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  • 8/18/2019 Artigo - GUIMARÃES, Francisco Alfredo M. Professores Indígenas

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    Presente! revista de educação

    44Ano XVI - Nº 63

    ! Artigo

       F  o   t  o  :   L  u   i  z   Q  u  a  g   l   i  a

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    Francisco Alfredo M. Guimarães*

    Professores indígenas de todo o país

    estão vivenciando, através dessescursos, uma profunda mudança deparadigmas, principalmente no modocomo a pesquisa torna-se elementofundamental na formação, propici-ando o desenvolvimento de uma sériede projetos centrados em estudos decampo em suas aldeias.

    Presente! revista de educação

    45dez / 2008

    Professores indígenas: atores de pesquisa eautores de livros

    * Professor de História Indígena da UNEB, Mestre em educação (UFBA), formador e um dos coordenadores do MagistérioIndígena da Bahia e do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da UNEB. [email protected]

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    As sociedades indígenas na Bahia tiveramuma participação efetiva ao longo de todo pro-cesso de colonização, o que as pôs em contato

    estreito com diferentes agentes coloniais nasmais diversas frentes de expansão (madeireiras,agrícolas, pecuárias, mineradoras, entre outras).Quanto à educação escolar desses povos, sabe-se que foi baseada em modelo educacional queremonta ao período da formação dos aldeamen-tos missionários e da realização do trabalho decatequese ao longo dos séculos XVI e XVII. Desdeessa época, a oferta de educação escolar para ascomunidades indígenas esteve orientada por ummesmo princípio: a aniquilação da diversidade edas identidades étnicas indígenas.

    No diagnóstico realizado pela Universidadedo Estado da Bahia (UNEB), com base em levan-tamentos da Fundação Nacional de Saúde (FU-NASA) e da Fundação Nacional do Índio (FUNAI),consta que atualmente os povos indígenas na

    Bahia apresentam uma população aproximadade 22.212 pessoas de 14 diferentes etnias, coma seguinte distribuição:

    Extremo Sul: 7.799 indivíduos das etnias Pa-taxó e Tupinambá de Belmonte; Sul e Baixo Sul:6.120 indivíduos das etnias Pataxó Hã Hã Hãe(inclusive Baenã, Kamakã, Kariri-Sapuyá e Tupi-nambá do Caramuru) e Tupinambá de Olivença;

    Norte e Nordeste: 7.150 indivíduos das etniasAtikum, Kaimbé, Kantaruré, Kiriri, Pankararé,Truká, Tumbalalá, Tuxá e Xukuru-Kariri e Oeste:1.143 indivíduos das etnias Atikum, Kiriri, Panka-ru (Quinane) e Tuxá (UNEB, 2007).

    O Censo Escolar 2007 aponta a existência naBahia de 57 escolas (2,2% das escolas indígenasno Brasil) que atendem a 6.316 estudantes (oque representa 3,7% dos estudantes indígenasno país) de 12 etnias em seus próprios territórios,distribuídas em 21 municípios baianos. Dentreessas escolas, em que trabalham aproximada-mente 350 professores, sete estão vinculadasdiretamente à Secretaria Estadual de Educação ,as demais são mantidas por secretarias de edu-cação de 19 municípios. Apesar da despropor-

    cionalidade apresentada, é importante destacarque, independentemente da vinculação admi-nistrativa, todas as 57 escolas indígenas estão

    atreladas às Diretorias Regionais de Educação(DIRECs). Como a legislação federal define queessa modalidade de ensino é de responsabilida-de da esfera administrativa estadual, o que foiratificado em nosso estado através do Decreto8.471/2003, esses dados evidenciam a influênciaque as administrações municipais ainda exercemsobre as comunidades indígenas no campo edu-cacional.

    Sobre a modalidade/nível de ensino oferecidonas 57 escolas indígenas, o mesmo diagnóstico

    esclarece:(...) três oferecem apenas Educação Infantil,

    54 desenvolvem o Ensino Fundamental de 1ª a 4ªsérie, 22 o Ensino Fundamental de 1ª a 8ª série,sendo que quatro dentre estas últimas, além doEnsino Fundamental, oferecem o Ensino Médio- as Escolas Indígenas Pataxó de Barra Velha, Bocada Mata e Coroa Vermelha, ambas no município

    de Porto Seguro, e Pataxó Hãhãhãe no municípiode Pau Brasil (UNEB, 2007:12).

    Quanto à distribuição dos alunos por sériesna educação escolar indígena no estado da Bahia,em outro diagnóstico, a UNEB apresenta os se-guintes dados: 53,05% no Ensino Fundamental(primeira fase), 18,58% no Ensino Fundamental(segunda fase), 10,97% na Educação de Jovens

    e adultos, 3,78% no Ensino Médio e 13,58% naEducação Infantil. Os percentuais apresentadosevidenciam um fenômeno preocupante: a saídade jovens estudantes de suas respectivas aldeiaspara dar continuidade aos seus estudos emescolas não-indígenas, sendo assim “privadosde seus direitos com relação à educação esco-lar indígena específica e diferenciada em suaspróprias comunidades” (UNEB, 2008) – o que

     justifica a necessidade de ampliação das políticaspúblicas na área educacional e do ensino médionas aldeias para por fim ao êxodo de estudantesindígenas.

    Formação de professoresindígenas

    Em decorrência da promulgação da Cons-tituição Federal de 1988 (artigos 210, § 2º, e231), que redirecionou a orientação ideológica

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    do Estado, imprimindo novos conceitos e novaspráticas no seu relacionamento com os povosindígenas, em todo o país as escolas indígenas

    vêm passando por profundas transformações eassumindo um novo significado para seus povos:meio eficaz e legítimo para a garantia de acessoaos conhecimentos ocidentais, sem que para issotenham que deixar de lado suas riquezas culturaise lingüísticas. Várias experiências indicam quea consolidação da Educação Escolar Indígena,tendo como base a afirmação de uma concepçãopedagógica centrada na diferença, na especifi-cidade, no bilingüismo e na interculturalidade,constitui-se numa tarefa complexa, mas que,segundo Grupioni,

    (...) tem encontrado soluções muito diferentesem várias localidades do país, e para a qual não háum único modelo a ser adotado, vista a complexaheterogeneidade e diversidade de situações socio-

    lingüísticas, culturais, históricas e de formação eescolarização vividas pelos professores índios e porsuas comunidades (GRUPIONI, 2006:51).

    Para se atingir esse propósito, um dos obje-tivos explicitados na legislação vigente é de quedevam ser implementados programas de forma-ção inicial e continuada de professores indígenas,para que os mesmos possam assumir, de forma

    autônoma, a condução do processo educacionalem suas aldeias.

    Considerando a legislação nacional e as pres-sões do movimento indígena e indigenista poruma educação escolar específica e diferenciada,o processo de mudança no campo institucionaltem início na Bahia em 1996 com o oferecimen-to do Curso de Magistério Indígena, realizadonuma parceria entre a UNEB, UFBA, SEC, FUNAIe MEC. Em 2002, foram formados 96 professorese, em 2003, tivemos a abertura de uma novaturma com 108 professores de 13 etnias donosso estado, os quais ainda estão em processode formação. A proposta curricular desse cursoestá lastreada em

    (...) estudos sócio-antropológicos e pedagógicos,

    e baseada nos dispositivos legais construídos após aConstituição Brasileira de 1988, com ênfase na LDBde 1996 e seus desdobramentos. Em conformidade

    com esses dispositivos, adota a perspectiva daeducação escolar específica, diferenciada, interculturale comunitária, tão bem-detalhada no Referencial

    Curricular Nacional para as Escolas Indígenas - RCNEI/ MEC. (SEC, 2006, p. 6).

    Para consolidar esse processo de mudança,o Estado da Bahia, através do Decreto 8.471/03,criou a categoria de Escola Indígena no âmbitodo Sistema Estadual de Ensino e passou a seresponsabilizar oficialmente pelo oferecimentoda Educação Escolar Indígena.

    Dando continuidade à perspectiva de forma-ção de professores indígenas, a Universidade doEstado da Bahia (UNEB) iniciará, agora em 2009,o Curso de Licenciatura Intercultural em Educa-ção Escolar Indígena, o qual tem como objetivoa formação de professores habilitados para oexercício da docência e da prática educativa nosníveis fundamental e médio da educação básica,

    bem como para atuarem no campo da pesquisa,da produção e gestão do conhecimento paraa educação comunitária. Serão atendidos 108indígenas por semestre, sendo 54 por pólo - mu-nicípios de Paulo Afonso e Teixeira de Freitas.

    Conforme está definido no projeto do refe-rido curso, o desenvolvimento de competênciasprofissionais referendadas pelo conhecimentoacadêmico-científico terá como ênfase o

    (...) diálogo permanente com os saberes e práticastradicionais, valores, atitudes e habilidades relevantespara suas comunidades de origem. Esta formaçãodiferenciada implica a capacitação progressiva paraelaboração, gestão, desenvolvimento e avaliação dosprojetos político-pedagógicos, currículos, programase produção de materiais didáticos específicos,fundamentados na cultura tradicional de cada povo

    (UNEB, 2008).

    Professores indígenas de todo o país estãovivenciando, através desses cursos, uma profun-da mudança de paradigmas, principalmente nomodo como a pesquisa torna-se elemento fun-damental na formação, propiciando o desenvol-vimento de uma série de projetos centrados emestudos de campo em suas aldeias. Ao apontaras especificidades da formação de professoresindígenas, Grupioni, afirma:

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    O professor indígena deve ser formado tambémcomo pesquisador, não só de aspectos relevantes dahistória e da cultura do seu povo mas também dos

    conhecimentos significativos nas diversas áreas doconhecimento. Tal como estabelecido em documentodo MEC, os professores indígenas têm a difícilresponsabilidade de serem os principais incentivadoresà pesquisa dos conhecimentos tradicionais junto aosmembros mais velhos de suas comunidades e da difusãoentre as novas gerações, visando à sua continuidadee reprodução cultural: assim como estudarem,pesquisarem e compreenderem os conhecimentosreunidos no currículo escolar à luz de seus própriosconhecimentos (GRUPIONI, 2006, p.53).

    Considerando que a formação de professo-res indígenas requer um quadro qualificado deprofessores nos cursos de formação, sobretudocom experiência de pesquisa com povos indíge-nas, na Bahia, a participação da UNEB tem sido

    fundamental nesse processo, não só pelo seu ca-ráter multicampi, está presente em praticamentetodas as regiões do estado, mas, sobretudo,pela articulação que vem sendo feita entre essaformação e projetos complementares, como é ocaso do projeto Publicação de Livros Didáticos

     para Escolas Indígenas na Bahia.

    Tradição oral: matéria-primapara os livros didáticosDesenvolvido em parceria com a Coorde-

    nação de Educação Indígena da Secretaria daEducação-SEC, o projet o Publicação de LivrosDidáticos para Escolas Indígenas na Bahia destacaa produção dos livros Vida e Cultura do PovoTuxá de Ibotirama, Nosso Povo: Leituras Kirirí- Educação Diferenciada na visão do Povo Kiriríe Leituras Pataxó: Raízes e Vivências do Povo Pa-taxó, que já estão sendo adotados pelas escolasindígenas dessas etnias.

    Mesmo ainda não integrando formalmenteum Programa de Ações Afirmativas na UNEB, apublicação desses livros constitui-se na primeirae mais significativa investida de universidadesbaianas no sentido de apoiar as comunidades indí-

    genas no campo educacional. A sua produção foiorientada por uma equipe de professores da áreade estudo Sociedade/Natureza/Cultura do Curso

    de Magistério Indígena, são eles: Francisco Guima-rães, especialista em etnohistória; Ricardo Panfiliode Souza, etnomusicólogo; Márcia Resende Spyer,

    geógrafa com vasta experiência em projetos deprodução de livros de autoria indígena.

    Esse projeto tem como princípio o domíniopor parte dos professores indígenas de teorias emétodos de pesquisa que permitam um registroadequado de sua tradição oral, bem como oacesso a acervos documentais e bibliográficos.Tais referenciais se constituem em matéria-prima

    para que façam (re)criações textuais e ilustraçõespara os livros.Consideramos nesse processo duas perspec-

    tivas historiográficas que são apresentadas etrabalhadas ao longo da formação:

    • a escritura de uma história a partir daótica dos próprios indígenas, via tradição oral,ligada ao caráter sociocultural de cada povo e

    suas representações sobre si mesmos.

    • a escrita de uma história indígena focadanas perspectivas socioculturais e históricas defi-nidas por representações acadêmicas nas quaisprevalece uma concepção de história sedimen-tada, caracterizada por uma visão do índio pelonão-índio.

    Todo material produzido durante o processode pesquisa e da produção dos livros didáticosé fruto de um trabalhado coletivo desenvolvi-do pelos professores de cada uma das etniasindígenas. Tais professores assumem uma condição privilegiada enquanto pesquisadorespor serem parte integrante de suas respectivascomunidades e por se constituírem em impor-tantes agentes de mobilização cultural. Essacondição favorável para o desenvolvimentodo projeto tem contagiado os professores e ascomunidades indígenas em torno de um idealcomum: fazer da escola um centro irradiador domovimento de afirmação e resistência étnica.O trabalho desenvolvido nas aldeias tem sidocapaz de revelar a existência de memórias erecordações com um valor histórico inestimável,

    demonstrando como a história oral é capaz deampliar os limites do conhecimento históricono campo da história social, ao estimular o in-

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    teresse pelas famílias e comunidades indígenas,validando suas experiências. Por se tratar de umsegmento pouco documentado em nosso país

    e tratado de forma estereotipada, genérica epreconceituosa nos livros didáticos nacionais, essa perspectiva se torna mais relevante.

    A ênfase na esfera local tem proporcionadoaos professores indígenas um rompimento comum ensino focado nas “grandes imagens dahistória” encontradas nos livros didáticos ofi-ciais, ao criar condições para que eles façam oregistro da história presente em suas casas, nascasas de seus parentes, enfim, em suas própriascomunidades, revelando o significado e o valorda cultura e da tradição oral para o desenvol-vimento de trabalhos pedagógicos compro-metidos com a identidade e a auto-estima dosestudantes indígenas. Temos, assim, a realizaçãode pesquisas e a produção de materiais didá-ticos comprometidos com as especificidades e

    diferenças culturais, capazes não só de deflagrarmovimentos de afirmação da identidade étnicae seu reconhecimento como um aspecto vitalpara as sociedades indígenas como tambémdiminuir a distância até então existente entre aescola e a comunidade, ao trazer a história paraperto, ao relacionar o mundo da sala de aula edo livro didático com o mundo social direto ediário da comunidade em que vive o estudante

    indígena.Em um dos momentos de avaliação do Curso

    de Magistério Indígena, em 2002, os professoresPataxó afirmaram o seguinte:

    Os povos indígenas, com suas histórias, contos,danças, mitos e seu jeito de ser, vêm transformandotodo esse referencial em material didático [a serutilizado] em sala de aula. Mas isso só é possívelporque temos a ajuda da comunidade local emque vivemos. Os mais velhos têm um papel muitoimportante (...) nesse processo, que é de busca deuma educação específica e diferenciada para melhoratender às demandas do nosso povo.

    Para concluir, podemos dizer que o objetivomaior desse trabalho tem sido o de afirmar o

    valor das tradições orais para o ensino escolar nascomunidades indígenas, destacando a importân-cia das músicas, dos mitos e ritos como recursos

    que proporcionam ao trabalho pedagógico umaparticularidade, um significado humano preciosoe uma abertura para uma perspectiva cognitiva e

    intelectual comprometida com as epistemologiasindígenas.

    ReferênciasBAHIA, Secretaria da Educação – Programa de Formaçãopara o Magistério Indígena – Proposta Curricular / Salvador,2006BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estu-dos e Pesquisas Educacionais (INEP). Censo escolar 2007.Brasília, DF: MEC/INEP/deeb, 2007.GRUPIONI. Luis Donizete Benzi. (org) Formação de Pro-fessores Indígenas: repensando trajetórias. Brasília, MEC,2006.GUIMARÃES, Francisco Alfredo Morais. As Ações Afirmati- vas para os Povos Indígenas no Âmbito da Universidade doEstado da Bahia- UNEB in Anais Eletrônicos do II SeminárioPovos Indígenas e sustentabilidade: saberes e práticas in- terculturais na Universidade. UCDB: Campo Grande, 2007UNEB. 2008. Projeto do Curso de Graduação em Licencia- tura Intercultural em Educação Escolar Indígena.Bahia.UNEB. 2007. Documento Final de Propostas para um

    Redimensionamento do Programa de Ações Afirmativas“Inclusão E Igualdade Racial na Formação de Uma NovaCultura Universitária”

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