costa, tiemi. indígenas e não indígenas na administração pública

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL Tiemi Kayamori Lobato da Costa Indígenas e não indígenas na administração pública: Uma etnografia da Secretaria de Estado para os Povos Indígenas (SEIND) do Amazonas. Curitiba 2013

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Costa, Tiemi. Indígenas e não indígenas na administração pública

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    SETOR DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    Tiemi Kayamori Lobato da Costa

    Indgenas e no indgenas na administrao pblica:

    Uma etnografia da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND) do

    Amazonas.

    Curitiba

    2013

  • 2

    Tiemi Kayamori Lobato da Costa

    Indgenas e no indgenas na administrao pblica:

    Uma etnografia da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND) do

    Amazonas.

    Curitiba

    2013

    Dissertao de Mestrado em Antropologia

    Social apresentada no Programa de Ps-

    Graduao em Antropologia Social da

    Universidade Federal do Paran, sob a

    orientao da Professora Doutora Cima Barbato

    Bevilaqua.

  • 3

    Indgenas e no indgenas na administrao pblica:

    Uma etnografia da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND) do

    Amazonas.

    Tiemi Kayamori Lobato da Costa

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________________

    Prof. Dra. Cima Barbato Bevilaqua

    ______________________________________________________

    Prof. Dra. Edilene Coffacci de Lima

    ______________________________________________________

    Prof. Dr. Jos Guilherme Cantor Magnani

  • 4

    Agradecimentos

    Agradeo a CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior),

    pela bolsa que me permitiu realizar o mestrado.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do

    Paran, seus funcionrios e professores.

    A todos os colegas e amigos do mestrado, do NAPER (Ncleo de Antropologia da

    Poltica, Estado e Relaes de Mercado) e do NEA (Ncleo de Estudos Amerndios).

    Obrigada por aguentarem meus comentrios (s vezes sem sentido) e por terem

    contribudo imensamente com esse trabalho. Gostaria de citar os professores Miguel

    Carid Naviera, Marcos da Silva Silveira, Joo Rickli e Maria Ins Smiljanic; e alguns

    colegas sempre presentes: Elton Colini, Fernando Ciello, Guilherme Nanini, Karina

    Coelho, Gabriela Becker, Cristopher Feliphe Ramos, Victor Castillo de Macedo e

    Joelcyo Veras Costa.

    Agradeo especialmente as professoras Edilene Cofacci de Lima, fundamental em toda

    a minha formao acadmica como professora, orientadora e pessoa; a Rosngela

    Digiovanni, que me incentivou a prestar a seleo de mestrado (mesmo eu achando que

    no conseguiria); e a Laura Perez Gil, pelos comentrios na banca de qualificao, e

    pelo exemplo a ser seguido.

    Aos meus colegas do Grupo de Etnologia Urbana (GEU) e ao Ncleo de Antropologia

    Urbana da Universidade de So Paulo: Ana Fiori, Ana Sert, Flavia Belletati, Jos

    Agnello, Rodrigo Chiquetto e Yuri Tambucci pela acolhida, pela amizade, e pelas

    aventuras amaznicas. Mesmo de longe, vocs fizeram parte de todas as etapas de

    construo desta dissertao.

    Agradeo igualmente ao Prof. Jos Guilherme Magnani, por viabilizar este

    intercmbio e, principalmente, pelo entusiasmo e valiosas observaes.

    Agradeo imensamente aos meus amigos Angelita, Gabi, Nat, Fer, Rafa, Gustavo

    (Gnomo), Mema, Paulera, Taci, Betinha, Raysa e Soneca. No sei o que seria de mim

    sem vocs!

  • 5

    Agradeo a todos os servidores e amigos da SEIND. A dissertao s foi possvel

    porque vocs me receberam de braos abertos: secretrio Bonifcio, a prof. Ozenete,

    Jos Mario, Rose Meire, Cristiano, Ageu, Deniziu, Sinsio, Rafael, Miquelina,

    Amarildo Maciel, Rosa dos Anjos, Claudio Pequeno, Jurandir, Zuza, Antnia, Amarildo

    Tukano, Darcy, Miguel Maia, Keli, Tarcila, Karlene, Dorota, Luciene, Linda Marubo,

    Rosi, Vielo, Weminsont, Adail, Dyene, Lobo, Isaac e Valdemir. Gostaria de registrar

    um especial agradecimento a querida Chris Lopes, com quem muito aprendi.

    A todos que fizeram parte da minha vivncia em Manaus: minhas manas Andreza e

    Lucie, e todos os amigos Sater-Maw de Yapyrehyt, Waikiru e Hywy.

    A minha famlia, em particular meu pai, Mario, e meus irmos, Lucas e Joo. Obrigada

    pelo carinho, pacincia e amor, sempre incondicional.

    A minha orientadora, Cima B. Bevilaqua, uma das pessoas mais incrveis que j

    conheci. Obrigada por tudo!

  • 6

    Resumo

    O presente trabalho consiste em uma etnografia do processo de estar e fazer uma

    administrao pblica tanto por servidores indgenas quanto no indgenas. Tomo como

    ponto de reflexo uma instituio brasileira: a Secretaria de Estado para os Povos

    Indgenas (SEIND), rgo vinculado ao poder executivo do estado do Amazonas,

    Brasil, criado a partir da Lei 3.403 de 2009. Busca-se refletir sobre o recente

    protagonismo de agentes estatais indgenas na administrao pblica e, assim, voltar o

    olhar para a uma forma estatal que emerge a partir do reconhecimento da diferena.

    Atravs da etnografia foi possvel notar que a forma com que os servidores

    indgenas se percebem em tal processo implica na continuidade de um projeto poltico

    que, at ento, havia tido seus principais desdobramentos atravs de organizaes e

    associaes vinculadas ao movimento indgena. Ao mesmo tempo em que o

    surgimento da SEIND possibilita a ocupao de um lugar de poder indito na estrutura

    estatal, estar em tal posio tambm significa entrar em consonncia com um novo

    universo poltico e certa ordem e forma da organizao estatal brasileira.

    O acompanhamento das atividades cotidianas na SEIND demonstrou que o

    imbricamento entre diferentes formas de estar na administrao pblica imprimem

    grande fluidez s concepes de Estado e de indianidade. Assim, as rotinas

    administrativas, a percepo dos servidores a respeito de seus trabalhos, e as interaes

    interinstitucionais, recriam e atualizam tal dualidade de diferentes formas: Estado e

    ndios, governo e movimento indgena, tcnica e poltica, indgenas e no

    indgenas. A articulao de ambos universos polticos demonstrou grande criatividade

    por parte dos servidores que, frente ao baixo oramento da instituio, utilizam a

    experincia adquirida nas associaes e organizaes indgenas para fundamentar

    diferentes estratgias de gesto. Argumento que esse espao de negociao entre um

    plo supostamente indgena e outro Estatal, ou seja, esta permanente confluncia,

    acabaria por produzir a SEIND em sua especificidade enquanto forma de administrao

    pblica e enquanto projeto poltico indgena.

    Palavras chave: Administrao pblica; Indgenas; Estado.

  • 7

    Sumrio

    Introduo .................................................................................................................... 09

    a. A Seind, um breve histrico .................................................................................. 15

    Captulo 1: Rotinas, papis e demandas....................................................................... 26

    1.1 Chegando SEIND ............................................................................................... 26

    1.2 O 'Campo' de papis .............................................................................................. 31

    1.3 As demandas ......................................................................................................... 37

    Captulo 2: Espaos, despachos e pessoas .................................................................. 51

    2.1 Movimentos e Hierarquias: a organizao interna da SEIND .............................. 51

    2.2 Tomando providncias: a movimentao de papis e relaes ............................ 61

    Captulo 3: Burocratas, tcnicos, lderes e representantes: os servidores da SEIND .. 72

    3.1 Articulando um quadro de servidores indgenas e no indgenas .......................... 72

    3.2 Pensando a indianidade: distines e divises ...................................................... 79

    3.3 Representantes e representatividades ..................................................................... 81

    3.4 Integrando leis, papis e pessoas ........................................................................... 85

    Captulo 4: Instituies, projetos e aes ..................................................................... 98

    4.1 Os Projetos ............................................................................................................. 99

    4.1.1 Um exemplo: o projeto do BNDES .............................................................. 101

    4.2 O Comit Gestor .................................................................................................... 105

    4.2.1 Um exemplo: a Arca das Letras .................................................................... 117

    4.3 A produtividade do Estado..................................................................................... 119

    Consideraes Finais ................................................................................................... 122

    Referncias Bibliogrficas .......................................................................................... 123

    Anexo I ......................................................................................................................... 126

    Anexo II ........................................................................................................................ 130

    Anexo III ...................................................................................................................... 132

  • 8

    Lista de Siglas

    BNDES Banco Nacional do Desenvolvimento

    CMA Comando Militar da Amaznia

    COIAB Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira

    COIPAM Coordenao dos Povos e Organizaes Indgena do Amazonas

    DEAD Departamento de Administrao

    DEPI Departamento de Promoo dos Povos Indgenas

    DETNO Departamento de Etnodesenvolvimento

    DOFIN Departamento Financeiro

    FEPI Fundao Estadual dos Povos Indgenas

    FUNAI Fundao Nacional do ndio

    FOIRN Federao da Organizaes Indgenas do Alto Rio Negro

    IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

    INPA Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia

    MDA Ministrio do Desenvolvimento Agrrio

    PPA Plano Plurianual

    SDS Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentvel do Estado do Amazonas

    SEDUC Secretaria Estadual de Educao do Amazonas

    SEGPLAN Secretaria de Gesto e Planejamento

    SEJEL Secretaria da Juventude, Esporte e Lazer

    SEIND Secretaria Estadual dos Povos Indgenas

    TAP Termo de Anuncia Pesquisa

    TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

  • 9

    Introduo

    No dia 16 de abril de 2012, no municpio de Manaus, teve incio mais uma

    edio da Copa Indgena. O evento fez parte de uma sequncia de atividades relativas

    ao Abril Cultural Indgena, organizado para comemorar o dia do ndio, 19 de Abril. O

    cronograma da comemorao contemplava, alm de uma programao esportiva

    representada pela Copa, eventos menores que se estenderam at o dia 01 de Maro. As

    atividades foram divididas entre uma Programao Cultural, com apresentaes

    artsticas, exposies fotogrficas e de artesanato indgena, e uma Programao

    Interinstitucional que, entre outras atividades, realizou palestras sobre

    empreendedorismo indgena e sustentabilidade, e encerrou o Abril Cultural com

    uma grande reunio onde estiveram presentes instituies de diversas naturezas,

    relacionadas s polticas pblicas para indgenas no estado do Amazonas1.

    As atividades que fizeram parte da comemorao foram organizadas pela

    Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND), atravs da articulao com

    diferentes instituies da administrao pblica e organizaes indgenas. H, por um

    lado, uma qualidade especfica atribuda s atividades realizadas: temos uma Copa

    Indgena, um ms indgena, o dia do ndio, uma programao cultural indgena,

    empreendedorismo indgena, e, por fim, uma Secretaria de Estado para os Povos

    Indgenas. Por outro lado, temos a heterogeneidade de tais elementos (supostamente

    no-indgena) que so chamados a compor um evento maior, indgena, onde se renem

    variadas atividades, instituies e pessoas.

    Essa heterogeneidade expressou-se na abertura do 'Abril Cultural', que tambm

    deu incio ao primeiro dia das competies da Copa Indgena. Realizada na Vila

    Olmpica de Manaus (estrutura da Secretaria da Juventude Esporte e Lazer do estado

    do Amazonas (SEJEL) com piscina para competies, pista de atletismo e quadras de

    futebol), a abertura do 'Abril Cultural' reuniu indgenas de Manaus e arredores, o

    Comando Militar da Amaznia (CMA), e instituies da administrao pblica.

    A abertura do evento ocorreu na arquibancada situada logo a frente do campo de

    futebol e pista de atletismo l tambm estava montado um pequeno palco. Na parte

    mais alta da arquibancada encontravam-se oficiais do exrcito que ocupavam

    praticamente um tero dela (totalizando cerca de 100 oficiais), todos estavam

    devidamente fardados e, justamente por este motivo, se destacavam do restante do

    1 Essa reunio ser abordada com mais detalhes durante o Captulo 4.

  • 10

    pblico. Logo abaixo do palco estava a banda do Comando Militar da Amaznia j

    afinando os instrumentos para o hino nacional. Na parte central encontrava-se um

    espao reservado s autoridades (como me foi chamado a ateno quando, sem querer,

    acabei entrando l para perguntar a um conhecido onde o pessoal da SEIND estava). Era

    naquele local cercado, reservado s 'autoridades' e imprensa, onde tambm estava

    montado o 'palco' da onde foram feitos os discursos da abertura.

    Distribudo pelo restante da arquibancada estava o pblico para quem o evento,

    afinal, se destinava: os indgenas. queles oriundos de Manaus se organizavam de

    acordo com os grupos ou comunidades a qual pertenciam, por exemplo, a equipe Sater-

    Maw, da comunidade Y'apirehyt; enquanto as 'comisses' vindas de outros municpios

    reuniam diferentes grupos e comunidades, a equipe do municpio de 'Novo Airo', por

    exemplo. Os membros da SEIND (instituio organizadora do evento) estavam

    'uniformizados' com as camisetas do 'Abril Cultural' - com exceo do Secretrio de

    estado e alguns de seus assessores, que estavam na parte reservada s autoridades e

    trajavam camisas sociais. O restante dos servidores estava no meio da arquibancada,

    juntamente com o pblico indgena.

    A solenidade teve incio com uma srie de discursos realizados, primeiramente,

    pelo Secretrio da SEIND, Bonifcio Baniwa; em seguida pela Secretaria da SEJEL,

    Alessandra Camplo; pelo general de Brigada e chefe de Estado Maior do Comando

    Militar da Amaznia (CMA), Jos Luiz Jaborandy; pela vice-coordenadora da

    Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira (COIAB), Snia

    Guajajara; e pelo coordenador da Coordenao das Organizaes e Povos Indgenas do

    Amazonas (COIPAM), Fidlis Baniwa. Os nomes reproduzidos anteriormente seguem o

    formato utilizado pelo mestre de cerimnias que os apresentou ao pblico antes da

    realizao dos discursos. Enquanto os no indgenas eram apresentados com nome e

    sobrenome, os indgenas eram chamados pelo nome e etnia.

    Apesar da segmentao visual e fsica da arquibancada entre militares,

    autoridades e indgenas, nota-se que os discursos buscam operar justamente no sentido

    oposto, tentando enaltecer a forma com que estes diferentes setores do pblico

    presente na abertura se complementam e atuam conjuntamente. O site da SEIND narra

    esta parte do evento da seguinte forma:

    Na abertura do evento, o titular da Seind, Bonifcio Jos Baniwa resumiu o Abril Cultural Indgena de 2012 como uma oportunidade para a troca de experincias e um

    grande momento para reflexo acerca da busca por melhorias na qualidade de vida

    dessas populaes no estado. um esforo grande do governador Omar Aziz, que no

  • 11

    ano passado assinou o decreto que criou o Comit Gestor Indgena, instncia que tem

    nos ajudado nesse sentido, justificou o secretrio. Apesar da chuva, conseguimos reunir os indgenas, graas ao apoio dos parceiros e da prpria imprensa, comemorou. A secretria de Juventude Desporto e Lazer, Alessandra Camplo, tambm agradeceu a

    presena dos indgenas. Diante dos representantes de vrios povos que fazem parte dos

    sete municpios da Regio Metropolitana de Manaus, ela aproveitou para anunciar a

    possvel realizao dos Jogos Mundiais Indgenas na capital amazonense, possivelmente

    no ano que vem. Eu tenho conversado com o ministro Aldo Rebelo e ele j me informou que quer trazer os jogos para o Amazonas, disse a titular da Sejel. A secretria elogiou a iniciativa da Seind e a presena do Exrcito, na organizao do

    Abril Cultural. O Exrcito tem um papel fundamental, pois atende s comunidades indgenas com vrias aes, inclusive sociais, disse ela. Para o general de Brigada e chefe de Estado Maior do Comando Militar da Amaznia

    (CMA), Jos Luiz Jaborandy, no d para separar o Exrcito dos Indgenas e a

    tendncia que haja uma integrao maior entre a instituio e a Seind, a partir das

    aes que comeam a ser executadas pelo Comit Gestor Indgena e do prprio Abril

    Cultural. A tendncia que tenhamos soldados indgenas participando no ano que vem desse evento, informou o oficial. (...) A abertura do Abril Cultural Indgena tambm foi prestigiada pela vice-

    coordenadora da Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira

    (Coiab), Snia Guajajara, e pelo coordenador da comisso que criou a Organizao das

    Organizaes Indgenas do Amazonas (Coipam), Fidlis Baniwa. (FONTE:http://portaldaseind.blogspot.com.br/2012/04/abril-cultural-indigena-de-2012-

    e.html acessado em 26 de Setembro de 2012)

    Se inicialmente tnhamos certa diversidade de elementos confluindo no sentido

    de produzir um evento indgena (diferentes instituies, pessoas e atividades),

    notamos nos discursos a constituio de dois mbitos distintos: por um lado, os

    indgenas, e por outro, as instituies. Os primeiros na posio de 'atendidos' e os

    segundos, enquanto concedentes de melhorias (criao de um Comit Gestor,

    realizao dos Jogos Mundiais Indgenas, etc). Nota-se que os discursos dos dois

    representantes de organizaes indgenas no foram abordados na reportagem,

    provavelmente pelo tom combativo dos mesmos que destoou significativamente da

    sintonia buscada pelos demais. Eles pediram a ateno das instituies do poder pblico

    s comunidades indgenas, e afirmaram que h muito descaso e falta de respeito

    com a cultura do povo indgena. Ambos os representantes usaram povo indgena no

    singular, provavelmente para demonstrar unidade frente aos demais presentes tanto o

    pblico, quanto autoridades.

    Aps os discursos houve a interpretao do hino nacional em lngua Ticuna,

    harmonizado com a banda do exrcito. A intrprete, Djuena Ticuna, bastante

    conhecida localmente, e foi altamente procurada pelo pblico indgena para tirar fotos

    aps a execuo hino. Durante o hino a bandeira nacional, a bandeira do estado do

    Amazonas e do municpio de Manaus, foram sincronizadamente hasteadas por

    representantes da Secretaria Estadual dos Povos Indgenas (SEIND), do Comando

    Militar do Amazonas (CMA), e da Secretaria da Juventude, Esporte e Lazer (SEJEL).

  • 12

    Cada titular dessas instituies nomeou um representante para realizar tal feito, j que

    no momento a chuva caa forte e nenhum deles parecia querer se molhar. Tal fato

    rendeu algumas piadas por parte do pblico e do prprio mestre de cerimnias.

    Figura 1: Abertura da Copa Indgena. Na frente est a secretria de Juventude Desporto e Lazer,

    Alessandra Camplo; Bonifcio Jos Baniwa, Secretrio da SEIND; e o general de Brigada e chefe de

    Estado Maior do Comando Militar da Amaznia (CMA), Jos Luiz Jaborandy. No fundo est a contora

    Djuena Ticuna, juntamente com a banda do Comando Militar da Amaznia. FONTE: Assessoria de

    Comunicao da SEIND.

    Aps o hino foi feito um ritual em que dois indgenas, um homem e uma mulher,

    danaram em crculos empunhando zarabatanas, chocalho e uma flauta de cerca de

    1,5m. Neste momento a imprensa desceu da rea reservada para as autoridades e

    passou a acompanhar de perto os movimentos do ritual, filmando-o e fotografando-o. O

    pblico indgena, entretanto, continuou sentado, apenas observando de longe. O ritual

    parecia ser destinado aos no indgenas.

    Realizada a abertura, o evento teve sequncia com as provas da Copa Indgena:

    atletismo, arco e flecha, corrida do saco, cabo de guerra e natao. As autoridades j no

    estavam presentes, e agora, com o cessar da chuva, o pblico podia se aproximar da

    pista de atletismo para acompanhar o desempenho de suas equipes. A narrao das

    provas era feita com muito humor por um servidor da SEIND, Ageu, Sater-Maw, que

    anunciava os vencedores e perdedores, demonstrando grande intimidade com o pblico

  • 13

    e com os competidores. Depois de meia-hora do incio da competio, no auge das

    narraes cmicas das provas, um oficial do exrcito avisou a Ageu que o carro para

    recolher o equipamento de som havia chegado (o equipamento havia sido cedido pelo

    Comando Militar da Amaznia), portando ele deveria devolver o microfone. Sem perder

    a compostura, Ageu disse que estavam fazendo um favor a ele, j que logo sua voz iria

    acabar. As provas da Copa Indgena seguiram durante os trs prximos dias, e o

    evento ganharia destaque nos principais jornais da capital amazonense.

    Figura 2: Equipe da SEIND e a pesquisadora na Copa Indgena de Futebol de Salo. De baixo para cima,

    da direita para esquerda, esto os servidores: Rosimar Costa e Miquelina Tukano; Weminsont Satustiano,

    Rafael Ticuna, Tiemi Costa (pequisadora) e Isaque Jnior; os dois estagirios do Departamento de

    Administrao, Adail Munduruku e Rafael Ticuna. FONTE: Assessoria de Comunicao da SEIND.

    ***

    Atravs desta cena busquei introduzir o leitor s questes sob as quais o presente

    trabalho se debrua. Trata-se de refletir sobre um objeto permanente na antropologia

    brasileira voltado aos estudos dos processos de interao entre os povos indgenas e o

    Estado. Tanto no mbito interno da academia, quanto fora dela - no que se trata de

    produes do prprio Estado - as questes levantadas por essas reflexes se

    consolidaram enquanto um grande campo de discusso. Apesar de facilmente podermos

    enquadrar o presente trabalho de acordo com tal perspectiva analtica, busca-se,

  • 14

    justamente, realizar um movimento que esquiva da forma com que tal questo

    frequentemente concebida: os povos indgenas e suas diferentes formas de

    organizao, interagindo com o Estado e suas instituies.

    Pode-se observar na abertura da Copa Indgena tanto espacialmente, no tocante

    ocupao dos lugares da arquibancada, quanto nos discursos das autoridades, a

    emergncia de elementos que reforam o argumento de segmentao acima proposto

    (Estado e ndios). No entanto, um olhar cuidadoso pode revelar que alguns

    elementos parecem transitar entre ambos os plos proporcionando sua constante

    reconfigurao: a entonao do hino nacional em lngua Ticuna, o acionamento das

    etnias no lugar de sobrenomes, o discurso de um secretrio de estado indgena, e as

    modalidades de discurso e competio, so exemplos da forma com que a dicotomia

    entre um mbito supostamente indgena e outro supostamente estatal pode ser colocada

    em questo. O foco da pesquisa, portanto, reside na tentativa de pensar como tais

    elementos so colocados a existir juntos, e no tom-los como mbitos a priori.

    O presente trabalho uma etnografia de uma administrao pblica, que toma

    como ponto de reflexo a Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND), rgo

    vinculado ao poder executivo do estado do Amazonas e criado a partir da Lei 3.403/092.

    A escolha deste lugar especfico deve-se ao fato de estarem presentes, na Secretaria,

    servidores indgenas e no indgenas atuando conjuntamente no sentido de produzir esta

    administrao pblica. Busco assim, tambm delinear algumas consideraes a respeito

    de um processo bastante recente e muito mais amplo: a crescente ocupao de cargos da

    administrao pblica por servidores indgenas. Atualmente a SEIND possui um quadro

    de 38 servidores, dos quais 18 so indgenas pertencentes a 10 diferentes grupos:

    Apurin, Baniwa, Marubo, Mayuruna, Miranha, Munduruku, Mura, Sater-Maw,

    Ticuna e Tukano.

    Uma perspectiva antropolgica que se ocupe de estudar o Estado deve buscar

    pensar as diferentes formas atravs das quais ele formado e informado por diferentes

    agentes. Ao perseguir tal tarefa, consequentemente seremos confrontados com mltiplas

    perspectivas que, continuamente, acabaro por (re)construir os prprios limites das

    instituies. O processo de formao da Secretaria aponta justamente para esta questo,

    uma vez que narrado como fruto tanto da articulao entre lideranas e organizaes

    indgenas, quanto de servidores e instituies da administrao pblica.

    2 A ntegra do documento est no Anexo I.

  • 15

    Os dados aqui contemplados foram fruto de um esforo coletivo de pesquisa

    junto ao Grupo de Etnologia Urbana (GEU) vinculado ao Laboratrio de Antropologia

    Urbana (LabNAU) da Universidade de So Paulo (USP). O Programa de Ps-

    Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Paran

    (PPGAS/UFPR), juntamente ao LabNAU, foram fundamentais para a realizao desta

    pesquisa. O perodo em campo compreendeu os meses de maro, abril e maio de 2012, e

    duas semanas entre os meses de novembro e dezembro do mesmo ano.

    ***

    A seguir, tomando o processo de surgimento da SEIND como emblemtico das

    discusses que seguem nos captulos deste trabalho, irei traar um breve histrico da

    instituio atravs das colocaes de alguns interlocutores para, na sequncia,

    apresentar a forma com que o trabalho foi estruturado. importante destacar que as

    consideraes que seguem foram escritas a partir da narrativa da criao da SEIND por

    aqueles que fizeram parte deste processo portanto, o texto possui uma srie de

    imprecises. Acredito que estas, por sua vez, so naturais tentativa de se compor uma

    nica verso de um acontecimento narrado a partir de diferentes pontos de vista. As

    lacunas e questes levantadas nesta introduo sero respondidas no decorrer do texto

    da dissertao.

    A SEIND, um breve histrico

    A SEIND, rgo relativamente recente, surgiu como desdobramento de uma

    srie de movimentos polticos anteriores que no se encerram e nem se resumem a ela.

    No ano de 1998, o antroplogo e professor da Universidade Federal do Amazonas

    (UFAM), Ademir Ramos3, em ocasio de uma consultoria prestada para a Secretaria

    Estadual de Educao do Amazonas (SEDUC) sugeriu que a educao escolar indgena

    (que at ento no era diferenciada pela SEDUC das escolas rurais) passasse a ter um

    departamento prprio. Essa discusso deu origem ao Conselho Estadual de Educao

    3 Ademir Ramos conta que iniciou sua atuao com os povos indgenas em 1978, com a criao do

    Conselho Indigenista Missionrio (CIMI). Nesta poca, a principal preocupao dos indigenistas era a garantia das terras indgenas (Ademir Ramos, em entrevista, 20/04/2012). Seus principais trabalhos com o CIMI ocorreram na regio do Alto Rio Negro.

  • 16

    Escolar Indgena e o Departamento de Educao Escolar Indgena dentro da SEDUC,

    existentes at os dias de hoje. Alm de ser um rgo consultivo, o Conselho foi

    idealizado para tambm ter poder deliberativo, ou seja, ser capaz de formular polticas, e

    tomar decises a respeito da educao indgena. De acordo com Ademir Ramos, o

    objetivo do Conselho era permitir que os indgenas formulassem suas prprias polticas

    educacionais o que tambm implicava em repensar as prticas de gerncia da

    educao no estado, tal como estavam sendo feitas at ento.

    Nesta ocasio, para a criao do Conselho e do Departamento alguns indgenas

    foram convidados a fazer parte do processo. No entanto, eles no foram contratados

    como servidores (conforme ocorre atualmente), mas enquadrados como consultores

    externos. Ademir Ramos conta que esta opo surgiu, pois se no sabia ao certo como

    vincular os indgenas Secretaria para que procedimentos administrativos (como

    efetuar o pagamento) pudessem ocorrer. A forma padro de recrutamento da SEDUC

    eram os concursos pblicos, contudo, a prpria proposta de criao do Departamento e

    do Conselho exigia a participao de algumas pessoas especficas em tal processo no

    caso, os professores indgenas militantes pela educao escolar indgena.

    As discusses acerca do Conselho de Educao Escolar Indgena fizeram com

    que uma questo maior dentro do estado viesse tona chamando a ateno do prprio

    governador: a poltica indigenista no estado do Amazonas. Segundo Ademir Ramos, em

    uma reunio com o ento governador Amazonino Mendes4 no ano de 2000, ele e o

    Secretrio de Educao, Vicente Nogueira, sugeriram a criao de um departamento

    voltado especificamente poltica indigenista do estado (algo que j havia sendo

    discutido dentro da Secretaria de Educao h algum tempo). O governador foi

    favorvel ideia e criou o Departamento de Poltica Indigenista (DEPI), vinculado

    diretamente Secretaria de Governo do Amazonas (SEGOV). As atividades do

    Departamento eram coordenadas pelo prprio Ademir Ramos, juntamente com outras

    trs servidoras que foram cedidas pela Secretaria da Educao: Ozenete Aguiar5, Ldia e

    Francisca Matos todas no indgenas. A ideia do DEPI era abranger a discusso

    iniciada dentro da SEDUC e pensar a poltica voltada s populaes indgenas em

    4 Foi eleito governador em 1998 pelo Partido da Frente Liberal (PFL), cargo que j ocupou em outros dois

    mandatos: 1986 1990 e 1994 - 1998. Tambm assumiu a prefeitura do municpio de Manaus em trs ocasies: 1982-1986, 1993-1994 e 2004-2008. Atualmente integra o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

    5 Ozenete Aguiar atuava no setor de educao rural do governo do estado e j tinha alguma familiaridade

    com aes voltadas educao indgena. Atualmente ela integra a SEIND na qualidade de chefe de

    gabinete.

  • 17

    diferentes setores, no sentido de prestar assessoria ao governador. Neste momento o

    Departamento criado com carter consultivo.

    O DEPI durou apenas um ano (2000-2001), sendo em 2001 substitudo pela

    Fundao Estadual de Poltica Indigenista (FEPI), vinculada Secretaria de Estado do

    Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentvel (SDS) do estado do Amazonas. A

    Fundao surgiu com a proposta de ser uma agncia de articulao de polticas pblicas,

    e no apenas um rgo consultivo. A FEPI passou a ocupar um local fsico prprio, bem

    como quadro de servidores e oramento. Alm das trs servidoras que foram

    transferidas do DEPI, trs indgenas foram convidados por Ademir Ramos para fazer

    parte de seu processo de idealizao, de acordo com ele, exatamente pela funo

    tcnica: Jorge, do grupo Terena (falecido no ano de 2007), Amarildo Machado,

    Tukano, e Jecinaldo Cabral, Sater-Maw. Com Jorge Terena, Ademir Ramos estava

    buscando um indgena que conseguisse fazer articulaes com organismos de

    internacionais no sentido de viabilizar projetos e conseguir financiamentos - conforme

    Jorge estava atuando at ento junto s organizaes indgenas. Amarildo Tukano foi

    convidado em funo de ser muito bom tecnicamente e tambm porque Ademir

    Ramos estava buscando o aval do Alto Rio Negro, regio onde o grupo Tukano est

    presente e que era percebida como politicamente relevante. Atualmente Amarildo

    assessor do Secretario de Estado da SEIND, Bonifcio, do grupo Baniwa. J Jecinaldo

    Sater, foi convidado para dar uma fora na questo da liderana. Alguns anos depois,

    Jecinaldo foi nomeado o primeiro Secretrio de Estado da SEIND. A narrativa de

    Ademir Ramos a respeito dos primeiros momentos da FEPI nos mostra que o critrio

    utilizado para recrutar os servidores, a funo tcnica, pode incorporar diferentes

    qualidades nem sempre percebidas como tais. A capacidade de fazer articulaes, ter

    o aval de certas regies, e ser liderana, foram determinantes para o recrutamento

    destes trs indgenas tanto quanto outras qualidades. Esta questo ser aprofundada no

    segundo e no terceiro captulo da dissertao.

    Se, por um lado, tnhamos o DEPI, e mais tarde a FEPI, sendo formados por

    servidores pblicos majoritariamente vinculados Secretaria de Educao, por outro,

    temos a chegada de trs indgenas cujas trajetrias so estreitamente vinculadas a

    organizaes indgenas. Amarildo conta que foi convidado por seus parentes Tukano

    a participar do processo de fundao da Coordenao das Organizaes Indgenas da

    Amaznia Brasileira (COIAB) no incio da dcada de 90. Ele relata que na poca em

  • 18

    que a COIAB foi criada as organizaes indgenas estavam comeando a se consolidar

    enquanto instituies formais, impulsionadas pela Constituio de 1988.

    Devemos lembrar que as organizaes e associaes indgenas passaram por um

    momento de expanso a partir da possibilidade de se constiturem enquanto pessoas

    jurdicas, de acordo com o Artigo 232 da Constituio Federal de 1988. Segundo Bruce

    Albert (2000), o processo de multiplicao dessas associaes tem sua origem na

    encruzilhada de vrios processos scio-polticos gerais, interagindo em nvel nacional e

    internacional. O autor tambm afirma que, muitas dessas associaes, tm hoje

    vnculos e projeo internacionais, integrando um panorama heterogneo e diferentes

    formas de financiamento. Nesse sentido, tal quadro configura a passagem de

    associaes informais, frutos de um movimento conflitivo de organizao etno-poltica

    da dcada de 70 e 80, para a institucionalizao de uma imensa gama de organizaes,

    cujos interlocutores pertencem tanto a organizaes governamentais, quanto no-

    governamentais (Albert, 2005). Tais associaes, atualmente, possuem caractersticas

    diversas. Elas podem representar tanto comunidades ou grupos locais, quanto diversos

    povos ou mesmo regies. A grande maioria delas est registrada em cartrio ou em

    processo de legalizao, desempenhando geralmente funes polticas de articulao

    interna e de representao intertnica.

    O papel poltico de reivindicao de direitos atravs das associaes indgenas

    deu corpo a o que os interlocutores denominam de movimento indgena. A trajetria dos

    trs indgenas que passaram a integrar a FEPI (como tambm de outros servidores que

    mais tarde vieram a fazer parte da SEIND) foram traadas em conjunto com este

    contexto poltico de formao das organizaes do movimento. Amarildo, Jorge e

    Jecinaldo, participaram de diferentes administraes da COIAB (frequentemente citada

    pelos interlocutores como uma das mais relevantes instituies indgenas do Brasil),

    bem como de outras organizaes, ocupando diferentes cargos presidente, tesoureiro,

    secretrio, vice-presidente, etc. Assim, tiveram uma intensa participao na vida poltica

    indgena antes mesmo de entrarem na FEPI o que, como vimos, foi um dos motivos

    que levaram Ademir a convid-los para participar da Fundao. Vale destacar que,

    apesar da ideia de um movimento indgena passar certa noo de homogeneidade, ela

    contempla diferentes posies polticas e pontos de vista, por vezes conflitantes, entre

    uma ou mais associaes e organizaes, ou entre grupos de associaes. Ao mesmo

    tempo, estar no governo, ou estar no movimento, so posies pensadas como

    circunstanciais e que suscitam uma srie de reflexes (mesmo que possam ser

  • 19

    vivenciadas simultaneamente ser servidor e participar do movimento). As

    trajetrias, os diferentes pertencimentos dos servidores e suas reflexes a respeito do

    papel que desempenham na SEIND sero abordados ao longo do terceiro captulo.

    No ano de 2002, Eduardo Braga6 foi eleito governador pelo Partido Popular

    Socialista (PPS), com o apoio do ex-governador Amazonino Mendes (PFL). De acordo

    com o atual secretrio da SEIND, Bonifcio Jos, do grupo Baniwa, Eduardo Braga

    investiu em reunies com o movimento indgena durante o perodo eleitoral, com o

    objetivo de conseguir apoio de seus eleitores. No ano de 2003, segundo Ozenete, aps

    Eduardo Braga ser eleito, o movimento se pronunciou e solicitou que houvesse

    indgenas na direo da FEPI. Bonifcio Baniwa, foi indicado pelo movimento para

    assumir a presidncia da FEPI juntamente com outros nove nomes, ele ento conta que

    foi escolhido pelo governador para assumir o cargo. O professor Ademir Ramos passou

    a dedicar-se exclusivamente Universidade. A formao da FEPI, nesse sentido, ocorre

    a partir de um movimento por parte tanto da prpria administrao pblica (que sentiu a

    necessidade de um departamento especfico para as questes indgenas que no atuasse

    apenas como um rgo consultivo), quando de um movimento poltico organizado por

    instituies e representantes indgenas.

    Bonifcio, como os demais indgenas, tambm havia traado sua trajetria at

    ento nas organizaes do movimento, participando tanto da Federao das

    Organizaes Indgenas do Alto Rio Negro (FOIRN), quanto da COIAB. Ressalta-se

    que a FOIRN e a COIAB so instituies que centralizam vrias associaes indgenas,

    podendo ser representantes de diferentes grupos ou comunidades. Desta forma, possuem

    uma regio de atuao que engloba diversas associaes locais. A COIAB, por

    exemplo, apesar de estar sediada em Manaus, possui tambm um escritrio em Braslia,

    e representa organizaes indgenas de toda a Amaznia legal.

    Logo que assumiu a diretoria da FEPI, Bonifcio mudou o nome de Fundao

    Estadual de Poltica Indigenista para Fundao Estadual dos Povos Indgenas, pois

    a gente entendeu que a nossa presena, a nossa participao no governo (...) no era mais, vamos dizer assim, os cientistas, antroplogos, polticos pensando pelos

    indgenas, e sim os ndios construindo a poltica pblica. Isso foi aceito dentro do

    6 O governador do estado do amazonas era Eduardo Braga, eleito em 2002, pelo Partido Popular

    Socialista (PPS). Os partidos que integravam a coligao eram: PPS, PFL, PTB, PDT, PSL, PTN, PSC,

    PSD, PSDC, PRP, PHS, PAN e PRONA. Eduardo Braga foi reeleito junto ao vice-governador, Omar

    Aziz, em 2006. No ano de 2010, Eduardo Braga se licenciou do cargo para disputar uma vaga para o

    Senado Federal pelo PMDB a qual foi eleito. No mesmo ano, Omar Aziz (PMN) assume o governo do Estado do Amazonas, e reeleito, sendo o atual governador do estado. No ano de 2011 Omar Aziz deixa

    o PMN para ajudar a fundar o PSD, seu atual partido.

  • 20

    governo, e comeamos a trabalhar o que era a poltica de etnodesenvolvimento, que

    voc ouvir respeitar o indgena. (Bonifcio Baniwa, em entrevista, 02/04/2012)

    A chegada de um indgena na presidncia da FEPI foi considerada, por aqueles

    que participaram de tal processo, uma mudana em relao idealizao das polticas,

    ao funcionamento das rotinas administrativas da FEPI (como veremos no primeiro e no

    segundo captulo) e uma maior participao indgena dentro da estrutura da prpria

    administrao pblica.

    Ozenete conta que o governador deu o prazo de 90 dias para Bonifcio e sua

    equipe realizarem um planejamento de ao, juntamente com as lideranas e a

    populao indgena. Houve ento uma srie de reunies e conferncias em diferentes

    regies do estado, e a idealizao de um modelo de organizao denominado meso-

    regies (que ser abordado com mais detalhes durante o terceiro captulo, bem como a

    forma de recrutamento dos servidores indgenas). Para o momento, cabe destacar que o

    nmero de servidores indgenas na SEIND sofreu um progressivo aumento durante os

    anos, e o modelo de meso-regies lembrado como crucial para que isso ocorresse.

    Nesta mesma poca j havia a reivindicao, por parte das organizaes indgenas, da

    criao de uma Secretaria. Bonifcio conta que o governador alegava que a ideia de

    uma Secretaria precisava ser amadurecida o que ela seria e como ela seria.

    No ano de 2008 o ento governador Eduardo Braga foi reeleito, e em 2009, de

    acordo com a narrativa do secretrio Bonifcio aps anos de reivindicao do

    movimento indgena, ocorreu a criao de uma Secretaria voltada s polticas pblicas

    dos povos indgenas: a Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND).

    interessante notar que apesar da pesquisa ter privilegiado as narrativas daqueles que

    participaram de tal momento enquanto servidores da FEPI (ou seja, funcionrios

    pblicos que tiveram papel ativo para que a SEIND se consolidasse), a Secretaria

    enunciada como uma conquista do movimento indgena. A lei 3.403/09 que dispe

    sobre a criao da SEIND tambm autoriza a extino da Fundao Estadual dos Povos

    Indgenas (FEPI), e transfere suas atribuies, finalidades e patrimnio, para a recm

    criada SEIND. A escrita de tal lei ocorreu entre representantes do movimento indgena,

    da FEPI, e do Conselho Estadual dos Povos Indgenas, rgo consultivo de

    assessoramento do governador, criado pelo decreto n 25.457, de 29 de Novembro de

  • 21

    20057. Aps a discusso e elaborao do texto, ele foi apresentado ao governador e

    enviado ao poder legislativo para votao. A SEIND, nesse sentido, possui uma situao

    institucional bastante frgil, uma vez que esta mesma lei pode ser revogada a qualquer

    momento.

    A escolha do Secretario tambm foi um processo bastante interessante. Grande

    parte do trabalho de campo foi dedicado leitura e anlise de documentos, cartas, e-

    mails, ofcios, entre outros (enfim, todo tipo de comunicao com a Secretaria) enviados

    tanto por indivduos ou organizaes indgenas, quanto de instituies da administrao

    pblica. A circulao de tais papis e os procedimentos administrativos decorrentes de

    sua movimentao sero abordados logo no primeiro captulo. Em um dos arquivos que

    continham tais documentos, encontrei uma srie de cartas do ano de 2009 com

    importantes informaes a respeito dos primeiros momentos da Seind como secretaria

    de estado. Nelas estavam presentes indicaes de nomes de indgenas de diferentes

    grupos para assumir, pela primeira vez, o cargo de Secretrio da (ainda no fundada)

    Secretaria Estadual para os Povos Indgenas (SEIND).

    Ao vasculhar o arquivo pude verificar a existncia de correspondncias enviadas

    de variadas regies do estado, representantes de diferentes organizaes e associaes

    indgenas. Os formatos e contedos das cartas variavam bastante: algumas haviam sido

    manuscritas, enquanto outras foram digitadas em computador; algumas indicavam um

    nome para ocupar o cargo de secretrio e elencavam a razo de t-lo escolhido,

    enquanto outras indicavam mais de uma pessoa; Algumas foram assinadas apenas pelo

    presidente da associao, enquanto outras continham diversas folhas repletas de

    assinaturas de todos os seus membros. Todas as folhas presentes no arquivo estavam

    presas umas as outras, o que aponta que para o fato de que no foram guardadas

    aleatoriamente.

    A primeira folha presente no arquivo parecia ordenar as demais. Era a ata da

    reunio onde as diversas cartas recebidas foram abertas. Ela continha no cabealho da

    folha um braso do estado do Amazonas, o logotipo do Conselho Estadual dos Povos

    Indgenas (CEPI), e o logotipo do governo do estado do Amazonas da gesto do

    governador Eduardo Braga. Logo abaixo do cabealho est, em letras maisculas, o

    assunto da Ata: ATA DA APURAO DA INDICAO DE NOMES PARA A

    SECRETARIA DE ESTADO DOS POVOS INDGENAS. Verifica-se que no ttulo

    7 Anexo II. De acordo com o decreto de criao do Conselho, em sua composio esto presentes representantes de 28 instituies, das quais metade, 14, so organizaes indgenas.

  • 22

    consta Secretaria de estado dos povos indgenas, e no para os povos indgenas, tal

    como ocorre no nome atual. Em um curto pargrafo que segue logo abaixo do ttulo est

    especificada a data e o local da reunio, bem como as pessoas presentes. Havia

    representantes de 20 diferentes instituies, dessas vinte, treze correspondiam a

    organizaes indgenas, e sete instituies eram vinculadas administrao pblica.

    A Sesso de abertura das cartas, como enunciado pela Ata, foi realizada no dia

    30 de Maio de 2009 e presidida pelo ento diretor presidente FEPI, Bonifcio Baniwa.

    Outro fator que merece destaque a presena de Jecinaldo Cabral, Sater-Maw, como

    titular da COIAB. Conforme mencionado anteriormente, ele foi o primeiro Secretrio de

    estado da SEIND e tambm participou da consolidao do DEPI a convite de Ademir

    Ramos, como vimos anteriormente.

    Aps a breve nomeao dos presentes, a ata continuava com uma tabela com trs

    colunas: Nome, Organizao-Regio-Municpio, e nmero de votos. Entre os

    indgenas listados nesta tabela, o que obteve a votao mais expressiva foi Jecinaldo

    Cabral, que acumulou 26 indicaes, seguido pelo atual secretrio Bonifcio, que

    registrou 17 votos. De acordo com outro documento presente no arquivo, foram abertas

    57 cartas enviadas pelas bases, com representatividade de 88 Organizaes Indgenas.

    Ao final da folha h a assinatura de todos os participantes da reunio.

    Entre os nomes indicados temos treze indgenas de diferentes grupos e regies

    do estado; desses, cinco atualmente fazem parte do quadro de servidores da SEIND:

    Amarildo Machado, Tukano, assessor do Secretrio (que tambm integrou o DEPI e a

    FEPI, como anteriormente mencionado); Bonifcio, Baniwa, atual Secretrio; Jos

    Mario, Mura, atual Secretrio Adjunto; Lindomar (Linda), da etnia Marubo, chefe do

    Departamento Financeiro; e Zuza Cavalcante, Mayuruna, coordenador de Programas e

    Projetos no Departamento de Etnodesenvolvimento.

    Juntamente a ata da reunio de abertura das cartas indgenas estava outro

    documento com o ttulo Criao da Secretaria de Estado Para os Povos Indgenas,

    sem nenhuma data, cabealho, ou indicao de procedimento. Este documento

    reproduzido na sequncia:

    Novembro de 2003 Solicitao da Criao da Secretaria pelas Lideranas na I Conferncia Estadual dos povos Indgenas;

    19 de Abril de 2008 Elaborao do projeto de lei que dispe sobre a criao da

  • 23

    Secretaria de Estado para os Povos Indgenas;

    28 e 29 de Abril de 2009 Reunio interna com os conselheiros indgenas para apresentao e apreciao da criao da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas/SEIND;

    30 de Abril de 2009 Realizao da III Reunio Ordinria do Conselho Estadual dos Povos Indgenas com a participao dos 20 Conselheiros Indgenas e no indgenas para a

    definio do perfil e dos procedimentos administrativos para a escolha do Secretrio da

    SEIND.

    OBS: Perfil do Secretrio:

    Que seja indgena

    Que participe do movimento indgena;

    Que tenha compromisso com o movimento indgena;

    Que tenha boa relao com as organizaes indgenas, governo e organizaes no

    governamentais;

    Que tenha o mnimo de conhecimento da estrutura administrativa do Estado;

    Que no seja indicao partidria;

    Que tenha conhecimento bsico da lngua portuguesa, escrita e leitura em portugus;

    Que acate as decises do Conselho Estadual dos Povos Indgenas e;

    Que tenha o mnimo de conhecimento em legislao.

    Consulta s organizaes indgenas encaminhamento de Carta Consulta s organizaes indgenas para indicarem os candidatos ao cargo de secretrio conforme os

    requisitos estabelecidos pelo Conselho Estadual dos Povos Indgenas;

    30 de Maio de 2009 Reunio extraordinria do Conselho Estadual dos Povos Indgenas para apreciao dos nomes indicados pelas lideranas indgenas, oportunidade em

    que foram lidas as 57 cartas encaminhadas pelas bases, com representatividade de 88

    Organizaes Indgenas e apurados os votos para a formao da lista trplice a ser apresentada

    para o governador do estado.

    Obs: dos 28 conselheiros, participaram 21 membros;

    As datas citadas neste documento ordenam os acontecimentos que antecederam

    a criao da Secretaria imprimindo certa perspectiva temporal a todo esse processo. A

    criao da SEIND pode ser pensada enquanto um desdobramento dessa srie de

    reunies e decises tomadas tanto por pessoas da administrao pblica, quanto pelos

    representantes do movimento indgena.

    O perfil de Secretrio delineado significativo nesse sentido, ao determinar,

    atravs dos itens 2, 3 e 8, o dever de um profundo comprometimento com as

    organizaes e estruturas indgenas: tanto o movimento quanto o Conselho. Por outro

    lado, o sexto item desvincula este movimento poltico de qualquer articulao partidria

    com governo, uma vez que estabelece que o Secretario no deveria ser indicao

    partidria. J os itens 5, 7 e 9 apontam para a relevncia do candidato dominar preceitos

    bsicos da forma de organizao estatal. Assim, conhecer basicamente sua estrutura

  • 24

    administrativa, legislao e dominar a leitura e escrita em lngua portuguesa surgem

    como condicionantes para a escolha do novo Secretrio.

    As prescries de tais itens demonstram a convergncia de duas diferentes

    estruturas e organizaes polticas que neste momento surgem como complementares.

    H, ento, a possibilidade de dar continuidade a uma poltica que at ento percorria seu

    caminho principalmente atravs de (mas no apenas) organizaes indgenas, mas

    agora, passa a ocupar um lugar diferente: uma secretaria de estado.

    A constituio da Secretaria, o objeto da pesquisa, de forma semelhante

    abertura da Copa Indgena, por si mesmo no aponta para uma suposta polaridade,

    mas evidencia a possibilidade de pensarmos alm dela ou mesmo desfaz-la. Como

    busquei pontuar nesta breve reconstruo de alguns dos momentos que antecederam a

    criao da SEIND, h a confluncia de diferentes movimentos que do corpo a uma

    poltica produzida tanto no interior da administrao pblica, quanto fora dela, em

    instituies do movimento indgena. Tendo em vista alguns dos pontos levantados nas

    pginas anteriores, o texto seguir a seguinte estrutura:

    O primeiro captulo dedicado s rotinas administrativas no interior da SEIND.

    A relevncia conferida a tais procedimentos surgiu logo nos primeiros momentos em

    campo: a negociao de uma contrapartida para a realizao da pesquisa. Atravs da

    elaborao dos documentos de regulamentao da contrapartida, foi possvel perceber

    como as rotinas administrativas no apenas movimentam e produzem papis, mas

    conectam pessoas, atualizam relaes, e geram diferentes reflexos no funcionamento da

    SEIND.

    A partir deste primeiro olhar a respeito da execuo das rotinas burocrticas, no

    segundo captulo, ser possvel compreender a Secretaria a partir das relaes

    desencadeadas pelos papis: quem se comunica com a Secretaria? Quais so as

    demandas que chegam a ela? Quais formatos tais papis seguem, e que foras polticas

    eles representam em um plano mais amplo de anlise? O objetivo deste captulo

    observar a forma com que elementos j sedimentados na burocracia estatal operam

    conjuntamente com elementos oriundos de uma forma especfica de se fazer poltica e

    de reivindicar direitos indgenas.

    O terceiro captulo, por sua vez, trata das trajetrias dos servidores da SEIND e

    do processo de tornar-se um servidor pblico. Objetiva-se refletir sobre a o processo de

    constituio de um servidor pblico indgena ou um tcnico indgena na Secretaria.

    Argumento que esta posio particular s pode ser ocupada por pessoas especficas, que

  • 25

    combinam diferentes qualidades. Essas qualidades, por sua vez, remetem a diferentes

    formas de estar na administrao pblica: como representante, como tcnico, como

    gestor, ou como indgena.

    O quarto e ultimo captulo se debrua sobre a forma com que a Secretaria produz

    as aes voltadas aos povos indgenas fator que ocorre principalmente atravs da

    escrita de projetos. O objetivo refletir sobre como a SEIND se coloca em relao s

    outras instituies do poder pblico e s organizaes indgenas. Olhando para um

    cenrio institucional mais amplo, abordo o Comit Gestor: uma estratgia de

    organizao de diferentes instituies (indgenas e no indgenas, a nvel municipal,

    regional, estadual e federal) que se ocupam da produo de polticas voltadas s

    populaes indgenas, e que coordenada pela SEIND em conjunto com a FUNAI.

  • 26

    Captulo 1: Rotinas, papis e demandas.

    Neste captulo abordo as rotinas administrativas da SEIND, com o propsito de

    descrever como a confluncia de diferentes elementos na produo e circulao de

    documentos conecta pessoas, atualiza relaes, mobiliza foras polticas e origina

    diferentes reflexos no funcionamento da instituio. A negociao para o incio da

    pesquisa no escapou da centralidade atribuda a tais processos burocrticos e, assim,

    apontou para a relevncia de um olhar cuidadoso acerca dos mesmos. Ao seguir o

    percurso de documentos e demandas que so despachados incessantemente, busco

    apontar como as relaes entre os servidores, as comunidades e organizaes indgenas,

    e os demais rgos da administrao pblica so parte integrante dos procedimentos

    burocrticos, de modo que os prprios limites entre a instituio e seu exterior se

    mostram contingentes e imprecisos.

    1.1 Chegando SEIND

    Depois de caminhar pela tumultuada e barulhenta Avenida Sete de Setembro,

    um dos principais eixos de movimento de pessoas, carros e mercadorias no centro

    manauara, chega-se a uma praa de uma tranquilidade contrastante. Belssimas

    edificaes histricas bem preservadas, que atualmente so ocupadas por instituies da

    administrao pblica8, compem o cenrio da chegada SEIND. A Secretaria est

    situada em uma modesta edificao de dois andares, que complementa, mesmo que de

    forma coadjuvante, o conjunto arquitetnico da praa - cujo principal elemento , sem

    dvida, o grande Pao Municipal. Logo ao atravessarmos a porta de entrada e subirmos

    os poucos degraus nos deparamos com uma escrivaninha atravessada no estreito

    corredor com os dizeres: Identifique-se aqui. Esta a Recepo da SEIND,

    improvisada frente falta de espao no prdio. A forma com que a escrivaninha est

    disposta tambm cumpre um papel funcional: impossibilitar o acesso de pessoas no

    identificadas s dependncias da Secretaria.

    As primeiras vezes em que estive na SEIND, tive meu nome e nmero de

    documento anotado pelos funcionrios da portaria, procedimento de rotina para todos os

    visitantes. Com o passar do tempo e provavelmente em funo da frequncia da minha

    presena, tal procedimento passou a no mais ocorrer. J nos ltimos dias do trabalho

    8 Pode-se citar como exemplos o Arquivo Pblico, a Secretaria da Justia e o INSS.

  • 27

    de campo, os funcionrios registravam meu horrio de expediente (chegada e sada da

    Secretaria), como ocorre com os servidores.

    Como estratgia para iniciar a pesquisa optei pela realizao de entrevistas,

    buscando, em um primeiro momento, delinear alguns aspectos do processo de

    constituio e do funcionamento atual da Secretaria a partir da narrativa da trajetria de

    alguns servidores. Neste processo (e em outros vrios momentos) tive grande ajuda de

    uma das servidoras da SEIND, Chris Lopes. Chris Coordenadora de Pesquisa e

    Sociodiversidade do Departamento de Promoo dos Direitos dos Povos Indgenas

    (DEPI) e foi a primeira pessoa com quem estabeleci contato na Secretaria. Formada em

    Cincias Sociais, atualmente est finalizando o mestrado em Antropologia Social pela

    Universidade Federal do Amazonas (UFAM). J tendo atuado enquanto membro do

    comit de tica do Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia (INPA), Chris Lopes

    encarregada de atender os pesquisadores que buscam a instituio como foi meu

    caso9.

    Seguindo as indicaes de Chris Lopes, privilegiei a realizao de entrevistas

    com os servidores (no caso, servidoras) que acumularam mais tempo de trabalho junto

    Secretaria. A partir da foi possvel conhecer um pouco mais de perto a rotina da SEIND

    e do trabalho desenvolvido pelas entrevistadas, j que grande parte das conversas foi

    realizada em seus ambientes de trabalho, sendo poucas as vezes em que elas optaram

    pelo silncio de uma sala reservada. Durante as entrevistas tambm surgia a

    oportunidade de falar sobre aspectos da pesquisa, ainda em fase inicial, ao mesmo

    tempo em que os demais servidores se familiarizavam com minha presena no ambiente

    da Secretaria.

    Logo ao chegar SEIND eu informava aos responsveis pela portaria com quem

    iria conversar. Eles ento me acompanhavam at a sala do entrevistado e anunciavam

    minha chegada. Uma das frases que se tornou recorrente logo nos primeiros dias de

    trabalho de campo e que, muitas vezes, antecedeu as entrevistas foi: ele(a) est

    despachando, tem que esperar um pouco..., s vezes com algumas variaes como: a

    Professora (Chefe de Gabinete) est com o Secretrio, despachando, logo chega.

    Durante a espera pelas pessoas que estavam despachando, era inevitvel eu me

    perguntar: o que despachar? O que as pessoas tanto despacham?

    9 Atravs de conversas informais, soube que a Secretaria j foi objeto de pelo menos dois trabalhos de

    pesquisa de alunos do curso de Cincias Sociais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). A

    minha pesquisa foi a primeira a ser realizada na instituio em nvel de mestrado.

  • 28

    Figura 3: Fachada da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND).

    Figura 4: Portaria da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas (SEIND). Enildo Lopes, sentado, e

    Waldenias Monteiro, de p. Ao lado, podemos observar caixas de artesanato Baniwa de uma organizao

    que estava em reunio com o Secretrio.

    O ato de despachar, cotidiano ao ambiente da SEIND, consiste na principal

    atividade que autoriza a circulao de papis internamente e para alm da Secretaria: os

  • 29

    diversos papis no apenas circulam entre salas, departamentos e outras instituies,

    mas so despachados de um lugar para outro. Cada vez que um documento ou papel

    muda de lugar, seja este uma sala, uma mesa ou uma instituio, recebe uma

    assinatura, possivelmente um carimbo, o registro da data e hora em que foi

    despachado10

    e, grande parte das vezes, segue para seu novo destino com algumas

    recomendaes. Assim, a trajetria percorrida, bem como o tempo de circulao dos

    papis, so registrados neles prprios atravs de tais procedimentos burocrticos. Esse

    conjunto de atividades constitui o despacho.

    Segundo um acordo verbal estabelecido entre os servidores da SEIND, a data de

    recebimento dos papis e o final de seu processo de circulao interna (etapa em que se

    espera que j exista uma resposta ao envio do papel, construda progressivamente

    durante sua circulao), deve se prolongar por no mximo quinze dias. Isso nem sempre

    ocorre e, muitas vezes, suscita certa insatisfao por parte dos servidores. O principal

    motivo levantado pelos mesmos a existncia de diferentes variveis que incidem no

    tempo levado pelos papis que iro percorrer determinado trajeto: viagens, prazos para

    entrega de projetos, alterao de calendrio de editais, acmulo de trabalho, entre

    outros. Tais variveis, no entanto, no suprimem as etapas de tal processo de circulao

    altamente formalizado (e que so incessantemente executadas pelos servidores, como

    veremos a seguir), mas do margem a variadas estratgias adotadas no sentido de tornar

    tais processos mais dinmicos. O acordo verbal anteriormente citado, bem como a

    nfase na comunicao entre os servidores, so alguns exemplos que sero retomados

    na sequncia.

    Desta forma, ao tentar compreender o despacho no ambiente da Secretaria, fui

    levada a perceber a centralidade ocupada pelos papis nas atividades cotidianamente

    desempenhadas pelos servidores. A relevncia conferida aos despachos de papis, por

    sua vez, apontou para a possibilidade de pensar a SEIND a partir da circulao dos

    mesmos, e revelou a reflexividade dos servidores a respeito dos procedimentos

    burocrticos cotidianamente executados.

    Deve-se destacar que o ato de despachar adquire uma importncia fundamental

    nesta anlise ao ser parte integrante de um processo mais amplo de produo de

    documentos (ainda que a presena de papis dentro da SEIND seja mais abrangente do

    que aqueles despachados). Nesse sentido, busco pensar a forma com que cada despacho,

    10 Ressalva-se que nem sempre a data e a hora dos despachos esto registradas nos documentos.

  • 30

    ou cada estgio de circulao, passvel de produzir diferentes efeitos tanto nos

    prprios papis que circulam (que so progressivamente modificados a cada etapa e, no

    momento em que so arquivados, j sustentam o status de documentos) quanto na

    prpria Secretaria (j que sua circulao coloca em movimento no s os papis, mas

    tambm pessoas vinculadas a diferentes esferas de representatividade poltica, como

    veremos na sequncia).

    Em sua etnografia Persona, Agencia y Estado, Brgida Renoldi (2010)

    investiga as rotinas judiciais em um Juzgado Federal de Instruccin, na Argentina. Ao

    acompanhar situaes cotidianas do Juizado, a autora percebeu que a execuo dos

    processos burocrticos suscetvel tanto criatividade das pessoas, quanto aos meios

    materiais necessrios para que eles ocorram (que nem sempre so utilizados da maneira

    prescrita). De forma semelhante, o esforo realizado neste captulo busca refletir sobre a

    centralidade da circulao de papis e demais procedimentos burocrticos, e suas

    diferentes potencialidades: mobilizar e conectar pessoas, atualizar relaes, mobilizar

    foras polticas, e originar diferentes reflexos nas rotinas administrativas da SEIND.

    Assim, como Renoldi (2010) sugere, a dupla agncia de pessoas e papis provoca

    efeitos que escapam s funes anteriormente designadas a tais processos; justamente

    essa possibilidade de superao que nos permitiria perceber o mecanismo burocrtico

    em movimento, tornando possvel o prprio funcionamento institucional (2010:106).

    Destaca-se que olhar para os papis enquanto forma de compreenso de

    processos mais amplos nos coloca frente a um vocabulrio especfico, em que o

    acionamento de certas categorias na escrita dos textos carregados pelos papis evidencia

    sua conexo com outras esferas. Atentando para tal questo, as palavras destacadas em

    itlico sero tratadas enquanto categorias nativas, que requerem um olhar mais

    cuidadoso na anlise que segue.

    1.2 O campo de papis

    A prpria insero no campo para a realizao da pesquisa no escapou

    centralidade dos papis. Aps o primeiro contato com a Secretaria realizado em outubro

    de 2011, ocasio em que foi possvel conhecer alguns de seus servidores e conversar a

  • 31

    respeito da realizao de uma pesquisa cujo tema central seria a prpria instituio, foi

    requerida a elaborao de um projeto de pesquisa que deveria ser enviado SEIND. Tal

    projeto, solicitado pela servidora Chris Lopes, responsvel por atender este tipo de

    demanda, deveria passar pela anlise dos tcnicos da SEIND e do secretrio de estado,

    que decidiriam pelo aceite ou no da realizao da pesquisa.

    Ao enviar o projeto, direcionei o e-mail a dois tcnicos: a prpria Chris Lopes e

    tambm a Ageu Vilcio, responsvel pela Coordenao de ndios na Cidade (tema que

    me despertava interesse por estar vinculada ao Grupo de Etnologia Urbana do

    Laboratrio de Antropologia Urbana da Universidade de So Paulo). Ageu Vilcio

    indgena sater-maw e ocupa o cargo de Assessor na Coordenao de Promoo Social

    no Departamento de Promoo dos Povos Indgenas (DEPI) o mesmo departamento

    da servidora Chris Lopes.

    No sei ao certo qual foi a circulao do projeto que encaminhei, no entanto, ao

    escrever manifestando minha vontade de retornar a Manaus no ms de fevereiro de

    2012 com o objetivo de dar incio a um perodo de trabalho de campo de trs meses de

    durao, recebi uma resposta afirmativa. Ao chegar capital amazonense, iniciou-se o

    dilogo com Chris Lopes a respeito da forma como a pesquisa seria conduzida. A

    servidora mencionou que a SEIND faz uso de alguns documentos no sentido de

    regulamentar as pesquisas realizadas na instituio: o Termo de Anuncia Pesquisa

    (TAP) e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE Anexo III).

    O Termo de Anuncia Pesquisa (TAP) apresentado pela servidora consiste em

    um documento de duas pginas divididas em nove itens; cada um deles tem suas

    especificidades abordadas em distintos tpicos. A forma do documento, atentando aqui

    tanto para a diagramao da folha, quanto para o vocabulrio acionado, demonstra

    grande similaridade a um contrato jurdico. A reproduo integral desse documento, na

    sequncia11

    , ser realizada tanto no sentido de propiciar uma reflexo sobre as novas

    condies de negociao e regulamentao da pesquisa antropolgica, quanto em

    funo de exprimir um modo de operar que caracteriza a dinmica da SEIND.

    TERMO DE ANUNCIA PRVIA

    Pelo presente a Secretaria de Estado para os Povos Indgenas, com CNPJ 11.126.029.0001-30 e

    endereo Rua Bernardo Ramos, 179, Centro, Manaus/AM, atravs de seu Secretrio de

    11

    Alguns dados foram suprimidos no sentido de manter a privacidade dos interlocutores.

  • 32

    Estado, Bonifcio Jos, brasileiro, [estado civil], com CPF [xxxx], est ciente e concorda com

    a realizao do projeto de pesquisa de dissertao ndios e no ndios na administrao

    pblica: uma etnografia da Secretaria de Estado para os Povos Indgenas do Estado do

    Amazonas, da mestranda Tiemi Kayamori Lobato da Costa do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Paran

    (PPGAS/SCHLA/UFPR), nos seguintes termos:

    1 Dos objetivos da pesquisa: Objetivo Geral: Refletir sobre os desdobramentos do movimento indgena a partir de sua

    relao com a administrao pblica na Secretaria de Estado para os Povos Indgenas SEIND.

    2 Sujeitos envolvidos na pesquisa: Servidores da SEIND.

    3 - Da forma como vai ser conduzida a pesquisa

    Trata-se de uma pesquisa etnogrfica que utilizar como instrumentos de coleta de dados:

    a) o levantamento documental de informaes sobre a SEIND a fim de reconstruir a trajetria de criao da Secretaria;

    b) acompanhar, documentar e registrar o processo interno dirio da Secretaria na administrao pblica, buscando perceber a forma com que as polticas pblicas

    voltadas s populaes indgenas so elaboradas;

    c) refletir sobre a trajetria dos funcionrios indgenas e no indgenas da Secretaria, atividade que ser realizada por meio de entrevistas;

    d) levantar o relacionamento interinstitucional da Seind com outras instituies do Governo e fora dele, com as organizaes indgenas e no indgenas, a fim de refletir

    sobre o modelo de gesto de polticas pblicas.

    4 Dos materiais biolgicos e recursos genticos a serem pesquisados No haver utilizao de materiais biolgicos e recursos genticos nesta pesquisa.

    5 Da utilizao do conhecimento tradicional associado, da propriedade intelectual e da publicao dos resultados da pesquisa

    A SEIND entende por publicao os artigos em peridicos, coletneas, relatrios, laudos,

    gravaes, vdeos, teses ou dissertao aprovada e quaisquer obras de acesso pblico impresso

    ou digital. As informaes sobre ndios e no ndios na administrao pblica obtidos a partir da etnografia da SEIND, podero ser publicadas pela pesquisadora desde que cumpra os

    seguintes requisitos:

    - dar acesso ao manuscrito integral em portugus SEIND para que esta, no prazo mximo de

    30 dias, possa exercer seu direito de manifestao, comunicando por escrito seu consentimento

    ou indicando as partes no autorizadas para publicao;

    - em qualquer caso de publicao, o pesquisador obrigado consignar a colaborao da

    SEIND.

    - um exemplar de cada publicao dever ser entregue SEIND;

    - os conhecimentos tradicionais identificados no sero patenteados.

    6 Dos impactos ambientais, sociais e culturais da pesquisa A realizao deste projeto de pesquisa no prev impactos negativos ambientais, sociais ou

    culturais SEIND.

    7 Do oramento do projeto As despesas com o projeto sero sustentadas pela pesquisadora e instituio qual ela est

    inserida: Universidade Federal do Paran (atravs de bolsa de estudos).

    8 Da repartio de benefcios A SEIND define como benefcios quaisquer bens, produtos e/ou servios oriundos do projeto

  • 33

    de pesquisa e que podem ser repartidos, a exemplo de publicaes e capacitaes. Para esta

    pesquisa no haver repartio de benefcios econmicos. A SEIND ser beneficiada com os

    resultados:

    - registro e documentao das atividades desenvolvidas pela Secretaria durante o perodo da

    pesquisa de campo (Maro a Maio de 2012);

    - divulgao da Secretaria, bem como destaque para as atividades realizadas pela mesma, em

    eventos acadmicos dos quais a pesquisadora participar (congressos, reunies, grupos de

    pesquisa, entre outros);

    - compartilhamento de pesquisas e publicaes acadmicas dos grupos de pesquisa dos quais

    a pesquisadora faz parte, a saber: Ncleo de Antropologia Urbana NAU, vinculado Universidade de So Paulo USP; Ncleo de Estudos Amerndios NEA, vinculado Universidade Federal do Paran UFPR; e Ncleo de Antropologia da Poltica, do Estado e das Relaes de Mercado NAPER, vinculado Universidade Federal do Paran UFPR.

    9 Compromisso do proponente O pesquisador se compromete :

    - entregar uma cpia da tese (e todas as outras publicaes a partir dela) SEIND;

    - garantir o direito da SEIND em retirar-se da pesquisa em qualquer fase sem que isto lhe cause

    implicaes jurdicas ou econmicas;

    - destacar a participao da SEIND na pesquisa.

    Este Termo de Anuncia no substitui a aprovao do Termo de Consentimento Livre e

    Esclarecido.

    Tendo lido e concordado com os termos acima descritos, assinam as partes envolvidas na

    pesquisa.

    Este TAP validado pela Ata da reunio realizada com as partes envolvidas.

    __________________________

    Bonifcio Jos

    Secretrio de Estado para os Povos Indgenas

    __________________________

    Tiemi Kayamori Lobato da Costa

    Pesquisadora

    Manaus, 19 de Maro de 2012.

    Mesmo que em um primeiro momento minha posio tenha sido de desconforto

    a respeito da assinatura de tal documento, justamente por se tratar de algo ainda

    controverso e pouco frequente na pesquisa antropolgica, mais tarde, refletindo sobre a

    maneira como ele foi elaborado, bem como sobre a relevncia conferida aos despachos

    na SEIND, tornou-se possvel retornar a tal questo com um novo olhar.

    Em primeiro lugar, o Termo de Anuncia Pesquisa (TAP) foi apresentado a

    mim de forma incompleta: eu deveria terminar de preench-lo de acordo com os dados

  • 34

    contidos em meu projeto, com destaque reproduo integral de seu objetivo geral e

    objetivos especficos12

    . Sendo assim, no inadequado dizer que participei de sua

    elaborao. Nota-se tambm que a estrutura do documento provavelmente foi inspirada

    por outro Termo de Anuncia previamente existente; um indcio disso o item quatro,

    que dispe sobre o uso de materiais biolgicos e recursos genticos, o que no se aplica

    a uma pesquisa realizada em uma repartio pblica como a SEIND. Desta forma, tal

    documento foi elaborado a partir de dois conjuntos diferentes de informaes: seu

    contedo foi em parte retirado do projeto de pesquisa (ao realizada por mim), e em

    parte constitudo a partir de uma fonte desconhecida.

    Assim, ao incorporar trechos do meu projeto de pesquisa no TAP, possvel

    dizer que a Secretaria passa a assumi-los como sendo tambm os dela. Ao assinar o

    termo, estou me comprometendo com as prprias questes de pesquisa esboadas por

    mim que tambm passam a fazer parte dos compromissos com a instituio e com

    meus interlocutores e vice-versa. O Termo de Anuncia, nesse sentido, estabelece um

    compromisso recproco entre a pesquisadora e os pesquisados a partir de um processo

    conjunto de construo de tal documento (ainda que a iniciativa seja oriunda de um dos

    lados).

    Um dos compromissos firmados no Termo de Anuncia a Pesquisa (TAP) seria

    a elaborao e o uso de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) a ser

    assinado por todos os servidores que participassem da pesquisa atravs de entrevistas.

    Tendo em vista que o Termo de Consentimento tambm deveria ser aprovado pelos

    tcnicos da SEIND, e j tendo a experincia de colaborar com a elaborao do Termo de

    Anuncia, no momento de escrita deste segundo documento busquei me aproximar de

    um formato que reproduzisse a formalidade e o contedo do anterior (ANEXO I). O

    TCLE, nesse sentido, reproduz os objetivos contidos no TAP que, por sua vez, reproduz

    (mas no somente) os objetivos do projeto.

    Destaca-se que o Termo de Anuncia, alm de ter gerado o Termo de

    Consentimento, deu origem a outro documento: um Parecer em relao pesquisa. Este

    novo documento, que deveria ser assinado somente pelo Secretrio de Estado, consiste

    em um texto de uma pgina que emite uma avaliao a respeito do Termo de Anuncia

    (que, por sua vez, foi elaborado pela prpria Secretaria, ainda que com minha

    participao), autorizando a realizao da pesquisa. Da mesma forma que nos outros

    documentos, o Parecer tambm incorpora partes do Termo de Anuncia ao qual se

    12

    As partes preenchidas por mim no Termo de Anuncia foram destacadas em itlico.

  • 35

    refere, acrescentando ainda algumas disposies. A recomendao foi de carregar o

    Parecer comigo cotidianamente, e apresent-lo caso algum servidor tivesse dvidas em

    relao aos dados que poderiam ser acessados o que no foi necessrio durante a

    pesquisa na SEIND. Imagino que isso deva ter ocorrido porque, alm de passar por um

    procedimento de integrao (em que fui apresentada a todos pela Coordenadora de

    Recursos Humanos, Karlene), durante a pesquisa foi possvel estabelecer certa relao

    com os servidores que dispensou o papel.

    Remontando forma com que tais processos foram desencadeados, temos,

    inicialmente, o requerimento da elaborao de um documento expondo minhas

    intenes e objetivos: o projeto de pesquisa. Na sequncia, observamos tal projeto

    sendo tratado como uma demanda a ser analisada pelos tcnicos da SEIND. Temos a

    resposta ao projeto a partir da elaborao de um documento que busca regulamentar a

    realizao da pesquisa: o Termo de Anuncia Pesquisa (TAP). Vimos que a forma

    seguida pelo Termo de Anuncia foi incorporada de um documento desconhecido, j

    seu contedo foi parte retirado do projeto e parte consistiu em novos elementos. Tal

    Termo, por sua vez, requer o uso de outro documento na realizao da pesquisa: o

    Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que surge enquanto um

    compromisso de minha parte em relao Secretaria e/ou aos servidores entrevistados

    (tomados individualmente). Sua elaborao tambm foi de acordo com o formato

    buscado pelo Termo de Anuncia, incorporando partes de seu contedo. Posteriormente,

    temos o Parecer em relao ao prprio Termo de Anuncia emitido pela Secretaria, que

    refora os objetivos estabelecidos nos documentos anteriores oriundos primeiramente

    do projeto elaborado. Embora o contedo dos documentos parea ser o mesmo, cada um

    cumpre um fim especfico, no podendo ser substitudo por outro.

    O processo de produo destes quatro documentos evidencia seus padres e

    tambm peculiaridades: ao utilizar certo formato e vocabulrio reproduzindo partes uns

    dos outros, e ao acrescentar novas disposies (dando origem a mais documentos), cada

    um deles passa a ser insubstituvel - o que tambm permite que cumpram diferentes

    papis. Tal dinmica permite a observao de um processo em que um documento pr-

    existente e de origem incerta (ao menos para mim), condiciona o surgimento dos

    demais. Nesse sentido, os papis colocam certas regras que devem ser seguidas tanto

    por mim quanto pelos servidores, ao mesmo tempo em que so multiplicados por ns

    mesmos.

  • 36

    A regulamentao da situao de pesquisa atravs do contrato tem sido acionada

    em contextos contemporneos e, de certa forma, est ligada a formas contratuais que

    vm de outras esferas. A antropologia, disciplina que desde sua consolidao busca

    continuamente refletir sobre seus processos de produo de conhecimento, tem

    procurado analisar as consequncias que isso pode trazer realizao das etnografias,

    tanto por parte dos pesquisadores quanto dos seus interlocutores. No caso especfico

    aqui ilustrado, foi possvel perceber que embora a assinatura de tais termos no seja

    uma prtica comumente observada na pesquisa antropolgica, em outras reas, isso

    um padro. Desta forma, acredito que este desdobramento est perfeitamente alinhado

    aos processos e dinmicas que acompanhei dentro da Secretaria: todos devidamente

    registrados em papel.

    Ao mesmo tempo, preciso levar em conta que, por um lado, temos uma

    pesquisadora desconhecida, vinda de uma regio distante, e inexperiente; e, por outro,

    uma instituio pblica imersa em uma conjuntura bastante complexa de interao,

    muitas vezes tensa, tanto com o prprio governo do estado quanto com organizaes

    indgenas, o que justificaria certo cuidado com a minha presena.

    No posso dizer ao certo se esses foram os motivos que levaram elaborao do

    Termo de Anuncia e, mais tarde, de um Parecer a respeito do mesmo. No entanto, de

    suma importncia mencionar que nem o Termo, nem o Parecer foram assinados. Na

    poca em que tais documentos foram elaborados o Secretrio encontrava-se fora da

    cidade e, aps seu retorno, o assunto no voltou tona. Talvez este fato aponte muito

    mais para a relevncia do processo de produo de tais documentos e para minha

    disposio a assin-los, do que para o contrato em si e seus efeitos. A novidade de tal

    forma de regulamentao, nesse sentido, parece ter se dado no apenas pelo lado da

    pesquisadora, mas tambm consistiu em uma experimentao pelo lado dos prprios

    pesquisados.

    Foi durante este momento de negociao que um dos itens contidos no TAP

    tomou grande importncia: o Compromisso do Proponente. De acordo com Chris

    Lopes, para a realizao da pesquisa na SEIND espera-se que o interessado oferea

    alguma forma de contrapartida. Assim, busca-se o estabelecimento de compromissos

    no somente antes e aps o trabalho de campo (como o compartilhamento dos

    resultados e a entrega de uma cpia da dissertao, por exemplo), mas tambm durante

    sua realizao.

  • 37

    A conversa com a servidora da SEIND seguiu a partir de um exemplo: Se voc

    soubesse utilizar o Excel de forma avanada, poderia propor um curso de Excel para os

    servidores. Meu repertrio de Excel era mnimo, bem como o de cursos que poderia

    oferecer. Conversando mais um pouco, Chris levantou que durante a reunio de

    Planejamento Estratgico, momento em que realizado, ao comeo do ano, um balano

    do trabalho na e da Secretaria, surgiu como questo a insuficincia de dados relativos s

    demandas oriundas da sociedade. Em outros termos, no seria possvel avaliar o que

    a sociedade espera da SEIND de acordo com a servidora. A ausncia de um registro

    sistemtico sobre por que as pessoas procuram a SEIND tambm dificultaria o

    acompanhamento, por parte dos servidores, das atividades realizadas em outros

    departamentos, impossibilitando traar um quadro geral da instituio. No era

    possvel saber quantas demandas chegam Secretaria por ms ou mesmo quais seriam

    as mais recorrentes; assim, seria de extrema importncia tentar desenvolver algum

    sistema de catalogao.

    Buscando de alguma forma coletar dados para pensar as demandas, e mais uma

    vez seguindo as recomendaes de Chris Lopes, dei incio a um trabalho bastante

    manual: tabelar todos os registros de pessoas ou instituies que procuraram a SEIND

    em janeiro e fevereiro de 2012 (meses que antecederam o trabalho de campo), e outubro

    e novembro de 2009 (os dois primeiros meses de funcionamento da SEIND como uma

    Secretaria de Estado). Estabelecemos que esta atividade integraria minha contrapartida

    durante a realizao da pesquisa.

    1.3 As demandas

    A tarefa de tabular as demandas, que inicialmente parecia bastante manual, se

    mostrou muito interessante: ao mesmo tempo em que minha presena na Secretaria no

    mais dependia da realizao de entrevistas (pois agora eu tinha uma funo que

    permitia acompanhar o cotidiano da SEIND), os servidores passaram a me ver ao

    computador, digitando tabelas e mexendo em papis e pastas como a maioria deles no

    dia-a-dia.

    Ao lidar com as demandas fui gradativamente percebendo que elas forneciam

    uma via de acesso compreenso das relaes entre a SEIND e seus diferentes

    interlocutores, assim como do prprio funcionamento da Secretaria que, em grande

  • 38

    medida, um efeito das numerosas demandas que recebe. A partir da materialidade das

    demandas, comearam a surgir conexes entre as rotinas administrativas e o exterior da

    secretaria, bem como entre seus prprios departamentos e servidores.

    A sala em que passei a trabalhar era uma diviso do Gabinete do Secretrio,

    onde tambm trabalha um de seus assessores e duas estagirias (que a maior parte do

    tempo pareciam estar bastante atarefadas, constituindo praticamente a expresso fsica

    do movimento dos papis indo de uma sala a outra). Fui alocada justamente no local de

    maior prestgio da SEIND: perto da sala do secretrio, juntamente com seus assessores e

    ao lado da sala da chefe de gabinete. Ao mesmo tempo, acredito que este local

    possibilitava certo controle, por parte deles, a respeito das atividades que eu estava

    desenvolvendo.

    Figura 5: A assessora Keli Oliveira na sala da chefe de gabinete, Ozenete Aguiar. Ao fundo esto algumas

    das pastas que contm as demandas analisadas na pesquisa.

    O trabalho que eu deveria desenvolver olhando para aquela enorme quantidade

    de demandas era separar os papis recebidos e verificar o contedo de cada um deles

    qual era a demanda contida nele (caso houvesse), quem foi o autor do documento, de

    onde veio e o tempo que permaneceu em circulao na Secretaria. As demandas dos

    meses de janeiro e fevereiro de 2012 estavam arquivadas em pastas com os dizeres

    Documentos Recebidos e organizadas de acordo com as instituies que as

  • 39

    encaminharam SEIND. Tambm havia outras pastas e arquivos que continham mais

    documentos recebidos ou expedidos em anos anteriores. Note-se que, ao serem

    arquivados nas pastas (portanto, ao encerrarem sua circulao, ao menos

    temporariamente, j que uma pesquisadora vinda de longe pode resgat-los), os papis

    recebidos j sustentam o status de documentos e contm algum despacho capaz de

    interromper sua movimentao.

    As pastas com que lidei tinham sido organizadas da seguinte forma: demais

    secretarias e rgos do governo do estado se encontravam em uma pasta; as demandas

    oriundas de instituies pblicas federais estavam organizadas em outra pasta; e, com

    um volume maior de documentos, na terceira pasta estavam organizadas as demandas

    das Organizaes Indgenas. Nesta ltima se encontravam, alm de ofcios e cartas

    circulares de associaes e organizaes indgenas, demandas individuais.

    As demandas que chegam SEIND so as mais diversas, podendo ser enviadas

    por indivduos ou coletivos indgenas (esses ltimos podem ou no estar

    institucionalizados sob a forma de associaes). Apesar da multiplicidade de contextos

    que podem dar origem a demandas, a fala do chefe do Departamento de

    Etnodesenvolvimento, Cristiano, no indgena, tcnico em pesca e com ps-graduao

    em gesto ambiental, revela a existncia de alguns critrios que operam no sentido de

    organizar a forma como elas sero tratadas:

    Chegam demandas individuais, chegam demandas de comunidades, e chegam demandas em nome de organizaes indgenas. A poltica adotada pela secretaria, dado

    os critrios de acesso a recursos, que s tem como atender ou tentar atender as

    demandas em nome de um grupo, e que esse grupo esteja formalizado por meio de

    organizao indgena. Ento o atendimento basicamente por meio de organizaes

    indgenas. As que chegam por meio individual ou comunitrio, a gente procura

    inform-los que temos as limitaes para estar atendendo as demandas de grupos no

    formais, dado nosso oramento, que se a gente tivesse um oramento maior at daria

    para estar atendendo. Como no tem e o oramento limitado, como a gente faz: recebe

    a demanda e, em conjunto com a organizao indgena, procura transformar essa

    demanda em um projeto para que seja captado esse recurso e que esse recurso seja

    passado para a organizao. (Cristiano, em entrevista, 08/05/2012)

    As demandas, de maneira geral, podem conter pedidos de bens materiais, como

    aquisio de barcos, motores, construo de malocas, passagens fluviais etc., ou ento

    tratar de assuntos no materi