérolas. (TAVARES,2010, p. 238)

A chuva no poema de Ana Paula assume metaforicamente a origem do mundo. No

princípio talvez não fosse o verbo mas o substantivo, a chuva. Esta chuva tem como símbolo a

fertilidade, a renovação. Da chuva misturada ao solo fez-se o barro fértil.

“De onde eu venho” marca o lugar de fala desse eu-lírico. Angola convive com a seca

desde o pós-guerra, a falta d’água tornou-se um problema e ficou gravado na memória

coletiva da população. Mas hoje, no tempo, a chuva veio, fina e mansa falar a língua dos

ventos.

A chuva move o tempo e cura a secura da terra e purifica o ar. Lava as cicatrizes e

renova os ciclos. A voz que a chuva traz é a metáfora para a renovação, dessas novas gerações

que aprendem a ouvir as dobras do vento, fazendo da sede asas para o voo da continuação.

Ondjaki é a voz da continuação das chuvas. Em “Zanzibar”, chove. E da lama fértil do

poema, o narrador de Ondjaki cobre seu corpo como num ritual. As rãs caminham por seu

corpo, deixam com suas pegadas uma escrita do tempo.

“Zanzibar” é um conto de atmosfera erótica, tanto da completude com a natureza como

para com um interlocutor ausente. “espero o tempo passar para entender o cântico do meu

corpo junto ao teu; (...) – sob o sol, tempestades, pequenas mortes (...) sei o que vivo na pele

feita macia pela areia molhada. (ONDJAKI, 2014, p. 72)

Como palavra suada entre os dedos, amor e instinto unidos numa rítmica erótica. Na

travessia por entre as areias desérticas o narrador vai ao encontro desta ilha. Ilha e narrador

deslocam-se um encontro erótico dos corpos.

Há um diálogo entre amador e a coisa amada, um jogo de presença e ausência, entre

liberdade e prisão. Para, a leitura erótica deste conto nos apoiaremos no que nos diz Georges

Bataille:

Toda a concretização do erotismo tem por fim atingir o mais íntimo do ser, no ponto em que o coração nos falta. A passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído na ordem descontínua. O termo dissolução responde à expressão familiar de vida dissoluta, ligada à atividade erótica. No movimento de dissolução dos seres, a parte masculina tem, em princípio, um papel ativo, enquanto a parte feminina é passiva. É essencialmente a parte

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passiva, feminina, que é dissolvida enquanto ser constituído. Mas para um parceiro masculino a dissolução da parte passiva só tem um sentido: ela prepara uma fusão onde se misturam dois seres que ao final chegam juntos ao mesmo ponto de dissolução. Toda a concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é, no estado normal, um parceiro do jogo. (BATAILLE, 1987, p. 14)

Ao adentrarmos “Zanzibar” estamos adentrando o espaço da ilha e todos os

simbolismos que a ilha carrega. A ilha tem em seu campo semântico a fragmentação, o

isolamento, a solidão, o deslocamento.

A primeira impressão que se tem de “Zanzibar” é que este é um conto/poema

corpóreo. As relações entre o sujeito e a ilha são relações baseadas no tato, nas múltiplas

sensações advindas do encontro destes dois corpos. As relações entre o “eu” e o “outro”

ultrapassam o nível do discurso, o diálogo ocorre em sensações.

Os seres que habitam essa ilha perpassam o corpo desse narrador e esse pisar das rãs, é

um pisar cronológico, marcam uma ciência do tempo. O narrador precisa decifrar as

“peugadas” das rãs para então decifrar seu tempo.

Há uma constante confluência entre dois elementos naturais aparentemente díspares:

água e terra. É a fusão entre estes dois elementos que vai gerar o barro fértil, alegoria de um

mito criacional.

Chove sobre o narrador e esta chuva é bem-recebida, como água benta, a chuva

permite que seu corpo respire. Em meio a chuva, o narrador funde água e terra em barro

húmido. Passando o barro sobre o seu corpo como um ritual, o narrador parece buscar aquele

mito criacional, ou pelo menos sua origem identitária. Mais do que “Para onde eu vou”, o

narrador faz um caminho em direção ao núcleo, “de onde eu vim”.

Há duas vias interpretativas para o conto/poema. A primeira entenderia “Zanzibar”

como um monólogo sobre o amor, em que o narrador reclama a ausência de seu interlocutor e

recorda tempos de volúpia e completude. A segunda leitura entenderia se tratar de um diálogo

com a ilha. Tendo, portanto, a ilha também sua voz. E essa voz seria uma voz do feminino.

“O amor é uma palavra suada entre os meus dedos – devo isso ao destino e ao instinto.

(ONDJAKI, 2014, p. 72). Esse suor entre os dedos é além de simbolismo erótico metáfora da

escrita. O amor é suado pois o amor de “Zanzibar” é escrita. O amor é trabalho poético.

Bataille vai descrever o amor como uma percepção do mundo a partir da coisa amada,

como se houvesse uma clareza no mundo refletido no seu olhar sobre o amado. O amor é da

ordem do sagrado. A partir de reflexões de Sade, Bataille evidencia também a relação que há

entre amor e morte, quando aquele é levado a sua máxima potência.

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Sade — o que ele quis dizer geralmente horroriza mesmo aqueles que fingem admirá-lo e não reconheceram por si mesmos este fato angustiante: que o movimento do amor, levado ao extremo, é um movimento de morte. Essa relação não deveria parecer paradoxal: o excesso que dá origem à reprodução e o que é a morte só podem ser compreendidos um com a ajuda do outro. Mas parece, desde o princípio, que os dois interditos iniciais se referem, o primeiro, à morte, e o outro, à função sexual. (BATAILLE, 1987, p. 28)

Segundo Bataille, na cultura popular ocidental o orgasmo era denominado “La petite

mort”18, devido ao estado de êxtase que levaria o ser a um curto estado de epifania. Em

Ondjaki, vemos as “pequenas mortes” associados junto a fenômenos da natureza, entre eles, a

“tempestade”, dando um sentido fisiológico a ação.

A leitura que fazemos deste conto é a de um diálogo entre o “eu” e a “ilha”. Partindo

de uma leitura do parágrafo a seguir que permite diversas interpretações de acordo com a

pausa que for feita.

Sua, noite, entre os teus dedos o meu corpo existe para celebrar o amor, empurro a palavra madruga- da e é doce essa tarefa. pronuncio palavras ao teu ouvido. palavras que o esquecimento acolhe no seu regaço, palavras para reprogramar o teu sentir, que a travessia aconteça. que os camelos paralelos a nós possam transportar água suficiente e o sol nos seja brando, que o vento não anule as peugadas das rãs. De tempos a tempos necessitarei desse mapa. (ONDJAKI, 2014, p. 72)

Em “Zanzibar”, há uma marca textual que nos faz perceber um dialogismo entre

narrador e a ilha. Há o pronome “sua” marcando uma voz feminina e uma pausa. A pausa

indica uma interlocução: Sou sua. No parágrafo seguinte temos o vocábulo “cansado”19 que

tanto pode se referir ao “verso” anterior “corpo interno” como pode ter significado próprio de

um “eu” masculino cansado.

Sustentamos, pois, a tese de que neste parágrafo é a voz da ilha que fala ao narrador.

Numa correspondência erótica ela se diz pertencente ao narrador. Mas depois percebemos, o

envolvimento entre esses dois corpos é fugaz, pois ambos se deslocam para a solidão.

A relação entre a ilha e o viajante é uma relação de amor, em que a ilha só existe

enquanto tocada pelo outro, enquanto narrada pelo outro. Num envolvimento sedutor, a ilha 18 O termo teria surgido no século XVI como um conceito de anatomia que visava descrever o comportamento dos combatentes de guerra durante uma síncope. Posteriormente o termo passou a possuir significação erótica no léxico da língua francesa. Disponível em: <http://www.expressio.fr/expressions/la-petite-mort.php>. Acessado em: 23 jan. 2017. 19 Ver dissertação de Carolina Turboli, intitulada “A travessia do narrador transforma tempo em espaço: o céu

não sabe dançar sozinho, de Ondjaki”, sobre os tipos de narrador e narrativa de O céu não sabe danças sozinho.

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canta-lhe ao ouvido. Palavras que o tempo leva. Mas da experiência do encontro há uma

transformação do sujeito amado. “palavras para reprogramar o teu sentir. que a travessia

aconteça” (Idem, p. 72)

O parágrafo da ilha é um poema de nostalgia e despedida. Enquanto celebra a

harmonia e o encontro, prepara-se também para a despedida. Para a travessia do sujeito. Pois a

ilha, é apenas passagem, apenas ritual de uma viagem de autoconhecimento.

A ilha encerra o seu discurso em: “de tempos em tempos necessitarei desse mapa”

(ONDJAKI,2014, p. 72). O encontro entre narrador e a cidade/ilha inventa uma cartografia

poética, que precisa sempre ser revisitada para então dar existência a própria ilha.

Há nesse jogo erótico entre narrador e ilha uma dança – a sensualidade e a melancolia

do tango –, mas, há também um descompasso. Quando adormece no regaço da ilha, o narrador

tem pesadelos. Embora sejam sonhos conturbados, o narrador alega não ter medo. “Que

pesadelo bonito frequentar teu sono. ” (Idem, p. 73)

De forma coordenada, há um fluxo de imagens desordenadas como um fluxo do

inconsciente que deseja revelar algo. Uma dessas imagens é a imagem do sonho pendurado,

como fotografia ou desejo em suspensão.

A saudade é a tinta e a folha que lhe fazem (en)tornar sonhos em narrativa, aqui em

“Zanzibar” canta-se o sonho através de uma saudade. “a palavra saudade chega e se acomoda

feita folha, tinta de entornar sonhos, gostas de vinho tão tinto” (ONDJAKI, 2014, p. 73)

O narrador então, cansado de percorrer e desvendar o corpo da ilha, parte em busca da

redescoberta do seu próprio corpo, o corpo interno. Sabendo ser o amor qualquer coisa breve,

o narrador encerra com um canto de liberdade: “em mim, apenas o meu corpo por gaiola”.

(Idem, p. 73)

O canto dos afetos subjetivos, das sensações e da liberdade é uma clara dialogia com a

poesia de Paula Tavares, com aquele eu-lírico que salta o cercado e vai em busca da sua

independência. A retratação amorosa de corpos que ora se encontram e ora se desenlaçam é

também intertextualidade com a poetisa angolana.

Nossa poetisa usa, em Dizes-me coisas amargas como os frutos, sua sabedoria não para desligar-se dos prazeres, mas faz do seu saber uma ferramenta de reflexão sobre aquele presente que interrompeu, em virtudes das dores, os sentimentos amorosos, saborosos e prazerosos. (...) Amor que revelará a faceta da experiência perceptiva com o outrem, já que o sujeito lírico amoroso se dará em corpo, em palavra e em desejo. Tudo isso a revelar uma vivência para além de si: as relações entre os corpos que estão envolvidos no enlace amoroso. (COSTA, 2014, p. 40 et p. 77)

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Em “Zanzibar” assim como em Ana Paula vemos então o diálogo a partir da

experiência amorosa entre o “eu” e o “outro”. O diálogo se desnuda em uma conduta erótica,

em um discurso de sonho amoroso. Fica a experiência e a expectativa da volta, ao menos

enquanto discurso. “O sonho apareceu despido/Ainda voltas/De vez em quando/ Com as

palavras da louca. ” (TAVARES, 2010, p. 201)

Para encerrar o capítulo das intertextualidades, falaremos na verdade, das

“intratextualidades”, ou seja, dos encontros que a escrita do Ondjaki promove consigo mesma,

conjugando tempos.

No Brasil, o livro Sonhos azuis pelas esquinas recebeu o título de O céu não sabe

dançar sozinho. Esta é uma reminiscência de uma outra obra do autor. O trecho em questão

foi retirado do livro Avó dezanove e o segredo do soviético, de uma fala de um dos

professores cubanos.

“estrelas a rodopiar no deserto negro...preciso de estrelas, compañeros, eu preciso de

estrelas... Porque o céu não sabe dançar sozinho!” (ONDJAKI, 2009, p. 175). A frase do

professor cubano em despedida de Angola rumo a sua terra natal era uma invocação, mais que

uma despedida, era um rito de passagem. Tendo ensinado aos alunos mais do que

instrumentações matemáticas, lições de vida e de luta. Era esse grito de luta que ele desejava

ver ecoar.

Ao nomear seu livro como O céu não sabe dançar sozinho, Ondjaki invoca seu

professor da infância como numa resposta que diz que aquelas palavras não foram em vão,

que a estrela ainda brilha, agora em sua pena. Este livro é, portanto, também ensinamento,

uma cartilha de bailado aos céus. Se o céu não sabe dançar sozinho, “Dissoxi” há de lhe

ensinar. Com seu bailado que é escrita do corpo e história de vida.

A intratextualidade é um diálogo interno, o autor conversa com sua própria escrita

sendo assim, portanto, um exercício metaficcional que dá ao personagem ou a palavra um

certo estatuto de verdade, o personagem vive para-além da obra, além do contexto em que foi

escrito. “Dissoxi” passa de personagem de O assobiador para personagem transeunte das

obras de Ondjaki. Como um quadro que rompe a moldura em que fora colocado e perambula

pelo museu, em vida.

Sobre a intratextualidade, Elison do Nascimento e Renato Neves, dissertam de forma a

analisar a obra de Machado de Assis, pelo viés do dialogismo seja com suas obras, seja com

seu tempo. Ao que cito:

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É importante salientar que Bakhtin (1993 apud FIORIN, 2006) também nos fala das relações que existem dentro dos textos, de quando duas vozes são exaltadas no interior do texto. Tal processo se intitula intratextualidade. Em linhas gerais, a intertextualidade trata da relação em que um autor “A” estabelece em seu texto com

outro texto de um autor “B”, enquanto o processo de intratextualidade descreve a relação que um autor “A” estabelece consigo. Porém, torna-se necessário que relembremos os conceitos fundamentais do dialogismo, quando Bakthin afirma que a voz de um mesmo autor, quando transposta em obras diferentes, sobre modificações de ordem enunciativa. Segundo tal ponto de análise, fica evidente que a intratextualidade é inerente à intertextualidade, está inserida nela. (NASCIMENTO ET NEVES, 2011, p. 52)

“Dissoxi”, esta personagem acima mencionada, é outra das intratextualidades de

Ondjaki. Já tendo aparecido em O assobiador, personagem feminina que carrega o mar dentro

de si, “Dissoxi” reaparece em “Massoxiangango”, esse lugar imaginário, como forma de

ensinar um bailado que inscreve um tempo, uma história de dor, sua história de vida.

Compagnon, em seu livro O demônio da teoria, disserta sobre as passagens paralelas

da literatura. O processo de identificar as passagens paralelas na obra do autor, segundo

Compagnon seria uma forma de clarear aquilo que ficar obscuro em uma obra, servindo

também de forma a perceber a existência de uma coerência na escrita deste autor, há ali uma

intencionalidade poética. “Trata-se sempre, a partir de passagens paralelas, de detectar uma

rede latente, profunda, subconsciente ou inconsciente. ” (COMPAGNON, 1999, p. 77)

A esta rede latente chamaremos em Ondjaki de cartografia. As passagens paralelas da

obra de Ondjaki representam cada uma das cidades por onde esse narrador passou. Mais do

que uma cartografia física, no sentido puramente geográfico, Ondjaki constrói em seu livro de

contos uma teia poética, uma cartografia literária.

Esta cartografia literária se constrói essencialmente a partir de uma atmosfera onírica.

É o sonho – e o pesadelo – o território a ser mapeado de forma a construir uma identidade,

uma leitura de mundo. Sonho, memória e intertextualidade conjugados buscam indagar de

forma subjetiva que identidade o sujeito contemporâneo está construindo e como lidar com a

fluidez que esta identidade possui na modernidade, sendo capaz de absorver um pouco de

cada cultura com que se tem contato de forma a afirmar a sua própria cultura primeira, de

forma a valorizar a sua origem.

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4. ENTRE COR E LETRA: AS CIDADES E O SONHO

4.1 Os sonhos: para onde nos atrai o azul

No prefácio “Sobre a escova e a dúvida” ao livro Tutameia – terceiras estórias,

Guimarães Rosa escreveu sobre, dentre outras coisas, o próprio exercício da escrita,

abordando as relações entre história e ficção, entre autor e leitor e, sobretudo, entre o ato de

escrever e se autoconhecer.

Neste subcapítulo, nos interessa a frase final do referido prefácio, em que o narrador

indaga: “Para onde nos atrai o azul? – Calei-me. Estava-se na teoria da alma. ” (ROSA, 1968,

p. 165)

Adentrar o azul para o narrador de Guimarães Rosa é penetrar nas instâncias da alma.

Reconhecendo a complexidade desta empreitada que é teorizar sobre o azul, o narrador se

cala. É partindo desse silêncio em Guimarães que seguimos encantados e atraídos pelo azul,

rumo à sua teorização, e à tentativa de sua apreensão.

Azul, cor enigma. Cor primária, paz ou melancolia. Há muita história por trás de uma

simples cor. Apesar de ser uma das três cores primárias, sendo assim cor mãe de muitas

outras, representação do feminino em sua capacidade de multiplicação.

Ainda que o azul não seja uma cor em abundância na natureza – poucas flores, frutos e

animais possuem esta pigmentação, há inclusive muita alteração genética para a inserção da

pigmentação azul na natureza – esta cor possui muitas simbologias para o homem moderno e

é bastante comum nas representações artísticas, como a pintura e a literatura.

Azul é considerada uma cor fria, e, portanto, usada em ambientes internos para dar

uma sensação de frescor em dias quentes, entretanto sua frieza é comumente associada à

tristeza e à melancolia, surgindo até um termo e um estilo musical surgido com os negros

norte-americanos denominado Blues, o termo se refere a estar triste, o estilo musical canta a

tristeza. Uma das teorias não comprovadas para essa associação viria da mitologia grega. Zeus

fazia chover quando estava triste, a humanidade posteriormente passou a associar água, chuva,

mar e céu com a cor azul, o que culturalmente levou à associação da cor azul com as lágrimas

de Zeus e metáfora para tristeza e depressão.

Nas artes plásticas, uma “fase azul” surgiu a partir de estudos das obras do pintor

espanhol Pablo Picasso. Após o suicídio de um amigo íntimo, Picasso mergulhou em

profunda tristeza e viu na cor azul a melhor representação do que sentia. Essa fase azul,

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definida como fase de luto e tristeza, durou dois anos, abrindo um precedente na história das

artes plásticas. Outros pintores como Vincent Van Gogh, Henri Matisse e Paul Gauguin

também tiveram suas pinceladas marcadamente azuis, ainda que não remetam

necessariamente a uma fase ou à melancolia. Sobre o período azul de Picasso, em especial a

análise da obra La vie* (1903), encontramos os seguintes comentários:

A obra La vie, pintada em 1903, faz parte do período Azul em que os tons melancólicos dominam sua obra. Os quadros desta fase expressam o pessimismo social, a desolação e o desespero. La vie é um resumo da visão do artista naquele tempo. Um homem e uma mulher nus estão de pé à esquerda de frente para uma mulher vestida, no lado direito da tela segurando uma criança nas dobras de uma túnica. Entre eles, dois desenhos pairam: um casal aconchegado no mais sombrio abatimento e uma mulher encolhida. Esta obra é perturbadora, há uma ausência de esperança de vida, a mulher parece apoiada ao homem pedindo proteção e aconchego, enquanto a outra, sozinha se encolhe. Parece não haver comunicação entre as pessoas e é este, um retrato das relações da época. Homem e mulher se apoiavam em relações em que não existia diálogo e a supremacia do masculino era algo inquestionável, era ao homem a quem cabia a proteção, era ele o ser supremo da relação. Há também a representação da mãe com seu filho, sinalizando que a posição social da mulher era ligada a maternidade, ou seja, a posição social da mãe. (VALENTE ET ALLI, 2006, p. 6)

Embora tenha forte conexão com a tristeza, o frescor da cor azul também possui

simbologias positivas, ligadas à paz e à sacralidade. Na Grécia, a cor azul tem como

simbologia afastar energias ruins; o amuleto denominado popularmente “olho grego” é um

grande olho azul, as casas gregas são pintadas em branco, mas sempre com detalhes em azul,

até a bandeira nacional é azul e branca.

O manto da virgem Maria é sempre representado na cor azul, nas religiões católicas, o

azul remete à ideia de paraíso, salvação e verdade. As forças de manutenção de paz da ONU

usam o azul como cor representante, os soldados da ONU são popularmente chamados pela

alcunha de capacetes azuis (ainda que haja aqui um paradoxo entre manutenção de paz e

soldados fortemente armados, o azul o ameniza).

Azul, símbolo da realeza. Assim como a cor púrpura, a cor azul era considerada nobre

pela dificuldade na produção deste pigmento. Os “sangue azul” eram os indivíduos nobres,

por possuírem tez clara e veias evidentes e azuladas.

Segundo estudos de uma revista britânica, a cor azul é a cor preferida de 45% da

população mundial. (JORDAN, 2015, p. 1). Surge então a questão: por que esta enigmática

cor atrai tanta gente?

O cientista alemão Johann Wolfgang Von Goeth, em seu tratado sobre a teoria das

cores, descobriu o poder calmante do azul. Talvez sua teoria explique a preferência pelo azul

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por parte da população mundial.

Nos cinemas, inúmeras são as representações a partir do azul. Desde a produção Blue,

de Derek Jarman (1993) até o recente La vie d’Adèle (no Brasil, Azul é a cor mais quente), de

Abdellatif Keniche (2013) trazem para as telas as possibilidades e impossibilidades de

apreensão simbólicas do azul. Há inclusive a dissertação de Laura Hércules (2013) sobre a

escala de cores nos filmes de Godard. Na música, a cor não passou despercebida. É o que

evidencia a canção “Unicórnio azul”, de Silvio Rodriguez. Na pintura moçambicana também

podemos ver a expressão do azul nas obras de Malangatana.

A primeira descoberta que se faz sobre o azul é que é impossível desnudá-lo,

apreendê-lo. Algumas pessoas são capazes de interações sinestésicas com o azul, outras são

incapazes de vê-lo; há também quem se deixe enfeitiçar pelo caráter poético, místico e

“metamorfoseante” da cor azul. Neste último, identificamos o eu-lírico e o narrador das obras

de Ondjaki.

Seja o Bairro azul, reminiscência de infância, em Os da minha rua (2007) seja uma

praia “azulada e linda” em E se amanhã o medo (ONDJAKI, 2010, p. 20), as memórias de

Ondjaki estão sempre inundadas de azul. Este azul ainda que misterioso nem sempre possui

carga negativa de tristeza.

Em seu livro de contos intitulado Sonhos azuis pelas esquinas, publicado no Brasil

como O céu não sabe dançar sozinho, temos a pista, ambos os títulos carregam o azul

revelado ou enquanto potência celeste.

“Sonhos azuis pelas esquinas” é um verso do poema sem título, pertencente ao livro

Como veias finas na terra (2010), da poetisa angolana Paula Tavares, poema-guia de viagem

que nos ensina o que levar na bagagem. Numa viagem, nada é preciso, guarda-se o lugar com

palavras, com memórias e afetos. Assim fez Ondjaki em seu livro de contos: guardou de

lugares reais ou imaginários apenas as palavras, apenas os afetos. Estes serão por nós vistos

em sua polissemia, tanto como demonstração de carinho e cuidado, quanto em sua capacidade

de choque e reflexão teorizadas por Spinoza. O livro Afeto & poesia, de Carmen Tindó,

elucida:

Para esta análise, nos apoiamos teoricamente em Spinoza, para quem afeto (affectus ou adfectus em latim) designa um estado da alma, uma força propulsora capaz de levar ou não o ser a ações ou paixões. A maneira como somos afetados pode bloquear ou dilatar nossa vontade de agir. De acordo com a Ética, de Spinoza, um afeto sucede, concomitantemente, no corpo e na mente, abalando tanto a matéria como o espírito. O filósofo alerta para o fato de que não possuímos, entretanto, o pleno domínio dos afetos. (SECCO, 2014, p. 13)

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Embora, o título que une os contos de Ondjaki, seja Sonhos azuis pelas esquinas, a cor

azul aparece enquanto vocábulo desvelado apenas nos contos “Gorée” “os pássaros voam

parados, suspensos e próximos, dando sombra às árvores e graça ao céu azul” (ONDJAKI,

2014, p. 47) “Laranjeiras” “Esperei, calado. Ajudei. O colete azul, talvez isso, fosse um

adereço do Sinhozinho.” (ONDJAKI, 2014, p. 104) “Massoxiangango” “Olhei o céu. Limpo.

Azul feminino. Depois corrigi o pensamento: azul só. Nunca, durante o dia, um céu me tinha

feito lembrar do deserto” (Idem, p. 127) e no conto “Moçâmedes” que é uma teorização

filosófica sobre o azul.

Na voz de uma criança, a epígrafe denuncia, “Azul? Essa cor toda enorme...”.

Reticências que sugerem a imensidão do azul.

Em “Moçâmedes”, cidade localizada geograficamente no sul de Angola, o interlocutor

se percebe inserido numa atmosfera de incerteza entre a realidade de estar acordado e a

realidade de um sonho. Neste soar de vozes, uma indefinição de tempo e espaço, gotejam

palavras de um diálogo entre avô e neto, a palavra-chave “âncora” marca um entre-tempo

passado e presente, as lembranças que o interlocutor tem deste avô estão marcadamente

fissuradas pelo deslocamento temporal.

Obedeço. Humedeço os olhos com o tom da sua voz. Eu queria uma estória. Uma estória de pescador. O que elas têm de mágico é quase sempre fugirem ao banal. Lembro-me de pensar isto desde criança: são de verdade as estórias dos pescadores. São sempre simples. São sempre breves. Límpidas. São belas sem se afastarem da textura do sal. A pele queimada, limpa: é isso que lembram as estórias dos pescadores. (ONDJAKI, 2014, p. 98)

A conversação entre avô e neto quer se revelar como um diálogo de infâncias. Os avós

são a âncora da infância. Estórias banais repletas de uma magia segredada a dois. Pedra

fundamental de nossa história, avós-pescadores nos têm presa fácil de suas lições de afeto e

poesia.

Sentado, a rir das estórias do avô, o interlocutor (re)descobre o azul. O diálogo poético

começa como uma provocação do neto que desvela os silêncios nas estórias do avô,

possivelmente pausa para invenção de estórias, intervalos de afetos, devaneios.

O avô tão pescador quanto poeta devolve a provocação. Descobre o poeta já latente no

“miúdo”.

– É uma âncora. Tu gostas de palavras. Nunca serias pescador. Talvez poeta. Se eu disser ‘azul’, tu vês o que? – o avô fez cara de pele queimada. Não respondi. Fiquei quieto. Os corpos moviam-se ao fim da tarde.

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Ele insistia com essas palavras em pingo de chuva: – Eu vejo o céu. Só o meu céu. Azul e simples. Humedeço os olhos com o tom da sua voz. Ele não tinha fugido ao banal. Mas, dito por um pescador, já não era banal. – Para mim ‘azul’ pode ser a parte de dentro das pessoas – murmuro eu. Ferro a âncora. Deixo que a voz reencontre o meu corpo. Talvez eu não esteja aqui, em Moçâmedes, com meu avô. De repente, já posso respirar fundo. (ONDJAKI, 2014, p. 99)

Poeta e pescador, sinônimos de uma relação íntima com o narrar. Todo pescador é

poeta, quando acorda antes do dia e faz a poesia dançar na rede de pesca, quando pede licença

aos deuses para entrar num azul impreciso, quando se assume minúsculo e impotente num

barco pequeno em meio ao mar revolto, mas, sobretudo, quando faz dessa rotina experiência

épica, transforma a sardinha pescada num peixe-espada gigante e impossível de carregar,

transforma mar revolto em copo d’água. Todo poeta é um pescador de palavras. Por mais que

busque o melhor peixe, nunca sabe o que o mar-poesia lhe tem reservado. Todo pescador é

poeta, o mais velho em sua provocação ao neto não ignorava isso.

E nesta dialética afetiva, o avô diz: “Se eu disser ‘azul’, tu vês o que? ”. Assim, com

um enigma a ser decifrado, o neto se põe a pensar sobre o azul. Mas não o azul dito, o azul

imaginado. Ambos compartilham a sabedoria de que há um azul para cada um, e de cada azul

muitos outros se evolam.

Se eu digo azul, a cor salta aos olhos do interlocutor, como uma intromissão do

narrador, impossível não pensar azul ao nomeá-lo. Uns veem um azul que é verde; outros,

cinza; alguns, os que transcendem o olhar, conseguem sentir azul com a alma.

O menino, absorto no jogo de sedução a que as palavras encantatórias desse pescador-

sereia levam, responde com um azulado silêncio. O silêncio, que é também forma do muito

dizer, não satisfaz a curiosidade do avô que em seu canto da sereia diz: “ – Eu vejo o céu. Só o

meu céu. Azul e simples. ”

O azul tem cor de céu, um céu único. O céu das conversas entre neto e avô, aquele céu

que segredou momentos de afeto. Ao que o neto responde com uma quase chuva de lágrimas

que não caem. E admite, ferrando a âncora, e se entregando ao inusitado de um diálogo quase

banal, que, para ele, azul “pode ser a parte de dentro das pessoas”.

O azul, como cor escolhida para tingir memórias desgastadas no tempo, tem seu valor

simbólico, por ser uma cor profunda e misteriosa que revela os estados da alma de um

narrador nostálgico de um tempo de infâncias. Sobre os mistérios do azul, Israel Pedrosa

afirma:

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O azul é a mais profunda das cores – o olhar o penetra sem encontrar obstáculo e se perde no infinito. É a própria cor do infinito e dos mistérios da alma. Devido a afinidades intrínsecas, a passagem dos azuis intensos ao preto faz-se de forma quase imperceptível. O azul é, ainda, a mais imaterial das cores, surgindo sempre nas superfícies transparentes dos corpos. (PEDROSA, Israel. 2002, p. 112)

“O azul é a mais imaterial das cores. ” E é seu caráter abstrato e incompreensível que

desperta poesia. É na transparência dos corpos imateriais de um sonho que o azul se revela

como o interior dos personagens. Azul é a potência onírica do conto. O movimento dos corpos

no fim da tarde já precipitava uma realidade fluida de sonho azul numa esquina de

“Moçâmedes”. Num respirar ofegante, o despertar. Talvez tenha sido um sonho que

evanesceu ao ser nomeado e o narrador não estava lá em Namibe, talvez o sonho comece no

acordar que põe fim ao narrar.

Uma superfície pintada de azul dilui-se na atmosfera, causando a impressão de desma-terializar-se como algo que se transforma de real em imaginário. A lenda do pássaro azul, símbolo da felicidade inatingível, nasceu, sem dúvida, dessa analogia secreta do azul com o inacessível. Diante do azul a lógica do pensamento consciente cede lugar à fantasia e aos sonhos que emergem dos abismos mais profundos de nosso mundo interior, abrindo as portas do inconsciente e preconsciente. Por sua indiferença, impotência e passividade aguda que fere, ele atinge o clima do inumano e do supra-real Segundo Kandinsky, seu movimento é, ao mesmo tempo, “um

movimento de afastamento do homem e um movimento dirigido unicamente para seu próprio centro, que, no entanto, atira o homem para o infinito e desperta nele o desejo de pureza e de sede do sobrenatural. ” (Idem, p. 113)

Ainda que contos esparsos, muitos anteriormente publicados em jornal, no livro

Sonhos azuis pelas esquinas, estas narrativas de Ondjaki se conectam por uma linha onírica e

imaginária, uma estrada azul por onde as viagens acontecem. Estas possuem uma geografia

física: Laranjeiras, Madri, Moçâmedes/Namibe (...), mas assumem também uma geografia

invisível, uma geografia de afetos, de memórias de lugares visitados, de lugares inventados,

lugares da ordem do inconsciente.

Sonhos azuis pelas esquinas é um relato de viagens, mas diferente dos textos deste

gênero, privilegia mais o narrar e as relações orgânicas entre corpos e afetos que cada nome-

cidade evoca do que a cartografia da própria cidade. Para Ondjaki, guarda-se o lugar, na

memória e nos corpos visitados.

As viagens são infinitas, porque guardam sempre possibilidades de outras viagens-

potência. Calvino, em seu livro, Cidades invisíveis, afirma sobre: “Essa cidade que não se

elimina da cabeça é como uma armadura ou um retículo em cujos espaços cada um pode

colocar as coisas que deseja recordar: nomes (...) virtudes, números, partes do discurso. ";

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(CALVINO, 1990, p. 19).

Assim faz Ondjaki em seu livro, preenche de memórias, afetos e nomes um discurso

real ou inventado para cada cidade visitada. Pode ser Moçamêdes e não ser, pode ser a cidade

do tamanho do sonho do narrador, uma imensidão azul. Pode ser que as cidades de Sonhos

azuis pelas esquinas sejam como a Aglaura de Calvino e só existam enquanto discurso. Ou

como Pirra e não caibam no discurso em que foram imersas. Tudo pode ser. As cidades de

Ondjaki são azuis, é impossível delimitá-las, apreendê-las; nos resta compactuar com os

sonhos do narrador, com a poesia de sua prosa.

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4.2 Guarda-se o lugar em memórias: deslimites entre sonho e memória

A memória é uma verdadeira armadilha: corrige, sutilmente acomoda o passado em função do presente.

Mario Vargas Llosa

Memória e sonho se imiscuem num emaranhado de lógica muito complexa. As

memórias guardadas por cada indivíduo são emboscadas que nos permitem crer reprodução

fiel de um tempo passado. Entretanto, como bem denuncia Llosa, a memória é uma armadilha

que mistura fictum e factum quando trazida imageticamente no tempo presente.

Os sonhos utilizam-se desta matéria complexa que é a memória e as misturam

corrompendo tempo e espaço em que se sucederam transformando-as em conjuntos de

imagens insólitas. Observar como os sonhos articulam as memórias é essencial para entender

as questões levantadas pelo inconsciente individual, bem como o sonho coletivo é essencial

matéria para a compreensão da sociedade.

O sonho é a ambientação de quase todos os contos do livro Sonhos azuis pelas

esquinas, mas, vale ressaltar que cada conto possui sua identidade e há nestes uma memória

latente que quer imergir, um passado que quer ser lembrado e recriado como forma de

ensinamento ao presente. Daquilo que podemos aprender com o passado.

Nesses contos enquadrados como viagens embriagadas de memórias, vemos uma

preocupação. Uma consciência da inexorabilidade do tempo, mas uma tentativa desesperada

de não perder as vivências.

Os contos que tratam a memória de forma simbolicamente mais evidente são:

“Madrid”, “Shangai”, “Massoxiangango” e “Mussulo”. Nos apropriando da obra literária a ser

analisada, e subvertendo a ordem proposta pela edição, separei alguns destes contos para uma

análise da presença da “memória-souvenir”20 dentro dessa escrita onírica que se mostra

Sonhos Azuis pelas esquinas.

Os estudos feitos sobre a presença memorialística em Ondjaki são quase sempre

associados a um estudo da infância pois, sabemos este é um lugar de eterno retorno em busca

de inspiração e autoconhecimento.

20 O termo memória-souvenir advém do livro Matéria e memória – Ensaios sobre a relação do corpo com o espírito, de Henri Bergson. Ver referências bibliográficas.

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Em análise do livro Bom dia, camaradas, Rita Chaves afirma que o uso da memória

em Ondjaki é muito mais do que matéria-prima de inspiração literária, é uma forma de dar voz

a uma espécie de memória coletiva, pondo em questão, portanto, a identidade.

O passado é elemento essencial na formação identitária individual e coletiva, é deste

caráter identitário que a literatura se nutre em sua composição de uma nova realidade.

O passado, transcriado, é ponto para reflexão, e a memória literária constitui matéria vasta (...) funciona como um lugar onde se confrontam experiências, através das quais se processam os traços de uma forma literária capaz de abordar a totalidade da vida reclamada pelo homem em sua historicidade. (CHAVES, 2005, p. 81).

Em Sonhos azuis pelas esquinas, a memória passa pelo viés da infância no conto

“Mussulo” e há até o confronto entre duas memórias individuais, enquanto para o “eu” que

recorda um episódio traumático de sua infância tudo assume um veredito de verdade, para o

“eu” que vivenciou o episódio de uma outra perspectiva e já em fase adulta, o relato não passa

de ficção. A nota inserida no final do conto entra como uma intromissão da factualidade num

espaço puramente memorialístico e ficcional.

“Mussulo” como disse o próprio autor em entrevista, é um conto diferente dos demais

por possuir a pena carregada das emoções de uma memória da infância. Se há neste conto

uma atmosfera onírica ela não fica evidente através dos elementos textuais. Entretanto, o

conto se passa num lugar espacial da memória, na infância.

A recordação juvenil possui o tom marcante de uma memória difícil, episódio de certa

forma traumático para a criança que viveu aquela noite. O conto delineia um momento

complexo tanto na memória individual quanto para a memória coletiva. É um momento de

instabilidade política e de certo medo.

A mãe do narrador havia sido convocada a depor, dar explicações sobre algo que

possivelmente havia dito e que o vento levou. Marcando de forma simbólica como era o clima

no país nesses momentos pós-independência.

A situação é desconfortável para todos os personagens que ambientam esse conto,

entretanto, o que para os adultos havia se tornado de certa forma rotina, para as crianças – que

não tinham acesso a tudo o que acontecia na cidade – era um momento muito tortuoso de

incerteza. Para uma criança, ter sua mãe retirada de seus braços, ter aquele momento de

convivência fraturado por agentes externos, representa uma violência simbólica, uma perda.

O conto se inicia de forma impessoal, há uma força, um agente exterior que vem

buscar a mãe do narrador a um comparecimento compulsório a algum lugar, sabemos depois

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se tratar de soldados do governo, quatro homens armados a levarem uma senhora, só e

desarmada, a prestar depoimento.

Há por parte de quem fica um clima de espera, de passividade, diante da saída

apressada e compulsória por parte dessa personagem, mãe do narrador. Até a fala dos

personagens que ficam é comedida, a angústia sobressai no andamento da narrativa.

A imagem de uma mulher indo sozinha num bote, num mar desértico e escuro, junto a

quatro homens armados, nos atinge com sua sutileza cortante. A narrativa nunca afirma nada,

mas o suspense em torno do que pode acontecer ou do que pode ter acontecido é muito mais

cruel. De forma empática sentimos a mesma apreensão sentida por esses personagens.

A primeira inserção do discurso direto se dá através da pergunta de uma das crianças?

“ – A mamã não vai comer conosco?” (ONDJAKI, 2014, p. 134). A forma do narrar busca nos

causar uma afetação, uma empatia imediata com os personagens dessa narrativa que tem seu

momento simbólico de união familiar interrompido de forma abrupta.

Não há elementos que nos remetam ao lugar do sonho, entretanto, a mesmo ambiente

de medo e incerteza está presente neste conto. O medo e a incerteza quando associadas a uma

memória que cremos ser baseada na realidade, na vigília, nos afeta de forma mais pungente. O

grande diferencial de “Mussulo” é a forma como este conto nos afeta.

O pai olha o mar. Apesar das luzes fluorescentes da varanda, o pai sabe que o mar está escuro. Pensa na mulher sozinha no barco de borracha, acompanhada pelos quatro homens armados. Olha o relógio. Irá olhar o relógio muitas vezes nessa noite. (ODNJAKI, 2014, p. 134)

Sua escrita que até então vinha assumido seu caráter cosmopolita através das múltiplas

intertextualidades e das múltiplas viagens, assume em “Mussulo” seu caráter local. “ – A mãe

já vem. Tem que ir falar com uns camaradas em Luanda” (Idem, p. 134). Ir falar a uns

camaradas em Luanda marca no conto um período da história de Angola, um período difícil,

pós-independência em que as buscas por afirmação de uma estrutura sólida de poder

causavam medo e insegurança na população.

Os animais, as cigarras, são os únicos personagens que se movimentam, cantam e são

de fato livres. Tem o direito de ir e vir e falar o que quiserem. A crítica vem, portanto, através

de uma metáfora. As cigarras não têm medo, falam o que sentem vontade já, as crianças

sentem medo. Do pouco que sabem, têm a noção devem cuidar ao falar.

O conto tem uma estrutura narrativa cíclica como se quisesse fixar imagens na mente

do leitor. As cigarras estão sempre a fazer barulho no pano de fundo como se estivessem a

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começar ali uma revolução pela liberdade.

O bife e o preparo desse prato também fazem parte dessa estrutura cíclica marcando a

ausência da figura materna num momento simbólico, como o dia de ano novo. Diante do

entusiasmo das crianças com relação ao prato, nota-se que não é um prato cotidiano, é uma

refeição de celebração, de festa. O ano novo em si representa a renovação, o fim de um ciclo e

o início de um outro, um rito de passagem.

Ritual este que foi quebrado com a chegada de soldados armados a levarem o

personagem materno para depoimento compulsório. A memória desse miúdo ficou, portanto,

marcada pela ausência, pelo medo e pela incerteza.

A união dessa família é quebrada quando um dos personagens é retirado desse

ambiente familiar. A forma como o conto é narrado nos dá a ideia das pequenas violências

simbólicas que tal evento representa. A mãe que fez os bifes, sentiu o cheiro, mas, não teve

tempo de prová-lo. Alegoria para aqueles que trabalham para a construção dessa ideia de

nação, mas, que tem o direito a celebração negado.

Outra marca simbólica da violência é o fato das crianças terem vontade de chorar, mas,

não chorarem. Pois, para chorar era preciso motivo. Neste conto não há a liberdade nem sobre

as próprias emoções. Todos os personagens vigiam o que falam e o que sentem. No lugar das

emoções, há apenas o silêncio e o movimento mecânico de talheres.

Tudo soa arbitrário e elipticamente violento. A falta de liberdade, o depoimento

compulsório, uma mulher sair acompanhada de quatro soldados armados, à noite em meio ao

deserto do mar. A memória contada mais parece com um relato de um trauma de infância.

Numa cultura em que a presença da figura do mais velho é respeitada e símbolo de

sabedoria, o autoritarismo de um governo ainda nas vias de se firmar enquanto poder,

equipara o lugar de fala dos personagens. Miúdos e mais velhos em silêncio, pois ambos não

sabem o que dizer, ambos desconhecem o que pode vir a acontecer.

Diante de um momento de espera o miúdo relembra uma conversa que teve com seu

pai e este lhe disse para prestar atenção ao que falava pois, palavras o vento leva. Ainda que

os adultos evitem falar desses assuntos políticos com as crianças –. “Ninguém não nos diz

nada: ninguém falava dessas coisas à frente das crianças. ” (ONDJAKI, 2014, p. 139) – estas

podem sentir o que acontece, através das conversas, de olhares tensos trocados entre os

adultos, do clima de angústia.

A mãe tem os olhos encarnados, a metonímia do choro, que parece corroborar o medo

dos personagens. Apesar do medo, o alivio de ter esse personagem novamente no seio

familiar. A união interrompida de forma abrupta novamente se estabelece a partir da imagem

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do casal de mãos dadas, como se dissessem um ao outro que estariam ali, na alegria e na

tristeza, na saúde e na doença.

A nota de rodapé é uma intromissão do factual sobre a ficção uma vez que a memória

de um episódio vivido foi diferente para cada personagem presente nesse momento. Enquanto

para o adulto não havia ali tanta carga dramática apesar de um momento tenso e de

desconforto, para a criança representou o trauma da perda da figura materna, ainda que por

algumas horas. “Esta versão quem me contou é a criança que viveu aquela noite”.

Ecléa Bosi afirma que memória coletiva e a memória individual estão intimamente

relacionadas, portanto, mesmo que o “Mussulo” seja a rememoração a partir de uma

lembrança individual, há uma memória maior, de um tempo e de um espaço político e

histórico que pai e filho vivenciaram juntos, a sociedade como um todo.

Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Nossos deslocamentos alteram esse ponto de vista: pertencer a novos grupos nos faz evocar lembranças significativas para este presente e sob a luz explicativa que convém à ação atual. O que nos parece unidade é múltiplo. Para localizar uma lembrança não basta um fio de Ariadne; é preciso desenrolar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto de encontro de vários caminhos, é um ponto complexo de convergência dos muitos planos do nosso passado. (BOSI, 1994, p. 413)

Ao falar sobre uma das narrativas de cunho memorialístico, Bom dia, Camaradas,

Ondjaki afirma:

(...) esta história ficcionada, sendo também parte da minha história, devolveu-me memórias carinhosas. permitiu-me fixar em livro, um mundo que é já passado. um mundo que me aconteceu e que, hoje, é um sonho saboroso de lembrar. (ONDJAKI, 2006, prefácio)

Em “Madrid” a memória se transforma em ícones a percorrer o conto de forma sutil. A

relação de “Madrid” com a memória, é uma relação de perda. O desenrolar do conto mostra

uma falha na identidade desse interlocutor que impossibilitado de lidar com seu passado, vive

apenas do seu futuro.

Alguns elementos se repetem em relação à “Budapeste”, novamente temos o

passaporte reafirmando uma identidade angolana, assim como novamente encontramos

falantes de língua portuguesa nos lugares mais diversos, como um aeroporto. O que não é

impossível, mas que levanta a suspeita de uma atmosfera onírica.

O narrador relutando contra o sono, mantinha um diálogo no limiar sonho-vigília com

esse interlocutor peculiar que não se recordava de seu passado, mas via traços deste em seu

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presente.

O interlocutor fala a língua portuguesa, mas não se recorda como aprendeu. Este conto

nos faz lembrar d’O vendedor de passados, de Agualusa, romance que também trata da

identidade, da perda da identidade. O interlocutor de “Madrid” certamente se interessaria

pelos serviços do personagem vendedor de passados. Uma vez que não os possui com clareza,

resta inventá-los.

Essa temática do esquecimento traz uma ambientação melancólica ao conto. A

angústia do esforço em vão para se lembrar. O narrador viajante de “Madrid”, entretanto,

parece pouco interessado no assunto. “– o suficiente sim – disse para resolver a conversa. ”

(ONDJAKI, 2014, p. 35)

O interlocutor então o desperta constantemente com suas intervenções. “– pode fechar

os olhos - disse me com doçura. – mas faça me companhia. ” (Idem, ibdem) O interlocutor

fazia perguntas sobre a morte, sobre a queda do avião demonstrando um certo medo de voar.

Ou como se sentisse um mau presságio.

Cedendo então a esse apelo por um diálogo, o narrador decide perguntar o interlocutor

sobre sua amnésia.

– O senhor começou por me dizer que perdeu o seu passado, entendi bem? – Entendeu bem, sim. Veja não é a falta de uma lembrança. É como se eu soubesse tudo o que houve, mas não pudesse pegar nos detalhes. (...) – O passado de que falo é algo mais profundo do que isso. Isto é, para dizer a verdade: lembro-me melhor do futuro. (Idem, ibdem)

Recuperar uma memória é sempre uma tentativa de carregar água na peneira,

parafraseando Manoel de Barros. Parte da nossa história, da nossa fundação nos escapa por

entre os dedos, mas os pilares, os monumentos, os fragmentos marcantes ficam de forma a

lembrar os dias fundamentais.

O ano de ingresso no vestibular, o nascimento do primeiro filho, ficam em flashes

como as conquistas do tempo. Não ser capaz de lembrar ao menos dos fragmentos é a angustia

de estar sempre acompanhado de um vazio.

Rompendo essa lógica temporal de passado-presente-futuro distanciados de si, o conto

articula uma dobra no tempo e faz o futuro se encontrar com o presente em busca do passado

perdido. A presença do interlocutor parece existir para preencher um vazio, como se o

personagem viesse do futuro para impedir que o narrador embarcasse no voo.

– O senhor espreitou o futuro hoje? Sabia que ia me encontrar aqui?

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– Desconfiava. Encontro pessoas que são como espelhos. – Espelhos? – Você pode contar-me mil estórias. Elas não chegam até mim. Mas você vai refletir as coisas que eu digo. É um espelho. Devolve-me as coisas e assim me encho de coisas. Amanhã, começo a esquecer. (Idem, p. 36)

A representação mais conhecida de um espelho é o clássico de Lewis Carroll, Alice

através do espelho. Para Alice, atravessar o espelho era sinônimo de uma travessia para o

mundo da imaginação, da fantasia e do sonho. O espelho representa no clássico, um ritual da

passagem da protagonista da infância para adolescência. Alice cresce mas mantém dentro de

si a infância, podendo acessá-la sempre que sentir saudade. Assim faz Ondjaki em seus livros,

como o exemplo do Bom dia, camaradas.

Podemos interpretar o espelhamento em “Madrid” também desta forma, o espelho é o

portal de acesso ao mundo dos sonhos, e sobretudo o lugar do auto enfrentamento. Frente a

frente com seu reflexo distorcido, uma viagem para o interior de si mesmo.

Dessa maneira, a quebra de paradigma da separação de duas dimensões particulares de mundo – o real e o imaginário – não se constrói apenas em si mesma. A partir do momento em que se admite a existência de uma outra dimensão axiológica, esta torna possível a visualização de toda uma estética nesse mundo criado. Nesse sentido, não há mais solidão existencial do ponto de vista estético: todo um mundo, constituído das mesmas agregações existenciais que o real, pode estar do outro lado do espelho. A presença do espelho, em uma narrativa, torna-se, então, o próprio símbolo absoluto para a literatura – ele é a porta que dá acesso ao espaço literário. (CORREIA, 2014, p. 34)

Pela mão de Alice, adentramos esse mundo dos espelhos. E vamos, junto com o

narrador de “Madrid” descobrir mais uma forma de diálogo. Sejam as conexões com o mundo

externo através das intertextualidades, seja através de misteriosos olhares ou de personagens

espelhos, invadimos um espaço íntimo, o âmago da narrativa e vemos reveladas as fraturas da

identidade de um sujeito contemporâneo.

A noção de espelhamento nos fica clara a partir da fala do interlocutor que afirma estar

se preparando para não embarcar. Mas quem deixa de embarcar é o narrador. Um é o

desdobramento do outro. É interessante notar, pois, que se o interlocutor é um desdobramento

possível deste narrador no futuro é preciso que este cuide do seu passado de sua tradição. Os

múltiplos acontecimentos e urgências que percorrem o homem moderno podem desconectá-lo

de seu passado, das coisas que lhe são essenciais. O diálogo surge então como um alerta.

Ainda que a linearidade cronológica seja rompida e recosturada de acordo com o bel

prazer deste escritor, há sempre uma marcação temporal simbólica que nos situa. Há a

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oposição entre “antes” e “agora” em “Budapeste”. Em “Madrid” temos, “esquecer o passado”,

“lembrar o futuro”, “a hora mudou ontem”.

Se o mau presságio se confirmou não sabemos, o narrador não embarcou, ele perdeu a

hora. Perder a hora é para as urgências da contemporaneidade uma culpa, um pecado. Neste

conto, perder a hora é salvação, é instinto, é retomada de uma harmonia interior. É ouvir a

mensagem do inconsciente dizendo não estar pronto para este voo.

O narrador, zangado com esse interlocutor por acreditar que este lhe fizera perder o

voo, lhe dirige uma seca sentença: “ – Não me desloco em função de pressentimentos, meu

senhor. Tinha coisas marcadas para amanhã. ” (ONDJAKI, 2014, p. 37)

O interlocutor lhe responde: “ – Então você desloca-se em função de quê? ”. Esta

pergunta possui forte poder de afetação. O tipo de pergunta que faz parar o tempo e que

coloca o ser em íntima reflexão.

Só após perder o voo e ser intimamente questionado que este narrador começa a se

perceber de fato, enquanto espelhamento do outro. “Senti-me o tal espelho. Eu não estava ali

por mim, mas apenas para que ele se pudesse refletir na conversa. (Idem, p. 38) Assim como

em “Buenos Aires”, ele se sente apenas parte de uma obra maior, como se estivesse ali apenas

para refletir um outra urgência.

A fotografia representa a memória ideal, o instante captado tal como foi, imóvel,

inalterado. Mas, na realidade a fotografia também tem suas limitações na captação do real, na

medida em que só capta um prisma, da realidade, do momento. Assim como a memória, a foto

amarela com o tempo. Ao olharmos para uma fotografia, assim como para o passado, vemos

apenas o que a memória daquele tempo nos permite lembrar. Haverá sempre lacunas por

completar com ficção.

– O que acontece se você fizer força, muita força para se lembrar do seu passado? E se olhar para uma fotografia? – Só recordo coisas distorcidas. São memórias de outros. Mesmo estas conversas em reflexo chegam-me já diferentes. (Idem, ibdem)

Antes de partir o interlocutor pede-lhe que acerte o relógio. Um relógio desajustado é

um sintoma de uma desarmonia entre o sujeito e o seu tempo. A harmonia vem de uma

valorização e de um aprendizado do passado.

Na contemporaneidade, época em que não se tem tempo a perder, em que tudo é

urgência, em que tempo é dinheiro, as emoções acabam sendo reprimidas, os pressentimentos

são ignorados, as emoções são deixadas de lado. O mau presságio é como um alerta, como se

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algo no âmago do indivíduo pedisse a pausa e a reflexão e esse personagem surge como forma

de afirmar: " – E.. de vez em quando... deixe-se guiar por um pressentimento. (...) – não

existem pressentimentos errados. ” (Idem, ibdem). De vez em quando, deixe-se estar em

harmonia com seu eu interior. Se ele diz não vá, você deve escutá-lo.

No final do conto o narrador encontra um envelope no chão vermelho. Queria entregá-

lo ao interlocutor, mas ele já havia desaparecido. A curiosidade então o fez abrir esse

envelope, encontrou dentro deste uma fotografia de duas pessoas de costas sentadas. “Um

deles podia bem ser ele, ao fundo um espelho e um relógio com uma hora totalmente

diferente. O outro parecia, talvez, alguém que fosse eu. ” (Idem, ibdem)

O narrador agora ciente do espelhamento, ciente do porquê daquele encontro enxerga a

fotografia como a concretização desse pressentimento de que um dos personagens retratados

fotograficamente talvez fosse ele, mas, os dois são ele, em momentos diferentes da vida.

É notório que sonhar com fotos representa uma memória esquecida que quer emergir,

como se a memória quisesse nos falar, nos comunicar alguma coisa. Símbolo incógnito que o

sonho nos dá a fim de que sejamos nós a tentar descobrir o que aquela imagem quer nos

revelar. A comunicação através de uma imagem de duas pessoas de costas é quase

indecifrável, é uma imagem misteriosa.

Sabemos que para nós a fotografia representa o anseio de apreensão do instante.

Sabendo da capacidade limitada da memória queremos na fotografia apreender um instante tal

qual ele foi. Mas é preciso ter ciência que mesmo a fotografia se modifica conforme o tempo,

o indivíduo e o seu instante se perderam.

A época atual é de nostalgia, e os fotógrafos fomentam, ativamente, a nostalgia. A fotografia é uma arte elegíaca, uma arte crepuscular. A maioria dos temas fotografados tem, justamente em virtude de serem fotografados, um páthos. Um tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela menção do fotógrafo. Um tema belo pode ser objeto de sentimentos pesarosos porque envelheceu ou decaiu ou não existe mais. Todas as fotos são memento mori. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Justamente por cortar uma fatia desse tempo e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo. (SONTAG, 2004, p. 26)

A leitura que Susan Sontag faz da fotografia é de que a foto é a arte mais próxima da

poesia porque a sua afetação é imediata. Ao olharmos uma foto temos uma afetação

instantânea, temos a sensação de que a foto nos traz de volta aquela partícula de memória de

forma instantânea, ela nos impacta e nos tira do nosso momento presente para nos reportar ao

tempo da fotografia por um breve momento. Ao menos nos faz ter esta impressão. A poesia,

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por sua vez, tem a mesma capacidade de afetação, a poesia tem a mesma capacidade de nos

transportar a tempos e espaços outros no curto passo de um instante.

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4.3 Todos os sonhos do mundo

Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo, isto não tem muita importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado.

Ana Maria Machado

Álvaro de Campos, em seu poema “Tabacaria”, afirma: “Não sou nada./ Nunca serei

nada/ Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos/ os sonhos do mundo”

(PESSOA, 1944, p. 252). Seus versos cantam a angústia do mundo, a angústia do homem

moderno, a dor da existência, a consciência da sua pequenez. Entretanto, há algo que nos

torna capazes de suportar as dores dessa existência: o sonho.

Numa viagem de regresso do século XX para o século XVI, (quebrando, portanto, tal

qual nos sonhos, a linearidade cronológica) encontramos um poeta que, assim como Álvaro de

Campos crê no sonho como a força motriz capaz de mover o homem através de sua existência.

Esse poeta é William Shakespeare que escreveu, dentre outras obras, uma peça intitulada

“Sonho de uma noite de verão”. Conforme esse título anuncia, após uma série de reviravoltas,

feitiços e jogos amorosos, o personagem Puck dirige-se à plateia e afirma que tudo o que fora

visto não passara de um sonho. A arte (a encenação teatral ou a literatura) é, deste modo,

semelhante ao sonho, na medida em que é uma representação figurada do real.

De modo semelhante aos poetas supracitados, Ondjaki constrói uma atmosfera onírica

em seu livro, já desvelada desde o título. O primeiro conto do livro, chamado “Buenos Aires”,

constrói uma narrativa in medias res. Um narrador, ao qual não fomos apresentados e que

chamaremos de “O viajante de ‘Buenos Aires’”, põe-se a relatar um diálogo entre ele e um

interlocutor, descrito pelo narrador como um “mulato careca”. Este misterioso personagem lhe

dirige uma pergunta, que dá início ao conto. “Você nunca sonhou com um homem careca que

atende pelo nome de Oriegn Artse?” (ONDJAKI, 2014, p. 13).

O sonho, anteriormente anunciado no título da obra, revela-se também na primeira

frase do livro, marcando com a interrogação a atmosfera enigmática que percorrerá todo o

conto e todo o livro. Este senhor que dirige a pergunta ao narrador, descobrimos depois,

possui a mesma característica do personagem sobre o qual ele indaga: ambos são carecas.

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Assim como o narrador, este senhor misterioso não se identifica. O único ser nomeado neste

conto é o personagem fantasma pelo qual este senhor procura, Oriegn Artse.

Oriegn Artse não é um nome banal. Em língua portuguesa, não passa de um

significante. Entretanto, se este conto se passa em “Buenos Aires” há uma possibilidade de

que este personagem seja argentino, bem como seu nome.

Em língua espanhola, também não há um correspondente direto para Oriegn Artse,

todavia, se considerarmos que este nome faz parte de um mistério maior a ser desvendado,

desconfiaremos que este nome pode estar embaralhado, e então notaremos a diversidade de

anagramas possíveis para Oriegn Artse em língua espanhola.

Oriegn é um anagrama para as palavras “origen”, “ignore” e “region”. Artse, por sua

vez, é um anagrama das palavras “artes”, “estar” e “retas”. Seria Oriegn Artse, um

personagem em busca da “origem da arte”? Outro mistério. Como afirma o narrador: “Há dias

– e pessoas – que se revelam mais poderosos do que bons momentos de ficção. ” (ONDJAKI,

2014, p. 13). Seguimos, ainda sem saber para onde iremos.

Oriegn Artse não possui o enigma apenas em seu nome, toda a sua presença é

enigmática. Este personagem possui o hábito de aparecer nos sonhos das pessoas para deixar

mensagens. Oriegn seria como um intruso no sonho das pessoas.

A figura do intruso num sonho é bastante recorrente, sendo analisado cientificamente

como algum personagem do mundo real não fixado pelo consciente, mas guardado e liberado

de maneira aparentemente fortuita pelo inconsciente. Ao que o próprio conto, revelando-se

sonho de si mesmo, teoriza sobre a figura do intruso:

Na perfeição fílmica dos sonhos, o intruso aparece desfocado, mal resolvido. Ou se destaca dos outros por fatores físicos, como a cor, ou a dimensão, ou pelo comportamento, digamos, fala uma língua que ninguém entende, fala de coisas que nada tem a ver com a ação que o sonho pretende. (ONDJAKI, 2014, p. 15)

Aquele que sonha com Oriegn Artse não passa de um mensageiro, as mensagens não

são destinadas ao sonhador, mas a este misterioso personagem que dialoga com o viajante de

“Buenos Aires”. Oriegn possui como missão recuperá-las e decodificá-las. “O homem tinha

em si a estranhíssima serenidade de quem conhece o destino e a profundidade da sua missão. ”

(ONDJAKI, 2014, p. 14)

A figura do mensageiro existe desde a antiguidade clássica, período em que a

sociedade acreditava que o sonho era o canal de comunicação entre os mortais e as

divindades. Sobre esta figura, Neyza Prochet, em seu artigo intitulado “De que são feitos os

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sonhos? ”, afirma:

Desde o início dos tempos, os sonhos acompanham a Humanidade num lugar de altíssimo privilégio. Nos primórdios, eram uma mensagem vinda do sobrenatural – os deuses ou os mortos – um meio pelo qual o além humano era comunicado aos viventes, não necessariamente ao sonhador. Este era mensageiro, porta voz de uma mensagem codificada, um enigma que, se desvendado, seria capaz de alterar o curso dos acontecimentos. Se originada do divino ou do maléfico, a interpretação variava de acordo com os interesses e com os interessados. (PROCHET, 2013, p. 12)

Na tradição oral africana, os sonhos, sobretudo o dos mais-velhos, eram revelações

proféticas enviadas pelos antepassados, como forma de intercederem no destino dos vivos.

Os limites entre realidade e sonho nem sempre estão claramente delimitados. Muitos

sonhos possuem tamanha plasticidade que ao despertamos nos perguntamos se de fato

vivemos aquelas memórias ou se tudo não passou de ilusão. As crianças são, nomeadamente,

as maiores vítimas do engodo de um sonho. Os “miúdos” ficam facilmente impressionados

com o que sonham, acarretando pequenos traumas que os levam a relutar contra o sono por

medo de sonhar ou até mesmo se manifestando na forma de incontinência noturna, tamanha a

vivacidade das imagens geradas pelo inconsciente. Toda esta complexidade que os sonhos

possuem nos leva a pensar: De que são feitos os sonhos? Por que sonhamos? A resposta é tão

complexa como tentar entender a lógica de um determinado sonho.

Os sonhos são feitos de imagens geradas pelo inconsciente a partir de situações

vivenciadas. Sejam elas experiências traumáticas, momentos de felicidade, memória de

pessoas já falecidas, desejos não realizados.... Todas essas vivências são guardadas num

arquivo do cérebro nem sempre facilmente acessíveis.

O porquê de sonharmos é, ainda nos dias de hoje, uma questão muito discutida e muito

controversa, sendo, portanto, explicada por diversas teorias. Enquanto na tradição africana

acreditava-se que o sonho era a ligação entre dois mundos: o dos vivos e o dos antepassados,

na Europa do século XIX, passou a significar uma oposição direta à racionalidade, sendo

frequentemente associado à loucura. Entretanto, foi Sigmund Freud quem revolucionou os

estudos do sonho com sua teoria psicanalítica respeitada até os dias atuais.

Freud, a partir da divisão da mente humana em três instancias psíquicas: o ID, o ego e

o superego, afirmou que os sonhos eram da ordem do inconsciente e que liberavam a

realização dos desejos que o superego havia recalcado.

É justamente por aquilo que escapa às instâncias demarcadas, que Freud se interessa em investigar. Ampliando e recriando as perspectivas anteriores vê, no sonho, o

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fundamento da teoria psicanalítica: “a interpretação do sonho como a via régia para

o inconsciente” (FREUD, 1910). Freud descobre a semelhança entre as leis que

regem a formação dos sonhos e as leis do discurso e, como Khan (1977) assinala, procura recriar “uma ambiência física e psíquica do setting analítico que corresponda

de modo significativo, àquele estado intrapsíquico presente na pessoa que sonha” (p.

42). (PROCHET, 2013, p. 13)

O sonho é um elemento importantíssimo no processo de aprendizado e ferramenta

capaz de colocar o indivíduo em contato com sua interioridade. Para Deleuze e Guattari

entretanto, o incosciente não é uma instância psiquica reveladora das faltas e castrações; o

incosciente é uma fábrica de desejos.

O sonho é a memória que o inconsciente lança ao sonhador como um desafio a ser

desvendado. E é este desafio que vemos lançado no conto "Buenos Aires”. Um homem

mulato pergunta sobre um senhor de mesmas características, seu duplo de nome “Oriegn

Artse”

No encalço de desvendar o mistério de “Buenos Aires”, junto com esse narrador

viajante de “Buenos Aires”, retomamos o estudo da onomástica de “Oriegn Artse”.

Desembaralhando os vocábulos separadamente, obtivemos o resultado pista “Origem” e

“artes” dentre outras respostas, o que nos abriu uma série de suspeitas quanto ao conteúdo

desse sonho e a significância deste personagem místico. Suspeitamos se tratar o conto de um

tratado sobre as artes, leitura não descartada. Entretanto, ao analisar estas letras embaralhadas

juntas, alcançamos novos algoritmos como resultado, e portanto, novas palavras em língua

espanhola. “Oriegn Artse” torna-se então, “interrogase”

Interrogar-se. O conto “Buenos Aires” pode ser definido como um conto-interrogação,

pois além de se iniciar com uma pergunta jogada ao vento, traz no nome do personagem

principal o próprio questionamento.

O autoquestionamento é o mote para todo o desenvolvimento deste livro de contos,

ainda que cada conto tenha uma personalidade própria e uma obsessão a qual persegue, toda

essa poética onírica quer revelar um questionamento, uma questão que emerge na atmosfera

onírica.

E neste torpor do whisky e nesta fumaça do cigarro, o sonho evanesce. O narrador

viajante de “Buenos Aires” conclui, tendo a certeza de que não foi ele quem sonhou com o

personagem-charada, pois sonhava a si mesmo, sonhava em seu íntimo.

Partindo numa escala Argentina- Hungria, aterrissamos em “Budapeste”, cidade

visitada pelo narrador do livro de mesmo nome escrito por Chico Buarque. O narrador

viajante da cidade de “Budapeste” de Chico Buarque tece as seguintes considerações acerca

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das suas primeiras impressões na cidade: “Sem a mínima noção do aspecto, da estrutura, do

corpo, mesmo das palavras, eu não tinha como saber onde cada palavra começava e até onde

ia. Era impossível destacar uma palavra da outra, seria como pretender cortar um rio com uma

faca. ” (BUARQUE, 2011, p. 9)

O narrador viajante de “Budapeste” do livro de Ondjaki tece considerações

semelhantes sobre a cidade: “Budapeste é um mistério. A própria língua é um mistério. Para

nós, claro. (ONDJAKI, 2014, p. 21) O início do conto nos remete, portanto, a uma atmosfera

de realidade, em que o eu-lírico encontra-se despertado, tese esta que o parágrafo seguinte

parece contradizer.

O narrador prosseguindo em seu relato afirma ter encontrado inúmeros falantes de

língua (des)portuguesa em território em que esta língua não é oficial muito menos corrente. É

de se suspeitar da veracidade de tal relato quando já se foi apresentado à atmosfera onírica

pertencente a este livro de contos e quando se sabe da pouca difusão da língua portuguesa

para além do contexto histórico de colonização. Entretanto, esta casualidade de falantes de

língua portuguesa em território húngaro causou estranhamento até no narrador, que suspeita

ser um hobby local. Seguimos.

Continuando a leitura nos deparamos com um universo de incertezas e fluidez do

tempo, uma tentativa turva de separar o tempo da narração do tempo da vivência. “Acho eu”,

“’agora’ depois da viagem”, “Tudo nessa viagem são memórias que agora procuro resgatar”.

(ONDJAKI, 2014, p. 21)

O narrador nos revela então que se tratam de memórias, assumindo por sua vez, a

interferência afetiva e ficcional dentro do factual, pois como afirma Henri Bergson em

Matéria e memória, a lembrança é sempre uma realidade fissurada, pois o tempo é inexorável

e o passado só é recuperável enquanto fragmento, completando-se, deste modo, as lacunas

com a imaginação.

Esta memória de uma viagem a Budapeste, que nós julgamos sonho, está repleta de

mensagens misteriosas e de cunho ameaçador. Durante todo o conto percebemos como sua

presença enquanto estrangeiro a esta terra causa estranhamento. A cidade começa a expulsá-

lo, como se quisesse afirmar que este narrador viajante de “Budapeste” não pertencesse à

cidade, não fosse parte das alquimias da cidade.

O narrador de Calvino em Cidades invisíveis afirma que “somente por meio de olhos e

ouvidos estrangeiros o império podia manifestar sua existência. ” (CALVINO, 1990, p. 25).

Talvez “Budapeste” queira, através do mistério, presentificar seu império diante dos viajantes,

mostrar sua imponência enquanto uma das cidades do mundo, fixar-se na memória dos

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estrangeiros. Pois, como afirma o monge, personagem viajante de “Budapeste”: “O olhar é um

instrumento poderoso...” (ONDJAKI, 2014, p. 22)

Cada conto/ relato de viagens fixa na mente do leitor determinados símbolos, sendo

uma escrita onírica, perde-se o todo do acontecimento, restando apenas imagens e símbolos

marcantes, apenas detalhes como olhos, mãos, sorriso, ou a figura de determinados

personagens intrusos ou conhecidos que deixam uma certa marca indentitária no sonho.

Ainda nesta atmosfera onírica, mas destoando um tanto dos encontros dos contos

anteriores, aterrissamos em “Madrid”. Conto que se passa inteiramente no aeroporto, um lugar

simbolicamente de fronteira (o limite entre céu e terra, entre duas cidades, entre sonho e

realidade), e marca o desencontro entre o narrador viajante de “Madrid” e seu destino.

O conto se inicia nesta atmosfera sonolenta em que o narrador, acumulando noites mal

dormidas, oscila entre o estado de vigília e o do sono, quando é despertado pelo interlocutor:

“Perdi todo o meu passado” (Idem, p. 33). Novamente o diálogo se dá em português,

coincidência ou sonho, o interlocutor percebe a nacionalidade angolana do viajante de

“Madrid”.

Interpelado por um discurso do esquecimento, o narrador, aparentemente incomodado

com o questionamento que lhe impede o sono, tenta se evadir de uma resposta. O interlocutor,

ciente disto, tenta alcançar o diálogo de outro modo, pergunta-lhe se sabe nadar, o viajante de

“Madrid” parece troçar de tal pergunta ao que interlocutor afirma que era necessário saber

nadar para salvar-se: “– Da morte. No caso de o avião cair. ” (Idem, p. 34). Outro incômodo

questionamento.

O narrador, respondendo de forma evasiva que sabe nadar o suficiente, dando a

entender que diante de um avião caindo, esta questão era pouco relevante, deixa transparecer

em si o desconforto com tais questões, sobretudo momentos antes de um possível embarque.

“Não sabia o que fazer. Pensei em desviar o tema da conversa. ” (Idem, p. 35)

Ao desviar o tema da conversa, para o diálogo inicial sobre o passado, os dois

personagens vão cada vez mais se aproximando, como uma forma de espelhamento. O

interlocutor, assim como o narrador, estava preso às memórias fraturadas, fragmentos do

passado que, recolhidos, não completam o quebra-cabeça. “Veja, não é falta de uma

lembrança. É como se eu soubesse tudo o que houve, mas não pudesse pegar nos detalhes. ”

(Idem, ibdem)

Ecléa Bosi em seu livro, Memória e sociedade, trata das relações entre a escrita e a

memória, especialmente a partir de um estudo dos mais velhos, inspirada por pensamentos

bergsonianos. Para a autora, a memória é do âmbito do espiritual, sendo acessada através do

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sonho ou da arte, conforme demonstra Ana Maria de Brito:

Através dessa concepção que Ecléa (1994) pontua, pode-se afirmar que a arte, assim como o sonho, retoma essa memória considerada verdadeira por Bergson, inatingível na sua extensão. Outra leitura contundente que Ecléa (1994) nos traz é a caracterização da memória como força espiritual. Para ela, a memória é uma força espiritual prévia a que se opõe a substância material, seu limite e obstáculo. A matéria seria, na verdade, a única fronteira que o espírito pode conhecer. Logo, de acordo com o raciocínio estipulado até o momento, nota-se que a nossa verdadeira memória, como chamou Bergson, aquela que sobrevive no espírito, não remonta somente as nossas experiências, mas as de nossa espécie. Assim como não podemos apreendê-la completamente, temos acesso às reminiscências dessa memória coletiva que vive em nós. (BRITO ET ALLI, 2012, p. 4)

Sonhos azuis pelas esquinas funde sonho e literatura, quando remonta às questões e

angústias desse narrador e de seus diversos interlocutores. Ficcionaliza tanto angustias de uma

memória coletiva, como as das sociedades contemporâneas.

Estando mais apegado ao futuro que ao passado, por se lembrar melhor daquilo que

ainda não aconteceu, o interlocutor está preso ao paradoxo salientado por Bernard Shaw;

“Temos tempo bastante para pensar no futuro quando já não temos futuro em que pensar. ”. O

interlocutor se vê preso num tempo de incertezas, desconectado de seu passado e ausente do

presente, amarra-se a uma esperança de um tempo futuro ainda inexistente.

O conto é repleto de marcadores cronológicos: “Perdi todo o meu passado”, “Lembro-

me melhor do futuro”, “E tenho outro voo depois de amanhã”, “Você não irá neste voo de

hoje...”, “Você sabe...Que a hora mudou. Ontem! ” Mas, apesar de tantos marcadores, o conto

se passa num ambiente de inércia. Nem narrador nem interlocutor vão a parte alguma,

permanecem os dois no espaço do aeroporto, imóveis, a dialogar sobre o tempo. Até que o

interlocutor dirige uma terceira incômoda pergunta: “Então você desloca-se em função de

quê? ” (ONDJAKI, 2014, p. 37)

É a partir desta pergunta que notamos uma mudança de consciência por parte do

narrador, após perceber que perdeu o voo (e esta metáfora da espera e da perda do voo se

repetirá como uma memória-hábito), também se dá conta do seu papel de espelho neste

diálogo.

O interlocutor já o havia provocado quanto a isso: “Desconfiava. Encontro pessoas

que são como espelhos”, ao que o narrador fingiu não entender.

Os narradores de “O espelho”21 e de “Madrid” estão numa busca identitária, a partir de

21 O conto referido é "O espelho" do livro Primeiras estórias, de Guimarães Rosa.

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uma narrativa insólita surge a alegoria do espelho. A partir do seu reflexo num espelho, ou

num outro personagem a sua semelhança, há a busca do verdadeiro “eu”. “Senti-me o tal

espelho. Eu não estava ali por mim, mas apenas para que ele pudesse refletir na conversa. ”

(Idem, p. 38)

Como numa conversa entre um mesmo “eu” pertencente a dois tempos, um “eu” do

presente e outro vindo do futuro, a conversa se desenrola de maneira insólita. O “eu” do

futuro retorna como uma mensagem, ou um pressentimento que seja capaz de aproximar o

“eu” do presente do autoconhecimento.

No segundo capítulo de Cidades Invisíveis, o imperador Kublai Khan e o viajante

Marco Polo, tecem o seguinte diálogo sobre as cidades espelhadas:

– Você viaja para reviver o passado? – era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: – Você viaja para reencontrar o seu futuro? E a resposta de Marco: – Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá. (CALVINO, 1990, p. 29)

A “Madrid” de Sonhos azuis pelas esquinas é a cidade dos espelhamentos, o

reencontro do passado esquecido e do futuro enigmático, lugar onde os ponteiros do relógio se

(des)alinham.

O conto se encerra com o “eu” do futuro aconselhando o “eu” do presente a “acertar o

relógio”, ou seja, entrar em harmonia com o seu próprio tempo, o agora. Pede também que

este “eu” aprenda a ouvir os pressentimentos, pois não há pressentimento errado. Despede-se

e deixa cair um envelope com uma foto dentro. O “eu” do presente abre o envelope e constata

que na foto havia duas pessoas, de costas, sentadas. “Um deles poderia bem ser ele. Ao fundo,

um espelho e um relógio com uma hora totalmente diferente. O outro parecia, talvez, alguém

que fosse eu.” (Idem, p. 38)

Seguindo a linha dessa viagem ziguezagueante proposta pelo livro Sonhos azuis pelas

esquinas, em que viajamos de “Buenos Aires” a “Budapeste” num piscar de olhos ou em um

virar de páginas, tomamos também a liberdade de nós leitores construirmos nossa cartografia

de leitura, e alinhar cidades da maneira que acharmos pertinentes. De acordo com Cidades

Invisíveis de Calvino, que estabelece possibilidades de leituras a partir de uma análise

combinatória das partes, seguiremos nesse capítulo enveredando por caminhos das cidades

que fazem fronteira com os sonhos deixando pegadas memorialísticas em cada esquina.

Cada conto possui sua própria identidade. Na primeira das quatro divisórias do livro,

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encontramos cinco contos delimitados pela fronteira do título “Para onde eu vou”. São estes:

“Buenos Aires”, “Budapeste”, “Madrid”, “Giurgiu” e “Gorée”.

“Gorée” é o último conto desta parte e, assim como os contos já analisados, tem sua

própria personalidade. Diferente do clima nostálgico da infância em “Moçâmedes” ou da

tensão amedrontadora de “Budapeste”, “Gorée” tem sua aura poética própria, voltado paras as

reflexões sobre a ilha, o isolamento, as ausências, a dualidade presente em cada ser que habita

esta cidade.

Gorée ou Goreia é uma ilha no Senegal, conhecida, entre outras características, por sua

complexa história de tráfico negreiro. Em “Gorée”, o mar surge pela primeira vez. Antes,

havia surgido apenas o rio, possivelmente o Danúbio, em “Budapeste”.

Sentadas as crianças, aqui sob a significação de pureza e inocência, fitam este mar

ambíguo. As varandas, entrelugares entre a casa e a rua, guardam “ausências de gentes por

regressar” (ONDJAKI, 2014, p. 47). Pessoas levadas em êxodo forçado pela escravidão e pela

situação de miséria.

“Gorée” é um conto extremamente poético e doloroso. O narrador viajante de “Gorée”,

já marcadamente nos contos por sua identidade angolana, estando de volta a um território

africano, rememora as dores de um continente e seu histórico de exploração, mas também

suas belezas únicas.

“O chão respira a frescura humana” (Idem, p. 47), de uma nação recém-formada (O

Senegal conquistou a independência em 1960), mas esse solo se ergue em cima dos corpos

dos muitos negros traficados. “Chega um barco cheio de palavras caladas” (Idem, ibdem). O

silêncio que em Ondjaki sempre é cheio de significados, aqui expressa a afasia decorrente de

um trauma insuperável e insuportável.

Em contraposição ao silêncio desses barcos mudos, embora repletos de palavras, o

canto da ilha. Da natureza surge o cantar a ilha, na voz de um cabrito. E o canto desse cabrito

seria o elo que une a ilha ao outro lado do mundo, da vida. Nesse diálogo do absurdo, o

cabrito se vai nos ventos do sonho do narrador de “Gorée”.

“Gorée” reflete bem a dualidade retratada na canção “Encontros e despedidas” do

compositor Milton Nascimento que afirma: “Todos os dias é um vai-e-vem /A vida se repete

na estação/Tem gente que chega pra ficar/ Tem gente que vai/ Pra nunca mais.../ Tem gente

que vem e quer voltar/ Tem gente que vai, quer ficar/ Tem gente que veio só olhar/ Tem gente

a sorrir e a chorar/ E assim chegar e partir...”

“Gorée” é um conto de encontros e despedidas. No apito da partida, mais gente vai do

que fica. Os habitantes de “Gorée” vivem a dualidade de ter que ir e querer ficar, ou vice-

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versa. A mesma dualidade que reside no âmago do narrador de Sonhos azuis pelas esquinas.

O cenário do conto é captado através dos elementos da natureza que cercam o

narrador. “No céu não existem lágrimas” em oposição ao sofrimento que a terra/ o mar

guarda, “uma cantoria de remos, um poema molhado no sal. ”, “as árvores adormecem”.

É em meio a esta descrição simbólica da natureza que surgirá um dos mais fortes

símbolos africanos, o imbondeiro. “vi os homens perto do cais e as ondas por trás e os

imbondeiros perto das crianças que esquivam as pedras de sorriso aberto.”(Idem, p. 49)

A figura do imbondeiro é muito frequente nas literaturas africanas. Além das suas

simbologias biológicas que apontam para a sua preciosidade e o caráter medicinal, de cura, o

imbondeiro está presente nos rituais africanos tradicionais e é culturalmente ligado à

ancestralidade e à tradição africana, por sua longevidade e por seu misticismo. Esta árvore

“Está ligada a rituais tradicionais, muitas vezes a ritos e crenças religiosos. Nalgumas zonas, a

sombra protege o acto da circuncisão e partos. Também é usada como sepulturas, porque

muitos povos creditam que se um soba for sepultado aí pode voltar e dar ideias aos

sucessores.” (SAPOVIAJAR, 2014)

Maria Geralda de Miranda em sua análise do romance Yaka, de Pepetela e do conto “O

embondeiro que sonhava pássaros” tece considerações acerca da simbologia do embondeiro

nas literaturas africanas de língua portuguesa:

O embondeiro nessa narrativa, como a mulemba no romance Yaka, serve de abrigo aos personagens, que fatigados pelo cansaço buscam repouso, e simbolizam a resistência ao sistema de opressão. Trata-se também, neste caso, da releitura da história oficial com a inserção de elementos da cultura popular africana, ou, como diriam outros estudiosos, a partir de elementos do mito. Do tronco do embondeiro, auxiliado pelos pássaros, sobre os quais tinha domínio, o ancião demonstrava aos colonizadores que estava ali, que a sua cultura não cedia. Ele, como o embondeiro - que armazena água para agüentar a seca – continha conhecimentos sobre a natureza e os usava a seu favor. E também, como o embondeiro, possuía amplas e profundas raízes fincadas naquela terra, com a qual estabelecia trocas harmoniosas.

(MIRANDA, 2009, p. 7)

O imbondeiro também representa no conto “Gorée” a preservação da tradição, as

relações de troca entre os jovens (as crianças) e os mais velhos, metaforicamente

representados pelo imbondeiro. O olhar do narrador sobre essa paisagem é, como o próprio

afirma, uma insistência que “a contemplação obriga e a mão sugere”, o que evidencia a

consciência deste escritor em querer preservar as tradições, que assim como o imbondeiro,

está ameaçada de extinção.

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um homem artista, dono de figuras esguias, partilha um pouco do seu espaço comigo – oferece a porta destrancada de casa e com um isqueiro guia-me entre as paredes de sua imaginação. tem memórias penduradas e uma esposa que chega depois, tem calos nas paredes e calor nas mãos, abandona o isqueiro e deixa o vento declamar em seu lugar. fala-me de heranças a que a ilha convida e incita-me a escrever. pede-me um saco de presente e despede-se assim: entre angola e Senegal há apenas a distancia de um sopro leve. (ONDJAKI, 2014, p. 50)

As memórias penduradas nas paredes do sonho do narrador viajante de “Gorée”

emergem uma a uma como turvos retratos. Essas memórias de um encontro único incitam essa

escrita de nostalgias e heranças compartilhadas entre Angola e Senegal, o reconhecimento

desses laços africanos é o saco de presente que o narrador leva em sua mala: entre Angola e

Senegal há apenas a distância de um sopro leve. Um sopro de vida que vai semear o futuro

com as antigas lembranças.

O conto finda com reflexões em solilóquio de um narrador viajante, circum-navegante,

essas viagens permitem-lhe conhecer sempre mais de si. “Quero só esta visão de sonho

repousado no meu olhar. ” (Idem, p. 51). Também ele cindido entre o ter de ir e a vontade de

ficar, afirma: “brinco e me afogo na despedida...devolvo-me ao mar molhado mas parto com o

coração em chamas. ” (Idem, ibidem)

Se Marco Polo visitasse a ilha de Sonhos azuis pelas esquinas, tenho certeza diria: “A

cidade existe e possui um segredo muito simples: só conhece partidas e não retornos.”

(CALVINO, 1990, p. 55). Talvez a partida do narrador viajante de “Gorée” não passe de um

sonho.

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5. CONCLUSÃO

A cartografia do tempo presente é um exercício complexo como “navegar por mares

nunca dantes navegados”. Assim como foi incapaz de paralisar a esquadra portuguesa, o medo

não nos impediu de caminhar por paragens desconhecidas. Construir um mapa num tempo

que nos propõe fronteiras fluidas parece com o exercício de carregar água na peneira, mas, à

medida em que pisamos nestes solos, percebemos que nunca houve fronteiras tão rígidas.

Se a queda do muro de Berlim nos permitiu sonhar com um mundo livre e desnudado,

o conservadorismo do século XXI nos trouxe de volta para o isolamento. Muro novamente,

sempre ele. Concreto ou imaginário, sempre a nos limitar o voo e a indicar o lugar a que

pertencemos.

Mas, para os poetas, os muros tornam-se escadas, desafios a serem transpostos em prol

de um mundo novo. Não, não o mundo novo de Aldous Huxley, mas o mundo utópico que

possa nos contar sobre nossa origem, sem nos impedir de ir além.

Buscando esse mundo, Ondjaki iniciou esta viagem por entre as vinte cidades do

mundo. Sem lenço, mas com documento, Ondjaki carimbou seu passaporte angolano pelos

continentes a fora. Em cada lugar deixou um pouco dessa identidade angolana; de cada lugar

trouxe um souvenir em forma de memória a preencher essa identidade em constante

transformação.

Ao buscar uma escrita cartográfica, uma narrativa de viagens, o narrador pressente que

o sentido da partida é o reencontro com a chegada. Por mais que uma escrita em viagem

mostre o desejo de cosmopolitismo do ser, um desejo de liberdade, de deslimites de fronteiras,

a escrita em diáspora é marcada por uma ausência, uma saudade de um tempo e de um lugar.

Há, em Sonhos azuis pelas esquinas, o desejo de cosmopolitismo deflagrado nas

muitas cidades visitadas e nas muitas intertextualidades – há até mesmo uma viagem para

dentro da própria escrita, a intratextualidade – entretanto, há sempre as marcas do

estrangeirismo, há sempre algo que assinala um muro, uma fronteira entre o viajante e o lugar.

A esse muro, a essa fronteira chamamos: nacionalidade, construção abstrata que nos é

talhada no corpo desde a mais tenra idade. A escrita de Ondjaki coloca essas fronteiras em

questão. É preciso estar fora do lugar-marco da própria identidade para melhor olhar sua

interioridade, para melhor entender o construto social formador de sua nacionalidade. Se

viajamos, sentimos saudades de casa, mas, sobretudo, passamos a entender esta pele que

habitamos.

O grande questionamento que Sonhos azuis pelas esquinas nos traz, através de

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metáforas desveladas pelos sonhos, é: Como ser plural e local? Como atender o desejo de

mundo, sem abrir mão da própria origem? Como ser, ao mesmo tempo, cosmopolita e

nacional?

Este questionamento que perseguiu os mais célebres escritores –a exemplo da crítica

feita a Machado de Assis por muito tempo – se apresenta através da (des)territorialidade dos

sonhos, em Ondjaki.

É a escrita em sonhos azuis que revela os desejos e as potências desse inconsciente. É

nesse jogo entre sonho e vigília que temos revelado o desejo de mundo, o desejo de expansão

bem como a tensão que este desejo encontra face a um outro desejo, o de nacionalidade. A

escrita inicia como finda, como uma auto interrogação.

O leitor, enquanto coadjuvante dessa viagem, enquanto fiel escudeiro de um Dom

quixote angolano, toma para si o questionamento. A pluralidade é enriquecedora e sempre

bem-vinda desde que aquilo da cultura do outro que apropriamos não se aproprie de nós. Ou

seja, a viagem é aprendizado, mas a casa é o eterno retorno para aquilo que mais somos.

O que fica desta viagem são caminhos. Caminhos em busca de autoconhecimento e a

certeza de que “em qualquer estação, é perto que mais somos” (Ondjaki).

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ANEXOS

Figura 1 - Massoxiangango

Fonte: Medeiros (2013)

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Figura 2 - Cartografia de sonhos azuis pelas esquinas

Fonte: Elaborado pela autora