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Poesia Seu nome era dor Seu sorriso dilaceração Seus braços e pernas, asas Seu sexo, seu escudo Sua mente, libertação Nada satisfaz seu impulso De mergulhar em prazer Contra todas as correntes Em uma só correnteza Quem faz rolar quem tu és? Mulher!... Solitária e sólida Envolvente e desafiante Quem te impede de gritar Do fundo de sua garganta Único brado que alcança Que te delimita Mulher! Marca de mito embotável Mistério que a tudo anuncia E que se expõe dia a dia Quando deverias estar resguardada Seu ritus de alegria Seus véus entrecruzados de velharias Da inóspita tradição irradias Mulher! Há corte e cortes profundos Em sua pele, em seu pelo Há sulcos em sua face Que são caminhos do mundo São mapas indecifráveis Em cartografia antiga Precisas de um pirata De boa pirataria Que te arranques da selvageria E te coloque, mais uma vez, Diante do mundo Mulher. Sonho Beatriz Nascimento Professora, historiadora, poeta e ativista pelos direitos humanos de negros e mulheres. Nasceu em Aracaju, Sergipe, em 17 de julho de 1942. Faleceu em 28 de janeiro de 1995, no Rio de Janeiro. Fonte do poema: Nascimento, Beatriz. Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento/Organizado por Alex Ratts e Bethânia Gomes; ilustrado por Iléa Ferraz e revisado por José Henrique de Freitas Santos. Salvador: Editora Ogum’s Toque Negros, 2015. p. 32 A todas as mulheres pretas espalhadas pelo mundo, a todas as demais mulheres e a Isabel Nascimento, Regina Timbó e Marlene Cunha/1989

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116 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #62 - EDIÇÃO ESPECIAL

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Seu nome era dorSeu sorrisodilaceraçãoSeus braços e pernas, asasSeu sexo, seu escudoSua mente, libertaçãoNada satisfaz seu impulsoDe mergulhar em prazerContra todas as correntesEm uma só correntezaQuem faz rolar quem tu és?Mulher!...Solitária e sólidaEnvolvente e desafianteQuem te impede de gritarDo fundo de sua gargantaÚnico brado que alcançaQue te delimitaMulher!Marca de mito embotávelMistério que a tudo anunciaE que se expõe dia a diaQuando deverias estar resguardadaSeu ritus de alegriaSeus véus entrecruzados de velhariasDa inóspita tradição irradiasMulher!Há corte e cortes profundosEm sua pele, em seu peloHá sulcos em sua faceQue são caminhos do mundoSão mapas indecifráveisEm cartografia antigaPrecisas de um pirataDe boa piratariaQue te arranques da selvageriaE te coloque, mais uma vez,Diante do mundoMulher.

Sonho

Beatriz NascimentoProfessora, historiadora, poeta e ativista pelos direitos humanos de negros e mulheres. Nasceu em Aracaju, Sergipe, em 17 de julho de 1942. Faleceu em 28 de janeiro de 1995, no Rio de Janeiro.

Fonte do poema: Nascimento, Beatriz. Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento/Organizado por Alex Ratts e Bethânia Gomes; ilustrado por Iléa Ferraz e revisado por José Henrique de Freitas Santos. Salvador: Editora Ogum’s Toque Negros, 2015. p. 32

A todas as mulheres pretas espalhadas pelo mundo, a todas as demais mulheres e a Isabel Nascimento, Regina Timbó e Marlene Cunha/1989

117 ANDES-SN n junho de 2018

Esmeralda RibeiroNasceu em São Paulo, em 1958. É jornalista e coordenadora da Quilombhoje.

É invasãoquando gente do campoplanta o espírito de Palmarese dá vazão ao desejo de criarum Quilomboe trabalhar com seus pares?

É invasãose as terras do Senhorcobrem-se de matoenquanto olhares à espreitaesperam que uma estrelatraga-lhes justiça edesfaça o temor?

É invasãoquando em Luiza Mahinoutra mulher se transformapra acabar com a dorde ser tratada comocoisa-ruim?

É invasãoo homemfincar os pés na terra, poisserá a própria Terra quevai devorá-lo comoum joão-ninguém?

Um dia, quem sabe,depois dos 300, 400, 1000 anos de Palmaresgestaremos novos Zumbis, Acotirenespara redesenhara Naçãoe talvez do rubro soloverdes frutos surgirão.

Fonte do poema: Cadernos Negros 17, p. 20-21.

Serão sempre as terras do Senhor?

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Carolina Maria de JesusEscritora brasileira, bastante conhecida por seu livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, publicado em 1960. Nasceu no estado de Minas Gerais, na cidade de Sacramento, em 14 de março de 1914. Faleceu na cidade de São Paulo, em 13 de fevereiro de 1977.

Muitas fugiam ao me ver...

Muitas fugiam ao me ver Pensando que eu não percebia Outras pediam pra ler Os versos que eu escreviaEra papel que eu catava Para custear o meu viver E no lixo eu encontrava livros para ler Quantas coisas eu quis fazer Fui tolhida pelo preconceito Se eu extinguir, quero renascer Num país que predomina o pretoAdeus! Adeus, eu vou morrer! E deixo esses versos ao meu país Se é que temos o direito de renascer Quero um lugar onde o preto é feliz.

Fonte do poema: Carolina Maria de Jesus, em “Antologia pessoal”. (Organização José Carlos Sebe Bom Meihy). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.

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Conceição EvaristoEscritora brasileira, nasceu em Belo Horizonte, no dia 29 de novembro de 1946. É uma referência para a literatura brasileira.

A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos de uma infância perdida. A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela. A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância o eco da vida-liberdade.

Fonte do poema: Conceição Evaristo, no livro “Poemas da recordação e outros movimen-tos”. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

Vozes-mulheres

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Oliveira SilveiraPoeta e professor de Letras. Nasceu no Rio Grande do Sul, na cidade de Rosário do Sul, no ano de 1941. Faleceu no dia 1 de janeiro de 2009.

Transmissão

Fonte dos poemas: Livro Poemas, antologia publicada em 2009.

Encontrei minhas origensEm velhos arquivosLivrosEncontreiEm malditos objetosTroncos e grilhetasEncontrei minhas origensNo lesteNo mar, em imundos tumbeirosEncontreiEm doces palavrasCantosEm furiosos tamboresRitosEncontrei minhas origensNa cor de minha peleNos lanhos de minha almaEm mimEm minha gente escuraEm meus heróis altivosEncontreiEncontrei-as, enfimMe encontrei

Querem que a gente saibaque eles foram senhorese nós fomos escravos.Por isso te repito:eles foram senhorese nós fomos escravos.Eu disse fomos.

Encontrei minhas origens

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121 ANDES-SN n junho de 2018

Solano TrindadePoeta, ator, teatrólogo e pintor. Nasceu em Recife, no dia 24 de julho de 1908. Faleceu no Rio de Janeiro, em 19 de fevereiro de 1974.

Navio negreiroLá vem o navio negreiroLá vem ele sobre o marLá vem o navio negreiroVamos, minha gente, olhar...

Lá vem o navio negreiroPor água brasilianaLá vem o navio negreiroTrazendo carga humana...

Lá vem o navio negreiroCheio de melancoliaLá vem o navio negreiroCheinho de poesia...

Lá vem o navio negreiroCom carga de resistênciaLá vem o navio negreiroCheinho de inteligência…

Fonte do poema: Solano Trindade, em “Cantares ao meu povo”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

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122 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #62 - EDIÇÃO ESPECIAL

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Da África fui arrancada, escravizada, desumanizadaViolentada pelo senhorTiraram meu filho preu amamentaro filho do estupradorTrabalhando na lavoura e na agriculturaEssa é a vida de negra, dura.Mas não me acomodei, resistiCom meus irmãos de corQuilombo construíO que não tolero, não aceitoAlguém cheio de preconceitoCom tudo que tenho feito e vividoDizer que quilombo é lugar de preto fugidoQuilombo era espaço de resistência e lutaConstruído com muita labutaOnde negro, índio e branco pobre Viviam em comunhãoSem exploradores nem opressão.Dandara, Acotirene, Luisa MahinE outras negras do passadoNos deixaram um grande legadoA união e resistência do povo escravizadoMinha inteligência, chamam de intuiçãoDoméstica é o que nos resta de profissãoDondoca, sexo frágil não nos cabe nãoNesta sociedade monoculturalMinha luta pelo direito à igualdade socialNão apagou minha diferença étnico-racialSou muito mais que essa franzina aparênciaEu sou pura resistênciaMinha arma é minha consciência.

Preta NicinhaEstudante de Pedagogia da UFMA e militante do Quilombo Urbano do Maranhão.

Mulher negra

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