costa, tiemi. indígenas e não indígenas na administração pública
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Costa, Tiemi. Indígenas e não indígenas na administração públicaTRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
SETOR DE CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Tiemi Kayamori Lobato da Costa
Indgenas e no indgenas na administrao pblica:
Uma etnografia da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND) do
Amazonas.
Curitiba
2013
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Tiemi Kayamori Lobato da Costa
Indgenas e no indgenas na administrao pblica:
Uma etnografia da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND) do
Amazonas.
Curitiba
2013
Dissertao de Mestrado em Antropologia
Social apresentada no Programa de Ps-
Graduao em Antropologia Social da
Universidade Federal do Paran, sob a
orientao da Professora Doutora Cima Barbato
Bevilaqua.
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Indgenas e no indgenas na administrao pblica:
Uma etnografia da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND) do
Amazonas.
Tiemi Kayamori Lobato da Costa
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
Prof. Dra. Cima Barbato Bevilaqua
______________________________________________________
Prof. Dra. Edilene Coffacci de Lima
______________________________________________________
Prof. Dr. Jos Guilherme Cantor Magnani
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Agradecimentos
Agradeo a CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior),
pela bolsa que me permitiu realizar o mestrado.
Ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do
Paran, seus funcionrios e professores.
A todos os colegas e amigos do mestrado, do NAPER (Ncleo de Antropologia da
Poltica, Estado e Relaes de Mercado) e do NEA (Ncleo de Estudos Amerndios).
Obrigada por aguentarem meus comentrios (s vezes sem sentido) e por terem
contribudo imensamente com esse trabalho. Gostaria de citar os professores Miguel
Carid Naviera, Marcos da Silva Silveira, Joo Rickli e Maria Ins Smiljanic; e alguns
colegas sempre presentes: Elton Colini, Fernando Ciello, Guilherme Nanini, Karina
Coelho, Gabriela Becker, Cristopher Feliphe Ramos, Victor Castillo de Macedo e
Joelcyo Veras Costa.
Agradeo especialmente as professoras Edilene Cofacci de Lima, fundamental em toda
a minha formao acadmica como professora, orientadora e pessoa; a Rosngela
Digiovanni, que me incentivou a prestar a seleo de mestrado (mesmo eu achando que
no conseguiria); e a Laura Perez Gil, pelos comentrios na banca de qualificao, e
pelo exemplo a ser seguido.
Aos meus colegas do Grupo de Etnologia Urbana (GEU) e ao Ncleo de Antropologia
Urbana da Universidade de So Paulo: Ana Fiori, Ana Sert, Flavia Belletati, Jos
Agnello, Rodrigo Chiquetto e Yuri Tambucci pela acolhida, pela amizade, e pelas
aventuras amaznicas. Mesmo de longe, vocs fizeram parte de todas as etapas de
construo desta dissertao.
Agradeo igualmente ao Prof. Jos Guilherme Magnani, por viabilizar este
intercmbio e, principalmente, pelo entusiasmo e valiosas observaes.
Agradeo imensamente aos meus amigos Angelita, Gabi, Nat, Fer, Rafa, Gustavo
(Gnomo), Mema, Paulera, Taci, Betinha, Raysa e Soneca. No sei o que seria de mim
sem vocs!
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Agradeo a todos os servidores e amigos da SEIND. A dissertao s foi possvel
porque vocs me receberam de braos abertos: secretrio Bonifcio, a prof. Ozenete,
Jos Mario, Rose Meire, Cristiano, Ageu, Deniziu, Sinsio, Rafael, Miquelina,
Amarildo Maciel, Rosa dos Anjos, Claudio Pequeno, Jurandir, Zuza, Antnia, Amarildo
Tukano, Darcy, Miguel Maia, Keli, Tarcila, Karlene, Dorota, Luciene, Linda Marubo,
Rosi, Vielo, Weminsont, Adail, Dyene, Lobo, Isaac e Valdemir. Gostaria de registrar
um especial agradecimento a querida Chris Lopes, com quem muito aprendi.
A todos que fizeram parte da minha vivncia em Manaus: minhas manas Andreza e
Lucie, e todos os amigos Sater-Maw de Yapyrehyt, Waikiru e Hywy.
A minha famlia, em particular meu pai, Mario, e meus irmos, Lucas e Joo. Obrigada
pelo carinho, pacincia e amor, sempre incondicional.
A minha orientadora, Cima B. Bevilaqua, uma das pessoas mais incrveis que j
conheci. Obrigada por tudo!
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Resumo
O presente trabalho consiste em uma etnografia do processo de estar e fazer uma
administrao pblica tanto por servidores indgenas quanto no indgenas. Tomo como
ponto de reflexo uma instituio brasileira: a Secretaria de Estado para os Povos
Indgenas (SEIND), rgo vinculado ao poder executivo do estado do Amazonas,
Brasil, criado a partir da Lei 3.403 de 2009. Busca-se refletir sobre o recente
protagonismo de agentes estatais indgenas na administrao pblica e, assim, voltar o
olhar para a uma forma estatal que emerge a partir do reconhecimento da diferena.
Atravs da etnografia foi possvel notar que a forma com que os servidores
indgenas se percebem em tal processo implica na continuidade de um projeto poltico
que, at ento, havia tido seus principais desdobramentos atravs de organizaes e
associaes vinculadas ao movimento indgena. Ao mesmo tempo em que o
surgimento da SEIND possibilita a ocupao de um lugar de poder indito na estrutura
estatal, estar em tal posio tambm significa entrar em consonncia com um novo
universo poltico e certa ordem e forma da organizao estatal brasileira.
O acompanhamento das atividades cotidianas na SEIND demonstrou que o
imbricamento entre diferentes formas de estar na administrao pblica imprimem
grande fluidez s concepes de Estado e de indianidade. Assim, as rotinas
administrativas, a percepo dos servidores a respeito de seus trabalhos, e as interaes
interinstitucionais, recriam e atualizam tal dualidade de diferentes formas: Estado e
ndios, governo e movimento indgena, tcnica e poltica, indgenas e no
indgenas. A articulao de ambos universos polticos demonstrou grande criatividade
por parte dos servidores que, frente ao baixo oramento da instituio, utilizam a
experincia adquirida nas associaes e organizaes indgenas para fundamentar
diferentes estratgias de gesto. Argumento que esse espao de negociao entre um
plo supostamente indgena e outro Estatal, ou seja, esta permanente confluncia,
acabaria por produzir a SEIND em sua especificidade enquanto forma de administrao
pblica e enquanto projeto poltico indgena.
Palavras chave: Administrao pblica; Indgenas; Estado.
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Sumrio
Introduo .................................................................................................................... 09
a. A Seind, um breve histrico .................................................................................. 15
Captulo 1: Rotinas, papis e demandas....................................................................... 26
1.1 Chegando SEIND ............................................................................................... 26
1.2 O 'Campo' de papis .............................................................................................. 31
1.3 As demandas ......................................................................................................... 37
Captulo 2: Espaos, despachos e pessoas .................................................................. 51
2.1 Movimentos e Hierarquias: a organizao interna da SEIND .............................. 51
2.2 Tomando providncias: a movimentao de papis e relaes ............................ 61
Captulo 3: Burocratas, tcnicos, lderes e representantes: os servidores da SEIND .. 72
3.1 Articulando um quadro de servidores indgenas e no indgenas .......................... 72
3.2 Pensando a indianidade: distines e divises ...................................................... 79
3.3 Representantes e representatividades ..................................................................... 81
3.4 Integrando leis, papis e pessoas ........................................................................... 85
Captulo 4: Instituies, projetos e aes ..................................................................... 98
4.1 Os Projetos ............................................................................................................. 99
4.1.1 Um exemplo: o projeto do BNDES .............................................................. 101
4.2 O Comit Gestor .................................................................................................... 105
4.2.1 Um exemplo: a Arca das Letras .................................................................... 117
4.3 A produtividade do Estado..................................................................................... 119
Consideraes Finais ................................................................................................... 122
Referncias Bibliogrficas .......................................................................................... 123
Anexo I ......................................................................................................................... 126
Anexo II ........................................................................................................................ 130
Anexo III ...................................................................................................................... 132
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Lista de Siglas
BNDES Banco Nacional do Desenvolvimento
CMA Comando Militar da Amaznia
COIAB Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira
COIPAM Coordenao dos Povos e Organizaes Indgena do Amazonas
DEAD Departamento de Administrao
DEPI Departamento de Promoo dos Povos Indgenas
DETNO Departamento de Etnodesenvolvimento
DOFIN Departamento Financeiro
FEPI Fundao Estadual dos Povos Indgenas
FUNAI Fundao Nacional do ndio
FOIRN Federao da Organizaes Indgenas do Alto Rio Negro
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis
INPA Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia
MDA Ministrio do Desenvolvimento Agrrio
PPA Plano Plurianual
SDS Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentvel do Estado do Amazonas
SEDUC Secretaria Estadual de Educao do Amazonas
SEGPLAN Secretaria de Gesto e Planejamento
SEJEL Secretaria da Juventude, Esporte e Lazer
SEIND Secretaria Estadual dos Povos Indgenas
TAP Termo de Anuncia Pesquisa
TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
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Introduo
No dia 16 de abril de 2012, no municpio de Manaus, teve incio mais uma
edio da Copa Indgena. O evento fez parte de uma sequncia de atividades relativas
ao Abril Cultural Indgena, organizado para comemorar o dia do ndio, 19 de Abril. O
cronograma da comemorao contemplava, alm de uma programao esportiva
representada pela Copa, eventos menores que se estenderam at o dia 01 de Maro. As
atividades foram divididas entre uma Programao Cultural, com apresentaes
artsticas, exposies fotogrficas e de artesanato indgena, e uma Programao
Interinstitucional que, entre outras atividades, realizou palestras sobre
empreendedorismo indgena e sustentabilidade, e encerrou o Abril Cultural com
uma grande reunio onde estiveram presentes instituies de diversas naturezas,
relacionadas s polticas pblicas para indgenas no estado do Amazonas1.
As atividades que fizeram parte da comemorao foram organizadas pela
Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND), atravs da articulao com
diferentes instituies da administrao pblica e organizaes indgenas. H, por um
lado, uma qualidade especfica atribuda s atividades realizadas: temos uma Copa
Indgena, um ms indgena, o dia do ndio, uma programao cultural indgena,
empreendedorismo indgena, e, por fim, uma Secretaria de Estado para os Povos
Indgenas. Por outro lado, temos a heterogeneidade de tais elementos (supostamente
no-indgena) que so chamados a compor um evento maior, indgena, onde se renem
variadas atividades, instituies e pessoas.
Essa heterogeneidade expressou-se na abertura do 'Abril Cultural', que tambm
deu incio ao primeiro dia das competies da Copa Indgena. Realizada na Vila
Olmpica de Manaus (estrutura da Secretaria da Juventude Esporte e Lazer do estado
do Amazonas (SEJEL) com piscina para competies, pista de atletismo e quadras de
futebol), a abertura do 'Abril Cultural' reuniu indgenas de Manaus e arredores, o
Comando Militar da Amaznia (CMA), e instituies da administrao pblica.
A abertura do evento ocorreu na arquibancada situada logo a frente do campo de
futebol e pista de atletismo l tambm estava montado um pequeno palco. Na parte
mais alta da arquibancada encontravam-se oficiais do exrcito que ocupavam
praticamente um tero dela (totalizando cerca de 100 oficiais), todos estavam
devidamente fardados e, justamente por este motivo, se destacavam do restante do
1 Essa reunio ser abordada com mais detalhes durante o Captulo 4.
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pblico. Logo abaixo do palco estava a banda do Comando Militar da Amaznia j
afinando os instrumentos para o hino nacional. Na parte central encontrava-se um
espao reservado s autoridades (como me foi chamado a ateno quando, sem querer,
acabei entrando l para perguntar a um conhecido onde o pessoal da SEIND estava). Era
naquele local cercado, reservado s 'autoridades' e imprensa, onde tambm estava
montado o 'palco' da onde foram feitos os discursos da abertura.
Distribudo pelo restante da arquibancada estava o pblico para quem o evento,
afinal, se destinava: os indgenas. queles oriundos de Manaus se organizavam de
acordo com os grupos ou comunidades a qual pertenciam, por exemplo, a equipe Sater-
Maw, da comunidade Y'apirehyt; enquanto as 'comisses' vindas de outros municpios
reuniam diferentes grupos e comunidades, a equipe do municpio de 'Novo Airo', por
exemplo. Os membros da SEIND (instituio organizadora do evento) estavam
'uniformizados' com as camisetas do 'Abril Cultural' - com exceo do Secretrio de
estado e alguns de seus assessores, que estavam na parte reservada s autoridades e
trajavam camisas sociais. O restante dos servidores estava no meio da arquibancada,
juntamente com o pblico indgena.
A solenidade teve incio com uma srie de discursos realizados, primeiramente,
pelo Secretrio da SEIND, Bonifcio Baniwa; em seguida pela Secretaria da SEJEL,
Alessandra Camplo; pelo general de Brigada e chefe de Estado Maior do Comando
Militar da Amaznia (CMA), Jos Luiz Jaborandy; pela vice-coordenadora da
Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira (COIAB), Snia
Guajajara; e pelo coordenador da Coordenao das Organizaes e Povos Indgenas do
Amazonas (COIPAM), Fidlis Baniwa. Os nomes reproduzidos anteriormente seguem o
formato utilizado pelo mestre de cerimnias que os apresentou ao pblico antes da
realizao dos discursos. Enquanto os no indgenas eram apresentados com nome e
sobrenome, os indgenas eram chamados pelo nome e etnia.
Apesar da segmentao visual e fsica da arquibancada entre militares,
autoridades e indgenas, nota-se que os discursos buscam operar justamente no sentido
oposto, tentando enaltecer a forma com que estes diferentes setores do pblico
presente na abertura se complementam e atuam conjuntamente. O site da SEIND narra
esta parte do evento da seguinte forma:
Na abertura do evento, o titular da Seind, Bonifcio Jos Baniwa resumiu o Abril Cultural Indgena de 2012 como uma oportunidade para a troca de experincias e um
grande momento para reflexo acerca da busca por melhorias na qualidade de vida
dessas populaes no estado. um esforo grande do governador Omar Aziz, que no
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ano passado assinou o decreto que criou o Comit Gestor Indgena, instncia que tem
nos ajudado nesse sentido, justificou o secretrio. Apesar da chuva, conseguimos reunir os indgenas, graas ao apoio dos parceiros e da prpria imprensa, comemorou. A secretria de Juventude Desporto e Lazer, Alessandra Camplo, tambm agradeceu a
presena dos indgenas. Diante dos representantes de vrios povos que fazem parte dos
sete municpios da Regio Metropolitana de Manaus, ela aproveitou para anunciar a
possvel realizao dos Jogos Mundiais Indgenas na capital amazonense, possivelmente
no ano que vem. Eu tenho conversado com o ministro Aldo Rebelo e ele j me informou que quer trazer os jogos para o Amazonas, disse a titular da Sejel. A secretria elogiou a iniciativa da Seind e a presena do Exrcito, na organizao do
Abril Cultural. O Exrcito tem um papel fundamental, pois atende s comunidades indgenas com vrias aes, inclusive sociais, disse ela. Para o general de Brigada e chefe de Estado Maior do Comando Militar da Amaznia
(CMA), Jos Luiz Jaborandy, no d para separar o Exrcito dos Indgenas e a
tendncia que haja uma integrao maior entre a instituio e a Seind, a partir das
aes que comeam a ser executadas pelo Comit Gestor Indgena e do prprio Abril
Cultural. A tendncia que tenhamos soldados indgenas participando no ano que vem desse evento, informou o oficial. (...) A abertura do Abril Cultural Indgena tambm foi prestigiada pela vice-
coordenadora da Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira
(Coiab), Snia Guajajara, e pelo coordenador da comisso que criou a Organizao das
Organizaes Indgenas do Amazonas (Coipam), Fidlis Baniwa. (FONTE:http://portaldaseind.blogspot.com.br/2012/04/abril-cultural-indigena-de-2012-
e.html acessado em 26 de Setembro de 2012)
Se inicialmente tnhamos certa diversidade de elementos confluindo no sentido
de produzir um evento indgena (diferentes instituies, pessoas e atividades),
notamos nos discursos a constituio de dois mbitos distintos: por um lado, os
indgenas, e por outro, as instituies. Os primeiros na posio de 'atendidos' e os
segundos, enquanto concedentes de melhorias (criao de um Comit Gestor,
realizao dos Jogos Mundiais Indgenas, etc). Nota-se que os discursos dos dois
representantes de organizaes indgenas no foram abordados na reportagem,
provavelmente pelo tom combativo dos mesmos que destoou significativamente da
sintonia buscada pelos demais. Eles pediram a ateno das instituies do poder pblico
s comunidades indgenas, e afirmaram que h muito descaso e falta de respeito
com a cultura do povo indgena. Ambos os representantes usaram povo indgena no
singular, provavelmente para demonstrar unidade frente aos demais presentes tanto o
pblico, quanto autoridades.
Aps os discursos houve a interpretao do hino nacional em lngua Ticuna,
harmonizado com a banda do exrcito. A intrprete, Djuena Ticuna, bastante
conhecida localmente, e foi altamente procurada pelo pblico indgena para tirar fotos
aps a execuo hino. Durante o hino a bandeira nacional, a bandeira do estado do
Amazonas e do municpio de Manaus, foram sincronizadamente hasteadas por
representantes da Secretaria Estadual dos Povos Indgenas (SEIND), do Comando
Militar do Amazonas (CMA), e da Secretaria da Juventude, Esporte e Lazer (SEJEL).
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Cada titular dessas instituies nomeou um representante para realizar tal feito, j que
no momento a chuva caa forte e nenhum deles parecia querer se molhar. Tal fato
rendeu algumas piadas por parte do pblico e do prprio mestre de cerimnias.
Figura 1: Abertura da Copa Indgena. Na frente est a secretria de Juventude Desporto e Lazer,
Alessandra Camplo; Bonifcio Jos Baniwa, Secretrio da SEIND; e o general de Brigada e chefe de
Estado Maior do Comando Militar da Amaznia (CMA), Jos Luiz Jaborandy. No fundo est a contora
Djuena Ticuna, juntamente com a banda do Comando Militar da Amaznia. FONTE: Assessoria de
Comunicao da SEIND.
Aps o hino foi feito um ritual em que dois indgenas, um homem e uma mulher,
danaram em crculos empunhando zarabatanas, chocalho e uma flauta de cerca de
1,5m. Neste momento a imprensa desceu da rea reservada para as autoridades e
passou a acompanhar de perto os movimentos do ritual, filmando-o e fotografando-o. O
pblico indgena, entretanto, continuou sentado, apenas observando de longe. O ritual
parecia ser destinado aos no indgenas.
Realizada a abertura, o evento teve sequncia com as provas da Copa Indgena:
atletismo, arco e flecha, corrida do saco, cabo de guerra e natao. As autoridades j no
estavam presentes, e agora, com o cessar da chuva, o pblico podia se aproximar da
pista de atletismo para acompanhar o desempenho de suas equipes. A narrao das
provas era feita com muito humor por um servidor da SEIND, Ageu, Sater-Maw, que
anunciava os vencedores e perdedores, demonstrando grande intimidade com o pblico
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e com os competidores. Depois de meia-hora do incio da competio, no auge das
narraes cmicas das provas, um oficial do exrcito avisou a Ageu que o carro para
recolher o equipamento de som havia chegado (o equipamento havia sido cedido pelo
Comando Militar da Amaznia), portando ele deveria devolver o microfone. Sem perder
a compostura, Ageu disse que estavam fazendo um favor a ele, j que logo sua voz iria
acabar. As provas da Copa Indgena seguiram durante os trs prximos dias, e o
evento ganharia destaque nos principais jornais da capital amazonense.
Figura 2: Equipe da SEIND e a pesquisadora na Copa Indgena de Futebol de Salo. De baixo para cima,
da direita para esquerda, esto os servidores: Rosimar Costa e Miquelina Tukano; Weminsont Satustiano,
Rafael Ticuna, Tiemi Costa (pequisadora) e Isaque Jnior; os dois estagirios do Departamento de
Administrao, Adail Munduruku e Rafael Ticuna. FONTE: Assessoria de Comunicao da SEIND.
***
Atravs desta cena busquei introduzir o leitor s questes sob as quais o presente
trabalho se debrua. Trata-se de refletir sobre um objeto permanente na antropologia
brasileira voltado aos estudos dos processos de interao entre os povos indgenas e o
Estado. Tanto no mbito interno da academia, quanto fora dela - no que se trata de
produes do prprio Estado - as questes levantadas por essas reflexes se
consolidaram enquanto um grande campo de discusso. Apesar de facilmente podermos
enquadrar o presente trabalho de acordo com tal perspectiva analtica, busca-se,
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justamente, realizar um movimento que esquiva da forma com que tal questo
frequentemente concebida: os povos indgenas e suas diferentes formas de
organizao, interagindo com o Estado e suas instituies.
Pode-se observar na abertura da Copa Indgena tanto espacialmente, no tocante
ocupao dos lugares da arquibancada, quanto nos discursos das autoridades, a
emergncia de elementos que reforam o argumento de segmentao acima proposto
(Estado e ndios). No entanto, um olhar cuidadoso pode revelar que alguns
elementos parecem transitar entre ambos os plos proporcionando sua constante
reconfigurao: a entonao do hino nacional em lngua Ticuna, o acionamento das
etnias no lugar de sobrenomes, o discurso de um secretrio de estado indgena, e as
modalidades de discurso e competio, so exemplos da forma com que a dicotomia
entre um mbito supostamente indgena e outro supostamente estatal pode ser colocada
em questo. O foco da pesquisa, portanto, reside na tentativa de pensar como tais
elementos so colocados a existir juntos, e no tom-los como mbitos a priori.
O presente trabalho uma etnografia de uma administrao pblica, que toma
como ponto de reflexo a Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND), rgo
vinculado ao poder executivo do estado do Amazonas e criado a partir da Lei 3.403/092.
A escolha deste lugar especfico deve-se ao fato de estarem presentes, na Secretaria,
servidores indgenas e no indgenas atuando conjuntamente no sentido de produzir esta
administrao pblica. Busco assim, tambm delinear algumas consideraes a respeito
de um processo bastante recente e muito mais amplo: a crescente ocupao de cargos da
administrao pblica por servidores indgenas. Atualmente a SEIND possui um quadro
de 38 servidores, dos quais 18 so indgenas pertencentes a 10 diferentes grupos:
Apurin, Baniwa, Marubo, Mayuruna, Miranha, Munduruku, Mura, Sater-Maw,
Ticuna e Tukano.
Uma perspectiva antropolgica que se ocupe de estudar o Estado deve buscar
pensar as diferentes formas atravs das quais ele formado e informado por diferentes
agentes. Ao perseguir tal tarefa, consequentemente seremos confrontados com mltiplas
perspectivas que, continuamente, acabaro por (re)construir os prprios limites das
instituies. O processo de formao da Secretaria aponta justamente para esta questo,
uma vez que narrado como fruto tanto da articulao entre lideranas e organizaes
indgenas, quanto de servidores e instituies da administrao pblica.
2 A ntegra do documento est no Anexo I.
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Os dados aqui contemplados foram fruto de um esforo coletivo de pesquisa
junto ao Grupo de Etnologia Urbana (GEU) vinculado ao Laboratrio de Antropologia
Urbana (LabNAU) da Universidade de So Paulo (USP). O Programa de Ps-
Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Paran
(PPGAS/UFPR), juntamente ao LabNAU, foram fundamentais para a realizao desta
pesquisa. O perodo em campo compreendeu os meses de maro, abril e maio de 2012, e
duas semanas entre os meses de novembro e dezembro do mesmo ano.
***
A seguir, tomando o processo de surgimento da SEIND como emblemtico das
discusses que seguem nos captulos deste trabalho, irei traar um breve histrico da
instituio atravs das colocaes de alguns interlocutores para, na sequncia,
apresentar a forma com que o trabalho foi estruturado. importante destacar que as
consideraes que seguem foram escritas a partir da narrativa da criao da SEIND por
aqueles que fizeram parte deste processo portanto, o texto possui uma srie de
imprecises. Acredito que estas, por sua vez, so naturais tentativa de se compor uma
nica verso de um acontecimento narrado a partir de diferentes pontos de vista. As
lacunas e questes levantadas nesta introduo sero respondidas no decorrer do texto
da dissertao.
A SEIND, um breve histrico
A SEIND, rgo relativamente recente, surgiu como desdobramento de uma
srie de movimentos polticos anteriores que no se encerram e nem se resumem a ela.
No ano de 1998, o antroplogo e professor da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM), Ademir Ramos3, em ocasio de uma consultoria prestada para a Secretaria
Estadual de Educao do Amazonas (SEDUC) sugeriu que a educao escolar indgena
(que at ento no era diferenciada pela SEDUC das escolas rurais) passasse a ter um
departamento prprio. Essa discusso deu origem ao Conselho Estadual de Educao
3 Ademir Ramos conta que iniciou sua atuao com os povos indgenas em 1978, com a criao do
Conselho Indigenista Missionrio (CIMI). Nesta poca, a principal preocupao dos indigenistas era a garantia das terras indgenas (Ademir Ramos, em entrevista, 20/04/2012). Seus principais trabalhos com o CIMI ocorreram na regio do Alto Rio Negro.
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Escolar Indgena e o Departamento de Educao Escolar Indgena dentro da SEDUC,
existentes at os dias de hoje. Alm de ser um rgo consultivo, o Conselho foi
idealizado para tambm ter poder deliberativo, ou seja, ser capaz de formular polticas, e
tomar decises a respeito da educao indgena. De acordo com Ademir Ramos, o
objetivo do Conselho era permitir que os indgenas formulassem suas prprias polticas
educacionais o que tambm implicava em repensar as prticas de gerncia da
educao no estado, tal como estavam sendo feitas at ento.
Nesta ocasio, para a criao do Conselho e do Departamento alguns indgenas
foram convidados a fazer parte do processo. No entanto, eles no foram contratados
como servidores (conforme ocorre atualmente), mas enquadrados como consultores
externos. Ademir Ramos conta que esta opo surgiu, pois se no sabia ao certo como
vincular os indgenas Secretaria para que procedimentos administrativos (como
efetuar o pagamento) pudessem ocorrer. A forma padro de recrutamento da SEDUC
eram os concursos pblicos, contudo, a prpria proposta de criao do Departamento e
do Conselho exigia a participao de algumas pessoas especficas em tal processo no
caso, os professores indgenas militantes pela educao escolar indgena.
As discusses acerca do Conselho de Educao Escolar Indgena fizeram com
que uma questo maior dentro do estado viesse tona chamando a ateno do prprio
governador: a poltica indigenista no estado do Amazonas. Segundo Ademir Ramos, em
uma reunio com o ento governador Amazonino Mendes4 no ano de 2000, ele e o
Secretrio de Educao, Vicente Nogueira, sugeriram a criao de um departamento
voltado especificamente poltica indigenista do estado (algo que j havia sendo
discutido dentro da Secretaria de Educao h algum tempo). O governador foi
favorvel ideia e criou o Departamento de Poltica Indigenista (DEPI), vinculado
diretamente Secretaria de Governo do Amazonas (SEGOV). As atividades do
Departamento eram coordenadas pelo prprio Ademir Ramos, juntamente com outras
trs servidoras que foram cedidas pela Secretaria da Educao: Ozenete Aguiar5, Ldia e
Francisca Matos todas no indgenas. A ideia do DEPI era abranger a discusso
iniciada dentro da SEDUC e pensar a poltica voltada s populaes indgenas em
4 Foi eleito governador em 1998 pelo Partido da Frente Liberal (PFL), cargo que j ocupou em outros dois
mandatos: 1986 1990 e 1994 - 1998. Tambm assumiu a prefeitura do municpio de Manaus em trs ocasies: 1982-1986, 1993-1994 e 2004-2008. Atualmente integra o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
5 Ozenete Aguiar atuava no setor de educao rural do governo do estado e j tinha alguma familiaridade
com aes voltadas educao indgena. Atualmente ela integra a SEIND na qualidade de chefe de
gabinete.
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diferentes setores, no sentido de prestar assessoria ao governador. Neste momento o
Departamento criado com carter consultivo.
O DEPI durou apenas um ano (2000-2001), sendo em 2001 substitudo pela
Fundao Estadual de Poltica Indigenista (FEPI), vinculada Secretaria de Estado do
Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentvel (SDS) do estado do Amazonas. A
Fundao surgiu com a proposta de ser uma agncia de articulao de polticas pblicas,
e no apenas um rgo consultivo. A FEPI passou a ocupar um local fsico prprio, bem
como quadro de servidores e oramento. Alm das trs servidoras que foram
transferidas do DEPI, trs indgenas foram convidados por Ademir Ramos para fazer
parte de seu processo de idealizao, de acordo com ele, exatamente pela funo
tcnica: Jorge, do grupo Terena (falecido no ano de 2007), Amarildo Machado,
Tukano, e Jecinaldo Cabral, Sater-Maw. Com Jorge Terena, Ademir Ramos estava
buscando um indgena que conseguisse fazer articulaes com organismos de
internacionais no sentido de viabilizar projetos e conseguir financiamentos - conforme
Jorge estava atuando at ento junto s organizaes indgenas. Amarildo Tukano foi
convidado em funo de ser muito bom tecnicamente e tambm porque Ademir
Ramos estava buscando o aval do Alto Rio Negro, regio onde o grupo Tukano est
presente e que era percebida como politicamente relevante. Atualmente Amarildo
assessor do Secretario de Estado da SEIND, Bonifcio, do grupo Baniwa. J Jecinaldo
Sater, foi convidado para dar uma fora na questo da liderana. Alguns anos depois,
Jecinaldo foi nomeado o primeiro Secretrio de Estado da SEIND. A narrativa de
Ademir Ramos a respeito dos primeiros momentos da FEPI nos mostra que o critrio
utilizado para recrutar os servidores, a funo tcnica, pode incorporar diferentes
qualidades nem sempre percebidas como tais. A capacidade de fazer articulaes, ter
o aval de certas regies, e ser liderana, foram determinantes para o recrutamento
destes trs indgenas tanto quanto outras qualidades. Esta questo ser aprofundada no
segundo e no terceiro captulo da dissertao.
Se, por um lado, tnhamos o DEPI, e mais tarde a FEPI, sendo formados por
servidores pblicos majoritariamente vinculados Secretaria de Educao, por outro,
temos a chegada de trs indgenas cujas trajetrias so estreitamente vinculadas a
organizaes indgenas. Amarildo conta que foi convidado por seus parentes Tukano
a participar do processo de fundao da Coordenao das Organizaes Indgenas da
Amaznia Brasileira (COIAB) no incio da dcada de 90. Ele relata que na poca em
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que a COIAB foi criada as organizaes indgenas estavam comeando a se consolidar
enquanto instituies formais, impulsionadas pela Constituio de 1988.
Devemos lembrar que as organizaes e associaes indgenas passaram por um
momento de expanso a partir da possibilidade de se constiturem enquanto pessoas
jurdicas, de acordo com o Artigo 232 da Constituio Federal de 1988. Segundo Bruce
Albert (2000), o processo de multiplicao dessas associaes tem sua origem na
encruzilhada de vrios processos scio-polticos gerais, interagindo em nvel nacional e
internacional. O autor tambm afirma que, muitas dessas associaes, tm hoje
vnculos e projeo internacionais, integrando um panorama heterogneo e diferentes
formas de financiamento. Nesse sentido, tal quadro configura a passagem de
associaes informais, frutos de um movimento conflitivo de organizao etno-poltica
da dcada de 70 e 80, para a institucionalizao de uma imensa gama de organizaes,
cujos interlocutores pertencem tanto a organizaes governamentais, quanto no-
governamentais (Albert, 2005). Tais associaes, atualmente, possuem caractersticas
diversas. Elas podem representar tanto comunidades ou grupos locais, quanto diversos
povos ou mesmo regies. A grande maioria delas est registrada em cartrio ou em
processo de legalizao, desempenhando geralmente funes polticas de articulao
interna e de representao intertnica.
O papel poltico de reivindicao de direitos atravs das associaes indgenas
deu corpo a o que os interlocutores denominam de movimento indgena. A trajetria dos
trs indgenas que passaram a integrar a FEPI (como tambm de outros servidores que
mais tarde vieram a fazer parte da SEIND) foram traadas em conjunto com este
contexto poltico de formao das organizaes do movimento. Amarildo, Jorge e
Jecinaldo, participaram de diferentes administraes da COIAB (frequentemente citada
pelos interlocutores como uma das mais relevantes instituies indgenas do Brasil),
bem como de outras organizaes, ocupando diferentes cargos presidente, tesoureiro,
secretrio, vice-presidente, etc. Assim, tiveram uma intensa participao na vida poltica
indgena antes mesmo de entrarem na FEPI o que, como vimos, foi um dos motivos
que levaram Ademir a convid-los para participar da Fundao. Vale destacar que,
apesar da ideia de um movimento indgena passar certa noo de homogeneidade, ela
contempla diferentes posies polticas e pontos de vista, por vezes conflitantes, entre
uma ou mais associaes e organizaes, ou entre grupos de associaes. Ao mesmo
tempo, estar no governo, ou estar no movimento, so posies pensadas como
circunstanciais e que suscitam uma srie de reflexes (mesmo que possam ser
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vivenciadas simultaneamente ser servidor e participar do movimento). As
trajetrias, os diferentes pertencimentos dos servidores e suas reflexes a respeito do
papel que desempenham na SEIND sero abordados ao longo do terceiro captulo.
No ano de 2002, Eduardo Braga6 foi eleito governador pelo Partido Popular
Socialista (PPS), com o apoio do ex-governador Amazonino Mendes (PFL). De acordo
com o atual secretrio da SEIND, Bonifcio Jos, do grupo Baniwa, Eduardo Braga
investiu em reunies com o movimento indgena durante o perodo eleitoral, com o
objetivo de conseguir apoio de seus eleitores. No ano de 2003, segundo Ozenete, aps
Eduardo Braga ser eleito, o movimento se pronunciou e solicitou que houvesse
indgenas na direo da FEPI. Bonifcio Baniwa, foi indicado pelo movimento para
assumir a presidncia da FEPI juntamente com outros nove nomes, ele ento conta que
foi escolhido pelo governador para assumir o cargo. O professor Ademir Ramos passou
a dedicar-se exclusivamente Universidade. A formao da FEPI, nesse sentido, ocorre
a partir de um movimento por parte tanto da prpria administrao pblica (que sentiu a
necessidade de um departamento especfico para as questes indgenas que no atuasse
apenas como um rgo consultivo), quando de um movimento poltico organizado por
instituies e representantes indgenas.
Bonifcio, como os demais indgenas, tambm havia traado sua trajetria at
ento nas organizaes do movimento, participando tanto da Federao das
Organizaes Indgenas do Alto Rio Negro (FOIRN), quanto da COIAB. Ressalta-se
que a FOIRN e a COIAB so instituies que centralizam vrias associaes indgenas,
podendo ser representantes de diferentes grupos ou comunidades. Desta forma, possuem
uma regio de atuao que engloba diversas associaes locais. A COIAB, por
exemplo, apesar de estar sediada em Manaus, possui tambm um escritrio em Braslia,
e representa organizaes indgenas de toda a Amaznia legal.
Logo que assumiu a diretoria da FEPI, Bonifcio mudou o nome de Fundao
Estadual de Poltica Indigenista para Fundao Estadual dos Povos Indgenas, pois
a gente entendeu que a nossa presena, a nossa participao no governo (...) no era mais, vamos dizer assim, os cientistas, antroplogos, polticos pensando pelos
indgenas, e sim os ndios construindo a poltica pblica. Isso foi aceito dentro do
6 O governador do estado do amazonas era Eduardo Braga, eleito em 2002, pelo Partido Popular
Socialista (PPS). Os partidos que integravam a coligao eram: PPS, PFL, PTB, PDT, PSL, PTN, PSC,
PSD, PSDC, PRP, PHS, PAN e PRONA. Eduardo Braga foi reeleito junto ao vice-governador, Omar
Aziz, em 2006. No ano de 2010, Eduardo Braga se licenciou do cargo para disputar uma vaga para o
Senado Federal pelo PMDB a qual foi eleito. No mesmo ano, Omar Aziz (PMN) assume o governo do Estado do Amazonas, e reeleito, sendo o atual governador do estado. No ano de 2011 Omar Aziz deixa
o PMN para ajudar a fundar o PSD, seu atual partido.
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governo, e comeamos a trabalhar o que era a poltica de etnodesenvolvimento, que
voc ouvir respeitar o indgena. (Bonifcio Baniwa, em entrevista, 02/04/2012)
A chegada de um indgena na presidncia da FEPI foi considerada, por aqueles
que participaram de tal processo, uma mudana em relao idealizao das polticas,
ao funcionamento das rotinas administrativas da FEPI (como veremos no primeiro e no
segundo captulo) e uma maior participao indgena dentro da estrutura da prpria
administrao pblica.
Ozenete conta que o governador deu o prazo de 90 dias para Bonifcio e sua
equipe realizarem um planejamento de ao, juntamente com as lideranas e a
populao indgena. Houve ento uma srie de reunies e conferncias em diferentes
regies do estado, e a idealizao de um modelo de organizao denominado meso-
regies (que ser abordado com mais detalhes durante o terceiro captulo, bem como a
forma de recrutamento dos servidores indgenas). Para o momento, cabe destacar que o
nmero de servidores indgenas na SEIND sofreu um progressivo aumento durante os
anos, e o modelo de meso-regies lembrado como crucial para que isso ocorresse.
Nesta mesma poca j havia a reivindicao, por parte das organizaes indgenas, da
criao de uma Secretaria. Bonifcio conta que o governador alegava que a ideia de
uma Secretaria precisava ser amadurecida o que ela seria e como ela seria.
No ano de 2008 o ento governador Eduardo Braga foi reeleito, e em 2009, de
acordo com a narrativa do secretrio Bonifcio aps anos de reivindicao do
movimento indgena, ocorreu a criao de uma Secretaria voltada s polticas pblicas
dos povos indgenas: a Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND).
interessante notar que apesar da pesquisa ter privilegiado as narrativas daqueles que
participaram de tal momento enquanto servidores da FEPI (ou seja, funcionrios
pblicos que tiveram papel ativo para que a SEIND se consolidasse), a Secretaria
enunciada como uma conquista do movimento indgena. A lei 3.403/09 que dispe
sobre a criao da SEIND tambm autoriza a extino da Fundao Estadual dos Povos
Indgenas (FEPI), e transfere suas atribuies, finalidades e patrimnio, para a recm
criada SEIND. A escrita de tal lei ocorreu entre representantes do movimento indgena,
da FEPI, e do Conselho Estadual dos Povos Indgenas, rgo consultivo de
assessoramento do governador, criado pelo decreto n 25.457, de 29 de Novembro de
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20057. Aps a discusso e elaborao do texto, ele foi apresentado ao governador e
enviado ao poder legislativo para votao. A SEIND, nesse sentido, possui uma situao
institucional bastante frgil, uma vez que esta mesma lei pode ser revogada a qualquer
momento.
A escolha do Secretario tambm foi um processo bastante interessante. Grande
parte do trabalho de campo foi dedicado leitura e anlise de documentos, cartas, e-
mails, ofcios, entre outros (enfim, todo tipo de comunicao com a Secretaria) enviados
tanto por indivduos ou organizaes indgenas, quanto de instituies da administrao
pblica. A circulao de tais papis e os procedimentos administrativos decorrentes de
sua movimentao sero abordados logo no primeiro captulo. Em um dos arquivos que
continham tais documentos, encontrei uma srie de cartas do ano de 2009 com
importantes informaes a respeito dos primeiros momentos da Seind como secretaria
de estado. Nelas estavam presentes indicaes de nomes de indgenas de diferentes
grupos para assumir, pela primeira vez, o cargo de Secretrio da (ainda no fundada)
Secretaria Estadual para os Povos Indgenas (SEIND).
Ao vasculhar o arquivo pude verificar a existncia de correspondncias enviadas
de variadas regies do estado, representantes de diferentes organizaes e associaes
indgenas. Os formatos e contedos das cartas variavam bastante: algumas haviam sido
manuscritas, enquanto outras foram digitadas em computador; algumas indicavam um
nome para ocupar o cargo de secretrio e elencavam a razo de t-lo escolhido,
enquanto outras indicavam mais de uma pessoa; Algumas foram assinadas apenas pelo
presidente da associao, enquanto outras continham diversas folhas repletas de
assinaturas de todos os seus membros. Todas as folhas presentes no arquivo estavam
presas umas as outras, o que aponta que para o fato de que no foram guardadas
aleatoriamente.
A primeira folha presente no arquivo parecia ordenar as demais. Era a ata da
reunio onde as diversas cartas recebidas foram abertas. Ela continha no cabealho da
folha um braso do estado do Amazonas, o logotipo do Conselho Estadual dos Povos
Indgenas (CEPI), e o logotipo do governo do estado do Amazonas da gesto do
governador Eduardo Braga. Logo abaixo do cabealho est, em letras maisculas, o
assunto da Ata: ATA DA APURAO DA INDICAO DE NOMES PARA A
SECRETARIA DE ESTADO DOS POVOS INDGENAS. Verifica-se que no ttulo
7 Anexo II. De acordo com o decreto de criao do Conselho, em sua composio esto presentes representantes de 28 instituies, das quais metade, 14, so organizaes indgenas.
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consta Secretaria de estado dos povos indgenas, e no para os povos indgenas, tal
como ocorre no nome atual. Em um curto pargrafo que segue logo abaixo do ttulo est
especificada a data e o local da reunio, bem como as pessoas presentes. Havia
representantes de 20 diferentes instituies, dessas vinte, treze correspondiam a
organizaes indgenas, e sete instituies eram vinculadas administrao pblica.
A Sesso de abertura das cartas, como enunciado pela Ata, foi realizada no dia
30 de Maio de 2009 e presidida pelo ento diretor presidente FEPI, Bonifcio Baniwa.
Outro fator que merece destaque a presena de Jecinaldo Cabral, Sater-Maw, como
titular da COIAB. Conforme mencionado anteriormente, ele foi o primeiro Secretrio de
estado da SEIND e tambm participou da consolidao do DEPI a convite de Ademir
Ramos, como vimos anteriormente.
Aps a breve nomeao dos presentes, a ata continuava com uma tabela com trs
colunas: Nome, Organizao-Regio-Municpio, e nmero de votos. Entre os
indgenas listados nesta tabela, o que obteve a votao mais expressiva foi Jecinaldo
Cabral, que acumulou 26 indicaes, seguido pelo atual secretrio Bonifcio, que
registrou 17 votos. De acordo com outro documento presente no arquivo, foram abertas
57 cartas enviadas pelas bases, com representatividade de 88 Organizaes Indgenas.
Ao final da folha h a assinatura de todos os participantes da reunio.
Entre os nomes indicados temos treze indgenas de diferentes grupos e regies
do estado; desses, cinco atualmente fazem parte do quadro de servidores da SEIND:
Amarildo Machado, Tukano, assessor do Secretrio (que tambm integrou o DEPI e a
FEPI, como anteriormente mencionado); Bonifcio, Baniwa, atual Secretrio; Jos
Mario, Mura, atual Secretrio Adjunto; Lindomar (Linda), da etnia Marubo, chefe do
Departamento Financeiro; e Zuza Cavalcante, Mayuruna, coordenador de Programas e
Projetos no Departamento de Etnodesenvolvimento.
Juntamente a ata da reunio de abertura das cartas indgenas estava outro
documento com o ttulo Criao da Secretaria de Estado Para os Povos Indgenas,
sem nenhuma data, cabealho, ou indicao de procedimento. Este documento
reproduzido na sequncia:
Novembro de 2003 Solicitao da Criao da Secretaria pelas Lideranas na I Conferncia Estadual dos povos Indgenas;
19 de Abril de 2008 Elaborao do projeto de lei que dispe sobre a criao da
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Secretaria de Estado para os Povos Indgenas;
28 e 29 de Abril de 2009 Reunio interna com os conselheiros indgenas para apresentao e apreciao da criao da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas/SEIND;
30 de Abril de 2009 Realizao da III Reunio Ordinria do Conselho Estadual dos Povos Indgenas com a participao dos 20 Conselheiros Indgenas e no indgenas para a
definio do perfil e dos procedimentos administrativos para a escolha do Secretrio da
SEIND.
OBS: Perfil do Secretrio:
Que seja indgena
Que participe do movimento indgena;
Que tenha compromisso com o movimento indgena;
Que tenha boa relao com as organizaes indgenas, governo e organizaes no
governamentais;
Que tenha o mnimo de conhecimento da estrutura administrativa do Estado;
Que no seja indicao partidria;
Que tenha conhecimento bsico da lngua portuguesa, escrita e leitura em portugus;
Que acate as decises do Conselho Estadual dos Povos Indgenas e;
Que tenha o mnimo de conhecimento em legislao.
Consulta s organizaes indgenas encaminhamento de Carta Consulta s organizaes indgenas para indicarem os candidatos ao cargo de secretrio conforme os
requisitos estabelecidos pelo Conselho Estadual dos Povos Indgenas;
30 de Maio de 2009 Reunio extraordinria do Conselho Estadual dos Povos Indgenas para apreciao dos nomes indicados pelas lideranas indgenas, oportunidade em
que foram lidas as 57 cartas encaminhadas pelas bases, com representatividade de 88
Organizaes Indgenas e apurados os votos para a formao da lista trplice a ser apresentada
para o governador do estado.
Obs: dos 28 conselheiros, participaram 21 membros;
As datas citadas neste documento ordenam os acontecimentos que antecederam
a criao da Secretaria imprimindo certa perspectiva temporal a todo esse processo. A
criao da SEIND pode ser pensada enquanto um desdobramento dessa srie de
reunies e decises tomadas tanto por pessoas da administrao pblica, quanto pelos
representantes do movimento indgena.
O perfil de Secretrio delineado significativo nesse sentido, ao determinar,
atravs dos itens 2, 3 e 8, o dever de um profundo comprometimento com as
organizaes e estruturas indgenas: tanto o movimento quanto o Conselho. Por outro
lado, o sexto item desvincula este movimento poltico de qualquer articulao partidria
com governo, uma vez que estabelece que o Secretario no deveria ser indicao
partidria. J os itens 5, 7 e 9 apontam para a relevncia do candidato dominar preceitos
bsicos da forma de organizao estatal. Assim, conhecer basicamente sua estrutura
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administrativa, legislao e dominar a leitura e escrita em lngua portuguesa surgem
como condicionantes para a escolha do novo Secretrio.
As prescries de tais itens demonstram a convergncia de duas diferentes
estruturas e organizaes polticas que neste momento surgem como complementares.
H, ento, a possibilidade de dar continuidade a uma poltica que at ento percorria seu
caminho principalmente atravs de (mas no apenas) organizaes indgenas, mas
agora, passa a ocupar um lugar diferente: uma secretaria de estado.
A constituio da Secretaria, o objeto da pesquisa, de forma semelhante
abertura da Copa Indgena, por si mesmo no aponta para uma suposta polaridade,
mas evidencia a possibilidade de pensarmos alm dela ou mesmo desfaz-la. Como
busquei pontuar nesta breve reconstruo de alguns dos momentos que antecederam a
criao da SEIND, h a confluncia de diferentes movimentos que do corpo a uma
poltica produzida tanto no interior da administrao pblica, quanto fora dela, em
instituies do movimento indgena. Tendo em vista alguns dos pontos levantados nas
pginas anteriores, o texto seguir a seguinte estrutura:
O primeiro captulo dedicado s rotinas administrativas no interior da SEIND.
A relevncia conferida a tais procedimentos surgiu logo nos primeiros momentos em
campo: a negociao de uma contrapartida para a realizao da pesquisa. Atravs da
elaborao dos documentos de regulamentao da contrapartida, foi possvel perceber
como as rotinas administrativas no apenas movimentam e produzem papis, mas
conectam pessoas, atualizam relaes, e geram diferentes reflexos no funcionamento da
SEIND.
A partir deste primeiro olhar a respeito da execuo das rotinas burocrticas, no
segundo captulo, ser possvel compreender a Secretaria a partir das relaes
desencadeadas pelos papis: quem se comunica com a Secretaria? Quais so as
demandas que chegam a ela? Quais formatos tais papis seguem, e que foras polticas
eles representam em um plano mais amplo de anlise? O objetivo deste captulo
observar a forma com que elementos j sedimentados na burocracia estatal operam
conjuntamente com elementos oriundos de uma forma especfica de se fazer poltica e
de reivindicar direitos indgenas.
O terceiro captulo, por sua vez, trata das trajetrias dos servidores da SEIND e
do processo de tornar-se um servidor pblico. Objetiva-se refletir sobre a o processo de
constituio de um servidor pblico indgena ou um tcnico indgena na Secretaria.
Argumento que esta posio particular s pode ser ocupada por pessoas especficas, que
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combinam diferentes qualidades. Essas qualidades, por sua vez, remetem a diferentes
formas de estar na administrao pblica: como representante, como tcnico, como
gestor, ou como indgena.
O quarto e ultimo captulo se debrua sobre a forma com que a Secretaria produz
as aes voltadas aos povos indgenas fator que ocorre principalmente atravs da
escrita de projetos. O objetivo refletir sobre como a SEIND se coloca em relao s
outras instituies do poder pblico e s organizaes indgenas. Olhando para um
cenrio institucional mais amplo, abordo o Comit Gestor: uma estratgia de
organizao de diferentes instituies (indgenas e no indgenas, a nvel municipal,
regional, estadual e federal) que se ocupam da produo de polticas voltadas s
populaes indgenas, e que coordenada pela SEIND em conjunto com a FUNAI.
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Captulo 1: Rotinas, papis e demandas.
Neste captulo abordo as rotinas administrativas da SEIND, com o propsito de
descrever como a confluncia de diferentes elementos na produo e circulao de
documentos conecta pessoas, atualiza relaes, mobiliza foras polticas e origina
diferentes reflexos no funcionamento da instituio. A negociao para o incio da
pesquisa no escapou da centralidade atribuda a tais processos burocrticos e, assim,
apontou para a relevncia de um olhar cuidadoso acerca dos mesmos. Ao seguir o
percurso de documentos e demandas que so despachados incessantemente, busco
apontar como as relaes entre os servidores, as comunidades e organizaes indgenas,
e os demais rgos da administrao pblica so parte integrante dos procedimentos
burocrticos, de modo que os prprios limites entre a instituio e seu exterior se
mostram contingentes e imprecisos.
1.1 Chegando SEIND
Depois de caminhar pela tumultuada e barulhenta Avenida Sete de Setembro,
um dos principais eixos de movimento de pessoas, carros e mercadorias no centro
manauara, chega-se a uma praa de uma tranquilidade contrastante. Belssimas
edificaes histricas bem preservadas, que atualmente so ocupadas por instituies da
administrao pblica8, compem o cenrio da chegada SEIND. A Secretaria est
situada em uma modesta edificao de dois andares, que complementa, mesmo que de
forma coadjuvante, o conjunto arquitetnico da praa - cujo principal elemento , sem
dvida, o grande Pao Municipal. Logo ao atravessarmos a porta de entrada e subirmos
os poucos degraus nos deparamos com uma escrivaninha atravessada no estreito
corredor com os dizeres: Identifique-se aqui. Esta a Recepo da SEIND,
improvisada frente falta de espao no prdio. A forma com que a escrivaninha est
disposta tambm cumpre um papel funcional: impossibilitar o acesso de pessoas no
identificadas s dependncias da Secretaria.
As primeiras vezes em que estive na SEIND, tive meu nome e nmero de
documento anotado pelos funcionrios da portaria, procedimento de rotina para todos os
visitantes. Com o passar do tempo e provavelmente em funo da frequncia da minha
presena, tal procedimento passou a no mais ocorrer. J nos ltimos dias do trabalho
8 Pode-se citar como exemplos o Arquivo Pblico, a Secretaria da Justia e o INSS.
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de campo, os funcionrios registravam meu horrio de expediente (chegada e sada da
Secretaria), como ocorre com os servidores.
Como estratgia para iniciar a pesquisa optei pela realizao de entrevistas,
buscando, em um primeiro momento, delinear alguns aspectos do processo de
constituio e do funcionamento atual da Secretaria a partir da narrativa da trajetria de
alguns servidores. Neste processo (e em outros vrios momentos) tive grande ajuda de
uma das servidoras da SEIND, Chris Lopes. Chris Coordenadora de Pesquisa e
Sociodiversidade do Departamento de Promoo dos Direitos dos Povos Indgenas
(DEPI) e foi a primeira pessoa com quem estabeleci contato na Secretaria. Formada em
Cincias Sociais, atualmente est finalizando o mestrado em Antropologia Social pela
Universidade Federal do Amazonas (UFAM). J tendo atuado enquanto membro do
comit de tica do Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia (INPA), Chris Lopes
encarregada de atender os pesquisadores que buscam a instituio como foi meu
caso9.
Seguindo as indicaes de Chris Lopes, privilegiei a realizao de entrevistas
com os servidores (no caso, servidoras) que acumularam mais tempo de trabalho junto
Secretaria. A partir da foi possvel conhecer um pouco mais de perto a rotina da SEIND
e do trabalho desenvolvido pelas entrevistadas, j que grande parte das conversas foi
realizada em seus ambientes de trabalho, sendo poucas as vezes em que elas optaram
pelo silncio de uma sala reservada. Durante as entrevistas tambm surgia a
oportunidade de falar sobre aspectos da pesquisa, ainda em fase inicial, ao mesmo
tempo em que os demais servidores se familiarizavam com minha presena no ambiente
da Secretaria.
Logo ao chegar SEIND eu informava aos responsveis pela portaria com quem
iria conversar. Eles ento me acompanhavam at a sala do entrevistado e anunciavam
minha chegada. Uma das frases que se tornou recorrente logo nos primeiros dias de
trabalho de campo e que, muitas vezes, antecedeu as entrevistas foi: ele(a) est
despachando, tem que esperar um pouco..., s vezes com algumas variaes como: a
Professora (Chefe de Gabinete) est com o Secretrio, despachando, logo chega.
Durante a espera pelas pessoas que estavam despachando, era inevitvel eu me
perguntar: o que despachar? O que as pessoas tanto despacham?
9 Atravs de conversas informais, soube que a Secretaria j foi objeto de pelo menos dois trabalhos de
pesquisa de alunos do curso de Cincias Sociais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). A
minha pesquisa foi a primeira a ser realizada na instituio em nvel de mestrado.
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Figura 3: Fachada da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND).
Figura 4: Portaria da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND). Enildo Lopes, sentado, e
Waldenias Monteiro, de p. Ao lado, podemos observar caixas de artesanato Baniwa de uma organizao
que estava em reunio com o Secretrio.
O ato de despachar, cotidiano ao ambiente da SEIND, consiste na principal
atividade que autoriza a circulao de papis internamente e para alm da Secretaria: os
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diversos papis no apenas circulam entre salas, departamentos e outras instituies,
mas so despachados de um lugar para outro. Cada vez que um documento ou papel
muda de lugar, seja este uma sala, uma mesa ou uma instituio, recebe uma
assinatura, possivelmente um carimbo, o registro da data e hora em que foi
despachado10
e, grande parte das vezes, segue para seu novo destino com algumas
recomendaes. Assim, a trajetria percorrida, bem como o tempo de circulao dos
papis, so registrados neles prprios atravs de tais procedimentos burocrticos. Esse
conjunto de atividades constitui o despacho.
Segundo um acordo verbal estabelecido entre os servidores da SEIND, a data de
recebimento dos papis e o final de seu processo de circulao interna (etapa em que se
espera que j exista uma resposta ao envio do papel, construda progressivamente
durante sua circulao), deve se prolongar por no mximo quinze dias. Isso nem sempre
ocorre e, muitas vezes, suscita certa insatisfao por parte dos servidores. O principal
motivo levantado pelos mesmos a existncia de diferentes variveis que incidem no
tempo levado pelos papis que iro percorrer determinado trajeto: viagens, prazos para
entrega de projetos, alterao de calendrio de editais, acmulo de trabalho, entre
outros. Tais variveis, no entanto, no suprimem as etapas de tal processo de circulao
altamente formalizado (e que so incessantemente executadas pelos servidores, como
veremos a seguir), mas do margem a variadas estratgias adotadas no sentido de tornar
tais processos mais dinmicos. O acordo verbal anteriormente citado, bem como a
nfase na comunicao entre os servidores, so alguns exemplos que sero retomados
na sequncia.
Desta forma, ao tentar compreender o despacho no ambiente da Secretaria, fui
levada a perceber a centralidade ocupada pelos papis nas atividades cotidianamente
desempenhadas pelos servidores. A relevncia conferida aos despachos de papis, por
sua vez, apontou para a possibilidade de pensar a SEIND a partir da circulao dos
mesmos, e revelou a reflexividade dos servidores a respeito dos procedimentos
burocrticos cotidianamente executados.
Deve-se destacar que o ato de despachar adquire uma importncia fundamental
nesta anlise ao ser parte integrante de um processo mais amplo de produo de
documentos (ainda que a presena de papis dentro da SEIND seja mais abrangente do
que aqueles despachados). Nesse sentido, busco pensar a forma com que cada despacho,
10 Ressalva-se que nem sempre a data e a hora dos despachos esto registradas nos documentos.
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ou cada estgio de circulao, passvel de produzir diferentes efeitos tanto nos
prprios papis que circulam (que so progressivamente modificados a cada etapa e, no
momento em que so arquivados, j sustentam o status de documentos) quanto na
prpria Secretaria (j que sua circulao coloca em movimento no s os papis, mas
tambm pessoas vinculadas a diferentes esferas de representatividade poltica, como
veremos na sequncia).
Em sua etnografia Persona, Agencia y Estado, Brgida Renoldi (2010)
investiga as rotinas judiciais em um Juzgado Federal de Instruccin, na Argentina. Ao
acompanhar situaes cotidianas do Juizado, a autora percebeu que a execuo dos
processos burocrticos suscetvel tanto criatividade das pessoas, quanto aos meios
materiais necessrios para que eles ocorram (que nem sempre so utilizados da maneira
prescrita). De forma semelhante, o esforo realizado neste captulo busca refletir sobre a
centralidade da circulao de papis e demais procedimentos burocrticos, e suas
diferentes potencialidades: mobilizar e conectar pessoas, atualizar relaes, mobilizar
foras polticas, e originar diferentes reflexos nas rotinas administrativas da SEIND.
Assim, como Renoldi (2010) sugere, a dupla agncia de pessoas e papis provoca
efeitos que escapam s funes anteriormente designadas a tais processos; justamente
essa possibilidade de superao que nos permitiria perceber o mecanismo burocrtico
em movimento, tornando possvel o prprio funcionamento institucional (2010:106).
Destaca-se que olhar para os papis enquanto forma de compreenso de
processos mais amplos nos coloca frente a um vocabulrio especfico, em que o
acionamento de certas categorias na escrita dos textos carregados pelos papis evidencia
sua conexo com outras esferas. Atentando para tal questo, as palavras destacadas em
itlico sero tratadas enquanto categorias nativas, que requerem um olhar mais
cuidadoso na anlise que segue.
1.2 O campo de papis
A prpria insero no campo para a realizao da pesquisa no escapou
centralidade dos papis. Aps o primeiro contato com a Secretaria realizado em outubro
de 2011, ocasio em que foi possvel conhecer alguns de seus servidores e conversar a
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respeito da realizao de uma pesquisa cujo tema central seria a prpria instituio, foi
requerida a elaborao de um projeto de pesquisa que deveria ser enviado SEIND. Tal
projeto, solicitado pela servidora Chris Lopes, responsvel por atender este tipo de
demanda, deveria passar pela anlise dos tcnicos da SEIND e do secretrio de estado,
que decidiriam pelo aceite ou no da realizao da pesquisa.
Ao enviar o projeto, direcionei o e-mail a dois tcnicos: a prpria Chris Lopes e
tambm a Ageu Vilcio, responsvel pela Coordenao de ndios na Cidade (tema que
me despertava interesse por estar vinculada ao Grupo de Etnologia Urbana do
Laboratrio de Antropologia Urbana da Universidade de So Paulo). Ageu Vilcio
indgena sater-maw e ocupa o cargo de Assessor na Coordenao de Promoo Social
no Departamento de Promoo dos Povos Indgenas (DEPI) o mesmo departamento
da servidora Chris Lopes.
No sei ao certo qual foi a circulao do projeto que encaminhei, no entanto, ao
escrever manifestando minha vontade de retornar a Manaus no ms de fevereiro de
2012 com o objetivo de dar incio a um perodo de trabalho de campo de trs meses de
durao, recebi uma resposta afirmativa. Ao chegar capital amazonense, iniciou-se o
dilogo com Chris Lopes a respeito da forma como a pesquisa seria conduzida. A
servidora mencionou que a SEIND faz uso de alguns documentos no sentido de
regulamentar as pesquisas realizadas na instituio: o Termo de Anuncia Pesquisa
(TAP) e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE Anexo III).
O Termo de Anuncia Pesquisa (TAP) apresentado pela servidora consiste em
um documento de duas pginas divididas em nove itens; cada um deles tem suas
especificidades abordadas em distintos tpicos. A forma do documento, atentando aqui
tanto para a diagramao da folha, quanto para o vocabulrio acionado, demonstra
grande similaridade a um contrato jurdico. A reproduo integral desse documento, na
sequncia11
, ser realizada tanto no sentido de propiciar uma reflexo sobre as novas
condies de negociao e regulamentao da pesquisa antropolgica, quanto em
funo de exprimir um modo de operar que caracteriza a dinmica da SEIND.
TERMO DE ANUNCIA PRVIA
Pelo presente a Secretaria de Estado para os Povos Indgenas, com CNPJ 11.126.029.0001-30 e
endereo Rua Bernardo Ramos, 179, Centro, Manaus/AM, atravs de seu Secretrio de
11
Alguns dados foram suprimidos no sentido de manter a privacidade dos interlocutores.
-
32
Estado, Bonifcio Jos, brasileiro, [estado civil], com CPF [xxxx], est ciente e concorda com
a realizao do projeto de pesquisa de dissertao ndios e no ndios na administrao
pblica: uma etnografia da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas do Estado do
Amazonas, da mestranda Tiemi Kayamori Lobato da Costa do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Paran
(PPGAS/SCHLA/UFPR), nos seguintes termos:
1 Dos objetivos da pesquisa: Objetivo Geral: Refletir sobre os desdobramentos do movimento indgena a partir de sua
relao com a administrao pblica na Secretaria de Estado para os Povos Indgenas SEIND.
2 Sujeitos envolvidos na pesquisa: Servidores da SEIND.
3 - Da forma como vai ser conduzida a pesquisa
Trata-se de uma pesquisa etnogrfica que utilizar como instrumentos de coleta de dados:
a) o levantamento documental de informaes sobre a SEIND a fim de reconstruir a trajetria de criao da Secretaria;
b) acompanhar, documentar e registrar o processo interno dirio da Secretaria na administrao pblica, buscando perceber a forma com que as polticas pblicas
voltadas s populaes indgenas so elaboradas;
c) refletir sobre a trajetria dos funcionrios indgenas e no indgenas da Secretaria, atividade que ser realizada por meio de entrevistas;
d) levantar o relacionamento interinstitucional da Seind com outras instituies do Governo e fora dele, com as organizaes indgenas e no indgenas, a fim de refletir
sobre o modelo de gesto de polticas pblicas.
4 Dos materiais biolgicos e recursos genticos a serem pesquisados No haver utilizao de materiais biolgicos e recursos genticos nesta pesquisa.
5 Da utilizao do conhecimento tradicional associado, da propriedade intelectual e da publicao dos resultados da pesquisa
A SEIND entende por publicao os artigos em peridicos, coletneas, relatrios, laudos,
gravaes, vdeos, teses ou dissertao aprovada e quaisquer obras de acesso pblico impresso
ou digital. As informaes sobre ndios e no ndios na administrao pblica obtidos a partir da etnografia da SEIND, podero ser publicadas pela pesquisadora desde que cumpra os
seguintes requisitos:
- dar acesso ao manuscrito integral em portugus SEIND para que esta, no prazo mximo de
30 dias, possa exercer seu direito de manifestao, comunicando por escrito seu consentimento
ou indicando as partes no autorizadas para publicao;
- em qualquer caso de publicao, o pesquisador obrigado consignar a colaborao da
SEIND.
- um exemplar de cada publicao dever ser entregue SEIND;
- os conhecimentos tradicionais identificados no sero patenteados.
6 Dos impactos ambientais, sociais e culturais da pesquisa A realizao deste projeto de pesquisa no prev impactos negativos ambientais, sociais ou
culturais SEIND.
7 Do oramento do projeto As despesas com o projeto sero sustentadas pela pesquisadora e instituio qual ela est
inserida: Universidade Federal do Paran (atravs de bolsa de estudos).
8 Da repartio de benefcios A SEIND define como benefcios quaisquer bens, produtos e/ou servios oriundos do projeto
-
33
de pesquisa e que podem ser repartidos, a exemplo de publicaes e capacitaes. Para esta
pesquisa no haver repartio de benefcios econmicos. A SEIND ser beneficiada com os
resultados:
- registro e documentao das atividades desenvolvidas pela Secretaria durante o perodo da
pesquisa de campo (Maro a Maio de 2012);
- divulgao da Secretaria, bem como destaque para as atividades realizadas pela mesma, em
eventos acadmicos dos quais a pesquisadora participar (congressos, reunies, grupos de
pesquisa, entre outros);
- compartilhamento de pesquisas e publicaes acadmicas dos grupos de pesquisa dos quais
a pesquisadora faz parte, a saber: Ncleo de Antropologia Urbana NAU, vinculado Universidade de So Paulo USP; Ncleo de Estudos Amerndios NEA, vinculado Universidade Federal do Paran UFPR; e Ncleo de Antropologia da Poltica, do Estado e das Relaes de Mercado NAPER, vinculado Universidade Federal do Paran UFPR.
9 Compromisso do proponente O pesquisador se compromete :
- entregar uma cpia da tese (e todas as outras publicaes a partir dela) SEIND;
- garantir o direito da SEIND em retirar-se da pesquisa em qualquer fase sem que isto lhe cause
implicaes jurdicas ou econmicas;
- destacar a participao da SEIND na pesquisa.
Este Termo de Anuncia no substitui a aprovao do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.
Tendo lido e concordado com os termos acima descritos, assinam as partes envolvidas na
pesquisa.
Este TAP validado pela Ata da reunio realizada com as partes envolvidas.
__________________________
Bonifcio Jos
Secretrio de Estado para os Povos Indgenas
__________________________
Tiemi Kayamori Lobato da Costa
Pesquisadora
Manaus, 19 de Maro de 2012.
Mesmo que em um primeiro momento minha posio tenha sido de desconforto
a respeito da assinatura de tal documento, justamente por se tratar de algo ainda
controverso e pouco frequente na pesquisa antropolgica, mais tarde, refletindo sobre a
maneira como ele foi elaborado, bem como sobre a relevncia conferida aos despachos
na SEIND, tornou-se possvel retornar a tal questo com um novo olhar.
Em primeiro lugar, o Termo de Anuncia Pesquisa (TAP) foi apresentado a
mim de forma incompleta: eu deveria terminar de preench-lo de acordo com os dados
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contidos em meu projeto, com destaque reproduo integral de seu objetivo geral e
objetivos especficos12
. Sendo assim, no inadequado dizer que participei de sua
elaborao. Nota-se tambm que a estrutura do documento provavelmente foi inspirada
por outro Termo de Anuncia previamente existente; um indcio disso o item quatro,
que dispe sobre o uso de materiais biolgicos e recursos genticos, o que no se aplica
a uma pesquisa realizada em uma repartio pblica como a SEIND. Desta forma, tal
documento foi elaborado a partir de dois conjuntos diferentes de informaes: seu
contedo foi em parte retirado do projeto de pesquisa (ao realizada por mim), e em
parte constitudo a partir de uma fonte desconhecida.
Assim, ao incorporar trechos do meu projeto de pesquisa no TAP, possvel
dizer que a Secretaria passa a assumi-los como sendo tambm os dela. Ao assinar o
termo, estou me comprometendo com as prprias questes de pesquisa esboadas por
mim que tambm passam a fazer parte dos compromissos com a instituio e com
meus interlocutores e vice-versa. O Termo de Anuncia, nesse sentido, estabelece um
compromisso recproco entre a pesquisadora e os pesquisados a partir de um processo
conjunto de construo de tal documento (ainda que a iniciativa seja oriunda de um dos
lados).
Um dos compromissos firmados no Termo de Anuncia a Pesquisa (TAP) seria
a elaborao e o uso de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) a ser
assinado por todos os servidores que participassem da pesquisa atravs de entrevistas.
Tendo em vista que o Termo de Consentimento tambm deveria ser aprovado pelos
tcnicos da SEIND, e j tendo a experincia de colaborar com a elaborao do Termo de
Anuncia, no momento de escrita deste segundo documento busquei me aproximar de
um formato que reproduzisse a formalidade e o contedo do anterior (ANEXO I). O
TCLE, nesse sentido, reproduz os objetivos contidos no TAP que, por sua vez, reproduz
(mas no somente) os objetivos do projeto.
Destaca-se que o Termo de Anuncia, alm de ter gerado o Termo de
Consentimento, deu origem a outro documento: um Parecer em relao pesquisa. Este
novo documento, que deveria ser assinado somente pelo Secretrio de Estado, consiste
em um texto de uma pgina que emite uma avaliao a respeito do Termo de Anuncia
(que, por sua vez, foi elaborado pela prpria Secretaria, ainda que com minha
participao), autorizando a realizao da pesquisa. Da mesma forma que nos outros
documentos, o Parecer tambm incorpora partes do Termo de Anuncia ao qual se
12
As partes preenchidas por mim no Termo de Anuncia foram destacadas em itlico.
-
35
refere, acrescentando ainda algumas disposies. A recomendao foi de carregar o
Parecer comigo cotidianamente, e apresent-lo caso algum servidor tivesse dvidas em
relao aos dados que poderiam ser acessados o que no foi necessrio durante a
pesquisa na SEIND. Imagino que isso deva ter ocorrido porque, alm de passar por um
procedimento de integrao (em que fui apresentada a todos pela Coordenadora de
Recursos Humanos, Karlene), durante a pesquisa foi possvel estabelecer certa relao
com os servidores que dispensou o papel.
Remontando forma com que tais processos foram desencadeados, temos,
inicialmente, o requerimento da elaborao de um documento expondo minhas
intenes e objetivos: o projeto de pesquisa. Na sequncia, observamos tal projeto
sendo tratado como uma demanda a ser analisada pelos tcnicos da SEIND. Temos a
resposta ao projeto a partir da elaborao de um documento que busca regulamentar a
realizao da pesquisa: o Termo de Anuncia Pesquisa (TAP). Vimos que a forma
seguida pelo Termo de Anuncia foi incorporada de um documento desconhecido, j
seu contedo foi parte retirado do projeto e parte consistiu em novos elementos. Tal
Termo, por sua vez, requer o uso de outro documento na realizao da pesquisa: o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que surge enquanto um
compromisso de minha parte em relao Secretaria e/ou aos servidores entrevistados
(tomados individualmente). Sua elaborao tambm foi de acordo com o formato
buscado pelo Termo de Anuncia, incorporando partes de seu contedo. Posteriormente,
temos o Parecer em relao ao prprio Termo de Anuncia emitido pela Secretaria, que
refora os objetivos estabelecidos nos documentos anteriores oriundos primeiramente
do projeto elaborado. Embora o contedo dos documentos parea ser o mesmo, cada um
cumpre um fim especfico, no podendo ser substitudo por outro.
O processo de produo destes quatro documentos evidencia seus padres e
tambm peculiaridades: ao utilizar certo formato e vocabulrio reproduzindo partes uns
dos outros, e ao acrescentar novas disposies (dando origem a mais documentos), cada
um deles passa a ser insubstituvel - o que tambm permite que cumpram diferentes
papis. Tal dinmica permite a observao de um processo em que um documento pr-
existente e de origem incerta (ao menos para mim), condiciona o surgimento dos
demais. Nesse sentido, os papis colocam certas regras que devem ser seguidas tanto
por mim quanto pelos servidores, ao mesmo tempo em que so multiplicados por ns
mesmos.
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36
A regulamentao da situao de pesquisa atravs do contrato tem sido acionada
em contextos contemporneos e, de certa forma, est ligada a formas contratuais que
vm de outras esferas. A antropologia, disciplina que desde sua consolidao busca
continuamente refletir sobre seus processos de produo de conhecimento, tem
procurado analisar as consequncias que isso pode trazer realizao das etnografias,
tanto por parte dos pesquisadores quanto dos seus interlocutores. No caso especfico
aqui ilustrado, foi possvel perceber que embora a assinatura de tais termos no seja
uma prtica comumente observada na pesquisa antropolgica, em outras reas, isso
um padro. Desta forma, acredito que este desdobramento est perfeitamente alinhado
aos processos e dinmicas que acompanhei dentro da Secretaria: todos devidamente
registrados em papel.
Ao mesmo tempo, preciso levar em conta que, por um lado, temos uma
pesquisadora desconhecida, vinda de uma regio distante, e inexperiente; e, por outro,
uma instituio pblica imersa em uma conjuntura bastante complexa de interao,
muitas vezes tensa, tanto com o prprio governo do estado quanto com organizaes
indgenas, o que justificaria certo cuidado com a minha presena.
No posso dizer ao certo se esses foram os motivos que levaram elaborao do
Termo de Anuncia e, mais tarde, de um Parecer a respeito do mesmo. No entanto, de
suma importncia mencionar que nem o Termo, nem o Parecer foram assinados. Na
poca em que tais documentos foram elaborados o Secretrio encontrava-se fora da
cidade e, aps seu retorno, o assunto no voltou tona. Talvez este fato aponte muito
mais para a relevncia do processo de produo de tais documentos e para minha
disposio a assin-los, do que para o contrato em si e seus efeitos. A novidade de tal
forma de regulamentao, nesse sentido, parece ter se dado no apenas pelo lado da
pesquisadora, mas tambm consistiu em uma experimentao pelo lado dos prprios
pesquisados.
Foi durante este momento de negociao que um dos itens contidos no TAP
tomou grande importncia: o Compromisso do Proponente. De acordo com Chris
Lopes, para a realizao da pesquisa na SEIND espera-se que o interessado oferea
alguma forma de contrapartida. Assim, busca-se o estabelecimento de compromissos
no somente antes e aps o trabalho de campo (como o compartilhamento dos
resultados e a entrega de uma cpia da dissertao, por exemplo), mas tambm durante
sua realizao.
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37
A conversa com a servidora da SEIND seguiu a partir de um exemplo: Se voc
soubesse utilizar o Excel de forma avanada, poderia propor um curso de Excel para os
servidores. Meu repertrio de Excel era mnimo, bem como o de cursos que poderia
oferecer. Conversando mais um pouco, Chris levantou que durante a reunio de
Planejamento Estratgico, momento em que realizado, ao comeo do ano, um balano
do trabalho na e da Secretaria, surgiu como questo a insuficincia de dados relativos s
demandas oriundas da sociedade. Em outros termos, no seria possvel avaliar o que
a sociedade espera da SEIND de acordo com a servidora. A ausncia de um registro
sistemtico sobre por que as pessoas procuram a SEIND tambm dificultaria o
acompanhamento, por parte dos servidores, das atividades realizadas em outros
departamentos, impossibilitando traar um quadro geral da instituio. No era
possvel saber quantas demandas chegam Secretaria por ms ou mesmo quais seriam
as mais recorrentes; assim, seria de extrema importncia tentar desenvolver algum
sistema de catalogao.
Buscando de alguma forma coletar dados para pensar as demandas, e mais uma
vez seguindo as recomendaes de Chris Lopes, dei incio a um trabalho bastante
manual: tabelar todos os registros de pessoas ou instituies que procuraram a SEIND
em janeiro e fevereiro de 2012 (meses que antecederam o trabalho de campo), e outubro
e novembro de 2009 (os dois primeiros meses de funcionamento da SEIND como uma
Secretaria de Estado). Estabelecemos que esta atividade integraria minha contrapartida
durante a realizao da pesquisa.
1.3 As demandas
A tarefa de tabular as demandas, que inicialmente parecia bastante manual, se
mostrou muito interessante: ao mesmo tempo em que minha presena na Secretaria no
mais dependia da realizao de entrevistas (pois agora eu tinha uma funo que
permitia acompanhar o cotidiano da SEIND), os servidores passaram a me ver ao
computador, digitando tabelas e mexendo em papis e pastas como a maioria deles no
dia-a-dia.
Ao lidar com as demandas fui gradativamente percebendo que elas forneciam
uma via de acesso compreenso das relaes entre a SEIND e seus diferentes
interlocutores, assim como do prprio funcionamento da Secretaria que, em grande
-
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medida, um efeito das numerosas demandas que recebe. A partir da materialidade das
demandas, comearam a surgir conexes entre as rotinas administrativas e o exterior da
secretaria, bem como entre seus prprios departamentos e servidores.
A sala em que passei a trabalhar era uma diviso do Gabinete do Secretrio,
onde tambm trabalha um de seus assessores e duas estagirias (que a maior parte do
tempo pareciam estar bastante atarefadas, constituindo praticamente a expresso fsica
do movimento dos papis indo de uma sala a outra). Fui alocada justamente no local de
maior prestgio da SEIND: perto da sala do secretrio, juntamente com seus assessores e
ao lado da sala da chefe de gabinete. Ao mesmo tempo, acredito que este local
possibilitava certo controle, por parte deles, a respeito das atividades que eu estava
desenvolvendo.
Figura 5: A assessora Keli Oliveira na sala da chefe de gabinete, Ozenete Aguiar. Ao fundo esto algumas
das pastas que contm as demandas analisadas na pesquisa.
O trabalho que eu deveria desenvolver olhando para aquela enorme quantidade
de demandas era separar os papis recebidos e verificar o contedo de cada um deles
qual era a demanda contida nele (caso houvesse), quem foi o autor do documento, de
onde veio e o tempo que permaneceu em circulao na Secretaria. As demandas dos
meses de janeiro e fevereiro de 2012 estavam arquivadas em pastas com os dizeres
Documentos Recebidos e organizadas de acordo com as instituies que as
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39
encaminharam SEIND. Tambm havia outras pastas e arquivos que continham mais
documentos recebidos ou expedidos em anos anteriores. Note-se que, ao serem
arquivados nas pastas (portanto, ao encerrarem sua circulao, ao menos
temporariamente, j que uma pesquisadora vinda de longe pode resgat-los), os papis
recebidos j sustentam o status de documentos e contm algum despacho capaz de
interromper sua movimentao.
As pastas com que lidei tinham sido organizadas da seguinte forma: demais
secretarias e rgos do governo do estado se encontravam em uma pasta; as demandas
oriundas de instituies pblicas federais estavam organizadas em outra pasta; e, com
um volume maior de documentos, na terceira pasta estavam organizadas as demandas
das Organizaes Indgenas. Nesta ltima se encontravam, alm de ofcios e cartas
circulares de associaes e organizaes indgenas, demandas individuais.
As demandas que chegam SEIND so as mais diversas, podendo ser enviadas
por indivduos ou coletivos indgenas (esses ltimos podem ou no estar
institucionalizados sob a forma de associaes). Apesar da multiplicidade de contextos
que podem dar origem a demandas, a fala do chefe do Departamento de
Etnodesenvolvimento, Cristiano, no indgena, tcnico em pesca e com ps-graduao
em gesto ambiental, revela a existncia de alguns critrios que operam no sentido de
organizar a forma como elas sero tratadas:
Chegam demandas individuais, chegam demandas de comunidades, e chegam demandas em nome de organizaes indgenas. A poltica adotada pela secretaria, dado
os critrios de acesso a recursos, que s tem como atender ou tentar atender as
demandas em nome de um grupo, e que esse grupo esteja formalizado por meio de
organizao indgena. Ento o atendimento basicamente por meio de organizaes
indgenas. As que chegam por meio individual ou comunitrio, a gente procura
inform-los que temos as limitaes para estar atendendo as demandas de grupos no
formais, dado nosso oramento, que se a gente tivesse um oramento maior at daria
para estar atendendo. Como no tem e o oramento limitado, como a gente faz: recebe
a demanda e, em conjunto com a organizao indgena, procura transformar essa
demanda em um projeto para que seja captado esse recurso e que esse recurso seja
passado para a organizao. (Cristiano, em entrevista, 08/05/2012)
As demandas, de maneira geral, podem conter pedidos de bens materiais, como
aquisio de barcos, motores, construo de malocas, passagens fluviais etc., ou ento
tratar de assuntos no materi