arthur c. clarke - relato de dez mundos

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http://groups.google.com.br/group/digitalsource Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e- book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro

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Relato de Dez Mundos

http://groups.google.com.br/group/digitalsource

Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefcio de sua leitura queles que no podem compr-la ou queles que necessitam de meios eletrnicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou at mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia. A generosidade e a humildade a marca da distribuio, portanto distribua este livro livremente.

Aps sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim voc estar incentivando o autor e a publicao de novas obras.

Histrias de Dez Mundos

Arthur C. Clarke

Ttulo Original: Tais of Tenha Worlds.

1962 by Arthur C. Clarke.

1974 por Editorial Sul-americana, S. A.

Traduo do Ingrid Tempel do Graels (exceto No Cometa).

Edio Digital de Aracndeo.

Contedo:Recordo a Babilnia

Vero em caro

Fora do Bero, para sempre em rbita...

Quem est a?

dio

No Cometa

Uma Mona na Casa

A Sada de Saturno

Faa-se a Luz

A Morte e o Senador

Problemas de Horrio ou Crime em MarteAntes do den

Um Ligeiro Caso de Insolao

Cadela EstrelaO Caminho do Mar

minha me (e j era hora)

Reconhecimento

Desejaria agradecer ao Dr. John Pierce do Bell Telephone Laboratory pela ideia que originou Um Ligeiro Caso de Insolao, adiantada no captulo 10 de seu livro Eltrones, Ondas e Mensagens.

RECORDO A BABILNIA

Meu nome Arthur C. Clarke, e desejaria no ter relao alguma com todo este srdido assunto. Mas como a integridade moral, repito, moral, dos Estados Unidos est comprometida, primeiro devo mostrar meus crditos. S assim compreendero vocs como, com a ajuda do defunto doutor Alfred Kinsey, provoquei involuntariamente uma avalanche que pode varrer com grande parte da civilizao ocidental.

L em 1945, sendo operador de radar na Real Fora Area, tive a nica idia original de minha vida. Doze anos antes que o primeiro Sputnik comeasse a emitir sinais, me ocorreu que um satlite artificial seria um lugar maravilhoso para transmitir televiso, pois uma estao a vrios milhares de quilmetros de altura poderia radiar para a metade do globo. Escrevi a idia na semana posterior a Hiroshima, propondo uma rede de satlites de retransmisso a trinta e cinco mil quilmetros por cima do Equador; a essa altura demorariam exatamente um dia em completar uma revoluo, e assim permaneceriam fixos sobre o mesmo ponto da Terra.

Esse trabalho apareceu no Wireless World no nmero de outubro de 1945; como no esperava que os instrumentos espaciais chegassem a ser comercializados durante minha vida, no tentei patentear a idia; de todas as formas, duvido que tenha podido faz-lo. (Se estou equivocado, preferiria no sab-lo.)

Mas continuei inserindo-a em meus livros e hoje em dia a idia de satlites de comunicao to comum que ningum conhece sua origem. Fiz um dolorido intento de elucidao quando fui abordado pelo Comit de Astronutica e Explorao Espacial da Cmara de Representantes; vocs encontraro meu testemunho na pgina trinta e dois de seu relatrio Os prximos dez anos no espao. E, como vocs vero em seguida, minhas ltimas palavras tinham uma ironia que no pude apreciar no momento: Vivendo como vivo no Longnquo Oriente, constantemente tenho vista a luta entre o Mundo Ocidental e a URSS pelos milhes no comprometidos da sia... Quando as transmisses de televiso via satlite forem possveis, o efeito propagandstico pode ser decisivo...

Ainda penso o mesmo, mas havia ngulos que eu no previ... e que outras pessoas, desgraadamente o fizeram.

Tudo comeou em uma dessas recepes oficiais to caractersticas da vida social nas capitais asiticas. So mais comuns ainda no Ocidente, obvio, mas no Coln no h muita competncia de entretenimentos. Pelo menos uma vez por semana, se a gente for algum, recebe um convite para coquetis em uma embaixada ou legao, o Conselho Britnico, a Misso de Operaes dos EE.W., L'Alliance Franaise, ou uma das incontveis agncias alfabticas engendradas pelas Naes Unidas.

No princpio, nos sentindo mais cmodos sob o Oceano ndico do que em crculos diplomticos, meu scio e eu fomos pessoas insignificantes, e nos deixavam em paz. Mas logo depois que Mike apadrinhou a excurso do Dave Brubeck no Ceilo, toda a gente comeou a fixar-se em ns. E mais ainda quando Mike desposou uma das beldades mais conhecidas da ilha. De modo que agora nossa consumao de coquetis e canaps est limitada principalmente pelo rechao a abandonar nossos cmodos sarongs por absurdos ocidentais como calas, smokings e gravatas.

Era a primeira vez que amos Embaixada Sovitica, que dava uma festa para um grupo de oceangrafos russos que acabavam de chegar ao porto. Sob os inevitveis retratos do Lnin e Marx, um par de centenas de convidados de todas as cores, religies e idiomas, formavam redemoinhos falando com amigos, ou atacando obsessivamente a vodca e o caviar. Eu estava separado de Mike e Elizabeth, mas os via o outro lado da sala. Mike fazia seu ato de Ali estava eu a cinqenta braas frente a um auditrio fascinado, enquanto Elizabeth o olhava enigmaticamente... e mais gente ainda olhava para Elizabeth.

Desde que perdi um tmpano procurando prolas na Grande Barreira de Coral, vejo-me em desvantagem nestas reunies; o rudo de superfcie uns doze decibis mais alto do que eu posso dominar. E isso no pouca desvantagem quando nos apresentam algum com nomes como Dharmasiriwardene, Tissaveerasinghe, Goonetilleke, e Jayawickrema. Portanto, quando no estou assaltando o buf, procuro um lugar relativamente tranqilo, onde tenha alguma possibilidade de seguir mais de cinqenta por cento de qualquer conversao em que pudesse ver-me metido. Estava dentro da sombra acstica de uma enorme coluna, estudando a cena com meu ar de indiferena tipo Somerset Maugham, quando notei que algum me olhava com essa expresso de No nos vimos antes?O descreverei com algum cuidado, porque deve haver muita gente que pode identific-lo. Tinha trinta e tantos anos, e supus que era norte-americano. Mostrava o esmero, o corte de cabelo, o ar do homem acostumado a andar pelo Rockfeller Center; essa aparncia que era marca de pureza at que os diplomticos jovens e os conselheiros tcnicos russos comearam a imit-la com tanto xito. Media um metro e oitenta, tinha ardilosos olhos castanhos e cabelo negro, prematuramente cinza nas tmporas. Embora eu estivesse bastante seguro de que no nos tnhamos encontrado nunca antes, seu rosto recordava algum. Demorei um par de dias em me dar conta de quem: recordam o defunto John Garfield? Era to parecido que quase no havia diferena.

Quando um estranho me chama a ateno em uma festa, meu procedimento clssico entra em ao automaticamente. Se parece uma pessoa agradvel, mas no tenho desejos de conhec-la no momento, uso com ela o Olhar Neutro, deixando que minha vista a percorra rapidamente sem uma piscada de reconhecimento, embora no com verdadeira hostilidade. Se parecer um louco, recebe o Coup d'oeil, que consiste em um largo olhar de incredulidade, seguido de uma viso sem pressa de minha nuca. Em casos extremos se pode adicionar uma expresso de asco durante uns milsimos de segundo.

Geralmente a mensagem chega.

Mas este personagem parecia interessante e eu me estava aborrecendo, assim lhe ofereci a Saudao Afvel. Minutos depois se aproximou entre as pessoas e eu voltei para ele meu ouvido so.

Ol disse (sim, era norte-americano) meu nome Gene Hartford. Estou seguro de que nos encontramos antes.

muito possvel respondi. passei muito tempo nos Estados Unidos. Sou Arthur Clarke.

Em geral isso produz um olhar vazio, mas algumas vezes no. Quase pude ver as fichas IBM revoando atrs desses duros olhos pardos, e me adulou sua rapidez.

O escritor de cincia?

Assim .

Bom, isto extraordinrio. Parecia genuinamente surpreso. Agora sei onde o vi. Foi uma vez no estdio, quando voc estava no programa do Dave Garroway.

(Poderia valer a pena seguir esta pista, embora o duvidasse; e estou seguro de que esse Gene Hartford era falso; era muito artificial.)

Ento voc est na televiso? perguntei-lhe. O que faz aqui? Recolhe material, ou simplesmente est de frias?

Brindou-me o sorriso franco e amistoso do homem que tem muito para esconder.

Oh, mantenho os olhos abertos. Mas isto surpreendente. Li seu livro A explorao ao espao quando saiu em... ...

Em cinqenta e dois; o Clube do Livro do Ms nunca voltou a ser o mesmo depois.

Todo esse tempo estive tratando de julg-lo, e embora houvesse algo nele que no me agradava, no pude saber bem o que era. De toda forma, eu estava disposto a fazer grandes concesses a uma pessoa que tinha lido meus livros e que, alm disso, trabalhava na televiso; Mike e eu sempre estamos procurando negociaes para nossos filmes submarinos. Mas essa, para diz-lo brandamente, no era a linha de negcios do Hartford.

Olhe disse ansiosamente estou trabalhando em um assunto importante para uma cadeia de televiso que lhe interessar; na realidade, voc ajudou a me dar a idia.

Isto soava prometedor, e meu coeficiente de avareza saltou vrios pontos.

Me alegro. Do que se trata?

No posso discuti-lo aqui. O que lhe parece se nos encontramos em meu hotel, amanh s trs?

Me deixe ver a agenda; sim, est bem.

No Coln h somente dois hotis freqentados por norte-americanos e acertei na primeira vez. Estava no Mount Lavinia e, embora possivelmente vocs no saibam, viram o lugar onde tivemos nosso bate-papo privado. Perto da metade da ponte sobre o rio Kwait h uma breve cena em um hospital militar, onde Jack Hawkins conhece uma enfermeira e lhe pergunta onde pode encontrar Bill Holden. Temos uma fraqueza por este episdio, porque Mike era um dos oficiais navais convalescentes que se vem no fundo. Se olharem atentamente, o vero na extrema direita, com barba, em pleno perfil, assinando com o nome do Sam seu Spiegel na sexta volta de bar. Tal como aconteceu no filme, Sam podia permitir-lhe isso. Foi aqui, nesta mesinha diminuta, sobre as praias rodeadas de palmeiras, que Gene Hartford comeou a falar... e minhas ingnuas esperanas de benefcios financeiros comearam a evaporar-se. Quanto aos motivos de Gene Hartford, se que ele mesmo os conhecia, ainda no estou seguro. A surpresa de me encontrar e um equivocado sentimento de gratido (do qual eu teria prescindido com alegria) jogaram indubitavelmente seu papel, e apesar de todo seu ar de confiana deve ter sido um homem amargurado e s que necessitava desesperadamente de aprovao e amizade.

De mim no obteve nenhuma dessas coisas. Sempre tive algo de compaixo pelo Benedict Arnold, como deve t-la qualquer um que conhea todos os aspectos do caso. Mas Arnold s traiu ao seu pas; ningum, antes do Hartford, tratou de seduzi-lo.

O que desvaneceu meus sonhos de dlares foi a notcia de que a conexo do Hartford com a televiso norte-americana havia se quebrado, algo violentamente, no princpio da dcada de cinqenta. Estava claro que o tinham jogado da Avenida Madison por filiar-se ao Partido, e tambm estava claro que, neste caso, no tinham cometido nenhuma injustia. Embora falasse com certa fria controlada de sua luta contra a torpe censura, e chorasse por uma brilhante, embora inominada, srie de programas culturais que teria comeado justo antes que o jogassem fora do ar, a essa altura eu comeava a cheirar tantos ratos, que minhas respostas eram muito cautelosas. Meu interesse pecunirio no senhor Hartford diminua, mas minha curiosidade pessoal aumentava. Quem estava por trs dele? No a BBC...

Quando conseguiu tirar do corpo toda a auto-compaixo, falou finalmente do assunto:

Tenho uma notcia que o far levantar-se disse presumidamente. As cadeias norte-americanas tero logo competncia. E ser na forma que voc predisse. A gente que enviou Lua um transmissor de televiso pode pr um muito maior em rbita ao redor da Terra.

Felicito-os falei cautelosamente. Sempre estou a favor da s competncia. Quando o lanam?

A qualquer momento. O primeiro transmissor o estacionaro ao sul de Nova Orleans; no Equador, claro. Isso significa que estar bem fora sobre o Pacfico; no ficar sobre o territrio de nenhuma nao e no surgiro, portanto, complicaes polticas. Entretanto estar ali no cu, bem vista de todo o mundo, de Seattle ao Key West. Pense: a nica estao de televiso que se poder sintonizar em todos os Estados Unidos! Sim, inclusive o Hava! No haver forma de provocar interferncias; pela primeira vez haver um canal que pode entrar em cada lar norte-americano. E os Boy Scouts do J. Edgar no podem fazer nada para bloque-lo.

De modo que essa sua pequena fraude, pensei; pelo menos franco.Faz tempo que aprendi a no discutir com marxistas, mas se Hartford dizia a verdade, queria lhe surrupiar tudo o que fosse possvel.

Antes que se entusiasme muito falei h alguns pontos que voc pode ter esquecido.

Por exemplo?

Isto funcionar em duas direes. Todos sabem que a Fora Area, a NASA, os Laboratrios Bell, a I.T.T, Hughes, e outras vrias dzias de agncias esto trabalhando no mesmo projeto. Algo que a Rssia faa aos Estados Unidos em matria de propaganda lhe ser devolvido do mesmo modo.

Hartford sorriu com tristeza.

Caramba, Clarke! disse. (Alegrou-me que no me chamasse pelo nome.) Estou um pouco desiludido. Voc deve saber que os Estados Unidos levam vrios anos de atraso em capacidade de carga. Voc cr que o velho T.3 a ltima palavra da Rssia?

Foi nesse momento que comecei a tom-lo muito a srio. Tinha toda a razo. O T.3 podia transportar pelo menos cinco vezes mais carga til que qualquer foguete norte-americano a essa rbita crtica de trinta e cinco mil quilmetros, a nica permitiria a um satlite permanecer fixo sobre a Terra.

E quando os Estados Unidos pudessem igualar essa faanha s o cu sabe onde estariam os russos. Sim, o cu saberia seriamente...

Muito bem concedi. Mas por que cinqenta milhes de lares norte-americanos teriam que comear a trocar de canal logo que possam sintonizar Moscou? Admiro aos russos, mas seus entretenimentos so piores que sua poltica. Tirando o Bolshoi, o que fica?

Recebi outra vez aquele sorriso triste e estranho. Hartford tinha guardado o golpe mais forte.

Foi voc quem trouxe os russos conversa disse Esto nisto, certo; mas s como empreiteiros. A agncia independente para a qual trabalho paga os seus servios.

Essa observei friamente deve ser uma grande agncia.

E ; a maior. Embora os Estados Unidos pretendam que no existe.

Oh eu disse, algo estupidamente. De modo que esse seu patrocinador.

J tinha ouvido esses rumores de que a URSS ia lanar satlites para os chineses; agora parecia que os rumores deixavam vislumbrar parte da verdade.

Voc tem toda a razo continuou Hartford que, obviamente, estava se divertindo sobre os entretenimentos russos. Logo depois da novidade inicial, o ndice de audincia baixaria a zero. Mas no com o programa que eu projeto. Meu trabalho encontrar material que deixe todos outros canais fora de combate quando for ao ar. Voc acredita que no se pode fazer? Termine essa bebida e suba ao meu quarto. Tenho um longo filme sobre arte religiosa que eu gostaria de lhe mostrar.

Bom, no estava louco, embora durante alguns minutos eu duvidasse. Podia pensar poucos ttulos melhor calculados para que o espectador sintonizasse o canal que o que apareceu na tela: ASPECTOS DA ESCULTURA TNTRICA DO SCULO XIII.

No se inquiete riu Hartford, sobre o zumbido do projetor. Esse ttulo economiza-me problemas com os inspetores de Alfndega. correto, mas o trocaremos por algo mais atraente quando chegar o momento.

Sessenta metros mais adiante, logo depois de umas longas tomadas incuas de arquitetura, compreendi o que queria dizer.

Vocs sabem que h, em certos templos na ndia, inmeras esculturas soberbamente executadas, de um tipo que ns no Ocidente jamais associaramos com religio. Dizer que so francas risvel; no deixam nada imaginao... qualquer imaginao. Mas ao mesmo tempo so genunas obras de arte. E tambm o era o filme do Hartford.

Tinha sido filmado, caso lhes interesse, no Konarak, o Templo do Sol. Logo me informei; est na costa da Orissa, uns trinta e cinco quilmetros ao noroeste do Puri. Os livros de referncia so bastante tmidos; alguns se desculpam pela bvia impossibilidade de mostrar ilustraes, mas a Arquitetura hindu de Percy Brown no economiza palavras. As esculturas, diz, so de um desavergonhado carter ertico que no tem paralelo em nenhum edifcio conhecido. Parece exagero, mas acredito nisso depois de ter visto esse filme.

A fotografia e a montagem eram excelentes; a antiga pedra despertava para a vida diante das lentes. Havia largas tiras de sol afugentando sombras de corpos entrelaados em xtase, que deixavam sem flego; assombrosas tomadas, em primeiro plano, de cenas que, no princpio, a mente se negava a reconhecer; estudos brandamente iluminados de pedra esculpida por um professor, em todas as fantasias e aberraes do amor; incansveis movimentos cujo significado evitava a compreenso, at que se imobilizavam em desenhos de desejo intemporal, de satisfao eterna.

A msica, principalmente percusso, entrelaada com o agudo som de algum instrumento de cordas que no pude identificar, se adequava perfeitamente ao tempo da montagem. Por momentos era lenta e suave, como os primeiros compassos de L'Apres midi de Debussy; depois os tambores chegavam velozmente a um clmax de frenesi quase insuportvel. A arte dos antigos escultores e o talento do cineasta moderno combinaram-se atravs dos sculos para criar um poema de xtase, um orgasmo em celulide que ningum poderia presenciar sem comover-se.

Houve um longo silncio quando a tela se inundou de luz e a msica lasciva terminou de apagar-se.

Meu Deus! falei, quando recuperei algo de minha compostura. Vo transmitir isso?

Hartford riu.

Acredite respondeu isso no nada; ocorre que o nico filme que posso levar comigo sem perigo. Estamos dispostos a defend-lo, nos apoiando na verdadeira arte, no interesse histrico, na tolerncia religiosa... Oh, pensamos em todos os ngulos Mas na realidade no importa; ningum pode nos deter. Pela primeira vez na histria toda forma de censura se torna impossvel. Simplesmente no h maneira de aplicar a lei; o cliente obtm o que deseja, e em sua prpria casa. Fecha a porta, liga o televisor; os amigos e a famlia jamais sabero.

Muito engenhoso falei mas voc no acha que uma dieta semelhante cansa muito em breve?

obvio; na variedade est o gosto. Teremos muitos entretenimentos convencionais; deixe que eu me preocupe com isso. E de vez em quando teremos programas de informao, odeio essa palavra propaganda, para dizer ao enclausurado povo norte-americano o que realmente acontece no mundo. Nossos filmes especiais sero somente a isca de peixe.

Importa-lhe se tomo um pouco de ar fresco? falei. Isto est se tornando irrespirvel.

Hartford correu as cortinas e deixou que a luz voltasse para o quarto. A nossos ps se estendia uma larga praia curva. As batangas dos botes de pesca se elevavam sob as palmeiras e as pequenas ondas se desfaziam em espuma, ao concluir sua fatigante marcha da frica. Uma das paisagens mais formosas do mundo, mas no me pude concentrar nela. Ainda via aqueles membros retorcidos, aqueles rostos gelados com paixes que nem os sculos podiam extinguir.

A voz libidinosa continuou s minhas costas:

Se surpreenderia caso soubesse quanto material h. Recorde, no temos nenhum tabu. Se se pode filmar, ns podemos television-lo.

Caminhou at seu escritrio e levantou um pesado volume, bastante usado.

Esta foi minha Bblia disse ou meu Sears, Roebuck, se voc o preferir. Sem ela nunca teria vendido a srie a meus patrocinadores. So grandes crentes na cincia e engoliram toda a coisa, at o ltimo ponto.

Assenti. Sempre que entro em um quarto analiso os gostos literrios do hspede.

O doutor Kinsey, no?

Acredito que sou o nico homem que o leu de capa a capa, em vez de olhar somente as estatsticas. Nesse campo a nica investigao de mercado. At que aparea algo novo lhe tiraremos todo o suco. Diz-nos o que o cliente quer, e ns vamos dar-lhe.

Tudo?

Se a audincia for suficientemente grande, sim. No nos preocuparemos com os camponeses tolos que se tornam viciados na mercadoria. Mas os quatro sexos principais recebero um tratamento completo. Essa a beleza do filme que voc acaba de ver: atrai todo mundo.

Disso no cabe dvida.

Divertimo-nos muito planejando o filme que intitulei Rinco do homossexual. No ria, nenhuma agncia empreendedora pode permitir-se ignorar essa audincia. Pelo menos dez milhes, contando as damas. Se acredita que eu exagero olhe nos quiosques todas as revistas que tem de arte masculina. No foi fcil chantagear alguns dos mais delicados e conseguir que atuassem para ns.

Viu que estava comeando a me aborrecer; h certo tipo de obsesso que acho deprimente. Mas fui injusto com Hartford, como ele se apressou a provar.

Por favor, no pense disse ansiosamente que o sexo nossa nica arma. Alguma vez viu o trabalho que Ed Murrow fez com o defunto Joe McCarthy? Isso no nada, comparado com os perfis que estamos planejando em Washington Confidencial. E a nossa srie Voc pode suport-lo? destinada a separar os homens dos maricas? Publicaremos tantas advertncias por antecipao, que todo norte-americano se sentir obrigado a ver o programa. Comear de forma inocente, apoiado em um tema muito bem preparado por Hemingway. Ver-se-o algumas seqencias de corrida de touros que literalmente o levantaro do assento, ou o enviaro correndo ao banheiro, porque mostram todos os pequenos detalhes que nunca se vem nesses pulcros filmes de Hollywood. Seguiremos depois com um material realmente nico, que no nos custa nada. Recorda as provas fotogrficas dos julgamentos do NUREMBERG? Voc nunca as viu porque no eram publicveis. Havia vrios fotgrafos aficionados em campos de concentrao e tiraram todo o suco de uma oportunidade que no voltaria a apresentar-se. Alguns deles foram pendurados graas ao testemunho de suas prprias cmaras, mas seu trabalho no se perdeu. Ser uma boa introduo para nossa srie A tortura atravs dos sculos; muito erudita e exaustiva, embora de grande atrativo. E h dzias de enfoques, mas agora voc tem uma idia. A Avenida cr saber tudo sobre Persuaso Oculta. Acredite que no sabe. Os melhores psiclogos prticos do mundo esto agora no Oriente. Recorda a Coria e a lavagem de crebro? Aprendemos muito depois. J no h necessidade de violncia; as pessoas gostam que lhe lavem o crebro, se for bem feito.

E vocs vo lavar o crebro dos Estados Unidos... disse. Todo um trabalhinho.

Exatamente. E o pas adorar, apesar de todos os gritos do Congresso e das Igrejas. Sem mencionar as cadeias de televiso, suponho. So as que faro mais escndalo, quando virem que no podem competir conosco.

Hartford olhou o relgio e assobiou com alarme.

hora de fazer as malas disse. s seis tenho que estar nesse impronuncivel aeroporto. No seria possvel que voc voasse a Macau alguma vez, para nos ver?

No, mas j formei uma boa idia do assunto. A propsito, no tem medo que eu lhe arrune o negcio?

Por que? A publicidade nos favorecer. Embora nossa campanha no saia at vrios meses acredito que voc ganhou este privilgio. Como lhe disse, seus livros ajudaram a me dar a idia.

Sua gratido era genuna, meu Deus! Deixou-me completamente mudo.

Nada pode nos deter declarou e, pela primeira vez, no pde controlar o fanatismo que se escondia atrs da fachada amvel e cnica. A Histria est do nosso lado. Utilizaremos a prpria decadncia dos Estados Unidos contra eles mesmos; uma arma ante a qual eles no tm defesa alguma. A Fora Area no tentar cometer pirataria espacial, derrubando um satlite completamente afastado do territrio norte-americano. A Comisso Federal de Comunicaes no pode sequer protestar a um pas que no existe aos olhos do Departamento de Estado. Se tiver alguma outra sugesto, eu estaria muito interessado em escut-la.

No tinha nenhuma ento e no tenho nenhuma agora. Possivelmente estas palavras possam servir de breve advertncia, antes que apaream os primeiros anncios provocadores nos peridicos, alarmando as cadeias de televiso. Mas obterei algo? Hartford acreditava que no e talvez tivesse razo.

A Histria est do nosso lado. No pude tirar essas palavras da cabea. Terra de Lincoln e Franklin e Melville, amo-te e te desejo o melhor. Mas em meu corao sopra um vento frio do passado, pois recordo a Babilnia.Vero em caro

Quando Colin Sherrard abriu os olhos depois do choque, no compreendeu onde estava. Aparentemente se encontrava preso em algum tipo de veculo, no topo de uma colina que descia escarpadamente em todas as direes. A superfcie da colina estava chamuscada e enegrecida, como se a tivesse varrido um grande fogo. Acima, sobre um cu azeviche, apinhavam-se as estrelas. Uma delas se pendurava como um sol diminuto e brilhante, muito abaixo no horizonte. Seria o Sol? Estaria ele to longe da Terra? No, impossvel. Uma fastidiosa lembrana lhe disse que o Sol no estava to distante para ser uma simples estrela: o Sol estava perto, espantosamente perto. E com esse pensamento, recuperou todos os sentidos. Sherrard soube exatamente o que era aquele lugar, e esse conhecimento foi to terrvel que quase voltou a desmaiar.

Estava mais perto do Sol do que homem algum tinha estado antes. Sua danificada cpsula espacial no descansava em uma colina, e sim na levantada superfcie curva de um mundo de s trs quilmetros de dimetro. Essa estrela brilhante que se afundava rapidamente no oeste era a luz de Prometeu, a nave que o tinha levado atravs de tantos milhes de quilmetros. Prometeu flutuava entre as estrelas, perguntando-se por que sua cpsula no havia retornado como uma pomba mensageira ao poleiro. Em poucos minutos teria desaparecido da vista, caindo sob o horizonte, em um perptuo jogo de esconde-esconde com o Sol.

Esse era o jogo que Sherrard tinha perdido. Todavia estava no lado noturno do asteride, na fresca segurana da sombra, mas a curta noite terminaria logo. A noite de caro, de s quatro horas, avanava rapidamente para o terrvel amanhecer, quando um sol trinta vezes maior do que aquele que brilhava sobre a Terra, faria saltar as rochas com seu fogo. Sherrard sabia demasiado bem por que tudo a seu redor estava queimado e enegrecido: caro se encontrava ainda a uma semana de seu solstcio, mas a temperatura ao meio-dia tinha chegado j a quinhentos graus centgrados.

Embora este no fosse momento para humor, recordou a descrio do Capito McClellan: O terreno mais quente de todo o Sistema Solar. A verdade dessa brincadeira tinha sido provada, s uns poucos dias antes, por um desses experimentos simples e pouco cientfico, muito mais impressionante que qualquer nmero de grficos e leituras de instrumentos.

Pouco antes da alvorada, algum colocou um pedao de madeira no topo de uma das colinas pequenas. Sherrard olhou, da segurana do lado noturno, logo depois dos primeiros raios do sol nascente tocarem a colina. Quando seus olhos se adaptaram sbita exploso de luz, viu que a madeira j tinha comeado a enegrecer e a se carbonizar. Se tivesse havido atmosfera, o pau teria estalado em chamas; assim era o amanhecer em caro...

Entretanto, quando aterrissaram pela primeira vez em caro, cinco semanas antes (ao passar a rbita de Vnus), o calor no era insuportvel. Prometeu alcanou o asteride quando este comeava a lanar-se para o Sol; igualou a velocidade do pequeno mundo e aterrissou em sua superfcie to brandamente como um floco de neve. (Um floco de neve em caro; que pensamento...) Depois os cientistas se desdobraram em forma de leque atravs dos trinta e cinco quilmetros quadrados de denteado ferro-nquel que cobria a maior parte da superfcie do asteride, instalando instrumentos e postos de controle, recolhendo amostras e fazendo infinitas observaes.

Tudo tinha sido cuidadosamente planejado, anos antes, como parte da Dcada Astrofsica Internacional. Aqui havia uma oportunidade nica para que uma nave de investigao chegasse s a vinte e sete milhes de quilmetros do Sol, protegida de sua fria por um escudo de rocha e ferro de trs quilmetros de largura. sombra de caro, a nave podia flutuar segura ao redor do fogo central que esquentava todos os planetas e do qual dependia a existncia de toda a vida. Como o Prometeu de lenda, que levou o presente do fogo Humanidade, uma nave com o mesmo nome voltaria para a Terra dos planetas, carregada de segredos nunca imaginados.

Houve tempo suficiente para colocar os instrumentos e fazer o reconhecimento topogrfico, antes que Prometeu tivesse que se separar, procurando a permanente sombra da noite. Mesmo ento os homens, viajando em diminutas cpsulas de autopropulso, naves espaciais em miniatura, de s trs metros de largura, podiam trabalhar no lado noturno durante uma hora, enquanto no fossem alcanados pela ascendente linha do amanhecer. Essa tinha parecido uma condio simples de cumprir em um mundo onde o alvorada avana s a um quilmetro e meio por hora; mas Sherrard no a tinha completado, e a pena era a morte.

Ainda no estava certo do que tinha acontecido. Tinha estado substituindo um transmissor sismogrfico na Estao 145, extra-oficialmente chamada Monte Everest porque se elevava trinta metros por sobre o territrio circundante. O trabalho tinha sido singelo, apesar de ter que faz-lo por controle remoto, com os braos mecnicos da cpsula. Sherrard era um expert no manejo desses braos; podia atar ns com os dedos metlicos quase to rapidamente como com os seus de carne e osso. A tarefa tinha levado pouco mais de vinte minutos e logo o radiosismgrafo comeou a transmitir, registrando os pequenos sismos e tremores que varriam caro com intensidade crescente, medida que o asteride se aproximava do Sol. Saber que tinha feito uma contribuio gigantesca de conhecimento no o satisfazia agora.

Logo depois de verificar os sinais, substituiu cuidadosamente as telas de revestimento ao redor do instrumento. Era difcil acreditar que duas dbeis lminas metlicas, no mais grossas que o papel, podiam desviar uma onda de radiao que derreteria o chumbo ou o estanho em segundos. Mas a primeira tela refletia mais de noventa por cento da luz solar que caa em sua superfcie de espelho e a segunda desviava a maior parte do resto, de modo que to somente as transpassava uma inofensiva frao de calor.

Sherrard informou que a tarefa estava concluda, recebeu a conformidade da nave, e se preparou para voltar. Os refletores do Prometeu, sem os quais o lado noturno do asteride teria estado sumido em uma completa escurido, eram um inconfundvel objetivo no cu. A nave estava s a trs quilmetros de altura e, na dbil gravidade, ele poderia ter saltado essa distncia se tivesse levado um traje espacial de tipo planetrio, com pernas flexveis. Em sua situao atual, os microcoletes de baixo poder da cpsula o levariam ali em uns cmodos cinco minutos.

Apontou a cpsula com os girstatos, ps os propulsores traseiros em Fora Dois, e apertou o boto de ligar. Houve uma violenta exploso perto de seus ps e se encontrou afastando-se de caro... mas no para a nave. Algo estava muito mal; foi arrojado para um lado do veculo e no pde alcanar os controles. S um dos propulsores funcionava e a cpsula girava no cu como uma roda de foguetes, cada vez mais rpido, sob o impulso desequilibrado do foguete. Tratou de encontrar a chave de desligar, mas as voltas o tinham desorientado por completo. Quando por fim localizou os controles, sua primeira reao piorou as coisas: moveu a chave para velocidade mxima como um motorista nervoso que pisa no acelerador em lugar dos freios. Demorou s um segundo para corrigir o engano e desligar o foguete, mas j girava to rapidamente que as estrelas davam voltas ao seu redor.

Tudo foi to rpido que no houve tempo para o medo, nem tempo para chamar a nave e informar o que estava se passando. Tirou a mo dos controles; toc-los agora s pioraria as coisas. Retomar o rumo significaria dois ou trs minutos de manobras hbeis e pelas constantes aparies das rochas, cada vez mais prximas, era bvio que no dispunha de tantos segundos. Sherrard recordou um conselho do manual do Astronauta: Quando no souber o que fazer, no faa nada. Estava atendendo a esse conselho quando caro caiu sobre ele, e as estrelas se apagaram.

Era um milagre que a cpsula no tivesse se quebrado e que ele no estivesse respirando no espao. (dentro de trinta minutos possivelmente se alegraria de faz-lo, quando o isolamento trmico comeasse a falhar...) Havia alguns danos, obvio. Os espelhos retrovisores, fora da cpula de plstico transparente que lhe cobria a cabea, j no estavam mais, de modo que no podia ver o que havia atrs sem torcer o pescoo. Mas esse era um contratempo corriqueiro; muito mais srio era que as antenas do rdio tinham sido arrancadas pelo impacto. No podia chamar a nave e a nave no podia cham-lo. Tudo o que saa do rdio era uma dbil crepitao, provavelmente produzida dentro do aparelho mesmo. Estava completamente sozinho, isolado do resto da raa humana.

Embora sua situao fosse desesperadora, havia um dbil raio de esperana. Apesar de tudo, no estava completamente indefeso. Embora no pudesse utilizar os propulsores da cpsula, acreditava que o motor de estibordo tinha explodido, destroando um tubo de alimentao de combustvel, algo que segundo os desenhistas era impossvel, ainda podia mover-se. Tinha os braos.

Mas em que direo devia arrastar-se? Havia perdido o sentido de orientao e, embora houvesse despencado do Monte Everest, agora podia estar a milhares de metros de distncia. No havia marcas reconhecveis neste mundo diminuto; seu melhor guia era a luz poente do Prometeu, e se pudesse manter a nave vista estaria seguro. Que descobrissem sua ausncia era questo de minutos, se j no a tinham descoberto. Mas, sem rdio, seus colegas podiam demorar um longo tempo para encontr-lo; por menor que fosse caro, em seus trinta e cinco quilmetros quadrados de terreno fantasticamente acidentado podia esconder bem um cilindro de trs metros. Talvez demorassem uma hora a encontr-lo, e isso significava que teria que adiantar-se alvorada mortal.

Deslizou os dedos nos controles dos membros mecnicos. Fora da cpsula, no hostil vazio que o rodeava, reviveram os braos substitutos. Apoiaram-se na superfcie de ferro do asteride e levantaram a cpsula do cho. Sherrard os flexionou e a cpsula se sacudiu para diante, como um estranho inseto bpede... primeiro o brao direito, depois o esquerdo, depois o direito...

Era menos difcil do que tinha temido e, pela primeira vez, sentiu que voltava a ter confiana. Mesmo que os braos mecnicos tivessem sido desenhados para trabalhos leves de preciso, necessitava-se pouca fora para mover a cpsula neste meio onde o peso quase no existia. A gravidade de caro era dez mil vezes menor que a da Terra; Sherrard e sua cpsula espacial pesavam aqui uns poucos gramas, e uma vez que ficou em movimento flutuou para diante sem esforo.

Entretanto, essa mesma facilidade tinha seus perigos. Tinha percorrido vrias centenas de metros e estava alcanando rapidamente a estrela poente do Prometeu, quando o excesso de confiana o traiu. ( estranho como a mente pode passar de um extremo ao outro; uns poucos minutos antes tinha escapado morte; agora se perguntava se chegaria tarde para o jantar.) Possivelmente a novidade do movimento, to diferente do que tinha provado antes, foi a causadora da catstrofe; ou talvez estivesse sofrendo ainda dos efeitos do choque.

Como todos os astronautas, Sherrard havia aprendido a orientar-se no espao, e tinha se acostumado a viver e a trabalhar quando os conceitos terrestres de acima e abaixo no tinham significado. Em um mundo como caro, era necessrio pretender que havia um ntido, real e verdadeiro debaixo e que, quando algum se movia, era sobre um plano horizontal. Se falhasse este inocente auto-engano, a vertigem espacial era inevitvel.

O ataque chegou sem aviso prvio, como de costume. Subitamente, caro j no pareceu estar debaixo, nem as estrelas acima. O Universo se inclinou em ngulo reto; Sherrard estava se movendo para cima por um penhasco vertical, como um alpinista que escala a parede de uma rocha e, embora a razo lhe dissesse que era s iluso, todos seus sentidos gritavam que era real. Em um momento, a gravidade teria que arranc-lo dessa parede e cairia interminavelmente at fazer-se pedaos no esquecimento.

Faltava acontecer o pior; a falsa oscilao vertical, ainda como uma bssola decomposta. Agora Sherrard estava sob um imenso teto de rocha, que logo voltaria a converter-se em parede: mas esta vez desceria por ela, em vez de subir...

Tinha perdido todo o controle sobre a cpsula e o pegajoso suor que comeava a lhe orvalhar o rosto advertiu-o de que logo perderia o controle do corpo. S restava uma coisa para fazer: fechou os olhos com fora, se agachou o mais atrs possvel no diminuto mundo fechado da cpsula, e fez como se o universo exterior no existisse. Nem sequer permitiu que o lento e suave golpe do segundo choque interferisse com sua auto-hipnose.

Quando se atreveu a olhar fora novamente, descobriu que a cpsula descansava contra um enorme canto redondo. Os braos mecnicos da cpsula tinham atenuado a fora do impacto, mas a um preo maior do que Sherrard podia pagar. Embora aqui a cpsula no tivesse virtualmente nenhum peso, ainda possua os costumeiros duzentos e cinqenta quilogramas de inrcia, e tinha estado se movendo possivelmente a uns seis quilmetros por hora. Os braos metlicos no tinham conseguido absorver o impacto; um havia se quebrado e o outro estava irremediavelmente torcido.

Quando Sherrard viu o que tinha acontecido, sua primeira reao no foi de desespero, mas sim de clera. Tinha estado to seguro do xito quando a cpsula comeou a deslizar sobre a rida superfcie de caro. E agora isto, devido somente a um momento de debilidade fsica! Mas o espao no fazia concesses s fragilidades humanas nem s emoes, e um homem que no aceitava esse fato no merecia estar ali.

Pelo menos tinha ganhado um tempo precioso ao perseguir a nave; tinha posto outros dez minutos, se no mais, entre ele e a aurora. Logo saberia se esses dez minutos lhe prolongariam a agonia ou dariam a seus companheiros mais tempo para encontr-lo.

Onde estavam? Era certo que j tinham comeado a busca! Esforou os olhos tratando de ver o fulgor da nave, com a esperana de encontrar as dbeis luzes das cpsulas. Mas no se via nada novo na giratria abbada celeste.

Era melhor que utilizasse seus prprios recursos, por exguos que fossem. S restavam uns poucos minutos antes que Prometeu e seus refletores afundassem sob a borda do asteride e o deixassem na escurido. Era certo que a escurido seria muito breve, mas antes que casse sobre ele poderia encontrar algum refgio para se proteger do dia que se aproximava. Esta rocha contra a qual tinha se chocado, por exemplo...

Sim, daria um pouco de sombra, at que o sol estivesse a uma certa altura no cu. Nada poderia proteg-lo se passasse por cima dele, mas possivelmente estivesse em uma latitude onde o sol no subia muito alto sobre o horizonte nessa poca do ano de caro, de quatrocentos e nove dias. Ento poderia sobreviver ao breve perodo de luz diurna; essa era sua nica esperana, se os salvadores no o encontrassem antes do amanhecer.

L desaparecia Prometeu e suas luzes, sob a borda do mundo. Com essa partida, as estrelas resplandeceram com redobrado fulgor. Mais gloriosa que qualquer delas, to formosa que apenas ao olh-la quase se enchiam de lgrimas os olhos, estava ondulante luz da Terra, com sua lua ao lado. Sherrard tinha nascido em uma e caminhado sobre a outra. Voltaria a v-las?

Era estranho que at agora no tivesse pensado na mulher e nos filhos e em tudo o que amava da vida e que agora parecia to longnquo. Sentiu um fugaz espasmo de culpa. Os laos afetivos no estavam debilitados, nem sequer pelos cento e cinqenta milhes de quilmetros que agora o separavam da famlia. Essa distncia no tinha nenhum significado. Ele era agora um animal primitivo e egocntrico que lutava por sua vida e que tinha uma nica arma: o crebro. Neste conflito no havia lugar para o corao; o corao seria um simples estorvo, que lhe danificaria o julgamento e lhe debilitaria a firmeza.

E ento viu algo que desterrou todo pensamento de seu longnquo lar. Sobre o horizonte, s suas costas, estendendo-se entre as estrelas como uma bruma lctea, havia um fraco e espectral cone de fosforescncia. Era o arauto do Sol, o formoso, nacarado espectro da coroa, visvel da Terra s durante os estranhos momentos de eclipse total. Se a coroa ascendia, o Sol no podia estar longe, para castigar essa pequena terra com sua fria.

Sherrard aproveitou o aviso. Agora podia julgar, com certa preciso, o ponto exato onde sairia o sol. Arrastando-se lenta e penosamente sobre os cotos quebrados dos braos metlicos, levou a cpsula at o lado da pedra onde deveria ter a maior sombra. Logo que chegou ali o sol lhe saltou em cima como uma besta de presa, e aquele mundo diminuto explorou em luz.

Sherrard levantou os filtros escuros dentro do casco, uma capa atrs da outra, at que pde suportar o resplendor. Fora da zona coberta pela larga sombra da pedra, era como olhar dentro de um forno. Ao redor, a desumana luz mostrava cada detalhe do terreno; no havia cinzas, s brancos cegadores e negros impenetrveis. Todas as escurecidas gretas e depresses eram atoleiros de tinta, enquanto que o cho mais alto parecia j estar ardendo. E, entretanto, era s um minuto depois da alvorada.

Agora Sherrard podia compreender como o abrasador calor de um bilho dos veres tinha convertido caro em um carvo csmico, cozinhando as rochas at lhes tirar as ltimas borbulhas de gs. Por que, se perguntou amargamente, os homens tinham que viajar atravs do abismo de estrelas, com tanto gasto e risco, para aterrissar em um depsito de lixo giratrio? Pela mesma razo, sabia, que quando lutaram por alcanar o Everest e os plos e os lugares distantes da Terra: a excitao do corpo que era a aventura e a mais duradoura excitao da mente era o descobrimento. A resposta o consolava muito pouco, agora que estava a ponto de ser assado como um animal no giratrio assador de caro.

J sentia o primeiro flego de calor sobre o rosto. A grande pedra contra a qual se apoiava o protegia dos raios diretos do Sol, mas o resplendor que refletiam as chamejantes rochas prximas o golpeava atravs do plstico transparente da cpula. Esse resplendor cresceria rapidamente em intensidade medida que o Sol subisse; tinha menos tempo do que tinha pensado e, ao sab-lo, sentiu uma embotada resignao que estava mais frente do medo. Esperaria at que o amanhecer o envolvesse e a unidade refrigeradora da cpsula se rendesse ante a desigual luta; ento romperia a cpsula e deixaria que o ar sasse para ao vazio espacial.

S podia permanecer sentado e pensar nos minutos que restavam, antes que a sombra se contrasse. No tentou dirigir os pensamentos: deixou-os ir para onde quisessem. Que estranho morrer agora, tudo porque, l na dcada de quarenta, anos antes que ele nascesse, um homem em Monte Pombal encontrou um raio de luz em uma placa fotogrfica e o batizou, apropriadamente, como o moo que voou perto do Sol.

Um dia, pensou, lhe construiriam um monumento nesta plancie calcinada. O que poriam nele? Aqui morreu Colin Sherrard, engenheiro em astronutica, pela causa da Cincia. Isso seria engraado, pois nunca tinha compreendido nem a metade das coisas que os cientistas queriam fazer.

Entretanto, parte da excitao desses descobrimentos lhe tinha chegado. Recordou como os gelogos tinham raspado a chamuscada pele do asteride e, gentilmente, a superfcie metlica debaixo. Essa superfcie estava coberta de curiosas linhas e arranhes, como uma pintura abstrata dos decadentes posteriores a Picasso. Mas essas linhas tinham algum significado; nelas estava escrita a histria de caro, embora s um gelogo pudesse l-la. Revelavam, assim haviam dito a Sherrard, que esse pedao de ferro e rocha no tinha flutuado sempre sozinho no espao. Em um passado remoto tinha sofrido uma enorme presso e isso podia significar somente uma coisa: milhares de milhes de anos antes, tinha sido parte de um corpo muito maior, possivelmente de um planeta como a Terra. Por alguma razo, o planeta explodiu. caro e milhares de asterides mais, eram fragmentos dessa exploso csmica.

Mesmo agora, enquanto se aproximava a linha incandescente de luz solar, emocionava-o esse pensamento. Sherrard estava sobre o ncleo de um mundo, um mundo que possivelmente tinha conhecido a vida. Em uma forma estranha, irracional, consolava-o saber que possivelmente no ia ser o seu o nico fantasma que andaria por caro at o fim dos tempos.

O casco estava empapando; isso anunciava que a unidade refrigeradora estava a ponto de falhar. Tinha trabalhado bem; at agora, embora as rochas a apenas uns poucos metros devessem estar vermelho vivo, o calor dentro da cpsula no era insuportvel. Quando falhasse a refrigerao, tudo seria sbito e catastrfico.

Sherrard estendeu a mo para a alavanca vermelha que arrebataria a presa ao Sol; mas antes de mov-la olhou a Terra pela ltima vez. Baixou os filtros escuros com grande precauo, ajustando-os de modo que desviassem o resplendor das rochas, mas no o impedissem de ver o espao.

As estrelas eram tnues agora, apagadas pelo crescente brilho da coroa. E, aparecendo apenas sobre a rocha, havia uma ponta de chama carmesim, um torcido dedo de fogo que sobressaa da borda do Sol. A Sherrard s restavam segundos.

Ali estava a Terra, ali estava a Lua. Adeus a ambas e aos amigos e seres queridos em cada uma delas. Enquanto olhava o cu, a luz solar tinha comeado a lamber a base da cpsula, e sentiu a primeira pontada de fogo. Em um reflexo to automtico como intil, afastou as pernas, tratando de escapar onda de calor que avanava.

O que era isso? Um brilhante relmpago de luz, imensamente mais luminoso que qualquer estrela, explodiu de repente l em cima. A vrios quilmetros de altura um gigantesco espelho navegava no cu, refletindo a luz solar, enquanto girava lentamente. Isso no podia ser; estava comeando a sofrer alucinaes; era hora de despedir-se. O suor lhe corria pelo corpo e em poucos segundos a cpsula seria um forno.

No esperou mais; acionou o disparador de emergncia com toda a fora que lhe restava, preparando-se para enfrentar o fim.

No aconteceu nada; a alavanca no se movia. Acionou-a uma e outra vez at que compreendeu que estava travada. No havia fcil escapamento, no havia uma morte piedosa enquanto o ar fugia dos pulmes. Foi ento, ao sentir o golpe do verdadeiro terror da situao, que seus nervos cederam e comeou a gritar como um animal preso.

Quando ouviu a voz do Capito McClellan que lhe falava fraco, mas claramente, pensou que era outra alucinao. Entretanto, algum resduo que ficava de disciplina e autocontrole lhe reprimiu os gritos; apertou os dentes e atendeu a essa voz familiar e imperativa.

Sherrard! Resista, homem! Havemos de localiz-lo, mas siga gritando!

Aqui estou! gritou Sherrard. Mas apurem, pelo amor de Deus! Estou me queimando!

Nas profundidades que ficava de sua mente racional, compreendeu o que tinha acontecido. Alguma fraca sombra de sinal escapava das antenas rotas e os que o buscavam tinham ouvido seus gritos do mesmo modo que ele escutava suas vozes. Isso significava que deviam estar muito perto, e saber disso lhe deu novas foras.

Olhou atravs do fumegante plstico da cpula, procurando uma vez mais aquele impossvel espelho no cu. Ali estava outra vez; e agora entendeu que a desconcertante perspectiva do espao lhe tinha enganado os sentidos. O espelho no estava a quilmetros de distncia, nem era enorme. Estava quase em cima dele e se movia rapidamente.

Sherrard ainda estava gritando quando o espelho deslizou diante do sol nascente e sua bendita sombra caiu sobre ele como um vento fresco que soprasse do corao do inverno sobre quilmetros de neve e gelo. Agora que estava to perto, reconheceu-o imediatamente. Era uma grande tela de folha metlica contra a radiao que sem dvida tinham arrebatado apressadamente a um posto de instrumentos. Os amigos tinham estado buscando-o na segurana da sombra dessa tela.

Uma cpsula para trabalhos fortes, de dois lugares, sustentava l em cima o cintilante escudo com um grupo de braos, e estendia outro para ele. Mesmo atravs da empanada cpula e da onda de calor que ainda lhe debilitava os sentidos, reconheceu o rosto ansioso do capito McClellan que o olhava da outra cpsula.

De modo que assim era o nascimento, pois realmente havia tornado a nascer. Estava muito exausto para agradecer, isso viria depois, mas ao afastar-se das rochas ardentes, seus olhos procuraram e encontraram a brilhante estrela da Terra.

Aqui estou disse silenciosamente. De volta.

De volta a desfrutar e apreciar todas as belezas do mundo que tinha acreditado perdido para sempre. No... no todas.

Nunca mais desfrutaria do vero.

Fora do Bero, para sempre em rbita

Antes de comear, queria assinalar algo que muita gente parece ter esquecido. O sculo vinte e um no comea amanh, e sim um ano depois, em 1 de janeiro de 2001. Embora o calendrio marque 2000 desde a meia-noite, ao velho sculo ficam ainda doze meses. A cada cem anos os astrnomos devem voltar a explic-lo. Entretanto, as celebraes comeam logo que aparecem os zeros...

Assim vocs querem conhecer o momento mais memorvel de meus cinqenta anos de explorao espacial... J entrevistaram o Von Braun? Como ele est? Magnfico. No o vi desde que festejamos seu octogsimo aniversrio com um banquete no Astrogrado, na ltima vez que desceu da Lua.

Sim, presenciei alguns dos momentos mais importantes na histria dos vos espaciais, comeando pelo lanamento do primeiro satlite. Eu tinha ento vinte e cinco anos e era um jovem matemtico no Kapustin Yar. No era to importante para estar no centro de controle durante a contagem regressiva. Mas escutei a decolagem: foi o segundo som mais imponente que tenho ouvido em toda minha vida. (O primeiro? J falarei disso logo.) Quando soubemos que estava em rbita, um veterano cientista pediu seu carro e fomos a Stalingrado para festejar. Como vocs sabem, s os grandes personagens tinham automvel no Paraso dos Trabalhadores. Percorremos a distncia de cem quilmetros quase no mesmo tempo que levou o Sputnik para dar uma volta Terra, e isso era ir muito rpido. Algum calculou que a quantidade de vodca consumida no dia seguinte poderia ter impulsionado o satlite que os norte-americanos estavam construindo, mas acredito que exagerou.

A maioria dos livros de histria diz que a Era Espacial comeou ento, em 4 de outubro de 1957; no vou discutir com eles, mas acredito que os momentos mais emocionantes vieram depois. Como acontecimento dramtico impossvel superar a corrida da Marinha americana para pescar o Dimitri Kalinin do Atlntico Sul, antes que sua cpsula afundasse. Logo, aquele comentrio de rdio do Jerry Wingate, com adjetivos que nenhuma cadeia teria se atrevido a censurar, enquanto dava voltas ao redor da Lua e se convertia no primeiro homem que viu o lado oculto. E, obvio, s cinco anos depois, essa emisso televisiva da cabine do Hermann Oberth, quando aterrissou na Baa dos Arco-ris, onde ainda permanece, eterno monumento aos homens enterrados a seu lado.

Aqueles foram os grandes demarcadores no caminho ao espao, mas esto equivocados se acreditarem que vou lhes falar deles; pois o que mais me emocionou foi algo muito, muito diferente. Nem sequer estou seguro de poder compartilhar a experincia e, se o obtenho, vocs no podero fazer uma histria a partir da mesma. Pelo menos no uma nova, j que esteve em todos os peridicos da poca. Mas a maioria desses peridicos errou o enfoque completamente; para eles era bom material com interesse humano, e nada mais.

Aconteceu vinte anos depois do lanamento do Sputnik I e, j ento, com muitas outras pessoas, eu estava na Lua... e era muito importante, ai!, para continuar sendo um verdadeiro cientista. Fazia doze anos que no programava um computador eletrnico; tinha ento uma tarefa um pouco mais difcil: programar seres humanos, pois era Chefe Coordenador do Projeto Are, a primeira expedio tripulada a Marte.

Saamos da Lua, obvio, por causa da baixa gravidade; umas cinquenta vezes mais fcil, em termos de combustvel, se separar dali do que da Terra. Tnhamos pensado construir as naves em uma rbita de satlite, o que teria reduzido mais ainda a necessidade de combustvel. Mas quando a estudamos, a idia no era to boa como tnhamos pensado. No fcil instalar fbricas e oficinas de mquinas no espao; a ausncia de gravidade um problema em vez de uma vantagem, se a gente quiser que as coisas no se movam. Mas ento (fim dos anos setenta), a Primeira Base Lunar estava bem organizada. Tinha um processado qumico e realizava operaes industriais de todo tipo em pequena escala, para produzir as coisas que a colnia necessitava. De modo que decidimos utilizar as instalaes existentes, em lugar de exigir novas no espao, com grandes dificuldades e gastos.

Alfa, Beta e Gamma, as trs naves da expedio, estavam sendo construdas dentro dos muros da Platn, possivelmente a plancie murada mais perfeita deste lado da Lua. Platn uma plancie to grande que, se algum se detiver no meio, no adivinhar nunca o que est no centro de uma cratera; o anel de montanhas se esconde mais frente do horizonte. As cpulas na presso da base estavam a uns dez quilmetros da plataforma de lanamento, conectadas mesma por meio dos funiculares adorados pelos turistas, mas que arruinaram a paisagem lunar.

A poca dos pioneiros foi dura, pois carecamos dos luxos atuais. A Cpula Central, com seu parque e lagos, era ainda um sonho nas mesas de desenho dos arquitetos; e caso existisse, estaramos muito ocupados para desfrut-la, pois o Projeto Are devorava cada momento disponvel. Ia ser o primeiro grande salto do Homem ao espao; j ento ns vamos a Lua como um simples subrbio da Terra, um degrau no caminho a lugares que realmente importavam. Nossas crenas estavam claramente expressas na famosa frase do Tsiolkovsky, que eu tinha pendurado em meu escritrio para que todos a vissem o entrar:

A Terra o bero da mente. Mas no se pode viver no bero para sempre.

(Como? No, claro que no conheci o Tsiolkovsky! Em 1936, quando ele morreu, eu tinha somente quatro anos.)

Assim, depois de meia vida de segredos, era bom poder trabalhar livremente com homens de todas as naes, em um projeto respaldado pelo mundo inteiro. De meus quatro assistentes um era norte-americano, um hindu, um chins, e um russo. Freqentemente nos felicitvamos por escapar Segurana e aos piores excessos do nacionalismo, e embora existisse uma amvel rivalidade entre os cientistas de diferentes pases, isso estimulava o nosso trabalho. s vezes eu me gabava frente visitantes que recordavam as pocas ms do passado: No h segredos na Lua.

Bom,eu estava equivocado; havia um segredo, tinha-o diante do nariz, em meu prprio escritrio. Se no tivesse estado to absorto em todos os detalhes do Projeto Are, possivelmente teria suspeitado de algo. Refletindo depois, obvio, vi todo tipo de pistas e indcios, mas naquele momento no me dava conta.

Notei vagamente, certo, que Jim Hutchins, meu jovem assistente norte-americano, estava cada vez mais abstrado, como se algo o preocupasse. Uma ou duas vezes tive que chamar-lhe a ateno por enganos pequenos; sempre pareceu mortificado e prometeu que no voltaria a acontecer. Era um desses tpicos moos honestos que os Estados Unidos produzem em grande quantidade; geralmente muito de confiana, mas no excepcionalmente brilhantes. Estava na Lua fazia trs anos e foi dos primeiros em trazer sua mulher da Terra quando se levantou a proibio sobre pessoal no essencial. Nunca compreendi como obteve isso; deve ter tido algumas influencia, mas indubitavelmente era a ltima pessoa que se esperaria encontrar no centro de uma conspirao mundial. Disse mundial? No, foi maior, j que se estendeu at a Terra. Dzias de pessoas estiveram envolvidas, incluindo o alto mando da Autoridade Astronutica. Ainda parece um milagre que tenham podido manter o segredo.

O lento amanhecer tinha comeado fazia j dois dias, tempo da Terra, e embora as agudas sombras se cortassem, faltavam ainda cento e vinte horas para o meio-dia. Estvamos preparados para fazer as primeiras provas estticas dos motores de Alfa, pois a planta de energia tinha sido instalada, e a armao da nave estava completa. Ali, na plancie, parecia mais uma refinaria de petrleo meio construda do que uma espaonave; mas ns a achvamos formosa, por sua promessa de futuro. Era um momento de tenso; nunca antes se ps em funcionamento um motor termonuclear de tal tamanho e, apesar de todas as precaues de segurana, nunca se podia estar tranqilo... Se algo sasse mal, poderia atrasar o Projeto Are por anos.

A contagem regressiva j tinha comeado quando Hutchins, um pouco plido, veio correndo.

Devo me apresentar Base imediatamente disse-me. muito importante.

Mais importante que isto? repliquei sarcasticamente, pois estava extremamente aborrecido.

Vacilou um momento, como querendo me contar algo; logo respondeu:

Parece-me que sim.

Muito bem disse, e ele se foi como um relmpago.

Poderia t-lo interrogado, mas a gente precisava ter confiana nos subordinados. Enquanto voltava para o tabuleiro de controle central, mal-humorado, decidi que j estava cansado do temperamental jovem norte-americano, e que pediria sua transferncia. Era estranho: na prova se mostrou to inteligente como os outros, e agora voltava precipitadamente para a Base no funicular. O cilindro do trem j estava a meio caminho da torre de suspenso mais prxima, deslizando pelos cabos quase invisveis, movendo-se por cima da superfcie lunar como um estranho pssaro.

Cinco minutos mais tarde meu humor era ainda pior. Um grupo vital de instrumentos de gravao se decomps repentinamente, e teria que atrasar a prova pelo menos por trs horas. Furioso, percorri o forte dizendo a todo aquele que queria me ouvir (e, obvio, todos tinham que faz-lo) que no Kapustin Yar fazamos as coisas muito melhor. Tinha me acalmado um pouco e j estvamos na segunda rodada de caf, quando os alto-falantes transmitiram o sinal de Ateno Geral. S h um chamado de maior importncia: o lamento dos alarmes de emergncia, que ouvi duas vezes na Colnia Lunar, e espero no ouvir nunca mais.

A voz que ressoava em todos os espaos fechados da Lua e nas rdios de todos os que trabalhavam l fora, nas silenciosas plancies, era a do General Moshe Stein, Presidente da Autoridade Astronutica. (Naquela poca ainda existiam muitos ttulos de cortesia embora j no significassem nada.)

Falo de Genebra disse e tenho que fazer um importante anncio. Durante os ltimos nove meses esteve em marcha um grande experimento. O mantivemos em segredo por causa das pessoas envolvidas e porque no queramos provocar falsas esperanas ou medo. No faz muito, como vocs recordaro, alguns peritos se negavam a acreditar que o homem pudesse sobreviver no espao. Tambm desta vez houve pessimistas; duvidavam que pudssemos levar a cabo o passo seguinte na conquista do Universo. Provamos seu engano, e agora queria lhes apresentar George Jonathan Hutchins, primeiro Cidado do Espao.

Ouviu-se um estalo quando a comunicao passou a outro circuito; logo houve uma pausa cheia de murmrios e rudos vagos. E ento, em toda a Lua e metade da Terra, ouviu-se o som do qual prometi lhes falar: o som mais imponente que j escutei em minha vida.

Era o pranto de um beb recm-nascido: o primeiro menino na histria da Humanidade dado luz fora da Terra. Olhamo-nos no forte subitamente silencioso e logo olhamos as naves que estvamos construindo l fora, na brilhante plancie lunar. Tinham parecido to importantes uns poucos minutos atrs... Ainda o eram; mas no to importantes como o que tinha acontecido no Centro Mdico, e que voltaria a acontecer trilhes de vezes, em incontveis mundos, durante todas as eras por vir.

Pois nesse momento, cavalheiros, soube que o homem realmente tinha conquistado o espao.

Quem est a?

Quando o Satlite de Controle me chamou, eu estava escrevendo o relatrio dos progressos do dia na cpula do Observatrio, aquele escritrio recoberto por uma bolha de cristal, situado no eixo da Estao Espacial, como o cubo de uma roda de carreta. Realmente no era um bom lugar para trabalhar; mas a viso que se tinha dali se apresentava assustadora e impressionante. A alguns poucos metros de distncia podia ver as equipes de construo pondo em prtica seus movimentos, que pareciam realizados em cmara lenta, em uma estranha espcie de bal csmico, enquanto iam erguendo a Estao como se reunissem peas de um quebra-cabeas gigante. E alm de tudo aquilo, a trinta mil quilmetros mais abaixo, o glorioso azul esverdeado da Terra cheia flutuava contra as mirades de estrelas da Via Lctea.

Aqui a Estao Supervisora respondi. H alguma dificuldade?

Nosso radar mostra um pequeno eco a trs quilmetros de distncia, aproximadamente a cinco graus ao oeste da estrela Srio. Pode nos dar um relatrio visual?

Algo que pudesse aproximar-se de nossa rbita com tanta preciso dificilmente podia ser um meteorito; devia ser alguma pea que tinha nos escapado no espao, talvez uma pea sem ser apertada, que ficou deriva. Ao menos eu pensei isso; mas quando lancei mo dos binculos e rebusquei o cu em direo constelao de rion, logo descobri meu engano. Embora aquele viajante do espao fosse feito pela mo do homem, no tinha absolutamente nada que ver conosco.

Encontrei-o respondi ao Controle. Se trata de um satlite de provas em forma de cone, com quatro antenas e o que parece um sistema de lentes na base. Provavelmente foi lanado pelas Foras Areas dos Estados Unidos no princpio dos anos sessenta, a julgar por seu desenho. Sei que perderam a pista de vrios quando seus transmissores falharam. Tentaram vrias vezes conseguir esta rbita, antes de obt-la definitivamente.

Depois de uma breve busca nos arquivos, o Controle pde, com efeito, confirmar minha hiptese. Levou algum tempo mais para saber que Washington no tinha o menor interesse em nosso descobrimento daquele satlite extraviado desde vinte anos, e ao que parecia, tudo indicava que ficariam contentes se o perdssemos de novo.

Bem, no podemos fazer isso disse o Controle. Embora ningum o deseje, essa coisa uma ameaa para a navegao. Algum tem que sair e traz-lo a bordo.

Esse algum, compreendi, tinha que ser eu. No me atrevia a afastar de seu trabalho a nenhum dos homens das equipes de construo, j que estvamos atrasados no programa de trabalho e cada dia de atraso no projeto custava um milho de dlares. Todas as redes de televiso da Terra esperavam, impacientes, o momento em que pudessem canalizar seus programas atravs de nossa Estao Espacial e obter assim o primeiro servio global estendido de Plo a Plo.

Sairei eu mesmo para resgat-lo repliquei finalmente, enquanto punha uma tira elstica nos meus papis, para evitar que as correntes de ar procedentes dos ventiladores os dispersassem no interior da cpula.

Embora o dissesse em um tom que dava a entender que ia fazer-lhes um grande favor, o certo que eu gostava daquele trabalho. J fazia quase duas semanas desde que tinha sado ao exterior pela ltima vez e j estava cansado de fazer informe de manuteno, observaes, clculos, e de arquivar dados e todos aqueles outros ingredientes que fazem a vida tediosa no interior da cpula de um Supervisor em uma Estao Espacial.

O nico membro da tripulao a quem encontrei no caminho foi Tommy, nosso gato recm-adquirido. Um animal domstico significa muito para os homens que se encontram a milhares de quilmetros da Terra; mas no h muitos destes animais que, como o gato, se adapte por si mesmos a um entorno de ausncia de gravidade. Tommy miou suplicante quando comecei a me colocar em meu traje espacial; mas eu tinha muita pressa para me deter e brincar com ele.

Neste momento, possivelmente deva recordar a vocs que os trajes espaciais que utilizamos na Estao so completamente diferentes desses trajes flexveis que o homem utiliza quando tem que andar pela superfcie da Lua. Os nossos, na realidade, so umas diminutas naves espaciais, suficientemente pequenas para conter um s homem em seu interior. So uns cilindros rechonchudos de uns dois metros de comprimento, com foguetes de propulso de baixa potncia e um par de braos em forma de acordeo na parte superior, que coincidem com os do operador. Normalmente, entretanto, a gente mantm as mos no interior e aciona os controles manuais de um pequeno painel de controle altura do peito.

Assim que estive devidamente acondicionado no interior de meu aparelho pessoal, acionei a energia que o punha em marcha e conferi os calibradores do diminuto painel de controle. Existe uma palavra mgica, CORB, que com freqncia vocs ouviro os homens do espao mencionarem quando saltam suas cpsulas, e que recorda sistematicamente a absoluta necessidade de comprovar o combustvel, oxignio, o rdio e as baterias. Todas as agulhas de meu painel de controle estavam situadas na zona de segurana, por isso baixei o transparente hemisfrio sobre minha cabea e me encerrei hermeticamente em seu interior. Para uma curta viagem como aquela, no tinha por que comprovar os compartimentos internos que correntemente se utilizavam para transportar mantimentos, material e equipe em misses de mais longa durao.

Enquanto a cinta transportadora me depositava na cmara de vcuo, senti-me como um menino ndio levado nas costas de sua me, feito um fardo. Depois, as bombas atuaram devidamente, at baixar a presso a zero; abriu-se a comporta exterior e os ltimos vestgios de ar me jogaram para as estrelas, dando voltas ligeiramente sobre mim mesmo.

A Estao se achava s a uns poucos metros de distncia, mas, em que pese tudo isso, eu era um planeta independente... um pequeno mundo formado por mim mesmo. Estava encerrado no interior de um cilindro diminuto e mvel, com a vista mais soberba que se possa conseguir do Universo, mas apenas dispunha virtualmente de alguma liberdade de movimentos no interior da cpsula. O assento acolchoado e o arns de segurana me impediriam de dar voltas de um lado para outro, mas me permitiam alcanar os controles com ajuda de mos e ps.

No espao o grande inimigo o Sol, que pode deixar a qualquer um cego em questo de segundos. Abri com muito cuidado os filtros escuros correspondentes parte noite de minha cpsula e voltei a cabea para olhar as estrelas. Ao mesmo tempo dispus em meu casco o dispositivo automtico de ajuste de luz solar, de tal forma que, embora olhasse para qualquer direo, me achasse defendido daquele intolervel resplendor.

Pouco depois encontrei meu objetivo, um brilhante objeto prateado, cujo brilho metlico o fazia claramente diferente das estrelas que o rodeavam. Pressionei com o p o controle de propulso na direo conveniente e senti a suave acelerao produzida pelos foguetes de baixa potncia que me afastavam da Estao. Depois de uns dez segundos de impulso, estimei que minha velocidade j fosse bastante grande e cortei a propulso. Levaria uns cinco minutos para chegar at meu objetivo e no muito mais para voltar com ele naquela misso de salvamento.

E foi naquele instante em que me lanava ao abismo que me dei conta de que algo ia terrivelmente mal.

Nunca existe um completo silncio no interior de um traje ou uma cpsula espacial; sempre se ouve o suave assobio do oxignio, o fraco zumbir de ventiladores e motores, o sussurro da prpria respirao e, inclusive, escutando com cuidado, os rtmicos batimentos do seu corao. Todos esses sons reverberam atravs da cpsula, incapazes de escapar ao vazio circundante; so em realidade o fundo, do qual no se parece dar-se conta, da vida no espao, j que os notamos quando mudam.

E tinham mudado: a eles se uniu um som que no pude identificar. Era como um roar intermitente e apagado, acompanhado s vezes por um rudo chiado, como se se tratasse da frico de um metal contra outro.

Detive no ato at a minha prpria respirao, tentando localizar auditivamente aquele estranho som. Os calibradores do painel de controle no me proporcionavam a menor pista; todas as agulhas se achavam firmes como uma rocha em suas diferentes escalas e no existia tampouco nenhum piscar de luzes vermelhas, que so as que automaticamente avisam do iminente desastre que possa vir em cima de voc por qualquer circunstncia imprevista. Bem, aquilo me proporcionou certa segurana, embora no muita. J fazia tempo que tinha aprendido a confiar em meus instintos em tais questes; suas luzes de alarme piscaram agora, me dizendo que voltasse para a Estao antes que fosse muito tarde...

Mesmo agora, desgosta-me recordar aqueles minutos que se seguiram, quando o pnico se estendeu por minha mente como uma mar incontida, transbordando os diques da lgica e a razo que todo homem tem que erigir frente ao misterioso Universo. Soube ento o que devia ser encarar a loucura; nenhuma outra explicao se encaixava com os fatos. Porque j se tornava impossvel pretender que o rudo que ouvia correspondesse a qualquer mecanismo que no funcionava corretamente. Embora me achasse em uma total situao de isolamento e longe de qualquer ser humano e, at mesmo, de qualquer objeto material, na realidade no estava sozinho. Aquele vazio onde no existe som estava me levando ao ouvido esse leve, mas inequvoco conjunto de sensaes que so a vida.

Naquele momento capaz de gelar o corao de qualquer um, tive a sensao de que algo tentava penetrar no interior de minha cpsula... algo invisvel que tentava procurar refgio do cruel e espantoso vazio do espao. Girei como um louco no arns de segurana, rebuscando febrilmente em todas as direes do espao, exceto no cone proibido que projeta a destruidora luz do Sol. No havia nada, obvio. No podia hav-lo, mas aquele arranhar misterioso e deliberado se fazia cada vez mais claro e evidente.

A despeito de tudo o que se escreve sobre ns e que considero absurdo, falso que ns, os homens do espao, sejamos supersticiosos. Mas pode reprovar-me o fato de que, tendo esgotado todos os raciocnios da lgica, recordasse repentinamente como tinha morrido Bernie Summers, mesma distncia da Estao que eu me encontrava nesse momento?

Foi um desses acidentes impossveis; sempre o so. Trs coisas tinham ido mal ao mesmo tempo: O regulador de oxignio do Bernie se danificou e aumentou a presso; a vlvula de segurana tinha falhado em expulsar o ar excedente... e uma junta cedeu. Em uma frao de segundo, seu traje ficou aberto ao vazio.

Nunca cheguei a conhecer Bernie; mas, de repente, seu destino se converteu em algo assustador para mim... j que uma horrvel ideia acabava de penetrar em minha mente. No se fala sobre essas coisas; mas uma cpsula espacial muito valiosa para se desprezada, mesmo que tenha matado o seu portador. Repara-se, volta a numerar-se... e se utiliza de novo como outra qualquer, em perfeitas condies.

O que ocorre com a alma de um homem que morre entre as estrelas, longe de seu mundo natal? Est a ainda, Bernie, preso ltima coisa que o liga a seu perdido e distante lar?

Enquanto lutava contra os pesadelos que me assaltavam em alguma parte, j que naquela hora parecia que os arranhes e os misteriosos rudos provinham de todas as direes, apareceu uma ltima esperana a qual me aferrei com desespero. Pelo bem de minha sade mental, tinha que provar que aquele no podia ser o traje espacial do Bernie, que aquelas paredes metlicas que me rodeavam to de perto no tinham sido nunca o atade de outro homem.

Tive que fazer vrias tentativas antes de poder pressionar o boto adequado e conectar a freqncia de emergncia.

Estao! chamei ofegante. Estou em graves dificuldades! Consigam imediatamente os registros relativos minha cpsula Y...!

Nunca acabei de transmitir o que desejava; disseram-me depois que meu grito tinha quebrado o microfone. Mas... que homem, sozinho no completo isolamento de um equipamento espacial, no teria gritado quando algo lhe roou brandamente a nuca?

Sem dvida devo ter me lanado para diante em um movimento desesperado, preso ao arns de segurana, indo dar com a cabea na parte superior do painel de controle. Quando a equipe de salvamento me alcanou uns poucos minutos depois, ainda estava sem sentidos, com uma ampla ferida na frente.

E devido a isso, resultou que eu fui a ltima pessoa em toda a imensa Estao Espacial que se inteirou do que tinha acontecido. Quando voltei para a realidade, horas mais tarde, todos os mdicos de bordo estavam reunidos junto minha cama, mas passou um bom momento antes que os doutores se incomodassem em olhar para mim. Estavam muito mais interessados brincando com os trs pequenos gatos que nosso mal chamado Tommy tinha tido a brincadeira de criar no tranqilo esconderijo que representava o pequeno espao superior traseiro de minha cpsula nmero cinco.

dio

S Joey estava acordado sobre a coberta, na fresca quietude antes da alvorada, quando o meteoro cruzou o cu de Nova Guin, envolto em chamas. Olhou como subia pelo firmamento at que passou diretamente por cima, seguindo as estrelas e arrojando sombras velozes sobre a abarrotada coberta. A luz spera delineou os nus arranjos, as cordas enroladas cordas e os tubos de ar, os cascos de cobre para mergulhar, prontamente acomodados para a noite... at a ilha de pinheiros a meia milha de distncia. Ao afastar-se para o sudoeste, sobre a vacuidade do Pacfico, comeou a desintegrar-se. Estalou em glbulos incandescentes que arderam, deixando um rastro de fogo atravs de um quarto de cu. J se apagava quando desapareceu da vista, mas Joey no viu o fim.

Ardendo furiosamente, o meteoro afundou no horizonte, como se quisesse lanar-se contra a cara do sol j oculto.

Se a cena era espetacular, o silncio, em troca, era enervante. Joey esperou e esperou e esperou, mas nenhum som chegou do cu. Quando, minutos mais tarde, escutou um sbito chapinho no mar, perto dele, teve um involuntrio sobressalto. Logo se amaldioou por assustar-se de um peixe raia. (Um peixe enorme, sem embargo, para fazer tanto rudo quando saltava.) No ouviu mais rudos e logo voltou a dormir.

No estreito beliche, popa do compressor de ar, Tibor no escutou nada. Dormia to profundamente logo depois da jornada de trabalho que quase no ficavam energias para os sonhos; e quando os sonhos vinham no eram os que ele queria. Nas horas de escurido sua mente dava voltas no passado e nunca descansava entre lembranas do desejo. Tinha mulheres no Sidney e Brisbane e Darwin e a Ilha Quinta-feira, mas em sonhos nenhuma. Tudo o que recordava ao despertar, na ftida quietude da cabine, eram o p e o fogo e o sangue quando os tanques russos entraram em Budapest. Seus sonhos no eram de amor, eram somente de dio.

Quando Nick o sacudiu para despert-lo, estava se esquivando aos guardas da fronteira austraca. Demorou alguns segundos para percorrer dezesseis mil quilmetros at a Grande Barreira de Recifes; logo bocejou, apartou a patadas as baratas que lhe roavam os ps e desceu do beliche.

O caf da manh, obvio, era o mesmo de sempre: arroz, ovos de tartaruga e carne enlatada, tudo baixado com ch forte e adocicado. A nica virtude da cozinha de Joey era a abundncia. Tibor estava acostumado dieta montona; quando retornava a terra se ressarcia dessa e de outras privaes.

Logo o sol aparecia no horizonte quando j os pratos estavam empilhados no pequeno fogo e o lugre ficou em movimento. Nick parecia alegre quando tomou o leme e se afastaram da ilha; o velho pescador de prolas tinha todo o direito a est-lo, pois a zona em que trabalhavam era a mais rica que Tibor j tinha visto. Com sorte encheriam a adega em um ou dois dias, e navegariam de retorno Ilha Quinta-feira com meia tonelada de valvas a bordo. E logo, com um pouco mais de sorte, poderia abandonar esse pestilento e perigoso trabalho para voltar para a civilizao. No que se lamentasse; o grego o tinha tratado bem, e havia encontrado algumas pedras boas ao abrir as valvas. Mas agora compreendia, logo depois de nove meses nos Recifes, por que o nmero de mergulhadores brancos podia contar-se com os dedos de uma mo. Os japoneses, os havaianos e os ilhus, podiam suport-lo; mas no os europeus.

O motor diesel tossiu, calou, e o Arafura se deteve. Estavam a umas duas milhas da ilha, que se estendia verde e chata sobre a gua, embora bruscamente delimitada pela estreita franja de praia deslumbrante. No constitua mais que uma annima faixa rodeada de um bosquezinho, e seus nicos habitantes eram mirades de estpidos pajarracos, que perfuravam o cho brando e enchiam a noite de espanto com seus rudos agoureiros.

Falou-se pouco enquanto os trs mergulhadores se vestiam; cada homem sabia o que tinha que fazer e no perdia tempo. Enquanto Tibor abotoava a grossa jaqueta de sarja, Branco, seu ajudante, lavou a placa de revestimento com vinagre, para que no se nublasse. Logo Tibor subiu escada de corda, enquanto lhe colocavam a pesado escafandro e o corselete de chumbo sobre a cabea. Alm da jaqueta, que distribua o peso em forma uniforme sobre seus ombros, levava as roupas de sempre. Nessas guas temperadas no eram necessrios os trajes de borracha, e o escafandro atuava como um minsculo sino de mergulhador, mantido em posio to somente por seu peso. Em uma emergncia, o portador podia (se tinha sorte) mergulhar-se fora da mesma e nadar de retorno para a superfcie, sem estorvos. Tibor tinha visto como se fazia e no tinha desejo algum de levar a cabo o experimento.

Cada vez que chegava ao ltimo degrau da escada, aferrando a bolsa de coleta com uma mo e a linha de segurana com a outra, o mesmo pensamento atravessava a mente de Tibor. Deixava o mundo que conhecia, mas era por uma hora ou era para sempre? L embaixo, no fundo do mar, estava a riqueza e a morte, e no se podia estar seguro de nenhuma. Era provvel que este fosse outro dia fatigante e sem peripcias, como quase todos os dias na vida rotineira do mergulhador de prolas. Mas Tibor viu morrer um de seus companheiros, quando o tubo de ar se enredou na escora do Arafura, e presenciou a agonia de outro cujo corpo se retorceu com cibras. No mar, nada era jamais seguro ou certo. Aceitavam-se os riscos com olhos abertos; se se perdia, servia lamentar-se?

Separou-se da escada e o mundo de sol e cu deixou de existir. Desequilibrado pelo peso de seu escafandro, devia pedalar furiosamente para trs, para manter o corpo em posio vertical. S via uma vaga bruma azul enquanto afundava-se e esperou que Branco no largasse muito rapidamente a linha de segurana. Tragando e soprando, tratou de clarear os ouvidos ao aumentar a presso; o direito estalou logo, mas uma penetrante e intolervel dor cresceu rapidamente no esquerdo, que o tinha incomodado durante vrios dias.

Trabalhosamente levou uma de suas mos debaixo do casco, apertou o nariz e soprou com toda sua fora. Houve uma sbita e silenciosa exploso em algum lugar dentro de sua cabea e a dor desapareceu instantaneamente. No teria mais problemas durante essa imerso.

Tibor sentiu o fundo antes de v-lo. Como no podia inclinar-se, a menos que se arriscasse a alagar o casco aberto, sua viso para baixo era muito limitada. Podia olhar ao redor, mas no abaixo. O que viu era tranqilizador em sua debulhada monotonia: uma plancie lamacenta brandamente ondulada, que desaparecia da vista a uns trs metros de distncia. Um metro a sua esquerda, um peixe diminuto mordiscava uma parte de coral do tamanho e a forma de um leque de mulher. Isso era tudo; ali no havia beleza, nem pas encantado submarino. Mas havia dinheiro, e isso era tudo o que importava.

A linha de segurana deu um suave puxo e o lugre comeou a deslizar para baixo, movendo-se de flanco sobre o terreno. Tibor caminhou para frente, com o passo saltitante e lento ao que o obrigavam a falta de gravidade e a resistncia da gua.

Como mergulhador Nmero Dois, trabalhava da proa; no meio do navio estava Stephen, ainda comparativamente inexperiente, enquanto que na popa estava o mergulhador principal, Billy. Os trs homens raras vezes se viam durante o trabalho; cada um tinha sua prpria zona de busca, enquanto o Arafura deslizava silenciosamente frente ao vento. S nos extremos de seus ziguezagues podiam alguma vez vislumbrar-se uns aos outros: formas imprecisas que apareciam na bruma.

Necessitava-se um olho treinado para distinguir as ostras sob sua camuflagem de algas e de ervas, mas freqentemente os moluscos se traam. Quando sentiam as vibraes do mergulhador que se aproximava, fechavam-se com um estalo, e havia um momentneo e nacarino bato de asas na escurido. Mas ainda assim escapavam algumas vezes, pois o navio, ao mover-se, arrastava ao mergulhador antes que este pudesse recolher o prmio, que lhe escapava por centmetros. Nos primeiros dias de aprendizagem, Tibor perdeu vrios dos grandes lbios chapeados e qualquer um deles podia conter alguma prola fabulosa. Ou imaginou isso, antes que se desvanecesse o feitio da profisso, e compreendesse que as prolas eram to estranhas que mais valia esquec-las. A pedra mais valiosa que subiu foi vendida por cinqenta e seis dlares e as ostras que juntava durante uma boa amanh valiam muito mais que isso. Se a indstria dependesse das gemas e no das madreprolas, teria quebrado anos atrs.

No havia sentido do tempo nesse mundo brumoso. Caminhava-se sob o invisvel casco de navio deriva, com o batimento do corao do compressor de ar golpeando nos ouvidos, a nvoa esverdeada movendo-se ante os olhos. A compridos intervalos encontrava-se uma ostra, a arrancava do fundo marinho e a guardava na bolsa. Com sorte podia-se juntar um par de dzias em cada passagem.

Estava-se alerta ao perigo, mas no preocupado com ele. Os riscos reais eram coisas simples, nada espetaculares, como tubos de ar ou linhas de segurana enredadas; no o eram os tubares, os meros, nem os polvos. Os tubares corriam ao ver as borbulhas de ar e, em todas suas horas de mergulho, Tibor viu s um polvo. Quanto aos meros, bom, esses sim eram de inspirar cuidado, pois podiam tragar um mergulhador de um bocado, se estivessem famintos. Mas havia poucas probabilidades de encontr-los nessa plancie plana e desolada; no havia cavernas de coral como as que acostumavam habitar.

O susto no teria sido to grande, portanto, se essa cinzenta uniformidade no o tivesse adormecido em um sentimento de tranqilidade. Em certo momento se viu caminhando para uma inalcanvel parede de nvoa que retrocedia medida que ele se aproximava. E ento, sem aviso, seu pesadelo privado o envolveu.

Tibor odiava as aranhas, e havia uma criatura marinha que parecia engenhar deliberadamente para aproveitar-se dessa fobia. Nunca tinha encontrado uma e sua mente sempre afastou o pensamento de um encontro, mas Tibor sabia que o caranguejo marinho japons pode abranger trs metros de ponta a ponta entre suas largas patas. Que fosse inofensivo no importava absolutamente; uma aranha to grande como um homem no tinha direito a existir.

Logo que viu surgir a caixa de finas patas articuladas, vinda do mundo cinzento que o rodeava, Tibor comeou a gritar com terror incontrolvel. No recordava ter atirado da linha de segurana, mas Branco reagiu com a instantnea percepo do ajudante ideal. Com seus gritos ainda ressonando no escafandro, Tibor se sentiu arrebatado do fundo do mar, levantado para a luz e o ar... e a prudncia. Ao subir, viu o absurdo de seu engano, e recuperou um pouco o domnio de si mesmo. Mas quando Branco lhe levantou o casco, ainda tremia to violentamente que transcorreu algum tempo antes que pudesse falar.

Que demnios se passa ali embaixo? perguntou Nick. Todo mundo abandona o trabalho cedo?

Ento Tibor compreendeu que no foi o primeiro a subir. Stephen estava sentado no meio do navio, fumando um cigarro e com um aspecto de total indiferena. O mergulhador de popa, indubitavelmente sem saber que acontecia, estava sendo iado por seu ajudante, pois o Arafura se deteve e todas as operaes foram suspensas at que se resolvesse o problema.

H algum tipo de naufrgio ali abaixo disse Tibor. Tropecei com ele. Tudo o que pude ver foi um monto de arames e varinhas.

Para sua irritao e desagrado, a lembrana o fez estremecer de novo.

No vejo por que isso deveria te fazer tremer grunhiu Nick.

Tampouco o via Tibor; ali na coberta alagada de sol era impossvel explicar como uma forma inofensiva vislumbrada atravs da bruma poderia aterrorizar a mente.

Quase me enredei com ele mentiu. Branco me iou bem a tempo.

Hum disse Nick, obviamente no convencido. De todo modo no um navio. Fez um gesto para o mergulhador do meio da nave. Steve se encontrou com uma confuso de cordas e tecido, como nylon grosso, diz. Sonha como algum tipo de pra-quedas. O velho grego olhou com desgosto o empapado resto de seu charuto e logo o atirou pela amurada. Assim que Billy subir, baixaremos a ver. Pode valer algo; recorda o que aconteceu ao Jo Chambers.

Tibor recordou. A histria era famosa ao longo de toda a Grande Barreira de Recifes. Jo era um pescador solitrio que nos ltimos meses da guerra encontrou um DC-3 em guas pouco profundas, a poucas milhas da costa de Queensland. Logo depois de prodgios de salvamento, sem ajuda, conseguiu romper a fuselagem, e comeou a descarregar caixas de ferramentas e matrizes, perfeitamente protegidas por seus envoltrios engordurados. Durante um tempo esteve metido em um florescente negcio de importao, mas quando a polcia o apanhou, revelou de m vontade sua fonte de provises. Os policiais australianos podem ser muito persuasivos.

E foi ento, logo depois de semanas e semanas de exaustivo trabalho submarino, que Jo descobriu o que seu DC-3 tinha transportado. Alm das ferramentas, que ele esteve vendendo por umas miserveis centenas de dlares a garagens e oficinas, as grandes caixas que nunca chegou a abrir continham o pagamento de uma semana para as foras dos Estados Unidos no Pacfico. A maior parte em peas de ouro de vinte dlares.

Aqui no havia tanta sorte, pensou Tibor ao afundar novamente; mas o avio, ou o que fosse, podia conter instrumentos valiosos, e podia existir uma recompensa por seu descobrimento. Alm disso, devia isso a si mesmo; queria ver exatamente que foi o que tanto o assustou.

Dez minutos mais tarde soube que no era um avio. Tinha outra forma, e era muito pequeno: s uns seis metros de comprimento e a metade de largura. Aqui e ali, no corpo brandamente cnico, havia escotilhas de acesso e diminutas frestas, atravs das quais instrumentos desconhecidos espiavam o mundo. Parecia intacto, embora um extremo tenha se fundido, provavelmente em conseqncia de um terrvel calor. Do outro, brotava um matagal de antenas, todas quebradas ou dobradas pelo impacto com a gua. Ainda agora tinham uma incrvel semelhana com as patas de um inseto gigantesco.

Tibor no era tolo; imediatamente adivinhou o que era. S ficava um problema, e resolveu com facilidade. Embora parcialmente chamuscadas pelo calor, ainda podiam ler-se algumas palavras marcadas nas escotilhas. As letras eram cirlicas e Tibor sabia suficiente russo para compreender referncias a reposies eltricas e sistemas de pressurizao.

De modo que perderam um sputnik disse com satisfao.

Podia imaginar o acontecido: a coisa descendo muito velozmente e no lugar equivocado. Ao redor de um extremo estavam os restos andrajosos das bolsas de flutuao; tinham estalado com o impacto e o veculo afundou como uma pedra. A tripulao do Arafura deveria desculpar-se com o Joey; no tinha estado tomando grog. O que tinha visto flamejando entre as estrelas tinha que ter sido o leva-foguetes, separado de sua carga e caindo desenfreadamente na atmosfera terrestre.

Durante longo tempo Tibor andou pelo fundo, escondido, os joelhos dobrados, enquanto olhava essa criatura espacial apanhada agora em um elemento estranho. Sua mente estava cheia de planos meio cristalizados. J no lhe importava o dinheiro do salvamento; muito mais importante era o projeto de vingana. Aqui estava uma das mais arrogantes criaes da tecnologia sovitica. E Szabo Tibor, de Budapest, era o nico homem no mundo que sabia.

Tinha que existir alguma forma de explorar a situao, de fazer mal ao pas e causa que agora odiava com to furiosa intensidade. Nas horas de viglia raras vezes ficava consciente desse dio, e menos ainda se detinha para analisar a causa real.

Aqui, neste solitrio mundo de mar e cu, de fumegantes pntanos de mangues e deslumbrantes costas de coral, nada tinha que lhe recordasse o passado. Mesmo assim nunca podia escapar dele e algumas vezes os demnios da mente despertavam e o jogavam em uma destruitividade viciosa e desenfreada. At agora fora afortunado; no tinha matado ningum. Mas algum dia...

Um ansioso puxo de Branco lhe interrompeu os sonhos de vingana. Enviou um sinal tranquilizador ao ajudante, e comeou um cuidadoso exame da cpsula. Quanto pesava? Poderia ser iada com facilidade? Hav