arthur c clarke - historias de 10 mundos

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osebodigital.blogspot.com

ARTHUR C CLARKE

HISTRIAS DE DEZ MUNDOSTraduo de THA FONSECA

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Minha Me (finalmente)

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RECORDO-ME DA BABILNIA

Meu nome Arthur C. Clarke e gostaria de no ter qualquer ligao com todo esse negcio srdido. Mas como a integridade moral repito, moral dos Estados Unidos est envolvida, primeiramente devo apresentar minhas credenciais. S ento voc compreender como, com a ajuda do finado Dr. Alfred Kinsey, causei involuntariamente uma avalancha que talvez devaste grande parte da civilizao ocidental. Em 1945, quando era um oficial da Real Fora Area especializado em radar, tive a nica idia original de minha vida. Doze anos antes de o primeiro Sputnik ser lanado, ocorreu-me que um satlite artificial seria um local excelente para um emissor de televiso, pois uma estao a milhares de quilmetros de altitude poderia transmitir para a metade do globo terrestre. Escrevi sobre isso uma semana aps Hiroxima, propondo a instalao de uma rede de satlites retransmissores a trinta e cinco mil quilmetros acima do Equador; nessa altitude eles levariam um dia para completar uma revoluo em torno da Terra e assim poderiam permanecer fixos, sobre o mesmo ponto. O artigo foi publicado no nmero de outubro de 1945 da revista O Mundo da Radiotelegrafia; como no esperava que a mecnica celeste fosse comercializada enquanto eu vivesse, no tentei tirar a patente da minha idia. De qualquer modo, duvido que pudesse t-lo feito. (Se estou enganado, prefiro no saber.) Mas continuei a repeti-la em meus livros e atualmente a comunicao por satlites to comum, to usada, que ningum conhece sua origem. Fiz uma melanclica tentativa para registrar esse fato quando7

fui abordado pela Comisso de Astronutica e Explorao Espacial da Cmara dos Deputados; voc poder encontrar meu testemunho na pgina trinta e dois do seu relatrio, Os Prximos Dez Anos no Espao. E como voc verificar em seguida, minhas palavras finais continham uma ironia que naquela ocasio no percebi: Vivendo no Oriente, sou constantemente lembrado da luta entre o Mundo Ocidental e a Unio Sovitica pelos milhes de asiticos indecisos... Quando as transmisses de televiso atravs dos satlites se tornarem possveis, o efeito da propaganda poder ser decisivo... Ainda mantenho essas palavras, mas existiam certos aspectos nos quais no pensei, mas que, infelizmente, outros pensaram. Tudo comeou durante uma dessas recepes oficiais muito freqentes na vida social das capitais orientais. verdade que ainda so mais comuns nas ocidentais, porm em Colombo existem poucas alternativas de entretenimento. Pelo menos uma vez por semana, se voc algum, convidam-no para coquetis em uma embaixada ou legao, no Conselho Britnico, na Misso Militar dos Estados Unidos, na Aliana Francesa, ou numa das inmeras organizaes cuja existncia se deve s Naes Unidas. Inicialmente, como meu scio e eu nos sentamos mais vontade mergulhados no oceano ndico do que nos crculos diplomticos, ramos ignorados e deixados em paz. Mas depois que Mike compred o grupo de Dave Brubeck que veio do Ceilo, as pessoas comearam a reparar em ns mais ainda depois que Mike se casou com uma das mais famosas beldades da ilha. Agora o nosso consumo de coquetis e canaps limitado principalmente pela preguia de trocar nossos confortveis sarongues por disparates ocidentais como smokings, calas e gravatas. Era a primeira vez que amos Embaixada Sovitica, que oferecia uma festa em homenagem a um grupo de oceangrafos que havia acabado de chegar ilha. Sob os inevitveis retratos de Lnine e Marx, cerca de duzentos convidados de todas as cores, religies e lnguas circulavam conversando com amigos, ou simplesmente devorando caviar com vodca. Eu me havia afastado de Mike e Elizabeth, mas podia v-los no outro extremo da sala. Mike estava representando seu ato l estava eu a cinqenta braas de profundidade para um pblico fascinado, enquanto Elizabeth o olhava zombeteiramente e um pblico ainda maior olhava para Elizabeth. Desde que perfurei um tmpano mergulhando para apanhar8

prolas na Grande Barreira Coralgena, fico inferiorizado em reunies desse tipo, onde o rudo est doze decibis acima de minha capacidade de suport-lo. E quando se apresentado a pessoas com nomes como Dharmasiriwardene, Tissaveerasinghe, Goonetillrke e Jayawichrema, a desvantagem aumenta. Assim, quando no estou atacando o buf, geralmente procuro uma posio de relativo silncio onde possa ouvir pelo menos cinqenta por cento de qualquer conversa em que me veja envolvido. Estava parado sob a sombra acstica de uma grande coluna ornamental, observando a festa, desligado, maneira de Somerset Maughan, quando reparei que algum me olhava com aquela expresso de j no nos encontramos antes? Vou descrev-lo cuidadosamente porque deve existir muita gente que possa identific-lo. Tinha uns trinta e cinco anos e calculei que era americano. Usava cabelos curtos e tinha aquela aparncia escovada do executivo nova-iorquino, que foi uma marca registrada at que os jovens diplomatas e consultores tcnicos russos comearam a imit-la com bom resultado. Tinha cerca de um metro e oitenta de altura, penetrantes olhos castanhos e seus cabelos escuros estavam prematuramente grisalhos nas tmporas. Embora eu tivesse absoluta certeza de nunca t-lo visto antes, seu rosto lembrou-me algum conhecido. Levei dois dias para descobrir quem. Lembra-se do falecido John Garfield? Pois a semelhana entre os dois era surpreendente. Quando estou numa festa e um desconhecido atrai minha ateno, meu procedimento padro entra em ao automaticamente. Se o desconhecido parece ser uma pessoa agradvel, mas no momento no estou disposto a travar relaes, fao a sondagem, que consiste em passar os olhos por ele sem qualquer sinal de reconhecimento, mas sem qualquer expresso de hostilidade. Se a pessoa parece ser insuportvel recebe o Coup d Oeil, que se resume num longo olhar de incredulidade seguido de um lento virar de cabea. Em casos extremos, mostro uma expresso de nojo durante alguns milsimos de segundo. Em geral isso d certo. Mas esse homem pareceu-me interessante, e como eu estava ficando entediado. fiz-lhe meu Aceno Corts. Poucos minutos depois ele desvencilhou-se da multido e aproximou-se de mim. Virei meu ouvido bom em sua direo. Ol disse ele, (sim, era americano) meu nome Gene Hartford. Estou certo de que j nos encontramos em algum lugar. bem possvel respondi, passei muitos anos nos Es9

tados Unidos. Meu nome Arthur Clarke. Normalmente isso provoca um olhar vago, mas s vezes no. Dessa vez quase pude ver os cartes IBM tremeluzindo por detrs daqueles olhos castanhos e duros e fiquei lisonjeado pela rapidez da operao. O escritor de fico cientfica? Esse mesmo. Mas incrvel. Parecia realmente surpreendido. Agora sei onde foi que o encontrei. Quando voc participou do programa de Dave Garroway eu estava no estdio. Essa pista talvez merea ser seguida, embora eu duvide; e estou seguro de que Gene Hartford era uma impostura; o nome era demasiadamente fcil e sinttico. Ento voc trabalha na televiso? perguntei. O que est fazendo por aqui, colhendo material ou gozando frias? Ele deu-me o sorriso franco e amistoso de um homem que tem muita coisa a ocultar. Bem, estou observando as coisas. Mas realmente isso extraordinrio. Li o seu livro Explorao do Espao quando saiu em, em... Mil novecentos e cinqenta e dois. Desde ento o Clube do Livro nunca mais foi o mesmo. Durante todo esse tempo fiquei avaliando-o, mas apesar de haver nele algo que no me agradava, no consegui identificar o que era. Mas, de qualquer forma, estava disposto a fazer concesses a algum que j lera meus livros e tambm trabalhava na televiso; Mike e eu estvamos sempre procura de mercados para nossos filmes submarinos. Mas, simplificando, essa no era a linha de negcios de Hartford. Escute disse ele ansioso, estou planejando lanar uma grande programao para televiso que pode interess-lo. De fato, voc me ajudou a ter a idia. Isso parecia interessante e meu coeficiente de cobia subiu vrios pontos. agradvel ouvir isso. Qual a idia geral? No posso falar aqui. Podemos encontrar-nos no meu hotel amanh, por volta das trs? Deixe-me consultar minha agenda. Posso sim. Em Colombo s existem dois hotis freqentados por americanos e acertei de primeira, pois ele estava no Hotel Mount Lavnia. Mesmo que voc no o conhea, j deve t-lo visto. Mais ou menos10

na metade do filme Ponte Sobre o Rio Kwai, h uma cena rpida num hospital militar em que Jack Hawkins encontra uma enfermeira e lhe pergunta onde pode encontrar Bill Holden. Temos certa ternura por esse episdio, porque Mike era um dos oficiais convalescentes da Marinha que aparecia ao fundo do cenrio. Se voc olhar atentamente poder v-lo na extrema direita, o perfil de sua barba em destaque, assinando o nome de Sam Spiegel no vale da sua sexta rodada de bebida. O resultado do filme indica que Sam podia custear aquela despesa. Pois foi a, nesse pequeno plat do qual se avistam os quilmetros de praia orlada por palmeiras, que tivemos nossa conversa particular e Gene Hartford comeou a se abrir e minhas pequenas esperanas de lucros financeiros comearam a se desvanecer. Quais eram precisamente suas intenes e se ele realmente as conhecia, no tenho certeza. Sem dvida alguma, a surpresa de encontrar-me e um falso sentimento de gratido (que alis eu dispensaria de bom grado) significavam muito, e apesar de todo o seu ar de segurana ele devia ser um homem amargo e solitrio que necessitava desesperadamente de aprovao e amizade. No encontrou em mim nenhuma das duas coisas. Sempre tive uma secreta simpatia por Benedict Arnold, a mesma que devem sentir todos os que tiveram conhecimento real do caso. Mas Arnold simplesmente traiu seu pas, enquanto ningum antes de Hartford jamais tentou corromp-lo. O que liquidou meu sonho de ganhar dinheiro foi saber que a ligao de Hartford com a TV americana havia sido rompida, quase violentamente, no comeo da dcada de cinqenta. Ficou claro que ele fora expulso dos meios publicitrios por razes polticas e ficou igualmente claro que no seu caso no foi cometida nenhuma injustia grave. Embora ele falasse com certa raiva contida sobre sua luta contra a censura irracional e lamentasse ser obrigado a interromper um brilhante, embora desconhecido, programa cultural que havia iniciado pouco antes de ser retirado do ar, a essa altura eu estava comeando a farejar tanta sujeira que passei a me acautelar nas respostas. Contudo, na medida em que o meu interesse monetrio em Hartford diminua, minha curiosidade pessoal aumentava. Quem estava por trs dele? Certamente no era a B.B.C.... Finalmente, depois que esgotou sua carga de autopiedade, ele tocou no ponto. Tenho uma notcia que far voc pular da cadeira disse11

ele pretensiosamente. As estaes de televiso americanas em breve tero uma verdadeira competidora. E isso acontecer exatamente do modo previsto por voc; aqueles que enviaram um transmissor para a Lua podem colocar em rbita outro muito maior. Melhor para eles falei cautelosamente. Sou totalmente a favor da livre competio. Quando ser o lanamento? A qualquer momento. O primeiro transmissor ficar exatamente ao sul de Nova Orleans, acima da linha do Equador, claro. Isso o situa em pleno oceano Pacfico, livre de complicaes polticas, pois no estar sobre o territrio de ningum. Entretanto ficar instalado no cu, bem vista de todos, de Seattle a Key West. J pensou que essa ser a nica estao de TV que os Estados Unidos podero sintonizar? O Hava inclusive! No haver nenhum meio de interferir, e pela primeira vez haver um canal sem censura em cada lar americano. E os rapazes do F.B.I. no podero fazer nada para bloque-lo. Ento esse o seu negcio sujo, pensei; pelo menos voc est abrindo o jogo. H muito tempo atrs aprendi a no discutir com marxistas e reacionrios que ainda acham que o mundo plano, mas se Hartford estava dizendo a verdade, eu gostaria de extrair dele tudo que fosse possvel. Antes que voc se entusiasme demais falei, existem certos pontos que voc pode estar negligenciando. Quais? Seu plano pode funcionar de duas maneiras. Todos sabem que a Fora Area, a NASA, a I.T.T., os Laboratrios da Companhia Telefnica, a Hughes e mais dezenas de outras organizaes esto trabalhando no mesmo projeto. O que quer que a Rssia faa aos Estados Unidos na linha de propaganda, receber de volta com juros dobrados. Hartford sorriu melancolicamente. Realmente, Clarke! disse ele (Fiquei contente por no me ter chamado pelo primeiro nome) Estou um pouco desapontado com voc. Devia saber que os Estados Unidos esto muito atrasados em matria de capacidade de carga til! E ainda acredita que o antiquado T.3 a ltima palavra da Rssia? Foi nesse momento que comecei a lev-lo a srio. Ele estava totalmente certo. O T.3 poderia injetar pelo menos cinco vezes mais a carga til de qualquer projtil americano nessa rbita crucial de trinta e cinco mil quilmetros a nica que permitiria a um satlite permanecer sobre a Terra. E quando os Estados Unidos12

conseguissem realizar essa faanha, s Deus sabe onde estariam os russos. Sim, certamente Deus saberia... Est certo concordei, mas por que cinqenta milhes de lares americanos iriam preferir trocar de canal em seus aparelhos de TV assim que possam sintonizar diretamente com Moscou? Admiro os russos, mas seus espetculos so piores do que sua poltica. O que vocs tm alm do Bolshoi? E para mim bal muito cansativo. Outra vez recebi aquele sorriso peculiarmente desagradvel. Hartford guardara o seu golpe demolidor e me acertou com ele. Foram vocs que trouxeram os russos disse ele. claro que eles esto envolvidos, mas apenas como contratados. A agncia independente para a qual estou trabalhando est empregando seus servios. Deve ser uma grande agncia repliquei secamente. E . Quase a maior. Ainda que os Estados Unidos procurem ignorar sua existncia. Ah... falei de um modo meio idiota. Ento esse o seu patrocinador. Eu j ouvira rumores a respeito de que a Unio Sovitica ia lanar satlites pelos chineses; nesse momento comecei a perceber que os rumores estavam bem perto da verdade. Mas quo perto, eu ainda no fazia idia. Voc tem razo continuou Hartford, obviamente satisfeito consigo mesmo sobre os espetculos russos. Depois do entusiasmo inicial, o ndice de audincia cairia a zero. Mas com a programao que eu estou planejando isso no acontecer. Meu trabalho descobrir um material que afaste os competidores quando o programa entrar no ar. Voc acha que isso impossvel? Termine sua bebida e vamos ao meu quarto. Tenho um filme de alto gabarito sobre arte eclesistica que gostaria de lhe mostrar. Ele no era louco, embora por alguns minutos eu pensasse que era. Eu nunca poderia ter escolhido um ttulo to adequado para obrigar o telespectador a mudar de canal, como o que apareceu na tela: ASPECTOS DA ESCULTURA TANTRA DO SCULO XIII. No se assuste disse Hartford rindo mais alto do que o som que saa do projetor. Esse ttulo se presta perfeitamente para um fim: livrar-me de problemas com os inspetores das alfndegas. Mas quando chegar o momento certo, ns o mudaremos para outro mais atrativo para o pblico.13

Depois de assistir a uns sessenta metros de algumas incuas tomadas de plano distante do conjunto arquitetnico, percebi o que ele queria dizer. Voc deve saber que existem certos templos na ndia recobertos com entalhes magnificamente executados, representando figuras que ns, do Ocidente, dificilmente associaramos religio. No seria exato dizer que aquelas figuras eram ingnuas, mas ao mesmo tempo eram genunas obras de arte. Como o filme de Hartford, alis. Caso lhe interesse saber, ele foi filmado no Templo do Sol, em Konark. Mais tarde tentei localiz-lo; fica no litoral de Orissa, cerca de quarenta quilmetros ao nordeste de Puri. Os livros de consulta so bastante vagos sobre isso; alguns se desculpam pela bvia impossibilidade de fornecer ilustraes, mas o Arquitetura Indiana de Percy Brown, franco e direto. Declara meticulosamente que os entalhes tm um carter impudentemente ertico e impossvel de ser comparado com qualquer outra arquitetura conhecida. uma afirmao radical, na qual acredito depois de ter visto esse filme. A fotografia e a montagem eram excelentes, as pedras milenares adquirindo vida atravs das lentes perscrutadoras. Havia cenas emocionantes, a cmara focalizando os primeiros raios de sol iluminando as sombras entrelaadas em xtase; closes surpreendentes que, primeira vista, a mente se recusava a aceitar; estudos difusos de todas as fantasias e aberraes do amor, talhados na pedra pela mo de um mestre; zuns e tomadas panormicas rpidas cujo significado iludia a vista at se fixarem em figuraes de desejo infinito e satisfao eterna. A msica de fundo, na maior parte percusso, tinha um som intenso e agudo sado de algum instrumento de corda que no consegui identificar, e se adaptava perfeitamente ao ritmo da montagem. Num momento era langorosamente lenta, como os compassos de abertura do LAprs-Midi, de Debussy; depois os tambores aumentavam suas batidas at atingirem um clmax frentico, quase insuportvel. A arte dos antigos escultores e a habilidade do moderno cinegrafista haviam-se unido atravs dos sculos para criar um poema de arrebatamento dos sentidos, um orgasmo no celulide ao qual eu desafiaria qualquer homem a assistir com indiferena. Houve um longo silncio quando o filme acabou e a msica lasciva exauriu-se. Meu Deus! exclamei quando consegui me refazer. Voc vai exibir isto pela televiso?14

Hartford riu. Pode ter certeza respondeu ele, isto no nada; h muitos outros, mas esse o nico que posso carregar comigo sem preocupao. Estamos preparados para defend-lo a qualquer momento apoiado no conceito da arte genuna, no interesse histrico, na tolerncia religiosa. Pensamos em todos os ngulos. Mas isto realmente no interessa; ningum poder deter-nos. Pela primeira vez na Histria, qualquer tipo de censura tornou-se totalmente impossvel. No existe meio algum que impea sua exibio; o cliente poder obter o que deseja dentro de sua prpria casa. Fecha a porta, liga a televiso e os amigos e a famlia nunca sabero. Muito bem pensado falei, mas no acha que as pessoas vo-se saturar logo com esse tipo de dieta? claro; a variedade o tempero da vida. No se preocupe, pois temos muitos programas convencionais. Uma vez ou outra exibiremos filmes informativos odeio a palavra propaganda para que o enclausurado pblico americano possa ver o que est acontecendo realmente no mundo. O que voc assistiu um dos nossos filmes especiais que sero usados como isca. Ser que podemos arejar um pouco? falei. Aqui est muito abafado. Hartford abriu as cortinas e a luz do dia invadiu o quarto. Pela janela via-se a extensa curva da praia, a silhueta dos barcos de pesca, delineada sob as palmeiras, e as pequenas ondas cansadas da longa viagem iniciada na frica caam em nuvens de espuma. Era um dos mais belos panoramas do mundo, mas naquele momento meus olhos no conseguiam se concentrar nele. Continuava vendo aqueles contorcidos membros e aquelas faces imobilizadas pela paixo que os sculos no conseguiram apagar. Aquela voz lasciva continuou a soar em meus ouvidos. Voc ficaria surpreendido se soubesse quanto material temos. Lembre-se que para ns no existe tabu nenhum. O que pode ser filmado, pode ser televisado. Ele foi at sua escrivaninha e pegou um livro grosso com vrias pginas marcadas. Este livro tem sido a minha Bblia falou ou, se preferir, meu catlogo da Sears Roebuck. Sem ele, eu no teria vendido os programas aos meus patrocinadores. Eles acreditam muito na cincia e engoliram a isca toda. Reconhece esse livro? Confirmei com um movimento de cabea; sempre que entro numa casa examino as preferncias literrias do meu anfitrio.15

Dr. Kinsey, no ? Acho que sou a nica pessoa que o leu da primeira ltima pgina sem se interessar apenas pelas suas estatsticas vitais. Sabe que essa a nica obra de pesquisa de mercado nesse campo? At que aparea outra melhor, estamos explorando-a ao mximo. Por ela sabemos o que o cliente quer e ns fornecemos. Tudo? Sim, se houver pblico suficiente. No nos preocupamos com garotos dbeis mentais do interior que esto mais interessados nas coisas normais. Mas os quatro principais sexos podem receber o tratamento completo. A perfeio do filme que voc acabou de ver reside nisso, ou seja, agrada aos quatro. Pode ter certeza disso murmurei. Foi to divertido planejar esse filme que o batizei de Esquina da Perverso. No caoe. Nenhuma organizao moderna pode dar-se ao luxo de ignorar esse tipo de pblico. No mnimo so dez milhes de pessoas se voc incluir as lsbicas com seus abenoados sapates e suas roupas masculinas. Se pensa que estou exagerando s dar uma olhada nas revistas de nus masculinos nas bancas de jornais. No foi desonestidade chantagear alguns dos halterofilistas mais musculosos para posar para ns. Ele percebeu que eu estava ficando entediado. Existem certos tipos de franqueza que acho deprimentes. Mas no fui justo com Hartford, como ele se apressou aprovar. Por favor disse aflito, no pense que o sexo nossa nica arma. O sensacionalismo tambm quase to bom. J viu o trabalho que Ed Murrow fez sobre o consagrado Joe MacCarthy? Pois gua com acar, comparado s biografias que estamos planejando para o Washington Confidencial. E h tambm uma srie Voc Pode Suportar?, planejada para separar os covardes dos homens de coragem. Ser antecedida, por tantas advertncias, que todo americano que se preza vaise sentir na obrigao de assistir ao programa. A srie vai comear bem inocentemente com material baseado em Hemingway. Voc ver algumas seqncias de touradas que o faro realmente pular na cadeira, ou o faro ir correndo ao banheiro, porque nelas sero mostrados, todos os pequenos detalhes que voc nunca pde ver nos filmes falsos de Hollywood. Depois desse temos uma matria realmente indita que nada nos custou. Lembra-se das provas fotogrficas apresentadas nos julgamentos de Nurembergue? Voc nunca pde v-las pois no16

podiam ser exibidas. Nos campos de concentrao havia muitos fotgrafos amadores que souberam aproveitar ao mximo oportunidades que nunca mais teriam. Alguns deles foram enforcados graas ao testemunho de suas prprias fotos, mas seu trabalho no foi desperdiado. Ser a introduo da nossa srie A Tortura Atravs dos Tempos muito bem feita e de nvel universitrio, mas de grande apelo popular... E ainda existem dezenas de outros aspectos, mas voc pode ter uma viso geral. Os publicitrios americanos pensam que sabem tudo sobre tcnicas disfaradas de persuaso, mas posso-lhe garantir que no sabem. Atualmente os melhores psiclogos experimentais esto no Oriente. Lembra-se da Coria e da lavagem cerebral? Aprendemos muita coisa depois daquilo. J no h necessidade de violncia; as pessoas gostam de sofrer lavagem cerebral, quando bem feita, iniciada corretamente. E voc falei, vai fazer lavagem cerebral nos Estados Unidos. Tarefa trabalhosa. Exatamente, e o pas vai gostar disso, a despeito de todos os protestos do Congresso e das Igrejas. Sem mencionar, claro, as redes de televiso. Entre todos, elas faro o maior escndalo quando descobrirem que no podem competir conosco. Hartford olhou para o relgio e deu um assovio de surpresa. Hora de comear a fazer as malas disse, tenho que estar nesse horrvel aeroporto de vocs s seis. Ser que h alguma chance de voc nos visitar em Macau um dia desses? Nenhuma; mas j tive uma boa idia do problema. E a propsito, no tem medo que eu d com a lngua nos dentes? Por que teria medo? Quanto mais publicidade nos der, melhor para ns. Conquanto nossa campanha publicitria venha a ser iniciada somente daqui a uns meses, acho que voc merecia tomar conhecimento dela antes dos outros. Como j disse, seus livros me ajudaram a conceb-la. De fato, sua gratido era bastante real; isso deixou-me sem fala. Nada poder deter-nos afirmou ele, e pela primeira vez o fanatismo que se escondia por trs daquela cnica aparncia polida veio tona. A Histria est do nosso lado. Estaremos usando a prpria decadncia da Amrica como uma arma contra ela, e essa uma arma contra a qual no existe defesa. A Fora Area no tentar fazer pirataria espacial derrubando um satlite colocado longe do17

territrio americano. A Comisso Federal de Comunicaes nem poder protestar contra um pas que no existe aos olhos do Departamento de Estado. Se voc tiver outras sugestes, terei muitssimo interesse em ouvi-las. Eu no tinha ento e nem tenho agora. Talvez essas palavras possam servir de advertncia antes que apaream nos jornais especializados os primeiros anncios provocadores, iniciando um alarme de propores gigantescas entre as cadeias de televiso. Mas ser que isso poder alterar as coisas? Hartford acha que no, e talvez ele tenha razo. A Histria est do nosso lado. No consigo tirar essas palavras da cabea. Terra de Lincoln, Franklin e Melville, eu a amo e desejo o seu bem. Mas dentro do meu corao sopra um vento frio vindo do passado, pois recordo-me da Babilnia.

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VERO EM CARO

Quando Colin Sherrard abriu os olhos depois do desastre, no conseguiu perceber onde estava. Parecia estar deitado, preso em uma espcie de veculo, no topo de um monte arredondado que descia ingrememente em todas as direes. Sua superfcie era queimada e enegrecida, como se tivesse sido devastada por um grande incndio. Por cima desse monte, o cu era negro como azeviche e repleto de estrelas; no fundo, bem abaixo do horizonte, uma delas pendia como um Sol pequenino e brilhante. Poderia ser o Sol? Ser que estava to distante da Terra? No, isso era impossvel. Um pensamento perturbador dizia-lhe que o Sol estava mais prximo, terrivelmente mais prximo, e no to distante que ficasse diminudo ao tamanho de uma estrela. E com esse pensamento recuperou toda a sua conscincia. Sherrard sabia exatamente onde estava, e esse reconhecimento foi to terrvel que ele quase desmaiou novamente. Ele estava mais perto do Sol do que qualquer homem jamais estivera. Seu mdulo espacial danificado no estava em cima de nenhuma colina, mas sobre a superfcie curva de um mundo de seis mil e duzentos quilmetros de dimetro. Esse ponto brilhante que mergulhava rapidamente no oeste era Prometeu, a nave que o trouxera at ali atravs de tantos milhes de quilmetros de distncia no espao. L estava ela, no meio das estrelas, imaginando por que seu mdulo no retornara como um pombo-correio para seu poleiro. Dentro de poucos minutos ela mergulharia no horizonte em seu perptuo jogo de esconde-esconde com o Sol e desapareceria para sempre do seu campo visual.19

Pois ele perdera esse jogo. Ainda estava no lado escuro do asteride, sob a fresca proteo de sua sombra, mas logo a curta noite terminaria. O dia de caro, que durava apenas quatro horas, o fazia girar rapidamente em direo a essa alvorada assustadora, quando um Sol trinta vezes maior do que qualquer outro que j brilhou sobre a Terra incendiaria aquelas pedras. Sherrard sabia exatamente por que tudo sua volta estava queimado e enegrecido. caro ainda estava a uma semana de seu perilio, mas a temperatura ao meio-dia j havia atingido quinhentos e quarenta graus. Embora no tivesse tempo para humorismo, lembrou-se subitamente da descrio de caro feita peo Capito McClellan: O lote de terreno mais quente do sistema solar. A verdade desta pilhria fora comprovada alguns dias antes por uma dessas experincias no-cientficas que so muito mais convincentes do que qualquer nmero de grficos e leitura de instrumentos. Um pouco antes de o dia raiar, algum jogara um pedao de madeira sobre o pico de um dos pequeninos montes. Sherrard ficara observando, atravs da janela que dava para o lado noite da nave, quando os primeiros raios do sol-nascente tocaram o topo do monte. Assim que seus olhos se acostumaram com a sbita claridade, viu que a madeira j estava comeando a escurecer e carbonizar. Se existisse atmosfera em caro, o pedao de pau teria irrompido em chamas; portanto era assim o amanhecer de caro... Porm, quando pousaram l pela primeira vez, h cinco semanas atrs, ao passar pela rbita de Vnus, o calor no estava insuportvel. Prometeu havia sobrevoado o asteride quando este comeava sua trajetria em direo ao Sol, igualara sua velocidade com a desse pequeno mundo e tocara sua superfcie to suavemente como um floco de neve. (Um floco de neve sobre caro isso realmente era uma boa piada...) Ento os cientistas haviam pesquisado seus irregulares trinta e nove mil quilmetros quadrados de ferro e nquel que cobriam a maior parte da superfcie do asteride, instalando seus instrumentos e postos de controle, coletando e fazendo inmeras observaes. Tudo fora cuidadosamente planejado, anos atrs, como parte do programa da Dcada Internacional de Astrofsica. Era uma oportunidade nica para uma nave de pesquisa aproximar-se do Sol distncia de apenas vinte e sete milhes de quilmetros, protegida de sua violncia por um escudo de rocha e ferro de trs mil e duzentos quilmetros de espessura. Abrigada por caro, a nave poderia voar em segurana ao redor do Sol que aquecia todos os pla20

netas, e do qual a vida de todos dependia. Assim como o lendrio Prometeu havia trazido Humanidade a ddiva do fogo, tambm a nave que herdou seu nome voltaria Terra com outros incalculveis segredos trazidos dos cus desconhecidos. Antes da Prometeu precisar afastar-se e procurar a sombra permanente da noite, houve tempo suficiente para instalar os instrumentos e fazer as pesquisas. E tambm foi possvel aos homens nos minsculos mdulos espaciais de autopropulso miniaturas das naves espaciais, de apenas trs metros de comprimento trabalhar do lado noite durante uma hora ou mais, antes de serem alcanados pela aproximao do sol-nascente. A tarefa parecia bem fcil de ser realizada, em um mundo em que a manh avanava a mil seiscentos quilmetros por hora; mas Sherrard havia fracassado e a penalidade era a morte. Sherrard ainda no estava bem certo do que acontecera. Havia ido l para substituir um transmissor do sismgrafo na Estao 145, conhecida vulgarmente como Monte Evereste porque ficava a uma altitude de dois mil setecentos e quarenta e trs metros do solo que a cercava. O trabalho havia corrido perfeitamente bem, mesmo ele tendo que realiz-lo por controle remoto atravs dos braos mecnicos do seu mdulo. Sherrard era um especialista em sua manipulao; conseguia dar laos com seus dedos de metal to rapidamente quanto com seus prprios dedos. A tarefa levara pouco mais de vinte minutos e logo o sismgrafo entrou em ao, novamente registrando as mnimas trepidaes que abalavam caro em nmero cada vez maior, medida que o asteride se aproximava do Sol. Era uma pequena compensao saber que ele, com a sua queda, proporcionara uma elevao imensa a esse registro. Depois de ter conferido os sinais, ele havia recolocado cuidadosamente os filtros de sol que cobriam o instrumento. Era difcil crer que duas frgeis lminas de metal da espessura de uma folha de papel pudessem afastar uma carga de radiao to grande que derreteria chumbo e estanho em segundos. Mas o primeiro filtro refletia mais de noventa por cento da luz solar que caa sobre sua superfcie espelhada, e o segundo fazia retroceder a maior parte da restante, de modo que somente uma frao inofensiva de calor penetrava no instrumento. Ele informara o trmino da tarefa, recebera um agradecimento da nave e se preparara para regressar base. Os brilhantes holofotes que pendiam da Prometeu sem os quais o lado noite do asteride ficaria em completa escurido eram um alvo inconfun21

dvel no cu. A nave distava apenas trs mil e duzentos quilmetros acima, e nessa fraca gravidade ele poderia ter pulado tal distncia se estivesse usando traje espacial com pernas flexveis. Como estava, os microfoguetes de baixa voltagem do seu mdulo o levariam at l, tranqilamente, em cinco minutos. Ele havia direcionado o mdulo com seus giroscpios, ajustado os jatos traseiros na Fora Dois e pressionado o boto de partida. Tinha havido uma violenta exploso em algum local na proximidade dos seus ps e ele fora lanado para fora de caro mas no na direo da nave Prometeu. Alguma coisa sara terrivelmente errada; foi atirado para um lado do mdulo, incapaz de alcanar os controles. Somente um dos jatos estava funcionando, e o mdulo ficou girando no espao, rodopiando cada vez mais rpido sob a propulso desequilibrada. Tentou encontrar o dispositivo que o desligava, mas o parafuso estava completamente desorientado. Quando conseguiu localizar os controles, sua primeira reao ainda piorou a situao empurrou o acionador manual at o fundo, como um motorista nervoso ao pisar no acelerador em vez do freio. Levou apenas um segundo para corrigir o erro e parar o jato propulsor, mas a ele rodopiava to rapidamente que as estrelas estavam girando em crculos. Tudo acontecera to depressa que no houve tempo para ter medo, nem sequer para chamar a nave e informar sobre o ocorrido. Retirou as mos dos controles; toc-los naquele momento s pioraria as coisas. Seriam necessrios dois ou trs minutos de cautelosa manobra para ele se soltar e, pelos reflexos tremeluzentes das rochas em aproximao, ficou bvio que ele no teria tantos segundos como pensara. Sherrard recordou-se de um aviso da capa do Manual do Astronauta: Quando voc no souber o que fazer, no faa nada. Ele continuava procedendo assim quando colidiu sobre caro e as estrelas desapareceram. Foi um milagre que o mdulo estivesse intacto e ele ainda pudesse respirar. (Dentro de trinta segundos poderia regozijar-se se conseguisse fazer isso quando a refrigerao do mdulo comeasse a falhar...) Tinha havido alguns danos, claro. Os espelhos retrovisores, do lado de fora da cpula de plstico transparente que cobria sua cabea, tinham-se quebrado, de modo que ele no podia ver o que estava atrs sem virar o pescoo. Isso era um percalo banal; muito mais srio era o fato de as antenas do seu rdio se terem partido com o impacto. No poderia comunicar-se com a nave e nem esta com ele. Do rdio s se ouvia um fraco estalido,22

provavelmente produzido pelo seu prprio aparelho. Ele estava absolutamente s, isolado do resto da raa humana. Era uma situao desesperadora, mas havia um tnue raio de esperana. Afinal, ele no estava completamente desamparado. Mesmo no podendo usar os foguetes do mdulo calculava que o motor de estibordo tivesse explodido na parte de trs e rompido uma passagem de combustvel, algo que os projetistas disseram ser impossvel de ocorrer ele ainda era capaz de se mover. Tinha seus braos. Mas em que direo se poderia arrastar? Havia perdido todo o senso de direo, pois embora tivesse decolado do Monte Evereste, poderia agora estar a milhares de metros de distncia deste. No existiam pontos de referncia ntidos nesse diminuto mundo. O brilho de estrela da Prometeu, em rpida inclinao, era seu melhor guia, e se ele conseguisse manter a nave vista estaria em segurana. Seria apenas uma questo de minutos antes que sua ausncia fosse notada, se que realmente esta j no fora descoberta. Mas sem rdio, seus colegas poderiam levar muito tempo para encontr-lo; apesar de caro ser muito pequeno, seus desertos trinta e nove mil quilmetros quadrados incrivelmente irregulares podiam ser um esconderijo eficaz para um cilindro de trs metros de comprimento. Poderiam levar uma hora para localiz-lo o que significava que ele teria que se resguardar do mortal nascer do sol. Deslizou seus dedos para os controles que moviam seus membros mecnicos. Do lado de fora do mdulo, no vcuo hostil que o cercava, seus braos substitutos adquiriram vida. Desceram, se estenderam contra a superfcie de ferro do asteride e ergueram o mdulo do solo. Sherrard fixou-os e a cpsula cambaleou para a frente, como um estranho inseto de duas pernas... primeiro o brao direito, depois o esquerdo, depois o direito... No foi to difcil quanto ele temera, e pela primeira vez sentiu renascer sua confiana. Embora seus braos mecnicos tivessem sido planejados para pequenos trabalhos de preciso, s necessitaram de um pequeno empurro para movimentar a cpsula nesse ambiente livre da ao da gravidade. Em caro a gravidade era dez mil vezes mais fraca do que na Terra; Sherrard e seu mdulo espacial pesavam menos de trinta e um gramas ali e assim que conseguiu se pr em movimento, flutuou para frente sem esforo, to levemente como num sonho. Porm essa facilidade tinha seus perigos. Ele havia caminha23

do vrias centenas de metros e estava alcanando rapidamente a luz declinante da Prometeu, quando sua excessiva confiana o traiu. (Estranho como a mente consegue mudar de um extremo ao outro; alguns minutos antes ele se estivera revestindo de coragem para enfrentar a morte agora estava pensando consigo mesmo se chegaria tarde para o jantar.) Talvez a novidade do movimento, to diferente de qualquer outra coisa que j experimentara antes, fosse responsvel pela catstrofe; ou talvez ele ainda estivesse sofrendo os efeitos do desastre. Como todos os astronautas, Sherrard aprendera a se orientar no espao e havia crescido acostumado a viver e trabalhar quando as concepes de alto e baixo no tinham mais sentido. Num mundo como caro, era necessrio fingir que havia um planeta real e genuno embaixo de seus ps, e que quando voc se movia estava caminhando sobre uma superfcie plana. Se essa inocente iluso falhasse, voc estaria na direo da vertigem espacial. O ataque comeou sem aviso, como costuma acontecer. De repente, caro j no parecia estar sob seus ps e nem as estrelas acima de sua cabea. O Universo se inclinou para um ngulo direita; ele estava caminhando diretamente para o alto de um penhasco vertical, como um alpinista escalando o lado de uma montanha, e embora a lgica de Sherrard lhe dissesse que isso era pura iluso, todos os seus sentidos gritavam que isso era verdade. Em um instante a gravidade poderia arranc-lo desse enorme paredo e lan-lo por quilmetros sem fim at que ele se chocasse com o esquecimento. . O pior ainda estava para vir; a falsa verticalidade ainda oscilava como a agulha de uma bssola que tivesse perdido seu plo. Agora ele estava no lado inferior de uma imensa abbada de pedra, como uma mosca grudada num teto; noutro instante aquilo se tornava novamente um paredo mas dessa vez ele se estaria movendo diretamente para baixo dele, em vez de para cima... Ele havia perdido todo o controle sobre o mdulo e o pegajoso suor que havia comeado a porejar em sua testa advertiu-o de que em breve perderia o controle sobre seu corpo. S havia uma nica coisa afazer; apertou os olhos fortemente, comprimiu-se o mais longe possvel dentro do minsculo mundo fechado de seu mdulo, e fingiu, com todas as suas foras, que o Universo exterior no existia. Nem sequer permitiu que o lento e suave rangido de sua segunda coliso interferisse em sua auto-hipnose. Quando ousou olhar novamente para fora, descobriu que o24

mdulo havia parado de encontro a um extenso penedo. Seus braos mecnicos haviam amortecido a fora do impacto, mas a um preo maior do que podia pagar. Embora ali o mdulo no tivesse peso, ainda possua seus duzentos e vinte e seis quilos de inrcia, e se estivera movendo a seis mil e quinhentos quilmetros por hora. O impulso havia sido demasiado para os braos de metal absorverem; um se havia quebrado com um estalo e o outro estava irremediavelmente torcido. Quando viu o que havia acontecido, a primeira reao de Sherrard no foi de desespero, mas de raiva. Tivera confiana demais no sucesso quando o mdulo comeara a planar pela superfcie rida de caro. E vai logo acontecer isso, tudo por causa de um momento de fraqueza fsica! Mas o espao no tem considerao pelas fraquezas e emoes humanas e um homem que no aceita esse fato no tem o direito de estar ali. Pelo menos ganhara um tempo precioso na perseguio nave; e colocara dez minutos extras, se no fossem mais, entre ele e a alvorada. Se esses dez minutos iriam simplesmente prolongar sua agonia ou se lhe dariam o tempo necessrio para que seus companheiros o encontrassem, ele logo saberia. Onde estavam eles? Certamente havia comeado nesse momento a busca! Forou a vista na direo da luz brilhante da nave, com esperanas de distinguir os fracos faris de mdulos espaciais vindo em sua direo mas no se via nada contra a abbada celeste que lentamente girava. Seria melhor que ele descobrisse seus prprios recursos, embora estes fossem limitados. S faltavam uns poucos minutos para que a Prometeu e seu rastro luminoso sumissem por baixo da borda do asteride e o deixassem na escurido. Era bem verdade que essa escurido ia ser breve demais, mas antes que ela descesse sobre ele, precisava descobrir algum abrigo contra o dia que se aproximava. Essa rocha na qual ele cara, por exemplo... Realmente, ela poderia fornecer alguma sombra, at que o Sol estivesse na metade da sua subida a prumo. Nada poderia proteg-lo se o Sol passasse exatamente acima da sua cabea, mas era tambm possvel que ele pudesse estar numa latitude em que o Sol nunca se elevasse muito alm do horizonte nessa estao de caro em que o ano tinha quatrocentos e nove dias. Desse modo ele poderia sobreviver ao breve perodo diurno; essa era sua nica esperana, se a equipe de salvamento no o encontrasse antes da alvorada.25

L se foram a nave Prometeu e suas luzes, para baixo do limite do mundo. Com sua partida, as estrelas agora indisputveis brilhavam com redobrada intensidade. Mais gloriosa do que qualquer uma das outras to encantadora que at mesmo admir-la quase lhe trouxe lgrimas aos olhos era o resplandescente farol fulgurante da Terra, com a companheira Lua a seu lado. Ele havia nascido na primeira e caminhado sobre a segunda; ser que tornaria a ver alguma delas? Era estranho que at agora ele no tivesse pensado em sua mulher e seus filhos e em tudo que amava na vida e que agora parecia to distante. Sentiu um espasmo de culpa, mas este passou rapidamente. Os laos afetivos no haviam enfraquecido, mesmo atravs das centenas de milhes de quilmetros de distncia que agora o separavam de sua famlia. Nesse momento, eles eram simplesmente irrelevantes. Ele era agora um animal primitivo e egosta lutando por sua sobrevivncia, e sua nica arma era seu crebro. Neste conflito no havia lugar para o corao; isto seria meramente um estorvo, minando seu julgamento e enfraquecendo sua resoluo. E em seguida viu algo que afastou todos os seus pensamentos do lar distante. Estendido acima do horizonte atrs de si, espalhado atravs das estrelas como uma nvoa leitosa, surgiu um nebuloso e fantasmagrico cone de fosforescncia. Era o arauto do Sol o maravilhoso fantasma perolado da coroa, visvel na Terra apenas durante os raros momentos de um eclipse total. Com a coroa j subindo, o Sol no podia estar muito longe, para castigar furiosamente essa pequena terra. Sherrard fez bom uso do aviso. Ele podia julgar agora, com certa preciso, o ponto exato onde o Sol surgiria. Rastejando cuidadosa e desajeitadamente sobre os cotos quebrados dos seus braos de metal, arrastou o mdulo redondo para o lado do penedo que poderia dar a sombra maior. Mal o alcanara quando o Sol bateu em cheio sobre ele como uma ave de rapina e seu minsculo mundo explodiu em luz. Levantou os filtros escuros dentro do capacete, colocando cada vez um mais espesso sobre os outros, at que conseguiu suportar o fulgor da claridade. Com exceo daquela sombra onde o penedo se assentava atravs do asteride, era como olhar para dentro de uma fornalha. Cada detalhe da terra desolada sua volta era revelado por aquela luz impiedosa; no havia nada cinza, somente brancos ofuscantes e pretos impenetrveis. Todas as fen26

das e buracos sombreados se tornaram poos de tinta, enquanto as partes mais elevadas j pareciam incendiar, quando atingidas pelos raios solares. Contudo, s havia passado um minuto depois da alvorada. Sherrard compreendia agora por que o causticante calor de um bilho de veres havia transformado caro num carvo csmico, tostando as rochas at que os ltimos traos de gs tivessem borbulhado para fora delas. Por que deveriam os homens viajar, perguntou a si mesmo amargamente, atravs do abismo estelar a custo de tanta despesa e risco apenas para pousar num monte de escria em rotao? Pela mesma razo, sabia ele, pela qual haviam uma vez lutado para alcanar o Evereste e os Plos e os mais distantes lugares da Terra pela excitao fsica que era a aventura e pela maior excitao mental que era a descoberta. Essa foi uma resposta que lhe deu pouca consolao, agora que estava a ponto de ser tostado como um pernil sobre o espeto giratrio de caro. J podia sentir o primeiro bafo de calor sobre seu rosto. O penedo contra o qual estava deitado o protegia da luz direta do Sol, mas o brilho refletido sobre ele daquelas rochas incandescentes a apenas poucos metros de distncia o atingia atravs da cpula de plstico transparente. medida que o Sol se elevasse, isso aumentaria rapidamente de intensidade; tinha menos tempo do que havia imaginado e, com essa constatao, veio uma espcie de resignao entorpecida que estava alm do medo. Ele esperaria se pudesse at que o nascer do sol o engolfasse e a unidade de esfriamento da cpsula desistisse da luta desigual; ento arrebentaria o mdulo e deixaria que o ar jorrasse para o vcuo espacial. No havia nada a fazer seno sentar e pensar nos minutos que lhe restavam antes que seu lago de sombra diminusse. No tentou controlar seus pensamentos, mas deixou-os vagar para onde queriam. Como era estranho que ele pudesse estar morrendo agora, pois em 1940 anos antes de ele ter nascido um homem em Palomar havia assinalado um raio de luz numa chapa fotogrfica e muito apropriadamente lhe tinha dado o mesmo nome daquele que voara to perto do Sol. Um dia, supunha ele, iriam construir ali um monumento em sua homenagem, nessa plancie coberta de bolhas. O que iriam inscrever sobre o monumento? Aqui morreu Collin Sherrard, engenheiro espacial, pela causa da Cincia. Isso seria engraado, pois ele nunca compreendera nem a metade das coisas que os cien27

tistas haviam tentado fazer. Mas um pouco da excitao de suas descobertas o havia contagiado. Recordava-se de como os gelogos haviam raspado a crosta carbonizada do asteride e polido a superfcie metlica que ficava por baixo. Esta havia sido coberta com um curioso desenho de linhas e rabiscos, como uma das pinturas abstratas dos Decadentes Ps-Picasso. Mas esses traos tinham algum significado; eles contavam a histria de caro, embora somente um gelogo pudesse l-la. Eles revelavam, segundo foi dito a Sherrard, que esse monte de ferro e rocha no estivera todo o tempo flutuando sozinho no espao. Em uma poca remota no passado, estivera sob enorme presso e isto s poderia significar uma coisa. Bilhes de anos atrs havia sido parte de um corpo muito maior, talvez um planeta como a Terra. Por alguma razo esse planeta havia explodido, e caro e todos os milhares de outros asterides eram os fragmentos dessa exploso csmica. Mesmo neste momento, quando a linha incandescente da luz solar se aproximava cada vez mais, este era um pensamento que ativava sua mente. Aquilo sobre o que Sherrard estava estendido era o ncleo de um mundo talvez um mundo que tivesse tido vida. De um estranho modo irracional, confortou-o saber que o seu fantasma poderia no ser o nico a assombrar caro at o fim dos tempos. O capacete estava ficando enevoado; isso s poderia significar que a unidade de refrigerao estava a ponto de falhar. Ela havia realizado bem o seu trabalho; mesmo agora, que as rochas apenas a poucos metros de distncia deviam estar irradiando um vermelho sombrio, o calor dentro da cpsula no era insuportvel. Quando ocorresse o colapso, seria repentino e catastrfico. Procurou a alavanca vermelha que furtaria o sol de sua presa mas antes de pux-la, olharia para a Terra pela ltima vez. Cautelosamente ele baixou os filtros escuros, ajustando-os de modo a que ainda eliminassem o fulgor das rochas, mas j no bloqueassem sua viso do espao. Naquele momento as estrelas estavam esmaecidas, ofuscadas pelo crescente brilho da coroa solar. E, bem visvel sobre o penedo cuja proteo iria em breve abandon-lo, havia uma ponta de chama rubra, um dedo torcido de fogo projetando-se da borda do prprio Sol. Agora s lhe restavam alguns segundos. L estava a Terra, l estava a Lua. Adeus a ambas, aos amigos e queles que amou em cada uma delas. Enquanto estava olhando28

para o cu, a luz solar comeou a lamber a base da cpsula e ele sentiu o primeiro contacto com o fogo. Num reflexo to automtico quanto intil, ele ergueu as pernas, tentando escapar do avano da onda de calor. O que era aquilo? Um brilhante facho de luz, infinitamente mais luminoso que qualquer das estrelas, havia subitamente explodido acima de sua cabea. Quilmetros acima dele, um imenso espelho estava deslizando pelo cu, refletindo a luz solar enquanto lentamente a revertia para o espao. Tal coisa era totalmente impossvel; ele estava comeando a sofrer de alucinaes e j era hora de despedir-se. O suor j estava gotejando de seu corpo e em poucos segundos a cpsula seria uma fornalha. Sem esperar mais, empurrou a Porta de Emergncia com toda a fora que lhe restava, preparando-se ao mesmo tempo para enfrentar o fim. Nada aconteceu; a alavanca no quis se mover. Ele apertou-a repetidamente at compreender que ela estava irremediavelmente emperrada. No havia nenhuma sada fcil para ele, nenhuma morte misericordiosa quando o ar dos seus pulmes se esgotasse. Foi ento, quando o verdadeiro terror da sua situao o invadiu, que finalmente sua coragem arrefeceu e ele comeou a gritar como um animal preso numa armadilha. Quando escutou a voz do Capito McClellan falando com ele, fraca mas clara, achou que isso devia ser outra alucinao. Porm, algum vestgio de disciplina e autocontrole reprimiu seus gritos; cerrou os dentes e prestou ateno quela voz de comando. Sherrard! Espere a, homem! Conseguimos localiz-lo pelo rdio, mas continue gritando para ajudar! Estou aqui! gritou Sherrard chorando mas se apressem, pelo amor de Deus! Estou queimando! Bem no fundo do que restou de seu pensamento racional ele compreendeu o que havia acontecido. Alguma tnue imagem de um sinal ficou ligada pelas pontas de suas antenas quebradas e aqueles que o procuravam tinham escutado seus gritos da mesma forma como ele escutava suas vozes. Isto significava que eles estavam realmente bem prximos e essa deduo deu-lhe sbita fora. Fixou a vista atravs do plstico embaado da cpula, olhando mais uma vez para aquele impossvel espelho no cu. L estava ele outra vez e dessa vez compreendeu que as desnorteantes29

perspectivas do espao haviam enganado seus sentidos. O espelho no estava a quilmetros de distncia, nem era imenso. Estava quase por cima dele e estava se movendo rapidamente. Ainda estava gritando quando o espelho deslizou pela face do sol-nascente e sua abenoada sombra caiu sobre ele como um vento fresco que tivesse soprado diretamente do inverno, atravs de lguas de neve e gelo. Agora que o espelho estava to prximo, ele o reconheceu imediatamente; era simplesmente uma extensa tela metlica de radiao, sem dvida apressadamente arrancada de um dos instrumentos locais. Protegidos pela sua sombra, seus colegas haviam procurado por ele. Uma cpsula de trabalhos pesados com dois homens a bordo estava flutuando por cima de sua cabea, sustentando o escudo cintilante com um par de braos mecnicos e o outro par tentando alcan-lo. Mesmo atravs da cpula e do atordoamento causado pelo calor que ainda minava seus sentidos, ele reconheceu o rosto ansioso do Capito McClcllan. olhando-o l de cima do outro mdulo. Certamente isso era como nascer, pois na verdade ele havia renascido. Estava exausto demais para sentir gratido isso viria mais tarde mas quando ele se elevou das rochas ardentes, seus olhos procuraram a luz brilhante da Terra. Estou aqui, disse silenciosamente. Estou voltando. Voltando para apreciar e acalentar todas as belezas do mundo que ele pensara ter perdido para sempre. No, nem todas elas. Nunca mais ele conseguiria apreciar o vero.

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FORA DO BERO, EM RBITA PARA SEMPRE...

Antes de comearmos, gostaria de chamar a ateno para uma coisa que muitas pessoas parecem ter esquecido. O sculo XXI no comea amanh; comea um ano depois, a 1 de janeiro de 2001. Embora o calendrio registre 2000 a partir da meia-noite, o sculo anterior ainda tem doze meses a percorrer. A cada cem anos, ns, astrnomos, temos que explicar tudo isso de novo, mas no tem importncia. As comemoraes comeam to logo os dois ponteiros se encontram. Ento voc quer saber qual foi o momento mais memorvel em cinqenta anos de explorao do espao... Creio que j entrevistou Von Braun, no? Como vai ele? timo. No o vejo desde a ltima vez que desceu da Lua para aquele simpsio que organizamos em Astrogrado em homenagem aos seus oitenta anos. Sim, estive presente em alguns dos maiores eventos da histria do vo espacial, desde o lanamento do primeiro satlite. Nessa ocasio, eu tinha apenas vinte e cinco anos, e era um matemtico principiante em Kapustin Yar sem importncia suficiente para permanecer no centro de controle durante a contagem regressiva. Mas ouvi o barulho da decolagem: foi o segundo som mais aterrorizante que escutei em toda a minha vida. (O primeiro? Falarei sobre ele depois.) Quando soubemos que o foguete atingira sua rbita, um dos cientistas mais graduados mandou vir a sua limusine Zis e fomos a Stalingrado para uma grande comemorao. Como voc deve saber, somente as pessoas muito importantes possuam automvel no Paraso dos Operrios; fizemos o percurso de cem quilmetros quase no mesmo tempo que o Sputnik levou para dar uma31

volta em torno da Terra, e essa foi uma excelente marca. Algum calculou que a quantidade de vodea consumida no dia seguinte seria suficiente para o lanamento do satlite que os americanos estavam construindo, mas acho que isso foi exagero. A maioria dos livros de Histria diz que a Era Espacial comeou nesse dia, 4 de outubro de 1957; no vou contest-los. mas acho que os acontecimentos realmente empolgantes ocorreram mais tarde. Em dramaticidade, impossvel vencer a Marinha dos Estados Unidos na corrida para resgatar Dimitri Kalinin do Atlntico Sul antes que sua cpsula afundasse. Depois, quando Jerry Wingate deu a volta na Lua e tornou-se o primeiro homem a ver a sua face oculta, nenhuma de nossas emissoras ousou censurar todos os adjetivos que ele usou em seu comentrio. E, como se sabe, somente cinco anos depois houve aquela transmisso pela televiso da cabina da Hermann Oberth, que desceu no plat da Baa de Rainbows, onde essa nave ainda se encontra, como um monumento eterno aos homens enterrados junto dela. Esses foram os grandes marcos na corrida para o espao, mas voc est enganado se pensa que vou falar sobre eles; porque o que me causou o maior impacto foi algo realmente muito diferente. Nem sequer tenho certeza se posso transmitir essa experincia, e, se for bem-sucedido, voc no ser capaz de transform-la numa histria. Pelo menos ela no seria indita, pois na ocasio os jornais falaram muito sobre o assunto. Mas a maioria omitiu totalmente o ponto principal; para eles, a experincia no foi nada mais do que uma boa matria de publicidade. Ocorreu vinte anos aps o lanamento do Sputnik I, quando, juntamente com muitas outras pessoas, eu estava na Lua... , ora, era importante demais para ser apenas um cientista. Doze anos antes eu havia programado um computador eletrnico; agora tinha a tarefa bem mais difcil de programar seres humanos, pois era Coordenador-Chefe do Projeto Ares, a primeira expedio tripulada para Marte. Naturalmente iramos decolar da Lua, pois sua fora de gravidade era menor; em termos de combustvel, cerca de cinqenta vezes mais fcil decolar de l do que da Terra. Havamos pensado na construo de naves em um satlite em rbita, o que reduziria ainda mais o gasto de combustvel, mas quando analisamos a situao, a idia no pareceu to boa quanto no princpio. No fcil instalar fbricas e oficinas mecnicas no espao: a ausncia de gravidade mais um estorvo do que uma vantagem quando se deseja32

que as coisas permaneam na mesma posio. Naquela ocasio, no fim dos anos setenta, a Primeira Base Lunar estava ficando bem organizada, com fbricas de produtos qumicos e todos os tipos de pequenas indstrias para produzirem as coisas necessrias colnia. Por isso decidimos utilizar esses recursos j existentes em vez de instalar outros, a alto custo e grande dificuldade, no espao. Alfa, Beta e Gama, as trs naves da expedio, foram construdas no interior da cratera de Plato, talvez a mais perfeita de todas as planceis cercadas deste lado da Lua. to extensa que se voc ficasse no seu centro, nunca poderia calcular que estava dentro de uma cratera; a cadeia de montanhas ao seu redor se esconde abaixo da linha do horizonte. As abbadas pressurizadas da base ficavam a cerca de dez quilmetros da plataforma de lanamento, ligadas a esta por um desses sistemas de cabos areos nos quais os turistas adoram passear, mas que tanto arruinaram o panorama lunar. Naqueles dias de colonizao, o tipo de vida era muito incerto, pois no tnhamos nenhuma das comodidades que as pessoas consideram obrigatrias atualmente. A Abbada Central, com seus parques e lagos, ainda era um esboo nas pranchas dos arquitetos; e mesmo que ela estivesse pronta, estaramos ocupados demais para aproveit-la, pois o Projeto Ares consumia todo o nosso tempo. Esse seria o primeiro grande salto do Homem para o espao; a essa altura j encarvamos a Lua como um mero subrbio da Terra, um trampolim para chegar a lugares que realmente interessavam. Nossas crenas foram externadas claramente pelo famoso comentrio de Tsiolkovsky, que pendurei em meu escritrio para que todos o vissem ao entrar: A TERRA O BERO DA MENTE MAS NO SE PODE VIVER NO BERO PARA SEMPRE. (O qu? No, claro que nunca conheci Tsiolkovsky! Tinha apenas quatro anos quando ele morreu em 1936!) Depois de toda uma vida de segredo, era bom poder trabalhar livremente com homens de todas as naes, num projeto apoiado pelo mundo inteiro. Dos meus quatro principais assistentes, um era americano, um indiano, um chins e um russo. Freqentemente nos felicitvamos por estarmos livres da Segurana e dos excessos de nacionalismo, e embora houvesse bastante rivalidade saudvel entre os cientistas de diferentes pases, isso estimulava o33

nosso trabalho. Muitas vezes me vangloriava junto aos visitantes que se lembravam dos maus tempos, declarando: No existem segredos na Lua. Pois eu estava enganado; existia um segredo, e estava bem debaixo do meu nariz, em meu prprio escritrio. Se no estivesse to mergulhado nos numerosos detalhes do Projeto Ares a ponto de no poder ter uma viso mais ampla da situao, talvez eu tivesse suspeitado de algo. Mais tarde, ao relembrar os fatos, evidentemente compreendi que houve todos os tipos de insinuaes e avisos, mas na ocasio no prestei ateno a nenhum deles. Na verdade, lembro-me vagamente de que Jim Hutchins, meu jovem assistente americano, tornava-se cada dia mais distrado, como se estivesse preocupado com alguma coisa. Uma ou duas vezes precisei chamar-lhe a ateno para uma falta insignificante; em todas ele parecia ficar magoado e prometia corrigir-se. Jim era um desses tpicos universitrios normais que os Estados Unidos produzem em srie, geralmente honestos, mas de inteligncia mediana. Estava na Lua h trs anos e foi um dos primeiros que conseguiu levar a esposa quando foi suspensa a proibio de entrada de pessoas no essenciais ao trabalho. Nunca entendi bem como ele conseguiu isso; devia ter conhecimentos importantes, mas certamente era a ltima pessoa que voc esperaria encontrar no meio de uma conspirao mundial. Eu disse mundial? No, era mais que isso, pois se estendia at a Terra. Dezenas de pessoas estavam envolvidas, mesmo as mais altas patentes do Comando Astronutico. Ainda considero um milagre que tenham conseguido impedir que a conspirao viesse a pblico. O lento nascer do Sol havia comeado h dois dias (horrio da Terra), e embora as sombras estivessem diminuindo, ainda faltavam cinco dias para que o Sol atingisse o seu apogeu. Estvamos prontos para fazer as primeiras provas estticas dos motores da Alfa, pois a usina de fora havia sido instalada e a estrutura da nave estava terminada. Ela se projetava na plancie, mais parecida com uma refinaria de petrleo inacabada do que com uma nave espacial, mas aos nossos olhos era linda, com suas possibilidades futuras. Foi um momento de tenso; nunca anteriormente uma mquina termonuclear de tal porte havia sido operada, e apesar de terem sido tomadas todas as precaues de segurana, nunca se podia confiar... Se algo sasse errado, o Projeto Ares poderia atrasar-se por anos. A contagem regressiva j havia comeado quando Hutchins,34

muito plido, entrou correndo e disse-me: Tenho que me comunicar com a base imediatamente. muito importante. Mais importante que isso? repliquei sarcasticamente, pois fiquei extremamente aborrecido. Ele hesitou por um momento, como se me quisesse dizer algo; depois respondeu: Acho que sim. Est bem falei, e ele se retirou apressadamente. Poderia t-lo interrogado, mas deve-se confiar nos subordinados. Quando retornei ao painel de controle central, bastante malhumorado, decidi que j havia tolerado demais esse meu jovem americano temperamental e iria pedir sua transferncia. Entretanto, era estranho que, tendo-se mostrado to entusiasmado com este teste quanto todos ns, ele estivesse naquela hora retornando apressadamente para a base pelo telefrico. A cabina cilndrica estava quase na metade do caminho para a torre suspensa mais prxima, deslizando pelos fios quase invisveis como um estranho pssaro voando pela superfcie lunar. Cinco minutos depois, meu estado de esprito piorou. Um grupo de instrumentos vitais parou de funcionar e todo o teste teria que ser adiado pelo menos por trs horas. Esbravejei pela casamata dizendo a todos que quisessem ouvir (e claro que todos tinham que ouvir) que as coisas eram muito mais organizadas em Kapustin Yar. J me havia acalmado um pouco e estvamos na segunda rodada de caf quando o sinal de Alerta Geral soou nos alto-falantes. S existe outro chamado de maior prioridade que esse a sirena dos alarmes de emergncia, que s ouvi duas vezes em todos os anos que passei na Colnia Lunar, e desejo nunca mais tornar a ouvir. A voz que ecoou atravs de todas as reas cercadas e pelos rdios de todos os que trabalhavam fora delas, nas plancies silenciosas da Lua, era a do General Moshe Stein, presidente do Comando Astronutico. (Ainda existiam vrios ttulos honorficos naqueles dias, embora j no significassem nada.) Estou falando de Genebra disse ele e tenho um comunicado importante a fazer. Durante os ltimos nove meses, uma grande experincia esteve em andamento. Foi mantida em segredo para o bem dos que nela estavam diretamente envolvidos, e porque no queramos suscitar falsas esperanas ou temores. Devem-se lembrar que h pouco tempo atrs vrios especialistas se recusaram a acreditar que os homens pudessem sobreviver no espa35

o; nessa mesma ocasio, havia pessimistas que duvidavam que conseguiramos dar o passo seguinte na conquista do Universo. Provamos que eles estavam errados; pois agora tenho o prazer de apresentar-lhes George Jonathan Hutchins o Cidado do Espao. Houve um click quando o circuito foi reencaminhado, seguido de uma pausa cheia de rudos indeterminados e cochichos. E depois escutou-se por toda a Lua e metade da Terra o som sobre o qual lhes prometi falar o som mais aterrorizante que j ouvi em toda a minha vida. Era o choro fraco de um beb recm-nascido a primeira criana em toda a Histria da Humanidade a nascer fora da Terra, em outro mundo. Todos nos estreolhamos na casamata subitamente silenciosa, e depois fitamos as naves que estvamos construindo l fora, na resplandecente plancie lunar. Poucos minutos antes nos pareciam to importantes. Ainda eram, mas no tanto quanto o que acontecera no Centro Mdico, e tornaria a acontecer bilhes de vezes, numa infinidade de mundos, em todos os tempos futuros. Pois esse foi o momento, senhores, em que entendi que o homem havia realmente conquistado o espao.

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QUEM EST A?

Quando o Controle do Satlite me chamou, eu estava escrevendo o relatrio das ocorrncias do dia na Bolha de Observao o escritrio com cpula de vidro que se projeta do eixo da Estao Espacial como a calota de uma roda. Aquele no era realmente um bom local para trabalhar, pois a vista era muito opressiva. Apenas a alguns metros de distncia eu podia ver as equipes de construo executando o seu lento bal ao unir as peas da estao como se fosse um quebra-cabeas gigantesco. E trinta mil quilmetros abaixo deles via-se com toda a plenitude a Terra verde-azulada, flutuando sobre o fundo de nuvens pontilhadas de estrelas da ViaLctea. Aqui fala o Supervisor da Estao respondi. Qual o problema? Nosso radar est detectando um pequeno eco quase fixo a trs quilmetros de distncia, aproximadamente cinco graus a oeste de Srius. Pode-nos fornecer uma informao visual sobre isso? Um objeto to precisamente emparelhado nossa rbita dificilmente poderia ser um meteoro; devia ser alguma coisa que havamos deixado cair talvez uma pea de equipamento mal ajustada que tivesse se desgarrado da estao. Isso foi o que calculei; mas quando ajustei as lentes do meu telescpio e vasculhei o cu em volta de Orion, logo descobri meu erro. Embora esse objeto espacial errante fosse feito pelo homem, nada tinha a ver conosco. J encontrei informei ao Controle. o satlite experimental de algum formato de cone, quatro antenas, tendo na base algo semelhante a um sistema de lentes. Parece ser da Fora37

Area dos Estados Unidos, modelo do incio dos anos sessenta, a julgar pelo desenho. Sei que alguns deles se extraviaram quando seus transmissores falharam. Tempos atrs, j foram feitas vrias tentativas ftacassadas para atingir essa rbita em que estamos. Aps uma pequena busca pelos arquivos, o Controle pde confirmar minha suposio. Demorou um pouco mais para constatar que Washington no tinha o menor interesse na nossa descoberta de um satlite perdido h vinte anos, e pouco se importaria se o perdssemos novamente. claro que no podemos fazer isso disse o Controle. Ainda que ningum o queira, ele constitui uma ameaa navegao espacial. Seria melhor algum ir l para recolh-lo. Comprendi que esse algum teria que ser eu. No ousava afastar ningum das equipes de construo to bem entrosadas, pois j estvamos com o plano de trabalho atrasado, e o custo de cada dia de demora nesse projeto de um milho de dlares. Todas as redes de rdio e televiso da Terra esperavam impacientemente pelo momento em que, por nosso intermdio, poderiam transmitir seus programas, e assim estabelecer a primeira comunicao verdadeiramente global, abrangendo o mundo de um Plo ao outro. Irei busc-lo respondi, amarrando meus papis com uma tira elstica para que as correntes de ar dos ventiladores no os espalhassem pela sala. Embora tentasse aparentar estar fazendo um grande favor a todos, intimamente no estava nada descontente. Fazia pelo menos duas semanas que eu no saa; estava ficando um pouco cansado de planos de estoque, relatrios de manuteno, e todos os atraentes afazeres da vida de um Supervisor de Estao Espacial. O nico membro da equipe que vi no caminho para a cmara de compresso foi o gato Tommy, nossa ltima aquisio. Animais de estimao significam muito para aqueles que esto a milhares de quilmetros da Terra, mas poucos conseguem adaptar-se a um ambiente sem fora de gravidade. Tommy miou lamentosamente para mim quando entrei no meu traje espacial, mas eu estava apressado demais para brincar com ele. Talvez nesse ponto eu devesse lembr-los de que os trajes que usamos na estao so completamente diferentes das coisas flexveis que geralmente se usa quando se quer dar uma volta pela Lua. Os nossos so verdadeiras miniaturas de naves espaciais, do tamanho suficiente para caber um homem. So cilindros grossos, com cerca de dois metros de comprimento, aparelhados com jatos38

de propulso de baixa voltagem, e tm um par de mangas sanfonadas na parte superior para os braos do operador. Entretanto, normalmente costumamos manter as mos dentro do traje, usando os controles manuais que ficam na altura do nosso peito. Logo que me acomodei dentro do meu veculo espacial exclusivo, liguei a energia e testei os indicadores do minsculo painel de instrumentos. H uma palavra mgica, CORB, que vocs devem ouvir freqentemente os astronautas murmurarem ao entrar em seus trajes espaciais; ela os lembra de testar o Combustvel, o Oxignio, o Rdio e as Baterias. Todos os meus ponteiros estavam dentro da rea de segurana, por isso baixei o capacete transparente e me tranquei por dentro. Como era uma viagem pequena, no tive a preocupao de conferir os compartimentos internos do traje espacial para misses mais longas. Quando a esteira transportadora me lanou na cmara compressora, senti-me como um beb ndio sendo carregado nas costas de sua me. Depois as bombas de presso baixaram para zero, a porta para o exterior se abriu, e os ltimos vestgios de ar me arremessaram em direo s estrelas, virando-me lentamente de cabea para baixo. A estao estava apenas a uns quatro metros de distncia, porm agora eu era um planeta independente um pequeno mundo individual. Estava trancado em um minsculo cilindro mvel, com uma soberba viso do Universo inteiro, mas praticamente sem nenhuma liberdade de movimento dentro do traje. O assento acolchoado e os cintos de segurana impediam que eu me virasse, embora pudesse alcanar todos os controles e compartimentos com as mos ou os ps. No espao, o seu grande inimigo o sol, que pode ceg-lo em poucos segundos. Cautelosamente, levantei os filtros escuros do lado noite do meu traje, e virei a cabea para olhar as estrelas. Ao mesmo tempo, liguei no automtico o protetor externo do capacete, de modo que, para qualquer lado que o meu traje espacial girasse, os meus olhos ficariam protegidos daquele brilho intolervel. Em seguida encontrei meu alvo um cintilante ponto prateado, cujo brilho metlico o diferenciava claramente das estrelas que o cercavam. Apertei o pedal de controle do jato e senti o suave aumento de acelerao enquanto os foguetes de baixa potncia afastavam-me da estao. Depois de dez segundos de impulso constante, calculei que minha velocidade j era suficiente, e parei a acelerao. Levaria cinco minutos para percorrer o resto do cami39

nho e apenas um pouco mais para retornar com o meu resgate. E foi nesse momento, quando me lancei no abismo, que notei que alguma coisa estava totalmente errada. No interior de um traje espacial nunca h silncio completo; voc pode ouvir o suave silvo do oxignio, o fraco zumbido dos ventiladores e dos motores, o sussuro de sua prpria respirao e at mesmo, se escutar bem atentamente, as ritmadas batidas do seu corao. Esses sons repercutem pela armadura que constitui o seu traje espacial, incapazes de escapar para o vcuo que os cerca; so os imperceptveis rudos de vida no espao, pois voc s se conscientiza deles quando mudam. E agora haviam mudado; a eles fora adicionado um som que no consegui identificar. Era uma batida surda, intermitente e abafada, s vezes acompanhada de um rudo de atrito, como o de metal sobre metal. Imediatamente fiquei gelado, prendi a respirao e tentei identificar o som desconhecido. Os relgios do painel de controle no deram pista alguma; todas as agulhas se encontravam firmemente estabilizadas nas escalas, e nenhuma das luzes vermelhas que assinalariam um desastre iminente estava piscando. Isso ajudava de certa forma, mas no muito. H muito tempo aprendi a confiar nos meus instintos em tais situaes; e seus sinais de alarme estavam acesos agora, avisando-me que retornasse estao antes que fosse tarde demais... Mesmo agora, no gosto de recordar aqueles poucos minutos que se seguiram, quando o pnico lentamente infiltrou-se em minha mente como uma mar alta inundando as represas de razo e lgica que cada homem tem que construir contra o mistrio do Universo. Naquele momento eu compreendi qual era a sensao de estar diante da loucura; nenhuma outra explicao se ajustava aos fatos. Pois j no era possvel fingir que o rudo que me perturbava era o de algum mecanismo defeituoso. Embora estivesse em completo isolamento, longe de qualquer outro ser humano ou mesmo de qualquer objeto material, no estava sozinho. O silencioso vcuo trazia aos meus ouvidos os fracos, mas inconfundveis, rudos de vida. Naquele primeiro momento de terror parecia que alguma coisa tentava penetrar no meu traje espacial algo invisvel, procurando abrigar-se do cruel e impiedoso vcuo do espao. Rodopiei loucamente em minha couraa, esquadrinhando toda a rbita ce40

leste, com exceo do proibido crculo fulgurante prximo do Sol. claro que l no havia coisa alguma. No poderia haver contudo, aquela fico proposital estava mais ntida do que nunca. Apesar das tolices que tm sido escritas sobre ns, no verdade que os astronautas sejam supersticiosos. Poderiam culparme por, ao esgotar todos os recursos da razo, ter subitamente me lembrado do modo como Bernie Summers morreu, quase mesma distncia da estao em que eu estava naquele momento? Foi um desses acidentes inexplicveis, como sempre so. Trs coisas saram erradas ao mesmo tempo. O regulador de oxignio de Bernie se descontrolou e causou uma elevao de presso, a vlvula de segurana no bombeou o ar e uma junta defeituosa se rompeu. Numa frao de segundo, o seu traje espacial abriu-se no espao. No conheci Bernie, mas de repente sua morte tornou-se terrivelmente importante para mim, pois uma idia horrvel invadiu minha mente. No se fala sobre essas coisas, mas um traje espacial danificado valioso demais para ser jogado fora, mesmo que tenha causado a morte de quem o usou. consertado, renumerado e destinado a outra pessoa. O que acontece alma de um homem que morre entre as estrelas, longe de seu mundo de origem? Bernie, voc ainda est aqui, agarrado ao ltimo objeto que o unia ao seu lar perdido e distante? Enquanto lutava contra os pesadelos que me envolviam num turbilho pois parecia que os arranhes e as leves apalpadelas vinham de todas as direes , havia uma ltima esperana qual me agarrei. Pelo bem da minha sanidade, tinha que provar que esse no era o traje de Bernie, que suas paredes de metal que me protegiam to hermeticamente nunca haviam sido o caixo de outro homem. Fiz vrias tentativas antes de conseguir apertar o boto certo e ligar meu transmissor de emergncia de longo alcance. Estao! balbuciei. Estou em dificuldades! Veja os registros para verificar o histrico do meu traje espacial e... No cheguei a terminar. Dizem que meu grito destruiu o microfone. Mas qual o homem que, no isolamento absoluto de um traje espacial, no teria gritado quando alguma coisa lhe batesse de leve na nuca? Apesar do capacete de segurana, devo ter-me atirado para a frente e batido contra a parte superior do painel de controle. Quando a turma de salvamento me apanhou, poucos minutos depois, eu41

ainda estava inconsciente, com uma contuso dolorosa na testa. Desse modo, fui a ltima pessoa em todo o sistema de retransmisso por satlite a saber o que havia acontecido. Quando recuperei os sentidos, uma hora depois, toda a nossa equipe mdica estava reunida ao redor da minha cama, mas levou algum tempo antes que os mdicos se preocupassem em cuidar de mim. Estavam muito ocupados brincando com os trs lindos filhotes que a nossa gata, to inadequadamente chamada de Tommy, estivera criando secretamente no Compartimento de Armazenagem Nmero Cinco do meu traje espacial.

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DIO

Na fria quietude que antecede o amanhecer, s Joey estava acordado no convs, quando o meteoro surgiu ardendo no cu da Nova Guin. Ele ficou observando sua ascenso pelo firmamento at que passou bem acima de sua cabea, ofuscando o brilho das estrelas e atirando sombras velozes sobre o tombadilho apinhado. O intenso claro delineou os cabos desguarnecidos, as cordas enroladas e os tubos de ar, os escafandros de cobre cuidadosamente preparados para a noite e iluminou at a ilha coberta de pndano a oitocentos quilmetros de distncia. Quando o meteoro rumou para o sudoeste, para a escurido do Pacfico, comeou a se desintegrar. Glbulos incandescentes se fragmentaram, queimando e gotejando num rastro de fogo que se expandiu por todo um quadrante do cu. Ao desaparecer no horizonte, ainda ardendo intensamente, j se estava extinguindo; mas Joey no viu o seu fim. Se sua apario foi espetacular, o silncio absoluto que se seguiu foi enervante. Joey esperou indefinidamente, mas nenhum som ecoou do firmamento fendido. Quando, minutos depois, ouviu um baque inesperado no mar, ele fez um involuntrio movimento de surpresa; depois praguejou por ter-se assustado com algum peixe-diabo, que devia ser bem grande para ter feito aquele rudo ao pular. Joey aguardou em vo por outro som e finalmente voltou a dormir. Em seu estreito beliche situado bem atrs do compressor de ar, Tibor no escutou nada. Dormia to profundamente aps um dia de exaustivo trabalho, que nem tinha foras para sonhar e se tivesse, no teria os sonhos que desejaria. A noite, quando sua43

mente vagava de um lado para outro atravs do passado, nunca se fixava em lembranas de paixes. Ele tinha mulheres em Sidney, em Brisbaine, em Darwin e na ilha de Thursday, mas nenhuma em seus sonhos. Ao acordar, no ar ftido de sua cabina, s se recordava da poeira, dos tiros e do sangue provocados pelos tanques russos ao invadirem Budapeste. Seus sonhos no eram de amor, mas unicamente de dio. Quando Nick o sacudiu de volta realidade, ele estava fugindo dos guardas na fronteira austraca. Demorou alguns segundos para refazer a jornada de dezesseis mil quilmetros at a Grande Barreira Coralgena; depois bocejou, chutou as baratas que estiveram mordiscando os dedos dos seus ps e pulou para fora do beliche. Seu caf da manh foi o mesmo de sempre arroz, ovos de tartaruga e carne enlatada tudo engolido com ch bem forte e doce. O mximo que podia ser dito sobre a comida feita por Joey que era abundante. Mas Tibor estava acostumado dieta montona e compensava essa e outras privaes quando voltava terra firme. Mal o Sol havia surgido no horizonte, os pratos estavam arrumados na minscula cozinha e o lugre ps-se a caminho. Nick parecia alegre quando pegou a roda do leme e afastou-se da ilha; o velho capito tinha todo o direito de ser considerado perito em pesca de prolas, pois o canteiro de conchas onde trabalhavam era o mais abundante que Tibor j vira. Com alguma sorte encheriam seus pores em mais um ou dois dias, e voltariam ilha de Thursday com meia tonelada de conchas a bordo. E depois, com um pouco mais de sorte, ele poderia abandonar esse emprego nojento e perigoso e voltar civilizao. No que ele tivesse algum motivo de reclamao; os gregos o tratavam bem e j havia encontrado algumas boas pedras quando as conchas foram abertas. Mas entendia agora, depois de nove meses de trabalho nos recifes, por que os mergulhadores brancos podiam ser contados pelos dedos de uma mo. Os japoneses, os kanacas e os habitantes das ilhas podiam agentar essa vida, mas bem poucos europeus podiam. O motor a diesel parou e o Arafura costeou at parar. Estavam a uns trs mil e duzentos quilmetros da ilha, que repousava plana e verde sobre a gua, embora estivesse abruptamente separada desta pela estreita faixa de praia brilhante. No era mais do que uma desconhecida faixa de areia que uma minscula floresta conseguira captar, e seus nicos habitantes eram as mirades de44

pardelas, esses pssaros que perfuravam o solo macio para fazer suas tocas e tornavam a noite apavorante com seus gritos agourentos. Enquanto os trs mergulhadores se vestiram, trocaram poucas palavras; cada um sabia o que fazer e no perdia tempo. Enquanto Tibor abotoava sua grossa jaqueta de sarja, Blanco, seu ajudante, esfregava a mscara com vinagre para que no ficasse embaada. Depois Tibor desceu a escada de corda, enquanto o pesado escafandro e a armadura de chumbo eram colocados sobre sua cabea. Alm da jaqueta, cujo acolchoamento distribua equilibradamente o peso sobre seus ombros, ele usava suas roupas costumeiras. Nessas guas tpidas no havia necessidade de traje de borracha e o escafandro agia simplesmente como um pndulo mantido na posio por seu prprio peso. Numa emergncia, o mergulhador podia se tivesse sorte sair rapidamente de dentro dele e, depois de se libertar, nadar de volta para a superfcie. Tibor j vira isso ser feito, mas no tinha o mnimo desejo de experimentar. Toda vez que parava no ltimo lance da escada, segurando sua sacola de recolher conchas numa das mos e com a outra seu cordo de segurana, o mesmo pensamento atravessava a mente de Tibor. Estava deixando um mundo que conhecia por uma hora ou para sempre? L embaixo, no fundo do mar, existia a riqueza e a morte, e ningum podia estar certo de nenhuma das duas. A nica certeza era de que esse seria outro dia de trabalho pesado, como os dias rotineiros da vida sem atrativos do pescador de prolas. Mas Tibor j vira um dos seus colegas morrer quando seu tubo de ar enrolou na hlice do Arafura e assistira agonia de um outro, cujo corpo se emaranhou nas cordas. No mar, nada totalmente seguro e certo. Voc se arrisca de olhos abertos, e se perder, no adianta se lamentar. Quando ele desceu da escada, o mundo de cu e sol deixou de existir. Sobrecarregado com o peso de seu escafandro, ele teve que pedalar para trs furiosamente para manter seu corpo em posio vertical medida que mergulhava para o fundo. No via nada alm de uma nvoa azul sem forma, e desejou que Blanco no soltasse a corda de segurana muito depressa. Engolindo e resfolegando, tentou limpar o ouvido quando a presso aumentou; o direito estalou logo, mas sentiu uma intolervel dor aguda no esquerdo, que h vrios dias o incomodava. Forou a mo por dentro do escafandro, segurou o nariz e assoou com fora. Houve uma sbita e silenciosa45

exploso em alguma parte dentro da sua cabea e imediatamente a dor passou. Depois disso no teve mais problemas com seu mergulho. Tibor tocou o fundo antes de v-lo. Como no podia abaixarse, para no correr o risco de inundar o escafandro, sua viso de cima para baixo era muito limitada. Podia ver ao redor, mas no abaixo. O que via era tranqilizador em sua inspida monotonia uma plancie lodosa e suavemente ondulante, que desaparecia a uns trs metros adiante. direita, a um metro de distncia, um minsculo peixe mordiscava um pedao de coral do tamanho e forma de um leque. Isso era tudo. Ali no existia beleza, no era nenhum reino encantado submarino. Mas ali existia dinheiro e era isto que importava. O cordo de segurana repuxou suavemente quando o lugre comeou a deslocar-se, movendo-se transversalmente pelo canteiro, e Tibor comeou a nadar no passo elstico, em cmara lenta, provocado pela falta de peso e pela resistncia da gua. Sendo o mergulhador Nmero Dois, ele estava operando na proa; meia-nau estava Stephen, ainda relativamente inexperiente, enquanto na popa ficava Billy, o melhor mergulhador. Os trs raramente se viam enquanto trabalhavam; cada um tinha sua rota para explorar enquanto o Arafura derivava silenciosamente ao sabor do vento. Apenas nos limites das suas trilhas em ziguezagues podiam ocasionalmente ver-se uns aos outros, de relance, como formas obscuras assomando atravs da nvoa. Era necessrio um olho experimentado para localizar as conchas sob suas camuflagens de algas e plantas, mas freqentemente os moluscos se traam. Quando sentiam as vibraes do mergulhador que se aproximava, elas se fechavam, e nesse instante surgia uma momentnea centelha nacarada na escurido. Mas ainda assim, s vezes elas escapavam, pois o balano do lugre podia arrastar o mergulhador antes que ele tivesse tempo de apanhar o prmio que estava fora do seu alcance. Durante sua aprendizagem, Tibor havia perdido vrias conchas grandes, de bocas prateadas, que poderiam conter uma prola fabulosa. Ou, pelo menos, assim ele imaginara, antes de se ter desfeito o mistrio da profisso e de ele ter percebido que as prolas eram to raras que seria melhor esquec-las. A pedra mais valiosa que j apanhara havia sido vendida por cinqenta e seis dlares, e as conchas que colheu numa manh de sorte tinham valido muito mais do que isso. Se a indstria dependesse de pedras em vez de madreprolas, j teria ido falncia anos atrs.46

Nesse mundo de nvoa no existia noo de tempo. Voc andava por baixo do barco flutuante sem v-lo, com a pulsao do compressor de ar latejando em seus ouvidos e o nevoeiro verde passando diante dos seus olhos. A longos intervalos, voc poderia localizar uma concha, arranc-la do fundo do mar e jog-la dentro da sua sacola. Tendo sorte, poderia ajuntar umas duas dzias numa s passagem pelo canteiro; mas tambm poderia no encontrar nenhuma. Voc tem que estar atento ao perigo, sem contudo se preocupar com ele. Os perigos reais so coisas simples e banais, como embaraar tubos de ar ou cordes de segurana e no tubares, garoupas ou polvos. Os tubares fogem quando vem suas bolhas de ar e durante toda sua experincia como mergulhador, Tibor s viu um polvo, a menos de sessenta centmetros de distncia. Quanto s garoupas, bem, estas deviam ser levadas a srio, pois de uma s golfada podiam engolir um mergulhador, se estivessem com muita fome. Mas a chance de encontr-las nessa plancie lisa e desolada era pequena, pois no existiam ali as cavernas de coral onde elas costumam fazer suas tocas. Contudo, o choque no teria sido to grande se essa cor cinza uniforme e montona no o tivesse levado a sentir uma sensao de segurana. Num dado momento ela estava caminhando firmemente em direo a uma inatingvel muralha de nvoa, que retrocedia rapidamente medida que ele se aproximava. E de repente, sem qualquer aviso, seu prprio pesadelo surgiu diante dele. Tibor odiava aranhas e ali no fundo do mar havia alguma criatura que parecia estar deliberadamente decidida a aproveitarse dessa sua fobia. Ele nunca se encontrara cara a cara com uma aranha, e sua mente se protegia sempre da idia de tal encontro, mas Tibor sabia que a aranha caranguejeira japonesa podia alcanar com suas pernas trs metros e meio. No importava que ela fosse inofensiva; uma aranha maior do que um homem simplesmente no tinha o direito de existir. Assim que viu aquele ninho de membros finos e articulados emergir daquela muralha cinzenta, Tibor comeou a gritar com um terror descontrolado. Ele no se lembrava de ter puxado o cordo de segurana, contudo Blanco reagiu com a instantnea percepo do auxiliar ideal. Seus gritos ainda ecoavam pelo escafandro quando Tibor se sentiu arrebatado do fundo do mar, erguido em direo luz e ao ar e sanidade. Ao chegar superfcie, ele percebeu o absurdo e a estranheza do seu procedimento e recuperou um47

certo grau de controle. Mas ainda tremia to violentamente quando Blanco retirou-lhe da cabea o escafandro, que levou muito tempo para poder falar. Que diabo est acontecendo por aqui hoje? reclamou Nick. Parece que todo mundo est largando seu trabalho mais cedo! S ento Tibor percebeu que no fora o primeiro a subir tona. Stephen estava sentado no meio do barco, fumando seu charuto e parecia estar completamente desligado do que se passava ao redor. O mergulhador da popa, certamente ignorando o que estava acontecendo, estava sendo iado arbitrariamente por seu auxiliar, pois o Arafura havia parado e todas as operaes tinham sido suspensas at que o problema fosse resolvido. Tem uns destroos l embaixo disse Tibor. Esbarrei neles. S consegui ver um monte de arames e barras de ferro. Para seu desgosto e vergonha, a simples meno de sua viso o fez estremecer novamente. No entendo por que isso lhe d calafrios resmungou Nick. Tibor tambm no entendia; ali naquele convs ensolarado era impossvel explicar por que uma forma inofensiva, vislumbrada atravs da nvoa, poderia deixar a mente de algum to alterada pelo pavor. Quase fiquei preso naquilo mentiu ele. Blanco me retirou bem a tempo. Hum... resmungou Nick, obviamente sem acreditar. De qualquer modo, a tal coisa no um navio naufragado. Ele apontou para o mergulhador da meia-nau. Stephen se emaranhou num monte de cordas e tecidos, como nylon pegajoso, pelo que ele disse. D idia de ser uma espcie de pra-quedas. O velho mergulhador grego olhou com nojo para o toco molhado do seu charuto e atirou-o no mar. Assim que Bill subir, vamos descer para dar uma olhada. Pode valer a pena; lembrem-se do que aconteceu com Jo Chambers. Tibor se lembrava, pois a histria ficou famosa por toda a regio da Grande Barreira Coralgena. Jo tinha sido um pescador solitrio que, nos ltimos meses da guerra, havia localizado um DC-3 afundado nas guas rasas a poucos quilmetros da costa de Queensland. Depois de prodigiosos esforos para fazer sozinho o salvamento, conseguira penetrar na fuselagem e retirara caixas contendo ferramentas bem protegidas por seus invlucros de pa48

pel encerado. Durante algum tempo ele desenvolveu um prspero comrcio de artigos importados, mas quando a polcia o pegou, relutou em revelar a sua fonte abastecedora; entretanto, os policiais australianos sabem ser bastante persuasivos. E foi s depois de vrias semanas de exaustivo trabalho submarino que Jo descobriu o que o seu DC-3 carregava, alm das ferramentas que valiam umas mseras centenas de libras esterlinas e que ele estivera vendendo para garagens e oficinas do continente. As grandes caixas de madeira que ele nunca se interessara em abrir continham o dinheiro para o pagamento de uma semana das foras americanas no Pacfico a maior parte em moedas de ouro de vinte dlares. Aqui no teriam tanta sorte pensou Tibor quando mergulhou novamente; mas o avio, ou o que quer que fosse, podia conter instrumentos valiosos e podia haver algum prmio pela sua descoberta. Alm disso, ele tinha uma obrigao para consigo mesmo; queria ver exatamente o que lhe causara tal pavor. Dez minutos depois, constatou que no era avio nenhum. Tinha formato diferente e era muito pequeno, apenas com seis metros de comprimento e trs de largura. Aqui e ali na sua fuselagem ligeiramente cnica existiam escotilhas