artigo de milena

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A PRESENÇA DA IGREJA REFORMADA NO NORDESTE (1630-1654): UMA AVALIAÇÃO DA MISSÃO INDÍGENA. Milena Duarte (graduanda em História – UFPE) “ A religião, a formação política da sociedade luso-brasileira e a língua esclareceram porque a nação mais poderosa do século XVII não conseguiu se impor senão temporariamente pelas armas do Nordeste brasileiro” 1 Introdução. A política da Companhia das Índias Ocidentais em relação aos índios do Nordeste do Brasil havia sido traçada pelo Conselho dos XIX, muito antes da invasão de Pernambuco. Consta, nas “Instruções de 1639” da “Constituição” do Brasil Holandês, que “Os brasilianos e naturais do país deverão ser deixados em liberdade e de modo algum escravizados...”. 2 A lei era clara, e convinha ser aplicada, não por questões éticas ou morais, mas por motivo de ordem econômica: aos holandeses interessava a substituição da mão-de-obra local, de preço vil, pela importada da África, de elevado custo e maior margem de lucro, uma vez que estavam estreitamente vinculados ao tráfico negreiro. Restavam-lhes então, duas alternativas para aproveitar contingentes indígenas: o serviço militar, atendendo à índole guerreira dos mesmos e ao ódio que nutriam contra portugueses escravistas; e a catequese, que constitui aspecto ainda pouco estudado, no que se refere à ocupação e influência holandesa no Nordeste. A ‘libertação’ dos índios, ao que parece, dependia também da ação da Igreja Cristã Reformada. Os pastores missionários agiam como delatores de senhores que mantinham índios em regime de escravidão ou semi-escravidão. O Presbitério do Brasil insistia com o governo para que nenhum índio, Tupi ou Tapuia, fosse mantido nessas condições. Tendo em vista a empatia entre índios e pastores, os primeiros pareciam alvo viável para o trabalho de catequese. “O governo tendia envolver mais e mais os pastores, na 1 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil – 3ª ed. aum. – Recife: FUNDAJ, Editora Massangana; Instituto Nacional do Livro, 1987. p. 238; 2 SCHALKWIJK, Frans Leonard. Igreja e Estado no Brasil Holandês, 1630-1654. Recife: FUNDARPE, 1986. p. 251;

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Page 1: Artigo de Milena

A PRESENÇA DA IGREJA REFORMADA NO NORDESTE (1630-1654): UMA

AVALIAÇÃO DA MISSÃO INDÍGENA.

Milena Duarte (graduanda em História – UFPE)

“ A religião, a formação política da sociedade luso-brasileira e a língua esclareceram

porque a nação mais poderosa do século XVII não conseguiu se impor senão

temporariamente pelas armas do Nordeste brasileiro”1

Introdução. A política da Companhia das Índias Ocidentais em relação aos índios do

Nordeste do Brasil havia sido traçada pelo Conselho dos XIX, muito antes da invasão de

Pernambuco. Consta, nas “Instruções de 1639” da “Constituição” do Brasil Holandês, que

“Os brasilianos e naturais do país deverão ser deixados em liberdade e de modo algum

escravizados...”.2 A lei era clara, e convinha ser aplicada, não por questões éticas ou

morais, mas por motivo de ordem econômica: aos holandeses interessava a substituição da

mão-de-obra local, de preço vil, pela importada da África, de elevado custo e maior

margem de lucro, uma vez que estavam estreitamente vinculados ao tráfico negreiro.

Restavam-lhes então, duas alternativas para aproveitar contingentes indígenas: o serviço

militar, atendendo à índole guerreira dos mesmos e ao ódio que nutriam contra portugueses

escravistas; e a catequese, que constitui aspecto ainda pouco estudado, no que se refere à

ocupação e influência holandesa no Nordeste.

A ‘libertação’ dos índios, ao que parece, dependia também da ação da Igreja Cristã

Reformada. Os pastores missionários agiam como delatores de senhores que mantinham

índios em regime de escravidão ou semi-escravidão. O Presbitério do Brasil insistia com o

governo para que nenhum índio, Tupi ou Tapuia, fosse mantido nessas condições. Tendo

em vista a empatia entre índios e pastores, os primeiros pareciam alvo viável para o

trabalho de catequese. “O governo tendia envolver mais e mais os pastores, na

1 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil – 3ª ed. aum. – Recife: FUNDAJ, Editora Massangana; Instituto Nacional do Livro, 1987. p. 238; 2 SCHALKWIJK, Frans Leonard. Igreja e Estado no Brasil Holandês, 1630-1654. Recife: FUNDARPE, 1986. p. 251;

Page 2: Artigo de Milena

administração pública, porque conheciam melhor os índios, chegando a pedir-lhes auxílio

na formulação de regulamentos...”3

A atuação dos pastores missionários. O corpo eclesiástico da Igreja Cristã Reformada do

Nordeste, de 1630 a 1654, contava com cerca de 47 ministros envolvidos nas missões

indígenas: 6 eram de tempo integral (a saber, David à Doreslaer, Thomas Kemp, Johannes

Eduardus, Dionísio Biscareto, Gilbertus de Vau, e Johannes Apricius); outros dedicavam

parte de seu tempo ao trabalho missionário, como Vicentius Soler e Cornelis van der Poel;

e outros ajudavam ocasionalmente, como ‘Consoladores’ e professores das aldeias.

As tribos indígenas trabalhadas pelos missionários – potiguar, caeté, cariri, tapuia,

etc. – encontravam-se, em sua maioria, batizadas e conhecedoras das orações cristãs.

Quando os missionários iniciaram seu trabalho no Nordeste, muitos batizados já haviam

sido realizados, durante mais de cem anos, por jesuítas, franciscanos e carmelitas. A Igreja

Cristã Reformada reconheceu o batismo da Igreja Católica Romana. Mas as crianças só

poderiam ser batizadas se seus pais já o fossem, e tivessem sido instruídos na religião cristã

reformada.

As tentativas de evangelização e os obstáculos encontrados. A partir de 1635, a Igreja e

começou a investigar o melhor método para alcançar os índios. O Presbitério do Brasil

solicitava ao Presbitério de Amsterdam alguns ‘proponentes’ licenciados, aptos para o

pastorado, a fim de aprenderem a língua tupi para o futuro ensino religioso, além de

professores, acompanhados de suas esposas e filhos, para trabalharem nas aldeias, tendo

como objetivo o ensino da língua holandesa à juventude indígena.

Era preciso, no entanto, encontrar um método de evangelização adequado àquelas

tribos. Educar e evangelizar grupos semi-nômades através de um padrão cultural que lhes

era estranho: essa era a missão dos pastores. Encontrar o melhor método exigia tentativas.

Pensou-se, primeiramente, na elaboração de um sistema de internato para os ‘curumins’,

dirigido por uma família holandesa de numerosa prole. Os pais visitariam seus filhos em

dias determinados, para levar-lhes alimento e vestimentas. A língua portuguesa seria

proibida nesses locais. As medidas preliminares para a execução da proposta foram

3 Idem, p. 269;

Page 3: Artigo de Milena

tomadas, mas o método mostrou-se inadequado: os pais resistiam à separação dos seus

filhos, e estes logo esqueciam as lições de seus pedagogos, e voltavam aos seus antigos

costumes.

Tentou-se ainda, em alguns lugares, métodos de evangelização dos adultos. A idéia

era atraí-los para a cidade, para que fossem instruídos dentro das igrejas da religião

reformada, pelos pastores que já se encontravam nas terras dominadas pela Companhia,

como Soler, no Recife. Os magistrados, no entanto, não consideraram tal plano, tendo em

vista que teriam que conviver com os índios nas cidades, e solicitaram ao Presbitério do

Brasil que encontrasse meios mais apropriados.

Depois de algumas tentativas fracassadas, decidiu-se, em 1638, pela adoção do

método direto: colocar um pastor nas aldeias para administrar os sacramentos entre os

índios. Os ministros reformados seguiram o sistema de aldeamentos, antecipados pelos

padres jesuítas, e controlaram cerca de 21 aldeias, cada uma com um capitão holandês ou

indígena. A obra missionária foi, então, iniciada pelo primeiro pastor missionário de tempo

integral, Doreslaer, nas aldeias da Paraíba.

Missão em tempos de relativa paz. No período de expansão das missões (1640-1642),

missionários de tempo integral foram enviados e distribuídos entre o Rio Grande, a Paraíba,

Itamaracá e Pernambuco. Nesse tempo, houve uma ‘brasilianização’ do ensino, ou seja, a

nomeação de professores indígenas que sabiam ler e escrever, e conheciam alguns

princípios da religião, a exemplo de Melchior Francisco (Aldeia de Nassau) e João

Gonsalves (Goiana)4.

Um catecismo tupi, escrito pelo pastor Soler, foi enviado à Holanda para ser

impresso, e recebido no Brasil por volta de 1642. Preparou-se também um manual de

catecúmenos, cujo nome completo era “Uma instrução simples e breve da Palavra de Deus

nas línguas brasiliana, holandesa e portuguesa, confeccionada e editada por ordem e em

nome da Convenção Eclesial Presbiterial no Brasil, com formulários para batismo e santa

ceia acrescentados”. Este parece ter sido de autoria de Doreslaer5.

4 Ibidem, p. 286; 5 Ibidem, p. 318;

Page 4: Artigo de Milena

Houve, de fato, um certo progresso em relação à instrução dos índios. Alguns

missionários apresentaram relatórios otimistas. Doreslaer, em 1640, dizia se sentir satisfeito

com os resultados, mas no ano seguinte, reconhecia que, embora observasse algum

progresso, não é tão satisfatório quanto desejava, considerando as dificuldades do trato com

os índios – mortalidade crescente, causada pela guerra e epidemias; nomadismo;

infidelidade conjugal; alcoolismo; negligência para assuntos de religião, etc.

Missão na guerra. O trabalho dos obreiros, que prosseguia com ‘regular progresso’, viu-se

ameaçado a partir de 1642. A Insurreição já se fazia sentir. Alguns dos mais importantes

missionários (Doreslaer, Eduardus e Soler), como também muitos professores, regressaram

à Holanda, iniciando o período de decadência das missões indígenas. “Era a confissão da

derrota: os holandeses abandonavam a obra da catequese”6. A eclosão do movimento

liderado pelos senhores-de-engenho luso-brasileiros, em Junho de 1645, foi o teste final da

política governamental e da missão reformada no Brasil Holandês. Os índios (ou melhor,

parte deles), permaneceram aliados aos invasores diante da guerra.

Missão Terminada. Com a Restauração Pernambucana, chega o fim da missão protestante,

“a qual era impossível sem a proteção de um país protestante”7. Os pastores e professores

que ainda se encontravam em terras brasileiras, voltaram para Holanda. Muitos índios,

temendo a vingança dos luso-brasileiros, refugiaram-se pelos sertões, formando quilombos.

Era o fim da missão indígena no Nordeste. A Restauração impediu a continuidade do

trabalho, mas não evitou a formação de adeptos da religião reformada entre os índios

brasileiros.

Cartas tupis. Correspondências entre lideranças indígenas, datadas deste período de guerra,

revelam que alguns desses índios mostraram-se adeptos fervorosos da religião reformada.

Essas cartas foram escritas em língua materna, e trocadas entre familiares da tribo potiguar:

o capitão-mor do Terço dos Índios, Filipe Camarão, e seus oficias luso-brasileiros, e o

Regedor dos Índios aliados dos invasores, Pedro Poti8, e seus homens. O conteúdo das

6 MELLO, p. 223; 7 SCHALKWIJK, p. 310; 8 Há dúvidas quanto à autenticidade dessas cartas, uma vez que apresentam grafia confusa, o que indica que quem as escreveu (sendo, ou não, o próprio autor) não conhecia a língua tupi.

Page 5: Artigo de Milena

cartas consiste na insistência dos primeiros para que os outros (Pedro Poti, Antônio

Paraupaba, e seus índios) abandonassem a aliança com os holandeses, e ajudassem na

retomada do domínio luso. Numa análise dessas correspondências, pode-se perceber o

aspecto nacional-religioso presente em todas elas. Em carta de 22 de Outubro de 1645,

Camarão indaga: “Não sabeis que sois cristão? Por que vos quereis perverter? Sois um filho

de nosso Deus, por que quereis estar sob o ímpio?(...) Preza a Deus que vos vejamos [Poti e

Paraupaba] de novo christão! Como não ficaríamos contentes!”9

Poti, por sua vez, responde às solicitações dos seus parentes para que abandonasse o

partido dos holandeses, em 31 do mesmo mês: “Sou christão e melhor do que vós: creio só

em Christo, sem macular a religião com idolatria, como fazeis com a vossa (...) Aprendi a

religião christã e a pratico diariamente, e si vós a tivésseis aprendido, não serviríeis os

pérfidos e perjuros Portugueses (...) Nada conseguiremos por meio de cartas, portanto não

mais me escrevais. Não quero saber taes cartas”10. O Regedor mostra-se determinado em

servir até o fim ao Governo Holandês, como também à Igreja Reformada. Fica patente,

portanto, a estreita ligação entre fé e razão, Igreja e Estado, nas palavras dos líderes

indígenas.

No entanto, nenhum dos dois veria o desfecho final da guerra. Filipe Camarão

faleceu depois da primeira Batalha dos Guararapes, em 1648, e Pedro Poti foi aprisionado

na segunda batalha, em 1649.

Considerações finais. José Bernardo Fernandes Gama, em Memórias Históricas da

Província de Pernambuco, faz um balanço final da missão indígena: “Alguns missionários

holandeses se esforçaram em inspirar-lhes a crença luterana, mas estas fadigas apostólicas

poucos resultados felizes tiveram. A ímpia teologia de Lutero não podia suprir as

cerimônias sacrossantas do catolicismo, que ligam e cativam o povo”11. Ou seja, apesar dos

esforços, os pastores missionários não conseguiram estabelecer um método eficiente de

evangelização entre os índios. Pode-se ainda acrescentar que o que parece ter ligado os

índios à Companhia e à Igreja Reformada foi, na verdade, a promessa de liberdade, tão

desejada por esse povo.

9 SOUTO-MAIOR, Pedro. Fastos Pernambucanos. Rio: Imprensa Nacional, 1913, p. 157-160; 10 Idem, p 153-156; 11 Apud, SCHALKWIJK, p. 332.

Page 6: Artigo de Milena

Bibliografia:

- MELLO, João Baptista Cavalcanti de. Conquistadores Europeus e Minorias Raciais (Alguns Aspectos da Ocupação Holandesa no Nordeste) – Escorço Crítico às Memórias de José Bernardo Fernandes Gama (Recife, 1809-1953);

- MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos: influência da

ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil – 3ª ed. aum. – Recife: FUNDAJ, Editora Massangana; Instituto Nacional do Livro, 1987;

- ________ D. Antônio Felipe Camarão: capitão-mor dos índios da costa do Nordeste

do Brasil. Recife: Universidade do Recife, 1954;

- SAMPAIO, Theodoro. Cartas Tupis dos Camarões. In: RIAHGP, vol. XII, Nº 68, 1906.

- SCHALKWIJK, Frans Leonard. Igreja e Estado no Brasil Holandês, 1630-1654.

Recife: FUNDARPE (COLEÇÃO PERNAMBUCABA, 2ª fase, 25), 1986; - SOUTO-MAIOR, Pedro. Fastos Pernambucanos. Rio: Imprensa Nacional, 1913;