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68 Fotografe Melhor ARQUIVO PESSOAL Fotojornalista dos bons tempos das grandes reportagens investigativas, ele teve sua longa carreira ligada ao inovador vespertino paulistano Jornal da Tarde Rolando de Freitas R olando de Freitas aponta para uma velha página amarelada de jornal e se entusiasma: “Olha aí, esta foi de quando os índios atiraram flechas no avião em que eu estava. E veja esta primeira página com a sequência do torcedor sofrendo na Copa do Mundo”. Ao manipular alguns velhos negativos, revela: “Por causa destas fotos da guerrilha no Araguaia, quase sumiram comigo”. Fotógrafo dessas e de tantas outras reportagens, Rolando, hoje aposentado, atuou na época de ouro do Jornal da Tarde, vespertino paulistano que valorizava a cobertura fotográfica e que, por isso, foi inovador graficamente. Profissional arrojado e inventivo, foi um dos primeiros a usar poderosas teleobjetivas. Pode, assim, ser considerado um dos precursores do moderno fotojornalismo brasileiro. Em uma carreira de repórter fotográfico que soma quase Por onde anda... Por Mario Bock Com quase 40 anos de carreira, o fotógrafro registrou fatos marcantes, como a visita do papa João Paulo II ao Brasil, em 1980 FOTOS: ROLANDO DE FREITAS

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Page 1: ARQUIVO PESSOAL · 2020. 10. 1. · viagem. Depois de lavá-lo com água de um cantil, secava o negativo ao vento. Assim, chegava a São Paulo com o filme pronto para ampliação

68 Fotografe Melhor

ARQUIVO PESSOAL

Fotojornalista dos bons tempos das grandes reportagens investigativas, ele tevesua longa carreira ligada ao inovador vespertino paulistano Jornal da Tarde

Rolando de Freitas

R olando de Freitas apontapara uma velha páginaamarelada de jornal e se

entusiasma: “Olha aí, esta foi dequando os índios atiraram flechasno avião em que eu estava. Eveja esta primeira página com asequência do torcedor sofrendo naCopa do Mundo”. Ao manipular

alguns velhos negativos, revela:“Por causa destas fotos daguerrilha no Araguaia, quasesumiram comigo”.

Fotógrafo dessas e de tantasoutras reportagens, Rolando, hojeaposentado, atuou na época deouro do Jornal da Tarde, vespertinopaulistano que valorizava a

cobertura fotográfica e que, porisso, foi inovador graficamente.Profissional arrojado e inventivo, foium dos primeiros a usar poderosasteleobjetivas. Pode, assim, serconsiderado um dos precursores domoderno fotojornalismo brasileiro.

Em uma carreira de repórterfotográfico que soma quase

Por onde anda...

Por Mario Bock

Com quase 40 anos de carreira, o fotógrafro registrou fatos marcantes, como a visita do papa João Paulo II ao Brasil, em 1980

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40 anos, Rolando teve o privilégiode presenciar os principais fatosdo Brasil desde 1954, quando, aos 14 anos, já ajudava no laboratóriofotográfico do jornal Última Hora,na sucursal paulistana. Comofotógrafo, cobriu vários temas, defatos políticos e sociais aos grandeseventos esportivos, como a Copa

do Mundo de 1974, na Alemanha,em que Brasil, então tricampeãomundial, perdeu a disputa doterceiro lugar para a Polônia.

O gosto pela aventura e pelareportagem investigativa tambémrenderam matérias memoráveis,especialidade rara na mídiaimpressa de hoje em dia. O que

poucos sabem é que essa vocaçãovem de berço. O pai, Aquilino deFreitas, foi jornalista do alto escalãodo jornal Última Hora, o quefacilitou o seu ingresso na empresa.Além disso, dois tios e um primoeram fotógrafos. Contudo, mesmocom a ligação da família com afotografia, Rolando é autodidata,

Famosa sequência feita durante a exibição, na Praça da Sé, em São Paulo, do jogo entre Brasil e Inglaterra, na Copa do Mundo de 1970

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aprendeu as técnicas fazendoreproduções, revelando eampliando os grandes negativosde 10 x 15 polegadas usados pelosfotógrafos da Última Hora.

SATISFAÇÃO A primeira aproximação com as

câmeras foi ao registrar eventossociais com uma Speed Graphic,fabricada pela Graflex dos EUA,modelo preferido dos fotojornalistasda época. Habilidoso com acomplicada câmera, Rolandodemonstrou um talento inato paraa fotografia. Uma foto marcantede tantas imagens que fez foi ada atriz alemã Marlene Dietrich(naturalizada norte-americana),flagrada no momento exato em queseu vestido deixava aparecer ascobiçadas pernas torneadas.

Acima, balé registrado de formaaudaciosa com a tele 200 mm; aolado, Rolando mostra edições do JTcom fotos suas na primeira página

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Com a mesma Speed Graphicequipada com lente normal,Rolando cobriu partidas de futebol,geralmente ao lado do gol. Eleconta que, nessa época, erros deexposição não eram bem-vindos,pois tinha à disposição apenasduas chapas e duas lâmpadas doflash para o registro de todo o jogo.

Hoje, com 71 anos, Rolandomantém o ímpeto juvenil de outrora,qualidade que o ajudou emarriscadas reportagens, como a deum cassino clandestino quefotografou em Campos do Jordão(SP), em 1968. Anos antes, feztrabalhos bem mais seguros, comofotografar gente famosa viajandode avião, a serviço da Varig,apenas no momento do embarqueou desembarque, caso do artistanorte-americano Rock Hudson, naescada de acesso do quadrimotorSuper Constellation, em 1959.

A partir de 1960, a convite dopai, que montara um jornal emBrasília, Rolando passou umatemporada na capital federal,recém-inaugurada, fazendo fotospara Aquilino e, depois, para ojornal Correio Braziliense. Munidode uma Rolleiflex de médio formato,que usava filmes em rolo de 12poses, Rolando esbaldou-se emfotografar, com muita intimidade,o presidente Juscelino Kubitschek,além de documentar as dezenasde construções e inaugurações dacidade futurística.

CARREIRA NO VÍDEOApós sair de Brasília e voltar ao

Última Hora, Rolando iniciou umanova atividade na empresa, a decinegrafista de notícias exibidaspelos cinemas da época. Foi comuma filmadora Arriflex 35 mm devisor reflex que ele se aperfeiçoouna técnica de câmera lenta euso de novos enquadramentose ângulos, especialmente com ateleobjetiva. Herança do trabalhocom vídeo, Rolando dominoutécnicas de foco rápido e desfoquede fundo, que aproveitou maistarde no fotojornalismo.

Entre os anos de 1960 e 1964,

Registro do quarup, ritual dos índios do Xingu em homenagem aos mortos, uma dasreportagens fotográficas que ficou na memória de Rolando até os dias de hoje

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teve dois empregos simultâneos:cinegrafista do Canal 9, a extinta TV Excelsior, e fotógrafo do jornal A Gazeta Esportiva, ambos de SãoPaulo (SP). No jornal, não usavamais a Speed Graphic, pois tinhaà disposição uma Rolleiflex, umaRobot Royal (uma das primeirascâmeras 35 mm com motordriveembutido que, acionado por umacorda, fazia três fotos por segundo)e ainda uma velha Leica, equipadacom uma teleobjetiva de 400 mm,com a qual inovou as fotos de jogosde futebol. O costume da época erafotografar apenas com a lentenormal, com a obrigação de a bolaaparecer na foto; caso contrário, elaera criada no laboratório, com umamoeda colocada sobre o papelfotográfico na hora da ampliação.

Rolando revela outra curiosaprática de antigamente, quedesenvolveu durante a cobertura

esportiva. Conta que, em certasocasiões, nos jogos realizados nointerior paulista, era exigida muitarapidez dos fotógrafos para fazeras imagens e do laboratório, nacapital, para revelar o filme a tempode publicar uma foto no jornal dodia seguinte. Para acelerar oprocesso, Rolando criou umatécnica inusitada: após fotografar10 minutos iniciais do jogo,retornava a São Paulo como caronaem uma moto (no caso, umapotente Harley-Davidson), a bordoda qual revelava o filme durante aviagem. Depois de lavá-lo comágua de um cantil, secava onegativo ao vento. Assim, chegavaa São Paulo com o filme prontopara ampliação.

MUDANÇAS RADICAIS Rolando integrou a primeira

turma de fotógrafos do Jornal da

Tarde, criado em 1966, mas foicontratado antes, em 1964, para ocaderno de esportes do jornal O Estado de S. Paulo, o principalveículo do grupo editorial da famíliaMesquita. Diferentemente do estilomais sério do Estadão, os textosdo Jornal da Tarde já usavam, porexemplo, a palavra gol paraidentificar o tento marcado. NoEstadão, a orientação era que seusasse o conservador “ponto”.

Essa criatividade era estimuladatambém nas fotos publicadas pelonovo jornal. Nas imagens que fezde uma apresentação de balé,Rolando lembra que experimentouusar uma tele de 200 mm, comvelocidade de 1/8s. O resultadoforam fotos tremidas, porém degrande plasticidade. As imagensforam rejeitadas pelo Estadãoe o fotógrafo por pouco não foidemitido. Isso só não ocorreu

O estilo arrojado de Rolando revela-se em sua preferência por duas objetivas, pouco usadas na época: a tele de 400 mm, em fotos de futebol,...

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porque o JT publicou com destaquequatro fotos da apresentação – e oeditor-chefe, o jornalista Mino Carta,ainda elogiou o trabalho.

No início do trabalho no JT,Rolando contava com uma AsahiPentax, uma reflex de 35 mm,pouco adequada para usoprofissional. Logo depois chegouuma Nikon F, ainda sem fotômetro,acompanhada da esquisita objetivaNovoflex 400 mm, com fococomandado por um gatilho (comouma espingarda), que Rolandodominou facilmente. A seguir,a equipe recebeu várias lentesda Nikon, mas, para Rolando,bastavam duas: a poderosa 500 mm f/5 (espelhada) e umagrande angular de 20 mm. Umindicador da forma radical comofotografava, muito bem aceitapelo jornal inovador.

Rolando teve o prazer e a sorte

... e a grande angular de 20 mm, como na foto acima, ao registrar uma manifestação de professores na Praça da República, em São Paulo

O Estadão fazia exposição das fotos transmitidas para o jornal por seus enviados especiais

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de vivenciar uma ótima fase do JT,em que o jornal vinha recheado defotos, com imagens imensas naprimeira página – como sonhamainda os fotógrafos de hoje em dia.Ainda melhor: a redação da épocadispunha de verba suficiente paralongas reportagens, como, porexemplo, uma em que Rolando eum repórter mapearam a fronteirado Brasil, da Argentina ao Peru, emdois meses. Verba também parareportagens investigativas, como ado cassino clandestino em Camposdo Jordão (SP), em que foi precisouma estratégia teatral para disparara câmera de forma disfarçada, semenquadrar. Foram só cincos fotos,porém tiveram grande repercussão.

FLECHADASO estilo arrojado de Rolando

casou muito bem à propostainovadora do JT. Os exemplos sãovários. Ao fotografar uma multidãoassistindo ao jogo entre Brasil eInglaterra (durante a Copa de 1970,com vitória da equipe brasileira,com um gol de Jairzinho aos 15minutos do segundo tempo) porum pequena tevê colocada naPraça da Sé, marco zero da capitalpaulista, Rolando, em vez de optarpor uma foto panorâmica e mostraras pessoas, preferiu fazer umasequência de fotos de apenas umtorcedor usando a tele de 200 mm,estando posicionado atrás datelevisão. O torcedor, que tinhaa dentição precária, ajudou nadramaticidade das imagens, queforam para a primeira página dojornal e ainda hoje são lembradascomo inovadoras.

Numa outra ocasião, nacobertura da construção da BR-163,no trecho que liga Cuiabá (MT) aSantarém (PA), o fotógrafo pegoucarona, ilegalmente, em um pequenoavião do exército para fotografaruma tribo de índios próxima. Osaborígenes, assustados com apresença do monomotor, tentavamacertá-lo com flechadas. Mesmofotografando através da janelariscada do avião, outra vez com atele 200 mm, as imagens ficaram tão �

Motociclista faz a travessia da Rodovia Transamazônica acompanhado pela tele de Rolando

De carona em um avião do exército, Rolando registra uma tribo ainda sem contato com acivilização próxima às obras da rodovia BR-163: índios tentam acertar flechadas nos intrusos

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boas que a reportagem ganhougrande destaque no JT.

Rolando conta que sempregostou de fazer reportagensarriscadas. Em 1962, com roupassurradas, imitando um pedreiro, euma Nikon oculta em um saco decimento, documentou a invasão demilitares em uma universidadepaulista. Em 1976, ao investigar ocontrabando de café na região dePonta Porã, no Mato Grosso do Sul,disfarçou-se de turista para fazerfotos com uma pequena OlympusTrip, de 35 mm.

Mestre nos disfarces e fãincondicional das poderosas lentesespelhadas, o veterano Rolando deFreitas tem muito mais histórias para

contar: percorreu a RodoviaTransamazônica durante dois meses;passou um mês com os índios doXingu, na cobertura do quarup, festaindígena em homenagem aosmortos; cobriu desmatamentos emmeio a ameaças de pistoleiros;passou duas semanas em um cursode sobrevivência na selva, sem águanem comida; por pouco nãoapanhou de funcionários da Willys,ao fotografar uma limusine, até entãosegredo da montadora, entre outrasaventuras fotográficas.

De toda a carreira, restam comele algumas páginas amareladas dejornais, que Rolando guarda commuito zelo, algumas fotos queconseguiu nos arquivos das

redações e pouquíssimos negativos,dos milhares que registrou e foram,posteriormente, jogados no lixo ouqueimados pelas empresas em quetrabalhou. “Um crime contra amemória do País”, protesta.

Hoje, lamenta a extinção dojornalismo investigativo, quandoos repórteres fotográficos viajavamem busca das histórias. São coisasde uma época em que serfotojornalista significava ter muitacoragem, disposição, paixão evocação. Caso especial de Rolando de Freitas, um profissionalde grande importância na históriado fotojornalismo brasileiro. E queao longo de décadas marcou váriosgols e não apenas pontos.

Rolando fotografado em casa com negativos que conseguiu salvar dadestruição, com uma antiga identificação de imprensa e a tele de 500 mm

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