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Cultura Cultura Jornal Angolano de Artes e Letras 13 a 26 de Fevereiro de 2018 | Nº 154 | Ano VI • Director: José Luís Mendonça • Kz 50,00 Quem escutar "Stimela (Coal Train)", de Hugh Masekela, que faz referência ao trem que transportou os mineiros de Joanesburgo compreenderá porque essa melodia antecede e sinaliza a chegada de uma nova música-mundo. Nos acordes dessa música perpassam o fogo e o ritmo do ngoma, e o jazz submete-se à trepida- ção da sua pele. ARTES VAN "NO CENTRO DA QUESTÃO" Logo na primeira semana do mês de Fevereiro, fomos brutalmente confrontados com o prematuro desapa- recimento físico de um dos grandes pilares da plastici- dade angolana, o mestre Augusto Ferreira de Andrade. Desde muito jovem, Augusto Ferreira desenvolveu as suas habilidades artísticas. As suas obras pictóricas denunciam, em grande medida, a “presença” perene do grande mestre Neves e Sousa, cuja com- posição, sobretudo geomé- trica, resvala para a corrente cubista, escola e tendência aliadas às inova- ções dinâmicas de autores como Pablo Picasso. REQUIEM PARA AUGUSTO FERREIRA ARTES AS NOSSAS TRADIÇÕES VIERAM NAS CARAVELAS? ECO DE ANGOLA Os nossos Valores são construídos, alicerçados nas nossas Tradições ou nas Tradições dos Outros? A saudação à chegada de gémeos, contada por Óscar Ribas, é feitiço ou um ritual religioso? DIÁLOGO INTERCULTURAL HUGH MASEKELA JAZZ TREPIDANTE NA PELE DO NGOMA Pág. 7 Pág. 8 Págs. 13 e 14 Págs. 3 e 4

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CulturaCulturaJornal Angolano de Artes e Letras13 a 26 de Fevereiro de 2018 | Nº 154 | Ano VI • Director: José Luís Mendonça • Kz 50,00

Quem escutar "Stimela (Coal Train)", de Hugh Masekela, que faz referência ao trem que transportou os mineiros de

Joanesburgo compreenderá porque essa melodia antecede e sinaliza a chegada de

uma nova música-mundo. Nos acordes dessa música perpassam o fogo e o ritmo do ngoma, e o jazz submete-se à trepida-

ção da sua pele.

ARTES

VAN"NO CENTRO

DA QUESTÃO"

Logo na primeira semana do mês de Fevereiro, fomos brutalmente confrontados com o prematuro desapa-

recimento físico de um dos grandes pilares da plastici-

dade angolana, o mestre Augusto Ferreira de

Andrade. Desde muito jovem, Augusto Ferreira

desenvolveu as suas habilidades artísticas. As

suas obras pictóricas denunciam, em grande

medida, a “presença” perene do grande mestre Neves e Sousa, cuja com-

posição, sobretudo geomé-trica, resvala para a

corrente cubista, escola e tendência aliadas às inova-ções dinâmicas de autores

como Pablo Picasso.

REQUIEM PARAAUGUSTO FERREIRA

ARTES

AS NOSSAS TRADIÇÕES

VIERAM NAS CARAVELAS?

ECO DE ANGOLA

Os nossos Valores são construídos, alicerçados nas nossas Tradições ou nas Tradições dos Outros?

A saudação à chegada de gémeos, contada por Óscar Ribas, é feitiço ou um ritual religioso?

DIÁLOGO INTERCULTURAL

HUGH MASEKELA JAZZ TREPIDANTE NA PELE DO NGOMA

Pág.7

Pág.8

Págs.13 e 14

Págs.3 e 4

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2 | ARTE POÉTICA 13 a 26 de Fevereiro de 2018 | Cultura

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O jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e re-censões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais.Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação aojornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmosartigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribui-ções serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serãocomunicados aos autores.

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MAMÁ NEGRA (Canto de esperança, à memória do poeta haitiano Jacques Roumain)Tua presença, minha Mãe - drama vivo duma Raça,Drama de carne e sangueQue a Vida escreveu com a pena dos séculos! Pela tua vozVozes vindas dos canaviais dos arrozais dos cafezais[dos seringais dos algodoais!...Vozes das plantações de Virgíniados campos das CarolinasAlabamaCubaBrasil...Vozes dos engenhos dos bangüês das tongas dos eitos[das pampas das minas! Vozes de Harlem Hill District Southvozes das sanzalas!Vozes gemendo blues, subindo do Mississipi, ecoando[dos vagões!Vozes chorando na voz de Corrothers:Lord God, what will have we done- Vozes de toda América! Vozes de toda África!Voz de todas as vozes, na voz altiva de LangstonNa bela voz de Guillén...Pelo teu dorsoRebrilhantes dorsos aso sóis mais fortes do mundo!Rebrilhantes dorsos, fecundando com sangue, com suor[amaciando as mais ricas terras do mundo!Rebrilhantes dorsos (ai, a cor desses dorsos...)Rebrilhantes dorsos torcidos no "tronco", pendentes da[forca, caídos por Lynch!Rebrilhantes dorsos (Ah, como brilham esses dorsos!)ressuscitados em Zumbi, em Toussaint alevantados!Rebrilhantes dorsos...brilhem, brilhem, batedores de jazzrebentem, rebentem, grilhetas da Almaevade-te, ó Alma, nas asas da Música!...do brilho do Sol, do Sol fecundoimortale belo...Pelo teu regaço, minha Mãe,Outras gentes embaladasà voz da ternura ninadasdo teu leite alimentadasde bondade e poesiade música ritmo e graça...santos poetas e sábios...Outras gentes... não teus filhos,que estes nascendo alimáriassemoventes, coisas várias,mais são filhos da desgraça:a enxada é o seu brinquedotrabalho escravo - folguedo...Pelos teus olhos, minha MãeVejo oceanos de dorClaridades de sol-posto, paisagensRoxas paisagensDramas de Cam e Jafé...Mas vejo (Oh! se vejo!...)mas vejo também que a luz roubada aos teus[olhos, ora esplendedemoniacamente tentadora - como a Certeza...cintilantemente firme - como a Esperança...em nós outros, teus filhos,gerando, formando, anunciando -o dia da humanidadeO DIA DA HUMANIDADE!...

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CONSELHO EDITORIAL

Director e Editor-chefe:José Luís MendonçaEditores:Adriano de Melo e Gaspar MicoloSecretária:Ilda RosaFotografia:Paulino Damião (Cinquenta)Arte e Paginação: Jorge de Sousa,Alberto Bumba e Sócrates SimónsEdição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:

Angola: Eugénia Kossi, Hamilton Venokania, Antóniodos Santos, António Fonseca e Lito Silva

Cabo Verde: Domingos Landim de Barros

Ucrânia: Clarice Lipsector

FONTES DE INFORMAÇÃO GLOBAL:

AFREAKAAFRICULTURES, Portal e revista de referênciaAGULHACORREIO DA UNESCOMODO DE USAR & CO. OBVIOUS MAGAZINE

POEMA DE VIRIATO DA CRUZ

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DIÁLOGOSEm a Cultura nº 151, Eugénia Kossirevisita uma prática ancestral so-bre dirimir conflitos entre osakongo repondo o diálogo em linha comas mais antigas tradições bantu. O temadeste texto de Kossi questiona a justezado conflito que põe em campos opostoso modernismo e a tradição. Este tema érecorrente nas páginas desta nossa re-vista e permito-me citar alguns númerosmais recentes para vê-lo ser abordadodas maneiras mais diversas: No nº 137,pp 11-12, em entrevista de José RivairMacedo dada a Paulo Henrique Pompa-meier da Cult, a propósito do Pensamen-to Africano no séc. XX somos alertadospara as reservas com que devemos olharo conhecimento produzido pelo Ociden-te sobre África pois ele é marcado pelapredação; no nº 142, pp 3-6, VictorChongolola num texto sobre multicultu-ralidade levanta a questão da descon-fiança da cultura dominante em relaçãoàs culturas das minorias que de certomodo edita, dum modo travestido, oconflito referido por Kossi; No nº 148, pp4-6, Fátima Viegas discorre, num textointitulado A Intolerância Religiosa En-quanto Processo de Destruição do Ou-tro, remetendo-nos para vários momen-tos do pensamento Ocidental começan-do pela Carta Acerca da Tolerância deJonh Locke de 1689. Não me parece queo pensamento europeu teve uma epifa-nia e “inventou” a Tolerância. Aconteceque a expansão do Ocidente no séc. XVI,sécu-lo dominado pela problemática doEncontro, do Contacto e da Comunica-ção, começou a ter de reconsiderar asideias fabulosas que tinha do Outro, e oHumanismo, revigorado pelo Renasci-mento, deu voz a uma classe mercantilempreendedora que se não contentavacom as fantasias delirantes dum mundotemeroso do desconhecido proposto pe-la inteligentsia Medieval. O pensamentoOciden-tal começou a olhar para o Outrosem as lentes destorcidas da superiori-dade nem os preconceitos do exotismo oque justificou e continua a justificar a re-ciclagem de conceitos alicerçados em“divinas verdades absolutas”. Mas voltando mais directamente ao

tema abordado pela Kossi sou levadoa esta pergunta: o que fazer às nossastradições? Ou melhor, as nossas tradi-ções servem para alguma coisa ou sãosimples matéria de museu? Neste nos-so mundo mais pobre após o passa-mento da voz autorizada e serena deSouindoula seremos suficientementeavisados para pegar nesta bandeira?

AS TRADIÇÕES, QUE TRADIÇÕES?Quando oiço falar de resgate de va-lores ocorrem-me duas coisas, por umlado, que valores e por outro, as se-guintes palavras de Kizerbo: «A me-nos que optássemos pela inconsciên-cia e pela aliena-ção, não poderíamosviver sem memória ou com a memóriado outro» (KI-ZERBO; 2010, p XXIII).Juntando as duas coisas pergunto-me então: 1. Os nossos valores são construí-dos, alicerçados, nas nossas tradiçõesou nas tradições dos outros?2. Foram as caravelas que nos trou-xeram as nossas tradições?Acho que a resposta a estas duasquestões será um exercício interes-sante e propiciador de muito contra-ditório fecundo numa altura em que oparadigma do interrelacionamentodas nações mudou, hoje é impensávelpensar em desenvolvimento sem pen-

sar em desenvolvimento sustentávelcuja permissa é a participação das co-munidades sendo elas próprias e nãoaquilo que os peritos interna-cionais(os MIT, os consultores) esperam queelas sejam, isto é, as comunidades afri-canas têm de querer ser africanas enão uma imitação dum modelo «poli-ticamente correcto».

Para começar, talvez desfazer umequívoco que, ao ler o que está atrás,me parece poder surgir com a palavradesenvolvimento. Desfazer não digomas questionar para que não hajaequívocos:«O que é que falar de tradições tema ver com desenvolvimento?» «E porque é que tradição tem de servisto como imobilismo?»«Será que há alguma impossibilidadeda tradição se adaptar aos desafios quea modernidade põe a cada momento?»MAS FALEMOS MAIS CONCRETAMENTE DA TRADIÇÃO PRÁTICA O texto da Kossi, a que já fiz referên-cia, trouxe-me à lembrança um episó-dio a que assisti há dias numa dasmbala do Municípo da Quilenda e quenada de extraordinário tem, porquecomum, mas que de repente ganha

uma significativa importância. Aquilo a que assisti foi o exercíciomilenar da democracia participativaperfeitamente vulgar e comum nas co-munidades que resolvem os seus con-flitos à luz da Tradição.Foi assim:Numa determinda mbala (que nãovou identificar, como é óbvio) o Sobatem andado muito atarefado a tratardos seus negócios descurando os seusconcidadãos. Acontece que os seus fi-lhos (o povo da comunidade de que eleé soba) quando têm problemas cujaresolução faz parte da competência doSoba raras vezes o encontram, anda atratar dos seus negócios. Fartos desta situação colocaram ocaso ao Soba Grande, Soba da Mbanza. Num destes fins de semana assistiao julgamento do caso. No sábado, desde as primeiras ho-ras da manhã o povo reuniu-se à voltada mesa presidida pelo Soba Grandecom os seus conselheiros. Homensdum lado, mulheres de outro e crian-ças por lá também andavam.Durante todo o dia foram apresen-tadas as razões que fundamentavam anecessidade da intervenção do SobaGrande para ser reposta a ordem jul-gada subvertida pelo comportamento,tido como irregu-lar, do Soba.Depois de todos os interessados te-rem falado o Soba Grande deu a pala-vra ao Soba cujo comporta-mento es-tava a ser avaliado. Como ele estava ausente aguardou-se até ao fim do dia.No fim do dia o julgamento acabousem a defesa do próprio pelo que o So-ba Grande transferiu a decisão paradepois de ouvir o que o mesmo teria adizer em sua defesa.Já voltei à dita mbala que também játem um novo Soba pois o outro foi des-tituído por não satisfazer as necessi-dades dos seus filhos e as razões queterá invocado não procederem.A TRADIÇÃO É TEMA DE FICÇÃO LITERÁRIA OU FONTE DE VALORES?A prática da literatura escrita afri-cana é finalística, isto é, é uma literatu-

ECO DE ANGOLA |3Cultura | 13 a 26 de Fevereiro de 2018

Eugénia Kossi Pedro Ângelo

AS NOSSAS TRADIÇÕES VIERAM NAS CARAVELAS?

Falar de Tradições normalmente remete o assunto para questões distantes de Valorespor-que supõe-se que as tradições em África estão mais perto de feitiço do que outra coisa.Alguns de nós, vencendo algum pudor envergonhado, ainda vão colhendo aqui e ali Tradi-ções para as arrumar em Museus e fazem-no resguardados pela umbrela idónea da Ciên-cia (com quem ninguém se mete).

Mas eu pergunto:– Os nossos Valores são construídos alicerçados nas nossas Tradições ou nas Tradições

dos Outros?– A saudação à chegada de gémeos, contada por Óscar Ribas, é feitiço ou um ritual reli-

gioso?– O Lobolo, tal como nos fala Paulina Chiziane, é uma cerimónia social religiosa ou um

negócio que não paga impostos?"16. Quanto às cidades daqueles povos cuja possessão te dá o Senhor, teu Deus, não deixarás nelas alma viva."Deuteronómio, 20 - Bíblia Católica Online

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4 | ECO DE ANGOLA 13 a 26 de Fevereiro de 2018 | Culturara comprometida com a fixação e defe-sa dos valores próprios da comunida-de que a engendra. Este comprometi-mento resulta da passagem do teste-munho transportado pela literaturaoral usada como opção dos povos Ban-tu para guardar e transmitir de gera-ção em geração os elementos mais im-portantes da sua memória colectiva.E se atrás referimos (o texto de Kos-ssi em Cultura nº 151 e a breve notíciasobre o julgamento do Soba por mimpresenciado) práticas não escritas masde grande longevidade e que se vãoperpe-tuando nas nossas sociedadesmais tradicionais também o tema, istoé, a sabedoria exercitada pela tradição,tem vindo a ser tratado com a mesmaurgência, para que se não percam valo-res ancestrais, por alguns dos escrito-res africanos que mais de perto de nóse em português nos falam. É assim queme sinto levado a ouvir a voz de PaulinaChiziane, de Moçambique, escritoraque ganhou em 2003 o Prémio JoséCraveirinha de Literatura, que numaentrevista, em 2014, disse uma coisamuito interessante sobre os tão faladosdireitos da mulher que nós andamos aaprender com as ONG europeias!!!“De acordo com a nossa tradiçãobantu, uma mulher deve ser tratada pe-lo nome dos seus antepas-sados. Vie-ram os portugueses e disseram que is-so era atrasado. E os assimilados ab-sorveram este pensamento religiosocomo valor. Hoje as mulheres moçam-bicanas exigem direitos de coisas quejá tinham e perderam por receber umsistema sem analisar em profundidadeas coisas. Mas as culturas africanas têmmuito a dar ainda para o desenvolvi-mento do mundo. Para mim que vivientre as macuas, quando olho para aslutas feministas do mundo, eu digo-me“Mas nós tínhamos isso”. E os movi-mentos feministas, mesmo em Moçam-bique, quando lutam pelos direitos damulher usam o modelo europeu queaprendeu de experiências práticas pro-venientes da nossa própria cultura.”Mas para além do dito em entrevis-ta o que melhor corresponde com opropósito último da lite-ratura, a pre-servação de valores, é a descrição depráticas que corporizam a cosmovi-são do universo diegético recriado emromance. Nesse sentido ocorre-mepresentificar dois momentos que a li-teratura nos ofecrece. Comecemos por Uanga de ÓscarRibas: A saudação aos gémeos recémnascidos.Óscar Ribas, Uanga, Luanda, Tipo-grafia Angolana/edição do autor,1969, pp 226-227“Cantando, palmejando e batendoos pés no chão, um bando de seis gé-meos dirigia-se ao campo: a pedido demamãe, iam colher as plantas sagra-das para saudar os irmãos espirituaise assegurar-lhes a existência.Chegados a um lugar onde vegetavamussequenha e mulembuíji, a dirigen-te do ritual vertendo o conteúdo deuma garrafa, invoca a sereia que mora-va naquelas paragens:– Antepassado, oferendamos-te, nestaterra e neste chão, vinho e quitoto-e-malu-

vo: viemos tirar roupa para vestir gémeos.”Viajemos agora até Paulina Chiziane:O Lobolo (entre nós, o alembamento)Paulina Chiziane, O Sétimo Jura-mento, Lisboa, Caminho, 2008, ISBN978-972-21-1329-8“Lobolo, do vocabulário bantu, temuma miríade de significados. Como pa-lavra inspira calor e luz. Como acto,inspira a dignidade, unidade, aliança eprestígio. Lobolo, como palavra e acto,foi sempre mal entendido e por issocombatido. Mas encerra dentro de si arenda e a vida. O perfume e a rique-za.É perfeito e completo. Traz mais graçaque desgraça. Enquanto houver acçõesdignas de louvar o lobolo persistirá.Todas as mulheres gostam de lobo-lo, mesmo as feministas ao extremo.Porque dignifica. Dá estatuto. Presti-gia. Porque no dia do lobolo-casamen-to, a mulher sai da invisibilidade, doanonimato, e torna-se o centro dasatenções, rainha uma vez na vida. Por-que a sociedade inteira fica a saber queconta com mais uma mulher adulta, sé-ria, digna, com mais uma família, umlar. O que as feministas extre-mistasnão entendem, neste caso, é que não ésó o lobolo que condiciona a prisão damulher, mas todo o sistema social.Lobolo é casamento. E como todosos casamentos do mundo é um contra-to de desigualdade e injus-tiça, em queo homem jura dominar a mulher, e amulher jura subordinar-se e obedeceraté ao fim dos seus dias. Nesta cerimó-nia, as mulheres cantam e choram, por-que o lobolo-casamento é um adeus àvida e à alegria. Como em todos os casa-mentos do mundo as canções do lobolosão tristes. Falam de dor e de sofrimen-to. Da saudade da mãe, da avó, do pai,dos irmãos. Falam da partida e da via-gem por caminhos desconhecidos. Amulher lobolada também chora por umdesgosto que ainda não conheceu, masque sabe que há-de conhecer.Lobolo é adopção, perfilha e buscade companhia. Lobolam as viúvas ri-cas, com filhos já casados vivendo emterras distantes, a crianças órfãs e des-protegidas que recebem pão e abrigoem troca de companhia e conforto hu-mano. Lobolam as mulheres estéreis acrianças órfãs e desprotegidas, paragarantirem a continuidade da linha-gem, numa cerimónia que é um pro-cesso de adopção. Lobola um homemao próprio filho, quando a criança é re-jeitada na hora do nascimento e muitomais tarde reconhecida como filha.No mundo dos espíritos, lobolo é umaconfirmação de fé ao serviço dos mor-tos. Um agradecimento pelas benessesrecebidas. Uma aliança entre espíritosde diferentes especialidades. Uma cha-ve e uma forma de penetração em novosdomínios espirituais. Os espíritos ngunilobolam os ndau e vice-versa, unindoforças e fraquezas na busca de melhoressoluções para os problemas do mundo.Homem casado com mulher espírita lo-bola duas vezes. Paga pelo corpo e pagapelo espírito, para ganhar o estatuto demarido absoluto, tanto no plano físicocomo no plano espiritual.Lobolo é prémio, é prenda. É a caixi-nha de surpresas oferecida ao marido

no dia dos seus anos. É o anel de noiva-do. É o ramo de flores oferecido no diados namorados.Lobolo é mhamba, é união entre vi-vos e mortos, os deuses maiores e me-nores. O lobolo é uma ceri-mónia reli-giosa por excelência.A transformação do religioso em pro-fano é um processo universal. O Nataldos cristãos é uma festa comercial de painatal, prendas e festas de loucura, ondeas pessoas dão largas aos excessos, be-bem, roubam, matam, mergulhando asociedade inteira numa barbárie abso-luta. A festa do baptismo, mesmo de umbébé, é celebrada com orgias e álcool.Nesta sociedade em decadência, tudo sevende: a força humana, o sexo, os filhos,as filhas. O lobolo não podia escapar àregra. De cerimónia religiosa e social,depressa passou para um pequeno ne-gócio, por vezes selvagem [não ficandoatrás do Natal]. (pp 90-92).COMO FECHAMENTO DE UMA NARRATIVA EM ABERTOA obra Renascença africana: A novaluta, organizada por Malegapuru Wil-liam Makgoba, é o resultado de doisdias de uma histórica conferência queocorreu nos dias 28 e 29 de Setembrode 1998 no Karos Indaba Hotel, Joa-nesburgo, na República da África doSul, contando com a participação decentenas de pessoas, entre académi-cos, intelectuais, gestores e adminis-tradores. O tema central dessa reu-nião foi a procura de reencontrar o ca-minhar bantu (não judaico-cristão)para abordar os problemas de África. Problemas que são muitos, desde lo-go pelo destrato da participação activados cidadãos na vida de todos os dias.Andando por esta Angola fora tropeça-mos a toda a hora com realizações quepoderiam ter sido exitosas se os seusdestinatários tivessem sido ouvidos,se a ancestral prática do diálogo, doouvir o outro, tivesse sido respeitada.Trouxe o caso do, chamemos assim,julgamento dos actos do Soba onde apalavra é o instrumento usado paradirimir os conflitos. Onde Diálogoquer dizer que a opinião de todos é vá-lida e ninguém é condenado sem terdireito a ser ouvido. Estamos peranteuma prática endógena de democraciapar-ticipativa que só não é assim cha-mada porque ainda não nos foi “ensi-

nada” pelas ONGs. (Mas, tal como oexemplo apontado por Paulina Chizia-ne para os direitos da mulher, não tar-dará muito a sê-lo!) O Ocidente já questiona a democra-cia representativa que na maioria doscasos promove governos legitimadospor menos de um terço da população.É comum na Europa em que o absen-tismo na votação anda perto dos 50 %e os partidos vencedores às vezes nemmaiorias simples conseguem. Mas nãoé preciso ir muito longe, vejamos o Se-negal que em 30 de Julho de 2017 viu aColigação Bokyakar vencer umas elei-ções legislativas que tiveram uma par-ticipação de 54%. Quer isto dizer, quenum universo de 6,5 milhões de elei-tores só 3,5 milhões votaram, o que,para os 60% que vota-ram na Coliga-ção vencedora, representa cerca de 2milhões de eleitores, isto é, o Governoque saiu das eleições é legitimado pormenos de 35% da população. Não deverá tardar muito e o Ociden-te vem-nos ensinar que afinal devemosmodernizar os nossos mecanismos degovernação e adoptar o modelo de de-mocracia participativa seguindo osseus manuais fundamentados pelosmelhores especialistas do MIT ou Ox-ford (muito atentos às nossas Tradi-ções, como Johns Lockes do séc. XXI)._______________Bibliografia

CHIZIANE, Paulina. 2008. O SétimoJuramento. Lisboa : Caminho, 2008.ISBN 978-972-21-1329-8.

KI-ZERBO, Joseph. 2010. IntroduçãoGeral (XXXI-LVII). [autor do livro] Joseph(editor) KI-ZERBO. Histó-ria Geral deÁfrica I. Brasília : UNESCO/MEC/UFS-Car, 2010, Vol. I, p. 930.

REBELO, Luís de Sousa. 1993. A UtopiaEvanescente na Peregrinação de FernãoMendes Pinto. [autor do livro] Yvette Cen-teno (cord.). Utopia - Mitos e Formas. s.l. :Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

RIBAS, Óscar. 1969. Uanga, 2ª edição.Luanda : Tipografia Angolana/Ediçãodo Autor, 1969.

VANSINA, J. 2010. A tradição oral esua metodologia (139-166). [autor dolivro] Ki-Zerbo (Editor). His-tória Geralda África I. Metodologia e pré-históriada África. Brasília : Unesco, 2010, pp.139-166.

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LETRAS | 5Cultura | 13 a 26 de Fevereiro de 2018

Opropósito da presente comuni-cação não se consubstancia naimensurabilidade, mas re-lan-çar a discussão em volta dos títulos naliteratura angolana. A sua selecção éarbitrária e exemplificação aleatória.Poderá até soar estranha ao nível fo-nético. A palavra “titulogia”, quanto aoseu enquadramento morfológico, é umsubstantivo, quanto à semântica pode-rá definir em função do contexto. Emnosso estudo, advém da cisão títu+lo-gia=titulogia. Segundo, o conceito detítulo, o Dicionário Da Língua Portu-guesa Contemporânea (2001:3573) “(Do latim titŭlus). Denominação de umlivro, capítulo, jornal, artigo (… )”. Oconceito de titulogia surge de proces-sos linguísticos distintos, primeiro re-corre-se à queda ou supressão propo-sitada, apócope, elimina-se a últimasílaba “lo”. Posteriormente dá-se, im-plicitamente ao processo morfológicode formação de palavras, a falsa deri-vação por “títu e logia” não se trataremconcretamente de sufixo e prefixo.Com o referido conceito pretende-seinferir ao estudo semântico dos títu-los na literatura angolana. Por último,é também um neologismo híbrido. Re-correu-se a segmentação do conceitopara se apurar mesmo de forma em-brionária à sua formação. Porém, pornenhuma abordagem apresentar una-nimidade e alguns segmentos da so-ciedade adoptar a postura de leiturada pessoalidade, preferiu-se apenascitar os títulos das obras e não o nomedos escritores. Descartam-se ainda asprobabilidades de uma abordagemque crie cadeias imaginárias sobre es-te ou aquele título para determinadosgéneros ou subgénero, em todo caso,embora pareça paradoxal, é impor-tante que o escritor não crie assime-tria entre o título e conteúdo. Porexemplo, “Ritos de Passagem” parecetratar-se de um ensaio, quando na ver-dade é uma obra poética. De igual modo, aconselha-se quenão se ignore a intenção titulógica doescritor. As comunicações que surgemdos absolutismos estão propensas aotropeço histórico. Daí a necessidadede se trazer à superfície dois princí-pios filosóficos: um que relaciona em-pirismo e outro a racionalidade. Ate-mo-nos no último, René Descartesacredita na possibilidade de se atingira verdade simplesmente pela razão.Continua o pensador cit. por JoséEduardo Carvalho (2009:25), “Des-cartes afirmava: como os nossos senti-dos nos enganam por vezes, devo su-por que nada é aquilo que parece; aúnica coisa de que não posso duvidar éde que penso em alguma coisa (…) Co-gito ergo sum”. Embora todo conheci-mento comece com experiência, nãoimplica que todo conhecimento se ori-gina concretamente da experiência.Entende-se que a razão serve-se algu-

mas vezes da experiência para melhorapreensão do objecto de estudo. Nu-ma leitura hermenêutica sobre a titu-logia na literatura angolana estabele-ce-se uma inter-dependência entre ateoria da linguagem e a teoria da inter-pretação. Para que possa existir umarelação é necessário que não se atro-pele a leitura hermenêutica, isto é, o tí-tulo existencial por constituir contac-to primário entre o sujeito leitor e aobra. Cada época, cada civilização, emconformidade com o conjunto do seusaber, das suas crenças, das suas ideo-logias, respondem de modo diferentee perspectivam a linguagem segundoos moldes que os orientam. Segundo Kristeva (1969:19) “a lin-guagem é simultaneamente o únicomodo de ser do pensamento, a suarealidade e a sua realização”. Assimsendo, o título como linguagem é ine-rente à obra literária, para além de serexpressão intuitiva ou pré concebida émanifestação implícita do conteúdoda obra. Por existir uma fronteira en-tre o sujeito e o objecto que torna, al-gumas vezes, o objecto desconhecido

pelo sujeito, a razão, no presente estu-do, coloca-se como hipótese diantedos fenómenos titulógicos, interpre-ta-o como apresentam-se e como po-deriam ser apresentados. Observaainda W. Van Zyl cit. por Luís Leal,(1994:71) “Para além de uma funçãoidentificadora o título da obra literáriapossui também outras funções. Essasvariam muito (…) poder-se-á afirmarque as mais correntes são as de prepa-rar o leitor para o que vai ler e a de es-tabelecer uma relação dinâmica com ocorpo do texto”. Por isso, o conheci-mento para Kant só seria possível sede alguma forma o ser humano pudes-se apreender um conteúdo que lhedespertasse ou lhe trouxesse algumsentido, em relação à nossa comunica-ção o conteúdo começa a ser descorti-nado a partir do título. O mesmo servede cartão-de-visita da obra, a monstrado possível conteúdo exposto. Porconseguinte, que fique claro que os tí-tulos menos conseguido não põem emcausa a expressividade e relevância doconteúdo literário. Constata-se quetem crescido a incidência de títulos

menos conseguidos na literatura in-fanto-juvenil, produzido nas últimasdécadas, “A Minha Baratinha”. Emborao Dicionário Integral Língua Portu-guesa (2013:206), numa das suasacepções a presente como uma figurade estilo que significa “irmã de carida-de, freira”. Precisa ser revista, pois queao descortinar-se, é um insecto porta-dor de doenças diarreicas agudas. Apalavra “Baratinha”, de ponto de vistamorfológico é um substantivo co-mum-concreto no grau diminutivo, amesma adquire diferentes significa-ções de depreciação e a de carinho.O pronome possessivo feminino“Minha” reforça a ideia de uma relaçãode aceitação, de convívio e sobre tudode posse. Ter um insecto-barata comoamiga ou irmã de estimação evidenciaum contraste, inclusive os nutricionis-tas e os biólogos desaconselham oconvívio com as baratas. Ainda na es-teira da titulogia “Poeticidade no Dis-curso Prosaico de Wanyenga Xitu”, Oreferido título passa a falsa ideia deque a prosa seja poesia. Outro sim, ve-rifica-se uma indefinição quanto àobra, a editora chama de ensaio e saicomo poesia, julgamos haver um atro-pelo conceptual. Sem se ater ao puris-mo, a poeticidade é um adjectivo ge-nético da poesia, dito de outro modo, éa linguagem da literariedade na poe-sia. Por sua vez, é sabido que o discursoestá entre as fronteiras do texto literá-rio e não literário. Por tanto, a prosacomo a poesia por serem textos literá-rios é normal que um ou outro saiba in-corporar em suas composições partí-culas prosaicas ou poéticas, ou que ha-ja cheiro de um sobre o outro. Foi ditoanteriormente de forma diferente, re-força-se que o título permite ao leitorvisualizar ou ter uma ideia aproxima-da da obra literária “A Chave no Repou-so da Porta”, pela mecanização do títu-lo advinha-se implicitamente ser obrabastante zelosa ao nível dos recursosestilísticos. Em sentido contrário, os tí-tulos bem conseguidos ao nível da lite-ratura em geral, especificamente os deauto ajuda fazem com que as vendasatinjam números surpreendentes.Numa visão consumista e análoga,a conjuntura actual por estar a ser co-tovelada pelo desemprego, quem pu-blicar um livro intitulado “TécnicasPara Convencer A Entidade Emprega-dora”. Um outro encaixe seria, pelo ní-vel de homicídio que é causado pelociúme, “Aprenda Em Segundos comoLidar Com Ciúme”. A partir do métodoindutivo, concluíra-se que venderiampelos títulos, sem se pôr em causa apossível qualidade de os seus conteú-dos. Segundo Kyser (1976:202), “foi

UMA REFLEXÃO EMBRIONÁRIA SOBRE A TITULOGIA NA LITERATURA ANGOLANA

HAMILTON VENOKANYA ANTÓNIO

A Chaga

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Este livro de Jonuel Gonçalves é umretrato de Angola em 1959. Ou me-lhor, Jonuel Gonçalves começa por fa-zer um retrato – a fotografia tipo passe– da situação que a colónia portuguesaentão vivia. Depois, recorrendo à ima-ginação, dá vida ao retrato, pondo emmarcha pessoas, instituições, forçasmilitares, ímpetos revolucionários,sempre com base numa premissa: e setivesse acontecido assim?Vejamos, corria o ano de 1959 e a re-pressão abate-se sobre numerosos gru-pos nacionalistas angolanos, fazendocentenas de presos. A população está re-voltada e surgem vozes a defender alu¬ta armada. No final do ano, já váriosgrupos de jovens pla¬neiam pegar emarmas contra o colonialismo. À época, opoder militar colonial era fraco, mas a in-justiça e a revolta, grandes. A intelectuali-dade começa também a ver com sim¬pa-tia o recurso à força, tida como inevitáveldada a vontade férrea de Salazar emmanter as colónias. Contudo, a revolta sóse daria pouco mais de um ano depois.

Mas e se a rebelião tivesse aconte-cido em 1959? Jonuel Gonçalves,participante nesses acontecimentos,partindo do método what if? – e se ti-vesse acontecido assim? – consagra-do sobretudo pela historiografia delíngua inglesa, procura sa¬ber o quesucederia se esses jovens tivessemagido. O resultado desse exercício éagora publicado no livro E Se AngolaTivesse Proclamado a Independên-cia em 1959?, que chega às livrarias a6 de Fevereiro.Dia a dia, hora a hora, de 15 deOutubro de 1959 a 11 de Janeiro de1960, acompanhe o desenrolar dosacontecimentos de uma históriapossível. São três meses que reflec-tem uma exploração de um cenáriode guerra, um estudo de possibili-dades diferentes, estabelecendo al-ternativas e contribuindo para con-sideração em actuações e atitudesfuturas, perante desafios de algu-ma forma semelhante. Com umaAngola independente em 1959, te-

ria sido muito o sofrimento poupa-do ao povo angolano?BIOGRAFIA DO AUTOR Jonuel (José Manuel) Gonçalves lutou

pela independência e democratização deAngola, portanto, teve a maior parte daexistência dividida entre o combate clan-destino e os exílios. Aproveitou estes para,aos solavancos, chegar até ao mestrado.Quando o fim das guerras angolanas do sé-culo XX permitiu, fez o doutoramento. Apartir daí dedicou-se à docência (agora nu-ma universidade brasileira), a escrever coi-sas diferentes das que escrevia nos anos dechumbo e a nomadizar entre África, Brasile Portugal. Publicou vários livros: A Econo-mia ao longo da História de Angola (em An-gola), Café Gelado e Relato de Guerra Ex-trema (de ficção, em Angola e no Brasil).Em 2017, publicou, com a Guerra e Paz, oromance A Ilha de Martim Vaz e Franco-atiradores, livro autobiográfico.

só a partir da época renascentista quese tornou prática comum atribuir títu-los às composições literárias”. Há umacerta tríade, que fragiliza o sistema datitulogia na literatura angolana, as-sente na pavimentação de títulos am-bíguos, acontece geralmente na poe-sia, “Poesia Porta Metal”. De referirque a poesia é arte do sublime, é umcéu aberto e não desordenado, a ten-tativa de transparecer através do títu-lo, até certo ponto elitista, que a poesiaseja um corpo fechado faz com a obracaía no esquecimento.Segundo, são os que diminuem acapacidade cognitiva do leitor, tem-sea ideia preconceituosa que a criança éo ser menos capaz, o preguiçoso men-tal, daí a constatação ao nível da litera-tura infanto-juvenil de títulos que nãocriam apetites ao sujeito leitor “Avô Sa-balo”. Sabe-se, pelo título trata-se deum conto tradicional, embora sejamimportantes, a maior parte dos seuscultores apresentam os enredos previ-síveis demais e estáticos ao nível da lin-guagem. Julga-se, ser precisa uma rein-venção nos contos.Terceiro os de não solidariedade en-tre as palavras “…E nas Floresta os Bi-chos Falaram...”. Não há solidariedadeentre as palavras, fala, bicho e o sujeitoleitor alvo. Numa leitura sociolinguísti-

co, a palavra “bicho” no imaginário dacriança é um elemento aterrorizador.Atemo-nos ao exemplo, “se não comeresvou chamar aquele bicho”. Por outra, aoestabelecer-se uma relação semântica deinclusão bicho é parte do mato. Daí, ao in-vés de se dizer “vamos ao mato visitar oavô, deve ser dito à aldeia”. Por falar em li-teratura angolana, segundo Luís Kand-jimbo (2011:54),“Do ponto de vista em-pírico poderia considerar a literaturaangolana como o conjunto de obras deescritores angolanos que resultam dorecurso as técnicas da ficção narrativa,do verso, da crítica e do ensaio”. Serve-se da citação para um enquadramentoconceptual e situacional. Não obstante à abordagem isolada,um estudo dos títulos das obras literá-rias e não sobre o conteúdo das mes-mas. Os títulos são convidativos emfunção do sentido, da capacidade in-terpretativa do sujeito leitor e da suacosmovisão. Em suma, por se tratar deuma comunicação embrionária, e mes-mo que não se fosse, requererá mais emelhor, outras abordagens em volta datitulogia. Há sempre o compromissode rever o discurso. Como sempre, nãose termina, mas fica-se por aqui.Poeta e Crítico Literário. Coordenador Geral

Movimento Cunene Do Cultural Literatura angolana

E SE… ANGOLA TIVESSE PROCLAMADO A INDEPENDÊNCIA EM 1959?Um exercício de Jonuel Gonçalves, participante activo na luta pela independência e democratização da ex-colónia

6 | LETRAS 13 a 26 de Fevereiro de 2018 | Cultura

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O país cultural e artístico voltou amergulhar em luto, numa altura emque a classe não estava ainda devida-mente recomposta, depois do desapa-recimento físico precoce de dois gran-des vultos do nosso mosaico cultural:tratam-se por um lado, do Historiadore intelectual Simão Souinduila (quedeixou as suas impressões digitais in-delevelmente marcadas no projecto “ARota dos Escravos”) e, por outro lado,o cantor de palmo cheio, o emblemáti-co Zé do Pau (que dentre tantas outrascanções, deixou-nos como maior de-leite a música “Página rasgada do Li-vro da minha Vida” cuja entoação me-lódica, dedicada ao falecimento da suamãe, não é indiferente à sensibilidadeauditiva de qualquer mortal). Logo na primeira semana do mês deFevereiro, fomos brutalmente con-frontados com o prematuro desapare-cimento físico de um dos grandes pila-res da plasticidade angolana, o mestreAugusto Ferreira de Andrade, vitima-do por maleitas que o vinham apo-quentando ao longo de algum tempo aesta parte. Augusto Ferreira, ou sim-plesmente “Gugu” como era carinho-samente tratado em círculos mais res-tritos, nasceu em Xá Muteba, em 1946,o que significa um ano após o fim da IIGuerra Mundial. Desde muito jovem,Augusto Ferreira desenvolveu as suashabilidades artísticas. Mesmo sendoautodidacta, teve forte influência dosgrandes mestres da sua época: assuas obras pictóricas denunciam, emgrande medida, a “presença” perenedo grande mestre Neves e Sousa, cujacomposição, não diria temática, massobretudo geométrica, resvala para acorrente cubista que, na altura, era aque mais dominava enquanto escolae tendência aliadas às inovações di-nâmicas de autores como Pablo Pi-casso, por exemplo.Ao longo da sua vida, muito particu-larmente ligada ao mundo artístico,Augusto Ferreira teve uma carreirabastante profícua e promissora, sobre-tudo em finais dos anos 60 e início dadécada dos anos 70 do século passado,em cujo período, obras da sua lavra ar-tística chegaram ao patamar de espa-

ços e galerias de arte de grande prestí-gio tanto em Angola como no resto domundo. No período pós-independên-cia, Augusto Ferreira não cruzou osbraços, e na continuidade da sua pro-dução artística, participa activamenteem exposições colectivas de arte, ao la-do de outros monstros das artes plásti-cas angolanas como VITEIX, Ndundu-ma, Tomás Dombele, Henrique Abran-ches, Tomás Vista, Rui de Matos, Ma-tondo Afonso, António Ole, LuzolanoJoão de Deus, Vaz de Carvalho, Eleuté-rio Sanches, entre tantos outros que fa-zem a arte com mestria e dignidade quese impõe. Dessa tão rica trajectória naárea da plasticidade, valeram-lhe va-riados prémios de reconhecimento pe-la produção, promoção e divulgaçãodas artes plásticas angolanas no país eno estrangeiro. Dessa cruzada de divul-gação, em meados do ano 2000, o mes-tre Augusto Ferreira, o pintor ÁlvaroMacieira e o pintor alemão Horst Pop-pe (já falecido) criam o projecto “Cone-xão” cujo objectivo principal consistiaem juntar as distintas tendências artís-ticas (angolana e alemã) e, dessa fusão,dá-la a conhecer não só em Angola e naAlemanha, mas também um pouco portodo o mundo. O projecto foi extrema-mente interessante e amplamente di-vulgado e teve um impacto bastantepositivo na dinâmica interactiva e cul-tural que une os dois povos por via dasartes. Pessoalmente, tive o grato privi-légio de acompanhar o referido projec-to, tendo inclusive feito curadoria deuma das suas mais memoráveis exposi-ções que teve lugar no Salão de Interna-cional de Exposições de Arte “SIEXPO”(do qual fui responsável entre 2002 e2005) no Museu Nacional de HistóriaNatural, aqui em Luanda. De resto, devo confessar que co-nheci o mestre Augusto Ferreira em1980, altura em que me tornei mem-bro efectivo da União Nacional dosArtistas Plásticos (UNAP) onde, seteanos depois, eu viria a receber o ga-lardão do Prémio Nacional de Gravu-ra UNAP/87, referente a um concursoque a Associação artística havia lan-çado ao nível do país, e em cujo corpode jurado então constituído, figurava,

entre outros, o pintor Augusto Ferrei-ra. Depois de anunciado o vencedor,lembro-me, o mestre Augusto Ferrei-ra felicitou-me com um forte abraço, eme havia dado forças e incentivo naprossecução da arte da gravura artís-tica, algo que efectivamente assumiaté aos dias de hoje. Todas essas re-cordações, justificam, em certa medi-da, o testemunho vivo que tivemosdesse consagrado pintor que, paraalém das artes plásticas, também fa-zia incursões na área das artes gráfi-cas, tendo sido responsável pela exe-cução técnica e gráfica de uma boaparte de selos editados pelos Correiosde Angola, bem como criou um semnúmero de logomarcas para distintasinstituições nacionais. De igual modo, são também inúme-ras as exposições individuais de artesplásticas por si realizadas, e incontá-veis ainda as exposições colectivas emque participou dentro e fora do país.Está representado em diversos mu-seus e galerias de arte a nível nacionale do mundo, e também em instituiçõese colecções particulares de grandescoleccionadores de obras de arte. Portudo quanto fez por este país em ter-mos artísticos, em 2003, a sociedade,representada pelo Estado, rendeu-seà sua longa caminhada artística que jálevava, na altura, 40 anos de percurso,ao atribuir-lhe o prestigiado PrémioNacional de Cultura e Artes (PNCA)que meritoriamente lhe coube, e que oPaís atribui aos maiores e melhores fa-zedores de arte ao nível nacional. Foi,obviamente, motivo de muito orgulhoe satisfação que se viveu na altura,pois o mestre Augusto Ferreira já hámuito bem o merecia. Discordamosplenamente que o reconhecimento decertos artistas muita das vezes sejafeito apenas a título póstumo, existin-do possibilidades de se reconhecer oscriadores artísticos em vida. Feliz-mente, não foi este o caso do mestreAugusto Ferreira, não obstante nos úl-timos tempos ter optado por levaruma vida menos publicamente expos-ta, entregando-se à Palavra do Senhor,mas, nem por isso terá abandonado ospincéis na prateleira. Antes pelo con-

trário, mesmo já fisicamente debilita-do, tinha telas preparadas para a reali-zação de uma grande exposição indi-vidual com expressões temáticas dis-tintas das que antes nos habituou aver (tendência para a pintura sacra),mas sempre fiel à paleta que sempreutilizou com predominância cromáti-ca direccionada sobretudo para osverdes, pois ele amava a vegetação, omeio ambiente, enfim, a Natureza. O mestre Augusto Ferreira deixou-nos. Partiu para a Eternidade, mas dei-xa um valioso legado artístico que de-ve, necessariamente ser cuidado, pre-servado e quiçá, divulgado. Na hora dapartida para o Campo Santo, que tevelugar no dia 7 do mês corrente no Ce-mitério do Camama em Luanda, houveum banho de multidão para lhe pres-tar a última e derradeira homenagem.Nota negativa foi a ausência notória,no funeral, de um representante ofi-cial da Direcção do Ministério da Cul-tura, sobretudo pelo facto do malogra-do ter sido distinguido com o PrémioNacional da Cultura e Artes (PNCA)pelo grande contributo que dedicouao desenvolvimento cultural e artísti-co do nosso país! No entanto, a famíliaaugura que possa haver, no futuro,apoio institucional no sentido de sepoder preservar a acervo artístico dei-xado pelo malogrado. (Artista Plástico

e Professor de Arte)

A. FLORES, MARCELA GARCÍA E ANAMELY RAMOS

ARTES | 7Cultura | 13 a 26 de Fevereiro de 2018REQUIEM PARA

AUGUSTO FERREIRA(1946-2018)

ANTÓNIO DOS SANTOS “KIDÁ”

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GASPAR MICOLOUm conjunto de 26 obras mar-cam a mais recente exposiçãoindividual do artista plásticoFrancisco Van-Dúnem “Van”, deno-minada “No centro da questão”, noEspaço Luanda Arte (ELA), que ficapatente até dia 14 de Março.Com mais de uma dezena de exposi-ções individuais dentro e fora de portas,Francisco Van-Dúnem “Van” é um dosmais destacados artistas angolanos eque, no trabalho que agora apresenta,projecta na tela a africanidade dos con-tornos do seu imaginário, sugerindouma singular essência artística e fecun-da solidez criativa; e é nessa perspecti-va que, segundo o crítico Jomo Fortuna-to, Van nos obriga a instaurar uma pro-funda reflexão sobre o passado cultural,no decorrer do nosso singelo processode contemplação estética.

Um dos fundadores da União Na-cional dos Artistas Plásticos, Van ofe-rece um conjunto de obras que reve-lam ainda fortes raízes identitárias,alternando a opção figurativa com odevaneio do cromatismo abstracto.Nas suas obras, o artista valoriza asaproximações com outras expres-sões estéticas e criativas, o que resul-ta em telas profunda e visualmentecomunicativas.O destacado artista plástico já ho-menageou, em exposições recentes, enum gesto de claro agradecimento, olegado e memória dos seus mestres,Viteix, Henrique Abranches, CostaAndrade, Rui de Matos e MatondoAfonso; vincando, contudo, que a so-ciedade angolano tem feito pouco ouquase nada, quer do ponto de vistagráfico, quer escrito e oral sobre oscriadores que já partiram para a eter-nidade. Aliás, uma lacuna que o artis-ta tenta preencher tantos em exposi-ções de homenagem ou as de simples

reflexão sobre o nosso passado cultu-ral, como a montra que agora se en-contra aberta na ELA.Entretanto, a curadoria da exposi-ção de Van está a cargo de Dominick-Tanner, curador-produtor britânico edirector-geral da ELA, Espaço LuandaArte, que vive e trabalha em Angola hámais de oito anos e durante esse tem-po, produziu e desenvolveu um con-junto de projectos que visam enalte-cer os artistas, fomentar a arte angola-na, bem como valorizar as instituiçõesque têm apoiado a criação artística. Agaleria “ELA” existe há pouco mais deum ano e situa-se no quarto andar doedifício da “De Beers”.Promotor cultural, professor uni-versitário, investigador e Mestre emeducação artística, Van vê a necessi-dade de se impulsionar, cada vezmais, as artes plásticas, sobretudo noâmbito da circulação e comercializa-ção deste produto cultural, lamen-tando a falta de coleccionadores dearte, destacando-se o facto de a maiorparte das instituições públicas e pri-vadas terem as suas paredes carentesde peças de arte.Nascido em 1959, na província doBengo, Francisco Van-Dúnem “Van” éainda co-fundador e professor da Es-cola Média de Artes Plásticas emLuanda. Foi director da Direcção Na-cional de Formação Artística (DINFA).Van é detentor dos prémios "MuralCidade de Luanda", 1984; de pintura,do Banco de Fomento e Exterior dePortugal, 1990; e ENSA Arte, na cate-goria de pintura, nas edições de 1996e 2004. Em 2008 foi distinguido com oPrémio Nacional de Cultura e Artes, nacategoria de Artes Plásticas, numapromoção do Governo angolano atra-vés do Ministério da Cultura. Partici-pou em exposições colectivas de artis-tas conceituados em vários países, en-tre os quais Argélia, Cabo Verde, Zâm-bia, Gabão, Cuba, Brasil, Espanha, Por-tugal, Suécia, Alemanha e EUA.

VAN “NO CENTRO DA QUESTÃO” DA REFLEXÃO SOBRE O PASSADO CULTURAL

Exposição de Van

Uma revisitação reflexiva do passado é o que propõe o artista plástico Francisco Van-Dúnem “Van”, colocando no centro da questão um conjunto de obras que revelam fortes raízes identitárias.

PAULO MULAZA | EDIÇÕES NOVEMBROMULAZA

PAULO MULAZA | EDIÇÕES NOVEMBRO MULAZA

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ISABEL ANDRÉ“A GRANDE QUESTÃO DO TEATRO EM ANGOLA É O VAZIO DE ESPAÇOS PARA REPRESENTAÇÃO”

Entrevista conduzida porJOSÉ LUÍS MENDONÇAPara a actriz de teatro Isabel André,

a grande questão do teatro em Angola éo vazio de espaços para representação.Não há investimento em salas de teatro,uma arte que, por sinal, já permite aoartista viver dela. Neste entrevista quenos concedeu, a actriz abre a alma esurpreendemo-la a contra as malam-bas e o sucessos de uma carreira com 30anos contados a subir aos palcos.Do seu nome completo Isabel Ma-nuela André Manuel, esta senhora deolhos cor de savana começou a fazerteatro desde a fundação do grupoHorizonte Nzinga Mbandi, em 1986.“Era muito nova, muito nova mes-mo, tinha aproximadamente 12 anos”,diz a actriz, sentada à secretaria doseu gabinete de trabalho, à Marginalde Luanda. Isabel diz ser muito con-servadora, daí ter permanecido até àdata fiel ao Nzinga Mbandi. As razões da escolha da arte de re-presentar: um dia, quando era estu-dante na escola Nzinga Mbandi, umaamiga chegou ao pé dela e disse-lhe“Vieram uns moços e estão a chamarpara fazer parte do grupo de teatro”.Esses “moços” eram o Ezequiel Issen-guele e o Adelino Caracol, fundadoresdo Horizonte Nzinga Mbandi. A amigaque a havia chamado sobe ao palco,mas não satisfez a demanda dos pro-motores. Então caracol volta-se paraIsabel e ordena. “Sobe lá para o palcoe vai actuar!” E assim, Isabel entroupara o teatro e nunca mais saiu.Formada em Ciências da Educaçãoe Administração Pública, é com umcerto orgulho que ouve da boca dasamigas: “olha a mulher dos sete ofí-cios”. Hoje, é profissional de seguros,mas também fez um mestrado emGestão de Empresas, na especialida-de de Recursos Humanos.Porém, Isabel André fez diversasformações na arte que domina, o tea-tro, que “tem vertentes e agrega vá-rias disciplinas que devem ser com-pletadas para que alguém diga quefez teatro. Graças a Deus, naquela al-tura, apesar de eu ser muito nova, oMINCULT dava-nos muitas forma-ções e grátis. Muitas mesmo”, afirmaa actriz sem reservas. Isabel diz que o MINCULT deu es-sas oportunidades de formação nadécada de 80, e estendeu-as até à dé-cada de 90, formações grátis e combons especialistas de várias discipli-nas. Muitos dos directores artísticos

que hoje existem na nossa praça, naaltura fizeram esta formação comIsabel e fizeram-na cá em Luanda.“Como se sabe., o teatro é dinâmico eas técnicas também vão evoluindo.Posteriormente, fui fazendo outrasformações mais recentes”, explica.Isabel André participou em pro-jectos de outros grupos teatrais, tan-to nacionais, como estrangeiros. Játeve a “sorte” de participar em váriasselecções de artistas. Um grande pro-jecto que a marcou e em que teve defazer encenação e direcção ao mes-mo tempo, “o que não é fácil, nem re-comendável, porém não tive alterna-tiva”, foi num concerto, ela como ac-triz ao lado de um músico, RobertoRosatti, em 2016, com a produção daembaixada italiana. Era uma peça deteatro cantada. “Ele cantava, e eu re-presentava e falava em função doque constava nas músicas.”Perguntamos à Isabel se, na vidareal, saindo da sala de teatro, já algu-ma vez teve de “fazer teatro”, fingirpara poder ajudar alguém... SegundoIsabel, todos nós sabemos que umbom politico tem de ser um bom ac-tor. Tem de motivar. Um bom profes-sor tem de ser um bom actor. O quemais existe neste mundo, segundo aactriz, são pessoas com perfis adap-táveis, como se diz em gestão de Re-cursos Humanos. No dia-a-dia, certaspessoas têm uma certa postura numainstituição, um certo perfil, mas,quando saem dali, manifestam um

perfil diferente. A nossa conversa res-valou para a esfera sublime das rela-ções mais íntimas, as paixões da almae o amor. Porque o nosso Mundo, emvez de evoluir no sentido da moraliza-ção colectiva, reparte-se pelos mean-dros de uma imoralidade cada vezmais despudorada. Será neste tipo derelação que existirá mais “teatro”?Para Isabel, “este aspecto, de facto, émais fácil de ser representado, atéporque na vida social é o que mais temsido feito. E muita gente até alega fun-damentos culturais. Na minha opiniãopessoal, creio que existem aspectosque podem ser corrigidos com o evo-luir da sociedade. É fácil representar,considerando as várias etnias existen-tes, os vários hábitos e costumes, dosquais se destaca a poligamia.”No filme O Calvário de Joceline ,Isabel André fez o papel de secretá-ria do inspector e gostou do papelque representou. No fundo, Isabel é uma pessoa mui-to optimista. O teatro é uma arte demassas, e tem um peso muito forte.“Acho que se devia investir mais”, acre-dita Isabel. “O MINCULT devia prestarmesmo uma atenção especial ao tea-tro. Devemos evoluir qualitativamen-te. Existem muitos grupos. Uns conse-guiram manter uma certa qualidade,mas de uma maneira geral, a qualida-de é péssima. O teatro exige muito. Aarte de representar está cada vez maisa modernizar-se, não basta subir aopalco, imitar um velho, não, tem de ir-

se à escola, ter mais aberturas. Apesarde muitos grupos já irem a festivais,também é bem verdade que conse-guem patrocínios, caso tenham umaobra de grande qualidade. Mas isso sónão basta. É necessários aumentar onível de performance. A AssociaçãoAngolana de Teatro, da qual tambémsou membro, está com alguns projec-tos, só que não é tão simples assim,precisamos de mais apoios.Quase em fim de conversa, abor-dámos a lamentação reiterada de al-gumas pessoas sobre a falta de salasde teatro, principalmente na cidadede Luanda abarrotada de milhões decidadãos com poucas alternativas deescolhas em termos de diversão. – Esta é a grande questão. Não háinvestimento, e com a agravante doTeatro Avenida que, até hoje, está noestado em que está. - Mas, a Isabel acha que dá dinhei-ro investir nesses espaços?- Dá, sim Senhor. Até porque deter-minados grupos que têm as suas salasconseguem rentabilizar. Nós temospoucos, mas já temos alguns actoresque sobrevivem do teatro. Já é possívelviver do teatro. O teatro é o berço doCinema, da Televisão, etc. Mas, parasingrar é necessário ter um bom em-presário, é necessário ter meios desustentabilidade, porque o actor ven-de imagem, o actor serve de exemplopara a sociedade. Acho que o empre-sariado nacional devia pensar seria-mente neste aspecto.

ARTES | 9Cultura | 13 a 26 de Fevereiro de 2018

Isabel no papel de rainha na peça Hamlet

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TV ZIMBO EMITE FILME“O CALVÁRIO DE JOCELINE”A29 de Março de 2008, o edifíciosede da Direcção de Investiga-ção Criminal (DNIC) em Luan-da ruiu com um número significativode baixas. A tragédia inspirou a produ-ção de um romance editado em 2011pela Mayamba editora. Em 2015 viriaa ser adaptado para uma curta metra-gem televisiva de 56 minutos ao abri-go do programa FICTV da CPLP. Ngouabi Silva foi o realizador, sendointerpretado nos papéis principaispor Náuria Costa, no papel de Joceline,Balbina Barros e Djani Cunha, nos pa-péis de Samy e Selma respectivamen-te, sendo o papel de General Barbosainterpretado por Pedro Fernandes.Todos eles, actores de teatro em Ango-la. A produção foi da Imagem Vip Co-municação que contou ainda com aTPA e o programa FICTV da CPLP co-mo co-produtores.O filme deveria ser lançado em An-gola no mês de Agosto de 2016, tal co-mo aconteceu nos restantes países deCPLP, contudo, nesse estágio crucialdo processo, a estação televisiva esta-

tal angolana demarcou-se do processorecusando-se a emitir o filme, tendodesse modo o mesmo sido lançado emtodos os outros países da CPLP, comexcepção de Angola.A película, foi agora emitido pela TVZimbo no espaço dessa estação dedi-cada ao cinema angolano “Cine Nos-so”, indicando que, tendo havido qual-quer censura ao filme, esta não foi dasautoridades angolanas, mas sim tãosomente da estação televisiva.Nas linhas que se seguem, apresen-tamos uma breve entrevista realizadaa Lito Silva, o Argumentista/Produtordo filme “O Calvário de Joceline”, parafalar um pouco sobre o assunto.Jornal Cultura - A TPA afirma, co-

mo aliás foi publicado na nossa edi-ção nº 152 que o filme contém ce-nas que atentam contra a sua políti-ca editorial.

Lito Silva - Se alguma vez alguémperguntasse ao Goebbels, porquecensuraria uma criação judaica, cer-tamente ele invocaria um monte de

razões racionais para fazê-lo e segu-ramente nenhuma seria o motivo detemer ver o führer contrariado. Masisso também seguramente não tira-ria o valor das tais obras judaicas.Por outras palavras, como qualquercensor, a TPA agarrou-se ao primeiroargumento que lhe veio à mente pa-

ra não exibir o filme. Contudo, des-curou o facto de que é co-produtora,esteve presente em todos os mo-mentos desde a criação do roteiro,apoio logístico e técnico e pré visio-namento, sem que as questões invo-cadas para a não exibição, fossem se-quer afloradas.

CURRÍCULO ARTÍSTICO Nome: Isabel André Nacionalidade: Angolana Profissão: Actriz Formação académica: licenciada em Ciências de Educação

Universidade Agostinho Neto – Angola (2004), Mestrado emGestão de Empresas Universidade de Évora. Portugal (2011),Doutoranda em Ciências Sociais especialidade psicologia socialUniversidade Agostinho Neto – Angola (2013-2017).

Formação artística em cinema, televisão, teatro, ilumina-ção, caracterização projecto Cena livre em Angola (2011) e cur-sos de preparação de actor (2000 e 1990).

31 anos de carreira, começou como Actriz no Grupo Horizon-te Nzinga Mbandi, em (1986) participou em várias peças deteatro, Acontecimento, o Alfaiate, Regresso Marcante, Macem-ba, Jogral, Nzonje, Fronteira e o asfalto, Casado sem casa, Histó-ria, Madrasta, Cativeiro Derrocado, Fabiana, Lweje, NzingaMbandi, N`zady o grande desafio, Casal, a Bíblia, Gipalo, Engra-xador, Sobreviver em Tarrafal e outras.

Participações Vice presidente do Júri do premio Nacional de Cultura e Artes

(2017), Júri do Carnaval em Luanda (2017), espectáculo inter-nacional Brancos, Tintos e Rosati (2016), no elenco Conversasno Quintal Produção TPA (2015/2016/2017), no filme O Calvá-rio de Joselina (2016), na peça de teatro Hamleth (2015), no Fil-me Dias Santana realização Americana e Angolana produçãoSul Africana (2014), nas mini séries Angola Chama –te, sérieKamba de verdade (2013), no Filme a Crença (2012), historie-tas stop sida (2012-2016), publicidades áudio visuais e radiofó-nicas (2012, 2013, 2014, 2015, 2016), festivais internacionaisde teatro (2009), (2001) e (1992) em Portugal e FNACULT(1989), primeiro Festival Nacional de Cultura em Angola.

10 | ARTES 13 a 26 de Fevereiro de 2018 | Cultura

Isabel nas reais vestes de tecnocrata

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Então o que se terá passado, en-tretanto, para essa mudança de po-sição?O limite que nos devemos impor,para sermos ousados, é a lei, a moral, ocivismo e a concórdia social. Mas te-mos que ainda assim ter a coragem deromper com paradigmas ultrapassa-dos, propondo novos paradigmas, talé o compromisso dialéctico das socie-dades que pretendem evoluir. É claroque sempre existirão resistências àmudança. Faz parte da natureza hu-mana a tendência para a acomodaçãono conforto da estagnação, do jeito “eunão faço ondas, tu não fazes ondas eninguém põe em risco regalias adqui-ridas”. É triste, mas fica mais fácil as-sumir uma postura retrógrada, invo-cando a máxima da defesa do colecti-vo, mesmo quando isso significa pri-var o tal colectivo do direito de tirar assuas próprias ilações sobre os factos.O que estou a afirmar é que, tal comojá aconteceu nos demais países daCPLP, o filme foi exibido em Angola. Eaqui foi a Zimbo que o exibiu. O quesignifica que quem censurou não fo-ram as autoridades angolanas, massim a TPA – aqui importa frisar quetanto a anterior administração, comoa actual agiram de igual forma censu-rando – e aparentemente, ainda nãocaiu nem o Carmo nem a Trindade ealiás, da tal sociedade que estava a ser“protegida”, só vêm elogios.

Mas acha mesmo que esse é o cer-ne da questão?Não, acho que a discussão se des-viou do seu cerne. Fora a censura e asrazões subjectivas motivantes de talprática abjecta, para mim, o pertinen-te é que o filme é crítico à nossa socie-dade. O mesmo tenciona abordar deforma positiva o comportamento so-cial do indivíduo que por sua vez se re-flecte na estrutura da sociedade crian-do um ciclo vicioso, cujas imperfei-ções temos que encarar e discutirfrontalmente, para que por sua vezpossamos avaliar formas construtivasde mudanças comportamentais e des-se modo almejarmos a edificação deuma sociedade melhor.

Pode de uma forma resumida fa-lar-nos do que narra o filme?Eu poderia ficar pelo lado superfi-cial dizendo que retrata a história detrês mulheres que partilharam umdesfecho trágico. Mas vou um poucomais a fundo; o problema é que cria-mos uma sociedade cor de rosa, comuns problemazinhos, mas sem mácu-la, e quem afirma o contrário, ou éreaccionário ou é do “deita abaixo”. O“Calvário de Joceline” tenta assumir-se como mais uma forma desprecon-ceituada de falar dos problemas queenferma a sociedade angolana, mastambém fala do que temos de melhorcomo seres humanos; fala-nos deamizade, de solidariedade e do po-der perseverante que nos impele àluta, mesmo quando a situação é de-sesperada. Estes foram afinal os va-lores que levaram as pessoas a gosta-rem do filme, uma vez que se identifi-

caram com a mensagem.Mas então porquê a polémica

que o levou a ser censurado?Em minha opinião, os censores nementenderam o que o filme dizia, tal eraa sua preocupação com o que se inferi-ria quanto a eles, relativamente aopendor crítico do filme.O argumento invocado, foi a lin-

guagem inapropriada…O cenário dominante do filme sãoos ghettos de Luanda e a prisão. Se ospersonagens falassem o português deCamões não acha que o filme seriauma comédia ao invés de drama? Emesmo assim, apenas um dos perso-nagens, dada a sua caracterização,tem os diálogos com linguagem mais“ácida”, dentre todos. Além disso,acho que o filme não seria propria-mente exibido no “Carrocel”. A RTPpor exemplo, exibiu o filme depoisdas vinte e três horas…Há mais alguma coisa que queira

mencionar?O essencial, e que até agora não foisequer referido; o programa FICTV eDOCTV da CPLP, destina-se ao inter-câmbio cultural entre os países comu-nitários. Neste contexto, obras literá-rias, publicadas nos países membros,devem ser adaptadas para filme, oufactos socio/culturais devem ser do-cumentados em vídeo, para os progra-mas FICTV ou DOCTV, respectivamen-te, sob financiamento da CPLP. Sendoo objectivo fundamental o fomento e aprodução de conteúdos áudio-visuaisem língua portuguesa. O processo inicia com um concursoem cada país membro, onde as diver-sas produtoras submetem os seus pro-jectos. Uma vez seleccionados os pro-

jectos vencedores, estes são financia-dos, sendo que uma parte do pacoteconsiste numa formação em técnicascinematográficas e de produção televi-siva. Por exemplo eu, enquanto argu-mentista/roteirista/produtor e oNgouabi, enquanto realizador, ao par-ticiparmos no workshop – que teve lu-gar em Óbidos/Portugal – recebemosuma formação ministrada por compe-tentes experts brasileiros e portugue-ses da matéria e supletivamente, tive-mos uma interacção construtiva comos formandos das produtoras das ou-tras nacionalidades (Brasil, Moçambi-que, Portugal), o que foi bastante posi-tivo. Eu tinha a esperança de que, apósesse processo todo, pudéssemos de-senvolver projectos interessantes coma TPA, à luz da experiência colhida. Im-

porta frisar que, para o desenvolvi-mento do processo, a CPLP criou pólosem cada país e o pólo Angola era inte-grado pelo IACAM e pela TPA, tendo omalogrado Pedro Ramalhoso na coor-denação, que de forma brilhante con-duziu o processo desde o início, sendodepois substituído pelo Ulisses de Je-sus, que também não comprometeu.Fora todos os percalços enfrenta-dos aquando do processo de exibi-ção do filme, julgo que o processo to-do representou uma experiência po-sitiva. Pudemos contar com todo oapoio possível. Mesmo a TPA, noprocesso de produção, foi impecávele isso é o que deve ser retido e enal-tecido. Apenas faço fé que os apren-dizados não se percam.

Momento das filmagens

Formação em Óbidos, Portugal

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Tivemos a oportunidade de lerna Gazeta a seguinte manchetecom base numa entrevista queàquele órgão de imprensa foi conce-dida pela Ministra da Cultura, Caroli-na Cerqueira: "O Ministério não devesuportar os artistas".Levantaram-se vozes, gritos mes-mo, a propósito… e portanto, nãosendo nós alheios à questão, toma-mos a iniciar de também aqui deixaras nossas opiniões. Cremos ser opor-tuno voltar ao tema e fazer luz sobreo assunto, para o que se impõe fazero enquadramento adequado da ma-téria e se possa com serenidade dis-cutir o cerne da mesma. À partida e antes de qualquer outraabordagem ou análise, importa reco-nhecer que aquela frase não esgotaaquilo que a senhora Ministra da Cul-tura disse na sua entrevista, na qualinclusive indicou as linhas de força ede actuação em favor do desenvolvi-mento cultural, em vários ângulos, in-clusive o da assistência aos artistas.Parece-me portanto exagerado anco-rarmo-nos nessa única frase para dis-cutirmos a questão. Aliás, tal frase, as-sim só, de maneira solta, acaba poracender paixões, muitas vezes sem ra-zão de ser. Para que não me fique poruma frase solta, correndo o mesmorisco de interpretação avulsa, devo di-zer que esta discussão tem muito a vercom a actual lógica invertida no sectoreditorial no nosso país, por um lado,com o resultado prático da acção nodomínio da economia da cultura e, fi-nalmente, a confusão existente entre oque se entende como o domínio da in-dústria cultural e do show business e odomínio entendido como das artes do

espectáculo ou artes performativas.Por outro lado, não podemos igno-rar que há muitos anos o país mudoude modelo económico, o que tambémse aplica ao domínio cultural.Dito isto, importará reconhecer quequanto à cultura já é desajustado aosnossos dias o pensamento dos doismaiores expoentes da economia clás-sica, Adam Smith e David Richard queconsideravam “as artes economica-mente improdutivas”. Aliás, para anossa conclusão, basta lembrar-nosque a indústria cultural nos EstadosUnidos da América, quando não ocupao segundo lugar da balança comercial,ocupa o terceiro, disputando esse es-paço com a indústria militar e a indús-tria aeronáutica, ou que em algunspaíses consiga realizar 10% do PIB na-cional; podemos ainda ter em contanesta análise o peso que elas têm empaíses como a França ou o Brasil, e quenos anos 80 na Grã Bretanha foi criadauma task force para potenciar as in-dústrias criativas no processo de saí-da da crise da indústria transformado-ra que então se vivia. Destes dados, fa-cilmente podemos compreender oponto de vista da senhora Ministra daCultura. Portanto, a questão que se de-ve colocar é a de como poderemos teruma indústria cultural forte, eficientee competente, capaz de gerar riquezapara os criadores e para a sociedade ecomo a mesmo pode e deve participarno nosso PIB, sobretudo quando di-versificar a economia é o desafio quese nos impõe.Outra questão que se levanta éaquela que emerge do enunciado pelospais da economia da cultura, W. Bau-mol e W. Bowen segundo quem, se a in-

dustrialização de bens culturais per-mitiu reduzir custos em grande escalagraças aos progressos tecnológicos, is-to não é possível nos sectores como odas artes do espectáculo onde a produ-tividade estagna. Tal obrigaria assimque estas artes encontrassem finan-ciamentos para a sua sobrevivência,fossem públicos, mistos ou privados.Chegados aqui, somos forçados aconstatar que grande parte da ques-tão em discussão, prende-se com a ló-gica invertida de que padece o nossomercado cultural e a incapacidade deas sociedades de gestão colectiva co-brarem os correspondentes direitosde autor pelo uso das criações de seusassociados e representados.Entre nós, dum modo geral, os mú-sicos e escritores têm de financiar aedição das suas obras, passando aseditoras a ser meros prestadores deserviços. Ao nível mundial, a lógica daedição é a inversa. É o editor quem fi-nancia as edições e remunera o autor,nos termos do contrato que haja sidocelebrado. A isso, adicionalmente, en-tram nos bolsos dos autores os valoresa que tenha direito, cobrados e repar-tidos pelas sociedades de gestão co-lectiva, ou seja, pelas sociedades ecooperativas de autores que fazem agestão colectiva dos direitos dos auto-res. Tais cobranças têm a ver com achamada “execução ou utilização pú-blica de obras publicadas” (rádios, te-levisões, restaurantes, shows, enfim,todos os espaços que usam músicaambiente) e com a “cópia privada”,aquela que se faz nos CDS, DVDs, pendrives, fotocópias. Estes suportes emáquinas de registo ou cópia devemincorporar no seu preço um valor cor-

respondente aos direitos de autorpois, quando é comprado um suportevirgem, supõe-se que nele se vai gra-var alguma obra, mesmo que não sesaiba de quem. Isto é outro assunto;tal prende-se com a “chave de reparti-ção”, ou seja, com o critério a usar nadistribuição do resultado das cobran-ças. Portanto, aqui a responsabilidadedeverá ser repartida entre os váriosactores, ou vários possíveis actores.Não podemos pois levar ao extremoa afirmação da senhora Ministra daCultura. Como já referimos, a questãoque se deve colocar é a de como pode-remos ter uma indústria cultural forte,eficiente e competente, capaz de gerar“trabalho” e que crie oportunidadesprofissionais aos autores de modo aque estes, como outros profissionais,possam viver do resultado do seu tra-balho, sem ficar a depender de “subsí-dios e doações” e, do mesmo modo, te-nham um enquadramento no sistemanacional de segurança social, sem pre-juízo de iniciativas mutualistas pró-prias. Claro está que, ao conceder o es-tatuto de Associação de Utilidade Pú-blica a algumas associações de auto-res, de artistas e outras e ao conceder-lhes financiamento anual, não se podedizer que o Estado e o MINCULT sejamalheios à classe e aos problemas so-ciais dos artistas. Porém, estamos con-vencidos que a própria acção das asso-ciações deverá ser o elemento princi-pal na solução dos problemas dos res-pectivos associados.• Economista, Diplomado em Estu-

dos Superiores • Especializados de Política Cultural

e Acção Artística

APOIO AOS ARTISTAS, UMA QUESTÃO DE PERSPECTIVA

ANTÓNIO FONSECA*

Artistas angolanos

13 a 26 de Fevereiro de 2018 | Cultura12 | ARTES

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HUGH MASEKELAJOSÉ LUÍS MENDONÇAQuem escutar "Stimela (CoalTrain)", do álbum "I Am NotAfraid", uma canção introspec-tiva e sombria de Hugh Masekela, quefaz referência ao trem que transpor-tou os mineiros de Joanesburgo com-preenderá porque essa melodia ante-cede e sinaliza a chegada de uma novamúsica-mundo. Nos acordes dessamúsica perpassam o fogo e o ritmo dongoma, e o jazz submete-se à trepida-ção da sua pele.Este estilo musical de Msekela ad-vém do interesse renovado pelas suasraízes africanas que levaria Masekelaa colaborar com músicos da ÁfricaOcidental e Central , e, finalmente, a sereconectar com os músicos sul-africa-nos, quando montou, com a ajuda daJive Records, um estúdio móvel emBotswana, próximo da fronteira daÁfrica do Sul, entre 1980 a 1984. Aquiele absorveu e reutilizou influênciasdo mbaqanga, um estilo que ele conti-nuou a usar desde o seu retorno à Áfri-ca do Sul no início da década de 1990.Em 1985 Masekela fundou a EscolaInternacional de Música de Botswana(BISM), que realizou a sua primeiraoficina em Gaberone naquele ano. Oevento, ainda existente, continua co-mo o Botswana Music Camp, dando amúsicos locais de todas as idades e detodas as origens a oportunidade de to-carem juntos. Masekela leccionava ocurso de jazz na primeira oficina, e to-cava no concerto final.Frequentou a Escola de Música deManhattan, em Nova York, onde es-tudou trompete clássico de 1960 a1964. Em 1964, Makeba e Masekelase casaram, divorciando-se dois anosmais tarde.O trompete como armaNascido e criado na opressão doapartheid sul-africano, em meados dadécada de 1950, Hugh Masekela tor-nou-se um dos mais requisitados mú-sicos jovens em toda a África do Sul.Trabalhou com o pianista AbdullahIbrahim e com o seu próprio parceiromusical e futuro cônjuge, a cantoraMiriam Makeba. Empunhando o seutrompete como uma arma, tornou-seum artista puro e poderoso, inspiradopor artistas afro-americanos comoMiles Davis e Paul Robeson.A canção "Soweto Blues", cantadapor sua ex-esposa, Miriam Makeba, éuma peça blues/jazz em memória domassacre de Soweto em 1976.Masekela nasceu em Kwa-GuqaTownship, Witbank, África do Sul. Co-meçou a cantar e a tocar piano quandocriança. Com 14 anos de idade, depois

de ver o filme Young Man with a Horn(em que Kirk Douglas interpreta umpersonagem inspirado no cornetistade jazz norte-americano Bix Beider-becke), Masekela passou a tocar trom-pete. O seu primeiro trompete foi-lhedado pelo Arcebispo Trevor Huddles-ton, o capelão anti-apartheid da St. Pe-ter's Secondary School. Huddleston pediu ao líder da entãoJohanesburg "Native" Municipal BrassBand, Uncle Sauda, para ensinar a Ma-sekela os rudimentos do trompete.Masekela rapidamente dominou o ins-

trumento. Em breve, alguns de seus co-legas de escola também se interessa-ram em tocar instrumentos, levando àformação da Huddleston Jazz Band, aprimeira orquestra juvenil da Áfricado Sul. Em 1956, depois de liderar ou-tros conjuntos, Masekela juntou-se aoAfrican Jazz Revue de Alfred Herbert.A partir de 1954, Masekela tocoumúsica que reflectia a sua experiênciade vida. A agonia, o conflito e a explo-ração enfrentadas pela África do Suldurante as décadas de 1950 e 1960inspiraram e influenciaram-no a fazer

música e também a espalhar a mudan-ça política. A sua música vividamenteretrata as lutas e dores, bem como asalegrias e paixões de seu país. A suamúsica protestou contra o apartheid,a escravidão, o governo; as dificulda-des que indivíduos estavam vivendo.Masekela atingiu uma grande parte dapopulação que também se sentia opri-mida devido à situação do país. ExílioNa sequência do massacre de Shar-peville em 21 de Março de 1960, onde69 manifestantes foram mortos a tiroem Sharpeville, e à proibição pelo go-verno da África do Sul de reuniões dedez pessoas ou mais, bem como ao au-mento da brutalidade do estado doApartheid, Masekela deixou o país. Foiajudado por Trevor Huddleston e ami-gos internacionais, tais como YehudiMenuhin e John Dankworth, que o ins-creveram na London Guildhall Schoolof Music. Durante esse período, Mase-kela visitou os Estados Unidos, ondefoi acolhido por Harry Belafonte. Quando se inscreveu na prestigiadaManhattan School of Music, ficou ex-posto ao jazz americano e à cultura dacidade de Nova Iorque. À medida que asintensas mudanças culturais dos anos60 se desdobraram, a música de Mase-kela também começou a mudar, incor-porando elementos musicais contem-porâneos na mistura. Juntamente comuma nova onda de bandas de rock, Ma-sekela foi introduzido na consciênciaamericana pela sua aparição no Festival

JAZZ TREPIDANTE NA PELE DO NGOMA

DIÁLOGO INTERCULTURAL | 13Cultura | 13 a 26 de Fevereiro de 2018

Hugh Masekela

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Pop de Monterey de 1967, onde real-mente emergiu, junto com artistas co-mo Jimi Hendrix e Janis Joplin. No anoseguinte, atinge com "Grazing In TheGrass" o n. ° 1 nas tabelas pop e R & B.“Languta”Depois de uma onda de sucesso po-pular no final dos anos 1960, Maseke-la voltou para a sua terra natal em1970, juntando-se a Miriam Makebapara um passeio pela Guiné. Foi du-rante essa turné que conhece o músiconigeriano do afrobeat Fela Kuti, e abanda ganense, Hedzoleh Soundz, queestavam a arder por toda a África comuma nova forma de jazz-funk que foifortemente influenciado pelos ritmosentrelaçados de afrobeat e a espessamelodia de James Brown. Em 1973,eles fizeram o álbum inovador, "Intro-ducing Hedzoleh Soundz". Mesmopassadas várias décadas, este álbumcontinua sendo um dos exemplosmais convincentes de um músico dejazz trabalhando sob uma autênticaforma de música africana. É justamen-te considerado um dos álbuns de fu-são afro-americanos mais influentesde todos os tempos.O que nos leva a 1974, quando Ma-

sekela e Hedzoleh Soundz trouxerama sua música altamente original ao pú-blico americano pela primeira vez. Fe-lizmente, esta gravação da RecordPlant captura esse momento históricocom clareza cristalina. Um dos melho-res exemplos aqui é "Languta", umafaixa destacada do álbum acima men-cionado. Cada segundo desta perfor-mance é temperado com ritmos africa-nos voláteis e trabalhos subtis de vio-lão. Acrescente a estas corridas detrompete de Masekela os vocais afe-gãos afiados, e uma onda de som tur-bulenta envolve o ouvinte num mundocheio de emoção. Tão cerebral quantoessa música é, continua a ser, finalmen-te dançável. No final deste conjuntonotável, o grupo começa a adelgaçar-se, primeiro com "Love Song For A Jun-gle Afternoon", trazendo luz para asensação mais escura de algumas dasmúsicas que a precederam. Tomadacomo um todo, essa longa composiçãofaz sentir a boa música no seu sentidomais literal, espalhando uma mensa-gem musical de amor que transcendequaisquer barreiras linguísticas. Prémios e homenagens2 vitórias e 7 indicações para o Grammy.

Rhodes University:Doutor em Músi-

ca (honoris causa), 2015Universidade de York: DoutoradoHonorário em Música 2014Ordem de Ikhamanga: CerimóniaNacional de Ordens Sul-Africanas, 27de Abril de 2010.

Ghana Music Awards: 2007 Prémiode Lenda da Música Africana2005 Channel O Music Video Awards:Lifetime Achievement Award2002 Radio BBC Jazz Awards:PrémioInternacional do Ano Indicado para oPrémio Tony de Melhor Composição(Musical) de 1988, com música e letraMbongeni Ngema, por Sarafina.

Nascimento: 4 de Abril de 1939Local de nascimento: Witbank,África do SulData de morte: 23 de Janeiro de2018 (78 anos)Género(s): Jazz, mbaqangaOcupação(ões): cantor, compositor,bandleader, instrumentistaInstrumento(s): trompete, fluge-lhorn, trombone,corneta, vocalPeríodo em actividade:1959-2018Gravadora(s): Mercury, MGM, Uni,Chisa, Blue Thumb, Casablanca Re-cords, Heads Up, Verve, Polygram

Mesmo passadas várias décadas, “Introducing

Hedzoleh Soundz” continua sendo o exemplo mais convincente

de um músico de jazz trabalhando

sob uma autêntica forma de música

africana

Sinto que a minha lide está no fim. Não ganhei bastante para tamanho de-sembolso. Com a cinza na retina já ombreio com a névoa. Bem, ainda respi-ro e tenho ensejo de reportagem. Aqui no Paços do concelho de Sam Fe-cundo onde me encontro, estou sentado, ao lado de outras pessoas do meio ar-tístico-cultural e não só,para assistir ao lançamento de mais uma cria do meu-prezadoconterrâneo, Fragoso Esteio. Está a ser um dia de bonita e concorridaromaria a este lugar, com uma enchente plurale proveniente de todos os recan-tos da ilha. Neste seu mais recente livro«Antologia de Figuras de Preito», faz oVateuma vibrante alocução acerca do hino dos grilos. E,na sequência, fala deti-damente da então concórdiareinante no seio dacomunidade, graças à exímiaserenatacom que esses bichos presenteavam a povoação. «Os grilos» - está elenovamentea dizer -, «eram para mim uma orquestra de sublime estirpe. Propi-ciando-me acesso a uma diletae desejada imaginação, cobrindotodo meu mun-do onírico de rica fantasia». E remata «eles afogavam meusmedos de criança emseus ledos acordes de perene adoração». Num outro poema,exalta o excelsomonte sobranceiro da baía e chama-lhe«pavão de infância». Para, no passo seguinte,pintaro Poço de Azedinha e Fonte-a-Velha, Achada de Ramboia e Passa Sabe, Achada de Pobreza e Piso Térreo, aÁrvo-re de Páscoaem frente à Praça, mandada vivificar por um suíço religioso aqui es-calado. Depois, disserta sobre os ramos de oliveira e das amêndoas deocasião.Sempôr de lado as guloseimas duma antiga vendedeira do mercado daEnseada. Evocacom saudade e requintado pormenor, com redobrada minúciaaté, as aventuras do tempo da catequese, o roteiro da oficinaelemental e sua ex-periência inaugural no manejo das palavras.O tipo escreve fulgurosamentebemem língua lusa, mas a palestrar prefere sempre a de ático timbre nacional. Euchego aqui empurrado por um cobalto de duas patas. Estou a ser o centro de to-das as atenções. Não que seja paparicado ou que a minha presença inspire gran-de carinho e admiração, mas tão só pelo enorme pesar que as pessoas têm da mi-nha situação. Sinto que alguns olham para mim com cara triste e solidária, comose estivessem a captar os últimos instantes de um pôr do sol.Da minha parte, eu que estou na bancada de convidados, ao lado de uma jane-la, empenho-me em cheio paragravar a imagem da sala e sua bela composição noarquivo da minha mente.A ideia éreproduzi-la,intotum,numa tela. E através dela

dar a nova da ingentevida cultural do povo da minha terra ao nobre titular dodom de ubiquidade.Quando passar para o lado de lá da linha,tentarei recriaro ce-nário que aqui tenho.Numa exposição oferecida aos meus coevos exilados farei apartilha.Porém, de momento,estou a magicar na dolorosa realidade de não maisvoltar a pisar a âncora de antanho, dando largas passadas na orla de suapraia efora dela. O que mais me inquieta e tira sono é o facto de saber que já não posso-penetrar Ribeira de Candura adentro e percorrer a sua extensa via verde, nem-trepar Cutelo de Sol na Fronte, Alto de Lacão e Milho Pula, frondosaAchadaEquestre, Monte de Limeira e Cume Hircino. A não ser em voonoturnoe silencio-so, mas tudo dependendose compatível com bel talantedodono de meu ser re-manescente.Contudo, importa esclarecer: eu não sofro de maleita nenhuma. Es-tou apenas é cansado e quiçá manco de esperança, azafamado e a penejar o tem-po todo, nesta achada de peleja e sob peso deste andrajo, seguindo o vaticíniodum crioulo, no encalço do seutalento d’ouro e do seuquilate de diamantes «pad-jobi, padjobi, padjobi», como majestosamentecanta um aguerrido trovador.*Nas vestes de Donato de Advento

DE CINZA NA RETINADomingos Landim de Barros(Cabo Verde)

14 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 13 a 26 de Fevereiro de 2018 | Cultura

Olho de Órus

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UMA GALINHA

BARRA DO KWANZA | 15Cultura | 13 a 26 de Fevereiro de 2018

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de novehoras da manhã.Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Nãoolhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolhe-ram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se eragorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar opeito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instanteainda vacilou – o tempo da cozinheira dar um grito – e em breve estava noterraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou o telhado. Láficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foichamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. Odono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamentealgum desporto e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveuseguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado ondeesta, hesitante e trémula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguiçãotornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de umquarteirão de rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinhatinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio dasua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais íntima quefosse a presa, o grito de conquista havia soado.Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentra-da. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o ra-paz galgava outros com dificuldade, tinha tempo de se refazer por um mo-mento. E então parecia tão livre.Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que éque havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É ver-dade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contavaconsigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantasgalinhas que, morrendo uma, surgiria no mesmo ins-tante outra tão igual como se fora a mesma.Afinal, numa das vezes em que parou para go-zar a sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gri-tos e penas, ela foi presa. Em seguida carre-gada em triunfo por uma asa através das te-lhas e pousada no chão da cozinha com certaviolência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, emcacarejos roucos e indecisos.Foi então que aconteceu. De pura afobação, a gali-nha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosseprematuro. Mas logo depois, nascida que fora para amaternidade, parecia uma velha mãe habituada.Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abo-toando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pe-queno num prato, solevava e abaixava as penas, en-chendo de tepidez aquilo que nunca passaria de umovo. Só a menina estava perto e assistiu tudo estarreci-da. Mal porém conseguiu desenvencilhar-se do aconteci-mento, despregou-se do chão e saiu aos gritos: – Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs umovo! ela quer o nosso bem!Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jo-vem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suavenem arisca, nem alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. Oque não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filhaolhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qual-quer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:– Se você mandar matar esta galinha, nunca mais comerei galinha na mi-nha vida!– Eu também! jurou a menina com ardor.A mãe, cansada, deu de ombros.Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar coma família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interrom-per a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E

dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainhada casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraçodos fundos, usando suas duas capacidades: a da apatia e a do sobressalto.Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, en-chia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga e circulava peloladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, em-bora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velhosusto de sua espécie já mecanizado.Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinhaque se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nessesmomentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado àsfêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Emboranem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga,no descanso, quando deu à luz ou bicando milho – era uma cabeça de galinha,a mesma que fora desenhada no co-meço dos séculos.Até que um dia mata-ram-na, comeram-na epassaram-se anos.

Clarice Lispectornasceu em Tchet-chelnik, Ucrânia, no dia 10 de De-zembro de 1920. Chegou ao Brasilem Março de 1922, passou a infân-cia na cidade do Recife e em 1937mudou-se para o Rio de Janeiro, on-de se formou em Direito.

Clarice Lispector estreou-se na li-teratura ainda muito jovem com oromance "Perto do Coração Selva-gem" (1943), que teve calorosa aco-lhida da crítica e recebeu o PrémioGraça Aranha.

Em 1944, recém-casada com umdiplomata, viajou para Nápoles, on-de serviu num hospital durante osúltimos meses da Segunda Guerra.Depois de uma longa estada na Suí-ça e nos Estados Unidos, voltou amorar no Rio de Janeiro.

Clarice Lispector começou a co-

laborar na imprensa em 1942 e, aolongo de toda a vida, nunca se des-vinculou totalmente do jornalismo.Trabalhou na Agência Nacional enos jornais A Noite e Diário da Noite.Foi colunista do Correio da Manhã erealizou diversas entrevistas para arevista Manchete. A autora foi cro-nista do Jornal do Brasil. Produzidosentre 1967 e 1973, esses textos estãoreunidos no volume "A Descobertado Mundo".

Entre suas obras mais importan-tes estão a antologia de contos "ALegião Estrangeira" (1964), "Laçosde Família" (1972), os romances "APaixão Segundo G.H." (1964) e "AHora da Estrela" (1977).

Clarice Lispector faleceu no Riode Janeiro no dia 9 de Dezembro de1977.

CLARICE LISPECTOR

galinha guinea

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