arte construtiva no brasil

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H A R O L D O D E C A M P O S

Arteconstrutivano Brasil

O Construtivismo brasileiro tem suasraízes na década de 1950. De fato, em 1949 sesituam as primeiras atividades de artistascomo Waldemar Cordeiro (pesquisas comlinhas horizontais e verticais: criação do ArtClub de São Paulo, dedicado ao expe-rimentalismo) bem como os experimentos ini-ciais de Abraham Palatnick com a luz e a cor;de Mary Vieira com volumes; de Geraldo deBarros com “fotoformas”. Como precursorasdessa tendência se poderiam citar, nos anos20, as estruturas neocubistas de Tarsila doAmaral (1886-1973), animadas por um“colorismo” voluntariamente ingênuo, “cai-pira”. Tarsila fora discípula, em Paris, deLhote, Gleizes e Léger e, de volta ao Brasil,lançara a “pintura pau-brasil”, da qual, poste-riormente, se desenvolveu a “pinturaantropofágica”. Casada com o poeta e roman-cista experimental Oswald de Andrade (1890-1954), a mais dinâmica figura do Modernis-mo de 22, com ele se empenhou nos homôni-mos movimentos de vanguarda anunciadospor memoráveis manifestos oswaldianos.Outro pioneiro foi Vicente do Rego Monteiro(1899-1970), ativo em Paris e no Brasil, in-

Depoimento por ocasião dos

40 anos da Exposição

Nacional de Arte Concreta

Waldemar

Cordeiro, O Beijo,

1967

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fluenciado, em suas figurações geométricas,tanto pela tendência art déco quanto por umcubismo estilizado e “tropicalizado”(“primitivista”).

Em 1950, Max Bill apresenta uma expo-sição individual no Museu de Arte Modernade São Paulo (fundado em 1947) e, em 1951,recebe o Prêmio Internacional de Esculturacom a “Unidade Tripartita”, na I Bienal deSão Paulo. Nesse mesmo ano, Mary Vieira eAlmir Mavignier deixam o Brasil: a primeirapara estudar com Max Bill e radicar-se naSuíça (Basiléia); o segundo, para matricular-se na Escola Superior da Forma (Hochschulefür Gestaltung), Ulm, e radicar-se na Alema-nha. Em 1952, forma-se o grupo de pintoresconcretos de São Paulo, liderados porWaldemar Cordeiro (jovem artista ítalo-bra-sileiro, educado em Roma, ideologicamenteinfluenciado pelo marxismo gramsciano). O

grupo, inicialmente constituído por Charroux,Geraldo de Barros, Fejer, Leopold Haar,Sacilotto e Anatol Wladislaw, além de Cor-deiro, lança um polêmico manifesto, sob otítulo “Ruptura”. Aos construtivistas de “Rup-tura” logo se aliam os poetas do grupoNoigandres (revista-livro fundada em 1952,em São Paulo, por Augusto e Haroldo deCampos e Décio Pignatari). Das atividades eexperimentos do grupo Noigandres emergi-ria, entre 1953 e 1956, o movimento de “po-esia concreta”, cujo lançamento público iriaocorrer na Exposição Nacional de Arte Con-creta (São Paulo, dezembro de 1956; Rio deJaneiro, fevereiro de 1957), na qual tomaramparte poetas e artistas plásticos de São Pauloe do Rio de Janeiro. Os construtivistas do Riopertenciam ao grupo Frente, fundado em 1954,sob a liderança de Ivan Serpa; quanto à poe-sia, participavam da mostra o poeta e críticode arte Ferreira Gullar (maranhense de nasci-mento), expressamente convidado porAugusto de Campos, e o matogrossenseWladimir Dias Pino.

No plano internacional, o movimento, nasua dimensão poética, foi co-lançado pelopoeta suíço-boliviano Eugen Gomringer (se-cretário de Max Bill na Escola Superior daForma), a quem Décio Pignatari encontraranuma visita a Ulm, em 1955 (Gomringer cha-mava Konstellationen suas composições deestrutura ortogonal e linguagem reduzida,escritas em alemão, francês, inglês e espa-nhol, mas aceitou a denominação geral poe-sia concreta/konkrete dichtung, proposta pelogrupo Noigandres, que, por sua vez, costu-mava designar por “ideogramas” seus poe-mas, em geral de semântica mais complexa,plurilíngües e de múltiplas direções de leitu-ra). A cooperação entre os poetas concretosbrasileiros e Gomringer resultou numa kleineanthologie konkreter poesie, de âmbitoplurinacional, editada pelo poeta das “cons-telações” no número 8 da revista Spirale (Ber-na, 1968). Em 1959, os artistas concretos doRio, sob a liderança de Ferreira Gullar, lan-çam a dissidência denominada Neocon-cretismo, anunciada por um manifesto publi-cado no Jornal do Brasil, cujo SuplementoDominical se convertera na tribuna dos poe-tas e pintores da vanguarda brasileira. No

Max Bill, ‘Unidade

Tripartida’, 1948/49

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plano estético, o dissídio explicava-se peladiferença de formação do grupo carioca, emespecial de seu porta-voz e teórico, FerreiraGullar, cuja concepção artística procedia damatriz surrealista francesa, aguçada pelosonorismo glossolálico e fraturado de AntoninArtaud, e decantada pelo cubismo e pela abs-tração geométrica, uma concepção de fortemarca subjetivista; os paulistas, acusadospelos cariocas de “racionalistas”, defendiam,na verdade, um “racionalismo sensível”, umadialética “razão/sensibilidade”, que não dis-crepava da máxima de Fernando Pessoa “Tudoque em mim sente está pensando” e que nãoencontraria maiores objeções da parte doMallarmé da “geometria do espírito”, doLautréamont do elogio às matemáticas, doPound da equação “poesia” igual a “matemá-tica inspirada” e, entre nós, do João Cabraldo lecorbuseriano e valeryano O Engenheiro(1945), mas que irritava o expressivismosubjetivista do grupo do Rio, sobretudo deseu mentor no nível crítico-teórico. Os pinto-res de São Paulo estavam influenciados peloneoplasticismo de Mondrian, peloconstrutivismo derivado do De Stijl holan-dês, pelos futuristas italianos e pela vanguar-da russa (Gabo, Pevsner, Tátlin, Lissístzki –Maliévitch também, no seu extremadodespojamento “suprematista”, apogeu decerta leitura do cubismo), bem como pela

experiência participativa do Bauhaus deGropius, retomada no pós-guerra pela Escolade Ulm, dirigida por Max Bill, onde leciona-va o filósofo de estética e semioticista MaxBense. O principal alvo dos “neo” artistas doRio, que juntaram (para distinguir-se) umprefixo neo ao concretismo, era WaldemarCordeiro, teórico de idéias combativas e for-mação marxista não-jdanovista; lembre-se, apropósito, o ataque de Theon Spanudis, cole-cionador de arte, psicanalista e poeta amador,alistado ao “neoconcretismo” desde o primei-ro momento, aos poetas de Noigandres, quelhe pareciam “barroquizantes” em confrontocom o despojado Gomringer, e que estariamsob a “deletéria” influência do “marxista”Cordeiro (cf. “Gomringer e os Poetas Con-cretos de São Paulo” in Suplemento Domini-cal do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15/9/57). Forte componente da discórdia entreambas as facções construtivistas (a “concre-ta” e a “neo”) estava situada, portanto, noplano da política artística, com matizesreivindicativos de prestígio regional, quandonão eram meramente idiossincráticos, de“desafinidades” eletivas: caso de Willys deCastro e de Barsotti, que, apesar de umaefêmera participação na Galeria NT (1963),incompatibilizaram-se com o agressivo Cor-deiro e, conseqüentemente, buscaram abrigojunto à dissidência carioca, onde foram bem

Luis Sacilotto,

‘Concretion 5732’,

1957

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aceitos. Hoje essas divergências, em boa par-te, dados os méritos respectivos dos artistasplásticos envolvidos, pertencem sobretudo à“pequena história” e não relevam; que diver-gência maior havia, por exemplo, salvo o tim-bre intransferível da personalidade de cadaum, entre o construtivista já “op” Sacilotto eos escultores Franz Weissman ou Amilcar deCastro, ou ainda entre o mesmo Sacilotto e aLygia Clark da fase anterior a suas inventivasintervenções plástico-terapêuticas ecomportamentais (das borrachas contor-sionistas às tramas de fios e baba salivar)?Razão tinha Hélio Oiticica, o mais jovem eum dos mais ousados e criativos entre os ar-tistas do Rio, quando, em 1967, deu o exem-plo de largueza de compreensão e superaçãode ressentimentos, ao organizar a exposição“Nova Objetividade Brasileira”, sob o signoda relativização dos “ismos” e da “vocaçãoconstrutiva” como ideal comum, convidandopara dela participar o inimigo número 1 do“neoconcretismo” carioca, Waldemar Cordei-ro, que então desenvolvia, em cooperação como poeta Augusto de Campos, a fase “pop-creta”de seu trabalho (exposição na galeria Atriumde São Paulo, 1964), bem como artistas maisnovos (Antonio Dias, Gerschman, o grupo li-gado a Wesley Duke Lee).

Quanto ao “neoconcretismo” em poesia,foi tendência de curta duração, que deixoumagro saldo. Gullar, convertendo-se a umalinha populista de impostação neojdanovista,partiu já em 1962 para o malogro equivocadodo Violão de Rua, tornando-se porta-voz dasteses dogmáticas do CPC (Centro Popular deCultura). Na ocasião, os poetas concretos deSão Paulo, alinhados ideologicamente à es-querda, porém “anti-stalinistas”, anti-“realis-mo socialista”, reclamavam-se, por sua vez,de Maiakóvski (“sem forma revolucionária,não há arte revolucionária”; “a novidade, no-vidade do material e do procedimento, é indis-pensável a toda obra poética”; ver o “PS-1961”,acrescentado ao “Plano-Piloto para PoesiaConcreta” de 1958�– in Teoria da Poesia Con-creta, Textos Críticos e Manifestos, EdiçõesInvenção, 1965; 3a edição, São Paulo,Brasiliense, 1987). Hoje, passados 40 anos daExposição Nacional de Arte Concreta (quan-do eu próprio, já há mais de duas décadas, não

faço “poesia concreta” no senso estrito doconceito, embora continue perseguindo aconcretude na linguagem e prossiga nutrindo-me do ostinato rigore da fase concretista dosanos 50 e 60), parece-me que ambas as orien-tações artísticas daquele período fecundo epolêmico, com as naturais diferenças de tem-peramento e realização, podem ser vistas comovariantes – até complementares – de um “Pro-jeto Construtivo Brasileiro”, título, aliás, dagrande exposição retrospectiva apresentada,em 1977, no MAM do Rio e na Pinacoteca doEstado de São Paulo, sob a curadoria da críticae historiadora de arte Aracy Amaral.

O grande mestre, aliás, respeitado porambas as tendências e respaldado pela críticade São Paulo (Mário Schenberg à frente) e doRio (Mário Pedrosa), foi Alfredo Volpi (1896-1988), cujo centenário de nascimento se co-memora este ano. Nascido em Lucca, na Itá-lia, e jamais naturalizado formalmente, Volpiteve um longo convívio com os pintores epoetas concretos paulistas (Décio Pignatari odefinia como um “Mondrian trecentista”).Equivocadamente tido por alguns como umpintor “primitivo”, o lacônico mas jucundoVolpi era na verdade um sábio, um refinadomestre do olhar e do gesto pictórico, sobera-no no trato das “estruturas elementares” (porassim dizer) da visualidade e da cor (obtidapor um sutilíssimo domínio da têmpera).

A arte concreta no Brasil – que entretémremotas afinidades com o geometrismo dacerâmica e dos motivos de pintura corporalindígena, assim como com o pré-cubismo dasesculturas e objetos religiosos africanos; queemergiu coincidentemente no tempo com acriação de Brasília, a nova Capital, por obra doarquiteto Oscar Niemeyer e do urbanista Lú-cio Costa – teve grande influência no design(sobretudo por obra de Alexandre Wolner eGeraldo de Barros e, no plano teórico, pelasintervenções de Décio Pignatari); na propa-ganda (Fiaminghi, Pignatari, Mavignier); nareformulação visual da imprensa (Amilcar deCastro, em 1957, programou o novo lay-outdo Jornal do Brasil, diário de alcance nacio-nal, que abrigava as manifestações da vanguar-da construtivista); junto à música de vanguar-da, cujos compositores publicaram seu mani-festo no número 3 da revista Invenção, junho

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de 1963, dirigida pelos concretos de São Pau-lo, como também junto à nova musica popular(o sofisticado movimento tropicalista de Cae-tano Veloso e Gilberto Gil, influenciado poridéias de Hélio Oiticica, pela prática inovado-ra da poesia brasileira – de Oswald e JoãoCabral à poesia concreta – e apoiado, pionei-ramente, no plano crítico e musicológico, porAugusto de Campos; cf. Augusto de Campos,O Balanço da Bossa e Outras Bossas, SãoPaulo, Perspectiva, 1974; 1a ed., 1968). Já em1960, mesmo após a manifestação pública dadissidência “neo”, artistas de ambas as verten-tes construtivistas concorriam simultaneamen-te à grande exposição konkrete kunst, organi-zada por Max Bill em Zurique, regida por umcritério abrangente, gesto de amplitude queseria repetido em 1967 por Hélio Oiticica (emcontato e correspondência com os poetas con-cretos de São Paulo – Haroldo de Campos eDécio Pignatari sobretudo – a partir daqueladécada e até o seu falecimento em 1980).

Da ótica dessa “nova objetividade” ou“novo objetivismo” (veja-se o texto de HélioOiticica “Esquema Geral da Nova Objetivi-dade”), a arte construtivista brasileira consti-tui um magnífico exemplo da “antropofagia”cultural, preconizada por Oswald de Andrade:devoração crítica do legado universal sob aperspectiva da “diferença” brasileira. “Somosconcretistas”, escreveu, com efeito, Oswaldem seu fundamental “Manifesto Antropófa-go” de 1928, referindo o exemplo “sonorista”(zaúm, diriam os futuristas russos) extraídode uma canção indígena brasileira (em línguatupi-guarani): “catiti catiti/imara notiá/notiáimara/ipeju”. E se, de fato, como já ficou dito,o construtivismo brasileiro pode reivindicarraízes pré-cabralinas na arte aborígine – dacerâmica à pintura corporal e a essa verdadei-ra joalheria de cores em acorde luminoso queé a arte plumária –, por um lado; por outro,encontra manifestas afinidades com o jogode formas combinatórias, vertiginosas, denosso Barroco miscigenado, de tradição ibé-rica mas caldeado no trópico, cuja extroversãopública se dá, por exemplo, na “festa” comu-nitária dos “triunfos” eclesiástico-dramáticos,tão bem estudada por Affonso Ávila (nossomaior especialista nesse campo inter-semiótico, onde coexistem aspectos lúdicos

verbais e não-verbais); revela também, pormais de uma faceta, traços de congenialidadecom relação às manifestações populares,barroquizantes em seu esplendormulticolorido e em suas evoluções rítmico-alegóricas, tais como o carnaval do Rio (maispagão e urbano) e o da Bahia (onde o elemen-to afro tinge de sacralidade o vistoso dos tra-jes e o cerimonioso dos passos nos desfiles);não à-toa Hélio Oiticica, músico da plástica epassista da Mangueira, soube sintetizar essasharmonias “simpoéticas” na invenção do“parangolé” (asa-delta para o êxtase, como jáo defini).

POST-SCRIPTUM 1996

Este trabalho, ora reproduzido com algunsretoques e acréscimos, foi publicado apenasem versão alemã, sob o título “Die Konkretenund die Neo-Konkreten”, no volume Brasilien– Entdeckung und Selbstentdeckun (Brasil,Descobrimento e Autodescobrimento), catá-logo da exposição levada a efeito noKunsthaus Zürich, em 22/5-16/8 de 1992(Bern, Benteli Verlagen, 1992).

Passados cerca de quatro anos desse even-to, e ocorrendo neste ano de 1996, em dezem-bro, o quadragésimo aniversário da Exposi-ção Nacional de Arte Concreta, pareceu-menecessário atualizar e completar o texto aci-ma com algumas reflexões, à maneira de de-poimento pessoal.

Pioneirismo construtivista

Uma curiosa e pouco assinalada contri-buição, precursora da orientação estética queculminou na “arte concreta” dos anos 50,encontra-se, entre nós, no artigo “Cons-trutivismo”, de Jacob M. Ruchti (1917-74),publicado no número 4 (setembro de 1941)da revista Clima (órgão dos jovens críticosuniversitários que Oswald de Andrade bati-zou “chato boys”, numa tirada jocosa que fezfortuna). O artigo vem ilustrado por um tra-balho de Ruchti intitulado “Espaços”. Nessetexto, o “construtivismo” é, de início, assimi-lado pura e simplesmente à “arte abstrata”,embora no remate de sua exposição o autorespecifique:

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“A palavra ‘abstrataí não tem sentido,desde que uma forma materializada é sem-pre concreta. Qualquer obra de arte é emsi um ato de abstração, porque nenhumaforma material, ou acontecimento natu-ral, pode ser re-realizada. Do mesmomodo, qualquer obra de arte, na sua exis-tência real sendo uma sensação percebidapor nossos sentidos, é concreta”.

Como exemplo de “arte construtivista”,Ruchti menciona os “móbiles” de AlexanderCalder, aclarando:

“As suas esculturas móveis, algumas deproporções gigantescas, são impulsiona-das em parte pela força do vento, em partepor motores. Uma pequena plástica mó-vel de Calder esteve exposta aqui em SãoPaulo no 3o Salão de Maio de 1939, ondealiás o movimento construtivista em arteesteve notavelmente representado”.

Não encontrei mais elementos a respeitodesse artista no manuseio da coleção de Cli-ma, uma revista conduzida, sobretudo, porjovens críticos literários procedentes da Fa-culdade de Filosofia, Ciências e Letras, darecente criação, revista de novos que, nãoobstante, no plano da escolha estética, reve-lava um acentuado pendor tradicionalista; napoesia, por exemplo, destacavam-se nas pre-ferências de Clima um poetastro “prole-tarizante”, merecidamente esquecido, RossiniCamargo Guarnieri (o mesmo contra quemOswald lançou o slogan de combate: “A massaainda comerá do biscoito fino que fabrico”),bem como representantes da coetânea – e, doângulo poético, em larga medida congenial –“Geração 45”; grande apreço manifestavam,aliás, os jovens “climatistas” pela líricaretórico-enxundiosa do, hoje ilegível,Augusto Frederico Schmidt, negligenciando,no mesmo passo, a poesia-minuto de Oswald(que disso se queixa justificadamente em“Antes do Marco Zero” – in Ponta de Lança,1944).

Sobre Ruchti e os Salões de Maio, a fonteobrigatória de consulta é o precioso livro-depoimento de Paulo Mendes de Almeida,De Anita ao Museu (São Paulo, Comissão de

Literatura, Conselho Estadual de Cultura,1961). Três capítulos dessa obra são dedica-dos aos Salões, o primeiro dos quais, realiza-do em 1937, nasceu da idéia do crítico Quirinoda Silva, ajudado na execução do projeto porGeraldo Ferraz (ex-secretário-“açougueiro”da oswaldiana Revista de Antropofagia, nafase da chamada “Segunda Dentição” ) e porPaulo Ribeiro de Magalhães, Flávio de Car-valho e Madeleine Roux. O segundo Salãoinaugurou-se em 27 de junho de 1938, no GrillRoom do Esplanada Hotel, com Flávio de Car-valho, como no primeiro, atuando nos basti-dores, de preferência à função ostensiva demembro da comissão executiva. SegundoPaulo Mendes, deveu-se a Flávio “a partici-pação, na mostra, dos surrealistas eabstracionistas ingleses, do grupo de HerbertRead” (entre os ingleses, estava BenNicholson, com “uma xilogravura, um linó-leo e três cortiças”, dentro da “linha de cons-trução” que o celebrizou). Quanto ao terceiroSalão, de 1939, Flávio de Carvalho assumiupor ele inteira responsabilidade, tendo institu-ído uma “Comissão de Aceitação de Obras”,constituída por Lasar Segall, Victor Brecheret,Antonio Gomide, Jacob M. Ruchti e o próprioFlávio. Desse Salão, instalado na galeria Itá, éque participaram Ruchti (com “Espaços”) enomes como Calder, Albers e Magnelli, aolado de brasileiros como Anita Malfatti, DiCavalcanti, Flávio de Carvalho, Rebolo, LasarSegall, Tarsila, Brecheret e Lívio Abramo.Tenho em mãos (presente do saudoso PauloMendes) o catálogo desse Salão, com sua inu-sitada capa de alumínio, ampla documentaçãofotográfica (entre as reproduções, o “móbile”de Calder e a escultura em alumínio de Ruchti,suíço de nascimento – Zurique, 1917 –, porémformado em arquitetura na Escola de Enge-nharia Mackenzie, de São Paulo, e aqui radica-do). Da publicação constam, entre outros, tex-tos de Flávio de Carvalho, Guilherme deAlmeida, Cassiano Ricardo, Tarsila (“PinturaPau-Brasil e Antropofagia”), Oswald (“DaDoutrina Antropofágica – 1928”, resumo doManifesto respectivo), Paulo Mendes deAlmeida e outros.

Uma pesquisadora atual, Maria CecíliaFrança Lourenço, professora de História daArte da FAU-USP, em estudo publicado na

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Revista USP, número 27 (set.-out.-nov./95),“Pioneiros da Abstração: um ManifestoHumanista”, refere a precursão de Ruchti,assinalando a sua participação no Salão de39. Sua escultura em alumínio “Espaços”, um“objeto construtivista”, teria sido, por equí-voco, denominada “arquitetura”, o que pare-ce explicar-se não só pelo “ineditismo” daobra, como também pela formação profissio-nal do artista suíço-brasileiro. A estudiosaopina: “Em verdade o Salão de Maio atua comodifusor dessa tendência, explicando-a em tex-tos”. Entre as obras expostas, enfatiza, consta-vam “cinco com o título ‘Abstracionismoí, deBen Nicholson”, no Salão de 38; no de 39,obras semelhantemente orientadas de Calder,Magnelli, Ceri Richards, Jean Hélicon e JosefAlbers. Faço votos no sentido de que a pesqui-sadora nos dê, num futuro próximo, um levan-tamento tão completo quanto possível da vidae da obra do pioneiro Ruchti, falecido no inícioda década de 70.

Quanto ao período anterior aos Salões,dele dão notícia cinco capítulos do livro dePaulo Mendes (o primeiro significativamen-te intitulado “Depois da Semana”), bem comoo texto retrospectivo de Oswald de Andrade,recolhido na coletânea Ponta de Lança (1944),“Aspectos da Pintura através de Marco Zero”.Nesse texto, que se reporta ao volume II –Chão – de seu romance em progresso, Oswaldrecapitula o embate entre duas tendências daépoca: o muralismo social dos mexicanos(Siqueiros passara por São Paulo em 34), porum lado, que rumava para um novoclassicismo “contrário ao modernismo esté-tico”; por outro, esse mesmo “modernismoestético”, experimental, libertário, “polêmi-co e negativista”. O autor de Marco Zero,escrevendo quando os aliados desembarcamna Europa na ofensiva vitoriosa contra o Eixonazi-fascista, reconhece a “técnica avança-da” dos murais mexicanos e, ao mesmo tem-po, elogia o cubismo monumental de Léger,“a ilustrar e colorir a geometria da urbe futu-ra”. Insurge-se, ainda, contra o “tratamentounilateral” que Erenburg dispensara aosurrealismo ao vê-lo como documentofaisandé, denunciador do “apodrecimentoburguês”; ao invés, Oswald proclama a im-portância do “esplêndido documentário líri-

co” aportado pelos surrealistas, capazes derealizar “plasticamente os continentesfreudianos”. Recusa a pecha de “inumanos”,que teria sido lançada pelo crítico SérgioMilliet contra os “modernistas”, e exalta odouanier Rousseau, “a magia de Picasso, osímbolo de Giorgio de Chirico e a invençãode Dali”. Numa tentativa de harmonizaçãodas diferenças, o Oswald polêmico de Pontade Lança prognostica: “Nesse caos” – ou seja,no caos resultante do “terrorismo”deliberadamente praticado pela “revoluçãoestética” modernista, “prenunciadora da revo-lução social”, um movimento subversivo que,nas artes, voltava-se contra o “passado”, esti-vesse este sob o signo “de Deus ou da gramá-tica, da ordem ou do absolutismo” – tanto Légercomo os mexicanos, como os “pintores daURSS”, estavam procurando “lançar os fun-damentos da arte construtiva do futuro”.

Vanguarda e “arte popularrevolucionária”

Nos anos 60, desenha-se um novo con-fronto, semelhante em muitos pontos àqueledescrito por Oswald de Andrade, relativamen-te ao período posterior à Semana de 22 e con-temporâneo da Segunda Guerra Mundial.Recorde-se o que ocorreu na URSS, depoisdo fértil período de cooperação entre a van-guarda russa e a revolução soviética, entre oregime comunista e os “cubofuturistas”(Maiakóvski à frente), os “construtivistas”,os “raionistas”, os “suprematistas”, bem comoos críticos ditos “formalistas” do CírculoLingüístico de Moscou e da Sociedade para oEstudo da Linguagem Poética, de Petersburgo

Jacob M. Ruchti,

‘Espaços’

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(Opoiaz), a culminar na extrema tentativa desíntese dialético-metodológica do“produtivismo” formalista-sociológico deBoris Arvátov, ativo na revista Frente Es-querda (LEF), fundada em 1923 pelos futu-ristas do grupo maiakovskiano, explicitamen-te empenhados na construção do socialismo.Pois bem, cerca de quatro anos depois dosuicídio do angustiado e combatido poeta daRevolução; cerca de dez anos depois da mor-te de Lênin, avesso ao “futurismo” em arte,mas razoavelmente tolerante, por se julgar“incompetente” na matéria; cinco anos de-pois do Comissariado “pluralista” deLunatchárski (1917-29), que, embora pesso-almente contra o “modernismo” e os “críti-cos formalistas”, tendências que considerava“decadentes”, “burguesas” e mesmo “reacio-nárias”, respeitava Maiakóvski, “cubo-futurista”, adepto declarado do “método for-mal” como “chave para o entendimento daarte” e, enquanto Comissário da Cultura, pro-clamava sua “imparcialidade” em relação àscorrentes artísticas; A. Jdanov, preposto deStálin (que, com a morte de Lênin, em janeirode 1924, foi-se impondo progressivamente àdireção do Partido, até dominá-lo completa-mente em 1929) e seu porta-voz no campodas artes, no ano de 1934, durante o I Con-gresso dos Escritores Soviéticos, em Mos-cou, implantou o dogma do “realismo socia-lista” (realismo na forma e socialismo noconteúdo), com o endosso de Górki, avesso atodo experimento estilístico (um volume comos textos doutrinários de ambos, sob o títuloLiteratura, Filosofía y Marxismo, foi publi-cado em tradução espanhola em 1968, noMéxico, pela Editora Grijalbo). Todos sabe-mos o que essa calamitosa preceptística do“realismo socialista” provocou de danoso nocampo das artes, propalada que foi internaci-onalmente como doutrina oficial do PC. NoBrasil, na área das artes plásticas, nas déca-das de 50 e seguintes, tivemos a sorte de terum líder comunista como o grande físico te-órico Mário Schenberg (a quem já qualifi-quei de “marxista zen”), que se posicionoudecididamente a favor da pluralidade das ten-dências artísticas, batendo-se pelo reconhe-cimento da grandeza de Volpi (em todas assuas fases, inclusive na mais radical e já

construtivista), bem como apoiando os con-cretos e os neoconcretos de São Paulo e doRio. Mas não foi assim em todos os campos.No da literatura, é sabido que GracilianoRamos (cujo Vidas Secas, de 1938, traz amarca da rarefação estilística e da concisão,características hauridas, sem dúvida, na últi-ma fase de Machado de Assis, mas compar-tilhadas com a prosa de invenção, cubista,metonímica na sintaxe e telegráfico-metafó-rica no nível semântico, do pioneiro Oswald),perguntado sobre Jdanov, definiu-o com umafrase terminativa: “É uma besta!”. No campoda música, porém, a repercussão dodogmatismo censório de Jdanov causou es-tragos em nosso meio. O gendarme culturalstalinista, com efeito, em janeiro de 1948,falando em nome do Comitê Central do Par-tido, denunciara em congresso o esteticismo“formalista” e “malsão” da ópera Macbeth deShostakóvich, que resultava, para o obtusocriticastro soviético, em “caos musical”, subs-tituindo o “claro esquema melódico” por“música vulgar, primitiva e crua”. Segundodepoimento de Gilberto Mendes, o nome maisimportante entre os compositores brasileirosde vanguarda (da geração que iniciou suasatividades na década de 50):

“Logo após o término da Segunda GuerraMundial houve a primeira tentativa de umanova música brasileira, partindo de umgrupo de compositores dentre os quais sedestacavam Cláudio Santoro, Guerra Pei-xe e Eunice Catunda, reunidos em tornodo prof. Koellreuter. Era a hora exata dea música brasileira recuperar o tempoperdido e não mais perder a posição navanguarda mundial, a exemplo do que feza Argentina, que, hoje, conta com nomescomo os de Mauricio Kagel, Juan CarlosPaz, Alcides Lanza e outros. Mas deu azar,novamente, e essa tentativa foi dramati-camente sufocada pela repercussão emnosso país do manifesto de Jdanov, coin-cidindo com o lançamento de uma carta-aberta de Camargo Guarnieri contra ododecafonismo, na mais pura linguagemjdanovista: ‘É preciso que se diga a essesjovens compositores que o dodeca-fonismo, em Música, corresponde ao

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Abstracionismo, em Pintura, aoHermetismo, em Literatura, ao Exis-tencialismo, em Filosofia, ao char-latanismo, em Ciência... É uma expres-são característica de uma política dedegenerescência cultural, um ramo ad-ventício da figueira-brava do Cosmo-politismoí. A efervescência político-so-cial do momento, somada a esses doismanifestos, mais a outra coincidênciaentre os pontos de vista de Jdanov e deMário de Andrade, em seu Ensaio sobreMúsica Brasileira, deram extraordináriaforça à corrente nacionalista. Até hojeessa nefasta identidade de pensamentosé ainda a força oculta que procura barrartodas as novas tentativas de pesquisa, ex-perimentação, de avanço musical. Villa-Lobos, vanguarda de outros tempos,incompreendido, tornou-se a bandeiranacionalista contra a vanguarda de nos-sos tempos”.

E Gilberto Mendes cita a passagem rele-vante do ensaio de Mário, publicado em 1928,seis anos mais ou menos antes da proclama-ção do dogma jdanovista: “[...] a obra não ébrasileira como é antinacional. E socialmen-te o autor dela deixa de nos interessar. Digomais: por valiosa que a obra seja, devemosrepudiá-la, que nem faz a Rússia comStravinsky e Kandinsky”. Refira-se que Pagu,a nossa “Passionária”, musa dos anos comu-nistas de Oswald, levantou-se, com sua auto-ridade de militante sofrida no cárcere da dita-dura Vargas, contra a “Carta-aberta” do com-positor “nacionalista”, no artigo “CamargoGuarnieri: um Manifesto Antidodecafônico”,(15/10/1950), escrevendo:

Qualquer imbecil a serviço da propagan-da stalinista conhece bem o emprego des-sa terminologia com que CamargoGuarnieri se põe a defender a música bra-sileira – folclórica principalmente – ter-minologia que se estadeia em coisas como‘cosmopolitismoí, ‘cerebralistaí,‘antipopularí e ‘antinacionalí e também‘arte degeneradaí, de empréstimo da lin-guagem hitlerista”(ver: O Modernismo,obra coletiva organizada por Affonso

Ávila, Perspectiva, 1975; Augusto deCampos, Pagu: Vida-Obra, Brasiliense,1982).

Nos anos 60, desenvolveu-se novo episó-dio desse embate de idéias no plano político-cultural, embate que “contrapõe as tendênci-as de vanguarda e formalmente inovadoras”às formas “mais tradicionais, de arte, literatu-ra e drama” (Dicionário do PensamentoMarxista, organizado por Tom Bottomore,Zahar Editor, 1983, verbete “Estética”; lê-seainda no tópico “grandes temas da estéticamarxista” desse verbete: “Os defensores dasformas de vanguarda argumentam que asformas mais tradicionais estimulam umavisão passiva e sem crítica, por mais radi-cal que seja o conteúdo da obra [...] O textomodernista, por outro lado, é capaz de can-tar o que há de contraditório e de permitirao que está oculto e silencioso manifestar-se, graças às técnicas de fragmentação einterrupção textuais”).

Em 1961, foi elaborado o programa de“arte popular revolucionária”, contido no“Anteprojeto do Manifesto do CPC (CentroPopular de Cultura)”, cujo redator era o entãoideólogo de esquerda Carlos Estevam (hojeprofessor universitário de Ciência Política,recentemente reposto em evidência comosecretário da Educação do conservador e cri-ticado governo Fleury). Nesse programa, re-digido em termos sectários, a experimenta-ção poética no nível da linguagem era pe-remptoriamente rejeitada; recusava-seintegrá-la no poema dito “participante”, re-presentado, na prática, por uma serôdia (emalograda) versão brasileira do “realismosocialista” (embora esse lema não fosse men-cionado), sob a espécie de uma contrafaçãoburocrática da literatura de “cordel” infiltradaagora de didatismo ideológico “de esquerda”(ver exemplos nas antologias: Violão de Rua,1962-63, e nos folhetos de Ferreira Gullar,João Boa-Morte, Cabra Marcado pra Mor-rer e Quem Matou Aparecida?, Rio de Janei-ro, CPC-UNE, 1962). Quanto ao “Manifes-to” de Carlos Estevam, está reproduzido emArte em Revista (Anos 60 – no 1, jan.-mar./1979, São Paulo, Kairós). Gullar também nãofala em “realismo socialista”, procura mes-

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mo tomar distância dessa profissão-de-fé ten-denciosa, preferindo, eufemisticamente, alu-dir a “realismo participante” (ver “Vanguar-da e Atualidade”, artigo publicado em 7/5/67no Correio da Manhã, em que recapitula aemergência do CPC). Mais recentemente, emdepoimento ao jornalista William Waack (OEstado de S. Paulo, Caderno 2, 14/11/92), oautor de João Boa-Morte reconheceu, aoexpor a orientação que pretendia imprimir àtesta do Ibac do Ministério da Cultura: “Quemteme que sua gestão repita a experiência dosCentros Populares de Cultura, de que ele par-ticipou, tem motivos para se tranqüilizar: ‘Eularguei minha posição de autor consagradopara participar de iniciativas como o CentroPopular de Cultura, algum tempo atrásí, con-ta Gullar. ‘Vimos que não era por aí. Nósreduzimos a qualidade de nossas atividades enem conseguimos ampliar o públicoí”. Eraessa, aliás, a orientação oficial do CPC, quepreconizava: “Havendo conflito entre o quedele (NB: do artista, de origem social peque-no-burguesa) é exigido pela luta objetiva e oque dele brota espontaneamente como expres-são de sua individualidade comprometida comoutra ideologia, é que então surge o dever dese imporem limites à atividade criadora, cer-ceando-a em seu livre desenvolvimento” (sic,“Manifesto”, cit., p. 71).

Posição fundamentalmente semelhante,embora dissimulada sob a tintura de menoresquematismo e maior sofisticação teórica,é a de Roberto Schwarz, críticosociologizante, vocacionalmente incom-patibilizado com o novo na poesia e namúsica (popular e erudita). Manifestando-se algo tardiamente sobre a matéria em 1968,no número 3 da revista paulista Teoria e Prá-tica, o ensaísta e (mau) poeta bissextoRoberto Schwarz, no artigo “Um Folheto deIniciação Política – Didatismo e Literatu-ra”, assinado em seu próprio nome e sob opseudônimo Bertha Dunkel (Bertha Escura,como o seu criador, Roberto, traz por sobre-nome Schwarz, Negro), proclama: “noutraspalavras, neste gênero didático, a estética épuramente política e chega, sem querer, ondea literatura, ou parte dela, há muito quer che-gar”. A seguir, numa especificação veleitária,imagina um “didatismo político” que seja

“bem-sucedido” e que, portanto, não redun-de em “forma degradada de ciência ou pro-sa”. É o próprio crítico, involuntariamente,quem se encarrega de pôr de manifesto oresultado perverso da “estética puramentepolítica” que preconiza: “Pela mesma razão,quando a busca da simplicidade não encon-tra na linguagem e no emaranhado ideológi-co o veio da luta espontânea, a prosa didáti-ca – enquanto literatura – registra apenas oimpulso paternalista, manipulativo,professoral ou o que seja, que leva a classesuperior a ocupar-se das inferiores”. Osexemplos de poemas “didáticos” bem-suce-didos – do “efeito poético” alcançado em“escritos densos e terra a terra como os deLênin, Mao e Brecht” – apenas reforçam aimpressão de veleidade, de voluntarismo,que o texto robertiano destila, implicando oauto-enquadramento de seu signatário (ou,mais exatamente, da dupla autoral Roberto/Bertha), ainda que à revelia, na caricatura dopregador “paternalista, manipulativo eprofessoral”, que o nosso crítico “desconfi-ado”, e sempre supercilioso com relação aosque discordam de suas idéias, se encarregade debuxar. Assim, Maiakóvski não é men-cionado, e em seu lugar reponta Lênin, comoautor de prosa de “efeito poético”, o mesmoLênin cujo gosto literário e artístico erasabidamente convencional (censurouLunatchárski quando este, em sua condiçãode comissário da Cultura, publicou o poemade Maiakóvski “150.000.000” numa tiragemde 5.000 exemplares, entendendo que era“estupidez” publicar mais de 1.500 cópiasde algo que só poderia interessar a “leitoresexcêntricos”). Mao, como poeta, seguia opadrão clássico da poesia mandarínica, nãoadotando as inovações implantadas na lite-ratura moderna chinesa desde 1919 (quandoos escritores se empenharam em substituir alíngua da antiga corte, clássica, o wen yan,pela fala popular, o bai hua). É verdade queMao “atualizava” seus poemas, compostose caligrafados nesse idioleto poéticoestilizado da convenção acadêmica, inserin-do neles temas revolucionários; mas tam-bém é verdadeiro que o próprio Mao mani-festou-se no sentido de que suas composi-ções poéticas não fossem tomadas como

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“paradigma” pelos escritores comunistas dasnovas gerações, reservando-se como que aprerrogativa “imperial” de praticar, para suaexpressão pessoal, a arte poética de Li Po,Tu Fu e Wang Wei... Finalmente, quanto aBrecht, seu ponto de vista em arte está nopólo oposto desse didatismo robertiano, emque “a estética é puramente política”; ao in-vés, para Brecht, como para Maiakóvski(“sem forma revolucionária não há arte re-volucionária”), “novos conteúdos” (e preci-samente estes) demandam “novas formas”(cf. Über Lyrik, Suhrkamp, 1964). Ver aindao diálogo de W. Benjamin com Brecht, emSvenborg (25/7/1938), a propósito de Lukács(uma das referências teóricas obrigatórias deSchwarz), Gabor, Kurela, em que o inovadordramaturgo e poeta alemão afirma: “São, comefeito, inimigos da produção. A produçãonada lhes diz de valor. Não é possível confi-ar nela. Ela é a expressão mesma doimprevisível. Não se sabe nunca o que delavai sair. Eles mesmos não querem produzir.Querem fazer o papel de apparatchik – NB:membros do aparelho diretivo partidário – eestar a cargo do controle dos outros” (cf. ErnstBloch et alii, Aesthetics and Politics, Lon-dres, New Left Books, 1977; W. Benjamin,Essais sur Bertolt Brecht, Paris, Maspero,1969). A menos que o crítico RobertoSchwarz considere “bem-sucedida” ou “nãodegradada” a sua prática, enquanto poeta, da“estética didática” que prega, como, porexemplo, naquele sloganático “Passeata”:“PAU NO IMPERIALISMO/ABAIXO OCU DO PAPA” (em Corações Veteranos,1974). Para um observador não persuadidopor sua retórica “manipulativo-professoral”,tiradas “didáticas” como essa outra coisa nãosão do que pobres esquemas maniqueístas,totalmente carentes de sutileza dialética,grossos como chalaças grafitadas no recessodos mictórios públicos (se bem que menosbem-humoradas e imaginosas do que estas...).No caso, mais ainda, um canhestro poema-piada “didático” como este denuncia um se-rôdio anticlericalismo voltairiano, do tipoque, repetido hoje, nos parece de um radica-lismo mecanicista, apenas bilioso: “Écrasezlíinfame!...”.

É bem verdade que, ao republicar seu tex-

to sob o título abreviado “Didatismo e Lite-ratura” em O Pai de Família (Paz e Terra,1978), Roberto faz autocrítica e se confessa“abismado” com o tamanho de seu“bitolamento” à época em que o redigiu, coma “utilização escolástica da terminologiamarxista” e com o “tratamento abstrato”, a-histórico, das questões então enfocadas. Omesmo formalismo abstratizante, aliás, sobcolor de análise sociológico-estética, levou-o a discutir pronunciamentos irônico-céti-cos, mais paródicos e provocativos do queliterais, de compositores brasileiros de van-guarda (entre os quais Gilberto Mendes;Roberto, aliás, não os diferencia, tratando-os blocalmente, como um todo homogêneo,no artigo “Nota sobre Vanguarda e Confor-mismo”, de 1968, também republicado emseu livro de 78, artigo com relação ao qual ocrítico ainda não fez autocrítica). Nesse arti-go, desde logo manifesta o seu total desco-nhecimento da complexa práxis compositóriados músicos que censura, bem como dosimpasses com que, à época (1967), estes sedefrontavam (em 1963, esses mesmos com-positores haviam subscrito o manifesto “NovaMúsica Brasileira” – revista Invenção, no 3– em que expõem as suas idéias e a platafor-ma a que chegaram, numa densa síntese te-órica, que Schwarz sequer se digna de exa-minar). Ao reprovar-lhes o suposto “confor-mismo”, o defensor da literatura didática, da“estética puramente política”, não se dandoao trabalho de tomar conhecimento prévioda produção desses mesmos compositores,põe de manifesto uma arrogância não com-patível com a estima em que tem o filósofoe musicólogo Adorno, o qual, estudioso sé-rio que é, jamais discutiria questões musi-cais teóricas sem o trato minucioso com aprática que lhes correspondesse no nívelcompositório. Mas, mesmo na autocríticaque faz com respeito à sua pregaçãodidatizante de 68, Schwarz não deixa de ladoa habitual filáucia veleitária, ao afirmar –convertendo a dialética em camisa tamanhoúnico apta a revestir (e neutralizar) qualquererro, por mais berrante e danoso, em seumomento, que tenha sido: “Em matéria deperspectiva dialética um descaminho publi-cado é melhor que nada”.