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Marcos França

Plantando Flores

Colhendo Pedras

1ª edição

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Agradecimentos

Ao meu Deus, a minha família, aos meus amigos,

aos meus alunos e, em especial, à minha prima Maura,

que foi a responsável por me introduzir nesse mundo tão

mágico e emocionante: a literatura.

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Tudo de pedra.

Entre pedras cresceu a minha poesia.

Minha vida...

Quebrando pedras e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam

Levantei a pedra rude dos meus versos.

Cora Coralina

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SUMÁRIO

01 – Aos trancos e solavancos... Partimos............................. 07

02 – Conhecendo uma bruxa de verdade............................... 00

03 – Pra dizer que não falei da carta, do retrato e da casa.....

04 – Escola da vida. Escola de cão...................................... 00

05 – Lavando a roupa suja.................................................. 00

06 – Um presente de grego.......................................... 00

07 – Em terra de cego quem tem um olho é rei........... 00

08 – Velórios para que te quero?................................. 00

09 – Mãos na massa. Boca na botija........................... 00

10 – Quem é vivo sempre aparece.............................. 00

11 – Nem só de rádio vive o homem............................ 00

12 – Ladrão que rouba ladrão. E até coração.............. 00

13 – A dor do parto que faz partir................................. 00

14 – Pão e Circo........................................................... 00

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Aos trancos e solavancos... Partimos.

Eu, trajando um excelente smoking, desenhado por

um dos estilistas mais caro do mundo, descia do meu car-

ro de luxo e andava por um caminho de pedras delineado

por uma coluna de plantas de pequenos portes. Após al-

guns passos andando sobre aquele tapete de pedras, tão

justapostas uma à outra, que chegava a formar um lindo

desenho geométrico com formas simétricas, já podia con-

templar uma bela paisagem que me encarcerava a atenção

e afugentava longe da razão. Estava, pela primeira vez,

dentro de um jardim, que me presenteava como pano de

fundo as torres do castelo Dunrobin, que fica localizado

em Highland na Escócia. Poucas vezes senti a emoção

que senti ao está ali.

Era uma manhã de domingo, a beleza do sol recém-

nascido resplandecia no horizonte bem distante de mim,

mas parecia está ali a poucos metros. E toda essa magni-

tude e beleza do sol complementava o que de fato estava

ali bem próximo. Tudo a minha volta era digno de cená-

rio de qualquer premiado filme Hollywoodiano. Toda

natureza presente ali parecia está cumprindo uma missão,

e a cumpria magistralmente, encantar-me. Havia uma

sincronia perfeita: o piso, as plantas, as pequenas árvores

e o lago, este último deixava jorrar do seu centro um jato

de água, que subia até certas alturas e retornava até a su-

perfície do lago, constituindo perfeitas ondas nas águas.

Desviei a minha atenção para observar a minha imagem

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refletida no lago. As ondas distorciam a minha imagem,

mas mesmos assim os reflexos me mostravam um homem

de quarenta e cinco anos, de aparência bem mais jovem,

que gozava de uma saúde de ferro, que agia com uma

elegância incomum e pertencia a classe dos homens mais

ricos do planeta. Refleti um pouco de muitas coisas que

vivi e sobrevivi nessa vida e voltei a observar tão bela

paisagem.

Hipnotizado por toda beleza daquele lugar, distraí-

me por alguns segundos, e só vim perceber que o mundo

que contemplava era mesmo real quando alguém, em um

inglês magnânimo, cumprimentou-me:

— Lord, welcome!

O meu inglês ainda era paupérrimo, mas assimilei

que aquele senhor tão bem vestido e educado, solicitava-

me a adentrar os muros daquele castelo. Com um sotaque

comum a todos que estão aprendendo inglês, arrisquei em

respondê-lo:

— Thank you!

Não era tarefa fácil deixar toda aquela beleza para

trás e adentrar aquele castelo, que me recepcionava com

um tapete vermelho de fina tecelagem. E eu não era o

único a está ali quase prestes a desvendar as estruturas

internas daquele castelo. Muitas pessoas bonitas, ricas e

elegantes engrossavam a fila dos que deveriam percorrer

aquele tapete também. Era muito estranho como as pes-

soas me olhavam, pareciam me admirar, pareciam está

diante de alguém de extrema beleza e fascínio. Mas eu

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tinha me tornado mesmo assim: um ser fascinante, capaz

de magnetizar qualquer dos olhares. Mas esse mérito era

algo recente, não tinha sido assim toda vida. Um dia fui

tão estranho e tão indesejado quanto um bicho peçonhen-

to...

Aquele lindo jardim me fez recordar o quanto eu

era admirador das flores quando criança. Tinha um desejo

de, quando crescer, ser rico e ter em volta de minha casa

um lindo jardim como aqueles que eu via na televisão. O

tempo foi passando e desejava apenas que a minha vida

fosse um jardim de lindas e perfumadas flores... Consegui

chegar a esse objetivo, mesmo que as duras penas, mas

por muito tempo a minha vida foi uma jardim sem flo-

res...

...Tudo começa em uma cidadezinha de um estado

do nordeste brasileiro, onde meus pais puderam levar a

vida por muito tempo. Mas aqueles últimos anos tinham

nos apresentados muitas surpresas desagradáveis: a falta

de emprego e a seca começaram a castigar os pobres. E

nós éramos pobres. Em meio a tanto sofrimento, meu pai

tomou a difícil decisão: ir embora, mudar de cidade, pior

ainda, mudar de estado. O nosso destino seria um estado

vizinho: Maranhão.

Eu tinha apenas nove anos de idade, estava dentro

dos dez como mamãe sempre respondia quando alguém

perguntava quantos anos eu tinha. Era uma criança ainda,

mas me sentia um adulto, achava que entendia de mundo.

Mas na verdade não compreendia nada do que era vida,

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pois a vida era mesmo dura, principalmente para quem

era muito mole assim como eu.

Eu achava que mamãe tinha escolhido a segunda

para o dia da mudança, mas na verdade foi uma coinci-

dência, pois segunda-feira era o único dia na semana que

passava um carro de passageiros naquele lugar. E o carro

não nenhum ônibus mais ou menos, era um pau-de-arara

já bem estragado pelo tempo.

Naquele dia mamãe nos acordou muito cedo. Ela

tinha acordado bem mais cedo que todos, pois precisava

arrumar os últimos detalhes, comprar pães e fazer o café,

para só então ir nos acordar. A bagagem tinha sido arru-

mada durante toda semana. Mamãe era sistemática e não

queria esquecer nada.

Mesmo tudo já estando arrumado, a correria não

deixou de ser grande naquela madrugada. Afinal, era

muita gente para se arrumar e tomar o café. E tudo com

muita pressa para não perder o último e único carro.

Todo mundo eletricamente, entrando e saindo, cor-

rente re se arrumado e eu ainda estático, tinha levantado

da rede, mas dormia de pé, encostado na parede. Cheguei

a cochilar ali mesmo, de pé, escorado na parede; e dormi-

ria por algum tempo se mamãe não tivesse percebido e

me despertado com uma bronca, como somente ela sabia:

— Cuide, menino, lerdo! O carro já está quase pas-

sando! Olha que a gente vai e você ficar aqui.

Ficar naquele lugar era pior que qualquer castigo

dado pela mamãe. De joelhos no milho seria mais aceitá-

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vel. Aquele lugar já tinha dado o que tinha de dar. Dizer

que eu ia ficar ali foi como me jogar um copo com água

gelada. Corri contra o tempo. As ameaças de mamãe me

fizeram dinâmico e, em poucos minutos, estava pronto.

De pé ao lado da mesa velha, com a barriga roncando de

fome, logo constatei que nenhum pão me restara, apenas

uma sacola plástica vazia e a garrafa de café no centro da

mesa. Balancei a garrafa de café para ver o que sobrara.

Mais uma decepção, a garrafa estava vazia tanto quanto a

minha barriga. Tinha certeza que a minha irmã Leninha,

que era morta de fome, tinha pegado meu pão. Mamãe

nunca se enganava, sempre comprava na conta certa. Sem

café e sem pão, resolvi reclamar:

— Mãe, comeram tudo. Não sobrou nada para eu

tomar café.

Mamãe estava na sala dando mingau para o meu

irmão menor. De lá mesmo respondeu:

— Bem feito, quem mandou você não cuidar logo?

Esqueci que com mamãe não adiantava revidar. Eu

esqueci logo o café, mas a minha barriga não. Ela ronca-

va muito, roçava tanto quanto o motor velho daquele car-

ro que já estava demorando chegar. Por alguns instantes

vivi um paradoxo da pobreza: triste, com fome e feliz

porque ia mudar de cidade, pois acreditava que a nossa

vida ia mudar para melhor.

Ordenou para que minha irmã mais velha, Maria

Betânia, passasse água nos copos do café e lavasse a gar-

rafa, depois de tudo limpo e seco, colocasse-os dentro da

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caixa da mudança. Depois das ordens cumpridas, agora

estava tudo pronto para a mudança. Ou quase pronto, pois

faltava o principal: o carro.

Não demorou muito para que eu pudesse ouvir um

barulho ensurdecedor. O ronco daquele motor cansado

anunciava sua chegada e ao mesmo tempo anunciava que

estava muito próxima a minha partida. Parou bem na

frente de nossa casa. Logo em seguida desceu o motoris-

ta, um homem barbudo e gordo, barriga saliente, aparen-

tando ter uns 45 anos, usava uma camisa aberta. Desceu e

já foi dando ordens:

— Jogue os molambos em cima do carro, agasalhe

bem os meninos, comedores de feijão e vamos com Deus.

Motorista, parecendo está atrasado, ajudou meu pai

a jogar a coisas em cima do carro enquanto mamãe aju-

dou meus irmãos menores a subir no carro. Os maiores

subiram sozinhos. Eu, com muita dificuldade e sem aju-

da, quase não subo, fui o último a chegar em cima.

— Está tudo pronto seu motorista. — Papai dava o

sinal verde para a partida.

Antes da partida, o motorista trouxe umas sacolas

de plástico e ofereceu a minha mãe:

— Está aqui, senhora, é para os meninos que enjo-

am na viagem não vomitarem o carro e nem os outros

passageiros.

Do grupo, apenas Leninha, a minha irmã morta de

fome, enjoava nas viagens. Mamãe a fitou com um olhar

rigoroso e disse:

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— Essa aqui é para não vomitar o povo, menina!

Leninha com gesto de relutância recebeu as sacolas

das mãos de mamãe. Recebeu-as com supetão. Mamãe

fitou-a por alguns segundo, como se não tivesse engolido

aquela forma de receber as sacolas. Balançou a cabeça,

desapontada.

Ainda de pé, aproveitando que o motorista ainda

entregava sacolas para outras pessoas, fiquei a observar a

paisagem que viria pela última vez. Fiquei surpreso ao

ver que o Juquinha já estava acordado e estava por ali

com sua baladeira na mão e um mocó cheio de goiabas

verdes passarinhando. Ele, entretido, tentava acertar um

pássaro, que descansava no galho de um pé de caju. Esti-

cava a baladeira armada com uma goiaba verde e soltava.

“Paff”. A única coisa que conseguia era assustar o pássa-

ro. Ele era muito ruim em atirar pedra. Eu não gostava

muito do Juquinha, pois ele era um ladrão fino de casta-

nhas. Ele sempre surrupiava as minhas castanhas quando

eu as colocava no sol para secar. Ele tinha que ver a mi-

nha triunfante partida daquele lugar, que eu tinha certeza,

que ele nunca ia sair. Resolvi chamar a atenção dele. Mas

fiz isso da pior forma:

— Até nunca mais, Juquinha! Você vai morrer a-

qui nesse lugar! Vai ser ruim de pedra assim lá na casa do

chapéu!

Ele me mirou bem com sua arma, que já estava car-

regada com uma goiaba verde. Esticou e soltou! Acertou

de cheio em minha testa. Quase caio de cima daquele

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caminhão. Eu não tive como revidar, pois o carro tinha

dado partida, mas prometi para mim mesmo: “Um dia...

Um dia ele me paga essa”. Ele ficou dando gargalhadas.

O carro em movimento dificultou o meu deslocamento

até o local vazio mais próximo. Aliás, não tinha mais

local vazio, exceto uma vaguinha ao lado da minha irmã

Leninha.

Comecei a andar em cima do carro em movimento

com medo ou de cair ou de minha mãe perceber que não

tinha me sentando ainda. O carro já tinha percorrido al-

guns metros, mas ainda podia ver o Juquinha caçoando de

mim. A cena patética me deixou estático, com raiva, sem

ação. O carro não parava, o motorista mostrava se com

pressa. A estrada era digna de rally. Alguns solavancos

do carro aqui, outros ali e, de repente, uma curva me cor-

tou a cena e quase me arremessa longe.

Era um aviso: era hora de me sentar, mesmo que

fosse perto de minha irmã comilona. Segurei na madeira

da cobertura do carro, decidi ir me sentar antes que outra

curva me derrubasse. Não me restou alternativas, sentei

perto dela. Ela me olhou com a cara ruim. Eu e ela não

nos dávamos bem. Mas fiquei ali perto dela. Ela virou o

rosto para o outro lado.

A viagem já tinha durado algumas horas. Puro té-

dio: Nenhuma casa, nenhuma árvore verde, nenhuma flor.

Tive que me conformar com uma paisagem seca e árida.

Imaginei que nada pudesse ser pior. Mas estava errado.

Para a situação tornar-se mais desagradável aconteceu

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algo nojento. Percebi que minha irmã estava pálida. Ti-

nha que avisá-la. E foi isso que fiz:

— Ei, Leninha, você está ficando amarela.

— Não vê que estou me sentindo mal? Seu burro..!

Não conseguiu terminar a última palavra. O vômito

a interrompeu. E o que é pior: tudo foi lançado em meu

rosto.

— Era para ser dentro da sacola, mas você me

chamou! Bem feito. — Aproveitou para se inocentar.

Fiz uma careta para ela e aproveitei a situação para

reclamar do meu pão, que ela comera:

— Bem feito, que você vomitou. Isso foi castigo

porque você comeu o meu pão.

— Aproveita que vomitei e come ele agora. — Re-

trucou.

— Que nojo, menina porca.

Virei a cara para o outro lado. Limpei-me com um

pano que levava comigo e não olhei mais para ela a via-

gem toda.

Depois de quase um dia de viagem, finalmente o

carro deu uma parada. Algumas pessoas desceram naque-

le lugar. Fiquei ansioso, achando que tínhamos chegado.

Meu pai, com muita curiosidade, perguntou:

— Motorista, que lugar é esse?

— Já estamos em Puraquê, falta pouquinho para

chegarmos a Jenipapo, Senhor.

— Ai, Citonho! Estou toda doída. — Reclamou mi-

nha mãe.

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— Estamos chegando, mulher. Você não ouviu o

motorista dizendo que Jenipapo é mais adiante um pou-

quinho?

— Graças a Deus, Citonho, porque não aguento

mais engolir poeira dessa estrada. — Mamãe apenas re-

clamava.

Algumas pessoas desceram ali mesmo. Acertaram

suas contas com o motorista e se mandaram. O motorista

tocou o dedo na língua e começou a contar o dinheiro.

Depois que constatou que o dinheiro estava certo, olhou

para um lado, depois para o outro, colocou o dinheiro no

bolso. Soltou um pum.

— Quem achou ruim, engarrafa e vende!

Além de maltrapilho era um senhor muito mal edu-

cado. Mas o povo já tinham se acostumado com suas lou-

curas, nem se importavam mais. Mas teve uma senhora

que fez cara de nojo, parecia que não tinha gostado de ver

o motorista soltando pum. E não gostou mesmo, resolveu

reclamar:

— O senhor não tem vergonha de fazer isso na

frente de uma senhora como eu?

— Não sabia que era sua vez! — Respondeu o mo-

torista e gargalhou muito. Era uma piada sem graças, mas

que ele ainda achava o máximo dizer.

— Abusado! — Ela insistia.

Mas com aquele motorista não adiantava retrucar.

Ele tinha resposta para tudo; e já tinha acostumado a ser

brincalhão, aliás, nojento mesmo:

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— A senhora não peida?

— Claro, mas não dessa forma, na frente das pesso-

as.

— Sabia, minha senhora, que um peido vale mais

do que um pão? — Ela balançava a cabeça. Não estava

concordando com aquilo — Claro que é! Um pão dá para

dividir para no máximo três pessoas. E um peido dá para

uma família inteira. — Disse e gargalhou bem alto. A

senhora fechou a cara durante toda a viagem.

Depois da gargalhada, já dentro da cabine, o moto-

rista colocou a cabeça para fora e disse em alto e bom

som:

— Próxima parada é o povoado Jenipapo. Espero

que tenham colocado os menininhos para mijar aqui e

fazer as necessidades, pois esse carro velho só para agora

em Jenipapo.

Depois do que o motorista anunciou, Comecei a

respirar melhor. Já podia sentir o cheirinho de casa nova,

de vida nova. Eu estava ansioso para conhecer a nossa

nova casa. Achava estranho o nome do lugar: Jenipapo.

Minha imaginação era fértil e eu ficava imaginando o

lugar com a forma da fruta. Bobagem minha, pois não era

possível um lugar com a forma de um Jenipapo.

Os solavancos eram mais intensos, a estrada que

ligava Puraquê e Jenipapo era mais sinuosa e esburacada

que em todo o percurso.

Mais ou menos depois de uma hora e trinta minu-

tos, eu quase cochilando, fui despertado por uma freada

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brusca. Bati a cara em um ferro. Meus lábios foram cor-

tados por meus afiados dentes. Percebi pela dor e pelo

gosto estranho de sangue.

— Aqui é Jenipapo, quem vai ficar aqui, pode des-

cer! E a próxima e última parada é Ribeirão Velho. — O

motorista avisou aos distraídos.

Graças a Deus tínhamos chegado. Senti um alívio.

Aquela freada brusca não foi o suficiente para acordar

Leninha. Ela cochilava como uma bruxa adormecida en-

costada em um velho, que sentava lado dela.

Balancei-a pelo braço, tentando acordá-la para a

nova vida, para o novo lugar. Ela parecia uma pedra, não

queria acordar. Bem que eu poderia ter a deixado dor-

mindo. Ela só ia acordar quando estivesse em Ribeirão

Velho. Mas não tive coragem, deveria plantar flores em

qualquer situação... Eu era um garoto de coração bom.

Não faria essa maldade.

Papai pulou do carro. Segurou mamãe pelo braço,

ajudando-a descer. Os meninos maiores pularam. Os me-

nores desceram com a ajuda da mamãe. Fiquei observan-

do os meninos de minha idade descer. Eu não poderia

cometer erros. Qualquer erro ali era fatal: poderia cair e

quebrar um braço. E eu dei um pulo igual vi os meninos

fazerem. Quase não me seguro em pé. Mas escapei dessa.

Mamãe pastorava as bagagens enquanto papai a-

certava com o motorista as passagens. E nós não desgru-

dávamos de mamãe.

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Papai era metido a esperto e tentava negociar com o

motorista. De certo queria pagar bem menos do que deve-

ria.

— Seu, motora, do cabeçudo para baixo, nenhum

tem idade de pagar passagem, homem.

— Quantos anos têm o cabeçudinho, senhor.

— Apenas cinco! E ele nunca pagou passagem na

expressa Padre Cícero.

Acho que o papai falava de mim não porque que ele

falou a verdade, mas porque eu era o que tinha a cabeça

maior. Pois eu já ia completar oito anos e nunca tinha

viajado na expressa Padre Cícero.

— Que menino de cinco anos grande, senhor. —

Retrucou o motorista.

— Muito leite de cabra, motorista. — Tentou expli-

car meu pai.

O motorista pareceu engolir a história, pois não co-

brou a minha passagem. Mas ficou me observando por

alguns instantes.

Papai após ter economizado nas passagens com sua

jogada de mestre veio até nós e ordenou:

— Cada um pegue uma caixa, um saco ou uma bo-

roca e vamos que a casa fica mais ali.

Olhei aquele lugar e não achei muito diferente de

onde a gente morava, mas cruzei os dedos e torci para

que a nossa vida fosse bem melhor. Pelo menos alguém

precisava acreditar nisso. E eu ainda não tinha perdido a

esperança, mas por pouco tempo.

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Conhecendo uma bruxa de verdade.

Recordar aquela viagem aos trancos e barrancos me

fez esquecer que estava adentrando um grandioso e belo

castelo e que muitas pessoas ali me admiravam e que

agora eu era um homem rico, que exercia grande fascínio

sobre as pessoas. Dentro do castelo pude contemplar uma

festa de gala. As mesas com seus arranjos florais impecá-

veis, as cadeiras cobertas com um tecido de um brilho

incomum, os serventes vestidos a caráter, as mais caras e

sofisticadas bebidas sendo postas nas mesas. E bem à

frente um pequeno palco montado propositalmente para o

evento tinha ao seu centro uma tribuna com dois micro-

fones.

Muita gente já sentada. Outras chegando para se

sentar. Sentei-me em uma mesa que estava vazia. Logo

uma mulher muito bonita, alta, loira, olhos claros, rosto e

nariz afinados e pele macia, trajando um lindo vestido

vermelho, sentou-se comigo e, gentilmente falou:

— Boa noite! Vi que estava só, também estou. Po-

demos fazer companhia um ao outro?

— Sim, claro. Para mim é um prazer ter uma mu-

lher tão bonita como companhia. — Aceitei na hora. O

fluente português, com o qual se comunicava, me permi-

tiu constatar que a mulher era brasileira. Percebi que os

olhos dela brilhavam a me fitar.

— Como é seu nome? — Ela me perguntou.

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— Ulisses Luffy. — Respondi. Esse era meu nome

de guerra.

— Sou Morgana Guppys. — Ela me falou antes que

eu perguntasse.

A nossa conversa não se aprofundou pois uma apre-

sentação acabara de iniciar no palco. Uma senhora, usan-

do uma máscara de bruxa, falava receptando os convida-

dos em todas as línguas dos presentes. Que estranho a

aquele cerimonial de boas vindas. Uma bruxa! O fato me

fez recordar o primeiro dia na nova cidade. Foi o dia em

que eu vi a bruxa pela primeira vez. No palco uma bela

senhora disfarçada de bruxa. Na minha infância uma bru-

xa disfarçada de boa senhora.

Foi logo quando papai pagou as passagens... Respi-

rei um novo ar e pensei: “Finalmente em Jenipapo.” Toda

expectativas de uma bela cidade que eu criei se desfez tão

depressa. Não era uma cidade como imaginava, mas um

povoado! Um pequeno povoado que pertencia ao municí-

pio Santa Maria. Não era um lugar tão grande, mas já era

bem desenvolvido. Perto da igreja algumas casinhas. E

bem a nossa frente uma longa rua. Transversalmente a

essa rua, que era a maior, existiam outras menores. O-

lhando o horizonte não se dava para ver o final da rua.

Mamãe já de pé, com um menino no braço, uma

bolsa na outra mão, ainda cansada da viagem, suspirou,

como se estivesse aliviada.

— Xavier, meu filho, leve essa bolsa para mamãe!

Estou mortinha da viagem.

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O menino tomou a bolsa em suas mãos deixando

mamãe com uma das mãos desocupadas. A ansiedade

pela nova morada a fez roer as unhas por alguns instantes.

Cuspiu os pedaços unhas que tinha conseguido arrancar

com os dentes, fitou papai com uns olhos brilhantes e

perguntou:

— Citonho, como é mesmo essa casa? Você nunca

me falou nada.

— Mulher, não é muito boa, mas é melhor que a

que a gente tinha lá no Ceará. Digo boa porque essa é

nossa. E vamos, pois a casa fica no final dessa rua.

Lá se foram mais pelo menos duas unhas arranca-

das a dente. A ansiedade não era apenas de dela, mas de

todos nós. Juntamos as nossas tralhas e bagagens e saí-

mos caminhando por aquela rua.

Poucos passos dali, avistamos uma igrejinha, sim-

ples, mas muito arrumadinha; era a igreja de nossa Se-

nhora do Perpétuo Socorro. Na frente dela um senhor

estava a tirar fotos, em preto e branco ainda.

— Vamos senhora, encoste para cá. Registre esse

bom momento para sempre, e por um preço de banana.

Fotos! Poucas vezes fizemos isso, tirar foto era lu-

xo. Mamãe querendo aproveitar a promoção para regis-

trar aquele momento de vida nova, não perdeu tempo,

dirigiu-se ao papai e comentou:

— Ôh, Citonho, agente devia era tirar uma foto dos

meninos para mandar para a comadre Bibiana. Quero o

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mais rápido possível mandar a ela uma carta. Assim ela

fica sabendo o nosso novo endereço.

— Então, vamos. Tem ainda uns trocados aqui. Dá

para pagar a fotografia.

Chegamos ainda tímidos, meios sem jeito para po-

sar na foto. O moço se encarregou de nos organizar para

que ninguém ficasse de fora do ângulo da câmera. Ele

pediu que ficássemos em duas filas: os maiores atrás e o

menores na frente. Na fila de trás colocou por ordem de

idade e tamanho: Xavier (17 anos), Maria Betânia (16

anos) Zacarias (14 anos) e Leninha (12 anos). Na segunda

fila, os menores: José (10 anos), eu, Otávio (9 anos), Ra-

imundo, que chamávamos carinhosamente de (Mundi-

nho) (5 anos) e o Pelé ( 1 ano e 6 meses).

Os meninos em posição de soldados, com os braços

estirados, as mãos sobre as cochas, as cabeças bem levan-

tas e seriedade no rosto para expressar a masculinidade e

as meninas com as mãos na cintura a cabeça um pouco

inclinada para os lados e um belo sorriso no rosto, ordens

do fotógrafo. A pose fotográfica família dinossauro foi

inventada ali mesmo pelo o moço da foto, que nos arru-

mou direitinho na fila e ordenou que ninguém se mexes-

se. Deu três passos para trás, escondeu-se por trás de uma

caixa preta, segurada por um tripé, que era a câmera um

tanto ultrapassada, e falou:

— Meninos, quando eu contar até três, digam arroz!

Mesmo que em preto em branco, aquele momento

“vida nova: mundo dos iludidos” tinha acabado de ser

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registrado. Percebi a grande felicidade no rosto de ma-

mãe. Sentia se orgulhosa da família que tinha. Quase não

desmanchamos a pose. Esperamos as ordens do moço da

foto.

— Prontinho, senhora, daqui um mês a foto estará

pronta. Você recebe aqui mesmo na igreja.

As casas que delineava aquela rua muito comprida

era o nosso cenário enquanto caminhávamos. Volta e

meia um vivente, que nos recepcionava com um ritual de

quem tinha curiosidades e timidez, apenas colocava o

rosto na janela e retirava logo em seguida. Alguns meni-

nos, que jogavam bola, paravam suas brincadeiras para

olhar a gente passar.

Já estávamos na metade da rua. Passamos numa

quitanda, da qual saiu uma senhora um pouco idosa e

abordou mamãe:

— Vocês são os senhores que vão morar na casa

que era de Dona Sarita?

— Sim! Comprei a casa dessa senhora. — Respon-

deu papai.

— Pois sejam bem vindos. Meu povo bonito, eu

sou dona dessa quitandinha, se vocês quiserem comprar

fiado, aqui é o lugar.

— Obrigado, senhora. Com certeza estarei aqui de-

pois para comprar algum alimento. — Respondeu papai.

— Estarei esperando vocês!!

— Mas, como é seu nome mesmo, senhora? —

Perguntou mamãe.

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— Meu nome é Zilda. Todos me chamam de Dona

Zilda, mas podem me chamar apenas de Zilda.

— O meu é Carmozina. Mas todos me chamam de

Carmoza. — Também se apresentou mamãe.

“Que mulher bondosa”. Pensei. Mas não imaginava

que por trás daquela máscara de fada residia uma bruxa

capaz das piores maldade e enroladas.

Bem... Já tínhamos onde comprar fiado. Parecia

que a vida naquele novo lugar seria bem melhor do que

no Ceará. Faltava agora só chegar conhecer a casa, o que

não demorou muito. Depois de mais um pouco de cami-

nhada avistamos, lá no final da rua aquela casinha humil-

de, coberta de palha e tampada de barro.

— Olha, lá, mulher! A casa é aquela! — Papai não

hesitou em falar.

E aquele foi nosso primeiro dia na nova vida... Que

vida! Uma vida de rosa, às avessas. Onde os espinhos não

eram meras coincidências, mas ocupavam o lugar das

pétalas.

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Pra dizer que não falei da carta, do retrato e da casa.

Morgana Guppys era uma mulher perfeita, de um

sorriso encantador. Ela se comunicava com maestria. Voz

suave, dicção impecável e gestos sincrônicos. Por vezes,

aquela mulher, me fascinava, me fazia esquecer minha

infância tão espinhosa, mas ainda não era capaz de me

aquecer por dentro. Eu tinha conquistado o mundo, mas

tinha perdido o amor pela vida, pelas pessoas... Era capaz

de usar aquela mulher e descartá-la, ou até mesmo lhe

tirar a vida sem remorsos, sem culpa... O sofrimento das

pessoas já não me causava nenhuma emoção, nenhuma

preocupação.

Tão belo quanto Morgana eram as estruturas daque-

le castelo. Contemplava tudo a minha volta como criança,

admirava tudo sem deixá-la perceber. Por fora eu era a-

dulto, forte, herói, mas por dentro era como cristal aque-

cido, tão frágil. Quem dera, na minha tênue infância, ter

habitado em um castelo como aquele. Nem casa na árvore

eu tive, tampouco as que morei foram decentes.

— Por favor, senhores! Posso tirar uma foto? —

Solicitou um fotografo, sem dúvida, de alguma revista

brasileira. Conheci pelo português fluente.

— Sim, claro, — Morgana aceitou e eu concordei

também. Depois do flash, ela começou a conversar comi-

go. Eu, ainda encadeado com a luz forte da câmera e di-

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vagando, nem prestei muita atenção no que ela me fala-

va... Comecei a recordar...

O primeiro mês passou bem rápido. Tempo sufici-

ente para que nos familiarizássemos com as pessoas, os

lugares e com a nova vida. Suficientemente também para

perceber que nada mudara, tudo era tão igual e monótono

como antes.

Naquele domingo, bem cedo mamãe tomou seu ba-

nho, vestiu sua roupa e foi à missa. Quando voltou da

igreja, já veio com um envelope pardo nas mãos. Era a

foto que tinha recebido. Quando mamãe falou que o que

ela trazia em suas mãos era a foto, ficamos ansiosos, to-

dos nós querendo ver.

Mamãe entregou a foto em nossas mãos, mas fez

sua recomendação:

— Cuidado para não amarrotar! Essa é para mandar

para comadre Bibiana.

Todo mundo aprovou a foto. Aos nossos olhos, era

a família mais perfeita do mundo. Devolvemos a foto,

intacta, para a mamãe, que a colocou de volta no envelo-

pe.

— Agora vão brincar e me deixem aqui com Betâ-

nia, pois preciso de silencio para escrever uma cartinha

para minha comadre. — Ordenou mamãe, já nos enxo-

tando.

Mamãe não sabia escrever nada além do seu nome.

Sabia apenas assiná-lo e muito mau. Por isso sugeriu que

Betânia ficasse, pois ela era quem ia escrever tudo que

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mamãe ditasse. E ai dela que não fizesse tudo à risca co-

mo ouviu.

Betânia sentou-se a mesa, com posse da caneta e de

algumas folhas de papel, começou a escrever. Mamãe,

nervosa, caminhando de um lado para o outro, ditava tudo

em alto e bom som.

Eu ouvi tudo, pois como a carta era para minha ma-

drinha, fiquei curioso, voltei para ouvir. Fiz isso nas pon-

tas dos pés, pois se ela tivesse me pego, era capaz de até

hoje está de castigo no milho.

Mamãe, mesmo nervosa, empolgava-se ao ditar.

Não sabia escrever, mas era muito boa de prosa...

Saudações,

Comadre Bibiana,

Já chegamos em Jenipapo, aqui é bem melhor que

no Ceará. As coisas são difíceis, mas estamos na luta.

Minha casa é uma graça, minha comadre! É sim-

ples, mas essa eu posso dizer que é nossa e ninguém to-

ma. Bem do meio da rua já se vê bem ao final aquela

casa, que parece não morar ninguém, ao não ser pela

fumaça que escapava por entre as palhas do telhado,

quando eu preparo a comida. Na frente da casa um ou

dois pés de mangas e cajus, a coisa mais bonita. E esse

ano com as chuvas carregou que quase quebram as ga-

lhas.

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Logo quando a gente entra em minha casa, na sala

há duas cadeiras de macarrão, aquelas que você me deu.

Tem a bileira que dona Salete me deu quando vim embo-

ra para cá. Você se lembra de Salete, não lem-

bra?Coitada, está tão adoentada, não boto fé que dure

mais dois janeiros. Na bileira, comadre, tem dois potes

cheios de água, cobertos com guardanapos com bicos de

crochê, aqueles que você me deu. Os potes eu comprei

aqui depois que cheguei. Na parte de cima da bileira

estão os copos de alumínio bem limpos que dá até para

se enxergar de tão bem areados. E como você mesmo me

ensinou uma vez, eu coloco um copo de plástico com a-

zeia, que é para os meninos não sujar os de alumínio.

Da sala, dar para entrar no quarto meu e do Cito-

nho, que tem uma cama velha, nosso ninho. A se essa

cama falasse, comadre! Nas paredes tem uns cabides

pendurados, que serve de guarda-roupas. Bem próximo

aos cabides tem uma porta, que do meu quarto dá acesso

ao quarto das duas meninas. Já o quarto dos meninos, a

entrada é na cozinha. Toda noite quando vou dormir fico

com coração partido, pois as redes não dá para cada um

dormir em uma, pois uma rasgou ainda no Ceará, mas

toda noite sempre eu escolho dois para dormirem juntos.

Mas isso é só até as coisas melhorarem um pouco mais...

Betânia, cansada de manusear a caneta, começou a

se mal dizer:

— Ai, mãe, essa carta não tem fim? Meus dedos já

tão criando calos!

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— Deixe de reclamações, menina! E escreve o aí

que te falo. — Falou mamãe sem dá muita bola para as

reclamações de Bethânia. E continuou a ditar:

— Na cozinha, comadre, tem o pé de alumínio com

poucos utensílios. No quintal, que é grande e bom, tem

uma porca solta, o jirau onde lavo as roupas e louças

sujas, próximo ao jirau um poço bom, cheio de água lim-

pa. E bem ao fundo do quintal um mato alto.

Comadre você precisa ver como as crianças cres-

ceram. Não vejo a hora de você vir nos visitar. Estou

esperando você, minha comadre. Seu afilhado manda lhe

pedir a benção.

— Mas ele não está nem aqui, mamãe!

— Cale-se, menina! E escreva. Eu sou sua mãe.

E continuava os escritos:

Estou esperando uma carta sua e também a sua vi-

sita. Um forte abraço de sua amiga e comadre!

Carmoza.

— Pronto, Betânia, é só isso que quero dizer a Bi-

biana. Agora leia ai para mim. Preciso ver como ficou.

Betânia leu tudo. Mamãe balançou a cabeça, positi-

vamente. Nessas alturas já se achava o Pero Vaz de Ca-

minha. Disse:

— Muito bem! Dobre e coloque no envelope. A-

manhã eu mando pelo motorista do pau-de-arara. Ele co-

loca a carta para mim lá no correio de Santa Maria.

Mamãe deu-se por satisfeita e foi lavar as louças no

jirau. Betânia, aproveitando que mamãe tinha saído de

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cena, e, por suas próprias vontades, continuou a escrever

a carta:

Você se lembra de Betânia, comadre? É mais boni-

ta de todos. Tão inteligente. Ela que escreveu essa carta,

minha comadre. Essa menina tem futuro.

Terminado de alterar o conteúdo da carta, Betânia

dobrou-a, colocou-a no envelope e colou as abas.

No outro dia, bem cedo, mamãe mandou a carta pe-

lo motorista. Não demorou nem vinte dias chegou a res-

posta da madrinha Bibiana.

As letras, formando palavras, que formavam frases,

grafadas em um papel amarelado, na voz de Betânia reve-

lavam o seguinte:

Saudações Comadre, Carmoza. O que me espanta é

que você mora não muito longe de onde eu moro...

... Graças a Deus está tudo bem, não demoro a

chegar aí. Diz ao meu afilhado que Deus o abençoe e que

já fiz um presente para ele. Um forte abraço amiga e

comadre.

Não pude esquecer-me da foto, da carta e da casa. E

principalmente daquele presente, que, na verdade foi um

presente de grego.

Enquanto se trocavam cartas, a vida passava. As

flores murchavam e os espinhos tomavam o lugar das

pétalas. E eu? Eu vivia, aliás, sobrevivia a tudo aquilo,

ainda acreditando...