artigo o funeral do cacador caca e perigo na amazonia

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  • 7/24/2019 ARTIGO o Funeral Do Cacador Caca e Perigo Na Amazonia

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    Anurio AntropolgicoII (2012)

    2011/II

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    Uir F. Garcia

    O funeral do caador: caa e perigo naAmaznia

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    Aviso

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    Referncia eletrnica

    Uir F. Garcia, O funeral do caador: caa e perigo na Amaznia , Anurio Antropolgico[Online], II | 2012, postoonline no dia 18 Outubro 2013, consultado no dia 20 Novembro 2013. URL : http://aa.revues.org/127

    Editor: Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social (UnB)http://aa.revues.orghttp://www.revues.org

    Documento acessvel online em: http://aa.revues.org/127Este documento o fac-smile da edio em papel. Anurio Antropolgico

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    O funeral do caador: caa e perigo na Amaznia*

    Uir F. GarciaCESTA-USP

    CPEI-UNICAMP

    memria de T Guaj

    A histria aconteceu na aldeia Juriti, durante o vero de 2008,1em um

    quente ms de novembro. Um homem, excelente caador, procurava na matapor um grupo de guaribas (war [Alouatta belzebul]), cujo caracterstico somgutural (o canto, dizem os Aw) tinha sido ouvido ao longe na tarde anterior.Enquanto caminhava, este homem se deparou com o rastro de porcos quei-xada (txah [Tayassu pecari]), porm, por estar relativamente longe da aldeia eno estimar com preciso a que distncia estariam os animais, resolveu seguirsozinho ao encalo da vara. Tratava-se de uma atitude no usual, pouco reco-mendada para uma caada como aquela, cuja tendncia ser preferencialmente

    coletiva, reunindo o maior nmero possvel de homens (e por vezes mulheres).Aps andar alguns quilmetros, de maneira silenciosa sobre o barulhentocho de folhas secas que preenchem a superfcie da floresta quela poca doano, ouviu ao longe um som muito parecido com o coaxar do sapo warakaka(que no consegui identificar). Atento, continuou sua caminhada seguindo atrilha e, agora, ao se aproximar daquele coaxar familiar, percebeu no ser otal sapo, porm o choro (ja) dos filhotes de queixadas (txahimymyra), o querenovou a sua confiana na caada. Logo em seguida, o homem pde avistar

    toda a vara, porm na mesma hora um jacupemba (jak

    [Penelope superciliaris

    ])ao v-lo se assustou, levantando voo, acusando a presena humana ali e espan-tando os queixadas mais alguns quilmetros frente pois, como lembramos Aw, os porcos so medrosos (irir tem medo) e se assustam a qualquermovimento ou som. O caador caminhava sozinho e era persistente, por isso,mais alguns quilmetros adiante voltou a alcanar os animais. Ao se aproximarnovamente da vara que comia distraidamente em um cocal, uma cotia (akutx)gritou e correu, fazendo com que os animais sassem outra vez em disparada.O caador, no entanto, estava preparado e em boa posio, com condies deacertar alguns porcos. O homem armou a sua taboca no arco, puxando a corda

    Anurio Antropolgico/2011-II, 2012: 33-55

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    com retido, mas no exato momento do disparo a corda arrebentou.Aturdido, sentindo o cho estremecer, ao assistir passagem de uma grande

    quantidade de queixadas controlando a ansiedade e mantendo calma nosso

    caador tentava remendar inutilmente a forte trana de fibras de tucum quedava forma corda do arco. Quando enfim a reparou, os porcos j se encontra-vam longe. O caador perdeu os porcos, a caada, a sade... a sorte, e retornoupara casa triste e doente aps o episdio.

    Quem me narrou boa parte desta histria foi Piraima, o genro deste ca-ador quando eu tentava descobrir o motivo da sbita doena que se abaterasobre aquele homem enquanto eu realizava mais uma etapa de trabalho decampo em 2008. Parto deste pequeno relato, agregando outros elementos no

    decorrer do texto, para discutir o paralelismo entre caa, guerra e sade enfati-zado nas atividades de caa aw-guaj. Trata-se de um tema j abordado em ou-tros trabalhos da literatura etnolgica sul-americana (Descola, 1996; Erikson,1987; Hugh-Jones, 1996; Lima, 1996; Viveiros de Castro, 2008), e que serexplorado aqui a partir da etiologia das doenas que regem boa parte da relaoentre caadores e presas.

    Apresento o universo de agresses morais sofridas por caadores, discutindouma sintomatologia particular s passvel de entendimento ao conhecermos as

    concepes aw-guaj sobre a pessoa e os animais. Argumento que as agressesfsicas e morais dos animais vida humana so centrais para o entendimento decomo se configura a caa aw-guaj, sendo o conhecimento sobre a origem detais agresses (que acarretam sorte e azar; sade e doena) parte importante doconjunto de saberes que regem a relao entre humanos e animais. O artigo nopretende ser um balano terico sobre o tema, mas uma contribuio etnogrfi-ca ao debate sobre a caa amerndia e etnologia sul-americana de uma maneirageral. Os materiais subsequentes so baseados na minha experincia de nove

    meses de trabalho de campo entre os Aw-Guaj, entre os anos de 2007 e 2009,que originou a minha tese de doutorado defendida em 2011 (Garcia, 2010).2

    ContextoOs Aw-Guaj so um pequeno grupo de caadores, habitantes da por-

    o oriental da Amaznia, mais exatamente a poro noroeste do estado doMaranho, entre as bacias dos rios Gurupi, Turiau e Mearim. Falantes de umavariante do tupi-guarani, sua populao estimada em cerca de 400 pessoas,

    distribudas por quatro aldeias que se situam em trs reas indgenas diferentes(Terras Inggenas Alto Turiau, Aw e Car), formando um conjunto: Guaj,Juriti, Tiracamb e Aw. Alm destes, h evidncias de grupos vivendo em

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    isolamento voluntrio nas reas Caru e Arariboia (tambm no Maranho), cujapopulao no pode ser estimada com preciso. Historicamente, no constru-am aldeias permanentes e, at o contato, organizavam-se em pequenos aglome-

    rados baseados em acampamentos semipermanentes, formados por uma ou duasfamlias nucleares, dispersos sobre um territrio tambm ocupado por outrospovos indgenas (Tenetehara e Kapor).

    At a poca do contato (cujo processo foi intensificado durante a dcada de1980) no praticavam agricultura, atividade que tem sido introduzida ao longodos anos nas aldeias pela Fundao Nacional do ndio (Funai), principalmenteo cultivo de mandioca, macaxeira, milho, arroz, abbora, feijo, frutas, dentreoutros. Tal atividade, no entanto, ainda est diretamente ligada Funai, que or-

    ganiza os trabalhos com as comunidades. Trabalhadores temporrios so con-tratados para auxiliar os indgenas em roas coletivas, e o sistema de trabalho o mesmo adotado pela tradicional agricultura de corte e queima maranhense(ver Forline, 1997).

    Trata-se de um povo composto por caadores habilidosos, que possuem umatcnica apurada para a captura de mamferos arborcolas. As caadas so realiza-das de diversas maneiras: individuais; em casal; com grupos de irmos, cnjugese filhos; caadas de uma jornada diurna ou esperas noturnas; e at mesmo gran-

    des caadas coletivas, que podem mobilizar boa parte de uma aldeia. Executadascom espingardas, arco e flechas e armadilhas, as caadas chamadas generica-mente de wat(andar-caar), como j discuti em outra ocasio (Garcia, 2012) so a matria mesma da vida aw. Por serem momentos importantes, os tiposde animais caados (hamaa, minha caa), as atitudes dos caadores, sade epessoa so temas que aparecem juntos e que devem ser compreendidos aqui an-tes de darmos prosseguimento anlise.

    Caa e pessoaFisiologicamente, os Aw-Guaj definem a pessoa humana como constituda

    por trs elementos caractersticos: ipirra, haitekrae haaera,respectivamente;ou como traduzido para o portugus: couro (ipirra), carne (haitekra) eraiva (haaera). Nas palavras dos Aw: quando um indivduo morre, seu cou-ropermanece na terra at apodrecer, e sua carne vai para o iw(um conjuntode patamares celestes), enquanto a raiva... esta segue para a floresta (kaa),para o mato, de preferncia os locais recnditos, e se transforma em aj(es-

    pectros necrfagos que vivem na floresta e atacam os humanos com doenas, eque tm os gambs como animais de criao).3Noes centrais para o entendi-mento da sociocosmologia aw-guaj, ipirra, haitekrae haaera so os princpios

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    que formam a pessoa, promovem a vida e possibilitam a separao do ser apsa morte. Poderamos traduzir grosseiramente ipirrapor corpo-pele; haitek-rapor vitalidade (cujo correspondente ocidental, apenas como paralelo, seria

    alma); e haaerapor raiva ou alma penada. Nenhum destes elementos umprincpio abstrato, tais como representaes do que seria a pessoa humana,pelo contrrio, todos relacionam noes fisiolgicas centrais como anatomia esintomatologia e fornecem uma terminologia apropriada para o entendimentodas relaes humanas (ver Garcia, 2010:79-119).

    comum na literatura de nossa disciplina traduzirmos conceitos amerndiosreferentes s diversas formas com que concebido e experimentado o destino dapessoa post mortem,atravs de ideias como alma, sombra, esprito, espec-

    tro, princpio vital, e tantos outros. Fausto (2001:390) pontua o fato de existi-rem povos que postulam a existncia de vrios desses princpios (como os Pano),outros que os reduzem a um ou dois (como os Tupi-Guarani). Cesarino observaque noes recorrentes nas culturas amerndias, tais como o vak marubo, oskaron/garonj, a e o tao we dos Arawet, entre outras tantas, parecem orbitar emum campo semntico distinto daquele que caracteriza as noes de alma de nos-sa herana clssica, muito embora a etnografia se utilize frequentemente da mes-ma palavra (Cesarino, 2008:34). Ou, como ilustra Lima, ao argumentar que a

    dicotomia entre corpo e alma no se aplicaria realidade yudj (povo Tupi dobaixo Xingu), uma vez que a alma no um princpio estabelecido em oposioa corpo, como se se referisse exclusivamente humanidade, mas, ao contrrio, algo que relaciona muitas outras ideias do mundo yudj, como animais, duplos,princpios vitais, fantasmas, e outros (Lima, 2002).

    Viveiros de Castro (1992:202) tambm se mostra reticente na utilizao determos como alma, sombra e princpio vital como tradutores de ideias a res-peito da separao da pessoa Arawet, uma vez que tal populao apresenta uma

    multiplicidade de enunciaes a respeito da morte, sendo difcil reduzi-las a umanica noo. Soma-se a isto o fato de a morte no ser para os Arawet (tal comopara outros povos) um evento finalizador das relaes entre os seres, ao contrrio:a ideia de haitekra, defendo, prope os mesmos questionamentos. Se, por um lado,o haitekrapode ser superficialmente comparado s nossas noes de esprito oualma, tal princpio no poder ser devidamente compreendido se o reduzirmossomente a isto. Dentre outras particularidades, o haitekraenglobaria elementosfsicos, como o corao (jaaina) e o fgado (ipia).

    O que nos interessa aqui, no entanto, a relao entre caa, presas e, digamos,sade humana, algo que aparece naquele episdio inicial. Porm, para entender-mos o que ocorreu quele caador, se faz necessrio apresentar, alm do haitekra,

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    outro princpio da pessoa aw, o haaera4noo central para a compreenso daboa e da m sorte de um caador. Os Aw traduzem haaera para o portu-gus como raiva, no se tratando da mesma raiva expressa pelo termo imahy

    (bravo, aborrecido). Esta ltima um sentimento que, apesar de perigoso edesprezado, muito comum e importante em diversas situaes, como na guerra.Haaera, ao contrrio, pode ser traduzido pela ideia de raiva-espectro, devido tan-to sua condio de sombra/alma bestial, liberada aps a morte processo cujaconsequncia a sua transformao em um ser que pura raiva, os aj quantoao fato de atuar durante a vida como um dos componentes da pessoa humana. Parauma melhor definio do termo, podemos contrastar o haaeracom o haitekra,sendo este ltimo um princpio que agencia a vida, enquanto o haaeraagencia a

    morte, as dores e os sofrimentos.O haaera uma substncia constitutiva do prprio ser: Est por aqui!, me

    disse certa vez um interlocutor, apontando para o seu peito e barriga. Humanos ealguns animais possuem haaerae, no caso dos animais, esta potncia que ator-menta os humanos, sobretudo os caadores na forma de vingana animal aps ascaadas emanando doenas e retirando a sorte para caadas futuras. No casoparticular da constituio da pessoa, ohaaera aquilo que diversos autores chama-riam de espectro de um morto (ver, por exemplo, oJuruparidos Waipi; Gallois,

    1988:178). O haaerano seria apenas o espectro de um morto recente, uma som-bra da pessoa morta que um dia se transformar em fantasmas aj, mas tambmuma substncia que compe vida e, somente aps a morte, vaga como alma pe-nada e se mescla massa de seres aj, que so dependentes do haaerapara viver.

    No possvel afirmar que o haaerapossua uma aparncia, ao contrrio, osAw o definem literalmente como uma substncia, algo espectral. como o seurepelente! me disse certa vez um agente que possui o poder de penetrao tocapilar quanto gases, odores ou fumaa. Um princpio invisvel e espectral, porm

    dotado de grande penetrao. algo que todo humano carrega, pois faz parte dacomposio fsica humana, porm, ao ser liberado violentamente aps a morte,funciona como uma energia formadora de seres ligados morte, os aj.5

    Assim como os humanos, diversas presas animais tambm liberam haaera,dificultando em muito a vida das pessoas.

    Animais e perigoA caa uma atividade que envolve perigo, tanto por sua complexidade tc-

    nica (por ser extremamente desgastante, com o caador sujeito a ser atacado poranimais, machucar-se de vrias maneiras e mesmo falecer), quanto pelo fato demuitos animais caados serem dotados de haaerae, atravs disso, se vingarem

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    dos humanos. O haaeraem questo homlogo ao princpio nocivo e raivosoque compe a pessoa aw. No caso dos animais, o haaerano se transforma emaj, mas est prximo ao que a literatura etnolgica sul-americana denomina de

    vingana animale termos congneres (ver, por exemplo, Lima, 1996; Hugh-Jones, 1996; Viveiros de Castro, 2008). No que concerne caa, o haaerapodeser lanado aos humanos por animais mortos, pelos fantasmas aj, e at mesmopor humanos falecidos. Assim me foi definido por Uirah, um interlocutor:

    Quando vamos matar os guaribas, eles ficam muito aflitos, pois pensam quens somos madeireiros (ou inimigos). Aps comermos sua carne, um delesvem durante a noite enquanto estou dormindo, e me diz: voc me matou, n, seu

    madeireiro? Agora vou jogar minha raiva (haaera) em voc.

    No dia seguinte, o homem pode acordar doente, com febre, indisposto ou,mesmo que goze de alguma sade, pode experimentar um completo estado deazar em sua vida. O haaera pode atingir mulheres e crianas, porm, quasesempre lhes causam doenas, mas quando atinge e se aloja nos homens chamadopnemhm(pne-mhm, termo complexo que pode ser traduzido por pane-ma, ou azar na vida).

    Em um sentido estrito, a ideia depnem-hmfaz referncia a um conjunto decircunstncias e estados que vo desde um mal-estar como uma indisposio,dores e cansao excessivo passando por doenas mais graves e chegando atmesmo perda do haitekra(o princpio vital). Uma vezpnemhm irritado,fracassado e sem pacincia o homem deve permanecer s em sua rede at queas coisas melhorem. Os Aw no gostam de conversar sobre opnemhmcomofazem com outros assuntos, o assunto em si deve ser evitado e, quando conver-svamos sobre o tema, era comum eu ouvir: assim mesmo!, ou No sei no,

    eu no lembro!, ou ainda Pergunte para outro!. Como se o mero fato de fa-lar sobre opnemhmfosse perigoso. Algo parecido foi observado por Clastresem relao aos Guayaki. O autor informa que seus interlocutores tinham poucaprolixidade quando tratavam do pane(palavra guayaki anloga ao pnemhmaw-guaj): O que pane? Sob aparncia andina, essa pequena palavra perigosadesigna de fato a pior das coisas que pode acontecer a um ndio: a m sorte nacaa (Clastres, 1995:19).

    Em um sentido amplo,pnem um conhecido cognato tupi encontrado des-

    de a lngua tupinamb (Magalhes, comunicao pessoal), estando presente emdiversos grupos Tupi contemporneos como os Wajpi e os Guayaki signifi-cando infeliz/ sem sorte na caa. O sufixo -uhu um intensificador (Magalhes,

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    2007), compondo a formapnemhm, sendo este um qualificador atribudo aalgum com algum tipo de azar; azarado seria a melhor traduo do termo.Neste ponto, opnemhmseria anlogo ideia de panema, o azar na caa, na

    pesca e outros infortnios, tal como conhecido por diversas comunidades tradi-cionais do norte brasileiro (Galvo, 1976; Matta, 1973; Wagley, 1988; e para umcaso amerndio, Clastres, 1995),6tendo sido discutido recentemente por MauroAlmeida (2007). Mesmo os Aw podem se referir aos seus azares atravs dotermopanema, em portugus, da forma como aprenderam com os funcionriosdo posto indgena nesses anos de contato ideia que traduz de maneira muitosatisfatria o pnemhm. relativamente comum um homem voltar mudo dafloresta e, ao chegar em casa, comentar em portugus, Tpanema!, como se

    dissesse que a caada foi improdutiva, ou mesmo como um sinal de que algo piorhouvesse acontecido. Mas o que ocorre de fato nessas situaes? O que, alm deum acidente fsico e o azar nas caadas, pode ocorrer de to ruim a um caadorna floresta?

    PanemaO estadopnemhmacomete um caador no cotidiano, sendo quase sempre

    o resultado de uma vingana animal, uma descarga de haaeraoriunda de algu-

    ma presa abatida. Os ajtambm, decerto, podem lanar o haaeraem um hu-mano, deixando-o doente e/oupnemhm. Veados, macacos, antas, guaribas,porcos, cotias, tatus, dentre outros animais, so dotados de um haaeraviolento.Desta forma, podemos formular de maneira simples que o pnemhm umestado circunstancial que experimenta um caador (mas no s) aps o ataquede um haera, seja ele produzido pelos animais abatidos ou pelos fantasmas aj.

    Alm disso,h um conjunto de atitudes e pequenos eventos que podem pro-duzir uma exclusiva m sorte na caa, e nem sempre esto relacionados ao

    potencial assassino do haaera. Em outras palavras, pnemhmpode ser tantoo sintoma grave de um ataque espectral e assassino relacionado sade e aodesequilbrio na composio de uma pessoa quanto um azar momentneo,resultado da quebra de uma regra ou prescrio menor (algo como uma quebrade tabu). Existiria, como em tudo na vida, graus de azar e de sorte, coragem,medo, alegria, tristeza... Da mesma forma, Clastres observa que opaneentre osGuayaki era evocado a propsito de circunstncias ora graves, ora fteis de suaexistncia cotidiana (Clastres, 1995:18).

    Se um homem permanece durante sucessivas caadas matando apenas pe-quenos animais (tal como aves menores, tatus, roedores, ou mesmo capturandoapenas jabutis), ele deve se preocupar, pois pode estarpnemhm, uma vez que

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    as grandes caas podem ter desaparecido. Assim, podem provocar opnemhm:1. um acesso de raiva (ou a raiva contida); 2. tristeza ou aborrecimento de umaesposa em relao ao seu marido; 3. saudades e lembranas de algum; 4. qual-

    quer outro sentimento que altere o humor do caador, ou de algum para com ocaador, tornando-o triste, k. Notem que k um termo cuja traduo podeser medo e/ou tristeza, sentimentos que, neste contexto, so experimentadosde maneira simultnea a partir da ideia de um medo-tristeza; 5. uma esposaou filhos no podem fazer ccegas (knh) nas axilas de seu marido/pai, pois eleperderia a firmeza no arco ou na espingarda, seus braos ficariam moles e ele setornariapnemhm; 6. da mesma forma, no se deve caar aps o nascimento deum filho, pois os homens, alm de no matarem nada, podem enlouquecer. Caso

    um homem v caar no perodo de resguardo do nascimento do filho, um calorintenso se apossar do seu corpo, calor este que um prenncio da loucura; 7. emalguns casos (como as caadas de espera noturna), anunciar que est indo matapode causarpanem, pois os animais ouvem (n) e, por isso, sabem (akw) quesero caados; 8. alguns sonhos com cobras, por exemplo tambm podemdeixar o caador sem sorte.

    Alm destas, h vrias prescries de ordem sexual e de atitude que engros-sam esta lista. Em linhas gerais, quando um homem estpnemhm, ele tem

    dificuldades em encontrar animais para caar (embora os animais no alterem oseu ciclo), e muito comum ele caminhar durante todo um dia e no encontrarpresa alguma e, caso encontre, bem provvel que no a mate. Os bichos sim-plesmente desaparecem. um estado que, tal como uma doena, a pessoa que acontraiu sente. Nesses casos, ele deve voltar para casa, falar com sua esposa o queest havendo e descansar, pois quando opnemhm/ haaera de um tipo fraco,ele tende a passar.

    Trata-se aqui de um conceito altamente abstrato, como gravidade, como ob-

    serva Almeida sobre a complexidade da ideia de panema entre seringueiros doAcre uma ideia que envolve mecanismos e regras particulares que, por sua vez,so postos em relao a uma ontologia distinta da nossa ontologia naturalista quedistingue domnios naturais e domnios morais, constituindo uma economiaontolgica da caa (Almeida, 2007:08-09):

    [Panema] um estado que sentido no corpo, assim como sentimos um peso;[...] Panema, exatamente porque to generalizado como a gravidade, e to

    difuso como a honra pessoal, algo que se confirma a todo o momento pelaexperincia. Tudo se passa, de fato, como se panema fosse parte do mundo.[Panema um componentegeneralizado da ontologia de caadores da plancie

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    amaznica; e confirmado-corroborado por encontros pragmticos cotidia-nos. Para meu pai, que na infncia viveu na mata com meu av seringueiro,e depois tornou-se bancrio de carreira, assim como para o lder poltico e

    sindical Osmarino Amncio,panema nada tinha a ver com superstio, ou comreligio, que ambos rejeitavam por razes diversas. Panema era um fato domundo, que a experincia confirmava.] (Almeida, 2007:08-09)

    Um fato do mundo, confirmado pela experincia, tambm me parece umaexcelente definio para opnemhmaw-guaj, uma vez que tal estado sen-tido e experimentado por todos em um ou outro momento, em diferentes situ-aes de vida.

    Um dos principais e mais devastadores efeitos dopnemhm o poder dedesconectar a pessoa de seu princpio vital, de sua vitalidade, ohaitekra, comovimos acima. Uma clssica perda da alma, em termos xamnicos amaznicos,j foi bem discutida por alguns autores (para um balano, ver Viveiros de Castro,2002:345-399). esse mal que a vingana dos animais (haaera) e dos ajproduznos seres humanos. Se pensarmos opnemhma partir da fisiologia da pessoaaw, da relao entre os elementos haitekra(princpio vital), haaera(raiva)e ipirra(suporte fsico, corpo-pele), veremos que opnemhmpressupe um

    enfraquecimento, muitas vezes um abandono do haitekra(o princpio vital), de-vido a algum trauma como um susto ou uma grande dor sobre o ipirra(ocorpo), ou mesmo um elevado acmulo de haaera(raiva) no corpo, provoca-do por mau-humor (imahy, braveza) ou tristeza (k, medo-tristeza). Destaforma, um dos piores males a acometer um caador (e em consequncia, suafamlia) ele receber uma grande dose de haaeracomo vingana de uma presaabatida, capaz, inclusive, de expulsar o seu haitekrado corpo e deixando emtroca opnemhm.

    Em uma traduo geral, podemos afirmar que o haaerados animais so agen-tes patognicos, lanados aos humanos por algum ser (animais,aj) como ataqueou vingana, causando doenas e eventualmente a morte. Quem ataca os huma-nos o prprio haaerado animal, uma parte dessubjetivada da presa morta, quese transforma em espectro, sendo liberado pela presa aps a sua morte, podendose instalar no corpo de qualquer um. De acordo com a fala de Uirah, um ami-go interlocutor, o haaerade um guariba seria uma parte do guariba que sabe(akw) ter sido morta por um caador e, ao mesmo tempo, o prprio guariba.

    No meio da noite, o caador, e dependendo da potncia do golpe, toda a suafamlia podem acordar doentes. Muitos animais possuem um haaeraperigoso:guariba, paca, cotia, veado, anta so sempre lembrados.

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    Opnemhm, como estamos vendo, um complexo que envolve ataques ecuidados de diferentes ordens. Vejamos um exemplo etnogrfico.

    Uirho estava com um abscesso em sua testa, algo como uma grande espinha,

    dura e inchada, que j lhe doa h meses. Alm disso, e embora fosse um grandecaador, estava passando por uma mar de azar, perdendo muitos animais duran-te as caadas. Quanto ao ferimento sem querer espremer a bola de pus que seformara na testa estava usando anti-inf lamatrios que lhe eram fornecidos pelosauxiliares de enfermagem do posto indgena. Certo dia, relatou-me que estavacansado das dores em sua testa e estava decepcionado com os remdios dos kara(os no indgenas). Segundo ele, os remdios que estava tomando deveriam ex-pulsar aquele chumbo de espingarda que se alojara em sua testa, e que lhe fora

    lanado, meses antes, por um tatu que sobreviveu a um tiro seu.Ele contou que, aps avistar o tatu durante uma caada, atirou no animal,

    que conseguiu, com sua carapaa, fazer com que o chumbo do tiro retornasse ese alojasse exatamente em sua testa (por isso ela estaria to inchada) e em seusbraos (por esta razo vinha errando tantos alvos durantes suas caadas). Cansadoda medicao que vinha tomando e disposto a resolver a situao, Uirah acaboupedindo a ajuda de um auxiliar de enfermagem, que fez um pequeno rasgo comum bisturi em sua testa, fazendo ser expelido do ferimento uma grande quantida-

    de de sangue e pus venenos (hawy), assim os Aw definem que estavam emseu corpo. Aps limpar o ferimento, o funcionrio o suturou com alguns pontose, dias depois, Uirah estava recuperado de seu mal-estar (pnemhm).

    Inicialmente, o funcionrio se recusou a intervir na testa de Uirah, argu-mentando que, devido grande quantidade de pus, aquele abscesso demorariaa supurar, e que, com os remdios que lhe administrava, aquele inchao desa-pareceria. Mas o homem insistiu com o auxiliar de enfermagem, pois defendiaque o que estava em seu rosto era como pedacinhos de chumbo que o tatu lhe

    mandara de volta. At mesmo animais de pequeno porte, como as cotias e ostatus, podem apresentar perigo e lanar haaeraaos humanos. O perigo do tatu,por exemplo, est no seu couro duro (ipirhat) e, segundo os Aw, ele podesobreviver aos tiros, alm de fazer pedaos de chumbo voltarem para o caador ese alojarem de forma invisvel em seus corpos. Trata-se aqui de um ataque fsicoao caador, o que embaralharia uma suposta separao entre as agresses fsicas eno fsicas (haaera) lanadas pelos animais abatidos, e que pode ser compreendidoa partir daquilo que Almeida denomina economia ontolgica da caa, como j

    citei, em que os domnios fsicos e morais no podem ser tomados em separado(Almeida, 2007:08-09).

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    Medo e lembranaSe um homem vai caar desconfiado ou amedrontado, estar mais suscetvel

    a ataques do haaerade animais e consequente perda do seu haitekra,tornando-

    -sepnemhm. E isso pode atingir tanto o caador quanto o seu equipamento decaa: espingardas, arcos e f lechas. As espingardas, por exemplo, que apresentammuitos problemas, principalmente em suas molas e em seus parafusos, muitasvezes so avariadas por foras invisveis provenientes dos animais caados, cha-madas haaera(mas tambm faquinhas, flechinhas, foguinhos, chumbos,dentre outros nomes em portugus). Por isso, no episdio que abre este artigo,o arco do caador teria reagido to mal no momento em que foi acionado, earrebentou.

    O medo (k) uma palavra que definitivamente no pode figurar no lxicode um caador. Os animais devem ser abatidos sem remorso, e o momento damorte das presas, mesmo que relembrado nas conversas noturnas sobre caadas,deve ser em seguida esquecido. Um bom caador no pode ter piedade das pre-sas, pois ele ficar fraco (memekamole) e imprestvel para a caa (pnemhm).Permanece o feito heroico, porm as preocupaes, as angstias e os medos quetodos podem sentir no devem ser rememorados (imarakw, lembrana). Boaparte dos riscos de uma vingana animal eliminada quando o caador simples-

    mente no se importa em matar suas presas, ou esquece (imahar) as situaesem que as mortes ocorreram.

    noite, e mesmo durante alguns dias seguidos, um caador pode se reunircom outros e contar suas proezas: vangloriando-se de como enganou uma paca;comentando a sua pacincia durante a espera de um veado; a boa estratgia naemboscada a um bando de guaribas; a forma como o vento dificultou sua audi-o durante a perseguio a uma ave; a resistncia a mordidas de muriocas emuma noite que esperava uma anta em um p de pequi; a alegria de saber que o

    jacar que mergulhou, aps ser ferido de raspo, emerge morto superfcie;o encontro com os ajdurante uma espera noturna, quando o caador na ma-drugada fria soube manter a calma e no se apavorar, esperando os espectros sedissiparem, demonstrando grande coragem e sabedoria; a mordida de uma va-lente cotia que se escondeu no fundo de um buraco j devastado (mas l resistia),e de como, mesmo ferido o caador, aguentando a dor da mordida, agarrou-apelo pescoo conseguindo asfixi-la; a flecha certeira, o tiro perdido, a plvoramolhada, tudo lembrado noite, meia-luz, ao som de comentrios atentos,

    risonhos e curiosos.Estes e outros acontecimentos, ora insignificantes, ora fantsticos, compema vida de um caador. Tais momentos de embate, no entanto, no devem ser

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    lembrados com remorso nem tristeza, mas, ao contrrio, com orgulho e rego-zijo. Eu sou melhor do que uma ona, no tenho medo dela, disse-me certavez Piraima aps me mostrar orgulhoso dois caninos de uma ona pintada que

    ele havia matado. Se ela tem unhas, eu tenho a minha espingarda. Quando eupercebo uma ona no mato, eu a chamo bem alto, pode vir bicho, eu tenho umaespingarda e vou te matar!. E a ona, vista como bicho(hamaa, minha caa), setorna menos perigosa.

    Caso as lembranas negativas de caadas sejam sistematicamente relembradas(como o engasgue ou a falha de uma espingarda; o corte profundo no p; o rom-pimento da corda do arco, ou qualquer outro evento desastroso), as coisas podemficar perigosas. No que a lembrana em si crie o problema, mas ela acentuar

    o que j est errado (os erros e os azares que um homem pode estar tendo). Porisso, a frieza de um caador a sua melhor arma. Os jovens caadores so maissuscetveis a ataques de fantasmas (aj) e a outros haaerae, por vezes, perdem ocontrole ao voltarem da aldeia, gritando, quebrando coisas e f lechando tudo o queencontram pela frente. Esquecer (imahar) a dor e o momento da morte do animal imprescindvel. Esquecendo-se do bicho, a sua raiva (haaera) no se aproxima doshumanos, ou ter menos chance de se aproximar. por esta razo que no gostamde falar sobre o haaera(a vingana animal) e o azarpnemhm.

    Muitas vezes diziam desconhecer o assunto; outras, que os animais no lanammais haaera, isso s existe em outras aldeias. como se dissessem, Eu no acre-dito em vocs, haaera!, vocs no me atingem pois no existem!. Contam que,quando uma paca morta, seu haaerafica no buraco onde ela vivia at ir embora.O mesmo ocorreria com os tatus e as cotias, cujos haaeraficam no buraco; ou osguaribas, cujo haaerapermanece nas copas das rvores. A lembrana (imarakw) sempre um componente perigoso. assim com os mortos, que devem ser esque-cidos, e assim ser com os animais abatidos que, mesmo depois de mortos, podem

    ser perigosos.

    Faquinhas de queixadasO caso apresentado na abertura deste artigo, portanto, pode ser entendido

    como um ataque do haaerados queixadas que fugiram. Agora que sabemos umpouco mais sobre o funcionamento dos ataques dos animais, gostaria de retomaro episdio de nosso caador luz do que apresentei at o momento.

    Aps perder a vara de porcos e a corda de seu arco arrebentar, o nosso ca-

    ador passou muitos dias em sua rede sem se levantar, comendo pouco e muitoplido. Foi quando me relataram que os porcos haviam jogado suas faquinhas(takyamitxikan) contra ele, e foram essas faquinhas que cortaram a corda do

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    arco. Elas so invisveis e s os porcos as enxergam. As faquinhas ainda teriamentrado no corpo do caador, por isso ele estavapnemuhm, e deveria permane-cer em sua rede, descansando, sem dormir e comendo pouco, pois seu organis-

    mo, principalmente o fgado (ipi), estava fraco e sensvel a diversos alimentos.Devido a esta caada malsucedida, este homem sonhou (imh,sonho dele)

    enquanto passava os dias em sua rede. Sobre o sonho ele narrou:

    Eu andava pela floresta e encontrei os rastros de uma vara de porcos.Caminhei bastante e, ao segui-la, fui surpreendido por inimigos kara (noindgenas, madeireiros, neste caso) que, ao me verem, me deram um tiro, eme mataram.

    Ao acordar, sentiu-se ainda mais doente e, por isso, foi enfermaria do postopedir analgsicos. Aps ter restabelecido a sade, o nosso caador passou a uti-lizar um outro arco que mantinha em sua casa, e aposentou temporariamente oque foi atingido pelas faquinhas dos queixadas. Tal como a caa aos guaribas,os porcos podem ser oponentes difceis, sendo desejvel ca-los em conjuntocom outras pessoas e, tal como os guaribas, tambm enxergam os humanoscomo inimigos (miha), atacando-os com o seu haaera, aqui chamado de fa-

    quinhas (takyamitxikan).Os Aw lembram que nas caadas os queixadas feridos pelos humanos que

    conseguem escapar so tratados por suas esposas, irms (e parentes prxi-mos) ao chegarem em casa. A glndula dorsal encontrada nesta espcie (Tayassupecari) libera uma secreo branca com odor forte definida pela biologia oci-dental como uma forma de os indivduos do mesmo bando demarcarem o terri-trio e se comunicarem em situaes de perigo uma substncia leitosa chamadapelos Aw de txahpoh(remdio dos queixadas), que os animais carregariam

    para passar uns nos outros, caso fossem feridos por inimigos como os Aw (vis-tos pelos porcos como caboclos, karano indgenasoumadeireiros). Vemos aquique o nosso caador foi caar porcos, mas foi atingido por eles, ficando doente,como se, ao invs dos porcos, ele mesmo tivesse se transformado em presa paraos animais um reverso da caada, uma possibilidade real na vida de caadoresespecializados como os Aw.

    Desta vez, tal como fazem os porcos entre si ao sobreviverem a uma caada de forma paralela um humano teve que procurar medicao para se curar

    do ataque de porcos, e no o contrrio, como agem sempre os porcos, que tmcomo recurso a sua glndula dorsal. Alm disso, aps o infortnio na caa, nossocaador sonhou com inimigos, foi morto por eles, e acordou ainda mais doente.

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    comentando o sonho, no qual este homem experimenta a morte devido msorte na caa (pnemuhm), que eu desejo finalizar este artigo.

    O funeral do caadorOs sonhos, lembra Descola, desempenham um papel muito particular na

    cinegtica ashuar. Os chamados kuntuknar, espcies de sonhos premonitrios,

    constituem augrios favorveis caa e seu significado latente se interpretapor uma inverso, termo por termo, do seu contedo manifesto. Um sonho geralmente definido por kuntuknarquando pe em cena seres humanos agressi-vos ou particularmente inofensivos, enigmticos ou muito numerosos, deses-

    perados ou sedutores (Descola, 2006:136).

    A partir desta ideia, o autor apresenta diversas situaes em que sonhar comuma mulher de carnes fartas que convida para o coito exibindo o seu sexo, ou so-nhar com uma multido de gente tomando ruidosamente banho num rio indicaum encontro com queixadas (2006), dentre outras correlaes que associam osonho e a caa de animais. Para Descola, tais interpretaes baseiam-se

    em discretas homologias de comportamento ou aparncia: a vulva bem abertasimboliza a carcaa estripada do porco-do-mato, uma atitude belicosa evoca otemperamento batalhador desses animais, enquanto as brincadeiras aquticasde uma multido lembram o tumulto provocado por um bando de animais aoatravessar o curso dgua (2006).

    Outras tantas homologias ainda ajudariam os Ashuar a interpretarem e aplanejarem a caa de macacos-barrigudos, guaribas, emplumados, peixes, alm

    de outras presas. Este dispositivo tambm referido por Descola como umasselvajamento do mundo humano, um processo de naturalizao metafricada humanidade, o que faz com que o autor defenda a ideia de propriedadesdo inconsciente (estabelecendo aqui uma correlao lvi-straussiana, sim, mastalvez ainda freudiana entre sonho e inconsciente), de forma a estruturar opensamento segundo

    [...] regras de converso que supem uma correspondncia entre setores da

    prtica, ou conjuntos de conceitos, aparentemente inconciliveis: os huma-nos e os animais, o alto e o baixo, o aqutico e o areo, os peixes e as aves,as atividades dos homens e as das mulheres. [...] Cada sonho torna-se assim

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    a expresso de uma das relaes que o sonhador pode experimentar em seuestado consciente (Descola, 2006:137).

    Embora o quadro trazido por Descola seja de grande riqueza terico-etno-grfica, sugiro aqui que o sonho experimentado por nosso caador (o vitimado)funcione de maneira alternativa aos sonhos premonitrios ashuar. Se a caa hu-mana vista como guerra pelos porcos alm de guaribas e outros animais,como j observei em outros trabalhos (Garcia, 2010), e como outros autores jafirmaram para a Amaznia indgena (Erikson, 1987; Hugh-Jones, 1996; Lima,1996; Viveiros de Castro, 2008) o encontro em sonho de nosso caador comassassinos, logo aps ter sido alvejado, em viglia, pelas faquinhas dos queixa-

    das, alm de ter sido curiosamenteps-monitrio(e no pr-monitrio, como ossonhos ashuar), est mais prximo da forma com que os Yudj associam sonho,caa e guerra. De acordo com Lima:

    O sonho o plano privilegiado da comunicao entre os humanos propria-mente ditos e as mais diferentes espcies animais (e outras categorias ontol-gicas, como os ogros e os espritos). A, o animal no apenas se toma por, mas,sob certas condies, se transforma em humano para algum; identificado

    como pessoa por outra pessoa, e os dois travam (ou no) uma aliana mais oumenos durvel (isto , que pode ser experimentada em diferentes noites desonho) (Lima, 1996:28).

    E as perguntas que se impem so: teriam sido aqueles porcos que quebra-ram o arco do caador inimigos? Ou, os inimigos com quem o caador sonhou,naquela mesma noite, seriam porcos?

    Acredito que no se pode pensar a proposio os porcos lanaram faquinhas

    cortando a corda do arco de nosso caador somente como uma metfora criadapara dar conta das inmeras variveis envolvidas na caa de porcos, isto , paraexplicar um infortnio. E, mesmo que se valham de metforas, a minha questotalvez seja a mesma de Lima quando indaga que tipo demundo este em quemetforas deste tipo so operativas? (Lima, 1996:30). Ao observarem que osqueixadas jogaram faquinhas (que s os queixadas enxergam), os Aw sugeremque a caa, tal como experimentada pelos queixadas, um evento que ocorrepara os animais de maneira paralela forma que ocorre para os humanos. Os

    guaribas, da mesma maneira, animais inteligentes e ousados, costumam jogarcaroos e pedaos de frutas nos caadores que esto em seu encalo, e tais proj-teis, dizem os Aw, so f lechinhas para os guaribas. Podemos pensar que, se os

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    48 O funeral do caador

    porcos realmente ensaiam outra perspectiva sobre a caada, a caa s caa paraos humanos, sendo, para os queixadas, uma guerra que por vezes conseguemvencer. No caso acima, o humano perdeu: seu arco quebrou; ele adoeceu; e

    ainda sonhou com a sua prpria morte ocasionada por inimigos, para se afundarainda mais em sua doena. Ou, ainda, segundo Lima:

    A caa dos porcos no pe em cena uma mesma realidade vista por dois su-jeitos, conforme nosso modelo relativista. Pelo contrrio, ela pe um acon-tecimento para os humanos e um acontecimento para os porcos. Em outraspalavras, ela se desdobra em dois acontecimentos paralelos (melhor dizendo,paralelsticos), humanos caam porcos, humanos so atacados por inimigos

    que so tambm correlativos, e que no remetem a nenhuma realidade objetivaou externa, equiparvel ao que entendemos por natureza. Um o referente dooutro. Diremos, pois, que a caa apresenta duas dimenses, dadas como doisacontecimentos simultneos que se refletem um no outro (Lima, 1996:35).

    O que ocorreu com o nosso caador, portanto, me parece ter sido um infor-tnio provocado, nas palavras de Lima, pelo resvalamento de sua caa na guerrados porcos, assim como o infortnio dos porcos seria o resvalamento de sua

    guerra na caa dos humanos.

    ConclusoDefendo aqui que opnemhm aw-guaj pode ser entendido como o re-

    sultado dessa vitria do ponto de vista (para usar uma ideia do perspectivis-mo amerndio) das presas animais sobre os humanos, sobretudo aquelas presasinteligentes, como os porcos ou as onas, tal como argumentam os Aw. Talconceito se filia no apenas a ideias como m-sorte na caa (embora tambm

    apaream), mas a outros temas muiamerndios, tal com a perda da alma; a fra-queza do corpo por agentes patognicos provenientes dos animais; e o embate deperspectivas que ordena parte das relaes entre homens e animais, sendo esteltimo um aspecto sensvel da socialidade amerndia, como j observado porLima (1996), Viveiros de Castro (2002:345-399) e outros autores.

    Os humanos tm o seu haitekra, sua vitalidade, prejudicada pelo haaera,uma vingana animal, como formas de alteridades-espritos [...] agncias sobre-naturais com o poder de nos contradefinir (nos termos de Viveiros de Castro,

    2007:232), que estabelecem uma posio de sujeito, no para o humano caa-dor, mas para o animal ou o esprito bestial injuriado, que pode levar humanos morte, definindo opnemhm. Assim, por exemplo, me foi explicada a morte

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    de um homem da aldeia Juriti, no ano de 2006. Ele faleceu subitamente, dor-mindo, enquanto estava na cidade de Santa Ins (MA) a caminho de uma expedi-o de contato com os Aw isolados na TI Arariboia. Sua morte foi diagnosticada

    no hospital como ataque cardaco, pegando todos de surpresa, uma vez que setratava de algum jovem, com menos de 40 anos.

    De acordo com os Aw, o corao de uma pessoa pode parar de bater tantopor medo-tristeza (k), saudade (imarakwlembrana) ou outro sentimentomelanclico, quanto por um excesso de haaera(esse ataque patognico desenca-deado por um ou mais animais). Alguns homens disseram que, semanas antes defalecer, esse homem passara muitos dias caando dezenas de guaribas, e muitoslhe lanaram haaera,que enfraquece principalmente o corao (jina), local da

    vitalidade do haitekra(Garcia, 2010:79-119). Quando o falecido foi para a cida-de, seu corao j estava fraco pelo haaeradesses guaribas, segundo me declarouum interlocutor.

    Em uma linguagem fisiologista, opnemhmpoder ser tanto um pequenosintoma quanto uma doena adquirida. Sintoma de alcance superficial, osinal sem grandes consequncias da quebra de uma regra sexual, alimentar ouhabitual, sendo pouco nocivo, como uma quebra de tabu, digamos assim.Esta ideia se aproximaria aqui do conceito de panema, difundido em boa parte

    da Amaznia (ver Almeida, 2007). Porm, quando se apresenta como doena e a muito perigoso acarreta risco ao haitekraque, como j vimos, a prpriaexistncia, a vitalidade da pessoa. Neste caso temos uma verso propriamenteamerndia (e particularmente aw-guaj) para o azar na caa, que se filia menosa um complexo atitudinal e mais aos embates de perspectivas que ocorremem diversos regimes de conhecimento amerndio, como a caa, o xamanismoe a guerra. Em outras palavras, em um mundo onde humanos e no humanoscompartilham, em alguns nveis, um sistema de ao que para ns exclusivo

    dos humanos (como vemos no mundo dos Aw-Guaj), o azar na caa frutode uma agncia animal intencional, e no mero descuido de caadores. Mesmoos mais cuidadosos podem se tornarpnemhm.

    Por isto mesmo, curiosamente, aps o episdio do ataque dos queixadas aonosso caador, as pessoas me disseram que, enquanto o homem retornava doentepara sua casa, os porcos estavam reunidos em sua aldeia (nipbe, a casa deles)comendo os frutos da palmeira maraj alm de andiroba e mandioca curan-do-se das feridas e felizes por no terem morrido pelas mos de um inimigo.

    Para finalizar, ainda sobre este ponto a possvel narrativa dos porcos so-breviventes a respeito de sua quase morte importante lembrar que, para acaa amaznica, as narrativas noturnas sobre os feitos de caa, to apreciadas

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    nas aldeias da Amaznia indgena, so contnuas s caadas, e esto diretamenterelacionadas s formas com as quais as pessoas atuam na floresta. Tais narrativasno so uma interpretao isolada sobre uma ideia abstrata de caa e caada, ao

    contrrio, narra-se uma caada especfica e no uma caada idealizada. Assimcomo observa Ingold para as mltiplas produes de significado a respeito doespao e das atividades nele envolvidas (Ingold, 2000:56), em casos como odos Aw-Guaj, separar a atividade de caa de atividades como narrar histriase cantar seria retirar tais narrativas que esto no mundo (produzindo-o, inclu-sive), e coloc-las como uma interpretao da natureza algo que elas no so.

    Desta forma o autor critica a partir de sua ideia deenskilment, mostrando-noso quanto fazer e aprender so processos inseparveis para muitos povos. No

    caso dos Aw-Guaj, enquanto todos riem e se assustam com as histrias notur-nas sobre as caadas, tambm descobrem o tamanho do animal, a configuraoda paisagem, as decises do caador, dentre outras informaes que s aparece-ro ao longo das histrias contadas. As narrativas dos caadores aw enfatizamo quanto suas presas se desesperaram ao v-los, inimigos (miha) que so, aomesmo tempo em que tais narrativas consagram (lembrando os argumentos deLima para a caa yudj) a vitria da perspectiva dos humanos (que prescrevem acaa) sobre a perspectiva do animal caado (que prescreve a guerra), pois o con-

    trrio ser sempre desastroso, como vimos neste artigo. Em meio s palavras,a caada ainda no terminou, pois aqui a palavra caa (Lima, 1996). Para ocaso de nosso caador, por exemplo, no foi ele o narrador dos feitos gloriososdaquele dia, mas sim os porcos. Assim lembram os Aw.

    Recebido em 05/11/2012Aceito em 26/11/2012

    Uir F. Garcia doutor em Antropologia pela USP; ps-doutorando noDepartamento de Antropologia da Unicamp; pesquisador do Centro de Estudos

    Amerndios da USP (CESTA-USP) e do Centro de Pesquisa em EtnologiaIndgena da Unicamp (CPEI-UNICAMP). Bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp).

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    Notas

    * O Funeral do Caador o nome do 3 movimento da 1 Sinfonia de Gustav Mahler,

    por sua vez baseado em um tema encontrado em gravuras da Europa oriental do sculoXIX. As imagens mostram uma fantstica inverso de papis: um conjunto de animais dafloresta carrega em velrio o corpo de um caador morto. Ver: http://www.steincol-lectors.org/steinmo/2011/07Jul/HuntersFuneral.html; http://www.keepingscore.org/interactive/gustav-mahler/origins/folk-folkways/rustic-instruments

    1. A estao chuvosa se inicia no final de dezembro, com intensificao do volume deguas em janeiro, chegando ao mximo da cheia nos meses de abril e maio, enquanto aseca, que se inicia em junho, tem o seu auge no ms de outubro. O calendrio bem divi-

    dido em duas estaes, com os meses de dezembro/janeiro a junho sendo de inverno, ejulho a dezembro, de vero.

    2. A etnografia aqui apresentada rene partes dos captulos 2 e 7 desta tese denomina-da Karawara: a caa e o mundo dos Aw-Guaj (2010). Uma verso preliminar deste textofoi mostrada no seminrio Sextas na Quinta organizado pelo Ncleo de AntropologiaSimtrica (NANSi) do Museu Nacional/UFRJ, em 24/04/2011. Agradeo os importantescomentrios dos colegas naquela ocasio.

    3. Os ajaparecem em muitas etnografias tupi-guarani, e j foram tratados por diver-

    sos autores, como Viveiros de Castro (1986:255) e Gallois (1988:240). Para um balanorecente sobre o tema, ver Cabral (2012:129-130).

    4. O termo correto -aa, sendo h-aa-er-ao resultado da juno do pronome de 1pessoa ha + espectro/ raiva, aa+ sufixo de a.n. retrospectiva, era; porm, os Awnunca se referem a haaeracomo -aa, e sempre o fazem utilizando o sufixo era ou e,nas formas haaeraou haae(dependendo da construo da frase).

    5. Encontramos na literatura tupi-guarani ideias prximas a haaera,como oJuruparientre os Waipi, a sombra ou o espectro terrestre que permanece nas proximidades da

    casa do morto, at que regressa rumo ao indiferenciado (Gallois, 1988:183-184); e o taoweArawet, que erra na terra durante o apodrecimento do corpo aps a morte (Viveirosde Castro, 1986:498).

    6. Como observa Charles Wagley a respeito de uma comunidade do Baixo Amazonas:Todavia, o maior flagelo que persegue os caadores e pescadores a panema. Um caa-dor ou pescador que tem fracassos sucessivos que no podem ser explicados por causasnaturais, atribui-os panema, fora maligna que se apodera da pessoa, de sua arma, de sualinha de pescar, ou de sua barragem. O termo generalizou-se, tanto na zona rural como

    urbana da Amaznia, com o sentido de m sorte. Um jogador, por exemplo, atacado depanema, comea a perder sem parar. Em It, entretanto, panema quer dizer impotnciapara caar ou pescar devido a uma causa sobrenatural. Pode ser transmitida de pessoa

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    para pessoa como qualquer molstia infecciosa. A mulher grvida que come caa ou peixepode transmitir panema ao caador ou ao pescador que os apanhou. Um homem poderapanhar panema de algum amigo com quem esteja aborrecido por causa da desavena em

    questes de alimentao. Se a mulher de um caador atirar descuidadamente no quintalos ossos de alguma caa e um cachorro ou um porco com-los, o caador poder pegarpanema. Tambm os feitios dos inimigos podero provoc-la (Wagley 1988: 96). Paraum caso amerndio, ver a ideia depanetrazida por Clastres (1995:18-19).

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    55Uir F. Garcia

    Resumo

    O artigo a seguir discute o paralelismo

    entre caa, guerra e sade, enfatizandoas atividades de um pequeno grupo decaadores, habitantes da poro noroestedo estado do Maranho, os Aw-Guaj.Partindo de um episdio ocorrido noano de 2008 na aldeia Juriti que reve-lou aspectos importantes para a presen-te discusso a caa e suas implicaesguerreiras sero exploradas aqui segundoa etiologia das doenas e atravs das no-es de haaeraepnemhm, elementosque regem boa parte da relao entre ca-adores e presas. Apresento um universode agresses morais sofridas por caado-res e discuto uma sintomatologia parti-cular s passvel de entendimento quan-do so reveladas as concepes aw-guajsobre a pessoa humana e as relacionamoscom o universo da floresta, em geral, e azoologia das presas, em particular. Argu-mento que as agresses fsicas e moraisdos animais vida humana so centraispara o entendimento do que se configuracomo a caa aw-guaj, sendo o conhe-cimento sobre a origem de tais agresses(que acarretam sorte e azar; sade e do-ena) parte importante do conjunto desaberes que regem a relao entre huma-

    nos e animais.

    Palavras-chave: Aw-Guaj, caa,queixada, haaera,pnemhm

    Abstract

    The following article discusses the par-

    allels that exist between hunting, warand health among a small group of hunt-ers, the Aw-Guaj, currently residingin the state of Maranho (Brazil). Basedon an episode that occurred in 2008 intheir village of Juriti revealing im-portant aspects of the current discus-sion hunting and its warrior implica-tions will be explored from the etiologyof disease, namely, through the notionsof haaera and pnemhm, elementsgoverning a large part of the relationshipbetween hunters and their prey. Thus,I present a scenario whereby hunterssuffer a moral aggression, and discussa particular symptomatology, whichis only understood when we embraceAw-Guaj conceptions of human per-sonhood, relating these with their viewsof the natural world, and zoological preyin particular. I argue that the physical andmoral aggression of animals directed athuman life is central to understanding ofwhat constitutes Aw-Guaj hunting.Comprehending the origin of such at-tacks (which lead to fortune and misfor-tune, health and disease) comprises animportant part of their body of knowl-

    edge governing the relationship betweenhumans and animals.

    Keywords: Aw-Guaj, hunting, white-lipped peccary, haaera,pnemhm