artigo sobre metalinguagem em quarto de despejo

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Artigo sobre metalinguagem em Quarto de despejo

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  • Anais do XIV Seminrio Nacional Mulher e Literatura / V Seminrio Internacional Mulher e Literatura

    A POTICA DO COTIDIANO NOS ESCRITOS DE CAROLINA MARIA DE JESUS: UM ESTUDO DA METALINGUAGEM NARRATIVAElisngela Aparecida Lopes (UFMG)1

    Percebi que os que sabem ler tm mais possibilidades de compreenso. Se desajustarem-se na vida podero reajustar-se. Carolina Maria de Jesus. Dirio de Bitita.

    O objetivo deste artigo promover um passeio pelos escritos de Carolina Maria de Jesus a fim de destacar a associao entre o registro do cotidiano, enquanto marca das publicaes da autora, em Quarto de despejo (1960) e Dirio de Bitita (1986), e as reflexes sobre a escrita e leitura. Assim, configura-se nessas narrativas uma potica do cotidiano marcada pela metalinguagem narrativa.

    Ambos os livros caracterizam-se pelo registro da vida cotidiana, sendo Dirio de Bitita composto pela viso de mundo da menina Carolina, marcada, principalmente, por dvidas, questionamentos e descobertas. Publicado em 1986, esse livro encontra-se divido em captulos temticos que nos revelam o cotidiano, o crescimento e as descobertas de uma menina personagem de sua prpria histria. Ainda aos quatro anos, revela-se nela uma mente inquieta e uma personalidade questionadora, registradas j no primeiro captulo, que iro marcar a escrita dessa narrativa: minhas ideias variam de minuto a minuto iguais s nuvens no espao que formam belssimos cenrios2.

    A inquietude da menina a faz desejar se tornar homem, para isso 1 Graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais; Mestre em Teoria da Literatura pela mesma instituio; pesquisadora do NEIA Ncleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do Grupo Letras de Minas, ambos vinculados UFMG. E-mail: [email protected] JESUS, Carolina Maria de. Dirio de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 10.

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    fica espera do arco-ris, pois havia sido instruda pela me a passar debaixo dele. Esse desejo se justifica pelo fato de acreditar que os homens, por serem mais fortes, podem exercer determinadas funes como cortar rvores, entendida, devido ingenuidade infantil, como um grande feito e assim alcanar mais facilmente seus objetivos na vida. Em Quarto de despejo, na anotao de 07 de junho, a autora registra tambm o desejo de ser homem para entrar para a Histria.

    Sua inquietao a leva ainda, ainda jovem, a viver na errncia, de cidade em cidade, em busca de empregos, sade, dinheiro, melhores condies de vida.

    Curioso notar que, a princpio, no essa mesma inquietao que impulsiona a menina em direo aos livros. Ao ser levada escola pela me, demonstra certa resistncia e certa dificuldade de aprender as letras. J alfabetizada, confessa que o primeiro livro que teve em mos foi A escrava Isaura, de Bernardo Guimares; com ele deseja aprender mais sobre a escravido. Por se tratar de uma instituio esprita, os livros a que tinha acesso na escola eram de cunho religioso: Histria Sagrada e a Bblia Sagrada.

    J na fazenda na qual vivia e trabalhava, a pequena Carolina lia histrias de homens os quais tinha como exemplos de conduta: Henrique Dias, Luiz Gama e Tiradentes; tal prtica era assim justificada: lendo, eu ia adquirindo conhecimentos slidos3. Nessa circunstncia, a leitura servia como elemento motivador para a passagem do tempo, funo tambm presente em Quarto de despejo.

    A essa formao da jovem leitora Carolina Maria de Jesus soma-se a leitura de Os lusadas, de Cames: eu passava o dia lendo Os Lusadas de Cames, com o auxlio do dicionrio. Eu ia intelectualizando-me, compreendendo que uma pessoa ilustrada sabe suportar os arrumes da vida4.3 JESUS, Carolina Maria de. Dirio de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 131.4 JESUS, Carolina Maria de. Dirio de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 177.

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    Importante notar que, ainda na juventude, a prtica da leitura j distingue Carolina do restante dos moradores do lugarejo, pois, por serem analfabetos, estes acreditavam que o dicionrio que a jovem trazia nas mos, devido ao tamanho e ao volume, era o livro de so Cipriano. Este nasceu na regio entre a Sria e a Arbia, em 250 d.c., e j na infncia foi introduzido no estudo das cincias ocultas: alquimia, astrologia e adivinhao. Por seus conhecimentos, tornou-se conhecido e temido nas regies pelas quais andou. Converteu-se ao cristianismo, mas sua dedicao ao ocultismo o levou a ser designado, ainda hoje, como feiticeiro.

    tambm assim que a menina Carolina passa a ser chamada pelos moradores de sua cidade. Certo dia, alguns jovens a veem com o dicionrio nas mos e acreditam se tratar do livro de so Cipriano. Relatam ao sargento que ela o havia chamado de trapo humano e informam ainda que ela estaria estudando ocultismo. Por essas razes Carolina foi presa, junto com a me que tentou defend-la. Na delegacia, o sargento a entrega o verdadeiro livro de so Cipriano: deu-me o livro para olh-lo e folhe-lo. Eu gostava imensamente de livros e peguei o livro com carinho, como se estivesse pegando uma criana recm-nascida. Mas estava nervosa para ler5. Esse apego aos livros ela manifesta ainda quando deixa a fazenda junto com a me, pois coloca os exemplares na trouxa e os carrega consigo.

    Em outra passagem, Bitita salienta a leitura como prtica viciosa, similar paixo, ao comentar: ... a leitura beneficia o homem como a mulher6. J em Quarto de despejo, a autora associa as suas duas paixes a leitura e a escrita solido em que vive. Seu Manuel, comerciante do lugar e um dos pretendentes da autora, vive a procur-la e a inform-la do desejo que possui de a ela se unir. No dia 02 de junho de 1958, encontramos no dirio a seguinte reflexo:

    O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu no quero porque j estou na maturidade. E depois, o homem no h de gostar de uma mulher que

    5 JESUS, Carolina Maria de. Dirio de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 180.6 JESUS, Carolina Maria de. Dirio de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 179.

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    no pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lpis e papel debaixo do travesseiro. Por isso que eu prefiro viver s para o meu ideal7.

    O primeiro motivo anotado pela autora para refutar a unio refere-se a sua idade. Aos 44 anos, com trs filhos e sem grandes perspectivas de vida, prefere continuar sozinha... No entanto, parece-nos que tal argumento apresenta-se como insuficiente para a prpria autora ao buscar uma outra justificativa de recusar a unio. Podemos pensar que ela est apontando para a impossibilidade de compartilhar leitura, escrita e unio afetiva. Nesse sentido, elege como nica companhia em seu leito os livros e os cadernos achados nos lixos da cidade nos quais anota suas reflexes e angstias. Maria Jos Motta Viana, no livro Do sto vitrine, comenta a mesma passagem transcrita acima com uma perspectiva complementar de leitura:

    a autora nos oferece uma surpreendente demonstrao de lucidez e entendimento da ameaa que a escrita da mulher pode representar (...) Em outros termos, Carolina M. de Jesus reconhece que deve ser difcil para o homem ver-se preterido em favor de outro desejo e de outro prazer que no ancore nele8.

    Se em Dirio de Bitita a imaginao frtil, os incessantes questionamentos e depois a prtica da leitura relegam a menina o esteretipo de louca, em Quarto de despejo, a leitura, bem como a prtica da escrita, tambm diferencia Carolina dos demais moradores do morro do Canind. Ela, uma mulher semi-analfabeta que estudou por dois anos no Colgio Allan Kardec, torna-se, naquele universo marcado pelo analfabetismo e pela falta de oportunidades, os olhos que fazem o movimento de sada e retorno ao quarto de despejo. Ela l para as mulheres da favela uma notcia de jornal que informava sobre o assassinato envolvendo um deputado recifense. As

    7 JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. 8.ed. So Paulo: tica, 2000, p. 44.8 VIANA, Maria Jos Motta. Do sto vitrine: memrias de mulheres. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1995, p. 69.

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    mulheres diante da brutalidade do fato e talvez por serem informadas de que crimes acontecem tambm na sala de visitas revoltam-se e rogam uma praga ao assassino.

    Nas entrelinhas do texto podemos compreender uma nova faceta para a autora do que seja o ato de ler. Nas anotaes de 27 de junho de 1958, ela aponta para o carter vicioso da leitura: tem muitas pessoas aqui na favela que diz que eu quero ser muita coisa porque no bebo pinga (...) Eu no bebo porque no gosto, e acabou-se. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no lcool9. Nessa anotao, h dois elementos que precisamos ressaltar: o livro, a possibilidade de leitura e da escrita diferem Carolina dos demais moradores da favela, conferindo a ela um certo status social. Para a autora, o livro a melhor inveno do homem10. Alm disso, ao associar a leitura ao vcio da bebida, a autora indicia que tal prtica permite a ela embriagar-se, viajar pelo desconhecido, fugir da dura realidade na qual est imersa, sonhar... Enquanto prticas indissociveis, a leitura fornece elementos para a escrita e a ambas se vincula o exerccio do imaginrio. Essa associao encontra-se poeticamente inscrita nas anotaes do dia 12 de junho:

    Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas so de prata e as luzes brilhantes. Que a minha vista circula no jardim, e eu contemplo as flores de todas as qualidades (...) preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela11.

    Enquanto escreve, Carolina pousa o lpis sobre o papel e comea a imaginar uma outra vida para si. A leitura e a escrita, enquanto prticas solitrias, so interrompidas pela necessidade de reflexo, ela manifestao do imaginrio. Barthes, em seu texto Escrever a leitura, 9 JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. 8.ed. So Paulo: tica, 2000, p. 65.10 JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. 8.ed. So Paulo: tica, 2000, p. 22.11 JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. 8.ed. So Paulo: tica, 2000, p. 52.

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    traduz poeticamente a fragmentao do ato de ler: nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com freqncia a leitura, no por desinteresse, mas, ao contrrio, por afluxo de idias, excitaes, associaes? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabea?12. Ao escrever e ler sua escrita, Carolina levanta a cabea para se imaginar em uma realidade outra e cria um mundo imaginrio, ideal, fugindo da pele preta pela qual se sente encarcerada e do lugar preto onde mora. O movimento realizado pela autora, entre o registro da realidade e a fuga desta, d-se por meio da escrita e da leitura e so frutos da imaginao inquieta que caracteriza a menina Carolina em Dirio de Bitita, capaz de formar belssimos cenrios, apesar da realidade.

    A leitura crtica do mundo registrada nos dois dirios da escritora similar. Em uma das passagens mais notveis do Quarto de despejo, Carolina divide a cidade de So Paulo em cmodos, construindo uma metfora para a excluso social: Eu classifico So Paulo assim: o Palcio, a sala de visita. A Prefeitura a sala de jantar e a cidade o jardim. E a favela o quintal onde jogam os lixos13. Em Dirio de Bitita, a conscincia da condio marginalizada tambm se encontra associada ao espao: eu no entrei no mundo pela sala de visitas. Entrei pelo quintal14.

    atravs da escrita que Carolina torna-se sujeito de si mesma, uma vez que pe no papel seus dramas e angstias, seus medos e frustraes; e atravs dela torna-se sujeito social ao retratar a pobreza e a misria presente no quarto de despejo. Nesse sentido, Maria Jos Motta Viana (1995) aponta alguns motivos que fazem da escrita do dirio uma prtica recorrente entre as escritoras brasileiras. Um deles a possibilidade de, atravs dessa escrita, a figura feminina poder reaver-se enquanto sujeito. Quanto prtica do registro cotidiano, Maria Madalena Magnabosco ressalta:

    Os dirios de Carolina Maria de Jesus podem ser, assim, 12 BARTHES, Roland. Escrever a leitura. In: _____. O rumor da lngua. Rio de Janeiro: Editora Martins Fontes, 2004, p. 26.13 JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. 8. ed. So Paulo: tica, 2000, p. 28.14 JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. 8. ed. So Paulo: tica, 2000, p. 198.

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    considerados testemunhos que borram as fronteiras da literariedade ao denunciarem uma outra experincia do sujeito do feminino, a partir das vivncias e posies de enunciaes da autora, a qual buscou pelo contedo da narrativa e no por sua forma simbolizar o que escapou e continua escapando aos olhares progressistas da modernizao, ou seja, as fraturas expostas pela misria ecolgica, econmica, emocional e relacional, cruamente expostas na favela de Canind15.

    Segundo Vianna, outra caracterstica do dirio a priso ao cotidiano e da a constante repetio. Em se tratando dos escritos de Carolina, a repetio uma marca. Em Dirio de Bitita, essa repetio se faz recorrente pelas constantes referncias excluso social do negro brasileiro, perseguio deste por parte da polcia e pelos constantes apontamentos de teor poltico.

    Em Quarto de despejo, a descrio dos acontecimentos do dia a dia inicia-se sempre da mesma forma, ou seja, marcada pela rotina: levantar, pegar gua, voltar para casa, cuidar dos filhos, catar papel. Curioso que em determinando momento do livro a repetio parece incomodar a prpria escritora, ao anotar no dia 16 de junho: ... vocs j sabem que eu vou carregar gua todos os dias. Agora vou mudar o incio da narrativa diurna, isto , o que ocorre comigo durante o dia16; o que aponta, ainda, a edio dos escritos para publicao. A partir de ento a descrio minuciosa cede lugar a uma frase enxuta fiz meus deveres. Vianna aponta tambm para o carter fragmentar do dirio: o relato do dia-a-dia torna-se uma unidade a partir do momento em que escrito, tal unidade constri-se tambm atravs do trabalho de tessitura dos significados feito pelo leitor-arteso.

    esse trabalho artesanal de construo de sentidos que se desejou realizar neste artigo ao aproximar os dois dirios da autora sob a tica do 15 MAGNABOSCO, Maria Madalena. Reconstruindo imaginrios femininos atravs dos testemunhos de Carolina Maria de Jesus: um estudo sobre gnero. 267f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada)- Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002, p. 147.16 JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. 8. ed. So Paulo: tica, 2000, p.110.

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    registro cotidiano e da metalinguagem. Assim, revelou-se ainda o processo de formao da leitora e escritora Carolina Maria de Jesus e foram revelados os papeis que a escrita e a leitura desempenharam na vida da menina e da mulher que revolucionou as letras nacionais por acreditar que escrever e ler so possibilidades de fantasiar e registrar a vida, formas de desenvolver o intelecto a fim de suportar as agruras do viver. Tal entendimento e prtica possibilitaram a Carolina transformar o cotidiano em potica metalingstica.

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    Bibliografia

    BARTHES, Roland. Escrever a leitura. In: _____. O rumor da lngua. Rio de Janeiro: Editora Martins Fontes, 2004. pg.inicial pg. finalJESUS, Carolina Maria de. Dirio de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. _______. Quarto de despejo. 8. ed. So Paulo: tica, 2000.MAGNABOSCO, Maria Madalena. Reconstruindo imaginrios femininos atravs dos testemunhos de Carolina Maria de Jesus: um estudo sobre gnero. 267f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada)- Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002.VIANA, Maria Jos Motta. Do sto vitrine: memrias de mulheres. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1995.VOGT, Carlos. Trabalho, pobreza e trabalho intelectual (O quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus) In: SCHWARZ, Roberto (Org.). Os pobres na literatura brasileira. So Paulo: Brasiliense, 1983.