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8/2/2019 Artigo Lopes Reflexividade e Relacionismo Como Questes Epistemolgicas
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REFLEXIVIDADE E RELACIONISMO COMO QUESTES
EPISTEMOLGICAS NA PESQUISA EMPRICA EM
COMUNICAO
Maria Immacolata Vassallo de Lopes
Resumo:
A pesquisa emprica em Comunicao tomada como objeto de anlise a fim detrazer para o interior da prpria prtica da pesquisa duas questesepistemolgicas, a reflexividade e o relacionismo. Para isso, trabalho as
propostas de Bachelard e de Bourdieu sobre a epistemologia histrica eoperatria e o campo cientfico para a construo do conhecimento social. Oconceito de reflexividade recuperado desde sua originria perspectivaracionalizante at a viso plural da modernidade reflexiva fundada em
prticas de ordens epistmica e social. Enquanto prtica epistmica, analiso areflexividade nas operaes de ruptura e de construo do objeto cientfico e nasrelaes tridicas entre sujeito, objeto e conhecimento. Enquanto prtica social,uso a noo de reflexividade para abordar o trabalho de campo como situaosocial de comunicao e categoria de anlise. Concluo reafirmando que toda
pesquisa deve responder a duas validaes, a interna e a externa, das quaisdecorrem, respectivamente, o capital epistemolgico de um campo cientfico e ouso de seu conhecimento pela sociedade.
Palavras-chave: Reflexividade. Relacionismo. Pesquisa Emprica.
1. Introduo
Professora titular da Escola de Comunicaes e Artes da USP. Doutora em Cincias da Comunicaopela Universidade de So Paulo, com ps-doutorado na Universit di Firenze, Itlia. Coordenadora eprofessora do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da USP. Coordenadora epesquisadora da rede de pesquisa internacional OBITEL (Observatrio Ibero-americano da FicoTelevisiva). Autora de livros e artigos nas reas de epistemologia, metodologia e fico televisiva, noBrasil e no exterior. pesquisadora do CNPq. E-mail:[email protected]
mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected] -
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Nas cincias sociais, o progresso do conhecimentopressupe progresso em nosso conhecimento das condiesde conhecimento.
PierreBourdieu (1992)
Tomando como objeto de reflexo a pesquisa emprica em Comunicao,
pretendo pontuar algumas questes de ordem epistemolgica e metodolgica tais
como as concebo a partir do lugar em que se encontram, isto , na prpria
prtica da pesquisa que em essncia uma prtica metodolgica. Defino a
metodologia da pesquisa como um processo de tomada de decises e de opes
pelo investigador que estruturam a investigao em nveis e em fases, cujas
operaes metodolgicas se realizam num espao determinado que o espao
epistmico.1
Portanto, o ponto de vista que rege estas consideraes metodolgico lato
sensu, isto , interno ao fazer cientfico e onde elas se confundem com a reflexo
epistemolgica. Dois pontos devem ser destacados de antemo neste enfoque. O
primeiro que a epistemologia tomada na tradio bachelardiana, no plano dodesenvolvimento histrico da cincia e no nvel operatrio, do aqui e do agora,
isto , como prtica metodolgica, entendendo que a reflexo epistemolgica
opera internamente prtica da pesquisa. Dito de outra maneira, os princpios de
cientificidade operam internamente prtica cientfica, uma vez que a crtica
epistemolgica que rege os critrios de validao interna do discurso
cientfico, que so firmados de acordo com os requerimentos especficos de uma
cincia em um determinado momento de seu desenvolvimento. O segundo ponto
que esta perspectiva epistemolgica deve necessariamente envolver critrios de
validao externa, apoiados na crtica feita pela sociologia da cincia ou do
conhecimento. Como diz Bourdieu (1999, p.87), " na sociologia do
conhecimento que se encontram os instrumentos para dar fora e forma crtica
1 Elaborei a noo deprtica da pesquisa como tomada de decises e de opes que se expressam em
nveis e fases metodolgicas e formalizei-a em um modelo para a pesquisa emprica em Comunicao(Lopes, 1990). A partir desse modelo, fui realizando atualizaes crticas sobre o estado da questo dapesquisa e do campo da Comunicao. Ver Lopes (1999, 2003, 2007).
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epistemolgica, revelando os supostos inconscientes e as peties de princpio de
uma tradio terica."
Entendo, assim, a prtica da pesquisa como prtica epistmica sobredeterminadapelas condies sociais de sua produo, que so as que regem o funcionamento
do campo cientfico ou intelectual tout courtdentro de uma sociedade numa dada
poca. E, igualmente, como prtica que possui uma autonomia relativa
sustentada por uma lgica interna de desenvolvimento e de autocontrole de
operaes metodolgicas, o que impede que ela se converta numa mera caixa de
ressonncia de normas externas e, portanto, em discurso totalmente ideolgico.
So, portanto, duas lgicas que se inserem na estrutura de qualquer pesquisa, um
tempo lgico, regido pela epistemologia e a metodologia cientfica e por um
tempo histrico, regido pela sociologia da cincia ou do conhecimento2. Ao final,
a prtica da pesquisa concebida como um campo de foras, submetida a
determinadosfluxos e exigncias internas e externas do conhecimento.
Essa concepo de epistemologia inscrita nas prticas de pesquisa faz com que
ela seja incorporada como um nvel ou instncia metodolgica de toda pesquisa.
O que leva a criticar e lamentar o descaso pelas questes epistemolgicas nas
pesquisas empricas de Comunicao, fruto da deficiente formao em pesquisa e
da herana de uma razo instrumentalizada de cincia, possivelmente a mesma
que identifica a Comunicao como cincia social aplicada na classificao
institucional em que seus estudos so rubricados.
2. Reflexividade como prtica social e prtica epistmica
Pedra angular da epistemologia, a reflexividade tem sido, desde sempre,
entendida como crtica da cincia, cincia da cincia, ou metadiscurso cientfico.
O carter reflexivo da prtica da pesquisa algo natural (no h cincia sem
reflexo) e o exerccio da reflexividade indispensvel para criar a atitude
2 Sobre a natureza dessas duas temporalidades, ver Goldschmidt (1963).
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consciente e crtica por parte do pesquisador quanto s operaes metodolgicas
que realiza ao longo da investigao. tambm o questionamento constante a
que deve submeter a construo, a observao e a anlise de seu objeto de
pesquisa. Essa reflexividade permanente, cultivada por parte do pesquisador,tende a tornar-se disposio intelectual possvel de internalizar-se e constituir-se
em habitus cientfico3. Como pretendo sustentar e demonstrar adiante, esse
habitus de natureza hbrida, combinando relaes de objetivao e relaes de
subjetivao do pesquisador na construo de seu objeto de estudo.
, portanto, na juno das noes de prtica da pesquisa e de habitus intelectual
que me proponho a discutir aqui aspectos da questo da reflexividade, que
considero fundante e prvia a qualquer discusso dos obstculos
epistemolgicos, dentro da pesquisa emprica, em geral, e na Comunicao, em
particular.
2.1. O longo percurso do conceito de reflexividade
interessante notar a ausncia de trabalhos atualizados sobre o conceito de
reflexividade, no obstante ele cumprir um papel decisivo no pensamento
ocidental, como demonstra Domingues (2002). De uma forma ou de outra, esse
conceito sempre apareceu associado ao que Descartes consagrou como o cogito,
ou seja, a capacidade da conscincia de pensar-se a si mesma. o papel da
razo, em geral abstrata, desvinculada da corporalidade e da experincia ou, ao
menos, superior e contraposta a estas. Por isso, no pensamento filosfico
3 Segundo Bourdieu, todo campo cientfico se apresenta como conjunto de recursos cientficos herdadosdo passado que existem em estado objetivado sob forma de instncias de consagrao (academias,prmios), publicaes, instituies de ensino etc., e no estado incorporado sob forma de hbitoscientficos, sistemas de esquemas gerados de percepo, de apreciao e de ao, que so o produto deuma forma especfica de ao pedaggica e que tornam possvel a escolha dos objetos, a soluo dosproblemas e a avaliao das solues. (1983, p.137). Fica assim notado o processo de socializao dosestudiosos dentro de uma prtica de conhecimento estruturada, atravs da qual se forma tanto o habituscientfico quanto a figura do intelectual coletivo, isto , o conjunto dos produtores do conhecimento queafirmam sua autonomia da influncia externa ao campo cientfico. Ver tambm Bourdieu e Wacquant(1992).
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clssico, a reflexividade apresentou-se quase como um sinnimo de razo. O
idealismo alemo assim a empregou, seguindo os passos do prprio Descartes.
Kant, Hegel e Husserl foram marcos fundamentais na evoluo do pensamento
sobre a reflexividade, conceituada em termos eminentemente racionalistas. Osculo XX, atravs do pragmatismo, da psicanlise, de Wittgenstein, e mesmo de
certas correntes da fenomenologia, buscou elaborar alternativas a essa
perspectiva, com sucesso variado. Ainda que demonstrando a importncia da
"vivncia" ou experincia diante da reflexo, Husserl foi um dos ltimos
grandes filsofos clssicos a retomar o conceito na acepo racionalista (e
dualista) e no que tange prpria teorizao da reflexividade. Essa concepo
implicou, ademais, uma aguda separao entre sujeito e objeto, com o primeiro
tendo de se converter absoluta e claramente no segundo para que a reflexo
pudesse ter lugar. assim que esse conceito foi legado poderosa tradio
fenomenolgica contempornea, de Heidegger e Sartre.
No campo das cincias sociais, a sociologia reintroduziu em larga medida essa
abordagem em seu arcabouo conceitual. Schutz (1932 [1979]) abraou
decisivamente essa perspectiva, incorporando-a sua noo de "mundo da vida".
Entretanto, influenciado fundamentalmente por Weber, Schutz elaborou uma
definio e uma tipologia da ao social que reproduziam precisamente os
mesmos problemas que se pode encontrar na matriz racionalista ocidental. Mead
(1930 [1962]), autor que se acha no centro do pragmatismo norte-americano,
avanou no sentido de elaborar uma concepo bastante distinta da
fenomenolgica, ao referir-se atitude analtica e autocontrolada do sujeito navida cotidiana e em tarefas, por assim dizer, banais. Deve-se a ele a crtica
concepo da experincia que no se mostra capaz de se tematizar em seu
prprio curso e faz notar que a espontaneidade e conscincia no seriam opostos.
Entretanto, ser com Giddens (1991,1997) e com Beck (1992, 1997) que o
conceito dar passos importantes para superar as limitaes desse ngulo
tradicional e estreito. Em suas obras sobre a modernidade reflexiva e a sociedade
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de risco, a reflexividade passa a ter por objeto a prpria condio moderna de
existncia. Segundo esses autores, a premissa clssica de uma teoria da reflexo
da modernidade poderia ser resumida em: quanto mais as sociedades so
modernizadas, mais os sujeitos adquirem capacidade de refletir sobre ascondies sociais de sua existncia e, assim, modific-las. No entanto, o conceito
por eles introduzido de modernizao reflexiva no implica (como pode sugerir o
adjetivo reflexivo) reflexo, mas antes reflexividade. Esta diz respeito
autoconfrontao com os efeitos da sociedade do risco" (Beck, 1997, p.16), isto
, aos efeitos colaterais sobre os quais no temos controle nem dos quais com
freqncia temos conhecimento.
Para o que interessa aqui, necessrio notar a diferena entre os dois autores em
relao reflexividade praticada pela cincia e pelas pessoas comuns na
sociedade moderna. Para Beck, a autoconfrontao como condio do homem
moderno deve ser claramente distinguida do aumento do conhecimento e da
cientificao no sentido de ela implica uma autorreflexo (mesmo crtica)
sobre a modernizao da sociedade. Por outro lado, para Giddens, a autoridade
especfica que a cincia um dia desfrutou e que se transformou numa espcie
de tradio s poderia ser protegida na medida em que houvesse um isolante
separando a especializao cientfica das diversas formas de possibilidade de
conhecimento das populaes leigas. O que o leva a apontar para o lugar-comum
em que se tornou o fato de os especialistas discordarem entre si, e mais que isso,
a reivindicao de legitimidade universal da cincia ter se tornado muito mais
discutida do que antes (1997, p. 221).
Na esteira do debate desses autores acerca da reflexividade expandida na
sociedade como uma das conseqncias da modernidade (abalo da confiana e
da tradio, progresso do risco e da incerteza, diversidade de conhecimentos),
eu diria que possvel afirmar que as tenses entre as diversas interpretaes da
cincia e as formas alternativas de reivindicao de conhecimento podem ser
reconhecidas tanto na ambivalncia da modernidade feita de otimismo e
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negatividade do Iluminismo, como aponta Bauman (1999), quanto nas lutas pela
hegemonia ao lado dos domnios da cincia ortodoxa, que caracterizam as
estratgias de subverso no campo cientfico, como nota Bourdieu (1983).
Assim, creio ser possvel avanar um conceito de reflexividade capaz de abarcar
a multidimensionalidade de suas articulaes com a vida social e com os
processos mentais e subjetivos individuais. Na maioria das vezes uma
reflexividade prtica que se acha em pauta, mas nem por isso menos
significativamente orientada e variavelmente autorreferida, a partir da qual
"escolhas" so feitas, caminhos so traados e rumos de vida, tomados.
A reflexividade mostra-se, assim, um vasto territrio, permeado por enfoques que
recobrem diversos e dspares contedos, evidenciando nfases distintas ao longo
da histria e da prpria contemporaneidade. Portanto, necessria uma
conceituao que rompa com o racionalismo, no com a inteno de recus-lo,
mas de reservar-lhe o espao empiricamente adequado.
Trazendo essas digresses para dentro da esfera do conceito de reflexividade que
estou adotando, seria possvel identificar no interior de qualquer processo de
pesquisa cientfica uma reflexividade prtica, caracterstica da maior parte da
vida, aes e movimentos, e que compartilhada pelo especialista no seu meio
ambiente social (da ser possvel cham-la tambm de reflexividade social). E
igualmente, uma reflexividade epistmica ou racionalizante, especfica de
operaes especialistas. Consequentemente, em condies de reflexividadeepistmica possvel assumir uma postura que configura claramente uma relao
entre sujeito e objeto de conhecimento, condies essas que j no implicam a
retomada do dualismo radical da racionalidade cartesiana.
3. Reflexividade epistmica na pesquisa: ruptura e construo de
conhecimento
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Seguindo os passos de Bachelard4, as condies da gnese das teorias devem ser
entendidas histrica e socioculturalmente. A perspectiva terica adotada na
anlise da sociedade e da cultura sempre entendida como um componente doprprio fenmeno que objeto do estudo. Resulta da que a reflexividade
epistmica praticada ao longo do processo de pesquisa incide e decide sobre o
ajustamento entre o sujeito e o objeto de conhecimento. Ela pode ser traduzida
atravs do exerccio permanente da vigilncia, da crtica e da autorreflexo sobre
os todos os atos da pesquisa em andamento.
Tratarei aqui de dois atos de reflexividade epistmica que, a meu ver, so prvios
a qualquer considerao sobre os obstculos epistemolgicos dentro da pesquisa
emprica em Comunicao.
4 Como afirmei, a concepo de epistemologia aqui adotada marcadamente bachelardiana. (VerBachelard, 1938 [1996]; 1949 [1977], 1951[1975]. Dois eixos de sua extensa obra interessa destacar aqui:1) a relao da razo cientfica com a empiria, ou seja, com a condio de romper com a razo do senso
comum; 2) a concepo de epistemologia histrica que implica a cincia como um fato histrico,cultural e coletivo produzido por mentes individuais. Seguem alguns excertos esclarecedores.A fenomenologia no alcana o momento do racionalismo dos conceitos, o instante da nova conscincia,onde o racionalismo subitamente nega a histria da aquisio das idias para designar e organizar asidias constitutivas. Enquanto o pensamento cientfico toma conscincia desta tarefa de essencialreorganizao do saber, a tendncia a inscrever os dados histricos primitivos aparece como umaverdadeira desorganizao. A tomada de conscincia racionalista pois nitidamente uma novaconscincia. uma conscincia que julga seu saber e que quer transcender o pecado original doempirismo. (...) O conhecimento comum j no pode ser, no estado presente do saber cientfico, mais queum territrio provisrio, um territrio pedaggico para por a coisa em marcha, para dividir em pedaos.Uma doutrina da cincia desde j essencialmente uma doutrina da cultura e do trabalho, uma doutrinada transformao correlativa do homem e das coisas (1975, p.9).O vnculo indissocivel entre o esprito trabalhador e matria trabalhada presente no materialismo
racional e no racionalismo aplicado exige o abandono das tradies filosficas aliceradas no realismoingnuo, que remete o pensamento apenas ao mundo sensvel, fortalecendo a crena de que oconhecimento cientfico cpia fiel do que se apresenta ao pesquisador. Em contrapartida, a cincia dehoje factcia, rompe com a natureza para construir a tcnica. Constri uma realidade, esculpe a matria,d finalidade s coisas dispersas (1975, p.10).(...) o esprito cientfico deve necessariamente psicanalizar o pensamento ntimo, carregado deindividualidade, responsvel por condicionar o trabalho de reconstruo e reorganizao racional. Ainspirao que provm dos valores da imaginao, portanto essencialmente individual, pode acumulargrandes efeitos de entusiasmo que afastam a cincia da objetividade (1975, p.11). Logo, a valorizao dotrabalho coletivo acentuada por Bachelard, em detrimento da pesquisa isolada que denuncia os falsosvalores enraizados na esfera da individualidade, fontes de constantes erros e obstculos, verdadeirosentraves ao avano do pensamento. Bachelard coloca em relevo o carter social da cincia, ressaltando-acomo fruto de um empreendimento coletivo, em oposio imagem que acentua a cultura cientfica como
resultado de uma atividade realizada por mentes solitrias .
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O primeiro a ruptura epistemolgica, ato de importncia capital, pois marca a
conscincia da distncia entre o objeto real e o objeto de cincia. No cabe nos
objetivos deste artigo aprofundar a espinhosa questo da relao entre cincia e
conhecimento comum e o tratamento dado reflexividade prtica na pesquisaemprica . Porm, quer se trate apenas de uma ou mais rupturas (Santos, 1989) ou
da necessidade de mergulhar no "saber local" (Geertz, 2001), e apesar de toda a
polmica epistemolgica que essas questes implicam, creio que acima de tudo,
preciso criticar a "cincia espontnea" (Bourdieu, 1997). A predisposio de
tomar, como dados, objetos pr-construdos pela lngua comum um obstculo
epistemolgico amplamente notado nas pesquisas empricas em Comunicao.
Pode decorrer da o efeito de obviedade que se tem diante de muitas delas. A
reflexividade epistmica alerta para a iluso de transparncia do real, fixa o plano
da cincia como plano conceitual (que exige o trabalho dos e com os conceitos)
e, principalmente, revela que o objeto no se deixa apreender facilmente, uma
vez que regido por uma complexidade constitutiva que o torna opaco e exige
operaes intelectuais propriamente epistemolgicas e tericas para a sua
explicao.
O segundo ato de reflexividade epistmica incide sobre a construo do objeto
de pesquisa. O objeto um sistema de relaes expressamente construdo, uma
vez que o objeto no dado, mas construdo. construdo pelo investigador
atravs de um longo processo de objetivao que percorre toda a pesquisa, desde
a escolha do problema para estudo, seu recorte e estruturao, passando pelos
procedimentos tcnicos de coleta dos dados e chegando sua explicao outeorizao. A objetivao aqui definida como pensamento autorreferencial que
incide sobre as teorias, mtodos e de tcnicas usados na pesquisa, pois ela
explicita enquanto estes conquistam, constroem e constatam o objeto de estudo.
Tem-se assim a base epistemolgica de elaborao do objeto emprico e do
objeto terico da pesquisa, base essa que permite submeter interrogao
sistemtica os aspectos da realidade postos em relao por um conjunto de
problemas tericos e prticos que demandam conhecimento. Os pressupostos ou
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as respostas antecipadas a essas questes constituem o corpo de hipteses da
pesquisa que devem estar presas conceitualmente problemtica terica
envolvida. Uma vez que os aspectos ou fatos da realidade no so dados, estes,
quando obtidos atravs das tcnicas de investigao, j implicam em supostostericos. A crtica epistemolgica das tcnicas deve ser feita j na prpria
construo do objeto rompendo com a tradicional viso da "neutralidade
axiolgica" das tcnicas e passando a tom-las pelo que so, isto , teorias em
ato, conforme tratarei adiante. Como se v, o nvel ou a dimenso
epistemolgica na prtica da pesquisa no algo abstrato, mas se traduz
concretamente por operaes de vigilncia sobre o conhecimento que se est
produzindo. Em outros termos, a reflexividade epistmica permanente e incide
sobre todas as etapas do processo de pesquisa.
4. Reflexividade epistmica como objetivao das relaes de
conhecimento
na pesquisa
Fruto da orientao acima designada como racionalista, sempre esteve claro para
mim, enquanto pesquisadora, que a objetividade do conhecimento nas cincias
humanas nunca poderia ser procurada na possibilidade de no influenciar o
objeto, pois este sempre construdo pela razo de quem observa atravs do uso
de mtodos e tcnicas de pesquisa e pela relao social entretida por esse
observador com o objeto.
Julgo que a melhor resposta ao problema da objetividade est no fato de no a
opor subjetividade, considerando que os esforos de teorizao e conceituao
da linguagem cientfica e de validao das hipteses construdas um processo
continuado de objetivao da subjetividade. Este esforo de objetivao, como
processo e no como definio esttica, tende a assumir a forma de projeto de
uma cincia da cincia, como por exemplo, para Morin (1994) e Bourdieu
(1992). Mas, ele tambm pode ser concretizado, como aqui tento mostrar, dentro
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de uma perspectiva de reflexividade epistmica, onde habitus e prticas
cientficas tomam como processo de validao interna5 de uma cincia a
teorizao do prprio ato da observao, explicitando as condies e interaes
sociais que presidem determinada pesquisa emprica.
Um modo de refletir epistemologicamente sobre o processo de observao ser
capaz de entender e de comunicar a diferena cultural entre sujeito e objeto da
investigao (Thiollent, 1980, pp.15-133). Trata-se de advogar, tal como as
correntes racionalistas, a necessidade de exercer o papel crtico da cincia de
ruptura com o senso comum, embora agora por outra via que no apenas a da
teoria (o que caracterizaria teoricismo). Trata-se da ruptura epistemolgica pela
via da experincia do trabalho de campo, em que so relativizados,
simultaneamente, o senso comum do informante e o ponto de vista cientfico do
pesquisador, tentando assim abarcar todas as marcas de etnocentrismo, inclusive
cientfico. Segue-se que a adoo da perspectiva da interculturalidade no
processo investigativo tende a diminuir as desigualdades de poder simblico e
cultural entre os especialistas e os leigos, partindo do pressuposto que a
construo do investigador coletivo que no exclua do campo cientfico o
senso comum dos prticos, no apenas um ato de vontade negociada. Supe a
teorizao da relao social de investigao, isto , implica em compreender a
estrutura dessa relao e em saber identificar aes alternativas que permitam
evitar a reproduo automtica das desigualdades simblicas no trabalho de
campo, criando condies de intervir sobre a estrutura da relao social que
criada. (Bourdieu, 1997, pp. 693-732).
Uma vez que a parcialidade terico-ideolgica do pesquisador submetida ao
crivo da ruptura epistemolgica por meio da objetivao da experincia do
trabalho de campo, possvel evitar obstculos ao conhecimento, comumente
encontrados nas pesquisas empricas em Comunicao, entre os quais possvel
citar: (1) o vcio teoricista de pressupor a passividade do objeto de investigao,
5 Conforme referi p. 2.
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uma vez que o pesquisador acaba por lhe impor a sua viso do mundo,
transformando a influncia sobre o objeto na incapacidade de entender o outro;
(2) o vcio etnocntrico de confundir o desejo sobre o que a realidade deve ser
(resultante de valores do pesquisador) com o que , levando a sobrevalorizar opeso e a importncia tanto de condutas sociais crticas como no-crticas.
Mais concretamente, na prtica da pesquisa, penso que a perspectiva de
relativizao da parcialidade terico-ideolgica, permite superar o teoricismo
racionalista desde que o ato epistemolgico de construo do objeto seja
condicionado s seguintes orientaes: (1) os modelos de anlise (os constructos
tericos-empricos-hipotticos) no podem resultar apenas de uma
problematizao terica prvia, devendo ser reelaborados quando nos
encontramos em campo, isto , quando entramos em comunicao com o
objeto e passamos por uma confrontao com a diferena; (2) as construes
terico-interpretativas, dependentes de um trabalho de conceituao cientfica,
no podem opor-se s construes interpretativas comuns dos atores sociais, pois
estas ltimas (as construes simblicas locais) funcionam como indicadores
de postulados tericos mais abstratos que permitem comparar e sistematizar
conhecimentos sobre diferentes contextos sociais.
Nesse quadro, criam-se condies para que as teorias sociais estejam prximas
no s dos investigadores, sem se limitarem apenas s construes simblicas
dos atores sociais, mas tambm da j referida capacidade de reflexividade prtica
ou social dos atores sociais comuns, admitindo que estes decidam incorporarinterpretaes cientficas por serem adequadas e plausveis face conscincia
prtica que j tm sobre os seus contextos de vivncia. Esta adequao e
plausibilidade contribuiro para que atores sociais comuns integrem os produtos
de conhecimento cientfico sua viso de mundo, ultrapassando as limitaes
dos saberes construdos apenas no cotidiano (Giddens, 1989).
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Deve ser lembrado que uma forte crtica ao normativismo do mtodo, est em
introjetar a relao social de investigao numa perspectiva que permita ao
pesquisador objetivar e compreender as condies sociais da
observao/inquirio do social.
4.1. Reflexividade e relaes de conhecimento
As prticas reflexivas que discuti anteriormente enfatizaram especificamente a
relao entre o Sujeito (investigador) e o Objeto (investigado) na pesquisa, ao
passo que as abordagens epistemolgicas tradicionais restringiram seu foco na
relao epistmica entre o Objeto e o Conhecimento. Diversamente, adoto a
reflexividade epistmica aggiornata s condies de conhecimento da
contemporaneidade que toma a objetivao da relao entre sujeito e objeto
como principal objeto de anlise. Esta posio encontra ressonncia em trabalhos
como os de Bourdieu (1992, 1995) que defendem que a objetivao da relao
objetivada do sujeito e objeto a condio epistemolgica do conhecimento
cientfico social. Uma maneira de esclarecer essa contribuio de Bourdieu para a
epistemologia da cincia social e, portanto, da Comunicao, conceber os
requisitos do conhecimento compreendendo trs relaes interconectadas, porm
analiticamente distinguveis: a relao social entre o sujeito (coletivo) e o
conhecimento (campo); a relao epistmica entre o conhecimento (campo) e o
objeto (estudo); e a relao objetivada entre o sujeito (coletivo) e o objeto
(estudo). o que se mostra na Figura 1.6
6 Inspirada pela leitura de Maton (2000).
Sujeito (A)
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Figura 1: Trs relaes de conhecimento na produo da cinciasocial
A figura acima representa o conhecimento na perspectiva do relacionismo
proposta por Bourdieu. As posies ocupadas no campo por A, B e C esto em
relao entre si. A principal inovao do autor colocar nfase na objetivao
das relaes de conhecimento. Em seus prprios termos, a reflexividade
epistmica deve ser epistemolgica, coletiva e fundamentalmente
antinarcisstica (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.72). 7 Em segundo lugar, a
anlise das relaes coletivas objetivadas so, para Bourdieu, um
empreendimento coletivo conduzido por um campo cientfico como um todo.
No se trata simplesmente de uma prtica individualizada da pesquisa, mas da
incluso de uma teoria da prtica intelectual como componente integral e
condio necessria para uma teoria crtica do conhecimento. Portanto, ambos o
sujeito e o objeto de conhecimento so antes figuras coletivas (o campo cientfico
7 A reflexividade individualstica compreende a autorreflexo crtica sobre a histria do autor, sua posio
social e suas prticas no campo cientfico. Deste modo, a reflexo autobiogrfica includa na pesquisa,com a condio de no usurpar o objeto de estudo em benefcio do autor, o qual, assim fazendo, corre orisco de ele prprio se tornar o objeto de estudo.
Relao
Social
Conhecimento(C)
Objeto(B)
RelaoEpistmica
Relao
Objetivada
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como um todo) do que indivduos. Esta anlise reflexiva coletiva das relaes
coletivas objetivadas, segundo Bourdieu, que prov fundamentalmente a base
epistemolgica para o conhecimento cientfico social.
Como sabido, o conhecimento submetido aos processos de autoridade e de
reconhecimento por outros investigadores do campo e resultar na sua
socializao e referencializao. o que, guardando analogia com outros
conceitos de capital de Bourdieu, poderia ser chamado de capital epistemolgico
do campo. Este seria, ento, o resultado do papel das instituies do campo
(revistas, comits, titulaes) para a sua autonomia interna, implicando na busca
no apenas por recursos e status, mas tambm por lucros epistmicos. As
formaes epistmicas em toda cincia tm sido o resultado dos
atendimentos/respostas de um campo s exigncias prprias do conhecimento e
dos habitus intelectuais moldadas pelo prprio campo. O desenvolvimento de um
campo cientfico, ento, sempre o resultado da dupla combinao dos interesses
sociais e interesses cognitivos na acumulao tanto de capital simblico como de
capital epistmico.
4.2. Reflexividade sobre o trabalho de campo como situao de
comunicao e categoria de anlise
A fim de fechar o foco no plano mais concreto de anlise sobre a reflexividade,
voltarei a ltima parte deste trabalho experincia emprica de campo.
Considero o trabalho de campo como elemento fundante da pesquisa emprica.
Trata-se de uma experincia insubstituvel para o pesquisador, aquilo que s se
aprende fazendo, quando ele entra em interao com os fenmenos sob estudo
em seu contexto natural. Entretanto, a despeito da nfase dada pelas cincias
humanas ao estudo emprico de fenmenos sociais, isto , submetidos
observao nas situaes naturais de ocorrncia (in situ) necessrio
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desnaturalizar o trabalho de campo. A reflexividade epistmica no trabalho de
campo se traduz no que chamarei de esforos de desnaturalizao e de
objetivao das condies sociais em que sujeito e objeto de pesquisa esto
envolvidos. Tratarei aqui de dois aspectos constantes dessa reflexividade.
Reflexo epistmica 1: Desnaturalizao do trabalho de campo atravs de
crtica falsa neutralidade das tcnicas
A assuno de que o objeto de cincia no dado, mas construdo atravs de
teorias (e seus conceitos) e de mtodos (e suas tcnicas), exige do investigador a
mais bsica e talvez por isso mesmo, a mais difcil disposio atitudinal (ou
habitus) que a permanente vigilncia epistemolgica, ou seja, o uso da
reflexividade epistmica aplicada ao conhecimento que est produzindo.8 O
frgil domnio metodolgico revelado nas pesquisas empricas de Comunicao
reflete-se imediatamente no descaso ou na ausncia da crtica sobre as tcnicas de
pesquisa empregadas . A iluso de que sejam epistemologicamente neutras tanto
as tcnicas como os procedimentos de coleta de dados leva facilmente aos
automatismos com que so elaborados. Nas pesquisas no se procura por uma
teoria do questionrio9 como se procura por uma teoria da recepo ou uma
teoria do discurso. Entretanto, no existe coleta de dados sem pressupostos
tericos, ou seja, na feliz expresso de Bourdieu , as tcnicas so teorias em ato.
A medida e os instrumentos de medio e, de forma geral,todas as operaes da prtica da pesquisa, desde aelaborao dos questionrios e a codificao at a anlise
estatstica, constituem outras tantas teorias em ato,enquanto procedimentos de construo, conscientes ouinconscientes, dos fatos e das relaes entre os mesmos(1999, p.53).
Quanto menos consciente for a teoria implcita em determinada prtica teoria
do conhecimento do objeto ou teoria do objeto maiores sero as possibilidades
8 o que d base para o programa do racionalismo aplicado de Bachelard (1977), segundo o qual o objeto
cientfico se conquista (ruptura com o conhecimento do senso comum), se constri (atravs de quadrostericos e estratgias metodolgicas) e se constata (mediante o teste de hipteses).9 Sobre a teoria do questionrio, ver Thiollent (1980) e Bourdieu (1973[1980]).
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de que ela seja mal controlada, portanto, mal ajustada ao objeto em sua
especificidade.
Ao designar por metodologia, como acontece frequentemente, o que no passamde declogos de preceitos tcnicos ou prticas automatizadas, escamoteia-se a
questo metodolgica propriamente dita que a escolha entre as tcnicas de
pesquisa (quantitativas, qualitativas, combinadas) com referncia significao
epistemolgica que elas carregam. Quase sempre, apresentam-se apenas as
tcnicas escolhidas e sua justificativa a posteriori, quando os dados empricos j
foram colhidos e construdos, geralmente com um baixo grau de conscincia
quanto s dimenses epistemolgicas implicadas. Entendidas as tcnicas como
instrumentos neutros, naturalizados, facilmente intercambiveis, a reflexividade
sobre elas dbil exatamente por envolverem operaes tcnicas, isto ,
supostamente no valorativas.
Refexo epistmica 2: Objetivao da relao comunicacional no contexto
da pesquisa de campo10
O trabalho de campo um trabalho no campo da cincia, constitudo por
complexos contextos de interao que envolvem distintas dimenses e aspectos
dentre os quais sobressai a posio dos interlocutores colocados em
comunicao. Essa posio no natural ou espontnea, mas uma relao de
conhecimento, em que um dos sujeitos o pesquisador e o outro o pesquisado,
que foram colocados em interao por um interesse objetivo que o de umconseguir informaes do/sobre o outro. Um dono de um saber especializado,
outro, de um saber prtico ou que de interesse desse outro. Para que essas
posies no campo - bem como as expectativas individuais, experincias e
relaes prvias dos sujeitos e dos recursos materiais e simblicos que
10 Mesmo quando no ocorre relao social no trabalho de campo, isto , quando este no envolve outras
pessoas alm do pesquisador, as questes sobre reflexividade e objetivao que orientam os argumentosneste tpico, valem igualmente para o trabalho de campo que possui como universo de pesquisa umcorpus de textos.
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intermediam essa relaose tornem objeto de reflexo epistmica por parte do
estudioso, necessrio que ela recaia sobre o carter situacional e dinmico dessa
relao de interlocuo.
Entender o trabalho de campo formado por situaes de comunicao implica
assumir uma posio metodolgica que o define como um campo dinmico de
relaes, no qual se delineiam diversas estratgias discursivas e de ao por parte
dos atores envolvidos, configurando processos de negociao, colaborao e
resistncia que incidem na coleta dos dados e nos resultados de sua anlise. Este
deveria ser um entendimento bsico, mas no , visto que os processos de
comunicao envolvidos no trabalho de campo raramente so referenciados e
tomados como objeto de reflexo epistmica em toda sua complexidade.
Essa proposta de anlise relacional do trabalho de campo est baseada em uma
reapropriao da categoria etnogrfica de situao social formulada por
Gluckman (1987) como sendo um conjunto de configuraes e interrelaes
entre diversos grupos e elementos culturais que comportam tanto conflitos e
tenses quanto formas de cooperao e comunicao, os quais
determinam/modificam o comportamento e participao individual de cada
agente envolvido no trabalho etnogrfico. Assim, cada situao social conforma
um padro de interdependncia integrado e conflitivo ao mesmo tempo, em que
intervm ao menos trs elementos: um conjunto limitado de atores sociais, as
aes e comportamentos desses atores e um evento ou conjunto de eventos que
referencia a situao social a um determinado momento. Essas formulaes,retomadas e aplicadas anlise das condies de produo dos dados empricos,
permitem definir o trabalho de campo como situao social.
Deste modo, elementos textuais e contextuais do trabalho de campo adquirem
particular importncia para a reflexo sobre as condies de produo de
conhecimento. Sua problematizao permite, por exemplo, pensar como as
posies sociais dos interlocutores condicionam as propriedades dos discursos
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circulantes e incidem nos acordos e resultados alcanados. As situaes de
comunicao possuem uma dimenso subjetiva enquanto os interlocutores esto
habilitados e se reconhecem mutuamente como agentes com capacidade de
produzir sentido, desenvolvendo procedimentos de interpretao que intervm nanegociao para um acordo intersubjetivo, sempre provisrio e, portanto,
dinmico. A situao de contato destaca a diversidade de formas de comunicao
expressa em diferentes modos de falar, gesticular, olhar, vestir, etc.
A reflexividade, que sinnimo de mtodo, permite perceber e controlar no
campo, a prpria conduo de uma entrevista, por exemplo, isto , perceber o
campo em que ela se realiza. Uma comunicao consciente da violncia
simblica e contrria a formas autoritrias de interveno cientfica ponto de
partida, no sentido do pesquisador ter em vista a dessimetria das posies
ocupadas na situao social de entrevista. Mais, essa situao quase sempre se
faz acompanhar por uma dessimetria social quando o pesquisador ocupa uma
posio superior ao pesquisado pela posse de um capital, especialmente o capital
cultural e em particular o capital lingstico. A fim de reduzir ao mximo a
interveno arbitrria que est presente desde o princpio ao se apresentar a
pesquisa, deve-se procurar instaurar uma relao de escuta ativa e metdica, to
afastada da pura no-interveno da entrevista no-dirigida e dos relatos
autobiogrficos das histrias de vida, quanto do dirigismo do questionrio e da
entrevista roteirizada.11 Essa postura, de aparncia contraditria, no fcil de se
colocar em prtica. Nas palavras de Bourdieu,
Ela [essa postura] associa a disponibilidade total doentrevistador em relao pessoa interrogada, a submisso singularidade de sua histria particular, que podeconduzir, por uma espcie de mimetismo mais ou menoscontrolado, a adotar sua linguagem e a entrar em seuspontos de vista, em seus sentimentos, em seuspensamentos, com a construo metdica, forte do
11 Sobre a crtica ao condutivismo do questionrio e s diversas modalidades de entrevista, ver Thiollent(1980, pp. 31-99).
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conhecimento das condies objetivas, comuns a toda umacategoria (1997, p.695). 12
Muitos relatos relevantes dos entrevistados para os objetivos da investigao
costumam emergir mais dessa experincia reflexiva sobre o trabalho de campo
do que de entrevistas previamente formatadas. Porm, a confiana no outro e o
compromisso mtuo no processo de pesquisa no se consegue de maneira
imediata: a construo de um padro de interao tem historicidade, que
compreende tanto a micro-historicidade da relao de interlocuo de uma
pesquisa especfica como a macro-historicidade da relao estrutural
pesquisador-pesquisado, e combina interesses, sistemas de representao,
expectativas e afetos.
Desta maneira, longe de reduzir a relao de conhecimento ou epistmica
mera transmisso de informao, o trabalho de campo configura um espao de
interao de diferentes finalidades e sistemas de representao em que se pe em
jogo no somente o interesse acadmico e sua relevncia cientfica, mas,
igualmente, e de maneira cada vez mais acentuada, a necessidade decompreender a demanda dos outros construdos como objetos de pesquisa.
Ter em mente as implicaes do uso social da cincia, os acordos
intersubjetivos determinando ou modificando o comportamento e a participao
tanto do pesquisador como do pesquisado, do que se trata. Pois os espaos do
trabalho de campo so os espaos dos pontos de vista, das perspectivas mltiplas
do pesquisador e do pesquisado, e por isso mesmo, espaos difceis de
compreender e de descrever. nesse sentido que considero a dimenso comunicacional do trabalho de campo
como questo epistemolgica e categoria de anlise a serem explicitadas e
12 Como a retomar o seu trabalho etnogrfico inicial sobre os trabalhadores da Arglia em 1958, um
Bourdieu, talvez surpreendente para muitos, escreveu um texto reflexivo e sensvel sobre a explicitaodo mtodo utilizado no conjunto dos estudos de caso expostos em A misria do mundo, com o ttulo deCompreender (1997, pp. 693-732).
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objetivadas atendendo ao seu carter situacional e dinmico, produto da ao dos
sujeitos em interao.
5. Breve concluso
Todo desenvolvimento de uma cincia segue ao longo de embates travados pela
validao interna (construo de capital epistemolgico) e pela validao externa
(funo social do conhecimento) de seus resultados. Deste modo, guisa de
concluso deste trabalho, volto questo inicial da construo do objeto dentro
de um projeto de pesquisa para a colocar a indagao sobre a pertinncia do
problema com que se inicia uma pesquisa e sua problemtica terica, isto , sobre
a importncia social do objeto emprico e a relevncia do objeto terico da
pesquisa.
Trata-se da indagar sobre a justificativa da importncia social que costuma ser
imputada ao objeto da pesquisa, como se bastasse algo ser pesquisado para que
sua importncia se sucedesse. Ao contrrio, a justificativa j deveria trazer a
marca do compromisso do investigador com os problemas que necessitam ser
pesquisados, com as perguntas importantes a ser feitas hoje, aqui e agora. So
as opes sobre quais temas pesquisar que, a meu ver, devem ser as mais
conscientes possveis, declaradamente assumidas, e que, no entanto, no podemser respondidas pela cincia porque so opes valorativas, isto , polticas,
dependentes de uma weltanschauung, da concepo de mundo do pesquisador. E
a, talvez, devesse ser perguntado at que ponto esto sendo renovadas as
"utopias fundantes" dos estudos de Comunicao na Amrica Latina e estudados
os campos estratgicos de estudo apontadas por Martn-Barbero (2009,
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p.147).13 Intelectuais e estudos comprometidos com a transformao de nosso
contexto renovadamente contraditrio, ambivalente, desigual, que j nos valeu
denominaes como terceiro mundo, pases dependentes, perifricos, e hoje,
emergentes, contexto a partir do qual toda investigao deve comear e com elamanter relaes de compreenso e de superao. Aqui, cabe a crtica ao modo
exgeno de pensar, atravessado por questes e temas deslocados, por novas
"idias fora do lugar". No se trata, porm, de nenhum provincianismo
intelectual, pelo contrrio, as razes da globalizao devem incitar-nos cada vez
mais a fazer aquelas perguntas-problema que tm relao vital com nossa
existncia social, que so tambm as que tm maior capacidade de apresentar
relevncia e pertinncia terico-epistemolgica, ou seja, de fazer avanar o
conhecimento no campo da Comunicao.
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13 Considero esse texto um modelo de autobiografia intelectual antinarcisstica marcada pela reflexividadeepistmica.
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