artigo - o direito ao reconhecimento de gays e lesbicas

37
2 Salil Shetty Declaração e Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: Oportunidades para os direitos humanos Fateh Azzam Os direitos humanos na implementação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio Richard Pierre Claude Direito à educação e educação para os direitos humanos José Reinaldo de Lima Lopes O direito ao reconhecimento para gays e lésbicas E.S. Nwauche e J.C. Nwobike Implementação do direito ao desenvolvimento Steven Freeland Direitos humanos, meio ambiente e conflitos: Enfrentando os crimes ambientais Fiona Macaulay Parcerias entre Estado e sociedade civil para promover a segurança do cidadão no Brasil Edwin Rekosh Quem define o interesse público? Víctor E. Abramovich Linhas de trabalho em direitos econômicos, sociais e culturais: Instrumentos e aliados 2005 Ano 2 • Número 2 revista internacional de direitos humanos Edição em Português

Upload: shirleygley

Post on 21-Nov-2015

218 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

artigo

TRANSCRIPT

  • 22

    Salil ShettyDeclarao e Objetivos de Desenvolvimento do Milnio:Oportunidades para os direitos humanos

    Fateh AzzamOs direitos humanos na implementao dosObjetivos de Desenvolvimento do Milnio

    Richard Pierre ClaudeDireito educao e educao para os direitos humanos

    Jos Reinaldo de Lima LopesO direito ao reconhecimento para gays e lsbicas

    E.S. Nwauche e J.C. NwobikeImplementao do direito ao desenvolvimento

    Steven FreelandDireitos humanos, meio ambiente e conflitos:Enfrentando os crimes ambientais

    Fiona MacaulayParcerias entre Estado e sociedade civil para promovera segurana do cidado no Brasil

    Edwin RekoshQuem define o interesse pblico?

    Vctor E. AbramovichLinhas de trabalho em direitos econmicos, sociais e culturais:Instrumentos e aliados

    2005Ano 2 Nmero 2

    revista internacionalde direitos humanos

    Edio em Por tugus

    revista internacional de direitos humanos

    A Sur Rede Universitria de Direitos Humanos foi criada em 2002com o objetivo de aproximar acadmicos que atuam no campo dosdireitos humanos e de promover a cooperao destes com agncias daONU. A rede conta hoje com mais de 180 associados de 48 pases,incluindo professores e integrantes de organismos internacionais e deagncias das Naes Unidas.

    A Sur pretende aprofundar e fortalecer os vnculos entre acadmicospreocupados com a temtica dos direitos humanos, ampliando sua voz esua participao diante de rgos das Naes Unidas, organizaesinternacionais e universidades. Nesse contexto, publica a Sur RevistaInternacional de Direitos Humanos, com o objetivo de consolidar umcanal de comunicao e de promoo de pesquisas inovadoras. A revistadeseja acrescentar um outro olhar s questes que envolvem esse debate,a partir de uma perspectiva que considere as particularidades dos pasesdo Hemisfrio Sul.

    A Sur Revista Internacional de Direitos Humanos uma publicaoacadmica semestral, editada em ingls, portugus e espanhol, disponveltambm em formato eletrnico no site .

  • CONSELHO EDITORIALChristof HeynsUniversidade de Pretria, frica do Sul

    Emlio Garca MndezUniversidade de Buenos Aires, Argentina

    Fifi BenaboudCentro Norte-Sul do Conselho da Unio Europia, Portugal

    Fiona MacaulayUniversidade de Bradford, Reino Unido

    Flavia PiovesanPontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Brasil

    J. Paul MartinUniversidade de Colmbia, Estados Unidos

    Kwame KarikariUniversidade de Gana, Gana

    Mustapha Kamel Al-SayyedUniversidade do Cairo, Egito

    Richard Pierre ClaudeUniversidade de Maryland, Estados Unidos

    Roberto GarretnAlto Comissariado das Naes Unidas para os Direitos Humanos, Chile

    EDITORPedro Paulo Poppovic

    COORDENADOR EDITORIALAndre Degenszajn

    PROJETO GRFICOOz Design

    EDIOElzira Arantes

    EDIO DE ARTEAlex Furini

    COLABORADORESAnna Maria Quirino, Beatriz Santos, Clia Korn, Daniela Ikawa,Denise Costa Felipe, Francis Aubert, Jonathan Morris, Jos RobertoMiney, Juana Kweitel, Lia Rosenberg, Maria Lucia de OliveiraMarques, Nomia de A. Ramos, Paula Martins, Regina de BarrosCarvalho e Regina M. de Arantes Ramos

    CIRCULAOCamila Lissa AsanoMathias Fingermann

    IMPRESSOProl Editora Grfica Ltda.

    ASSINATURA E CONTATOSur Rede Universitria de Direitos HumanosRua Pamplona, 1197 Casa 4So Paulo/SP Brasil CEP 01405-030Tel. (5511) 3884-7440 Fax (5511) 3884-1122E-mail Internet

    SUR REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS uma revista semestral, publicada em ingls, portugus eespanhol pela Sur Rede Universitria de Direitos Humanos.Est disponvel na internet em

    SUR REDE UNIVERSITRIA DE DIREITOS HUMANOS uma rede de acadmicos com a misso de fortalecer a vozdas universidades do Hemisfrio Sul em direitos humanos ejustia social e promover maior cooperao entre estas e asNaes Unidas.Internet

    ISSN 1806-6445

  • A Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos est recebendoartigos para publicao em seus prximos nmeros. A revista

    bianual, distribuda gratuitamente a cerca de 3.000 leitores em mais

    de 100 pases e editada em trs lnguas: portugus, ingls e espanhol.

    Pode ser acessada tambm na internet: .

    A publicao se destina especialmente a acadmicos e ativistas

    que se dedicam ao estudo e defesa dos direitos humanos. Seu

    principal objetivo disseminar os pontos de vista dos pases do Sul,

    pondo em relevo suas especificidades e facilitando o contato entre

    eles sem desprezar as importantes contribuies oriundas das

    naes mais desenvolvidas.

    A revista publicada pela Sur Rede Universitria de DireitosHumanos, organizao que tem por misso fortalecer a voz dasuniversidades em especial as do Hemisfrio Sul (frica, sia e

    Amrica Latina) e a cooperao entre organizaes da sociedade

    civil e as Naes Unidas nas questes referentes a direitos humanos.

    Sem ser temtica, a revista possibilita a divulgao de artigos que

    abordem a questo dos direitos humanos sob diversas perspectivas. Dentro

    desse vasto e complexo campo, d prioridade a textos que tratem de

    forma preferencial mas no exclusiva dos seguintes temas:

    Acesso justia

    Segurana e direitos humanos

    Comrcio e direitos humanos

    As contribuies devem ser enviadas em arquivo eletrnico em word

    para , incluindo:

    Texto do artigo, com 7.000 a 10.000 palavras. Sugere-se que

    as notas de rodap sejam curtas e objetivas, restringindo-se

    COLABORAES

  • ao essencial. Quanto s referncias bibliogrficas, devem

    estar de acordo com as normas bibliolgicas internacionais.

    Biografia sucinta do autor, com no mximo 50 palavras.

    Resumo do artigo (abstract), com no mximo 150 palavras,

    incluindo palavras-chave para a devida classificao

    bibliogrfica.

    O ideal que as matrias sejam inditas. Porm sero aceitos,

    excepcionalmente, artigos relevantes j publicados, desde que com

    as necessrias autorizaes. A seleo dos artigos e os demais

    assuntos editoriais so de responsabilidade do Conselho Editorial.

    Todas as contribuies sero avaliadas, no mnimo, por dois

    membros do Conselho Editorial e, sempre que necessrio, tambm

    por especialistas externos. A sugesto de eventuais modificaes ser

    enviada aos autores, e sua incorporao ficar sujeita a autorizao

    expressa dos mesmos.

    Como a distribuio da revista gratuita e a organizao no

    tem fins lucrativos, infelizmente no possvel remunerar os

    colaboradores. A funo primordial da publicao a conscientizao

    e a luta pela defesa dos direitos humanos nos pases do Hemisfrio

    Sul, onde eles so mais desrespeitados. nesse sentido que tomamos

    a liberdade de solicitar sua colaborao.

  • 147 Parcerias entre Estado e sociedade civil para promovera segurana do cidado no Brasil

    FIONA MACAULAY

    SUMRIO

    7 Declarao e Objetivos de Desenvolvimento do Milnio:Oportunidades para os direitos humanos

    SALIL SHETTY

    23 Os direitos humanos na implementao dosObjetivos de Desenvolvimento do Milnio

    FATEH AZZAM

    37 Direito educao e educao para os direitos humanosRICHARD PIERRE CLAUDE

    65 O direito ao reconhecimento para gays e lsbicasJOS REINALDO DE LIMA LOPES

    97 Implementao do direito ao desenvolvimentoE.S. NWAUCHE e J.C. NWOBIKE

    119 Direitos humanos, meio ambiente e conflitos:Enfrentando os crimes ambientais

    STEVEN FREELAND

    175 Quem define o interesse pblico?EDWIN REKOSH

    189 Linhas de trabalho em direitos econmicos,sociais e culturais: instrumentos e aliados

    VCTOR E. ABRAMOVICH

  • SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS64

    JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    Professor da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo e da

    Escola de Direito da Fundao Getlio Vargas em So Paulo, Brasil.

    RESUMO

    A partir das declaraes de dois juristas, o texto desvenda o que leva pessoas

    cultas e formadas em direito a reprovar a concesso de iguais direitos aos

    homossexuais. Reflete, ainda, sobre a falta de discusso moral e jurdica a

    respeito desse estigma social no Brasil, de modo geral, e particularmente

    entre os juristas que, por um lado, so levados a uma compreenso

    irracionalista ou tradicionalista (outra forma de irracionalismo) dos

    fundamentos da vida moral, e a adotar argumentos ignorantes e errados do

    ponto de vista da filosofia e da cincia contemporneas; por outro lado,

    impede que os danos fsicos e psicolgicos causados s crianas e aos

    jovens homossexuais sejam percebidos como uma forma de violncia,

    estimulada por um ordenamento jurdico que abriga preconceitos

    religiosos especficos. A partir desses dois eixos, o artigo procura mostrar

    como o direito pode exigir o fim das discriminaes sociais de gays e

    lsbicas. [Original em portugus.]

  • 65Ano 2 Nmero 2 2005

    O DIREITO AO RECONHECIMENTOPARA GAYS E LSBICAS

    Jos Reinaldo de Lima Lopes

    As referncias bibliogrficas

    das fontes mencionadas neste

    texto esto na pgina 94.

    O Brasil no est preparado para a unio civil. desnecessriae contraria as bases culturais e religiosas do pas. assim queo juiz de direito Marcos Augusto Barbosa dos Reis se manifesta,em entrevista concedida revista Trip (n. 95, nov. 2001), arespeito da unio entre pessoas do mesmo sexo. Nem o direitonatural e nem a legislao constitucional e infraconstitucionalbrasileiras prevem a unio homossexual. [...] Essas decisesisoladas jamais significaro que dois, ou duas pessoas, possamencontrar a felicidade e a proteo do direito a partir de umaconduta que um desvio da natureza das coisas. E este oteor da declarao dada pelo advogado Jaques de CamargoPenteado, no jornal Tribuna do Direito (n. 82, fev. 2002). Taisdeclaraes contemporneas mostram o quanto a discussojurdica brasileira est contaminada por equvocos e por faltade entendimento adequado do que so o direito, a democraciae a moral. As duas declaraes confundem coisas que emsociedades liberais, democrticas e modernas (ou pelo menosps-tradicionais) j no se poderiam confundir.

    Em primeiro lugar, confundem a ordem jurdica com aordem aceitvel para a maioria, o que deixa de lado o aspectofundamental da democracia: a proteo aos direitos das

    Os homossexuais so uma raa maldita, perseguida como Israel.E finalmente, como Israel, sob o oprbio de um dio imerecido

    por parte das massas, adquiriram caractersticas de massa,a fisionomia de uma nao [...]

    So em cada pas uma colnia estrangeira.Marcel Proust

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS66

    minorias. Em segundo lugar, confundem o direito com umaordem moral tradicional: dizer que algo no aceitvel porquevai contra a ndole tradicional de um grupo ignorar o carterprescritivo e contraftico de qualquer ordem normativa. Emterceiro lugar, confundem religio e Estado: a ordem jurdicade um Estado democrtico no se funda em razes religiosasde nenhum dos grupos que compem a cidadania daqueleEstado. Em quarto lugar, apelam para conceitos de direitonatural e de natureza no mnimo equvocos. Como deveriamsaber os juristas, o direito natural no um conjunto decomandos ou ordens, mas uma condio de possvelorganizao social da vida. E a natureza, por seu lado, o que ? o conjunto de necessidades e regularidades csmicas? Bem,nesse caso, andar de avio e fazer transfuses de sangue socoisas contra a natureza. um conjunto fixo de funes efinalidades? Ento, o caso de subjetivizar a natureza e dizerque ela quer algo, o que a rigor ningum admitiria, a no serde forma metafrica. Mas o uso metafrico das palavras noproduz argumentos convincentes.

    Mesmo assim, o fato de juristas se expressarempublicamente com essa naturalidade mostra o quanto precisoainda discutir e como se colocam, com ares de seriedade,afirmaes que apenas reproduzem o senso comum ou a moralpr-crtica. uma surpresa decepcionante ver um juristaescudar-se na resposta a sociedade no est preparada. Paramuita coisa a sociedade no est preparada: no est preparadapara abolir a tortura e para repartir a riqueza. Mas noesperamos que ela esteja preparada para condenar a tortura ecriar impostos e contribuies sociais. tambm decepcionanteouvir algum dizer que a natureza prescritiva: operaescirrgicas, casamentos de pessoas sem capacidade reprodutivae outros fatos semelhantes nos permitiriam dizer que so coisasproscritas pelo direito natural.

    Dois argumentos a favor de uma moralcrtica para o direito

    No incio dos anos 60, quando no Reino Unido se discutiu ofim da criminalizao dos atos homossexuais consensuais entreadultos, travou-se um importante debate, que deveria serexemplar para todos os estudantes de direito. O debate deu-se

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    67Ano 2 Nmero 2 2005

    entre Lord Devlin, membro da mais alta instncia judicial doreino (seo de justia da Cmara dos Lordes os Law Lords)e um dos grandes juristas do sculo passado, Herbert L. Hart.Mais tarde, o mesmo tema foi abordado por Ronald Dworkin,outro jurista de primeira grandeza, ainda vivo. O debate mostracomo, para tratar de questes de dignidade humana e de direitosfundamentais, preciso ter uma formao moral mnima. preciso, em resumo, apartar-se do ceticismo relativista, queconsidera questes morais como se fossem questes de paladar;e apartar-se do puro e simples tradicionalismo, que abordaquestes morais apenas como um problema de costumes, quedeveriam ser reconhecidos e preservados.

    quela altura, a Comisso Wolfenden, criada no ReinoUnido, concluiu que os atos homossexuais consensuais entreadultos deveriam ser descriminalizados. Parte da opiniopblica britnica sentiu-se contrariada, pois isso significavafazer uma escolha de carter moral, tirar de tais prticas o carterde algo sujeito a pena, apart-las da idia de pecado. LordDevlin entrou no debate dizendo que sim funo do direito,especialmente do direito penal de um pas, determinar ouescolher uma moral, e que esta ou deve ser a moral da maioria.Dizia ele (Devlin, 1991, p. 74): A sociedade no mantidapor laos fsicos, mas por laos invisveis de pensamentocomum. Se esses laos se afrouxarem, os membros iro deriva.

    Para esse autor, religio e moral no podem ser separadasde modo completo e os padres morais aceitos no Ocidente emgeral so os padres cristos (p. 69). Assim, algum que vive emuma sociedade crist no pode ser obrigado a se converter aocristianismo, mas est obrigado a aderir moralidade crist, que a moralidade social de seu meio. E uma moral comum tonecessria quanto um governo; por isso, se legtimo o governopunir atividades subversivas como formas de traio legtimo o Estado punir tambm os vcios (sic, p. 77). Elereconhece como natural que a punio jurdica no sejasimplesmente a continuao da pena religiosa ou moral; assim,o Estado pode punir certas condutas no por serem pecado, emsi, mas por atentarem contra a ordem a moral em geral aceita.Finalmente, Lord Devlin diz que no se trata de tomar comopadro de julgamento moral apenas a opinio da maioria. Afinalde contas, ele vem da terra de John Stuart Mill, terra queconheceu um intenso debate sobre a liberdade individual.

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS68

    J. S. Mill, h quase duzentos anos, chamava a atenopara o perigo de a democracia suprimir as liberdadesindividuais (a liberdade moral dos indivduos) em nome doprocesso representativo das maiorias. Dizia ele: atualmente,a tirania da maioria normalmente includa nos males contraos quais a sociedade precisa ser protegida. E mais: a maioriapode ser uma parte que deseja oprimir outra parte. Por isso,conclua Mill, a nica liberdade que merece o nome deliberdade a de buscarmos nosso prprio bem, nossa prpriamaneira, desde que no impeamos ningum de fazer omesmo (Mill, 1974, p. 138). Devlin, ao contrrio, diz que ocritrio o do homem comum, da pessoa honesta (right-minded): a imoralidade , pois, o que a pessoa honestaconsidera imoral. Logo, no a moral da maioria, mas a moraldo homem comum que deve inspirar o legislador. No casodos homossexuais, a questo se resolve com simplicidade:tanto a maioria quanto o imaginado homem comumcondenam as pessoas e as prticas homossexuais.

    Como se v, o argumento de Devlin se baseia na idia deque a sociedade frgil e que os indivduos no so capazes dese desenvolver autonomamente. O desenvolvimento autnomocria o risco do esfacelamento social. De outro lado, ele no crem uma moral crtica ou racional. Como grande parte de nossoscontemporneos, acha que a moral uma questo de tradio,costume, regularidade e convenincia. Assim, no se pode, nodebate moral, procurar uma perspectiva crtica que sempreuniversal mas apenas uma perspectiva conveniente e prtica,a do homem comum.

    Contra esse argumento levantou-se, em primeiro lugar,Herbert Hart. Sob o ttulo de Imoralidade e traio, umprimeiro e breve texto polmico, ele argumenta que Devlintenta mostrar a imoralidade como resultado de uma atividadeintelectual que combina nojo, intolerncia e indignao: secertos fatos e atitudes despertarem tais sentimentos no homemcomum estaremos certamente diante de algo imoral, que deveser punido pelo direito. Nesses termos, conclui Hart, a moralproposta por Devlin acrtica, no se baseia em uma discussoracional dos fundamentos da escolha moral, mas na impressoe nos sentimentos. Tambm ressalta o equvoco da comparaofeita por Devlin com o caso de traio: nem toda atividadecontra o governo traio, pois pode no buscar destru-lo e

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    69Ano 2 Nmero 2 2005

    sim apenas modific-lo. O risco de decises equivocadas dasmaiorias e de seus representantes , diz Hart, um riscoinerente ao governo representativo democrtico. Mas no deveser ampliado, alando o homem comum a uma posio talem que baste ele manifestar repulsa ou nojo para queadeqemos as leis a esse sentimento, sem fazer crticas tericasa suas exigncias.

    Em um ensaio mais amplo (1963), Hart desenvolveu suaresposta concluindo que o princpio (crtico) central dadiscusso moral que a misria, o sofrimento humano e arestrio liberdade so maus. Assim, o direito de umasociedade livre e democrtica comea a se fundamentar nessecritrio, ou seja, na diminuio da misria, do sofrimento edas restries liberdade. A preservao da ordem e dasociedade, bem como a manuteno de uma moralidadecomum, no podem ser avaliadas em si mesmas, mas simsubmetidas ao princpio de uma moral crtica.

    Na mesma linha de raciocnio h o ensaio de RonaldDworkin (1977, pp. 240-258). Tambm para ele, o que estem jogo no debate uma controvrsia entre uma moralconvencional (segundo a qual as regras morais se fundam emconvenes) e uma moral crtica (em que as regras moraisdevem ser submetidas a certos crivos da razo). Naturalmente,Dworkin no nega que moralidades histricas podem resultarda aceitao de facto de certas prticas. O que ele nega queessa existncia de facto equivale a sua justificao oufundamentao. Fazemos muitas coisas sem perguntar oporqu, mas se for colocada a questo do fundamento, aresposta moral no pode ser porque sempre se fez assim, ouporque todos fazem assim. Dworkin prope, ento, algunscrivos para as opinies morais:

    os preconceitos no so razes vlidas (acreditar que oshomossexuais so inferiores porque no realizam atosheterossexuais no se justifica como julgamento moralde superioridade ou inferioridade);

    o sentimento pessoal de nojo ou repulsa no razo sufi-ciente para um julgamento moral;

    o julgamento moral baseado em razes de facto, queso falsas ou implausveis, no aceitvel (por exemplo, fac tua lmente incorre to d izer que os a toshomossexuais debilitam, ou que no h prticas

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS70

    homossexuais na natureza ou seja, em outras espciesanimais sexuadas);

    o julgamento moral baseado nas crenas alheias (todossabem que a homossexualidade um mal) tambm noest suficientemente justificado.

    Em resumo, o direito de uma sociedade democrtica, aocontrrio do que imaginam os menos preparados, no umdireito sem moral, mas um direito que assume em sua baseuma moral de carter crtico. O sistema constitucional queestatui o tratamento igualitrio, o respeito dignidade da pessoae liberdade moral dos cidados um sistema jurdico comuma agenda moral crtica. Isso o distingue dos trgicos regimesautoritrios dos ltimos dois sculos. As prticas sociais podemser autoritrias, mas o direito ou deve ser um antdotocontra tais prticas.

    H dois equvocos nas discusses contemporneas dotema dos direitos dos homossexuais, quando a questo colocada em termos morais, como querem alguns. O primeiroconsiste em identificar a moral de uma sociedade democrticacom a moral tradicional, ou da maioria. O segundo est naafirmao de que o direito moderno no inclui uma certamoral. Os argumentos acima resumidos ajudam a desfazeresses dois equvocos. A moral de uma sociedade democrtica crtica, e no simplesmente tradicional, ou apoiada namaioria. A maioria parlamentar no pode tudo, e se mantiverformas discriminatrias de tratamento incorre em inconstitu-cionalidade, pois o Artigo 5o da Constituio Federal impedeque tratamentos discriminatrios sejam perpetuados. Se aquesto se deslocar para o Judicirio, vamos nos encontrarno foro daquele poder que, por definio, antimajoritrio,ou seja, o guardio dos interesses da minoria.

    Mas a sociedade democrtica tem uma moral, queconsiste em estabelecer como princpio a dignidade igual euniversal das pessoas, e essa dignidade inclui a liberdade defazer tudo aquilo que no causa dano a outrem. Como dizDworkin, o dano que se causa a outrem no pode ser ummal-estar ou uma indisposio fundada apenas na tradio eno preconceito. Logo, a moral de uma sociedade democrticadeve ser crtica; mas h, sim, princpios morais fundamentaispor trs de uma ordem jurdica.

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    71Ano 2 Nmero 2 2005

    A reivindicao do reconhecimentoe o estigma como ilcito jurdico

    O movimento gay levou a pblico em novos termos e novascircunstncias a velha questo da justia. Junto com muitosoutros grupos sociais, tambm os gays passaram a reivindicar,sob o nome de direito, o respeito a sua identidade, sua liberdadee tratamento no-discriminatrio. Essa luta teve uma histriapeculiar, como qualquer movimento, mas insere-se em umgrande processo que pode ser identificado como de expansoda democracia e afirmao de direitos universais.

    Na expanso da democracia incluem-se os direitos sliberdades civis e polticas, cujos marcos mais salientes forama liberdade de expresso (o fim dos delitos de opinio), aliberdade de associao (o fim dos delitos de sedio) e aextenso do sufrgio (para abranger todos os indivduosadultos). Incluem-se tambm os direitos sociais trabalhistas,de bem-estar e de proteo social , cuja ampliao se deveexclusivamente s dolorosas e sangrentas lutas da classeoperria. Na afirmao universal de direitos preciso contarcom a constituio de um sujeito humano universal, queincorpora um valor que no pode ser trocado, e por definiono tem preo: a dignidade. Essas duas correntes expansodemocrtica do ponto de vista institucional e afirmao dossujeitos do ponto de vista moral confluem no movimentogay de forma exemplar. E so tanto mais importantes quantomenos democrtico e menos universalista o contexto socialem que se afirmam.

    A afirmao do direito dos homossexuais no ocorre deforma linear e simples, mas sim de maneira problemtica. Essesdireitos no so sempre e necessariamente reconhecidos ouapoiados por aqueles que se dizem convencidos da bondademoral seja da democracia ou dos direitos humanos universais.De fato, no foi apenas contra vises tradicionalistas do mundoque os homossexuais tiveram de lutar. No poucas vezestiveram de lutar contra grupos de aparente inclinao pelaliberdade. Isso particularmente evidente no Brasil, ondeliberalismo muitas vezes significa apenas a defesa do livrecomrcio e da livre iniciativa empresarial. No so todos osliberais que estendem seu liberalismo s liberdades individuais,ou defesa da autodeterminao dos sujeitos humanos. A

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS72

    esquerda, em boa parte responsvel, no sculo passado, pelademocratizao do pas, no que diz respeito extenso dedireitos a todos sem distino de classe social, com freqnciase ops ao reconhecimento dos homossexuais, quando noperseguiu ostensivamente aqueles que viviam debaixo dosocialismo real.

    No campo do direito propriamente dito, no que se refereaos ordenamentos jurdicos e ao caleidoscpio de obrigaes edireitos que se distribuem entre as pessoas, a afirmao de umdireito ao reconhecimento tambm encontra dificuldades. Paraesclarecer o status dos homossexuais no direito, tomo comoponto de partida uma importante distino feita por NancyFraser (1997) entre direitos de distribuio e direitos dereconhecimento. Gays e lsbicas, assim como minoriasnacionais e culturais, pedem direito ao reconhecimento.

    Os direitos de distribuio so tradicionalmentechamados direitos sociais e tm uma funo especial: desfazeras injustias estruturais e inevitveis do sistema de classesexistente no capitalismo. Para que haja direitos sociais oudireitos redistribuio preciso admitir de incio algumascoisas: (a) que existem classes sociais; (b) que as classes sociaisno so um fenmeno csmico, mas institucional e histrico;(c) que as classes sociais geram situaes de injustia; (d) que aproduo social da riqueza um empreendimento socialcomum; (e) que a injustia das classes consiste na apropriaodesigual dos resultados sociais da produo da riqueza; (f ) quemesmo aqueles menos capazes e menos produtivos, se aindaassim forem reconhecidos como membros da sociedade, tmdireito a ser mantidos dentro dela por mecanismos dedistribuio da riqueza.

    Os direitos de reconhecimento, por seu turno, tambmprecisam de pontos de partida, e pode-se dizer que partem dosseguintes pontos: (a) que existem na sociedade gruposestigmatizados;1 (b) que os estigmas so produtos institucionaise histricos, e no csmicos; (c) que os estigmas podem noter fundamentos cientficos, racionais ou funcionais para asociedade; (d) que as pessoas pertencentes a gruposestigmatizados sofrem a usurpao ou a negativa de um bemimaterial (no mercantil, nem mercantilizvel), mas bsico: orespeito e o auto-respeito; (e) que a manuteno social dosestigmas , portanto, uma injustia, provocando desnecessria

    1. O assunto mereceu

    tratamento extenso na obra de

    Erving Goffman (1975). Para

    ele, o estigma fenmeno

    social, um atributo

    depreciativo que permite

    preestabelecer certas relaes.

    Os estigmatizados podem ser

    divididos inicialmente em dois

    grupos: aqueles cujo estigma

    evidente, e por isso se dizem

    pessoas desacreditadas; e

    aqueles cujo estigma no

    imediatamente perceptvel,

    ditas pessoas desacreditveis.

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    73Ano 2 Nmero 2 2005

    dor, sofrimento, violncia e desrespeito; (f ) que os membrosde uma sociedade, para continuarem pertencendo a ela, tmdireito a que lhes sejam retirados os estigmas aviltantes.

    Ora, se os estigmas so produzidos socialmente, algunspodem objetar que o direito seria impotente contra taispreconceitos de carter social e cultural. E que o mximo ase fazer , s vezes, apenar as condutas que gerem violnciasobre as pessoas pertencentes ao grupo estigmatizado. Essaobjeo no se sustenta nem em termos jurdicos nem emtermos histricos.

    Comecemos pelos exemplos histricos. Vrias formas deestigmatizao j foram eficazmente combatidas pelo direito. Paracitar poucos exemplos, pode-se dizer que os grupos de identidadeque se formaram ao longo dos ltimos sculos e conseguiramsuperar os estigmas sociais por meios jurdicos foram as mulherese, em parte, os negros, os estrangeiros e os deficientes fsicos.Do ponto de vista da cultura majoritria, as formas deinferiorizao desses grupos eram respaldadas pelo direito. Asmulheres no votavam, podiam receber salrios inferiores aosdos homens, em certas circunstncias no tinham acesso aoJudicirio sem autorizao do marido e assim por diante. Forammovimentos emancipacionistas e feministas que construrampouco a pouco uma imagem mais positiva e afirmativa dasmulheres, desnaturalizando o tratamento jurdico diferenciado,e que introduziram no direito a igualao de mulheres e homens,que antes se concebia como impossvel, dada a diferena degnero. A diferena , pois, um constructo histrico; e o direitono joga um papel neutro nessa construo: ao contrrio, odireito os ordenamentos jurdicos ajuda a naturalizar asdiferenas e as desigualdades comuns na cultura. A mudana nodireito no apenas se segue s mudanas culturais, mas ajuda apromov-las.

    Logo, o direito pode promover mudanas e removerinjustias historicamente consolidadas, requerendo para issoque algumas instituies jurdicas sejam mobilizadas. Aprimeira delas a ao coletiva, ou ao civil pblica, queoferece um meio eficaz para que alguns membros do grupoconsigam o reconhecimento de direitos que se estendero atodos. Assim, membros isolados ou grupos de pessoasestigmatizadas com maiores recursos especialmentepsicolgicos podero exercer o papel indispensvel do heri

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS74

    ou do desbravador, sem que seja preciso cada membro arcarsolitariamente com os custos altssimos da exposio e da luta.

    Um segundo elemento importante o desmascaramentodo senso comum vigente. As declaraes do incio deste textoevidenciam que palavras ofensivas e injuriosas so utilizadasem relao a um grupo determinado de cidados sem queisso traga graves conseqncias . No entanto, se ta lmanifestao pblica for seguida de interpelaes por seucarter discriminatrio e inconstitucional, certo que odireito contribuir para a diminuio do estigma em seu lugarprprio, que o espao pblico. No espao meramenteprivado ningum est obrigado a conviver com gays: fujadeles, se puder, pois costumam estar em toda parte, inclusivenas famlias heterossexuais. Alis, nascem e vivem em famlias,ainda que muitas vezes sob torturas fsicas e psicolgicas. Umadas palavras de ordem do movimento gay internacional :were queer, were here, get used to it (somos bichas, estamosaqui, aceite o fato uma traduo limitada, pois queer um termo comum de dois gneros e get used to it umpouco mais provocativo do que a traduo sugere).

    Em terceiro lugar, o direito pode descobrir o tratamentodiferenciado das mais variadas maneiras: infiltram-se critriospseudocientficos nas avaliaes de adoo, de guarda decrianas, de distribuio de benefcios-sade (direitos sociais,alis) e de ocupao de cargos pblicos. Expor esse tratamentodiferenciado ajuda a quebr-lo, a colocar em praa pblica asmuitas violncias que um grupo de cidados sofreu, sofre eainda continuar a sofrer por algum tempo.2

    Tomemos apenas pequenos exemplos de sofrimentosimpostos a um grupo particular de cidados, para termos umaidia de quanto o direito encobre prticas violentas efrancamente inconstitucionais.

    Herrero Brasas (2001, p. 323) expe um retrato daviolncia a que desde muito cedo, na infncia ou na juventude,se submetem os homossexuais, homens e mulheres. Diz eleque h uma violncia ativa, que todos percebem, e umapassiva ou, diria eu, disfarada e psicolgica. Esta se d noinsulto pblico, nos gestos de chacota e ridicularizao, comomanifestaes de acosso a um grupo social. Ao lado dela, tambm violncia social e silenciosa a falta de proteojudicial contra essas aes simblicas, que esto nos

    2. Vale a pena lembrar a

    tipologia do tratamento

    discriminatrio elaborada por

    Kenji Yoshino (1999). A

    discriminao desrespeita as

    identidades, forando os grupos

    diferentes a se converter ou a se

    esconder. Converter-se

    (converting) uma exigncia

    explicitamente antidemocrtica

    em vrias circunstncias e diz

    respeito quelas identidades que

    resultam de livre aceitao de

    pertena a um grupo (religioso,

    por exemplo). Disfarce (passing)

    outra exigncia, que se

    presume compatvel com

    alguma tolerncia: o indivduo

    pode continuar com sua

    identidade, mas no pode exp-

    la publicamente (a liberdade de

    conscincia, no acompanhada

    de liberdade de culto pblico,

    por exemplo). Aqui, ao se

    ocultar (passing) o indivduo

    pode continuar a ser o que ,

    mas publicamente passa pelo

    que no (o trao de identidade

    no visvel). Por fim, o

    indivduo pode no ser obrigado

    a disfarar sua identidade, mas

    a encobri-la (covering):

    permitido reter sua identidade e

    at torn-la pblica, mas no

    permitido orgulhar-se dela,

    exibi-la ou ostent-la. Segundo

    Yoshino o caso do negro

    obrigado a usar um corte de

    cabelo convencional entre

    brancos, a no ostentar um

    corte black power.

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    75Ano 2 Nmero 2 2005

    discursos, nos smbolos, na cultura de forma geral. A falta deao jurdica um consentimento, uma cumplicidade comessa violncia diuturna uma evidncia da denegao deigualdade plena. E preciso acrescentar ainda o que HerreroBrasas (p. 324) descreve como

    [...] abandono e terror que sofre o adolescente que descobre suaorientao gay ou lsbica, que se submete sem alternativa degradante chantagem emocional de sua famlia. [...] A pessoamais jovem e vulnervel fica condenada ao silncio e torturapsicolgica e emocional sem que as autoridades levem a cabonenhuma campanha de conscientizao sobre a realidade gay oulsbica e nem fomentem programas informativos para suasfamlias. Tudo isto causa sofrimento concreto [...], vive-as comoexpresso de dio a sua pessoa.

    Tal passividade estatal e jurdica mostra o quanto se naturalizoua violncia contra esse grupo particular de cidados: fala-se nadefesa de crianas e adolescentes, mas quanto se fez a favor deum grupo que justamente na infncia e na adolescncia dosque mais sofre a violncia e a degradao? No h a um papelpara o direito?

    Em paralelo a essas observaes pode-se acrescentar atipologia desenvolvida por Axel Honneth (1996, pp. 129-134), segundo a qual a negativa de reconhecimento gera umaviolncia fsica (o abuso fsico), que o impedimento dealgum estar fisicamente seguro no mundo, e uma violnciano-fsica. Esta se desdobra em duas formas tpicas. A primeira a excluso de algum de uma esfera de direitos, negando pessoa autonomia social e possibilidade de interao. A issoele chama ostracismo social: A forma de reconhecimento deque esse tipo de desrespeito priva uma pessoa o respeitocognitivo pelo estatuto de responsabilidade moral que tocustosamente teve de ser adquirido no processo de interaosocial (p. 134).

    A segunda forma de violncia no-fsica, propriamente, a negativa de valor a uma forma de ser ou de viver, e elaque est por trs das formas de tratamento degradante einsultuoso a certas pessoas e grupos, pois promove odesrespeito por formas individuais ou coletivas de viver. Aindasegundo Honneth (p. 134):

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS76

    Para os indivduos, portanto, a experincia dessa desvalorizaosocial traz consigo normalmente uma perda da auto-estima, daoportunidade de se enxergarem como seres cujos traos ehabilidades devem ser estimados. Portanto, a espcie dereconhecimento de que esse tipo de desrespeito priva a pessoa aaprovao social de uma forma de auto-realizao que ele ou elateve de descobrir, a despeito de todos os obstculos, com oencorajamento da solidariedade de grupo. Naturalmente, cadaum s pode relacionar essas espcies de degradao social consigoenquanto pessoa individual, j que os padres estabelecidos einstitucionalizados de auto-estima foram historicamenteindividualizados, isto , porque esses padres se referemvalorativamente s habilidades individuais antes que coletivas.Por isso, essa experincia de desrespeito, como a de negativa dedireitos, est ligada a um processo de mudana histrica.

    a mesma violncia denunciada por Didier Eribon (2000):

    O que a injria me diz que sou algum anormal ou inferior, algumsobre quem o outro tem poder e, antes de tudo, o poder de me ofender.A injria , pois, o meio pelo qual se exprime a assimetria entre osindivduos. [...] Ela tem igualmente a fora de um poder constituinte.Porque a personalidade, a identidade pessoal, a conscincia maisntima, fabricada pela existncia mesma dessa hierarquia e pelolugar que ocupamos nela e, pois, pelo olhar do outro, do dominante,e a faculdade que ele tem de inferiorizar-me insultando-me, fazendo-me saber que ele pode me insultar, que sou uma pessoa insultvel einsultvel ao infinito (p. 57).

    A injria homofbica inscreve-se em um contnuo que vai desdea palavra dita na rua que cada gay ou lsbica pode ouvir (veadosem-vergonha, sapata sem-vergonha) at as palavras que estoimplicitamente escritas na porta de entrada da sala de casamentosda prefeitura: proibida a entrada de homossexuais e, portanto,at as prticas profissionais dos juristas que inscrevem essaproibio no direito, e at os discursos de todos aqueles e aquelasque justificam essas discriminaes nos artigos que se apresentamcomo elaboraes intelectuais ( f i losficas , sociolgicas ,antropolgicas, psicanalticas etc.) e que no passam de discursospseudocientficos destinados a perpetuar a ordem desigual, areinstitu-la, seja invocando a natureza ou a cultura, a lei divina

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    77Ano 2 Nmero 2 2005

    ou as leis de uma ordem simblica imemorial. Todos esses discursosso atos, e atos de violncia (p. 62).

    Ora, sobre o fato bsico da injria e da violncia que certosdispositivos do ordenamento jurdico silenciam, ou permitemsua ocorrncia ao aceitar o discurso de alguns juristas. essesilncio, ou essa omisso, que os direitos de reconhecimentopretendem abolir. De fato, h certa contradio cultural ao sepregar a tolerncia e se assustar com a violncia gratuita e cruelde que so vtimas os homossexuais, mas manter como discursooficial e bem comportado a violncia generalizada da ofensa e,dentro das famlias, a chantagem mencionada por HerreroBrasas. Falar em direito ao reconhecimento falar em abolirtais prticas sociais, ou pelo menos tir-las do silncio que podeservir para manter sua existncia.

    Eribon e Honneth dizem que as injrias so formas deofensa e violncia. Pode-se at dizer que as injrias consistentesna negao de direitos permitem propagar uma viso negativados homossexuais. A negao de direitos, os discursos quepublicamente afirmam que no se pode condenar oshomossexuais, mas que tambm no se deve estimul-los, tmcomo resultado o estmulo contrrio, isto , o estmulo aviolncias fsicas e morais contra eles. J que no podem terdireitos iguais, a mensagem enviada pelos juristas que assim sepronunciam de reforo dos preconceitos e idiaspseudocientficas divulgadas aqui e ali. uma mensagem dedesigualdade.

    A descrio dos insultos e da violncia de que so vtimasos homossexuais revela uma violao de seus direitosfundamentais. No difcil perceber que o tratamentodispensado socialmente aos homossexuais s vezes pelosprprios servios do Estado ou por servios de relevnciapblica, como em hospitais e escolas constitui tratamentodegradante, vedado pelo Artigo 5o, inciso III, da ConstituioFederal. Outras tantas pretenses de grupos sociais consistiriamem violaes da conscincia e da crena dessa parcela decidados (mesmo Artigo, inciso VI). Alm disso, a honra e aintimidade das pessoas foi tratada constitucionalmente comobem inviolvel (inciso X), e vrias formas de comunicaopblica e expresso social de desprezo dirigidas a gays e lsbicasso seguramente violaes a sua honra e a sua intimidade. Isso

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS78

    para no falar que a prpria Constituio prev ummandamento ao legislador (e a todo rgo pblico com poderessemilegislativos, pode-se acrescentar) de punir qualquerdiscriminao atentatria aos direitos e l iberdadesfundamentais (inciso XLI). Esses direitos individuais, tratadoscomo direitos fundamentais de qualquer membro da sociedadebrasileira, j seriam suficientes para indicar o quanto h deilcito jurdico na continuidade institucionalizada dos estigmasantigays.

    Mas certamente o princpio da dignidade da pessoa quefundamenta, afinal, as reivindicaes contra o tratamentodesigual e discriminatrio e a reao a expresses pblicas dedesprezo. O Estado brasileiro a instituio da vida pblica ecomum da sociedade brasileira funda-se sobre a dignidadeda pessoa humana e sobre o pluralismo polt ico(Constituio Federal, Artigo 1o, incisos III e V). A dignidadeda pessoa pode ser bem expressa pela frmula kantiana: o valorde cada ser humano, que no pode ser trocado por nada, nopode ser comprado por nada e no pode ser instrumento denada. Nenhum ser humano pode ser usado por outro ou pelacoletividade e no pode ser usado nem mesmo como umexemplo, como um bode expiatrio. O pluralismo, por seuturno, diz que o fundamento da convivncia poltica no Brasil a tolerncia recproca. Estas so indicaes bsicas (atelementares) de que a democracia brasileira, vale dizer, o sistemajurdico pblico no Brasil, adota as precaues necessrias paraque no seja permitida entre grupos sociais a intolerncia ou aopresso social. Nosso sistema jurdico garante e valoriza apluralidade de formas de vida e de pensamento, e no legitimaque o Estado patrocine a uniformizao, o conformismo e asubmisso.

    A negativa de direitos, somada ao tradicionalismo do statuquo, mantenedora e fomentadora das formas mais evidentesde violncia fsica e em si mesma uma ofensa ao regimedemocrtico de iguais liberdades. No de admirar que, sob osilncio do sistema jurdico tal como entendido pelasexpresses no-democrticas mais comuns , se cultive aintolerncia. Em uma ordem democrtica, essa discriminaosexual juridicamente ilcita. Em um Estado democrtico, adefesa da ordem social restringe-se defesa de instituies quepossam passar pelo teste da universalizao e da crtica, e isso

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    79Ano 2 Nmero 2 2005

    sustentaria os tratamentos diferentes, justificados pelanecessidade de manuteno das condies de convvio socialcom liberdade igual para todos. Mas por esse teste no passamhoje as idias preconcebidas sobre as relaes afetivas e erticasentre pessoas do mesmo sexo.

    Dizer que tais relaes no devem ser reconhecidas, porcontrariarem a ndole religiosa e a moral universal, incide naproibio constitucional de o Estado aplicar coercitivamente atodos os cidados um conjunto determinado de convicesreligiosas. Os argumentos de convico religiosa no podemser usados com legitimidade no espao democrtico quandofundados em si mesmos, pois nenhuma religio determinarobrigaes, deveres e direitos para todos os cidados, j quenem todos compartilham a religio que se faz, ou que ,dominante. A liberdade de crena, uma das marcas dademocracia, impede que sejam impostos a todos deveres quese justificam apenas para os seguidores de determinado credo.Fundar-se na revelao crist, judaica ou islmica no suficiente cito expressamente estas tradies porque asrelaes homossexuais no so objeto do mesmo tabu emmuitas outras religies e culturas.3

    A liberdade de convico religiosa , portanto, umabarreira democrtica e constitucional a argumentos nessadireo, quando se trata da legislao estatal. O Artigo 5o, incisoVI da Constituio brasileira expresso: inviolvel aliberdade de conscincia e crena, sendo assegurado o livreexerccio dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, aproteo aos locais de culto e a suas liturgias. Ora, se aliberdade de conscincia inviolvel, aqueles que no partilhamdas convices religiosas dos outros (mesmo que os outrossejam a maioria) no podem se submeter a leis cuja razo deser se justifica apenas pela crena religiosa.

    A Constituio Federal acrescenta ainda liberdade deconscincia outro elemento importantssimo para o debate:Ningum ser privado de direitos por motivos de crenareligiosa ou de convico filosfica ou poltica, salvo se asinvocar para eximir-se de obrigao legal a todos imposta erecusar-se a cumprir prestao alternativa, fixada em lei(Artigo 5o, inciso VIII).

    A convico religiosa alheia no pode, portanto, privar dedireitos um grupo social que no se recusa a cumprir os deveres

    3. Aqui no o lugar

    adequado tampouco para

    colocar em dvida a prpria

    fundamentao religiosa do

    tabu. Como diversos telogos

    tm dito, um sinal evidente

    de m-f que as religies

    escolham seletivamente o que

    sobrevive de sua prpria

    tradio e queiram impor essa

    seleo a todos. Assim, h no

    poucos grupos inspirados nos

    textos sagrados do judasmo e

    do cristianismo que ignoram

    as obrigaes de sacrifcios

    animais, os ritos de limpeza e

    de segregao de doentes e

    mulheres, os tabus alimentares

    e assim por diante. Por qual

    critrio continuariam a ser

    abominveis as relaes entre

    pessoas do mesmo sexo e no

    os tabus alimentares?

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS80

    gerais de cidadania. Alm de serem livres para crer, os cidadosbrasileiros so livres para no serem privados de direitos porgrupos religiosos terem feito leis fundadas em suas convicesreligiosas. Dizer, portanto, que no se estendem a certos grupos(como gays e lsbicas) direitos que existem para outros pelandole religiosa da maioria ou pelo direito natural de carterrevelado ou pseudocientfico (e se no cientfico uma crena,uma questo de conscincia) contrariar diretamente o direitoconstitucional.

    O mesmo vale para uma afirmao como a de queningum ser feliz assim. Bem, o direito moderno edemocrtico no pretende fazer a felicidade das pessoas. Aspessoas podem ser felizes como quiserem, desde que nocausem dano e no impeam outros de igualmente buscar afelicidade. Esse o sentido da liberdade civil e da tolernciaentre c idados de um Estado democrt ico. No responsabilidade do Estado fazer seus cidados felizes na vidaprivada, e a felicidade alheia deve ser um problema alheio.Em uma frase muito pertinente, J. R. Lucas (1989, p. 262)diz que a expresso cuide de sua vida um bom resumo deum princpio de justia e de tolerncia: Cuide de sua vida.Embora seja uma definio inadequada de justia, ainda assim um corretivo importante para uma exagerada solicitude comos outros. H [...] uma ligao conceitual entre a justia e aliberdade, na medida em que faz parte das exigncias de justiaque cada indivduo possa fazer sua prpria vida.

    A solidariedade social em sociedades de massa,burocrticas e democrticas, tolerantes e, em uma palavra,justas, no equivale ao controle pblico das felicidadesparticulares. No equivale nem mesmo ao controle social: aliberdade contra a interferncia alheia um dos grandesbenefcios da democracia, um aspecto que a torna desejvel.

    Outra linha de argumentos para que o sistema jurdicoignore os direitos dos homossexuais e no os estimule tentafundar-se em razes de ordem cientfica de duas naturezas.Uma afirma que o natural o que existe empiricamente, e oantinatural o que no se encontra em outras espcies animais.A segunda mistura as funes e regularidades da natureza coma finalidade da ao humana e transforma funes naturais emprescries morais (deriva o dever do ser, como disse Hume).

    Na primeira linha, argumenta-se que antinatural a

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    81Ano 2 Nmero 2 2005

    convivncia de pessoas do mesmo sexo e que no existemligaes desse tipo na natureza. Nesse sentido, o fundamentoalegado para a legislao simplesmente errado: falar que asunies ertico-afetivas entre seres humanos do mesmo sexo soantinaturais, porque no existem na natureza, demonstraapenas ignorncia de fatos. E se existem fatos na natureza, oargumento no se sustenta, como est provado pelas evidnciasempricas: j se constatou em vrios mamferos o estabelecimentode relaes entre indivduos do mesmo sexo.

    Na segunda linha de raciocnio, antinatural quer dizercontra as finalidades da natureza, e nesse sentido o argumentoapresenta dois problemas. O primeiro diz respeito finalidadeda natureza, que no pode ser determinada pela cincia. Paraisso seria preciso supor a existncia de um sujeito, ou umaconscincia por trs das regularidades naturais; equivaleria apersonificar a natureza. Por isso mesmo, na cincia moderna afuncionalidade dos eventos no se confunde com sua finalidade.Transformar as funes naturais em fins um erro da ordemdas categorias e invalida o raciocnio. Embora os contatossexuais sejam funcionais para a reproduo das espcies, nose pode derivar da que a finalidade desses contatos entre osseres humanos seja, ou deva ser, a reproduo da espcie.

    A moral e a tica so o campo em que se constroem e seinterpretam as condutas humanas que independem dasdeterminaes naturais. Os seres humanos valem como pessoasjustamente porque so capazes de se dar fins (a isso se chamaautonomia) e s podem faz-lo em contraste com asregularidades determinantes da natureza. Valem porque sosujeitos e no objetos. O fim no o cumprimento de umdeterminismo natural. Ningum tem por finalidade morrer:isso dispensado, j que todos morreremos mesmo. Emargumentos morais, no simples invocar a natureza comodeterminadora de prescries: a natureza no prescritiva, determinante, coisa muito diferente.

    Mesmo a teologia crist abriu mo no sculo passado deuma afirmao to simplista como essa. Especificamente natradio catlico-romana, a constituio Gaudium et Spes, de1965, expressa: O matrimnio, porm, no foi institudoapenas para o fim da procriao (GS, 50). E acentua que omatrimnio consiste na expresso de um amor: Essa afeiose exprime e realiza de maneira singular pelo ato prprio do

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS82

    matrimnio. Por isso, os atos pelos quais os cnjuges se unemntima e castamente so honestos e dignos (GS, 49). Na mesmalinha, passados j os anos do grande debate em meados dosculo 20, o Catecismo oficial (de 1992) estipulou que, paraalm da transmisso da vida, uma finalidade to importantedo matrimnio, o bem dos cnjuges (Parte III, Sec. II,Cap. II, Art. 6).

    Se no fosse assim, todos os seres humanos infrteis, porexemplo, deveriam ser proibidos de manter relaes sexuais (eafetivas) e de se casar. Mas desde sempre se descartou a simplesimpotncia generandi como causa de anulao de casamentos.O Cdigo de direito cannico, vigente desde 1983 para a igrejaromana, consolida a longa tradio a respeito: o cnon 1.084,pargrafo 1o, trata a impotncia coeundi como impedimentoao matrimnio, mas diz expressamente no pargrafo 3o: Aesterilidade no probe nem dirime o matrimnio [...].4

    Fundado nessa valorizao do bem recproco dos cnjuges,Michael Sandel (1996, p. 104) critica a defesa dos direitos dosindivduos homoerticos apenas com base na liberdade negativa(uma tolerncia negativa). Para ele, pode-se propor tambmum argumento positivo, dizendo que as relaes de amor entreindivduos do mesmo sexo so boas, como boa toda relaode amor. Logo, no apenas em respeito liberdade, mas tambmem respeito idia de bem, no deveria ser difcil para ostribunais valorizar positivamente essas relaes.

    Finalmente, o argumento dito cientfico contra oestmulo s relaes erticas e afetivas entre pessoas do mesmosexo parece enredado em forte contradio. Ao mesmo tempoque afirma ser a orientao homoertica contrria natureza,porque na natureza no haveria homoerotismo (informaoque j no se sustenta), sugere tratar-se de uma escolhaorientada pela convivncia e pela educao. O argumentopresume simultaneamente que a natureza determina coisaspara todos os seres, menos para os humanos (para os quais aorientao sexual dependeria de estmulos, e no dedeterminismos naturais); e que o direito deveria, caso a naturezafalhasse, agir para substitu-la. Passa a ver o problema comodoena do comportamento e, pior, doena contagiosa.

    A afirmao de duvidosa coerncia. Como se sabe, aimensa maioria dos gays e lsbicas nasce em famlias deheterossexuais e convive a maior parte de sua vida com

    4. No Cdigo de direito

    cannico de 1917, as mesmas

    regras estavam no cnon

    1.068, pargrafos 1o e 3o.

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    83Ano 2 Nmero 2 2005

    heterossexuais (populao majoritria) alis, em ambientesnos quais so submetidos a toda sorte de violncia moral efsica, como se sabe. Como, por que e por quem se sentiriamestimulados a pertencer a esse grupo vulnervel e sujeito atantas limitaes de ordem social, a tanta violncia ehumilhao ao longo da histria? O argumento parece suporque o reconhecimento pblico de tais relaes estimularia osheterossexuais a se converter em gays e lsbicas. Que espciede contgio esse, que pode transformar algum em gay, masno pode transformar um gay em htero? Conclui, assim, quea orientao sexual cultural e social logo, no natural. Sefosse determinada pela natureza, no poderia ser mudada. Masse no natural, o argumento de que se est proibindo umaconduta com base na natureza, fica prejudicado.

    Logo, a proibio de dar a gays e lsbicas os mesmosdireitos deve ser fundada exclusivamente em argumentosmorais e, ao se pretender manter uma sociedade livre edemocrtica, precisam ser utilizados argumentos de moralcrtica e no tradicional. Claro, nada disso vale se a concepode espao pblico, de direito e de poltica intolerante,tradicionalista e assimilacionista. Se o que est em jogo realmente a imposio da homogeneidade (tnica, religiosa,poltica ou sexual), ento a diferena de orientao sexual to malfica quanto outra qualquer, e no de se estranharque durante o regime nazista os homossexuais tambm fossemenviados aos campos de concentrao.

    Os argumentos laicos e crticos deveriam, pois, serfundamentais. E entre os argumentos laicos e crticos no hum que consiga invalidar o princpio de que, entre adultoslivres, certas interferncias do Estado no podem ser aceitas.

    O direito ao reconhecimento: como se dar?

    O reconhecimento consiste na afirmao e na valorizaopositiva de certas identidades. O direito ao reconhecimento,portanto, deve afirmar- se como um direito em primeiro lugar,e precisar traduzir-se em esforos pblicos estatais e no-estatais que retirem de um grupo estigmatizado asconseqncias jurdicas de um estigma social.

    Como seria possvel converter em deveres esse direito aoreconhecimento, e a quem ele deveria beneficiar? Retomo

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS84

    brevemente o tema do direito subjetivo. A partir do sculo 16,o exemplo mais evidente de direito subjetivo o de dominium,que ao longo do tempo se resumiu propriedade como aimaginamos hoje , mas antes abarcava uma srie de outrospoderes, como a prpria jurisdio. Prncipes e pais de famliatinham no apenas o dominium mercantil e econmico dascoisas, mas poderes de senhorio sobre seus sditos e parentes.

    Bem, o importante que o direito subjetivo terminou porser tratado exemplarmente no campo da propriedade, sob doisaspectos. Em primeiro lugar, quanto a seu conceito: tem apropriedade quem a pode usar, gozar e dela dispor. Em segundolugar, as formas de transferncia de poder vieram a compor ogrande campo das obrigaes. Logo, definir os poderes e dizercomo circulam entre as pessoas resume bem a reflexo sobre osdireitos subjetivos. Porm, a discusso dos direitos subjetivos,dessa forma, ocorre dentro das regras da comutao ou troca.Pressupe que o importante definir como as coisas mudam demos e como vo parar nas mos de seus detentores.

    Uma esfera distinta a da reflexo sobre a distribuio.Nela, o problema no consiste em defender direitos jexistentes, mas em atribuir direitos imaginando-se que aindano esto distribudos. No se trata de reflexo histrica, masde reflexo crtica sobre quem deve ter o qu. As regras dedistribuio tm uma dificuldade particular: no presumemque j existam titulares de direitos subjetivos, presumem apenasque todos devem ter acesso a certo bem. Regras de distribuiodiferem de regras de comutao porque no atribuem direitosde uns frente a outros (a outro, como direito pessoal; a todosos outros, como direito real), mas direitos de todos frente atodos. Os exemplos mais evidentes de distribuio so as regrassocietrias. H direitos que so de todos os scios antes deserem direitos de um scio contra outro scio, ou contra asociedade.5

    Creio que, de incio, os direitos ao reconhecimentoprecisam ser colocados nessa esfera. A luta por direitos aoreconhecimento luta por distribuio, a distribuio de umbem que s existe e s se produz socialmente: o respeito. Nose trata, aqui, de um respeito comutativo, mas de um respeitodistributivo e, portanto, universal. Quando uma sociedade seorganiza de maneira hierrquica e desigual, no se podedistribuir o respeito de forma igual e universal. Na linguagem

    5. Iris M. Young (1996)

    discordaria dessa anlise. Para

    ela, a distribuio ocorre com

    bens que podem ser

    individualizados (renda,

    oportunidades etc.), o que no

    o caso do respeito, e a

    poltica de identidades no visa

    distribuir coisa alguma, mas

    desfazer sistemas de opresso

    (a distribuio desfaria a

    explorao?). Mesmo assim,

    creio que se pode falar de

    distribuio se imaginarmos

    que a imagem de grupos sociais

    constitui um produto social,

    algo comum (indivisvel) e que

    pode ser mudado. Na tica a

    Nicmaco, Aristteles

    apresenta a honra como

    exemplo de objetos que se

    distribuem de maneira

    proporcional. certo que a

    honra em uma sociedade

    no-igualitria diferente do

    respeito em uma sociedade

    democrtica; mas o respeito

    existe justamente na medida

    em que universal e

    igualmente distribudo. Tratar

    o tema sob a forma de justia

    distributiva tambm me parece

    importante, por ser

    juridicamente relevante: as

    relaes comutativas permitem

    solues jurdicas de

    adjudicao simples e

    bilateral, enquanto as relaes

    distributivas exigem solues

    de adjudicao plurilateral ou

    administrativa.

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    85Ano 2 Nmero 2 2005

    poltica antiga, a honra consistia exatamente no respeitodesigual: alguns tinham, outros no; alguns tinham mais (maiorhonra) e outros menos (menor honra); nesses termos, eratratada como um bem escasso, que no poderia ter distribuioigualitria para todos. O respeito, por seu turno, acontrapartida da dignidade universal.

    O respeito mesmo, a valorao ou valorizao igual dosseres humanos, fica condicionado produo social de umaimagem positiva ou negativa, de um trao que identifica umgrupo a cor da pele, o nvel de educao, a procedncia tnica,o gnero ou a orientao sexual. E a produo desse respeito svezes depende de como a percepo social da caractersticaresponsvel pela imagem socialmente criada: visvel ouinvisvel, mutvel ou imutvel? Falo tambm de respeitodistributivo, levando em conta que o respeito um bemindivisvel, produzido socialmente. Assim, se a imagem de certogrupo negativa, essa distino produo social.

    O problema jurdico novo a disputa pela imagempblica. A reparao da injustia, nesse caso, no de carterapenas individual, mas social. A luta pelo reconhecimento uma disputa pelo reconhecimento da dignidade da pessoaaviltada ou ofendida pela maioria; e tambm uma luta contraa injustia, que consiste em aviltar um grupo inteiro. Dessaforma, no uma luta pelo convencimento da maioria quantoao valor de uma minoria, mas uma luta pelo pluralismo.

    Naturalmente, o pluralismo e a tolerncia tm limites: osintolerantes, por exemplo, podem s vezes ser contidos. Paraque gays e lsbicas sejam reconhecidos e tolerados nesses termos, preciso que no se confundam, sendo eles mesmos intolerantesou colocando-se como um grupo que deseja dominar o espaosocial. Esse um dos temas subjacentes a vrios discursoscontrrios ao reconhecimento de gays e lsbicas (percebidos comocorruptores, traidores da vida social). No se trata de dar acada ser humano que se encaixa naquele grupo estigmatizado aoportunidade de simplesmente se desfazer do estigma. Trata-sede desestigmatizar todo o grupo, demonstrando que o estigmaest fundado em preconceitos e discriminaes inaceitveis noespao pblico democrtico.

    Os direitos subjetivos tradicionais eram assimilados propriedade: a propriedade de si mesmo e de suas coisascompunham o ncleo da idia de direito subjetivo. Ter direitos

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS86

    significava ser dono de si e de suas coisas. Por conseqncia,ter direitos significava dispor de proteo judicial contra atosque violassem a pessoa e a propriedade de cada um. De modogeral, isso era feito pela criminalizao ou sano civil decondutas, dando s vtimas a possibilidade de buscar a coisa,ou seu equivalente em dinheiro, a ttulo de indenizao. Agarantia de um direito subjetivo dava-se pelos instrumentosda justia comutativa (corretiva ou retributiva): devolver aalgum a coisa que lhe pertence, recompor o dano causado,aplicar uma pena proporcional leso infligida a outrem.

    natural que a defesa jurdica do direito de propriedadeou da liberdade se d quando algum j proprietrio oulivre. O no-proprietrio e o escravo no tm o que defender.Para que passem a ter algo preciso que afirmem um direito distribuio das coisas e liberdade. Nesses termos, adistribuio um antecedente lgico de todos os direitos.Essa distribuio foi objeto de luta pelos direitos sociais nossculos 19 e 20. Os direitos sociais foram, pois, direitos dedistribuio ou de redistribuio.

    Na distribuio no acontece de cada um ter uma coisa:cada um tem um direito a parte de alguma coisa, que comum. Os direitos dos acionistas aos dividendos soexatamente dessa natureza. Ningum dir que os acionistas,enquanto no for feita a distribuio dos dividendos, no tmdireito a eles. Enquanto no for feita a diviso, no tm direitoa parte determinada dos dividendos, mas j tm direito aosdividendos. Tanto assim que certos atos no podem serpraticados pela diretoria da sociedade por ferirem um direito(de contedo ainda indeterminado). Os acionistas gozam, porisso mesmo, de remdios que podem ser ditos coletivos oudifusos, porque tm direito a algo que permanece indiviso:enquanto o lucro no for distribudo cada acionista temum direito seu e prprio a uma parte do fundo comum (oresultado positivo da atividade social).

    Ao falar em direito de reconhecimento, estamos falandoem algo alm do respeito devido a cada indivduo debaixo dasregras democrticas universais de tolerncia e liberdade. certoque o fundamento ltimo do direito ao reconhecimento, oudireito diferena, como dizem alguns, o direito subjetivouniversal de liberdade. Tem razo Srgio Paulo Rouanet, quandoafirma que a defesa de certos grupos funda-se na defesa do direito

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    87Ano 2 Nmero 2 2005

    dos indivduos daquele grupo de conduzirem suas vidas, de seremtratados como seres humanos independentemente depertencerem quele grupo. As mulheres querem ser respeitadascomo seres humanos to completos e valiosos como os homens,e esse o objeto final da defesa dos direitos das mulheres. Separa lhes dar total e to grande respeito for preciso reconheceras diferenas, assim se faa.

    Nessa linha de raciocnio, pode-se chegar a dizer que adiferena jurdica apenas instrumental para a igualdade moral,e que as diferenas especficas de gays e lsbicas permitemdiferenci-los, negando-lhes algum direito. Por isso, o direitoao reconhecimento pede que sejam levantadas, do ponto devista social e jurdico, as valoraes negativas dadashistoricamente a certa identidade. Pertencer a um grupo deidentidade no o mesmo que pertencer a uma associaovoluntria. Dessa forma, a tolerncia para com os grupos deidentidade diferente da tolerncia para com os grupos deopinio. Os grupos de opinio so aceitos porque no se obriganingum a pensar de uma forma ou de outra, e o confrontodas opinies pode gerar mais luzes e melhores decises. J dosgrupos de identidade nem sempre possvel sair e entrarlivremente: no se muda de etnia e orientao sexual como semuda de opinio.

    Falar de dissidentes uma coisa; de diferentes, outra. Atolerncia estendida aos dissidentes a mesma aplicada aosdiferentes? No fundo h muitas semelhanas: a tolerncia paracom os dissidentes parte da compreenso de que a simplesdiferena de opinio no transforma ningum em traidor ouassassino. Dessa forma, a simples diferena de opinio nojustifica a eliminao do dissidente e nem a negativa de seusdireitos civis ou polticos. Mas certas atitudes indicam que odiscurso a sustentar a rejeio de direitos aos diferentes o mesmodiscurso que prega a eliminao dos diferentes. Estrangeiros ouhomossexuais s poderiam ser aceitos como iguais serenunciassem a suas respectivas identidades. Para eles, sobrariamduas opes: ou assimilar-se (converter-se), ou esconder-se(disfarar-se, ocultar-se). O direito de reconhecimento umdireito manuteno de sua identidade, desde que esta noimpea a existncia simultnea de outras identidades. umdesdobramento ou uma especializao da tolerncia a tolernciado diferente.

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS88

    Talvez isso seja mais problemtico do que parece, pois adiferena pode ser justamente aquilo que se quer preservar, eno abolir. nesses termos que se d a discusso do direito diferena, o direito de reconhecimento, com dois significadosdistintos.

    Em primeiro lugar, o direito diferena pode significarexatamente o mesmo que os direitos fundamentais implicamcomo programa democrtico: que nenhuma caractersticaindividual seja levada em conta pelo legislador e pelos tribunaispara restringir os direitos de algum, sempre que essacaracterstica no se justifique como diferenciador suficiente.Diferenas de nascimento, de etnia, de gnero e assim pordiante so proscritas do ordenamento jurdico. Tratar algumde forma diferente nesses termos significa no reconhecer apessoa individualmente pelo que ela . O remdio jurdico paraa falta de reconhecimento individual a proibio de tais atospela regra da isonomia. E vale a pena lembrar que essa isonomia sempre criada socialmente como se sabe, equiparar homense mulheres em todos os sentidos construo at certo pontorecente. Respeito diferena quer dizer aqui, apenas, aproposital irrelevncia da diferena, um intencional deixar delado a diferena emprica.

    Em segundo lugar, o reconhecimento pode significar aretirada da valorao negativa de certa identidade, seja paraafirm-la positivamente, seja, sobretudo, para afirmar queessa identidade, no que diz respeito vida social e poltico-jurdica, irrelevante. Nesses termos, no basta o indivduoter direito de ser tratado como todos os outros; ele precisaprovar por esforos hericos que exatamente igual aosoutros. Sob essa segunda perspectiva, passa a ser seu direitover sua diferena especfica no desrespeitada publicamente.O direito ao reconhecimento, nesse momento, adquire oaspecto distributivo que mencionei, j que essa identidadeno exclusiva de um indivduo, mas pertence a um grupo. esse bem comum (uma identidade) que merece o respeitopblico, que no significa nem admirao nem concordncia.Ningum obrigado a se converter aos cultos afro-brasileiros,ao islo ou ao cristianismo para respeit-los publicamente.Assim como o direito no obriga ao amor, o respeito aopluralismo social no se confunde com o direito mudanada convico alheia.

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    89Ano 2 Nmero 2 2005

    Disse Kant, de modo muito inspirado, que o amoruniversal no pode significar afeio ou afeto universal, maspode significar e significa respeito universal. O direito aoreconhecimento significar, ento, o respeito a certa identidadecoletiva. Martha Minow usou um ttulo muito significativoem seu trabalho sobre os direitos das minorias (1997): Notonly for Myself. Os direitos requeridos sob essa forma dereconhecimento no so exclusivamente individuais, no soapenas para mim. O reconhecimento que se exige, sob a formade direito, para qualquer um, universal.

    Ora, essa construo da diferena de modo positivo oua desconstruo da diferena negativa estabelece um conflitoem dois sentidos: no sentido de que a distribuio do valor dasidentidades precisa ser questionada e no sentido de que aidentidade de cada grupo algo que se distribui universalmenteentre todos seus membros.

    No primeiro sentido, o remdio discriminao, passada epresente, deve incorporar-se em prticas que visem alterar, parao futuro, as condies histricas herdadas: a divulgao deinformaes e o ensino da tolerncia passam a ser direitos detodos e a beneficiar os grupos submetidos tradicionalmente violncia fsica e moral e tradicionalmente tratados, como diz odireito constitucional norte-americano, como classe suspeita(Gerstmann, 1999, passim). O remdio discriminao passadano um privilgio, ou direito especial de um grupo, mas sim oremdio para uma injustia especial da qual o grupo vtima.Sem esse remdio, a tendncia seria a perpetuao de situaeshistricas de injustia.

    No segundo sentido, a violncia feita a algum por sermembro do grupo pode ser considerada violncia ou ofensa atodos. Ou seja, se a integridade fsica ou moral de um membrodo grupo est sob risco pelo fato de ele pertencer a esse grupo,sua segurana e o respeito que lhe devido se convertem embem comum (indivisvel), que pertence a todos. A intolerncia,uma vez aceita na vida social, no conhece limites, criando-seum crculo vicioso de excluses. Por isso, as aes civis pblicastambm aqui se revelam importantes, j que, por definio,beneficiam a todos os membros de uma classe ou grupo. Adistribuio se d pelo prprio resultado do processo: todos osmembros do grupo se beneficiam de um resultado positivo,diminuindo o risco de exposio dos mais vulnerveis.6

    6. A ao civil pblica tem

    tambm problemas jurdico-

    polticos especficos, dos quais

    aponto apenas dois: (1) pode

    ser usada de maneira

    paternalista, pois possui

    alguns fundamentos

    claramente paternalistas,

    como a idia de que os grupos

    por ela defendidos so

    hipossuficientes e necessitam

    de um representante, porque

    so incapazes de se defender a

    si mesmos; e (2) pode ser

    desmobilizadora, ao estimular

    o efeito carona, ou

    comportamento predatrio,

    permitindo que um beneficirio

    da ao no arque com os

    custos. Esses dois defeitos

    da ao devem ser lembrados

    pelos que dela fazem uso, mas

    inquestionvel que problemas

    distributivos precisam de

    remdios judiciais especficos,

    como a ao civil pblica.

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS90

    O STJ e o reconhecimento de homossexuais

    Diversos acrdos do Superior Tribunal de Justia mostram oque o direito ao reconhecimento no sentido da tolerncia, daliberdade negativa e da no-discriminao. A deciso do RecursoEspecial 154.857/DF, publicada em 26 de outubro de 1998,talvez seja a mais exemplar (relator Ministro Luiz VicenteCernicchiaro). Haviam impugnado a capacidade de umhomossexual testemunhar, alegando entre outras coisas seudesvio tico (sic). O STJ aceita o recurso para restabelecer acapacidade da testemunha. O argumento do STJ tipicamentede tolerncia e no-discriminao: a orientao sexual dealgum no interfere em sua capacidade de testemunhar, e porisso no pode ser justificativa para no ouvi-la. Assim seconcretiza o princpio da igualdade, registrado na Constituioda Repblica e no Pacto de San Jos de Costa Rica.

    O importante na deciso que a discriminao pororientao sexual considerada incompatvel com a Constituioda Repblica (por ser violadora dos direitos fundamentais) ecom o Pacto Interamericano de Direitos Humanos (comovioladora dos direitos humanos, na rbita internacional).Significa que uma regra constitucional impede que a orientaosexual seja tomada como critrio para diferenciar os cidados.7

    Chamo apenas a ateno, nesse caso, para o fato de as instnciaslocais da justia terem sido capazes de invocar a orientao sexualda testemunha como um desvio tico, e s na instncia especialesse desvio ter sido declarado irrelevante.

    Outros casos tratam do reconhecimento de direito apartilha ou meao, em suma, ao reconhecimento de umasociedade de fato entre companheiros de mesmo sexo. Aqui aquesto ligeiramente diferente. Pode-se dizer que h umaforma de reconhecimento das unies de mesmo sexo, poisutiliza fundamento (a existncia de um esforo comum naconstruo do patrimnio) idntico ao adotado dcadas atrs,quando o vnculo do matrimnio era considerado indissolvele a lei impedia mais de um casamento. Naquela altura, aconvivncia entre heterossexuais moda de casamento (moreuxorio) no podia ser aceita formalmente, mas os tribunaisdavam aos parceiros direitos patrimoniais recprocos. Era ummeio caminho para a aceitao da sociedade conjugal. Aorecorrer a argumento equivalente, o STJ abre tambm uma

    7. O argumento central do

    trabalho de Roger R. Rios

    (2000) exatamente nessa

    linha: a despeito de no

    constar expressamente na

    Constituio, a discriminao

    por orientao sexual

    inconstitucional e violadora

    dos direitos fundamentais e

    dos direitos humanos.

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    91Ano 2 Nmero 2 2005

    perspectiva no reconhecimento da unio. Mas h umimportante limitador: trata-se do reconhecimento das questespatrimoniais, e no de um reconhecimento positivo, como disseSandel (1996), que inclua as relaes afetivas estabelecidas entreparceiros do mesmo sexo.

    Esse reconhecimento est implcito, porm, no RecursoEspecial 148.897/MG. Ali o Tribunal reconhece que o parceirotem direito partilha de um bem comum havido durante aconvivncia, mas nega ao sobrevivente a indenizao pedidacontra o pai do falecido por dano moral por ter suportadosozinho os encargos da doena do morto. Por essa ordem deidias, v-se que o Tribunal aplicou raciocnio igual ao queaplicaria a um casal de heterossexuais: o marido ou a mulherque sobrevive, no atual sistema jurdico brasileiro, no indenizado pelas famlias por ter sofrido com a doena docnjuge falecido. que essa convivncia, na sade e nadoena, faz parte do estado conjugal, segundo os termos athoje aceitos. Por isso, ao partilhar o bem, mas negar aindenizao, o STJ deu mais um passo na aproximao daconvivncia gay e lsbica convivncia de parceiros de sexosdiferentes.

    Concluso o que, afinal, devidoaos gays e lsbicas como direito fundamental?

    Questes de direito precisam ser resolvidas de tal maneira quese possa dizer o que o seu de cada um. Quando se fala dosdireitos sociais, para que haja um seu de cada um precisoque se defina, em primeiro lugar, o que a parte comum, daqual cada um ter o seu. Em sociedades capitalistas foidissolvida a propriedade comum e tudo foi transformado emobjeto de apropriao individual. Nessas circunstncias,tornou-se necessrio impor a contribuio de todos de formaproporcional formao de fundos comuns: por meio deimpostos e contribuies sociais. Desses fundos comuns sai,ou deve sair, a proviso dos direitos sociais sade, educao,aposentadorias e assim por diante. Vivemos hoje um perodode crtica a esse modelo de constituio de fundos comuns,crtica orientada tanto ineficincia de sua gesto (em nomeda privatizao), quanto possibilidade mesma de sua existncia(em nome da concorrncia entre agentes econmicos).

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS92

    Parece-me certo, de todo modo, que a satisfao dosdireitos sociais ocorreu, do ponto de vista do direito, por estesdois mecanismos: criao de fundos e distribuio de fundoscomuns. Esses fundos permitiram comodificar (reificar,transformar em mercadoria ou crdito) as expectativas de acessoaos resultados sociais da produo econmica. Ao mesmotempo, possibilitaram medir (ainda que imperfeitamente) osacessos permitidos a tais fundos. Ao comodificar o acesso, osistema jurdico criou tenses muito especficas. Introduziuum gestor do fundo o Estado que parece ser na realidade odono do fundo. Isso foi determinante para permitir auniversalizao dos fundos, impedindo que fossem apenassetoriais ou corporativos. Ao mesmo tempo desvinculou, napercepo dos juristas, as duas pontas do sistema: a contribuioe a distribuio. Parece que tais fundos podem existir sem acontribuio de ningum, e os conflitos jurdicos decontribuio so discutidos em uma esfera, enquanto osconflitos de distribuio so discutidos em outra. A jurisdiotributria regula apenas as relaes do Estado com oscontribuintes (muito particularmente, claro, o capital) e adota,nessa esfera, uma atitude claramente restritiva e protetiva docontribuinte.8 Os conflitos pela distribuio processam-se deforma independente, e permitem atitudes generosas para como beneficirio. Ao final, as contas tendero a no fechar.

    Claus Offe (1991) observa que h a evidncias de regrasdistintas: uma a regra da solidariedade, e outra, a do interesse.No que diz respeito aos direitos sociais h uma comodificaoque permite separar a solidariedade do interesse. O interesseaparece como se no tivesse contrapartida, e se afirma, pois, moda do direito civil individual. O direito civil individual,mais ou menos como os direitos absolutos de Dworkin, irresponsvel, diz Offe (p. 84), pode ser exigido pelo titular,sem que ele d contrapartida a ningum. O direito socialclssico, por seu turno, pressupe que h solidariedade e queexiste a contrapartida de um fundo social de solidariedade:sua concesso depende de haver esse fundo e das respectivasregras de acesso.

    O direito ao reconhecimento distingue-se do direito socialem uma esfera importante. Pode ser de difcil comodificao.O reconhecimento, como diz Fraser (1997), no visa repararuma injustia relativa a bens materiais, mas a um bem imaterial

    8. A pesquisa de Marcus Faro

    de Castro (1997) mostra que

    em 75,57% dos conflitos entre

    autoridades pblicas e

    particulares as decises do

    Supremo Tribunal Federal

    foram favorveis aos

    particulares, o que lhe permite

    dizer que o STF, mesmo em

    sua atuao rotineira, tem

    julgado contrariamente

    prevalncia das iniciativas do

    poder pblico, o que inclui a

    implementao de polticas

    pblicas (p. 153).

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    93Ano 2 Nmero 2 2005

    (moral, se quiser), que o respeito, a imagem pblica de umapessoa e de um grupo. Esse direito ao reconhecimentodificilmente se estabelece com a criao de um fundo deindenizao, pura e simplesmente.

    Por isso, conforme mencionei, o direito ao reconhecimentose refere a um bem, o respeito recproco e universal, que oproduto comum (social) da vida em sociedade. A imagem socialde um grupo, como bem comum, no pode ser distribuda deforma mercantil. distribuda universal e igualmente e,portanto, assemelha-se aos direitos absolutos de Dworkin e aosdireitos irresponsveis de Offe.

    Quem pede direito ao reconhecimento pede que adistribuio da identidade social no seja hierarquizante emfuno do trao de identidade especfico. Pede que todas asidentidades sejam tratadas jurdica e politicamente comoequivalentes. Trata-se de afirmar o direito a ser diferente, e aque essa diferena se torne irrelevante. uma combinao deuniversalismo moderno e iluminista, com pluralismo:reivindicao simultnea de universalismo e percepo socialde queer theory. A dissoluo das identidades sexuais, aafirmao de toda sexualidade, feita em nome do universal.Rouanet (2001, p. 89) lembra que o universalismo crticojustamente porque impede que as formas paroquiais depensamento e julgamento pretendam uma universalidade queno podem ter. Assim, diz ele, quem defende o universalismocondena o sexismo, no por se identificar com o estatutofeminino particularista, mas por negar a validade de todos osestatutos particulares e por considerar que esses estatutos soquase sempre criaes imaginrias, destinadas a privar osindivduos empricos de suas prerrogativas como titulares dedireitos universais.

    Essa pretenso pode ser protegida pelo direito, porexemplo, quando se demonstra, em casos particulares, comopessoas gays e lsbicas so inferiorizadas no tratamento querecebem do sistema jurdico: apenas em funo do sexo de seusparceiros erticos e afetivos, vem-se privadas de benefciosestendidos a outros cidados, como o simples direito detestemunhar, o direito de contribuir para a previdncia social,de obter dedues do imposto de renda e assim por diante.Mais do que isso, pode-se dizer que os homossexuais tm direitoa ser tratados com respeito universal nas manifestaes pblicas

  • O DIREITO AO RECONHECIMENTO PARA GAYS E LSBICAS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS94

    de todos, e assim como j no se toleram discursos que incitemao dio entre grupos sociais, o direito tambm serve para coibiras manifestaes pblicas ultrajantes. No se trata de falar dacriminalizao do tratamento ofensivo dispensado pessoa gayou lsbica, mas de crime contra a paz pblica. Essa espcie decrime tem como vtima a coletividade, pois atenta contra aconvivncia democrtica.

    Em resumo, muito pode ser dito e feito pelo direito; mas,dado o carter ainda oneroso para os indivduos publicamenteinferiorizados, juridicamente necessrio, em muitasoportunidades, que as aes sejam tomadas por substitutosprocessuais. E assim tambm porque a inferiorizao de quese trata tem um carter difuso (atinge a qualquer um) eantidemocrtico.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CASTRO, Marcus Faro. O Supremo Tribunal Federal e ajudicializao da poltica. Revista Brasileira de CinciasSociais. So Paulo, v. 12, n. 34, 1997.

    DEVLIN, Patrick. Morals and the Criminal Law. In: R.DWORKIN (ed.), The Philosophy of Law. Oxford: OxfordUniversity Press, 1991.

    DWORKIN, Ronald. Liberty and Moralism. In: Taking RightsSeriously. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1977.

    ERIBON, Didier. Papiers didentit. Paris: Fayard, 2000.

    FRASER, Nancy. De la redistribucin al reconocimiento?Dilemas en torno a la justicia en una poca postsocialista.In: Iustitia Interrupta. Bogot: Universidad de los Andes Siglo del Hombre, 1997.

  • JOS REINALDO DE LIMA LOPES

    95Ano 2 Nmero 2 2005

    GERSTMANN, Evan. The Constitucional Under-Class. Chicago:University of Chicago Press, 1999.

    GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulao daidentidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

    HART, Herbert. Law, Liberty and Morality. Stanford: StanfordUniversity Press, 1963.

    . Immorality and Treason. In: R. DWORKIN (ed.),The Philosophy of Law. Oxford: Oxford University Press,1991.

    HERRERO BRASAS, Juan A. La sociedad gay: una invisible minoria.Madri: Foca, 2001.

    HONNETH, Axel. The Struggle for Recognition: The Moral Grammarof Social Conflicts. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1996.

    LUCAS, J. R. On Justice. Oxford: Clarendon Press, 1989.

    MILL, John Stuart. On Liberty. Nova York: Meridian, 1974.

    MINOW, Martha. Not only for Myself. Nova York: The New Press,1997.

    OFFE, Claus. El concepto de los derechos y el Estado delbienestar. In: Enrique OLIVAS (org.) Problemas delegitimacin en el Estado social. Madri: Trotta, 1991.

    RIOS, Roger Raupp. O princpio da igualdade e a discriminaopor orientao sexual: a homossexualidade no direito brasileiro enorte-americano. (Dissertao de Mestrado) Rio Grande doSul: Faculdade de Direito da UFRS, 2000.

    ROUANET, Srgio Paulo. A coruja e o sambdromo. In:Mal-estar da modernidade. So Paulo: Cia. das Letras, 2001.

    SANDEL, Michael. Democracys Discontent. Cambridge, Mass.:Harvard University Press, 1996.

    YOSHINO, Kenji. Covering. Trabalho apresentado no SeminrioLatino-Americano de Direito Constitucional. La Serena,Chile, 1999.

    YOUNG, Iris Marion. Justice and the Politics of Difference.Princeton: Princeton University Press, 1990.

    WINTEMUTE, Robert. Sexual Orientation and Human Rights.Oxford: Clarendon Press, 1996.