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Universidade Federal da Bahia Faculdade de Educação Programa de Pós-graduação em Educação FEIXES DE ARCO-ÍRIS: UMA COMPREENSÃO ONTOLÓGICO-POLICRÔMICA DA SENSIBILIDADE E SUA FRUIÇÃO NO FENÔMENO DO EDUCAR

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Universidade Federal da Bahia

Faculdade de EducaçãoPrograma de Pós-graduação em Educação

FEIXES DE ARCO-ÍRIS:

UMA COMPREENSÃO ONTOLÓGICO-POLICRÔMICA

DA SENSIBILIDADE E SUA FRUIÇÃO NO FENÔMENO DO EDUCAR

Miguel Almir Lima de Araújo

2006

Miguel Almir Lima de Araújo

FEIXES DE ARCO-ÍRIS:

UMA COMPREENSÃO ONTOLÓGICO-POLICRÔMICA

DA SENSIBILIDADE E SUA FRUIÇÃO NO FENÔMENO DO EDUCAR

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Dante Augusto Galeffi

Salvador

2006

2

Biblioteca Anísio Teixeira – Faculdade de Educação - UFBA

A659 Araújo, Miguel Almir Lima de. Feixes de arco-íris : uma compreensão ontológico- policrômica da sensibilidade e sua fruição no fenômeno do educar / Miguel Almir Lima de Araújo. – 2006. 255f.

Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação, 2006. Orientador: Prof. Dr. Dante Augusto Galeffi.

1. Educação – Filosofia. 2. Sensibilidade – Educação. 3. Ação educativa. 1. Galeffi, Dante Augusto. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III. Título.

CDD 370.1

3

4

TERMO DE APROVAÇÃO

Miguel Almir Lima de Araújo

FEIXES DE ARCO-ÍRIS:UMA COMPREENSÃO ONTOLÓGICO-POLICRÔMICA DA

SENSIBILIDADE E SUA FRUIÇÃO NO FENÔNENO DO EDUCAR

Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do graude Doutor em Educação, Faculdade de Educação, Universidade

Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

Dante Augusto Galeffi_______________________________________Doutor em Educação, Universidade Federal da Bahia – UFBAUniversidade Federal da Bahia

João Francisco Regis de Morais_________________________________Doutor em Educação, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Pontifícia Universidade Católica de Campinas - UCCAMP

João Francisco Duarte Júnior___________________________________Doutor em Educação, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMPUniversidade Estadual de Campinas

Marcos Ferreira Santos_______________________________________Doutor em Educação, Universidade de São Paulo – USPUniversidade Estadual de São Paulo

Roberto Sidney Macedo_______________________________________Doutor em Ciências da Educação, Université Paris VIIIUniversidade Federal da Bahia

Salvador, 26 de maio de 2006.

5

Lei do destino: que todos se aprendam.

Holderlin

AGRADESCÊNCIAS

6

Creio que tudo o que urdimos nas trajetórias de nosso ser-sendo, na trama do

existir humano, em tonalidades diversificadas e de modo mais visível ou invisível, se

traduz em processos de implicação coexistencial. Somos nós mesmos como eus,

como outros e como eutros. Assim, são muitas as gratidões que tenho a expressar

com o partejamento dessa tese, desde as co-participações mais diretas às mais

indiretas. Realçarei aqui aquelas que ocorreram de forma mais direta nas curvaturas

desse processo de partejamento.

– Aos participantes da banca, pensadores e educadores extraordinários, menestréis

dos valores humanos primordiais, que, muito além da esfera do mero saber, se

enredam pelas searas da sabedoria:

●Ao Prof. Dr. Dante Augusto Galeffi, orientador, pelo vigor do pensamento

inventivo e anímico, pelas magnitude das orientações, pelo acompanhamento cordial

nos processos do partejar;

●Ao Prof. Dr. Roberto Sidney Macedo, pela presença com-panheira desde

jornadas mais antanhas, pelas interlocuções fecundas, pela sinergia da philia;

●Ao Prof. Dr. Regis de Morais, pelo elã vital da sabedoria alumiosa, pelas

interlocuções vicejantes, pelos entrelaces de fraternura;

●Ao Prof. Dr. João Francisco Duarte Jr, pelas policromias do estésico, pelas

interlocuções fecundas na UNICAMP, pelos laços da philia;

●Ao Prof. Dr. Marcos Ferreira Santos, pelo elã do pensamento pregnante e

anímico, pelo desbordar das interlocuções na USP, por nossos entrelaces

crepusculares, como também, pelo precioso convite para participar do projeto de

intercâmbio Faculdade de Educação/USP e Universidad Complutense de Madrid-UCM;

pela profícua estada na mesma durante 6 meses.

– Aos professores do Doutorado em Educação da UFBA, com os quais pude sorver

momentos bastante expressivos no cotidiano acadêmico;

– Aos colegas da turma do Doutorado em Educação, pelos momentos profícuos de

convivência epistemológica e coexistencial;

– Aos queridos e às queridas estudantes do Departamento de Educação, Campus XI,

da UNEB, e do Departamento de Educação, da UEFS, pelos momentos primorosos de

co-aprendências e de celebração da vida;

7

– Aos/às diversos/as estudantes que, através das oficinas, participaram das

indagações com suas vozes expressivas e inspiradoras;

– Aos colegas professores e professoras dos Departamentos de Educação da UNEB e

da UEFS, pelo apoio institucional e pelos momentos de compartilhamentos de

saberes e de sentires;

– Aos funcionários da Secretaria do Programa de Pós-Graduação da FACED/UFBA, às

bibliotecárias da FACED/UFBA, e aos funcionários da UNEB e da UEFS pelo apoio

técnico-administrativo;

– À UNEB, pelo apoio institucional através da bolsa PAC;

– À CAPES, pelo apoio institucional através da bolsa sanduíche na UCM;

– À Profa. Dra. Marián Fernandez Cao, pela acolhida e pelo apoio na UCM.

–A Linda Côrtes pelos poemas-imagens das folhas 02, 68 e 201;

– A tantos amigos e amigas, irmãos e irmãs de itinerrâncias, pelas intensidades dos

compartilhamentos na policromia das teias de nossas venturas, pela coexistência

pregnante e anímica.

8

(...)

Reabrirá um dia a escolaante os dentes da engrenagemo seu riso poético?Corpo e espírito. Círculos concêntricoscujo centro está em toda parte e em nenhum lugar.É por saber demais a forma e o lugar de amboscom lógicas metálicasque hoje escapa-nos o jeito de educar.

(...)

A tarefa divina de educar para o espantofoi posta aos nossos péspara que a regássemos com lágrimasdando-lhes o cuidadoque damos a essa coisa vítreaque é viver.

Regis de Morais

RESUMO

As meditações que descortino na tese emergem das in-tensidades de minhas

inquietudes e espantamentos diante dos fenômenos do existir e da ação de educar;

apresentam “Uma compreensão ontológico-policrômica da Sensibilidade e sua

fruição no fenômeno do educar” numa mirada Filantropoética. Mirada que busca

entrelaçar o elã do filosófico-antropológico e a cromaticidade do poético

9

vislumbrando a polifonia e a policromia dos Sentidos pregnantes e anímicos da

temática. Dessa forma, apresento a Sensibilidade (Sensus) como estado de dis-

posição, de abertura vasta de nossos sensos perceptivos (afeccionais e noéticos), em

que corpo e espírito coexistem, de modo co-implicado, para uma compreensão e

uma vivenciação policrômicas dos Sentidos do existir e do co-existir humanos; como

estado de despojamento do espírito inventivo e altaneiro, do pathos criante e co-

movente, para a vivência do sentimento do mundo, do ser-sendo-com-os-outros, das

in-tensidades da complexidade e das ambigüidades da condição humana. Nesse

horizonte compreensivo, a Sensibilidade se constitui desde os fulcros magmáticos da

Corporeidade, da Intuição, da Afetividade, do Mitopoético e da Razão-Sentido. Fulcros

estruturantes que se enredam de modo recursivo e entrelaçado. Em seguida,

apresento meditações que compreendem o fenômeno do educar como ação teórico-

vivencial que implica na fruição da Sensibilidade. Para tanto, me inspiro, tanto nas

ressonâncias das vozes de diversos estudantes que emergem de escutas sobre o

vivido/vivente, como no estofo das incursões teóricas. Assim, apresento meditações

acerca do educar compreendendo-o como um rito vivo de iniciação que se traduz em

processos in-tensivos de con-dução aos saberes e sentires que constituem o

dinamismo do ethos; no cuidado com a inteireza androgínica do ser-sendo-com no

advento dos valores humanos primordiais, dos Sentidos anímicos, do cuidado com a

Sensibilidade. Por fim, como “Arremates inconcludentes”, propugno que, ao primar

pela fruição da Sensibilidade, a ação de educar se desdobra numa Pedagogia do

encantamento como se-ducere que implica no jorrar do pathos criante, do ad-

mirante, do elã vital, do espírito altaneiro e audaz; que envida apaixonamento e

entusiasmo, laços de simpatia e de empatia; que conduz a fruição dos Sentidos

pregnantes e anímicos no desbordar dos feixes do arco-íris que alumbram e re-velam

as policromias da poeticidade do existir, do co-existir.

Palavras-chave: Sensibilidade – Educar – Corporeidade – Afetividade – Intuição –

Mitopoético – Razão-Sentido – Encantamento.

ABSTRACT

The meditations I envision arise from the in-tensities of my restlessness and fright

when I face the phenomena of the existence and of the action of educating; they

present an “ontological-polychrome comprehension of Sensitivity and its delight in a

Philanthropoetic view. A view that wants to intertwine the enthusiasm of the

philosophical-anthropological, and the chromaticity of the poetic, while envisioning

the polyphony and the polychromy of the pregnant and animistic Senses of the

theme. I therefore present Sensitivity (Sensus) as a dis-position status, with a broad

10

opening of our affective and poetic perceptive senses, in which body and spirit

coexist in a co-implicated way, for polycromic comprehension and living of the

Senses of human existing and co-existing; as a state of relinquishment of the

inventive and proud spirit, of the creative and moving pathos, for the living of the

world feeling, of the being-being-with-the-others, of the in-tensities of the complexity

and of the ambiguities of human condition. In this understanding horizon, Sensitivity

is built since the magmatic basis of a Corporeal status, Intuition, Affectiveness,

Mythopoetic and Reason-Sense. Structuring basis that are kept in a recurrent and

intertwined way. After that, I present meditations comprising the education

phenomenon as a theoretical-living action that implies in the delight of Sensitivity.

For this purpose, I inspire myself both on the resonances of the voices of several

students that emerge from hearing about the lived/living, as in the energy of

theoretical incursions. I therefore present meditations about education,

understanding it as a live initiation rite that translates itself in in-tensive processes of

con-duction to knowledge and feelings which make the dynamics of ethos; in the

care for the androgenic wholeness to be-being-with; with the beginning of primitive

human values, of the soul Senses, of the care with Sensitivity. Last, as “Non-

concluding conclusions”, I defend that, being the delight of Sensibility predominant,

the educational action unfolds in Pedagogy of charming as se-ducere that leads to

the sprouting of the creative pathos, of the ad-mirable, of the vital enthusiasm, of the

daring and proud spirit; that brings about passion and enthusiasm, bonds of liking

and empathy; that leads to the delight of the pregnant and soul Senses in the

surpassing of the inspiring illuminating set of light beams of the rainbow, which re-

veal the polychromies of the poeticism of existing, of co-existing.

Keywords: Sensitivity – Educate – Corporeal status – Affectiveness – Intuition –

Mythopoetic – Reason-Sense – Charm.

RESUMEN

Las meditaciones, que desarrollo en la tesis, emergen de la in-tensidad de mis

inquietudes y espantos delante de los fenómenos del existir y de la acción de educar;

presentan “Una comprensión ontológico–policrómica de la sensibilidad y su fruición

en el fenómeno del educar” en una mirada Filantropoética. Mirada que busca

entrelazar el élan de lo filosófico-antropológico y la cromaticidad de lo poético

vislumbrando la polifonía y la policromía de los Sentidos corporales y anímicos de la

temática. Así, presento la sensibilidad (sensus) como estado de disposición, de

apertura vasta de nuestros Sentidos perceptivos (afectivos y noéticos), en que el

cuerpo y espíritu coexisten de modo coimplicado, para una comprensión y una

11

vivencia polifónica de los sentidos del existir y del coexistir humanos; como estado

de desprendimiento del espíritu inventivo y altanero, del pathos creador y

conmovente para una vivencia del sentimiento del mundo, del ser-siendo-con-los-

otros; de las intensidades de la complejidad y de las ambigüedades de la condición

humana. En este horizonte comprensivo, la sensibilidad se constituye desde los

fulcros magmáticos de la corporeidad, de la afectividad, de la intuición, del

mitopoético y de la razón-sentido. Fulcros estructurantes que se plasmen de modo

recusable y entrelazado. En seguida, presento meditaciones que comprenden el

fenómeno del educar como acción teórico-vivencial que implica en la fruición de la

sensibilidad. Así, me inspiro, tanto en las resonancias de las voces de diversos

estudiantes que emergen de escuchas sobre lo vivido como en las incursiones

teóricas. Presento meditaciones sobre el educar comprendiéndolo como un rito vivo

de iniciación que traduce procesos in-tensivos de conducción al saber y al sentir que

constituye el dinamismo del ethos; en el cuidado con la totalidad andrógena del ser-

siendo-con; con el advenimiento de los valores humanos primordiales, de los

sentidos anímicos, del cuidado con la sensibilidad. Como “Arremates

inconcluyentes”, propongo que, al primar por la fruición de la sensibilidad, la acción

de educar se desborda en una Pedagogía del encantamiento como se-ducere que

implica en la manifestación del pathos creador, de lo admirable, del élan vital, del

espíritu altanero y audaz; que proporciona pasión y entusiasmo, lazos de simpatía y

de empatía; que conduce a la fruición de los sentidos corporales y anímicos en el

desbordar de los haces de luz del arco iris que revelan las policromías de la

poeticidad del existir, del coexistir.

Palabras llave: Sensibilidad – Educar – Corporeidad – Afectividad – Intuición –

Mitopoético – Razón-Sentido – Encantamiento.

S U M Á R I O

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Cap. 01 – Uma compreensão ontológico-policrômica da Sensibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

01.1– “Arqueologia” da Sensibilidade (sensus) em nosso processo civilizatório . . . . . . . . . . . . . 23

01.2 – A compreensão ontológico-policrômica da Sensibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

Cap. 02 – Os fulcros magmáticos da Sensibilidade . . . . . . . . . 69

02.1 – Da Corporeidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70

02.1.1 – (Breve) Trajetória do corpo em nosso processo civilizatório . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70

12

02.1.2 – A pregnância do corpo como estofo biocultural, simbólico e andrógino . . . . . . . . . 77

02.2 – Da Afetividade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

02.3 – Da Intuição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 02.4 – Do Mitopoético . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110 02.4.1 – O simbólico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110

02.4.2 – O mítico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

02.4.3 – O estado poético . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130

02.4.4 – O mitopoético . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

02.5 – Da Razão-Sentido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

02.5.1 – Gênese do termo Razão (etimologia, polissemia...) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

02.5.2 – A Razão na cultura ocidental (modernidade) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145

02.5.3 – Razão-Sentido: polifonias . . . . . . . . . . . . . . 154

Cap. 03 – Urdiduras do vivido: ressonâncias das práticas educacionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

03.1 – O exercício da escuta do vivido/vivente. . . . . . 167

03.2 – As ressonâncias das vozes dos estudantes I . . . 168

03.3 – Considerações alusivas às vozes dos estudantes I, imagens etc. . . . . . . . . . . . . . . 188

03.4 – As ressonâncias das vozes dos estudantes II . . 192

03.5 – Considerações alusivas à vozes dos estudantes II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197

Cap. 04 – O fenômeno do educar como um rito de iniciação ao advento da Sensibilidade . . . . . . . . . 202

04.1 – A predominância das práticas educativas instrucionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

04.2 – O educar como processo de fruição da Sensibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213 04.3 – Indicativos acerca do modo poiético de condução da ação de educar que apresento. . . 232

Cap. 05 – Arremates inconcludentes: por uma Pedagogia do Encantamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238

Referências gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243

13

14

INTRODUÇÃO

Cantá seja lá cumu fôSi a dô fô mais grandi qui o peito

Cantá bem mais forti qui a dô

Gildes Bezerra

A verdadeira incomensurabilidade é o nada,que não tem barreiras e é onde uma pessoa

pode espraiar seu pensar-sentir.

Clarice Lispector

As meditações que apresento no estofo da tese traduzem as in-tensidades das

inquietudes do daimon, dos espantamentos do pathos e dos murmúrios que emanam

de silêncios e de ruídos que me atravessam, co-movem e desafiam entre as

trajetórias do ser-estar-sendo-com do existir e do co-existir, na cotidianidade

pregnante do mundo vivido/vivente. Emergem desde dentro das curvaturas de

minhas itinerrâncias pelos paradoxos do humano, pelas encruzilhadas do fenômeno

do educar, através da fruição de experiências in-tensamente vividas, de modo

teórico-vivencial, nas sendas das errâncias e das aprendências da urdidura das

mesmas. Assim, a tese se enreda marcada pelos tons de minhas incompletudes, ao

transitar entre o limiar dos limites e das possibilidades das miradas demasiadamente

humanas que projeto sobre a temática nesse momento de minhas travessias (abril

de 2006).

No transcurso da tese utilizo o vocábulo meditação inspirado no “pensar

meditativo” de Heidegger concebendo o mesmo como expressão de um pensamento

encarnado, que, com radicalidade, procura ruminar, interrogar e ponderar com afinco

buscando penetrar na nervura dos fenômenos. Assim, como um pensar que se

pretende pregnante e anímico e que busca problematizar e com-preender a polifonia

dos Sentidos do existir. Um pensamento que procura não apenas explicar, mas,

sobretudo, se implicar com os fenômenos, com as in-tensidades das ambigüidades e

dos paradoxos do existir humano. Portanto, meditação como atitude acurada que

procura penetrar no horizonte dos Sentidos existenciais buscando garimpar seus

núcleos anímicos.

Também farei uso constante do termo in-tensidade como expressão que

traduz a presença de um movimento tensorial interno, inerente aos fenômenos

humanos, à própria dinâmica do existir humano, do nosso ser-sendo no mundo. In-

tensidade como revelação dos fluxos tensoriais caracterizados por conflitos e

contradições que co-movem o ser-sendo e suas implicações no ser-sendo-com-os-

outros. Como expressão de forças e de potencialidades que seminalizam e que fazem

germinar dando impulso e ritmo ao existir, ao co-existir, e que compelem aos

processos de transformação e de renovação constantes. Dessa forma, essas in-

tensidades que constituem o cerne da trama da condição humana se traduzem na

presença de tensões e de rasgos que expressam o dinamismo criante dos fluxos que

vigoram o existir e o co-existir. In-tensidade como expressão da latência dos

momentos crísicos que potencializam a patência dos partejamentos que vivificam e

renovam.

A tese é constituída desde uma perspectiva de abordagem que considero

Filantropoética, ou seja, suas meditações se lastreiam em ruminações e em

ponderações filosófico-antropológicas acerca da Sensibilidade e da fruição da mesma

no fenômeno do educar que são atravessadas pela cromaticidade de sua

poeticidade, pelo elã do poético. Desse modo, a textura sintático-semântica da tese

busca urdir meditações sobre a Sensibilidade e sua fruição no fenômeno do educar

que penetram a polifonia dos Sentidos anímicos do ser-sendo, desde a pregnância do

existir e do co-existir cotidianos, mediante a plasticidade da policromia de suas teias,

da poeticidade de suas contexturas existenciais, imaginárias e simbólicas.

Nesse horizonte compreensivo, a linguagem que articulo é tingida com a

policromia dessas tonalidades vislumbrando a poiesis, tanto em sua dimensão

epistemológico-filosófica, como poética, na tentativa de traduzir, de modo

expressivo, o espanto originário do vivido/vivente, de explicitar seus Sentidos

nascentes. Assim, a mesma não se configura desde uma linguagem marcada de

linearidade e funcionalidade em sua modulação lógico-formal. Procuro entretecer o

texto com uma linguagem “contaminada” com as in-tensidades dos fenômenos

humanos, em sua existencialidade encarnada, compreendendo que os mesmos são

constituídos de heterogeneidades e de polifonias, de ambigüidades e de paradoxos,

em suas curvaturas e indeterminações.

Nessa perspectiva, o texto não apresenta estrutura formalmente linear, não

incidindo, portanto, na pretensão de trazer conclusões retilineamente precisas dos

conteúdos abordados. Ou seja, não transito pelos dispositivos lógico-formais que

apresentam argumentos e conclusões nos formatos de premissas simetricamente

elaboradas. As meditações se desdobram transversalmente no decurso do texto

14

tentando articular compreensões polifônicas que pretendem seguir o ritmo sincopado

da temática.

Dessa forma, a tese vislumbra tratar a Sensibilidade e sua fruição no

fenômeno do educar com cuidado e amplitude, mediante o “rigor fecundo”, na

expressão primorosa de Macedo (2000a), procurando, assim, compreender os

Sentidos da mesma do modo mais aproximado possível, na riqueza de sua

complexidade incontornável. Procuro apresentar meditações articuladas com

consistência, desde o horizonte de abordagem explicitado, buscando rigor, mas sem

perder o vigor da pregnância da temática em seu suceder cotidiano. Assim, o texto

implica numa tecelagem que opera cruzamentos transversais anunciando

compreensões das in-tensidades e da dinamicidade do fenômeno abordado.

As cosmovisões que me inspiram se lastreiam em concepções

transdisciplinares que concebem os fenômenos humanos como constituídos de

complexidade e de indeterminação, de pluralidade e de polifonias, mediante a trama

da rede entrelaçada que compõe a plasticidade das policromias do existir cotidiano.

Cosmovisões que, portanto, compreendem que os saberes não se constituem, em

sua acepção mais radical, de áreas ou disciplinas estanques, mas que, se entretecem

mediante as in-tensidades das teias que os entrelaçam e os co-implicam

ontologicamente na afirmação dos Sentidos humanos primordiais – o horizonte da

sabedoria. Sentidos que, portanto, emergem dessas in-tensidades que dinamizam as

relações de implicação e de co-implicação constitutivas da inteireza do existir, do co-

existir.

Dessa forma, minhas meditações transitam pelas abordagens

fenomenológicas, em suas acepções mais alargadas, e pela Hermenêutica simbólica.

As abordagens fenomenológicas que me inspiram buscam a compreensão do ser-

sendo, dos fenômenos e do existir humano, em suas expressões mais originárias.

Uma compreensão que concebe o ser-sendo-com-os-outros imerso na dinamicidade

dos contextos existenciais e coexistenciais, nas contingências do mundo

vivido/vivente, em sua condição de inacabados, marcados por incertezas,

ambivalências e polissemias.

A Hermenêutica simbólica é concebida como perspectiva de interpretação e

de compreensão dos fenômenos humanos, do existir, em que estes são constituídos

como urdiduras entrelaçadas de modo heterogêneo, como entrecruzamentos de

Sentidos imbuídos de policromia e de polifonia. Como uma compreensão de que

esses Sentidos se constituem mediante o dinamismo da trama de relações que

traduz implicação e co-implicação na rede simbólica da cultura; como uma

compreensão que procura penetrar com radicalidade nos Sentidos considerando que

os mesmos são sedimentados desde fontes primordiais de repertórios míticos e

15

simbólicos que traduzem seu elã pregnante e anímico e que implicam interligação

entre intuição e razão, sentires e pensares, o dionisíaco e o apolíneo. A Hermenêutica

simbólica busca interpretar e compreender os fenômenos e seus Sentidos desde sua

existencialidade coexistencial em que os mesmos se constituem numa perspectiva

hermesiana. Ou seja, se instauram através dos cruzamentos, das relações de

mediação entre o orgânico e o simbólico, o masculino e o feminino, o ser e o evento

etc. Procura compreender as polifonias dos símbolos que constituem as camadas

incontornáveis dos imaginários, da trama mestiça de nosso existir cotidiano (ORTIZ-

OSÉS, 2003).

Destarte, a tessitura do texto é tecida na perspectiva de um pensamento

movente que procura penetrar nos fluxos tensoriais do existir, do educar, na

tentativa de explicitar, de modo implicado, uma compreensão ontológico-policrômica

da Sensibilidade e sua fruição no fenômeno do educar, vislumbrando a pregnância

dos Sentidos anímicos que circulam neste. Assim, a presença de imagens, de

metáforas, de símbolos, nos enredamentos do texto, se traduz na tentativa de

abordar, polifonicamente, a plasticidade e a in-tensidade que constitui o dinamismo

da temática.

No que respeita aos “lastros teóricos” não estabeleço uma relação de adesão

ou de vinculação direta e estruturante com o conjunto da totalidade das idéias ou de

sistema de pensamento de nenhum pensador. Na tecedura das meditações que

realizo, me inspiro em algumas “idéias-força” de alguns pensadores procurando

estabelecer com estes, desde essas “idéias-forças”, interlocuções profícuas que

contribuem expressivamente com minhas compreensões da temática geral em seus

desdobramentos específicos. Assim, transito em múltiplas fontes de referências

inspiradoras que considero pertinentes e enriquecedoras para as meditações da tese,

na perspectiva de uma mirada pluralista que contribui na compreensão da

complexidade da teia mestiça dos paradoxos humanos, sobretudo no que se refere à

Sensibilidade humana e sua fruição no fenômeno do educar.

Para penetrar com mais amplitude e radicalidade na temática da

Sensibilidade, no horizonte de abordagem que apresento, transito por sub-temáticas

que concebo como fulcros constitutivos da mesma: a Corporeidade, a Afetividade, a

Intuição, o Mitopoético e a Razão-Sentido. Na composição do espectro policrômico da

Sensibilidade, esses fulcros magmáticos se interpenetram de modo recursivo e co-

implicado. As meditações que desenvolvo sobre essas sub-temáticas se

circunscrevem aos limites de um capítulo da tese, melhor, de um sub-capítulo

específico para cada uma delas, e apresentam acerca das mesmas, ponderações que

considero imprescindíveis e estruturadoras para uma compreensão ontológico-

policrômica da Sensibilidade.

16

No primeiro capítulo da tese, “Uma compreensão ontológico-policrômica da

Sensibilidade”, desenvolvo, inicialmente, uma certa “arqueologia” acerca da

Sensibilidade – Sensus – em nosso processo civilizatório, explicitando, de modo

bastante sucinto, concepções de alguns pensadores que marcaram com intensidade

nossa tradição cultural. Nesse rumo, acentuo a predominância das idéias que

privilegiaram as esferas da Ratio, do metron, que se desdobra na supremacia da

racionalidade tecnocientífica e instrumental, em detrimento da esfera do Sensus, do

pathos, da Sensibilidade, como também as idéias que afirmam a relevância destes.

Em seguida, teço meditações sobre a compreensão ontológico-policrômica da

Sensibilidade concebendo-a como estado de dis-posição, de abertura pregnante e

anímica de nosso ser-sendo para compreender e vivenciar as in-tensidades e a

multiplicidade dos tons que compõem o estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, com

radicalidade e vastidão, mediante a relação de coexistência primordial entre

Ratio/Logos e Sensus. Estado de dis-posição que, assim, co-implica o espectro

apolíneo, o senso noético, e o espectro dionisíaco, o senso afeccional, como

polaridades interpolares que se interpenetram mediante uma harmonia conflitual, na

constituição da inteireza híbrida da tragicomicidade do existir humano.

Portanto, Sensibilidade como estado de dis-posição do espírito (Razão) e do

coração (Corpo) para o aberto, para o fundo sem fundo do existir; como estado de

despojamento de nossos sensos perceptivos (pentassensorial e multissensorial) que

inspira a jorrância do pathos criante, do espírito altivo; que nos co-move para a

imersão na plasticidade dos fenômenos do existir, na dinâmica de seus fluxos

tensoriais; para a fruição do sentimento do mundo, da anima mundi; que conduz ao

esprit de finesse, à simpatia do todo, a uma compreensão e uma vivenciação de

nossa condição de seres andróginos através da relação co-implicativa entre o

masculino e o feminino, o solar e o lunar – o crepuscular. Uma Sensibilidade que se

traduz na expressão e na fruição da policromia dos feixes do arco-íris como espectro

de abertura vasta e incontornável que re-vela a poeticidade do existir e do co-existir

humano e ecossistêmico – uma ecosensibilidade.

No segundo capítulo, “Os fulcros magmáticos da Sensibilidade”, projeto

meditações que ampliam as que foram apresentadas no primeiro capítulo realizando

incursões específicas acerca da Corporeidade, da Afetividade, da Intuição, do

Mitopoético e da Razão-Sentido, comprendendo-os como fulcros que, em sua

constituição pregnante e anímica, estruturam uma compreensão ontológico-

policrômica da Sensibilidade humana.

A Corporeidade se configura no estofo do corpo bioculturalmente constituído,

de forma orgânica e simbólica. Como húmus nutriz; como morada viva disposta de

carnalidade; como fonte e nascedouro do ser-sendo, dos Sentidos existenciais. Corpo

17

que respira, sente, pulsa, irradia, dança e celebra; que projeta o elã vital e que

constela as in-tensidades do existir na pregnância de seu pathos criante.

Corporeidade como expressão do corpo próprio na constituição de sua androginia

que, com suas ambivalências, se compõe, orgânica e simbolicamente, de masculino

e de feminino, de imanência e transcendência, de carne e de espírito como

instâncias coexistenciais. Corpo que, mediante os fluxos magnéticos de suas

energias, descortina feixes de sinergia que plasmam a intercorporeidade.

A Afetividade traduz nossa dis-posição afeccional, na expressão das emoções

e sentimentos que dão cromaticidade e vivacidade ao existir. Revela a presença do

pathos co-movente mediante os impulsos das afecções que, com o seu dinamismo

rítmico, dá animosidade ao viver cotidiano. O cuidado com a Afetividade se traduz

nas relações de simpatia e de empatia como expressão de sinergia, de aconchego

cordial e tingido de prazer. Supõe a dis-posição para o acolhimento, para a atitude

fra-terna; para o laço co-implicativo do abraço que entrelaça.

A Intuição traduz nosso senso de percepção mais interno e originário. Supõe o

farejar penetrante, a escuta e o olhar desde dentro, dos desvãos dos silêncios e

ruídos de nossa interioridade. A intuição nos aproxima mais de nós mesmos, de

nosso impulso vital, da disformidade do mais íntimo de nossa singularidade. Os

insights intuitivos se projetam diretamente das camadas internas do ser-sendo e

trazem percepções que revelam o tino da sutileza.

O Mitopoético traduz o nosso campo imaginal, o espectro simbólico que

compõe nossos imaginários mediante os entrelaces de seus Sentidos anímicos. Borda

o dinamismo do imaginário mítico e poético, da polifonia de seus símbolos que

entretecem a plasticidade do existir se nutrindo do onírico, da fantasia, do jogo, do

dionisíaco. Plasma o admirável, a dimensão estésica da vida. O mitopoético nos

religa com os arquétipos primordiais, com os repertórios dos mitos que perfazem os

mananciais de sabedorias da humanidade. Impulsiona o pathos da imaginação

criante, da inventividade do espírito e faz desbordar a poeticidade do existir.

A Razão-Sentido traduz a expressão de uma Razão meditante que, com seus

sensos de espirituosidade e de dialogicidade, enreda um lastro largo de criticidade

aberta e de compreensão anímica. Que não apenas procura entender, discernir e

interrogar, mas, sobretudo, com-preender, se implicar, ou seja, meditar pensando e

sentindo ao estabelecer uma relação de cumplicidade com os seres e com os

fenômenos garimpando a radicalidade de seus Sentidos. A Razão-Sentido configura a

potência de um pensamento encarnado, tocado de inventividade, de um espírito

altaneiro que revela as in-tensidades do existir, que faz jorrar Sentidos anímicos.

No terceiro capítulo, “Urdiduras do vivido: ressonâncias das práticas

educacionais”, apresento as ressonâncias das vozes que ecoam da pregnância das

18

experiências vividas no cotidiano de minhas itinerâncias – itinerrâncias – pelas

trajetórias da ação do educar, no bojo de duas Universidades em que atuo (UEFS e

UNEB). Essas ressonâncias são explicitadas através de falas, imagens etc. dos

estudantes de minhas disciplinas acerca das experiências tecidas nas mesmas.

Nestas, procuro articular uma relação de coexistência in-tensiva entre o teórico e o

vivencial, na tentativa de envidar a ação de educar como um rito vivo de iniciação

aos saberes e sentires humanos – os Sentidos existenciais e anímicos –, de modo

pensado e vivenciado.

Também apresento vozes de estudantes de outras disciplinas expressadas

através de indagações acerca das implicações da presença e da ausência do cuidado

com o advento da Sensibilidade no cotidiano das ações educativas. Os conteúdos

dessas múltiplas vozes, encharcadas do húmus do vivido/vivente, se configuram

como repertórios bastante inspiradores no transcurso de minhas meditações acerca

do fenômeno do educar que são elaboradas no próximo capítulo.

O capítulo quatro “O fenômeno do educar como um rito de iniciação ao

advento da Sensibilidade” se desdobra das meditações decantadas nos capítulos

anteriores acerca da Sensibilidade e das ressonâncias das vozes dos estudantes que

emergem da pregnância do vivido/vivente das ações do educar. No mesmo, teço

uma compreensão Filantropoética acerca do fenômeno do educar como um entre-

lugar que se constitui como espaço primal de cuidado e de fruição da Sensibilidade.

Apesar de que nas investigações e meditações da tese realço o fenômeno do educar

em sua modalidade escolar e acadêmica, compreendo que a ação de educar, em

suas múltiplas tonalidades, se efetiva e se descortina nas mais diversas instituições

sociais como a Família, as Igrejas, as Associações, as ONGs etc. Desse modo, as

meditações tecidas acerca do educar também implicam, direta, indireta e

analogicamente, essas diversas instâncias educativas considerando as similaridades

existentes entre elas.

Inicialmente, apresento considerações acerca das práticas educativas

instituídas que, de modo predominante, são confinadas a meras práticas

instrucionais. Práticas instrucionais que se configuram em processos teórico-

metodológicos modulados em sua funcionalidade mecânica que privilegiam a

formação técnica para os papéis sociais, para a profissão, os valores mercadológicos,

superestimando assim, a quantitatividade, o ter, e incidindo em processos

sistemáticos de desqualificação do ser, de desumanização. Essas práticas

instrucionais se instituem a partir de pedagogias funcionalistas e escolásticas em que

prevalece a mera transmissão de saberes instituídos, mecânica e apaticamente.

Assim, essas práticas são desvinculadas das in-tensidades do existir, do cotidiano

vivido/vivente, dos valores primordiais do humano.

19

Nessa esfera, ocorre a supremacia dos processos instrucionais com seus

formatos empadronados que incidem na interdição do dinamismo das afecções e do

pathos criante dos indivíduos e em posturas que descambam em apatia e

compressão. Estes são considerados como “recursos humanos” e, assim, devem ser

“treinados” para o exercício dos papéis funcionais instituídos através do predomínio

das lógicas que os reduzem a coisas funcionais.

Dessa forma, prevalece a esfera do tecno-lógico em detrimento do onto-

lógico. As salas de aula são reduzidas a “celas de aula” mediante a efetivação das

pedagogias escolásticas que denegam a expressão da imaginação criante, da

cromaticidade das afecções, do Sensus. As ações educativas se convertem em

práticas cinzentas, em práticas caducativas.

No segundo momento, descortino meditações que compreendem a ação do

educar como processo in-tensivo de con-dução ao advento dos valores humanos,

como rito vivo de iniciação à fruição dos Sentidos humanos, da Sensibilidade. Dessa

forma, a ação de educar se nutre nos mananciais de saberes e de sentires que

constituem o ethos, o dinamismo do cotidiano vivido/vivente de seus protagonistas,

como afirmação do ser-sendo-no-mundo-com-os-outros; como processo marcado

pelas in-tensidades que mobilizam o pathos – as afecções – e a imaginação criantes,

o espírito altaneiro.

Nessa perspectiva, a ação de educar se traduz num entre-lugar, numa

encruzilhada plasmada por uma multiplicidade de referências de saberes e de

sentires que se desdobra nos processos de afirmação das relações interculturais.

Processos que potencializam as in-tensidades dos entrelaces entre as diferenças na

confluência da diversidade de Sentidos que compõem a policromia da teia do co-

existir humano, e que, assim, instauram o desafio da fraternização, da

ecofraternização. A ação de educar, como um rito vivo de iniciação, articula os

saberes e sentires de modo teórico-vivencial em que os mesmos nos atravessam por

dentro, por inteiro, e, desse modo, corpo e espírito co-operam na fruição dos

Sentidos anímicos.

Um educar pático como experiência de celebração da vida que faz jorrar o

pathos criante, o elã vital que dá cromaticidade ao existir, ao co-existir; que fomenta

processos horizontais de aprendências e de co-aprendências humanizantes e

ecohumanizantes; que compreende os fluxos tensoriais, a conflitividade das

trajetórias do cotidiano educacional como momentos fecundos que dão ritmo e

dinamicidade ao educar potencializando os partejamentos do novo que renova.

Educar que se descortina através da presença do jogo sincopado do impulso lúdico

(skholé) ao proporcionar despojamento e leveza, prazer e contenteza, ao fomentar o

20

espírito de inventividade e de altruísmo. Uma ação de educar que transita entre o

lúcido e o lúdico.

Portanto, uma compreensão do educar que implica no cuidado com o auto-

educar, com o hetero-educar e com o eco-educar; que prima pelo ontológico no

garimpar dos Sentidos anímicos. Que conduz ao cuidado e à coexistência entre a

Ética e a Estética, entre o bem, a dignidade, e o belo, o admirável; que fomenta a

expressão do amoroso com seu elã que irradia e entrelaça. Um educar que, assim, se

lastreia na presença da relação de coexistencialidade entre os fulcros magmáticos da

Corporeidade, da Intuição, da Afetividade, do Mitopoético e da Razão-Sentido como

constitutivos e estruturantes da Sensibilidade. Fulcros que proporcionam a fruição da

policromia arco-írica das in-tensidades da inteireza do ser-sendo-no-mundo-com-os-

outros, da complexidade da condição humana; que conduzem às buscas dos

Sentidos anímicos, da sabedoria, da fineza do ser.

No capítulo cinco “Arremates inconcludentes: por uma Pedagogia do

encantamento”, propugno, como arremate inconcludente da tese, que a ação de

educar, ao primar pelo advento e pela fruição da Sensibilidade, se desborda numa

Pedagogia do encantamento na proporção em que implica em processos de sedução

– se-ducere – simpática e empática entre educandos e educadores; em que fomenta

a jorrância do pathos criante, do espanto e da ad-miração; em que se enreda nos

ritos vívidos de iniciação à polifonia e a policromia dos Sentidos do existir humano,

teórica e vivencialmente.

Uma Pedagogia do encantamento que se nutre no húmus do vivido/vivente, do

humor que anima e vivifica; que faz jorrar o elã do apaixonamento e do entusiasmo

que co-movem e en-volvem; que impulsiona processos fecundos de criação e de

recriação de Sentidos existenciais; que faz desbordar a imaginação e o espírito

criantes mediante ações educativas marcadas pela audácia e pela altivez; que

infunde prazer e alegria ao cotidiano do educar. Assim, uma Pedagogia do

encantamento que faz emergir a policromia dos feixes do arco-íris entrelaçando o

apolíneo e o dionisíaco, anima e animus, o bem e o belo, na fruição alumbrante da

poeticidade do existir e do co-existir em seus Sentidos pregnantes e anímicos.

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22

Capítulo 01

UMA COMPREENSÃO ONTOLÓGICO-POLICRÔMICA

DA SENSIBILIDADE

As coisas nos desbordam. As ordenamos.Se desagregam. As ordenamos novamente.

E nós, nos desagregamos.

Rainer Maria Rilke

E os meus pensamentos são todos sensações.Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pésE com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-laE comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Fernando Pessoa

O progresso de uma civilização se mede peloaumento da sensibilidade para o outro.

Theilhard de Chardin

01.1 – “Arqueologia” da Sensibilidade (Sensus)

em nosso processo civilizatório

No bojo da tradição de nossa cultura ocidental, o modelo de pensamento que

traduz a idéia de Ratio, de Razão, foi estruturado e sedimentado com muita

intensidade, instituindo processos civilizatórios sistematicamente modulados e de

modo predominante, nos auspícios do saber racional. Esse paradigma de saber, de

conhecimento que se constitui como emblema de verdade foi estatuído por uma

Razão pretensamente suficiente e pura, tendo como implicação o descuido e até a

denegação da esfera do Sensus, da expressão do sensível, do senso de com-

preensão, da intuição, das afecções humanas – do espectro da Sensibilidade.

Na cultura e no existir humanos, a pertinência e a relevância da presença

constitutiva da Razão (Ratio, Logos) é imprescindível como senso que potencializa a

criticidade do pensamento, sua expressão como capacidade de discernimento e de

indagação radical, como possibilidade de uma Razão que dialoga e que cria Sentidos.

Porém, ao ser plasmada de forma isolada e desvinculada do Sensus, como se fosse o

único modo de expressão e de constituição do saber e do conhecimento verdadeiros,

a Razão incide em processos reducionistas que desqualificam a complexidade in-

tensiva da inteireza do humano. Nietzsche (1987a, p. 102) afirma que “É indizível o

quanto de dor, pretensão, dureza, estranhamento, frieza, penetrou assim no

sentimento humano, por se pensar ver oposições em lugar de transições”.

Essa supremacia da Ratio que a considera antagônica e superior ao Sensus

desemboca em posturas caracterizadas por modos de expressão abstratos e

mecânicos que privilegiam as esferas do cálculo e da técnica, da precisão e da

determinação. Assim, prevalecem as lógicas calculistas em detrimento das

expressões que revelam a plasticidade dinâmica do existir, dos fluxos sinuosos do

vivido/vivente; da indeterminção e da imponderabilidade – estados ontologicamente

constitutivos da complexidade da condição humana. Cassirer (1997, p. 25) pontua

que

O pensamento racional, o pensamento lógico e metafísico só são capazes de compreender os objetos que estão livres de contradição e que tenham uma natureza e uma verdade coerentes. Contudo, é precisamente essa homogeneidade que nunca encontramos no homem.

A instituição e a predominância dos paradigmas demasiadamente

racionalistas estatui uma Razão monológica que se lastreia nos imperativos de

conceitos universais imbuídos de abstração, desprovidos da nervura tensiva do

vivido, da plasticidade da vida cotidiana. Essa postura se configura em processos

ascéticos de purificação do saber e da verdade que, assim, são articulados de modo

incorpóreo e descontextualizado da pregnância do mundo vivido/vivente, das

vicissitudes do existir humano, com suas tensões e contradições, com seus

paradoxos e ambigüidades.

Schott (1996, p. 59) enfatiza que “A exigência de pureza reflete-se na

exclusão da emoção e experiência sensível da busca da verdade”. Essa concepção

de saber e de verdade “caracteriza as formas de conhecimento que são universais e

imutáveis e, portanto, permanecem indiferentes ao contexto empírico no qual ocorre

o conhecimento” (SCHOTT, 1996, p. 218). São forjados modelos racionalistas que

propagam uma universalidade apriorística representando idéias que sobrevoam os

contextos do mundo vivido/vivente e são estatuídos conceitos que conformam uma

ordem mecânica marcada de imobilidade.

Bergson, referindo-se à predominância do pensamento conceitual, acentua

que o mesmo se converte num “encadeamento artificial de conceitos”, em “um

extrato fixo, seco, vazio, um sistema de idéias gerais abstratas” (BERGSON, 1989, p.

270). A imobilidade do “invólucro do conceito” não consegue dar conta do

24

movimento, dos fluxos do vivido, da dinamicidade das experiências humanas, da

“mobilidade que está no fundo de todas as coisas” (BERGSON, 1989, p. 270).

Meditando acerca dos excessos desses modelos racionalistas, Galeffi (2001, p.

193) assevera que

Por um excesso de racionalidade, os modernos habituaram-se a perceber o mundo-da-vida através de conceitos redutores que funcionam como verdadeiros escudos diante dos fenômenos que atingem o âmbito da experiência humana universal. (...) Substituiu-se, de modo programado, os sentidos inteligentes que nos permitem um acesso direto aos acontecimentos apropriados do mundo-da-vida, por conceitos construídos que se antepõem aos fenômenos instantes, quase como se o mundo da nossa sensibilidade representasse o campo da negação da vida inteligente.

As representações dos conceitos levadas ao paroxismo reduzem e aprisionam

os fenômenos, a vida, aos limites de suas modulações fixistas. Desse modo, os

fenômenos são hipostasiados e apresentados estaticamente através de modulações

abstratas como se estas fossem a própria realidade. Com seu invólucro fechado, o

conceito perde o vínculo, a relação direta e pregnante com a vida, com a dinâmica

in-tensiva do mundo vivido/vivente.

Os imperativos da racionalidade técnica e instrumental privilegiaram a lógica

do cálculo – a Razão calculista – que tende a reduzir o humano à funcionalidade do

metron, da medida; aos parâmetros da forma mecânica. Essa hegemonia forja

lógicas monossêmicas que reduzem a complexidade do existir e da cultura apenas à

esfera da retilineidade e da mensurabilidade. Ao operar essa redução, essa postura

recalca as in-tensidades das dimensões pregnantes do ser-sendo, do existir. As

atitudes que representam a exterioridade são privilegiadas implicando na

subestimação e até na suposta exclusão do dinamismo da interioridade do existir.

Nesse estofo, também são legitimados e afirmados os emblemas do patriarcalismo,

com seus contornos monológicos e com suas posturas excludentes.

A própria idéia de virtude, virtus, que conota a força atribuída ao varão, como

representação de um valor máximo a ser adquirido e cultivado pelos indivíduos,

apresenta, em sua gênese, a supremacia do pólo do masculino, em sua expressão

mais enrijecida traduzida nos auspícios do patriarcalismo. A presença ingente do

patriarcalismo em nossas tradições culturais ocorre, tanto de modo difuso, através

da expressão de suas idéias e valores impregnados no inconsciente coletivo dos

indivíduos, como de forma mais explícita, mediante posturas mais tangíveis que

traduzem a lógica do domínio, da apropriação, mediante a hostilidade da força física.

Assim, a lógica patriarcal, com a uniformidade de suas leis e com a hierarquia de seu

sistema de poder solar, se configura em posturas de enrijecimento e de apatia que

se traduzem na subjugação através do autoritarismo de suas ações. Os estatutos do

patriarcalismo forjam o espírito bélico que incide em guerras fratricidas; instauram os

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processos de barbárie que implicam na compressão e na denegação da Sensibilidade

humana (ORTIZ-OSÉS, 2003; MATURANA, 2004; NARANJO, 2005).

Em suas produções acerca das possibilidades e dos limites, dos limiares da

racionalidade, Morin (2002, p. 105) enfatiza que “quando é auto-crítica e aberta, a

racionalidade pode reconhecer seus limites, compreender as características humanas

profundas do mito e da magia” como componentes primordiais da vida e da cultura

humana. A racionalidade desprovida da carnalidade do vivido torna-se insípida e se

desvitaliza. Morin (2002, p. 127) arremata: “uma vida totalmente razoável torna-se

demente”. Merleau-Ponty (1999, p. 269) anuncia que esse processo se traduz num

“movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto” cindindo,

portanto, interioridade de exterioridade, corporeidade e racionalidade. O ascetismo

dessa postura se traduz no descuido e na denegação sistemática do Sensus, dos

espectros pregnantes e anímicos da Sensibilidade humana.

A tradição mítica do pensamento simbólico, mitopoético, que constituiu a

Grécia arcaica, se estruturou mediante uma compreensão intuitiva, um Logos, uma

Razão existencial que foi sendo gradativamente descartada com a ascensão e a

hegemonia do Logos abstrato. Esse Logos privilegia “la esencia frente a la existencia

(...) el ser estático frente al devenir dinámico” (ORTIZ-OSÉS, 2003, p. 88),

caracterizando assim, uma Razão incorpórea, imbuída de apatia. Para Ortiz-Osés

(2003, p.88 e 89) ocorre a passagem de “una filosofia dialógica como la socrática a

una filosofia lógica como la platónica-aristotélica-clásica”. De um Logos existencial,

spermatikós, que supõe pregnância e dialogia, para a universalidade desse Logos

abstrato, que supõe monologia e verticalidade.

O Logos primordial, em sua acepção heracliteana, pode ser concebido como

busca do Sentido anímico das coisas, do existir, no perscrutar o fundo sem fundo, no

auscultar os enigmas que constituem os desvãos e paradoxos do humano (JAEGER,

1989; LEÃO, 1991; COLLI, 1996a; HEIDEGGER, 2002). Assim, um Lógos ontológico

que projeta vivacidade e admiração, que, em sua condição polilógica, indaga com

abertura e radicalidade e penetra com in-tensidade no claro enigma da condição

humana. Maffesoli (1998, p. 138) enfatiza que, para Heráclito, “a intuição está no

próprio fundamento do Logos” – um Logos que brota desde dentro e que constela

Sentidos existenciais.

O pathos que se descortina no thauma é considerado por Platão e Aristóteles

como impulso inaugural da Filosofia, como expressão movente que provoca o

espanto e a admiração, que incide em nossa relação de perplexidade diante dos

fenômenos, das coisas. Na órbita dos paradigmas que se tornaram predominantes

em nossa cultura, o pathos passa a ser desqualificado e patologizado. Passa a ser

tratado como zona sombria que desbota o espírito, o conhecimento verdadeiro. Essa

26

patologização do pathos se traduz na repulsão às in-tensidades das afecções, dos

sentires, do mundo sensível que, como força que co-move, desconserta e inquieta,

deve ser controlada e enclausurada através do ascetismo das posturas que incidem

em recalcamento e purificação. Posturas instituídas pelos estatutos da racionalidade

calculista.

Pathos implica em perturbação e mobilidade, em tensão e conflito. As

pedagogias instituídas na supremacia dos processos disciplinares passam a abominá-

lo. A conflitividade, a tensividade, que originariamente são impulsos

potencializadores das expressões seminais do existir passam a ser comprimidas com

a instituição dos modelos disciplinares. Modelos que pretendem a conformação e a

subjugação dos indivíduos, a compressão da plasticidade de seu pathos pelos

cânones pré-estabelecidos dos imperativos homogeneizantes. O impulso conflitual da

tensividade do pathos, das afecções humanas, com seus fluxos que desinstalam e

com suas potencialidades criantes, passa a ser demonizado.

Na história de nosso processo civilizatório, os modelos de pensamento que

forjam as estruturas disciplinares de uniformização apresentam, de modo exclusivo,

pensadores e idéias que são erigidos como emblemas fundamentais e unívocos,

como se fossem os únicos representativos do saber, da verdade dos seus referidos

momentos. Porém, nos rodapés das curvaturas de cada momento histórico, o

itinerário transversal das sagas humanas nos revela o eco irreverente das vozes

dissonantes que relativizam esses emblemas e que trilham por outras sagas, que

transitam por vias heterodoxas em relação aos cânones instituídos de forma

determinista.

Nos próximos compassos do texto, apresento, de modo bastante sucinto, numa

certa e breve escavação “arqueológica”, um quadro panorâmico com alguns

pensadores e suas respectivas idéias que exerceram influências fundantes no que

respeita à esfera da Sensibilidade, tanto em sua afirmação como em sua denegação.

Para tanto, atravesso, transversalmente, alguns momentos constitutivos das

trajetórias da saga da cultura ocidental que considero mais representativos. Apesar

de diversos pensadores terem, nos mais variados momentos da história, realçado a

presença do sensível, a relevância do cuidado com a Sensibilidade na constituição

ontológica do humano, as concepções que a relegam a esferas inferiores e que

pretendem denegá-la exercem supremacia na tradição cultural de nosso processo

civilizatório.

Platão: o sensível é enfermiço, sombrio e ilusório

27

Na chamada Idade Antiga, Platão assevera que a órbita do sensível, dos

sentimentos, das afecções do corpo, se configura como mundo das sombras e da

ilusão, da imperfeição e da corrupção. Portanto, para ele, essas expressões

obscurecem e desqualificam o conhecimento verdadeiro. Com seu impulso sensível,

o corpo é concebido como um cárcere que aprisiona a alma. Para Platão, o saber

verdadeiro só pode ser alcançado no mundo das idéias incorpóreas e mediatizado

pela Razão, fonte de luz e perfeição. Ele afirma: “E quando (...) atingirmos a pureza,

pois que então teremos sido separados da demência do corpo” (PLATÃO, 1987, p.

68). Esse processo ascético de purificação supõe “afastar o mais possível a alma do

corpo” (PLATÃO, 1987, p. 69), o pensar do sentir, na medida em que “a alma se

assemelha ao que é divino, imortal, dotado de capacidade de pensar” (PLATÃO,

1987, p. 84) e o sensível é considerado como corruptível, como aquilo que

obscurece.

As expressões do sensível que pulsam no estofo do corpo são, pois,

desprovidas de inteligência, de qualidades que possam incidir num conhecimento

verdadeiro. As afecções, como manifestações imperfeitas que obscurecem a vida, a

verdade, devem ser ultrapassadas e superadas pela eficácia dos processos ascéticos.

Esses processos implicam “uma disciplina inquebrantável” (PLATÃO, 1997, p. 249) de

purificação da alma que retira seu olhar “da lama grosseira em que está mergulhado

e o eleva para a região superior” (PLATÃO, 1997, p. 247). Dessa forma, a alma

poderá se destinar ao mundo perfeito do além, da luz das idéias, do bem e do belo

incorpóreos na “contemplação do mais excelente” (PLATÃO, 1997, p. 246).

Com a instituição dessa cisão ontológica entre a esfera do sensível, da

corporeidade e a esfera do inteligível, da racionalidade, em que esta é

superestimada em detrimento daquela, essas idéias platônicas vão exercer

influências imensuráveis na constituição dos emblemas do pensamento e da cultura

ocidental.

Estóicos: o logos spermatikós

Pelos séculos III e II A.C. os estóicos falavam de um Lógos spermatikós, um

Logos corpóreo em que “O estatuto do existente é o sensível, e o sensível é o que a

alma capta por meio dos sentidos (...) o sensível é o que existe, e o que existe é

corpóreo; o hegemônico é corpóreo, pois o logos é corpóreo” (GAZOLLA, 1999, p.

117). Nessa esfera, Gazolla (1999, p. 155), referindo-se a Homero, apresenta a

28

perspectiva do “coração como sede do pensamento”, de um pensamento que emana

do peito: “Os pensamentos não podem ser considerados sem os sentimentos”.

O Pórtico, a escola estóica (Stoa), redefine os afetos unificando a “ordem do

sensível e a do inteligível” (GAZOLLA, 1999, p. 155). Os estóicos buscam a phronesis,

a sabedoria que brota do mundo vivido e que o impregna de Sentidos. Concebem,

assim, a existência de um Logos incorporado, impregnado de pathos, que se projeta

na pregnância das contingências do existir humano.

Santo Agostinho: a humanitas, a ação cordial

Na Idade Média, Santo Agostinho (séc. IV e V), apesar de seu distanciamento

das expressões corpóreas – postura bastante presente na tradição dogmática do

cristianismo instituído –, manteve uma relação de certa aproximação com os influxos

afetuais da existência humana – tradição humanista, humanitas. Assim, estabelece

uma relação menos repulsiva com o sensível acentuando a importância das

experiências afetivas, dos sentimentos (a amizade, a felicidade...) para o existir

humano.

Santo Agostinho como um dos pensadores que estruturou o humanismo latino,

apresentou a idéia de Amictia, de “Verbum Cordis (verbo del corazón), por cuanto se

trata del Logos encarnado en el corazón como Verbo o Palabra Cordial, o sea, como

Inteligencia afectiva” (ORTIZ-OSÉS, 2003, p. 90). Agostinho fala também do “Ama e

faze o que quiseres” trazendo, de certa forma, ponderações expressivas que afirmam

a pertinência do Sensus, do saber sensível na vida, na cultura humana (SANTO

AGOSTINHO, 1996 e 1998; ORTIZ-OSÉS, 2003).

Nicholas de Cusa: a coincidentia oppositorum

Tomás de Campanella: a razão afetiva

No Renascimento e início da Idade Moderna, alguns pensadores, movidos

pelas inquietudes de seu daimon, como Nicholas de Cusa (séc. XV), Tomás de

Campanella (séc. XV), Giodarno Bruno (séc. XVI), Pascal (séc. XVI), entre outros,

suspeitam da supremacia instituída dos modelos canônicos de verdade, em seus

tentáculos monológicos e deterministas, e revelam modos de percepção e de

compreensão da vida, da cultura que traduzem abertura e pluralidade.

Nicholas de Cusa (1993) trata da coincidentia oppositorum concebendo uma

relação de interligação e de interdependência entre polaridades opostas: “Sendo

tudo que pode ser, é, por essa mesma razão, tão grande quanto pode ser e tão

pequeno quanto pode ser. O mínimo é o máximo. A divindade é a coincidência dos

opostos” (CUSA, 1993, p. 76). Assim, afirma a relação de coexistência in-tensiva

29

entre pólos contrários mediante os fluxos tensoriais de suas interpolaridades na

constituição ontológica do existir humano.

Tomás de Campanella apresenta a idéia de Razão afetiva. Ortiz-Osés (1995, p.

95) afirma que Campanella “define la razón en cuanto autoconciencia como sensus

inditus (sentido interior, connato)”. Para Ortiz-Osés (1995, p. 103), Campanella trata

de uma “universal sensibilidad de todas las cosas basada en el alma a modo de

espiritu sutil que la interrelaciona y pone en con-sensus”. Anuncia “la razón impura

autenticamente humana: la cual se caracterizaria por el conocimiento sensitivo

(cognitio sensitiva)” (ORTIZ-OSÉS, 2003, p. 45). Campanella proclama, assim, “la

razón afectiva”.

Pascal: as razões do coração

No século XVII, Pascal flecha o centro emblemático do racionalismo triunfante

realçando a condição paradoxal do ser humano constituído de suas fragilidades e

limites, da dimensão intuitiva de seu existir. Assim, afirma que “Há razões do

coração que a própria razão desconhece” (PASCAL, 1988, p. 107). Afirmação que

instala uma fratura nos estatutos de racionalidade pretensamente portadores de

precisão e de evidência.

Nessa vertente, assevera que “as percepções dos sentidos são sempre

verdadeiras” (PASCAL, 1988, p. 40) estabelecendo uma relação de correspondência

“entre o espírito e o coração” (PASCAL, 1988, p. 41). Ao realçar sua cosmovisão que

considera o sensível como nuclear, Pascal (1988, p. 282) assevera que “conhecemos

os primeiros princípios pelo coração: e a razão tem que apoiar-se sobre estes

conhecimentos do coração” sob pena de tornar-se irracional, forjadora de processos

de desumanização.

Descartes: o existir encerrado no pensar

Nos tempos chamados de modernos, Descartes (1996, p. 92) proclama a

máxima “Penso, logo existo” revelando o núcleo de suas idéias que considera o pólo

da Razão, o pensamento racional, como fundante do conhecimento e da verdade

clara e distinta, da própria existência humana. Nessa perspectiva, Descartes (1996,

p. 97) afirma: “E deve-se observar que digo de nossa razão e de modo algum de

nossa imaginação, ou de nossos sentidos”. Estes, para ele, não podem fornecer um

conhecimento verdadeiro sobre as coisas, pois compõem a “parte inferior da alma,

denominada sensitiva” (DESCARTES, 1996, p. 159).

30

O conhecimento claro e distinto só pode ser alcançado através da expressão

da esfera superior da alma com sua constituição racional. As expressões do sensível

são, portanto, desqualificadas e consideradas como enganosas na medida em que

“tudo que se apresenta à imaginação tende a enganar a alma” (DESCARTES, 1996, p.

240), a ludibriar e obscurecer a luminosidade da Razão.

Descartes (1996, p. 293) chega a afirmar que “sou apenas uma coisa

pensante” em que unicamente o pensar produz conhecimento e se converte em

estatuto de verdade, pois, é “somente ao espírito e não ao composto de espírito e

corpo, que compete conhecer a verdade” (DESCARTES, 1996, p. 330). O corpo, para

ele, é concebido como uma máquina, um instrumento extensivo que se encontra na

periferia diante da centralidade do pensamento racional, da supremacia da Razão.

Essas idéias de Descartes penetram fortemente e de modo sistemático nas

mentalidades da cultura ocidental moderna exercendo bastante influência sobre

estas.

Espinosa: coexistência entre corpo e alma

Nesse período (séc. XVII), Espinosa explicita idéias bastante audaciosas para o

seu contexto histórico trazendo, em sua obra, notadamente no livro Ética, uma

diversidade de meditações acerca das afecções. Nas mesmas, assevera que o corpo

e a alma se configuram como uma única substância: “concluímos com clareza que a

alma está unida ao corpo” (ESPINOSA, 1997, p. 112), pontuando que “a alma e o

corpo são um só e mesmo indivíduo, concebido ora sob o atributo do pensamento,

ora sob o da extensão” (ESPINOSA, 1997, p. 247). Assim, ambos se encontram e se

manifestam de forma dinâmica e de modo interligado.

Meditando acerca da presença originária das afecções, do sensível, na

condição humana, Espinosa (1997, p. 319) considera que “O desejo é a essência da

natureza de cada indivíduo”, é o elã que move cada um em sua saga. Considerando

a importância vital dos sentires, ele realça que a sensação de alegria potencializa a

criação trazendo “uma perfeição maior”, enquanto que a tristeza diminui a

capacidade de ação e leva a uma “perfeição menor” (ESPINOSA, 1997, p. 285). Em

suas investigações sobre Espinosa, Damásio (2004, p. 290) anuncia que “Espinosa

afirma a vida e transforma a emoção num meio para que a vida floresça” em seu

impulso vital.

Rousseau: o sentir é originário e originante

No século XVIII, Rousseau se insurge contra as idéias reinantes, que

apresentavam caráter excessivamente iluminista, proclamando a pertinência e a

31

relevância do sensível. Ele afirma que “Para nós existir é sentir; nossa sensibilidade é

incontestavelmente anterior à nossa inteligência, e tivemos sentimentos antes de ter

idéias” (ROUSSEAU, 1999, p. 392) acentuando, assim, a importância originante do

Sensus na estruturação da existência singular de cada indivíduo, na constelação da

condição humana.

Rousseau (1999, p. 152) assevera que “As primeiras faculdades que se

formam e se aperfeiçoam em nós são os sentidos. São, portanto, as primeiras

faculdades que seria preciso cultivar; são as únicas que são esquecidas, ou mais

desdenhadas”. Considerando que todo entendimento se estrutura pela via dos

sentidos, ele pontua que “a primeira razão do homem é uma razão sensitiva; é ela

que serve de base para a razão intelectual: nossos primeiros mestres de filosofia são

nossos pés, nossas mãos, nossos olhos” (ROUSSEAU, 1999, p. 141). Cuidar,

“exercitar os sentidos não é apenas fazer uso deles, mas, aprender a bem julgar

através deles é aprender, por assim dizer, a sentir” (ROUSSEAU, 1999, p. 152).

Portanto, para Rousseau, o sentir é considerado como condição primordial e

estruturante na constituição de nosso ser-sendo.

Schiller: o relevo do impulso sensível

Também no século XVIII, Schiller (1995, p. 51) afirma que “o caminho para o

intelecto precisa ser aberto pelo coração” realçando o relevo do impulso sensível na

constituição do humano. “Enquanto não intui e não sente, ele [o ser humano] nada

mais é do que forma e capacidade vazia” (SCHILLER, 1995, p. 65).

Tecendo reflexões críticas à supremacia do pensamento conceitual, Schiller

(1995, p. 43) diz: “Ora, o predomínio da faculdade analítica rouba necessariamente a

força e o fogo à fantasia, assim como a esfera mais limitada de objetos diminui-lhes a

riqueza. Por isso o pensamento abstrato tem freqüentemente um coração frio”.

Assim, um pensamento desprovido da pregnância do corpóreo se torna glacial.

Considera, portanto, que “para a experiência é necessário que colaborem os sentidos

abertos e a energia do entendimento” (SCHILLER, 1995, p. 74). Para ele, essa relação

de interligação entre os sentidos e o entendimento proporciona ao ser humano a

conquista da liberdade, da plenitude do viver.

Kant: a sensibilidade sob os imperativos da razão pura

No final do século XVIII, Kant, na densidade seu sistema filosófico, se refere à

sensibilidade como a “capacidade de obter representação mediante o modo como

somos afetados pelos objetos” (KANT, 2000, p. 71). Desse modo, os objetos do

32

mundo nos são dados, em primeira instância, pelas vias da sensibilidade que “nos

fornecem apenas intuições”. Pelo entendimento, os objetos são pensados e daí se

originam os conceitos que formam e dão fundamento ao conhecimento.

De certa forma, Kant atribui importância à presença dos sentidos, do sensível,

afirmando que “tanto é necessário tornar os conceitos sensíveis (isto é,

acrescentando-lhes a intuição) quanto tornar as intuições compreensíveis (isto é, pô-

las sob conceitos)” (KANT, 2000, p. 92) apresentando assim, a necessidade de

relação entre entendimento e sentidos. Porém, no decurso de suas meditações,

assevera que os esquemas de “conceitos puros do entendimento são as verdadeiras

e únicas condições para proporcionar a estes uma referência a objetos, por

conseguinte uma significação” (KANT, 2000, p. 148). Proclama assim, que “o

princípio da razão suficiente é o fundamento da experiência possível, a saber, do

conhecimento objetivo dos fenômenos” (KANT, 2000, p. 179).

A sensibilidade que Kant faz referência é caracterizada sob as estruturas

formais de conhecimento dadas a priori. Portanto, a mesma está circunscrita às

formas de percepção pré-estabelecidas de modo abstrato e descontextualizadas do

dinamismo da vida cotidiana, do vivido/vivente. Gurmendez (1981, p. 69) pontua que

La sensibilidad, para Kant, es un percibir y sentir a través de formas a priori (espacio-tiempo) que organiza el mundo real como puede hacerlo la razón pura. Pero una sensibilidad apriorista no es realmente sensibilidad ya que, arrastrada por la deducción trascendental, reduce las cosas a un juício sintético o principio supremo y no capta su singularidad, su latido íntimo y desaparecen, como cosas reales, para converterse en formas de si mismas.

Para Kant (2000, p. 230), “o erro somente atua sobre o entendimento

mediante a influência despercebida da sensibilidade”. Cabe, assim, aos imperativos

da Razão pura disciplinarem e purgarem as impurezas da sensibilidade presentes no

entendimento.

Kant (2000, p. 357) anuncia que “A virtude e com ela a sabedoria humana na

sua inteira pureza são idéias”, são expressões da razão pura, descontaminada dos

tons das afecções, dos sentires. Secundarizando o valor da pregnância do sensível,

Kant pontua que “todo o mundo sensível não passa de um simples quadro que paira

diante de nosso atual modo de conhecimento, destituído em si, como um sonho, de

qualquer realidade objetiva”. Para ele, as faculdades do conhecimento sensível, as

afecções, são passivas e inferiores, enquanto que as faculdades intelectivas,

racionais, são ativas e superiores na ordem do conhecimento como unidade formal. A

multiplicidade dos sentidos deve ser controlada pelo entendimento na elaboração da

univocidade dos conceitos (KANT, 1935).

Kant, em momentos de meditação em que parece expressar mais

complacência e acolhimento aos sentidos, nas bordas de seus estritos limites,

33

notadamente em seu trabalho “Antropologia”, concebe que “La imaginación (...)

facultad de representarse originariamente el objeto” (1935, 56) fornece material

para que os conceitos sejam constituídos. Afirma que “El entendimiento y la

sensibilidad se hermanan” (KANT, 1935, p. 67). Porém, também assevera:

El entendimiento o facultad de pensar (de representarse algo por médio de conceptos) llamase también la facultad superior de conocer (la diferencia de la sensibilidad o facultad inferior), porque la facultad de las intuiciones (puras o empíricas) solo encierran lo individual de los objetos, mientras que los conceptos encierran lo universal de las representaciónes de los objetos (KANT, 1935, p. 87),

Assim, Kant realça com seus grifos a intensidade do caráter inferior da

sensibilidade e do caráter superior da racionalidade. Como expressão do sensível, da

singularidade, a sensibilidade não se configura como forma de conhecimento

universal. Portanto, a mesma fica desprovida do estatuto de verdade, pois, para

Kant, só os imperativos das leis universais plasmadas pelos conceitos da razão pura

estruturam o conhecimento verdadeiro.

Em alguns momentos, de certo modo, ele se refere a algumas emoções e

sentimentos de forma afirmativa e com simpatia, como por exemplo: “Deleite es el

sentimiento de la expresión de la vida: dolor el de una represión de ésta” (KANT,

1935, p. 133). Porém, noutros momentos diz que “Estar sometido a las emociones y

a las pasiones es siempre una enfermedad del alma, porque ambas excluyen el

domínio de la razón” (KANT, 1935, p. 147). As manifestações sensíveis são admitidas

apenas enquanto controladas pelas rédeas dos imperativos soberanos da Razão

pura.

Os românticos: o elã do sensível

Também no século XVIII, os pensadores alemães chamados de românticos

como Schlegel, Hölderlin, Novalis, Goethe, Schiller... apresentam diversas idéias que

se contrapõem aos ditames hegemônicos do racionalismo ressaltando a presença do

elã do sensível, da relevância dos sentimentos como expressões constitutivas e vitais

da condição humana.

Nessa trilha, Schlegel ([19__], p. 74) ecoa: “La sensibilidad (sinn), la fuerza y la

voluntad propios de un hombre son lo más humano, lo más originário y lo más

sagrado que hay en él”. Para ele, “Donde faltan amor y virtud” a tendência é de que

a vida humana se “degenera en salvaje afán de destrucción” (SCHLEGEL, [19__], p.

88). Privados da seiva do sensível, da expressão do sentimento amoroso, os

indivíduos são destinados às atitudes de selvageria e de destruição. Os pensadores

34

românticos realçam a relevância da presença pregnante do sensível, dos sentires, na

constituição da inteireza do existir humano.

Nietzsche: a afirmação da in-tensidade dos sentidos

Na contemporaneidade, as idéias de Nietzsche (séc. XIX) retumbam como uma

das vozes imbuídas do espírito de transgressividade mais afiadas. Assim, tece sua

“crítica de martelo” aos cânones hegemônicos da racionalidade instituída “a todo

preço como potência perigosa, como potência que solapa a vida!” (NIETZSCHE,

1987a, p. 24), com seu excesso de objetividade, de “idolatria dos conceitos”.

Para Nietzsche (1985, p. 8), a cultura ocidental foi lastreada sob os auspícios

de uma “metafísica sacerdotal hostil aos sentidos” que instituiu processos ascéticos

de denegação da vida, em suas expressões mais corpóreas, incidindo no recalque à

“vontade de viver” (NIETZSCHE, 1985, p. 43). A tradição de pensamento que

predomina em nossa cultura forjou um “moralismo que ensinou o homem a

envergonhar-se de todos os seus sentidos” (NIETZSCHE, 1985, p. 37), de sua

condição senciente.

A lógica que formata o pensamento conceitual, para Nietzsche (1987a, p. 49),

“repousa seus pressupostos” em pilares “aos quais nada no mundo efetivo

corresponde” com a imobilidade de seu arcabouço retilíneo que nega o vir-a-ser, os

fluxos mutantes da pregnância do existir. Ele proclama que “Só os pensamentos que

surgem em movimento têm valor” (NIETZSCHE, 2000, p. 14). Revelando os Sentidos

vitais dos sentidos, Nietzsche (2000, p. 26), referindo-se à Razão calculista, anuncia

que “A 'razão' é a causa de falsificarmos o testemunho dos sentidos. Até onde os

sentidos indicam o vir-a-ser, o desvanecer, a mudança eles não mentem”.

Ponderando acerca da relevância do sensível, do afeccional, na constituição do

saber, Nietzsche (1987b, p. 173) anuncia: “não é somente a linguagem que serve de

ponte entre homem e homem, mas também o olhar, o toque, o gesto; o tomar

consciência de nossas impressões dos sentidos em nós mesmos”. E arremata: “E que

instrumentos de observação temos em nossos sentidos!” (NIETZSCHE, 2000, p. 27)

com suas potencialidades estruturadoras dos Sentidos humanos.

A Fenomenologia: o acento no mundo vivido

As abordagens que perfazem a concepção fenomenológica (séc. XX) se

fundamentam na busca da compreensão dos fenômenos humanos a partir de seus

modos originários de manifestação, na con-textura da cotidianidade vivida pelos

indivíduos. Essas abordagens compreendem os fenômenos como inacabados na

dinamicidade de suas formas vivas de expressão, realçando a relação de interação

35

fecunda entre “sujeito” e “objeto”, bem como a relevância da intersubjetividade em

que somos uns-com-os-outros (MERLEAU-PONTY, 1999; HEIDEGGER, 1997; CRITELLI,

1996).

Merleau-Ponty (1999) considera a Fenomenologia como processo de descrição

das experiências do mundo vivido mediante os fluxos dinâmicos das relações

intercopóreas entre os indivíduos encarnados no mundo, em seu ser no mundo.

Critelli (1996, p. 13) sistematiza o pensamento fenomenológico afirmando que

“a perspectiva do conhecer e a verdade que este alcança não podem, senão, ser

relativas” no reconhecimento da relatividade, da contextualidade da verdade

(relatividade que não implica em relativismo). Assim, a Fenomenologia “compreende

a possibilidade do conhecimento através da aceitação desta mesma fluidez”

(CRITELLI, 1996, p. 15). Ou seja, um conhecimento lastreado no prisma existencial,

que revela o ser-sendo em sua existencialidade vivida/vivente e que reflete “sobre o

modo humano de ser-no-mundo” (CRITELLI, 1996, p. 16).

No horizonte da compreensão fenomenológica, Critelli (1996, p. 94) realça que

nossas emoções revelam o nosso efetivo envolvimento e entendimento de nossa situação no mundo. É através de nossas emoções que nosso ser e o ser em geral fazem e ganham Sentido. Através dos estados de ânimo, os significados das coisas fazem sentido.

O brilho que dá cromaticidade e Sentido à existência desponta através da

abertura e do cuidado com a nossa sensorialidade, com nossa condição sensível.

Critelli (1996, p. 127) declara que o “ser faz sentido antes ao coração do que ao

intelecto”. O pulsar, o fremir do coração antecede, dá ritmo e vigor ao campo do

intelecto.

Heidegger: o cuidado com o ser-sendo-no-mundo-com

Heidegger (1989, p. 22) fala do “pathos como dis-posição, como thaumazein,

o espanto, que é a dis-posição na qual e para a qual o ser do ente se abre”. Assim,

podemos “por-nos à escuta da voz do ser”, em sua singularidade e inteireza, na

abertura de nossas disposições sensíveis, mediante o dinamismo do espectro de

nossa Sensibilidade, para com os desafios e interpelações do mundo vivido/vivente.

Em suas meditações, Heidegger tece uma relação de proximidade entre

pensar e poetar como modos de expressão originários dos sons e silêncios do existir

humano, do ser-aí no mundo, mediante uma “abertura originária” (HEIDEGGER,

1997, p. 194).

Referindo-se à idéia de homem, de ser humano, Heidegger (1997, p. 264) o

compreende como “feito de húmus”, sendo assim “composto de corpo e espírito”,

abordando a “condição de cuidado com a vida (...) que deve ser concebida como

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cura no sentido originário” (HEIDEGGER, 1997, p. 265). Cura que, assim, se torna

possível, na dinamicidade do existir, através de uma atenção primorosa com as

disposições e potencialidades que enredam a coexistência in-tensiva entre Sensus e

Ratio/Logos, entre corpo e espírito.

Em suas meditações críticas acerca da “razão calculista”, nos limites do

pretensamente ilimitado pensamento conceitual, Heidegger (1989, p. 50) afirma que

“O pensamento calculador submete-se a si mesmo à ordem de tudo dominar a partir

da lógica de seu procedimento”. Esse “pensar destrói, pelos seus conceitos rígidos, o

fluxo da vida” (HEIDEGGER, 1987, p. 47). Isolado e levado ao paroxismo, o

pensamento conceitual represa e comprime a movência do ser-sendo, a condição de

abertura originária do humano, o dinamismo do ser-sendo-no-mundo-com-os-outros.

Merleau-Ponty: o logos do mundo estético

Merleau-Ponty considera as experiências sensíveis como processos vitais onde

os sentidos vão possibilitando a apreensão do mundo real, vivido cotidianamente. “O

sentir (...) reveste a qualidade de um valor vital” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 84).

Assim, as aventuras do “mundo vivido tecidas no coração da experiência” (MERLEAU-

PONTY, 1999, p. 109) são constitutivas no processo de instauração dos Sentidos do

existir, das coisas.

A Sensibilidade emerge e se projeta no estofo do corpo. Merleau-Ponty afirma

a relevância da presença e da compreensão da corporeidade no âmago das ações

cotidianas, pois “eu não estou diante de meu corpo, estou em meu corpo, ou antes

sou meu corpo” (1999, p. 208). Desse modo, é no corpo senciente que constituo

minhas relações in-tensivas com o mundo, que são instituídos os valores e os

Sentidos.

Meditando sobre a predominância dos paradigmas que privilegiam a

objetividade Merleau-Ponty (1999, p. 279) assevera que “o pensamento objetivo

ignora o sujeito da percepção”, ignorando, portanto, sua sensorialidade, a

pregnância de seus sentires, suas camadas interiores. Propugna, assim, uma

“reflexão radical que procura compreender-se a si mesma onde se possa reencontrar

a experiência irrefletida do mundo” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 324), um logos do

mundo estético (1991), do ser selvagem (1984). Dessa forma, sentimento e

pensamento, corporeidade e cognitividade precisam coexistir de modo in-tensivo,

numa relação de interdependência criante.

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Para Merleau-Ponty (1989, p. 48), o “pensamento de ciência deve reencontrar-

se no lugar, no solo do mundo sensível e do mundo lavrado tais como são em nossa

vida”. Afirma que a Filosofia ocidental precisa “reencontrar o contato com o ser”

(MERLEAU-PONTY, 1989, p. 169). Ser como ser-sendo que, na inteireza e na

complexidade da condição humana, se constitui, coexistencialmente, como senciente

e pensante, fundado numa “subjetividade plena soterrada no mundo” (MERLEAU-

PONTY, 1989, p. 180), contaminada de húmus.

Maffesoli: elogio à Razão sensível

Maffesoli, inspirado em Nietzsche, medita sobre os desdobramentos da razão

abstrata de caráter meramente apolíneo que se distancia do mundo circundante

revelando “sua incapacidade de reconhecer o potente vitalismo que move”

(MAFFESOLI, 1998, p. 34) a vida. Procurando expandir e superar o reducionismo

desse racionalismo fechado, Maffesoli fala da “razão seminal” (1998, p. 58) que

busca integrar o sensível e a teoria numa “postura entusiasmante” (MAFFESOLI,

1998, p. 71); uma Razão plural que fareja as vicissitudes do vivido, nutrida num

“enraizamento dinâmico” (MAFFESOLI, 1998, p. 165), na vivência da singularidade

com-partilhada.

Nesse rumo, Maffesoli (1998, p. 191) anuncia que é “preciso sensualizar o

pensamento” para que este articule “uma sensibilidade generosa” (MAFFESOLI,

1998, p. 12) e transite na “topografia da incerteza e do imprevisível, da desordem e

da efervescência, do trágico e do não racional” (MAFFESOLI, 1998, p. 13) como

instâncias intrínsecas ao nosso existir. Desse modo, o conhecimento deve se nutrir

da libido sciendi, se instituindo, portanto, como “um saber erótico que ama o mundo

que descreve” (MAFFESOLI, 1998, p. 14), que se implica e se co-implica com o

mesmo.

René Barbier: a escuta sensível

René Barbier (1993, p. 187), em suas investigações sobre a “escuta sensível”,

desenvolve a “abordagem transversal” como perspectiva multirreferencial de

compreensão dos Sentidos do existir. Compreende a Sensibilidade como “faculdade

de entrar no sentir” (BARBIER, 1993, p. 199-200) em que o sentimento é “uma

espécie de compreensão intuitivo-afetiva da complexidade da realidade”. Pontua que

“entrar no sentimento é aceitar ser receptivo em relação ao mundo que, sempre nos

fala de modo diferente” (BARBIER, 1993, p. 202) quando estamos dis-postos para

perceber a ondeação de seus fluxos. Pare ele, “o sentimento é uma forma sutil da

consciência desperta” (BARBIER, 1993, p. 204) e a sensibilidade é a “forma

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elaborada do sentimento de ligação (reliance)” (BARBIER, 1993, p. 205). Assim, por

meio de nossas dis-posições sensíveis, de nossa relação simpática e empática com

os outros, podemos nos relacionar dialógica e afetivamente com estes, com o

mundo, de modo in-tensivo.

A escuta sensível enfatiza a presença da amorosidade, da “parte meditativa

do ser humano considerando que o conceito e a imagem mental tem lacunas e é

insuficiente” (BARBIER, 1993, p. 213) para uma compreensão e uma vivenciação dos

fenômenos humanos, da condição humana, mediante posturas que conotam

vastidão, intensidade e implicação.

Xavier Zubiri: a inteligência senciente

Xavier Zubiri, pensador espanhol contemporâneo, propugna, em suas

investigações filosóficas, uma compreensão da inteligência como “Inteligencia

sentiente”. Afirma que “inteligir y sentir constituyen estructuralmente (...) una solo

facultad, la inteligencia sentiente” (ZUBIRI, 1998, p. 13). Inteligir e sentir perfazem

modos diferentes de “un solo acto de aprehensión sentiente de lo real” (ZUBIRI,

1998, p. 12). Pare ele, o inteligir, a intelecção humana são formas de “actualización

de lo real en la inteligencia sentiente” (ZUBIRI, 1998, p. 13).

Zubiri busca superar a oposição dicotomizante que a Filosofia clássica opera

entre o inteligir e o sentir realçando que “sentir y inteligir son justo dos momentos de

algo uno y unitário: dos momentos de la impresión de realidad” (ZUBIRI, 1998, p. 78)

em que ambos, conjuntamente, estruturam os processos de apreensão e de

compreensão pelas fibras do sensível; “el modo mismo de inteligir es sentir realidad”

(ZUBIRI, 1998, p. 83). Debulha que “la intelección no es inteligencia 'de' lo sensible,

sino que es inteligencia 'en' el sentir mismo” (ZUBIRI, 1998, p. 184). Ou seja, não é

possível conceber a intelecção senão como faculdade de um ser sensível, eivada dos

tons do sensível. A intelecção se estrutura no estofo do próprio sensível, e, portanto,

é constituída e constituinte dos matizes, do corpo do sensível. “No hay objeto dado

'a' la inteligencia misma, sino dado 'en' la inteligencia misma. El sentir es en si

mismo un modo de inteligir, y el inteligir es en sí mismo un modo de sentir” (ZUBIRI,

1998, p. 84). A estrutura formal do inteligir está imbuída da energia, do elã do

sensível, da substância sensível, “la sensibilidad (...) es un momento intrínseco y

formal de la intelección misma” (ZUBIRI, 1998, p. 85).

O pensamento de Zubiri não separa forma de conteúdo. Ambos se encontram

intrinsecamente interligados. Para ele, “Este objeto formal no está dado por los

39

sentidos 'a' la inteligencia, sino que está dado por los sentidos 'en' la inteligência”

(ZUBIRI, 1998, p. 86). Assim, “el dualismo entre inteligir y sentir es una

conceptuación metafísica que además deforma los hechos” (ZUBIRI, 1998, p. 85). O

ato de apreensão e de compreensão operado pela inteligência já se apresenta

impregnado do espectro sensível, da impressão sensorial. Os objetos não são dados

à inteligência numa relação de distanciamento e de separação estanques entre

“sujeito” e “objeto”, sensível e inteligível, mas são apreendidos mediante a relação

de implicação direta e coexistente entre ambos. Os sentidos, ao apreenderem os

objetos, já os dispõem intrinsecamente, já os adentram simultaneamente na

intelecção, em sua potencialidade sensível de percepção e de compreensão.

Zubiri (1998, p. 91) afirma que “La inteligencia como faculdad es sentiente, y

el sentir humano como facultad es intelectivo”. O sentir mobiliza o pensamento na

estruturação das idéias e ambos plasmam a com-preensão dos fenômenos; são co-

determinantes. Ele concebe “el fremir mismo como modo de intelección, como modo

de aprehensión de la realidad. No olvidemos que saber y sabiduria son

etimologicamente sabor” (ZUBIRI, 1998, p. 105). Assim, o saber, a sabedoria, se

estruturam como re-velação de Sentidos encarnados mediante uma relação de co-

determinação e de coexistência entre sentir e inteligir, na “tensión dinámica”

(ZUBIRI, 1998, p. 105) de nossa relação pregnante com os outros, com o mundo.

Zubiri (1998, p. 111) também assevera que “la inteligencia sentiente es la

estructuración de la diversidad de sentires en la unidad intelectiva de realidad”. Os

diversos perceptos sensíveis participam conjuntamente nos processos de

compreensão do real estruturando, assim, a inteligência senciente em nossa relação

de abertura para com o mundo. “Es la apertura de la realidad que determina la

apertura misma de la intelección sentiente” (ZUBIRI, 1998, p. 167).

Para Zubiri (1998, p. 224), a Filosofia clássica instituiu a “logificación de la

intelección” reduzindo o Logos à esfera do lógico-formal, do pensamento conceitual.

Para ele, o Logos é “intelección sentiente” (ZUBIRI, 1998, p. 225) que compreende o

ser em seu sendo, na dinamicidade de seus movimentos e de sua abertura ao estar

no mundo, pois “el ser no es algo entendido, sino que es ser sentido” (ZUBIRI, 1998,

p. 227). “El logos es formalmente logos sentido, y por esto, y solo por esto es logos

dinámico” (ZUBIRI, 1998, p. 276) (grifos do autor).

Ortiz-Osés: o sensus, a Razão pática e co-implicativa

Vislumbrando o ultrapassamento das idéias e posturas reducionistas que

configuram a predominância da Ratio, dos estatutos da racionalidade calculista em

nosso processo civilizatório, Ortiz-Osés, também pensador espanhol contemporâneo,

40

propugna uma Razão afetiva e simbólica que se constitui no entrecruzamento das

esferas do sensível, da intuição, com as esferas da intelecção, do pensamento

racional. Afirma que “la masiva colonización cultural nórdica (anglogermánica)”

(ORTIZ-OSÉS, 1995, p. 91) em nossa cultura latina, trouxe contribuições significativas

no que se refere ao aprimoramento dos processos de sistematização do pensamento

crítico e do acesso a métodos sistemáticos de investigação, mas também trouxe as

marcas da cultura indoeuropéia que se configura na supremacia de uma “razón

diurna y clara” (ORTIZ-OSÉS, 1995, p. 94), a Ratio da mesura. “El oficial pensamiento

cognitivo anglogermánico preconiza el conocer cosas, afectos o estructuras pero

suele olvidarse del pensamiento simbólico cuyo quehacer no es conocer sino

conocerse, es decir, reconocer urdiduras, sujetos o relaciones” (ORTIZ-OSÉS, 1995, p.

95).

Para Ortiz-Osés (1995, p. 95), “las bellas y frígidas filosofias nórdicas han

olvidado que detrás de toda referencia de verdad subyace una referencia de sentido,

tras la coherencia formal la cohesión material, bajo el talento cerebral está el talento

cordial”. Nessa perspectiva, ele aponta para a recuperação de núcleos que

representam os valores originários relativos à tradição da humanitas latina mediante

a instalação de uma “filosofía latino-mediterránea: la qual se situaria en un estar o

estancia intermédia entre la filosofía nórdica del ser racioempirista y la mitologia

tropical” (ORTIZ-OSÉS, 1995, p. 92). Assim, uma Filosofia inspirada na “cultura

indígena mediterránea de tipo agrícola que inhuma a sus muertos el la madre tierra”

(ORTIZ-OSÉS, 1995, p. 92), numa “mitologia agrária de signo matriarcal-naturalista y

comunalista” (ORTIZ-OSÉS, 1995, p. 93). Para ele, “el posterior estrato indoeuropeu

de tipo pastoril-ganadero conforma una mitologia patriarcal-racionalista e

individualista” (grifos do autor).

Ortiz-Osés (1995, p. 6) afirma a “categoria fundamental do Sensus – a la vez

significación y sentimiento, senso y sentido” como idéia-força e como imagem

presentes em nossa tradição latina mais ancestral apontando o “entrecruzamiento

entre ratio y sensus en la razón afectiva del genial Augustín de Hipona y seguidores

(renacentistas), o bien una filosofia de la vida basada en el sensus communis”

(ORTIZ-OSÉS, 1995, p. 94) (grifos do autor).

A compreensão de uma Filosofia latino-mediterrânea, para Ortiz-Osés (1995,

p. 94), considera o cuidado com “el afecto y la afección, el sentimiento y la emoción,

la vivencia y convivencia típicas del humanismo latino, pero sobreseídas por las

filosofias hegemónicas del Norte frio desapasionado”. Para ele, “no se trata de

renuciar a la razón sustantiva de tipo explicativo, sino de adjuntar una razón

adjetivada de signo implicativo” em que o pensamento, as idéias se encontram

contextuadas e encarnadas na existência vivida/vivente, em que os Sentidos estão

41

eivados de Ratio e Sensus, plasmando uma Razão-Sentido que re-vela Sentidos

anímicos.

Ortiz-Osés se refere a diversos pensadores da tradição latina como Santo

Agostinho, Nicholas de Cusa, Giordano Bruno, Tomás de Campanella, Vico, Pascal,

Rousseau, Unamuno que apresentam concepções do real, da vida, inspiradas numa

compreensão polifônica do Sentido, marcada pela presença da intuição, dos

sentimentos, do elã vital, do logos spermatikós, de razones seminales, de uma Razão

impura “no como abstracción o razón suficiente sino como afección o razón aficiente:

en donde el corazón queda implicado como co-razón” (ORTIZ-OSÉS, 1995, p. 97);

uma Razão impregnada de pathos, do impulso sensível que co-move o coração do

existir.

Realçando a imagem, a idéia-força da tradição humanista – a humanitas –,

Ortiz-Osés afirma o vigor de seu núcleo simbólico primordial trazendo a presença do

cristianismo originário com os valores da amizade, do consenso e da fraternidade.

Assim, “la fraternidad sobrevive como humanitas en el ser latino-mediterráneo (...)

humanitas significa 'buenos sentimientos', la fuerza de los sentimientos humanos”

(ORTIZ-OSÉS, 1995, p. 101).

Ortiz-Osés (1995, p. 102) também assevera que “El culto latino-mediterráneo

a la sensibilidad no es algo superado ni a superar. Pues la sensibilidad es indivisible,

así pues sintética y copulativa y no analítica o troceable”. A vivência da Sensibilidade

como estado de dis-posição, de abertura vasta para a compreensão da complexidade

da condição humana leva a superação das dicotomias que mutilam possibilitando

processos de religação e de implicação. Assim, arremata Ortiz-Osés, “El sentido

reaparecerá aqui como la verdad sensible y sentible: audible y no solo visible (...) la

afección aporta a la razón la vida (...) a la verdad el sentido y a la mente el alma (...)

uma razón pática o pasible frente a la razón impasible (...) la razón afectiva” (ORTIZ-

OSÉS, 1995, p. 102 e 103).

42

01.2 – A compreensão ontológico-policrômica

da Sensibilidade

Lo que puede el sentimiento.No lo ha podido el saber.

Violeta Parra

Quando tentamos compreender intelectualmente,o sentido nos escapa.

Suzuki

A gente só sabe bem aquilo que não entende.

Guimarães Rosa

Tenho apenas duas mãose o sentimento do mundo.

Carlos Drummond de Andrade

O Sensus, como sentimento e como significação se estrutura, originariamente,

a partir do húmus, do orgânico, da pregnância das humidades do ser-sendo. Se

projeta na nervura da carne, no magma senciente de nossa corporeidade, no fremir

das vivências humanas, a partir da plasticidade sinestésica da expressão originária

dos feixes dos cinco sentidos – do pentassensorial – e dos perceptos que emergem

de nossas camadas sensíveis mais sutis e vastas – o multissensorial (ZUKAV, 1992).

Na proporção em que cuidamos das potencialidades do multissensorial tecendo a

relação de coexistência e de interdependência existente entre os diversos perceptos,

dos tons de suas singularidades, descortinamos a vastidão dos vãos de nosso

universo sensível, urdimos os fulcros do espectro da Sensibilidade em suas

dimensões seminal e anímica. Assim, o Sensus emerge dos horizontes do sensório,

dos perceptos sensíveis, do senso intuitivo, em suas expressões mais pregnantes, se

expande e se prolonga nos sensos do imaginário, da consciência compreensiva, da

Razão-Sentido.

Para Abbagnano (1962, p. 840), o sensível “é o que pode ser percebido pelos

sentidos”, e a Sensibilidade está na “esfera das operações sensíveis do homem”,

revela a “capacidade de receber sensações e de reagir aos estímulos (...), de

43

participar das emoções alheias ou de simpatizar”. Barbier (2001, p. 136) concebe

Sensibilidade como estado “que dá sentido a todos os sentidos” compreendendo

“sentido como universo de significados existencialmente encarnado e não

susceptível a uma explicação, mas somente a uma compreensão multirreferencial e

transdisciplinar a partir de uma implicação pessoal” (BARBIER, 2001, p. 136 e 137).

Assim, Sensibilidade como amálgama que agrega todos os sensos perceptivos na

composição da tecelagem dos Sentidos pregnantes e anímicos do existir.

Para melhor visada compreensiva, utilizarei o vocábulo sentido com s

minúsculo quando fizer referência aos sentidos biofísicos/sensoriais e com S

maiúsculo quando fizer referência ao Sentido como valor, como destinação, como

fim/finalidade (telos), como horizonte e significação existencial, como fundamento,

fundo sem fundo.

A dis-posição do estado sensível nos possibilita o estar-sendo-no-mundo-com-

os-outros, de modo encarnado e radical, mediante os processos de percepção e de

compreensão em que podemos tocar, cheirar, escutar, saborear e olhar o mundo,

bem como, conjuntamente, pensar, refletir/meditar através de nossa relação direta e

originária com o mesmo. Essa dis-posição desemboca em formas de saber – sapere –

imbuídas do elã do vivido-vivente que traduzem um “enraizamento dinâmico” nas

curvaturas e funduras do existir.

Destarte, o universo/pluriverso do estésico, do sensível – o Sensus – se

entretece, no dinamismo de sua plasticidade, como instância policrômica, como dis-

posição de nosso ser senciente e pensante que, desse modo, pode vivenciar e

compreender com vigor os fenômenos, a vida. Merleau-Ponty (1984, p. 228)

proclama que “O sensível (...) como a vida, é um tesouro sempre cheio de coisas a

dizer” na intensidade da membrura, da carnalidade do existir, “na juntura onde se

cruzam as múltiplas entradas do mundo” (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 235), nas

dobras de suas encruzilhadas (grifos do autor).

Nessa perspectiva, o Sensus se traduz na expressão plástica dos perceptos

sensíveis que plasmam as afecções, o imaginário, e que, conjuntamente e de modo

implicado, plasma a consciência compreensiva, o senso meditativo, impregnando o

existir de mais Sentidos, de Sentidos vivos e originários. Swimme (1996, p. 80)

proclama que “o universo é sensível – é um reino de sensibilidade (...) da

sensibilidade dos quanta”. Assim, quanto mais exercitamos as potencialidades

sensíveis, mais e melhor podemos apreender, compreender e vivenciar a

dinamicidade dos fluxos do universo, os ritmos sincopados do existir, das coisas;

mais podemos cultivar nossas potencialidades ad-mirantes, mirando com

despojamento e implicação, com vivacidade e alumbramento.

44

Para Swimme (1996, p. 84) “Os reinos físico, humano e divino fluem juntos em

nossas sensações”. O cultivo da Sensibilidade fomenta e proporciona a relação de

interação entre esses reinos, nos faz sentir a vibração do universo/pluriverso, da teia

viva e entrelaçada de nossas relações com o ecossistema; faz florescer o espírito de

fineza. E Swimme (1991, p. 83) arremata: “a sensibilidade humana permite que a

beleza do universo seja apreendida pela consciência autoreflexiva”. Beleza que,

dinamicamente, harmoniza nossas faculdades sensíveis e espirituais (SCHILLER,

1995) nas dialogias interpenetrantes de suas in-tensidades.

O cuidado com a Sensibilidade nos dis-põe para o originário, para o estado

nascente das coisas, do ser-sendo; descortina o logos do mundo estético (MERLEAU-

PONTY, 1991) em que podemos sorver a sensualidade e a plasticidade do mundo, e,

assim, nutrir uma relação estésica com este, na vastidão de sua expressividade

poética. A estesia se origina de aisthesis e “significa basicamente a capacidade

sensível do ser humano para perceber e organizar os estímulos que lhe alcançam o

corpo” (DUARTE JR., 2001, p. 136), a dis-posição de nosso ser senciente para

perceber e fruir o dinamismo e a cromaticidade dos fenômenos do existir.

Do núcleo dinâmico do sentir se descortina a dimensão estésica, o elã do

sensível. E Duarte Jr. anuncia que a “estesia fundante (...) consiste em experienciar a

beleza (...) como esse entregar-se de corpo e alma”. Portanto, a estesia mobiliza e

co-move os perceptos sensíveis conduzindo ao estado de dis-posição que nos implica

diretamente com o sentimento do mundo, com um sentimento de fundo, em que

podemos ad-mirar e com-preender as coisas no fulgor de suas expressões mais

originárias.

O estado sensível que configura a Sensibilidade é autopoiético, auto-

organizativo. Ou seja, em sua condição originária de abertura e de plasticidade

dinâmica, se auto-cria e se auto-recria, se auto-organiza e se reorganiza, se

retroalimenta e se renova mediante seu impulso germinal que implica em fluxos

incessantes, em renovação constante. Renovação que infunde o elã vital em nossas

ações contingentes.

Avento uma compreensão da Sensibilidade como estado de abertura para o

indeterminado, para a incerteza, que nos leva às veredas do desconhecido, aos

desafios inaugurais; aos processos de criação e de recriação em que as in-tensidades

dos conflitos impulsionam o ser-sendo em suas metamorfoses renovadoras. Esse

estado sensível nos arremessa nas travessias abertas das aventuras que nos

arrepiam a cada momento e que instalam o advento da eterna novidade do mundo.

O cuidado com a Sensibilidade se traduz e se descortina na abertura

despojada, na dis-posição de nossas potencialidades humanas, de nossos sensos

perceptivos, através da relação coexistencial entre a corporeidade e a espiritualidade

45

e se desdobram em processos compreensivos e vivenciais. Processos que

vislumbram a inteireza in-tensiva da condição humana. Dis-posição para a

percepção, a apreensão e a compreensão dos fenômenos humanos, da complexidade

e da inteireza do existir.

O cuidado com a Sensibilidade supõe a busca de uma compreensão e de uma

vivência existencial que implica na presença constitutiva e interligada do sentir

(sentidos/sentimentos) – do afeccional – e do pensar (inteligível/pensamento) – do

noético; uma compreensão da pluridimensionalidade da condição humana formada

pelo homo sensibilis, faber, sapiens, simbolicus, poeticus, politicus, demens...

A plasticidade dos perceptos sensíveis impulsionada pelo pathos criante nos

interpela para processos de percepção, de apreensão e de compreensão que

mobilizam a imaginação criante, a consciência meditativa, a intuição, as afecções.

Essa plasticidade evoca e con-voca o elã do espírito inventivo e da corporeidade que,

de modo entrelaçado, fazem jorrar os Sentidos que constituem a teia simbólica do

existir. Para Morais (1992, p. 18), a esfera da sensibilidade nos leva ao “sentimento

que agita o cerne da alma humana”, ao horizonte do anímico, ao âmago do ser-

sendo.

Nessa esfera, o cuidado com a Sensibilidade, desde o núcleo do Sensus – os

sentidos e os Sentidos –, se traduz na imersão no coração das coisas mesmas, na

implicação visceral com a pregnância do mundo vivido/vivente, mediante a fruição

do senciente e do pensante interligados. Fruição que ocorre através da dinâmica in-

tensiva do ser-sendo-com-os-outros, numa relação de abertura que implica na busca

de compreensão dos paradoxos da condição humana.

O estado de dis-posição do espectro da Sensibilidade nos implica com os

enigmas do ser, do existir e do co-existir; nos cumpliciza com as coisas que nos

afetam – sem afetação –, de modo acolhedor, em que nos simpatizamos e nos

empatizamos co-implicativamente. O estado de solicitude da Sensibilidade incide

numa atitude de não-resistência aos desafios do devir, de superação das posturas

defensivas. Incide em abertura para os influxos dos fenômenos, para os fluxos

tensoriais do existir. Esse estado nos con-voca por inteiro, de modo penetrante, para

processos in-tensivos de buscas que incidem em desafios altaneiros; para a

percepção e a ad-miração das silhuetas do existir mediante o mirar vasto e

espirituoso da alma e do coração. Dessa forma, a abertura sensível faz emergir o

pasmo do estado nascente que leva a processos ad-mirantes de encantação.

Levinas (1980, p. 167) ecoa: “a vida sensível se vive como fruição”, e “a

fruição, satisfeita por essência, caracteriza todas as sensações cujo conteúdo

representativo se dissolve no seu conteúdo afectivo”. Fruição que traduz as in-

46

tensidades de nossa relação pregnante com o mundo vivido, em que ruminamos e

sorvemos suas texturas e porosidades, seus sabores e dissabores.

Tratando dessas meditações, Cassirer (2001, p. 35) pondera:

a atividade espiritual suprema e mais pura que a consciência conhece está condicionada e é mediada por determinados modos de atividade sensível. Também aqui constatamos que a vida autêntica e essencial da idéia pura somente se nos apresenta no reflexo colorido dos fenômenos. Não poderemos compreender o sistema das múltiplas manifestações do espírito, a não ser acompanhando as diversas direções de sua força imagética original. Nela vemos refletida a essência do espírito, pois esta somente se nos revelará na configuração do material sensível.

Assim, o conhecimento, co-nascimento – conascere –, o saber – sapere –, como

expressões bastante próximas, não são instituídos apenas pelo pólo da cognição, do

inteligível, ou da emoção, do sensível, e sim no dinamismo do entre. Ou seja, só é

possível aprender e conhecer, criar Sentidos, na radicalidade de suas acepções,

mediante a relação de coexistência complementar e interdependente entre o

sensível, o corpóreo, a Intuição e o inteligível, o pensamento, a Razão. Os Sentidos,

como vimos, emergem na entreidade, na dinâmica trajetiva do homo mediator,

viator. Espírito e corpo são ontologicamente coexistentes e se re-velam ao re-velar

os Sentidos pregnantes e anímicos na copulação fecunda das in-tensidades de seus

entrelaces.

A esfera do sentir, do sensível, não é nem apenas estimulante nem apenas

coadjuvante, mas, sobretudo, estruturante nos processos de sedimentação do saber,

do conhecer, dos Sentidos, conjuntamente com a esfera do racional. O sentir e o

inteligir são dois modos, dois níveis diferenciados de um mesmo processo de

percepção, de apreensão e de compreensão do real. Existe uma co-determinação,

uma co-implicação originária e originante entre o sensível e o inteligível. Pensamos

sentindo e sentimos inteligindo simultânea e alternadamente. A inteligência é um

compósito híbrido de senciente e de pensante. O sentir compõe e é inerente ao

próprio inteligir.

Zubiri (1998, p. 13) pontua: “Inteligir es un modo de sentir, y sentir es en el

hombre un modo de inteligir”. Pretender dicotomizar essas instâncias

interdependentes incide na desqualificação do conhecimento, do saber, dos Sentidos

humanos. Maffesoli (1998, p. 196 e 197) declara que com “a experiência sensível

espontânea que é a marca da vida cotidiana, a progressão intelectual poderá, assim,

reencontrar a interação da Sensibilidade e da Espiritualidade” como instâncias

ontologicamente constitutivas da condição humana. Condição humana que, para

Ortiz-Osés (1986, p. 98), se compõe da coexistência entre “Cuerpo, alma y

coyuntura. El hombre no es ni cuerpo ni alma, sino la coyuntura de cuerpo y alma, de

47

naturaleza y cultura, de eros y logos”. Conjuntura que, como uma teia dinâmica, se

constitui mediante os entrelaces dos fios co-implicados da tessitura de sua

corporeidade animada e de sua espiritualidade encarnada. Espiritualidade como

expressão dos valores e dos Sentidos anímicos, da dimensão imaterial e intangível.

Como sopro (spiritus) vivo que anima e vivifica na pregnância da tangibilidade do

existir.

Nessa perspectiva de compreensão, concebo inteligência a partir de sua

acepção etimológica, intus legere, que se traduz em ler de dentro, numa

compreensão espirituosa que emerge desde dentro, de nossas camadas mais

internas. Ou seja, uma percepção inteligente é aquela que se engendra dos sensos

da intuição, das afecções, da cognição, sendo, portanto, com-preensiva, na

proporção em que os processos de apreensão se tecem conjuntivamente.

Krishnamurti (1992, p. 27) acentua que “Para ser inteligente necessitas de

extraordinária sensibilidade. Só pode haver sensibilidade quando o corpo é sensível –

a maneira de observar, de ver, de sentir”. Assim, inteligência se traduz numa escuta

intersensorial, intersensiva, que agrega os diversos sensos perceptivos. Bergson

(1979, p. 118) proclama: “Nossa inteligência é o prolongamento de nossos sentidos”.

Como potência criante, eivada de intuição e razão, portanto, pregnante e anímica, a

inteligência, como “capacidade fundamental de plasticidade” (MATURANA, 2000, p.

101), pode nos conduzir ao esprit de finesse que se traduz no estado espirituoso de

compreensão implicando, assim, em amplitude e fineza.

Serres (1993, p. 16) realça que Sensibilidade é uma “palavra que significa a

possibilidade ou capacidade em todos os sentidos (...) habita um lugar central e

periférico: em forma de estrela”. A Sensibilidade constela possibilidades múltiplas de

modos de relação e de fruição da vida, das coisas. Ela é rizomática na proporção em

que agencia conexões e heterogeneidades, conjuntividades e movências de

filamentos abertos “entre as coisas”, no “inter-ser”, em “seu movimento transversal

(...) riacho sem início nem fim” (DELEUZE, 1995, p. 37) que se projeta escorrente nas

curvas de seus fluxos.

Essa abertura, essa dis-posição de nossa condição de ser sensível, de nossa

Sensibilidade, nos proporciona uma percepção penetrante da porosidade, dos ritmos,

das ranhuras, das texturas, das espessuras, das dobras, da pulsação, das expressões

viscerais do que é vivo, dos recurvamentos e das ambigüidades dos fenômenos, do

existir, em seus estados de vibração e de movência. Os perceptos dis-postos nos

levam a farejar, a apreender os fenômenos, as coisas, em sua pregnância originária.

O olhar, o escutar, o tocar, o sorver, o cheirar que perfazem a percepção atenta e

sensível nos dis-põem a perceber e a apreender com proximidade, desde dentro, as

vicissitudes da heterogeneidade do vivido/vivente, em seus flancos ponderáveis e

48

imponderáveis, em suas membruras e junturas. Assim, podemos compreendê-los

melhor, em seus limites e possibilidades, com expansividade, rigor e vigor.

Galeffi (2003, p. 44) refere-se a uma “disposição ao acontecimento do sentido

infinito e implicado do ser-sendo”, em que o “Ser, assim, é abertura para o aberto:

poder-ser-sendo” (GALEFFI, 2003, p. 226). Dis-posição para o fundo sem-fundo do

ser-sendo com suas sendas incomensuráveis, em seu tornar-se cotidiano como “ser-

no-mundo-com rigor e altivez, leveza e sensibilidade” (GALEFFI, 2003, p. 236) (grifos

do autor). Deleuze (1992a, p. 220) destaca que “Não estamos no mundo, tornamo-

nos com o mundo, nós nos tornamos, contemplando-o”, atravessando suas

espessuras, meditando sobre seus enigmas, sorvendo-o de modo pregnante e

anímico. Assim, ser como tornar-se, em seu estar-sendo, nas texturas das aberturas

e das dobras dos acontecimentos, nas in-tensidades dos desbordamentos de sua

floração, de seus tons altivos.

O cuidado com a Sensibilidade nos dis-põe de corpo e alma para o estado de

escuta afetiva e espirituosa em que o espírito encarnado, animado pelo elã vital dos

sentires, com sua mirada altiva, apresenta processos de percepção e de

compreensão que traduzem vastidão e intensidade.

A substância sensível – o homo/húmus, o mundus sensibilis – impulsiona o

pathos, faz jorrar o thauma que toca e impele o estado de perplexidade e de

admiração. Provoca o espanto originário que arrepia e co-move, que instala

momentos inaugurais na composição dos processos de ruminação, de compreensão

e de invenção do existir, dos agenciamentos de Sentidos encharcados com o elã do

anímico. Heidegger (2001, p. 25) fala do “espantar-se com o porvir do princípio”, do

estado nascente e admirável das coisas. Afirma que “é preciso espantar-se diante do

simples, e assumir esse espanto como morada” (2001, p. 229), como a morada

extraordinária da singeleza do humano. Espanto que enreda perplexidade e que

aponta para a radicalidade in-tensiva das buscas e dos desafios extraordinários.

Para Heidegger (1989, p. 21), o pathos – paskhein – conota “deixar-se con-

vocar por”. Traduz o dispor-se, o abrir-se aos apelos que a relação de espantamento

para com os fenômenos nos provoca em nosso ser-sendo-no-mundo-com. A

plasticidade do sensível, da estesia, nos co-move, nos aproxima e nos adentra nas

sinuosidades, nas reentrâncias e nos feixes pregnantes do vivido/vivente, nas

curvaturas que cingem as trajetórias humanas; nos compele a ultrapassar os estados

de anestesiamento que comprimem e desencantam o humano e nos enredam nas in-

tensidades das coisas-sendo, do ser-sendo.

Muitas vezes, na trama das relações cotidianas, através dos influxos das

experiências vividas no território da cultura, sobretudo no mundo contemporâneo, a

esfera do sensível é veiculada e canalizada por práticas instituídas que tangenciam o

49

corpo, as emoções, os sentimentos – a dimensão afeccional – com propósitos de

anestesiamento, de massificação e de controle. Numa sociedade que privilegia a

lógica do mercado – a tecno-lógica, a mercado-lógica –, a supremacia do utilitário, da

esfera do ter, com a onda avassaladora do consumismo que leva à consumação do

próprio ser-sendo, do existir humano, as expressões originárias da Sensibilidade

passam a ser aplastadas e homogeneizadas de modo grotesco levando a

bestialização.

Através de dispositivos tecnológicos sofisticados, os indivíduos são abordados,

em suas camadas sensíveis, de modo voraz e aprisionante, com a articulação de

processos de sedução que anestesiam e levam à massificação e a subjugação. Suas

emoções são catalizadas mediante agenciamentos an-estésicos que incidem em

domesticação e até em brutalização. As afecções são operadas instintivamente de

forma tosca com posturas que aviltam a condição humana na instauração da

barbárie.

Perniola (1993, p. 12) faz referência ao “já sentido”, ao falso sentir em que os

objetos e acontecimentos já são determinados pelos processos instituídos de

burocratização e de massificação dos sentimentos; em que o sentir é deslocado para

fora de nós num “movimento de alheamento” (PERNIOLA, 1993, p. 22), de

domesticação do sensível. Plasma-se, assim, uma estética do “já sentido” em que o

“homem-coisa” é “desapossado do sentir” (PERNIOLA, 1993, p. 27), de seu sentir

criante via processos de dessingularização an-estésica. Instaura-se, portanto, os

simulacros do sensível, a plastificação das afecções (emoções e sentimentos) em que

as mesmas perdem seu elã vital, sua potência criante. Com seu entramado de

afecções, o corpo é apropriado e acionado mecanicamente como se fosse uma

máquina produtora de movimentos frenéticos, de desejos artificiais e compulsivos.

Assim, este é impelido pela voracidade de um consumismo que desemboca na

coisificação e na consumação do próprio existir. Forja-se indivíduos-simulacros,

postiços, expropriados de sua Sensibilidade poética, autopoiética (autocriante).

A an-estesia dos sentidos incide na erosão das potências criantes dos mesmos

e conduz a dessensibilização e ao embrutecimento que barbariza o humano na

denegação da expressão livre de sua estesia. Essa an-estesia se desdobra em

posturas que uniformizam e cristalizam os sentidos e os Sentidos levando os

indivíduos a indiferença; tende a coisificá-los e reduzi-los a entes disformes

adaptados às lógicas de rebanho.

O saber sensível como teia policrômica,

implicativa e holestésica

50

Referindo-se ao saber sensível, Duarte Jr. (2001, p. 12) acentua que

Sem dúvida há um saber sensível, inelutável, primitivo, fundador de todos os demais conhecimentos, por mais abstratos que estes sejam; um saber direto, corporal, anterior às representações simbólicas que permitem os nossos processos de raciocínio e de reflexão.

Dessa forma, o horizonte do Sensus, na expressão da pregnância de suas

afecções, dos impulsos dos sentires originários, proporciona ritmo e movimento à

dimensão orgânica da condição humana, do ser-sendo, plasma e engendra modos de

percepção, de saberes páticos que se prolongam em desdobramentos diversos

mediante as expressões do simbólico, da consciência compreensiva.

Ao perceber os fenômenos com a abertura mais alargada de nossos

perceptos mediante a coexistência entre o corpo e o espírito, podemos com-preender

melhor sua amplitude, a dinamicidade de sua complexidade; podemos transitar

melhor entre os vãos do ponderável e os desvãos do imponderável. Freire (1996, p.

152) arremata: “É na minha disponibilidade permanente à vida a que me entrego de

corpo inteiro, pensar crítico, emoções, curiosidade, desejo que vou aprendendo a ser

eu mesmo em minhas relações com o contrário de mim”. O cuidado aprendente do

sensível é autoconhecente, autoaprendente e conduz à compreensão viva da

complexidade do humano; nos dis-põe para nos aprendermos e aprendermos os

outros e com os outros através dos vínculos in-tensivos com a alteridade, com o

interhumano.

Gurmendez (1981, p. 67) declara que “nuestro sentir une todos los sentidos y

nos da una visión global del Mundo”. Visão compreendida aqui como percepção

globalizante que se compõe da multiplicidade dos perceptos sensíveis – da

intersensorialidade – e da intelecção. A compreensão sensível a-borda a vida, os

fenômenos, as coisas, penetrando na plasticidade dinâmica de sua inteireza, dado

suas características globalizantes que incidem em percepções e formas de relação

amplas incluindo a diversidade dos Sentidos existenciais. A Sensibilidade se lastreia

na lógica da inclusividade com seus tentáculos e elos implicativos, co-implicativos.

Seu espectro se apresenta como a metáfora da inteireza de uma teia composta pela

dinamicidade da tessitura plástica – holestésica – de seus fios entrelaçados que

entretecem, ligam e religam os filamentos das coisas, da cultura, do existir – a

polifonia dos Sentidos.

A percepção sensível que entrelaça o senciente e o pensante é holestésica.

Assim, leva a apreender, com proximidade, a plasticidade dinâmica das relações

microfísicas e macrofísicas que constituem e animam os seres e os fenômenos, em

suas interdependências e complementaridades, na unidiversidade que, in-

tensivamente, entrecruza os opostos. Maturana (2001a, p. 278) realça que “A vida

51

humana é sempre um fluir inextricavelmente entrelaçado de emocionar e de

racionalidade (...) A razão nos move somente através das emoções. (...) É nossa

forma de emocionar que dá forma à maneira de viver na qual somos humanos”. A

multiplicidade das estampas de nossos sentires e pensares compõe a policromia do

existir, do co-existir, na pregnância semovente do mundo vivido/vivente.

Perniola (1993, p. 111) enfatiza que é o fazer-se sentir “que mantém as coisas

ligadas impedindo que elas se desagreguem”, com a força de sua potência ligante e

interligante, com sua capacidade de religação. O sentir implica em ser tocado por

dentro, no âmago da inerência, na fluição dos feixes internos que emanam dos

recônditos da alma e do coração. Barbier (2003, p. 58) assevera que “Quando vive

um sentimento pelo caminho do coração, o ser humano torna-se uma pessoa ligada e

ligante, necessariamente solidária a todos, na sua solicitude radical e inelutável”. A

radicalidade magmática dos sentires constela a trama ligante que nos abre para o

estar-aí, para o estar-sendo-no-mundo-com, de modo in-tensivo e aberto, para o

com-partilhamento dos fluxos tensoriais na pregnância das venturas do co-existir.

Morin (1995, p. 63) verseja a premência do cuidado para com a “compaixão do

coração, do humanismo do espírito”, na superação das “cegueiras ego-etnocêntricas

ou ideológicas” que tanto nos mutila, segrega e esgarça.

O saber sensível nos implica com a dinâmica das “intensidades sinestésicas

que nos compõem” (RESTREPO, 1998, p. 109) e que dão ritmo e vigor à plasticidade

do existir, das coisas sentidas e pensadas; que nos cumplicizam com os liames que

nos entrelaçam com os seres constituintes do ecossistema. Expande nossa

consciência de pertencimento ao universo (unidade na diversidade – pluriverso), nos

precipita no co-pertencimento ecossistêmico, planetário. O impulso sensível co-move

e concita à simpatia e à empatia, à postura interligante e co-implicante; é não-

indiferente. Levinas (1997, p. 141) proclama que “O inter-humano propriamente dito

está numa não-indiferença de uns para com os outros numa responsabilidade de uns

para com os outros”. A não-indiferença nos con-voca, nos empatiza e nos solidariza

para os desafios da dinâmica interligante que pode suscitar a busca do ecofraternizar

através de nosso fraternizar com a teia viva do humano e com o ecossistema.

Como afirma Gurmendez (1981, p. 72) “nuestra sensibilidad es una totalidad

orgánica”. Para ele, “todo acto de percepción sensible es tomar conciencia del

mundo exterior y de la propia realidad” (GURMENDEZ, 1981, p. 161). Desse modo, a

Sensibilidade borda redes de Sentidos vastos que proporcionam vivências,

percepções e compreensões da totalidade dinâmica e interligada que compõe a

tessitura das relações interpessoais, das teias de relações que constituem as coisas.

O saber sensível se constitui organicamente e de modo inteiriço; nos

atravessa por inteiro. É prenhe de conflitos e de tensões, de rasgos e de dores que

52

potencializam mutações e re-nascimentos alvorescentes que nos mantêm vivos; que

atualizam e renovam nossos sentires, os Sentidos do existir, a própria existência, em

suas aberturas e ambivalências, em sua amplitude abissal.

A temporalidade dos fluxos da Sensibilidade é, sobretudo, do orbe do kairós,

da dinamicidade do tempo cíclico e curvo, do tempo do sendo, do tornar-se, da

dança quântica que embala o cosmos. A temporalidade da Sensibilidade inclui e

transborda os limites retilíneos do tempo kronos e se desliza pelas reentrâncias do

fundo sem fundo da qualidade do tempo vital do kairós que escorre na fruição do

vivido/vivente. O kairós é intensivo. Com seu dinamismo, interpela e instaura

desafios audaciosos. O kronos é extensivo. Implica em retilineidade, com sua

funcionalidade mecânica.

O saber sensível emerge impregnado do estofo vivo e tensivo do corpo,

encarnado nas vicissitudes do vivido. É um saber/conhecimento contaminado,

marcado de impurezas, tingido pelos tons das sagas tortuosas do vivido/vivente, da

polifonia dos valores impregnados de pessoalidade, de interpessoalidade.

Nessa esfera, o conhecimento/saber é concebido como processo de fruição em

que a compreensão está imbuída de gosto, de Sentidos vívidos. Assim, podemos

sorver os Sentidos com in-tensidade na proporção em que os mesmos traduzem a

nervura do vivido, a plasticidade e os recurvamentos dos fenômenos, das coisas; em

que re-velam o claro enigma da vida.

Perniola (1993, p. 103) ecoa: “aprender sentir equivale a aprender a viver. (...)

Fazer-se sentir é oferecer a nós próprios, que algo possa encontrar em nós uma

possibilidade de estar no mundo”. Supõe o abrir-se e o dispor-se para a “flagrância

do nascimento” (PERNIOLA, 1993, p. 104), do estado nascente das coisas, do sentir

originário, do sentir-se nas sendas abertas do ser-sendo. Ser-sendo como poiesis,

como autopoiesis, no entretecer de seu sentir e pensar; que, com seu pathos criante,

com seu logos spermatikós, se parteja e se renova nas movências das sendas de

suas travessias.

O saber sensível emerge do instante originário na proporção em que se

instaura a partir da abertura, dos lampejos, da pujança vital – do húmus – de nosso

“enraizamento dinâmico” no mundo, da expressão dos desejos e paixões que

despontam das contingências de nossas experiências vividas/viventes. Emerge das

relações in-tensivas tecidas nas ondulações do cotidiano, nos influxos de suas

indeterminações. Se projeta, portanto, da qualidade do sentir originário na

capilaridade de cada momento, do fluxo cambiante de cada acontecimento, em suas

possibilidades múltiplas do a-con-te/cer, na firmeza do tecer com os outros. Assim, o

saber sensível traduz uma percepção bastante aproximada e pregnante das “coisas

mesmas”, em sua estância no mundo vivido, num processo de fruição seminal.

53

Nessa perspectiva, Galeffi (2003, p. 34-35) reverbera: “trata-se de uma

apreensão/vivência que nos dispõe ao acontecimento de um retorno radical ao fundo

comum de tudo: o sem fundamento, o vazio, o caos” como estados do humano que

potencializam os desbordamentos da imaginação criante e do espírito altaneiro.

Nietzsche (1987b, p. 74) fala da existência de “um fundo sem-fundo por trás de cada

fundo, por trás de cada 'fundamento'”, um fundo incomensurável, que, em sua

incontornabilidade, faz desbordar Sentidos oceânicos. A abertura sensível nos dis-

põe para o extraordinário ao deflagrar rupturas com o ordinário, em suas

características de enrijecimento e de emboloramento, instituindo o elã inaugurante

do novo que espanta e faz jorrar seu vigor anímico.

Gurmendez (1981, p. 66) assevera: “los objetos que llego a conocer entran

por los poros de mi cuerpo y me conmocionam, porque todo acto de conocimiento

implica en sentir. Conocimiento y sentimiento son inseparables”. Nessa perspectiva,

todo saber/conhecimento está prenhe de externidade e de internidade, de

corporeidade e de intelectividade, de sentimento e de pensamento, pois “teorizar es

simplemente mirar con todos los sentidos abiertos” (GURMENDEZ, 1981, p. 66). A

dis-posição dos perceptos sensíveis e de sua co-participação de modo conjuntivo é

estruturante nos processos de teorização na medida em que aqueles infundem

Sentidos vivos a estes. Teoria, saber, conhecimento só têm Sentido e pertinência na

proporção em que apresentam e traduzem, com proximidade e in-tensidade, a vida,

os fenômenos, as coisas, na carnalidade de seus modos de existir, em suas

expressões pregnantes e anímicas.

A abertura da compreensão sensível, da Sensibilidade, afirma nossa condição

de seres eternamente inacabados em processos constantes de mutação e de

aprendência nos desafios indeterminados das sagas humanas. Nos dis-põe para os

flancos abertos do inesperado, do não-saber, do vazio. O aprendizado da

Sensibilidade é um rito constante de iniciação nas nascentes originárias do ser-sendo

mediante as in-tensidades dos desafios das ondulações do vivido/vivente.

Aprendizado que realça a consciência do conhece-te a ti mesmo como condição

primordial para o cuidado com a inteireza in-tensiva do humano, dos seus paradoxos

e enigmas, de suas clareiras e breus; que realça o cuidado com as coisas do espírito

e do coração, do corpo e da alma como instâncias ontologicamente coexistentes e

interdependentes.

Essa plasticidade que plasma a esfera da Sensibilidade implica num modo de

relação (modus operandi) com o existir próprio, com os outros, com o mundo, que

também deve ser marcada pelo impulso lúdico. Impulso lúdico que conota abertura e

espontaneidade, leveza e gratuidade nos movimentos sincopados do jogo que

trazem flexibilidade e ondulação, des-dobramentos e desafios. Schiller (1995, p. 81)

54

frisa que o impulso lúdico é uma “forma viva” que traduz “as qualidades estéticas

dos fenômenos”. Essa atmosfera lúdica se descortina na abertura benfazeja das

proezas do riso fagueiro que acolhe e interliga, que instaura elos de simpatia e de

empatia.

O jogo, mediante o impulso do espírito brincante da ludicidade, se manifesta

na plasticidade dinâmica das dobras e recurvamentos do próprio viver, em suas

fluências, disfluências e confluências escorrentes. Assim, a dinamicidade do jogo que

constitui a plasticidade rítmica do próprio existir, torna a vida mais graciosa.

A Sensibilidade como expressão de fractalidade

e de androginia, como arco quântico e sinérgico

O espectro da Sensibilidade se plasma como estrutura fractálica na

disformidade de seus filamentos e na incontornabilidade de seus tons. Desse modo,

nos dis-põe para as curvaturas das experiências do existir. Configura sua

heterogênese e os contornos vesgos de sua policromia na transversalidade de seus

entrelaces. Inaugura possibilidades de percepções e de vivências in-tensivas, tanto

micro como macrofisicamente. Propicia a fruição da teia mestiça do existir, do co-

existir, mediante as in-tensidades dos instantes abertos das contingências do ser-

sendo.

A abertura do espectro da Sensibilidade nos precipita nos abismos em que

constelam os feixes dos sentires e pensares que vibram em nossa corporeidade, na

intercorporeidade, e que nos implica, co-implica, conosco mesmos e com os outros,

com o mundo, com o intermundo. Nos compele a esses processos de fruição em que

os sentidos e a intelecção se interpenetram na composição de Sentidos anímicos; em

que o saber se processa e se projeta encharcado da seiva da vida, matizado do sabor

(sapere) do vivido/vivente, impregnado de Sentidos existenciais.

Duarte Jr. (2001, p. 217) desborda: “Tudo aquilo que é sentido por nós faz

sentido, ao mesmo tempo que nos indica um sentido a seguir. (...) Os sentimentos

constituem o cerne de nossa existência” com sua seminalidade estruturante.

Damásio (2004, p. 91) ponteia: “De um modo geral, os sentimentos traduzem o

estado da vida na linguagem do espírito”. E também declara que “quando temos

uma experiência de um sentimento positivo, a mente representa mais do que um

bem-estar, a mente representa também bem-pensar” (DAMÁSIO, 2004, p. 96). O

vigor dos sentimentos nos anima por inteiro, floreja o elã vital.

55

A Sensibilidade emerge, com o magma de sua radicalidade, no estofo de

nossa corporeidade, se plasma e se processa desde a nervura da carne na expressão

das afecções que movem e co-movem. Na espessura da carnalidade do corpo, as

afecções pulsam fomentando a manifestação pregnante do existir. Espinosa (1997,

p. 316) ponteia que “O homem não se concebe a si mesmo a não ser pelas afecções

do seu corpo e pelas idéias destas”. Para ele, “uma afecção é uma imaginação,

enquanto indica a constituição do corpo” (ESPINOSA, 1997, p. 350). Afecções que, se

não forem articuladas de modo cuidadoso e criativo, podem também incidir em

bloqueios e traumas, em recalcamentos e obstruções destrutivas – o que pode

acontecer em grandes proporções em decorrência da multiplicidade dos processos

educacionais instituídos que tendem à sua denegação e compressão.

A presença orgânica dos perceptos sensíveis que se desdobram através da

complexidade das sensações, das emoções e dos sentimentos, se configura como

núcleo germinal que impulsiona a estruturação dos Sentidos que implicam na

expressão da consciência compreensiva, do espírito meditativo. Zubiri (1998, p. 218)

assevera que “la realidad no es algo entendido, sino algo sentido (...) antes de estar

entendido en la cosa real, el ser es aprehendido sentientemente” (grifos do autor). A

sensorialidade estrutura o mundo vivo (CYRULNIK, 1997). Conjuntamente, de modo

coexistencial, as instâncias corpóreas/sensíveis – afeccionais – e intelectivas/

racionais – noéticas –, em nosso existir cotidiano, se entretecem e perlaboram os

significados e os Sentidos das coisas. Assim, o sensível se traduz como instância

germinal na fabricação de Sentidos, dos Sentidos que configuram o imaginário, a

consciência compreensiva, o universo dos valores.

Nessa perspectiva, os feixes da Sensibilidade gravitam entre as dimensões

intuitivas e afetivas – o considerado lado direito do cérebro –, e a dimensões

intelectivas e analíticas – o considerado lado esquerdo do cérebro –, como

hemisférios singulares que se interligam e coexistem, mediante a presença do corpo

caloso. Corpo caloso como um “conjunto espesso de fibras nervosas que liga

bidirecionalmente os hemisférios” (DAMÁSIO, 1996, p. 46), como lugar de encontro –

espaço êntrico –, como liame que une e interpenetra. Os Sentidos, como expressão

de sentimentos, crenças, valores, fins – telos –, destinação, horizonte anímico, se

alojam na entreidade, se sedimentam nos entrecruzamentos, nas encruzilhadas em

que se interligam os hemisférios: a Intuição e a Razão, o corpo e o espírito.

Destarte, a Sensibilidade é andrógina – num arco de interpretação que

considera a amplitude da polifonia do espectro simbólico da androginia – ao

interpenetrar, co-implicar ãnima (feminino) e animus (masculino) (JUNG, 1987;

BACHELARD, 1988) como instâncias arquetipicamente constitutivas de nosso ser

primordial; como polaridades singulares e interpolares que se complementam e

56

perfazem a dinâmica viva e in-tensiva da inteireza do existir. Assim, somos seres

êntricos, habitantes nômades dos entre-lugares, das encruzilhadas andróginas.

O campo da Sensibilidade se apresenta como constituído de ondas quânticas

que, na flutuação de seus volteios, se dissipam pelos fluxos e refluxos que movem as

experiências vividas/viventes nas sagas do humano. Nesses ritmos ondeantes, as

expressões fractálicas da Sensibilidade desbordam os feixes do elã vital mediante

percepções e vivências in-tensivas e vastas que penetram nas reentrâncias e nas

ambigüidades do existir. A dis-posição do Sensus nos incursiona pelos meandros,

pelas dimensões mais ínfimas do ser-sendo, em seus contornos mais sutis; penetra

na capilaridade dos acontecimentos, na estância das in-tensidades de cada instante.

A abertura sensível, a atenção fina da Sensibilidade, desborda uma percepção

acurada e vasta da multiplicidade dos fenômenos do existir. Nos projeta além das

estruturas mentais unívocas que não dão conta da plurivocidade do existir e que

descambam em processos de aprisionamento e de fossilização de sua plasticidade.

Nos proporciona a fruição do sendo, do estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, na

urdidura dos compassos das aventuras e dos desafios em que bordamos as

aprendências, em que burilamos o espírito encarnado, a consciência compreensiva.

Com a plasticidade de seu dinamismo, a Sensibilidade se projeta, em sua fluência

rítmica, de modo volvente e en-volvente.

A Sensibilidade emerge do ventre de nosso existir, desse estado nascente das

coisas se traduzindo na expressão do Logos spermatikós, como falavam os estóicos,

numa Razão seminal (ratio seminalis) que, com sua potência de sêmen/semente, se

converte em princípio erótico de criação, em potência vital. Na afirmação de

Maffesoli (1998, p. 14), uma libido sciendi “que ama o mundo que descreve”, que se

integra neste, na vivacidade da fibra de suas texturas. Ferreira Santos (2004, p. 48)

acentua que “O pólo sensível da mesma razão sensível configura a experiência

estética do estar-no-mundo e suas imagens e símbolos na busca constante de

constituir sentido à experiência” (grifos do autor), em que a experiência se traduz na

fruição ad-mirante dos sentires, no garimpar a radicalidade dos Sentidos anímicos no

coração do vivido/vivente.

A incursão nos flancos da Sensibilidade conduz ao campo vibracional do

magnetismo das energias que impulsionam a expressão e a fruição da sinergia.

Energias que emanam de nossa corporeidade, de nossa anima, e que circulam, em

seus fios invisíveis, mediante o fluxo sinérgico que move as relações intercorpóreas

animando as mesmas. Relações que nos interligam coexistencialmente nos fluxos de

trocas mútuas; que unem e entrelaçam simpaticamente os seres.

Merleau-Ponty (1999, p. 214) fala de um “sistema sinérgico” que através da

nervura das sensações, da vivência sensorial, interior, nos atravessa, nos aproxima e

57

nos comunga no/com o “mundo intersensorial”. Para ele, “a sensação é literalmente

uma comunhão” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 206) que nos interpela e fomenta o

desejo de sinergização. Assim, se desdobram os sentimentos de cordialidade e de

ternura que conduzem aos abraços que entrelaçam e levam ao com-partilhar a

alegria e o prazer do estar-juntos, a fruição da sinergia amorosa que enternece e

encanta.

O corpo visível não se confina nem se esgota em si mesmo; se desborda em

expressões invisíveis de energias sutis que irradiam o elã, o sopro vital do espírito,

do “corpo bioplasmático” (MORAIS, 2002, p. 46) – na expressão das investigações da

ciência contemporânea. Assim, através dos seus feixes quânticos, o corpo visível

projeta as vibrações intangíveis de suas ondas e corpúsculos, nas imagens da Física

Quântica, possibilitando a tangibilidade das relações de coexistência que alumbram o

existir e o co-existir cotidianos. As ressonâncias sinérgicas constituem um campo

magnético que nos interliga mediante os elos da simpatia e da empatia. A

plasticidade do tangível nos precipita nos flancos do intangível, nas camadas finas da

espiritualidade (MORAIS, 2002).

No cuidado primoroso com a Sensibilidade podemos proporcionar, de modo

direto e com despojamento, encontros horizontais entre ser humano e ser humano,

mediante a interpelação do magnetismo dos semblantes, dos olhares que nos

implicam e nos cumplicizam (LEVINAS, 1980; BUBER, [19__]), em que corpo e espírito

se empatizam e se sinergizam. Assim, podemos compartilhar, com in-tensidade, as

proezas do humano: suas dores e seus prazeres, suas angústias e seus sonhos, seus

limites e suas possibilidades, suas forças e suas fragilidades ao bordar as

aprendências que nos enobrecem, que nos humanizam e ecohumanizam.

O Ecohumanismo se traduz numa cosmovisão que supõe a superação do

antropocentrismo, em que o ser humano é considerado como centro do universo,

como uma postura que desembocou em atitudes excêntricas de prepotência e de

arrogância. Assim, o Ecohumanismo concebe que não somos o centro do universo,

mas seres que, em sua presença singular, existimos de modo coexistente mediante a

teia de relações que implica em complementaridade e interdependência entre todos

os seres do ecossistema. Nessa perspectiva, o cuidado zeloso com a Sensibilidade

pode descortinar modos de relação que fraternizam e ecofraternizam, que nos

entrelaçam cordialmente com todos os seres.

A mobilização in-tensiva da Sensibilidade potencializa relações mais abertas e

acolhedoras, tingidas de generosidade e de altruísmo para com os seres humanos e

os seres não humanos. Nesse fluxo de in-tensidades, somos co-movidos e con-

vocados, pelos elos que interligam a internidade com a externidade, pela porosidade

e pela cromaticidade do entorno para desafios altaneiros. A in-tensidade dos sentires

58

é plena, pois, nela todo o corpo e o espírito sentem e vibram na complexidade do

dinamismo de sua inteireza.

Assim, a Sensibilidade é compreendida como expressão de liames

interligantes, como metaxu, como expressão do intermédio na operação de nexos

que interligam e religam mediante o amálgama dos entrelaces de suas teias. Assim,

Sensibilidade implica em possibilidades de um com-preender e de um vivenciar a

dinamicidade da inteireza in-tensiva do existir e do co-existir nos vãos de sua

incompletude.

Um Razão sensível e pática:

a terceira margem, o mitopoético

Nesse horizonte compreensivo, urge o advento de um Logos, de uma Razão

sensível que escuta e medita; que, encharcada de vida, contaminada de elã vital,

entrelaça intuição e intelecção, prosáico e poético, espírito e corpo. Essa

compreensão concebe que as zonas de sombras, os paradoxos e imponderáveis

também são instâncias constitutivas da condição humana, em suas ambivalências e

ambigüidades, e que, portanto, precisam ser acolhidas, escutadas e aprendidas.

Somos, simultânea e alternadamente, portadores de sombras e de clareiras – de

penumbras –, de regimes diurnos e noturnos (BACHELARD, 1990; DURAND, 2002); do

“regime crepuscular” (FERREIRA SANTOS, 2003 e 2005); de in-tensidades (desde

dentro) e de ex-tensidades (desde fora) que se copulam e se interpenetram.

Merleau-Ponty (1984, p. 240) debulha: “A polpa mesma do sensível, o seu

indefinível, não é outra coisa senão a união nele do 'dentro' e do 'fora', o contato em

espessura de si consigo”. Rousseau (1999, p. 15) ecoa: “O homem que mais viveu

não é o que contou maior número de anos, mas aquele que mais sentiu a vida”, que

mais sorveu e fruiu as in-tensidades dos Sentidos originários, em sua pregnância e

em seu elã anímicos.

Nessa trilha, podemos cuidar com afinco e primor da coexistência in-tensiva

de nossas polaridades interpolares no cultivo de uma Razão afetiva que medita e

escuta; no advento de uma Sensibilidade poética e espirituosa impregnada do

magma da corporeidade e do elã da espiritualidade. Deleuze (1992a, p 123) fala de

uma “razão contingente” que perfura as sendas, as curvaturas e os devires dos

acontecimentos. Ortiz-Osés (2003, p. 68) fala de um “logos cordial con las cosas, o

sea comprensión amorosa, entendimiento erótico” que ressoa os acordes do existir

em con-sonância com seu fremir in-tensivo, co-movido pela sinergia do amoroso que

entrelaça e faz copular os contrários interdependentes e complementares.

59

Para Morin (1995, p. 166), “a razão que ignora os seres, a subjetividade, a

afetividade, a vida, é irracional. É preciso levar em conta o mito, o afeto, o amor...

compreendendo que a realidade comporta mistério” em seu lusco-fusco cotidiano.

Maturana (2001, p. 278) explicita que “a razão nos move somente através das

emoções”, das ondulações e energias do sensível.

Assim, as margens do rio de nossa consciência compreensiva, da imaginação

criante, dos sensos perceptivos, podem se alargar nos conduzindo à sua terceira

margem, às esferas de compreensão e de vivência que fazem desbordar o espírito de

fineza, os Sentidos anímicos. Na terceira margem, emerge a fruição poética do

mundo na in-tensidade da inteireza poiética do ser-sendo, de nossa condição

primordial de seres andróginos, de homo mediator, sensibilis, sapiens-demens,

implicator. A terceira margem desemboca nos confins do abissal, no fundo sem fundo

dos entre-lugares donde jorram as polifonias dos Sentidos anímicos.

Os agenciamentos da Sensibilidade re-velam a proeminência das experiências

vividas/viventes como momentos originários e inaugurais que, mobilizando a

inteireza da condição humana, conduzem a processos in-tensivos de percepção, de

interpretação e de compreensão dos fenômenos, da vida, das coisas. Esses

agenciamentos se estruturam mediante a composição do imaginário, do universo

simbólico, plasmado com a textura das afecções, da intuição, da imaginação criante,

da urdidura do mitopoético; impulsionam a tensividade do daimon inspirador e

criante, com seus lampejos autopoéticos.

A plasticidade dos feixes dos símbolos que constituem nosso imaginário re-

vela as curvas e os enigmas que compõem nossa relação direta e pregnante com a

vida, com as coisas, apresentando-as em seu fulgor e em seu espanto originários.

Esses feixes do simbólico, do mitopoético, traduzem as ambigüidades e as

heterogeneidades do existir, infundem alumbramento em nossas relações com os

Sentidos encharcados pelo dinamismo da policromia do mundo vivido/vivente, das

expressões de nosso ser pregnante e anímico. A plasticidade dessas metáforas e

imagens diversas que compõem o simbólico anima e alumbra as diversas linguagens

e formas de expressão dos Sentidos humanos.

Impregnadas da plasticidade das imagens, as idéias que plasmam os saberes

e sentires se apresentam de forma animada, traduzindo, assim, os fenômenos, a

vida, com mais proximidade e vigor. Compostas de imagens simbólicas expressivas

que, de modo animado, ressoam nossos campos de energia, as idéias respiram,

exalam o sopro vital; se constituem no dinamismo das formas que revelam a força

viva dos fenômenos, das coisas.

O pensamento encarnado, plasmado pelo dinamismo do imaginário, traduz e

lampeja as faíscas do corpo. Suas ressonâncias, como ondas quânticas, reverberam,

60

nos recurvamentos da teia das relações intercorpóreas. O elã sensível do

mitopoético projeta e faz jorrar uma Razão anímica (anima ratio), um pensamento

animado. Um “pensamento como heterogênese” (DELEUZE, 1992a, p. 255) que

transita pela multiplicidade dos fenômenos. Que, assim, pode flagrar o instante, a

nervura do acontecimento vivido/vivente, em seus entornos e torções originários, na

poeticidade de seu estado nascente, na fruição poiética do ser-sendo. Galeffi (2001,

p. 245) propugna também o “forjar a dança do sentido que nos torna aprendizes do

viver poeticamente” (grifo do autor).

No estado poético penetramos na dança primordial que co-move os seres, que

infunde alumbramento à plasticidade do existir. Assim, podemos atingir momentos

de ápice, de êxtase “em que todo o ser, alma e corpo, é possuído pelas forças ou

pelos deuses que se abrigam nele” (MORIN, 2002, p. 138); desbordamos nossas

potências oníricas que fazem flamejar as in-tensidades dos desejos e utopias

mediante a coexistência da dança do corpo e dos vôos do espírito.

Nessa esfera, Ferreira Santos (2002, p. 48) ponteia: “sem poesia e sem

sensibilidade, a verdadeira criação não se faz”. Os processos de criação mais

intensos se tecem na poiesis, na emanação e na fruição alumbrada do estado

poético, da poeticidade e da plasticidade estésica do ser-sendo, do cosmos.

A afinação dos tons da Sensibilidade conduz aos acordes da espiritualidade –

spiritus, sopro – que se traduz no estado poético da fineza do espírito, em sua

transcendência imanente, mediante a harmonia conflitual de sua plasmação

existencial; potencializa o desbordar do estado de fruição da beleza, da poeticidade

do existir.

A Sensibilidade como estado de dis-posição

pregnante e anímico, como feixes de arco-íris

Uma compreensão ontológico-policrômica da Sensibilidade concebe a mesma

como expressão originária e matricial (matriz geradora) do Sensus que implica e co-

implica o senso noético, o horizonte dos Sentidos, a consciência compreensiva, e o

senso afeccional, a textura da corporeidade, o elã do pathos. Sensibilidade como

estado pregnante e anímico que emerge desde dentro, das nascentes do existir, que

se traduz na radicalidade e na amplitude da dis-posição e da abertura existenciais

para as transitudes do ser-sendo. Dis-posição que proporciona a compreensão e a

vivência da inteireza do ser-sendo no dinamismo de suas in-tensidades e

incompletudes. Esse estado de dis-posição e de despojamento nos con-voca para os

processos de implicação e de co-implicação para com os fenômenos, para com os

61

influxos do jogo que se faz jogante do existir, do co-existir; para o cuidado e o

desvelo com a heterogênese do entramado da condição humana.

Nesse horizonte compreensivo, a Sensibilidade é concebida como estado de

dis-posição do corpo e do espírito, como constitutivos ontológicos da inteireza híbrida

do ser-sendo, que, de modo coexistencial, nos conduzem à fruição do sentimento do

mundo, ao sentimento oceânico como expressão de sua vastidão incomensurável.

Desse modo, com o farejar dessa abertura empática da Sensibilidade, podemos

perceber, sentir e fruir o estado de entrelaçamento que nos interliga com todos os

seres do universo/pluriverso, mediante o elã da sinergia que nos interpenetra e que

nos implica com a anima mundi. Assim, podemos com-partilhar a sutileza dos

sentimentos que nos sinergizam com todos os seres do universo; podemos nos

enredar na simpatia do todo.

A Sensibilidade se configura no estado de abertura estésica que implica

inerência e aderência ao coração da experiência vivida/vivente e incide na expressão

do pasmo que espanta e se desborda na ad-miração. Ad-miração que nos co-move

diante das in-tensidades e da plasticidade dos fenômenos, do existir. Estado que nos

con-voca e nos implica por inteiro para processos co-implicados de coexistência; que

leva a perceber e a compreender as reentrâncias do emaranhado que perfaz a teia

mestiça dos fenômenos do existir. Desse modo, se descortina numa abertura

aurorescente para a crepuscularidade do ser-sendo, em sua radicalidade originária,

em seu fundo sem fundo. Abertura para a trama de seus cruzamentos e hibridações,

de seus paradoxos e enigmas, e que nos impulsiona no ritmo dos fluxos tensoriais do

existir, de suas metamorfoses.

Os feixes que plasmam a aragem da Sensibilidade nos arremessam nos

flancos do aberto, desse fundo sem fundo que revela vastidão incontornável.

Propiciam o estado de abertura originária e indeterminada para o suceder dos

acontecimentos, das coisas sendo, dos fluxos das contingências do existir. Os

estados de despojamento e de dis-ponibilidade do espírito e do coração nos lançam

nas curvaturas das travessias e das itinerrâncias do ser-sendo; nos levam a per-

correr os riscos dos desafios que co-movem e implicam em posturas audaciosos na

transitude das escorrências movediças do existir. Assim, o cuidado com a

Sensibilidade nos conduz à percepção e à compreensão do arco de nossos limites e

possibilidades existenciais, de nossas fragilidades e forças, de nossas incompletudes;

nos leva a identificar nossas próprias insensibilidades. Nos torna não-indiferentes

diante da dramaticidade das contingências, das dores do mundo, da tragicomicidade

do humano.

Destarte, uma compreensão ontológico-policrômica da Sensibilidade se traduz

num estado de dis-posição de nossos sensos para os confins do aberto que nos faz

62

imergir nos desvãos dos silêncios e dos vazios que nos atravessam; dis-posição para

acolher o inesperado, para os desbordamentos da insustentável presença dos claros

enigmas.

Sensibilidade como estado com-preensivo que nos precipita no transitar pelos

caminhos do deserto, sob os auspícios do regime do solar, com suas trajetórias mais

contornadas, e, conjunta e implicadamente, no transitar pelas veredas da floresta,

sob os auspícios da penumbra do lunar, com suas trajetórias mais incontornáveis.

Assim, o espectro da Sensibilidade nos incursiona pelas encruzilhadas de Sentidos

dos entre-lugares existenciais constituídos por desertos e por florestas, pela aragem

do lusco-fusco, da penumbra, do solunar.

Nessa perspectiva, uma compreensão da Sensibilidade que, mais que

ontológica deve ser ontosófica como procura permanente da phronesis, da sabedoria

que se traduz na busca da compreensão e da vivência dos Sentidos humanos

primordiais. Procura que se processa ao penetrarmos nos entrelaces da rede

policrômica que plasma a inteireza do ser-sendo-com, nas in-tensidades de seu

dinamismo existencial e coexistencial. Rede que é constituída da tecedura e das

estampas que imbricam as in-tensidades das trepidações e dos rasgos da tragicidade

do existir (caos) e de sua placidez e remanso (cosmos) como instâncias que

configuram a Caosmose (GUATTARI, 1993).

Sensibilidade como estado de percepção, de compreensão e de vivenciação

que interpenetra a multiplicidade de nossos “agregados sensíveis”. Ou seja, em que

todos os sensos se interpenetram e se constituem mediante o dinamismo do jogo co-

implicado de suas interrelações; em que, intrinsecamente, estes se entrecruzam e se

dis-põem na juntura. Juntura em que um senso está contido e entrelaçado no outro e

os mesmos coexistem recursivamente. Desse modo, compreendo a Sensibilidade

como o constelar dos feixes que amalgamam os diversos sensos mediante o elã

sinérgico que os interliga e os faz desbordar.

Esse cuidado com o dinamismo do espectro da Sensibilidade implica no cultivo

de um senso fino e acurado de percepção e de compreensão que nos conduz ao

esprit de finesse como estado de fruição da fineza do ser, da delicadeza do ser-

sendo. Estado que, assim, aguça o senso perspicaz de discernimento e de

compreensão da constituição híbrida dos fenômenos e do existir; fomenta o senso

espirituoso e afetual que, ao com-preender, se implica e se co-implica com o existir e

com as coisas, com os fenômenos e os seres, com cordialidade e simpatia, com

desprendimento e generosidade. Estado que, portanto, proporciona o cultivo do

sentimento do mundo, da simpatia do todo mediante a dis-posição do semblante

gracioso que faz despontar do estado de fineza.

63

Na mitologia grega, Hermes representa a ponte, a encruzilhada, o deus

estradeiro que interliga e entrecruza, o condutor de almas. É o mediador entre os

deuses e os humanos. Íris traduz o arco-íris como expressão exuberante que, em sua

policromia inefável, estampa os tons mestiços que trançam e interpenetram as

dimensões diversas do existir e da cultura humanas em sua unitas multiplex. Íris

representa o arco de união entre o céu e a terra, entre deuses e humanos. “A Íris é a

flor primaveril” que estampa a cromaticidade de seus matizes entrelaçados

(CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 507; BRANDÃO, 2000).

Nesse prisma de compreensão, a Sensibilidade é hermesiana e arco-írica ao se

configurar como espectro de uma ponte, de uma encruzilhada que entrelaça e

interpenetra as policromias e polifonias dos Sentidos humanos mediante processos

pregnantes e anímicos de percepção, de compreensão e de vivenciação do existir, do

co-existir. A Sensibilidade traduz, como vimos, a in-tensidade da coexistência

originária entre a abertura dos sentidos e da intelecção, entre Intuição e Razão, entre

anima e animus, entre o micro e o macrofísico, entre luzes e sombras, entre o

singular e o plural. Daí seu estado, sua condição e sua estrutura êntrica, sua

pertinência como metáfora da androginia.

Dessa forma, o cuidado com a Sensibilidade se configura como a busca de um

perceber e de um compreender arco-írico e hermesiano que desborda as

ressonâncias da policromia de seus feixes. Feixes que traduzem as interpenetrações

das silhuetas dos diversos matizes que estampam o existir e o co-existir. Uma

compreensão hermesiana e arco-írica que re-vela o dinamismo da plasticidade dos

fenômenos humanos na movência dos fluxos tensoriais que se plasmam na

composição de sua harmonia conflitual. Compreensão que, assim, afirma a inteireza

in-tensiva das encruzilhadas mestiças do existir e do co-existir, de sua unitas

multiplex, na hibridação iridescente que amalgama o pregnante, a terra – o ctônico –

e o anímico, o céu – o urânico.

Essa compreensão de Sensibilidade implica, ontológica e ontosoficamente, em

estarmos com os pés fincados na densidade do chão, o corpo (animado) impregnado

do húmus da terra (imanência), e o espírito (encarnado) afinado com as vibrações da

infinitude dos horizontes estelares (transcendência). Ou seja, traduz as

manifestações dos estados mais densos e mais sutis que constituem as in-tensidades

da inteireza do existir humano em suas expressões afeccionais e noéticas.

Essa plasticidade do espectro da Sensibilidade constela o estado de abertura

arco-írica do espírito e do coração da androginia de nosso ser mediante o vicejar da

coexistência entre a espiritualidade e a corporeidade; se traduz na compreensão e

na vivência da inteireza in-tensiva do ser-estar-sendo ao deflagrar possibilidades

64

múltiplas do ser-si-mesmo-com-os-outros, na cotidianidade do mundo vivido/vivente,

mediante o dinamismo da entreidade, pelas sendas nômades dos entre-lugares.

Assim, Sensibilidade como mirada e como morada constelada de policromias e

de polifonias que descortinam o estado pregnante e anímico de dis-posição e de

receptividade de nossos sensos afeccionais e noéticos. Dis-posição para uma com-

preensão e uma vivência, tanto vastas quanto fundas, nas in-tensidades da teia do

ser-sendo-com-os-outros, mediante a fruição de Sentidos con-sentidos em nossa

condição de co-pertencimento planetário – uma ecosensibilidade.

65

Capítulo 02

OS FULCROS MAGMÁTICOS DA SENSIBILIDADE

Entre, através e alémvazio e cheio, cumplicidade,

a ânfora e a argila, uma mão,ser o tudo e o nada, o sentido.

Jean Biés

Nas meditações acerca de uma compreensão ontológico-policrômica da

Sensibilidade, compreendo que a presença pregnante e anímica da Corporeidade, da

Afetividade, da Intuição, do Mitopoético e da Razão-Sentido se constitui como

compósito de fulcros estruturantes e primordiais nos processos de sua plasmação.

Esses eixos magmáticos que compõem o dinamismo e a policromia dos feixes da

Sensibilidade humana apresentam características próprias e constitutivamente se

entrelaçam e são recursivos, na composição dinâmica e in-tensiva de sua

coexistência.

Nos desdobramentos do capítulo, apresento meditações em que descortino as

idéias-força que lastreiam cada um dos fulcros constitutivos do espectro da

Sensibilidade na perspectiva de abordagem Filantropoética que articulo.

70

02.1 – Da Corporeidade

Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria.

Nietzsche

A carne vinga-se quando não é ouvida.

Boris Cyrulnik

O homem habita um corpo imaginário, ao qualatribui significados e valores, com os quais integra

o mundo a si mesmo e se integra como pessoa ao mundo.

David Le Breton

Apaga-me los ojos: puedo verte;ciérrame los oídos: puedo oírte;

y aún sin pies puedo andar en busca tuya,sin boca, puedo conjurarte.

Ampútame los brazos, y te agarro,como con una mano con el corazón mío;

detén mi corazón, y latirá el cerebro;y se arrojas el fuego en mi cerebro,

te llevaré sobre mi sangre.

Raine Maria Rike

02.1.1 – (Breve) Trajetória do corpo

em nosso processo civilizatório

Constituído e plasmado de modo biocultural, como constitutivo ontológico,

como um compósito que une o bio-físico-químico e os repertórios

culturais/simbólicos, como amálgama de significados e Sentidos existenciais

polifônicos, o corpo, em nosso processo civilizatório, é concebido e compreendido

mediante cosmovisões bastante diversificadas em consonância com os fluxos de

cada contexto cultural de nossa história.

Essas cosmovisões configuram, tanto concepções ou formas de compreensão

que afirmam a proeminência da corporeidade humana, em suas múltiplas

dimensões, como as que a minimizam, atrofiam, e até a enclausuram através de

posturas que reduzem o corpo a mero instrumento, a máquina produtiva, a objeto de

consumo. Em nosso processo civilizatório, estas concepções denegadoras da

corporeidade, em sua constituição pregnante e anímica, exercem expressiva

supremacia na órbita dos saberes e dos poderes instituídos.

70

É bastante conhecida a postura de Platão, na Grécia clássica, que, inspirado

nas tradições órficas, considerava o corpo como cárcere, como uma caverna que

aprisiona a alma, em que as afecções são vistas como expressões ilusórias e

inferiores. Desse modo, as mesmas obscurecem a luminosidade superior da verdade

que se aloja na esfera do pensamento racional, do supra-sensível – o mundo das

idéias perfeitas (PLATÃO, 1987).

Aristóteles apresenta uma concepção diferenciada ao realçar a relevância dos

sentidos, da sensorialidade, no processo de constituição do conhecimento. Para ele,

“es preciso admitir que las cosas inteligibles están en las formas sensibles”

(ARISTÓTELES, [19__], p. 870). Afirma também que “es claro que el alma no está

separada del cuerpo” (ARISTÓTELES, [19__], p. 745). É conhecida, em larga escala, a

máxima aristotélica na qual o mesmo afirma que tudo que chega ao intelecto passa,

necessariamente, pelos sentidos. Apesar dessa compreensão apresentada pelo

pensador, ele demarca certa hierarquia na relação entre alma e corpo considerando

aquela como uma substância e este como um acidente.

O Corpo-mácula

Na Idade Média, com a supremacia dos cânones e dos estatutos instituídos

pela dogmática do pensamento cristão, o corpo, com suas afecções, com seu pathos,

é considerado como expressão do pecado, como coisa enfermiça; como um fardo

que escraviza; como fonte de impureza e de fornicação; como objeto abjeto. Assim, o

mesmo deve ser disciplinarmente controlado e ocultado. Considerado como foco de

contaminação maculante, o corpo deve ser purificado como templo do espírito

mediante processos de disciplinamento e de assepsia. Desse modo, o mesmo é

angelicalmente descarnado. Passa a ser destituído de pathos, do fremir de sua

pregnância. Os impulsos e desejos afeccionais são represados.

Essa predominância do pensamento cristão, modulado por suas instituições

religiosas, através dos dispositivos de seus canônes e doutrinas, de sua dogmática

purista, instaura a supremacia da alma e do espírito em detrimento do corpo, da

sensorialidade.

As in-tensidades da pregnância que constitui a corporeidade são abominadas

por provocarem tentações e paixões que perturbam a alma e o espírito, bem como,

por desconcertarem as normas dos estatutos doutrinários levando aos descaminhos

ameaçadores do pecado. Desse modo, o corpo, como fonte de impurezas, deve ser

encarcerado em si mesmo, dominado e crucificado por suas culpas, por suas

profanações mediante processos ascéticos de purificação e de angelização.

71

O corpo-máquina

Na Idade Moderna, institui-se a concepção que se torna predominante em que

o corpo é considerado como uma máquina, sendo, assim, seqüestrado de sua

condição orgânica e simbólica. Dessa forma, deve funcionar mecanicamente a

serviço do conhecimento racional, dos processos de produção, tanto científica,

quanto industrial. Com os anatomistas, o corpo se converte em objeto de

investigação científica (corpus como cadáver). Tecendo uma compreensão sintética

acerca do corpo nesse momento histórico, Bergson (1989, p. 208) debulha:

As descobertas que se seguiram do Renascimento – principalmente as de Kepler e Galileu – haviam revelado a possibilidade de reduzir os problemas astronômicos e físicos a problemas de mecânica. Daí derivou a idéia geral de se representar a totalidade do universo material, inorganizado e organizado, como uma imensa máquina, submetida às leis matemáticas. A partir disto os corpos vivos em geral, o corpo do homem em particular, deveriam se encadear na máquina como engrenagem num mecanismo de relógio; nada se poderia fazer que não fosse determinado antecipadamente, matematicamente calculado.

As concepções propagadas pelo pensamento mecanicista que se instalam

fortemente na modernidade ocidental penetram com muita agudeza nas

mentalidades e na teia de nossa cultura, exercendo sobre esta expressiva

prevalência. Essa prevalência se desdobra, de modo efetivo, pelas demandas do

mundo contemporâneo. Os estatutos da razão instrumental forjam o corpo como

objeto mecânico, como coisa portadora de funcionalidade, como um instrumento

extensivo que deve estar a serviço do pensamento lógico-formal, da lógica do cálculo

e da produção.

Nessa esfera, Descartes (1996, p. 159) proclama a expressão “a máquina de

nosso corpo” realçando a metáfora do corpo como coisa extensa que, desse modo,

se apresenta como inferior à alma – coisa intensa. Assim, o corpo é reduzido a uma

máquina pensante e produtiva, a um instrumento eficiente que deve operar

mecanicamente sob as determinações da ratio (medida); é confinado a uma entidade

fria e disforme que deve ser controlada apresentando comportamentos pré-

determinados. Forja-se assim, um corpo inodoro e desprovido de cromaticidade. Um

corpo docilizado e bem comportado; reduzido à condição de coisa. Portanto, um

corpo exilado de seu estofo orgânico e simbólico.

Os aparatos da razão instrumental aprisionam o corpo na ordem do

pensamento mecanicista como coisa isenta de carnalidade. Forjam um corpo

desprovido de seus ritmos e fluxos, das in-tensidades de sua seminalidade. Nessa

esfera, o corpo é concebido meramente como um estado de desordem, de caos, que,

portanto, deve ser controlado e circunscrito aos ditames dos modelos mecânicos e

conformadores da medida (metron) e da ordem. Forja-se um corpo-máquina que não

72

sente, não cheira, não toca, não se arrepia; que, em seu estado de apatia e de

indiferença, revela a sua ausência de pathos, de vitalidade.

A corpolatria

Na contemporaneidade, diante das mais diversas modulações e posturas que

comprimem e denegam a corporeidade, despontam tendências que propugnam o

retorno ingente do corpo traduzindo uma largada que vai de um pólo extremo ao

outro. Essas tendências redundam na excentricidade de atitudes que propagam o

culto ao corpo físico. Assim, este é concebido isoladamente, através de técnicas e de

exercícios físicos que vão tomando rumo compulsivo, desde sua exposição

extravagante e espetaculista nas vitrines, aos abusos de sua inserção nas esferas do

consumismo que o reduzem a mero artefato utilitário, a mero invólucro de uma

cosmética que o emplasta.

Essa tendência chamada de corpolatria parece configurar uma descompressão

abrupta da austera denegação do corpo através da emergência de uma postura

frenética, com sua afirmação fisicalista, desprovida de uma compreensão e de uma

vivência mais alargada e cuidadosa que considera a dinâmica in-tensiva da sua

inteireza, das expressões simbólicas da corporeidade. Essa postura descamba em

procedimentos que reduzem e mutilam a complexidade simbiótica que compõe a

corporeidade com sua pregnância afeccional e simbólica, com seu elã criante. Sem o

cuidado com a inteireza do humano (coexistência entre corpo e espírito), essa

suposta liberação do corpo tende a incidir na instauração de outros cárceres.

Corpo cibernético

Nos espectros da contemporaneidade, o corpo passa a ser abordado a partir

de concepções e de formas das mais diversificadas. Tanto as que o afirmam como

corpo próprio, encarnado, em sua constituição biocultural e existencial – que

abordarei com mais amplitude posteriormente –, como as que passam a cultuá-lo

com as extremações da corpolatria (malhação nas academias etc.), como as

tendências da biotecnologia, da cibernética, que passam a propagar a superação do

corpo orgânico na afirmação do corpo cibernético, do corpo ciborgue.

Nas últimas décadas, essas tendências têm se intensificado apresentando

concepções que propugnam a superação do corpo biológico, biocultural, com a

instauração de um corpo cibernético, virtual (BRETON, 2003; SANTAELLA, 2004).

Essas tendências consideram que o corpo orgânico está obsoleto com as fragilidades

de sua carnalidade, com a textura de sua condição humana marcada de

precariedade e de vulnerabilidade.

73

Nessa esfera, para os teóricos da inteligência artificial, o corpo orgânico é

concebido como um estorvo que precisa ser ultrapassado através da instauração

desse corpo cibernético, portador das sofisticações e funcionalidades de sua

condição de corpo mecânico. Essas tendências difundem a idéia de uma era “pós-

biológica” em que a lógica da robótica produz corpos assépticos dotados de

funcionalidade; corpos virtuais, mecanicamente perfeitos para um mundo em que,

nesse âmbito, as máquinas devem assumir seu reinado. O corpo se converte em

receptáculo esvaziado, em artefato calculado e controlável; em entidade inorgânica

desprovida de vitalidade. É formatado e modulado através de conceitos e de

fórmulas abstratas que tecnicamente o desmaterializam e o projetam nas imagens

de seus simulacros.

Assim, o corpo é reduzido aos auspícios da racionalidade técnica, das esferas

de um positivismo que privilegia o universo das coisas – do ter –, em detrimento do

universo do humano – do ser. O corpo orgânico e simbólico é desmaterializado e se

dissolve nas malhas invisíveis da virtualidade cibernética, da parafernália do

eletrônico, com a instauração de um ente “pós-humano” que “significaria a

superação das fragilidades e vulnerabilidades de nossa condição humana, sobretudo

de nosso destino para o envelhecimento e a morte” (SANTAELLA, 2004, p. 55).

Busca-se, assim, um corpo imortal, um “computador de carne”, volátil e controlável

que, com sua funcionalidade mecânica e sua previsibilidade, está destinado a ser

eterno. São desencadeados processos sofisticados de neo-assepsia e de neo-

purificação do corpo que o pretendem converter em objeto atravessado de

transparência, com textura lisa e uma feição uniformizada, sob os auspícios dos

formatos metálicos e sob os pilares de uma certa religiosidade “pós-moderna” que

proclama a deificação do cibernético, a cultuação do tecnocientífico.

Nessa perspectiva, a tecnociência desmaterializa os corpos, os converte em

“mecanismos controláveis para livrar o homem do incômodo fardo no qual

amadurecem a fragilidade e a morte” (BRETON, 2003, p. 17). Assim, a carne é

concebida como estorvo e, portanto, urge fabricar o Homo silicum, o homem de

silicone. Os teóricos defensores dessas concepções biocibernéticas, como Moravec,

Lycan etc., apontam para uma “Humanidade biônica”, para uma era da

reprodutibilidade corporal em que a carne do mundo se converte em informação, em

máquina virtual; numa carne glacial, sem sangue e sem pregnância.

Breton (2003, p. 155) afirma que “o internauta (...) sonha em fundir-se com a

máquina, dissolve-se nela a fim de não estar mais sujeito à necessidade trivial de

comer, de beber, de dormir, de se preocupar com o corpo que o lembra o tempo todo

de seus limites”. Autores como Lycan defendem os “direitos civis dos robôs”

(BRETON, 2003, p. 158). Vislumbra-se, assim, o espírito, a inteligência das máquinas.

74

O paradigma do ciborgue alimenta um fascínio da máquina inteligente e quase viva com o sentimento compensatório da obsolescência do homem, do anacronismo de um corpo cujos elementos se degradam e exibem uma terrível fragilidade com relação à máquina (BRETON, 2003, p. 207).

Diante dessa tendência impetuosa de cibernetização do corpo, compactuo

com a idéia de Breton (2003, p. 221) que exclama: “Mas a teimosia do sensível

permanece. Abandonar a densidade do corpo seria abandonar a carne do mundo,

perder o sabor das coisas”, seria, me parece, instaurar, de modo funesto, a tirania do

desencantamento do humano, do mundo.

A deserção do corpo, o patriarcalismo

Como vimos, as concepções e tendências que aparecem como predominantes

no decurso de nossa tradição cultural, regidas sob os aparatos de uma racionalidade

técnico-instrumental, modulada através do pensamento mecanicista, como também

patriarcal, apresentam características que, na maioria das vezes, operam e

legitimam a secundarização e a deserção do corpo; decretam sua interdição e seu

desterro como estofo orgânico, imbuído de pregnância, na terra dos humanos.

A supremacia do patriarcalismo em nossa tradição cultural exerceu fortes

influências sobre a constituição de nossa corporeidade. Ao sedimentar atitudes que

demarcam enrijecimento e hostilidade, o corpo foi sendo revestido de armaduras e

de posturas marcadas pela sisudez através dos processos disciplinares de denegação

e de recalque das expressões originárias das emoções, da fluência dos sentimentos,

notadamente no gênero masculino. Prevalece a configuração de corpos acometidos

de apatia, controlados pela frieza das normas que lastreiam o patriarcalismo.

Forjado a partir das idéias de competição e de apropriação, o patriarcalismo

privilegia atitudes em que predomina a virilidade da força física, o poder bélico das

armas na realização de conquistas e de guerras fratricidas.

A lógica patriarcal, estruturada pela monologia e pela excludência que não

tolera diferenças, fluxos e movimentos, canaliza as emoções de forma primária

prevalecendo nos indivíduos o instinto de competição e de apropriação. Assim, o

corpo masculino é concebido como instrumento do poder autocrático. As armaduras

dos corpos viris dos machos determinam e ordenam, e os corpos das fêmeas,

considerados frágeis e dóceis, devem apenas se adequar a essas determinações.

No decurso de nosso processo civilizatório, o corpo tem sido vilipendiado e

soterrado através de processos sistemáticos de subjugação e de interdição de suas

expressões originárias. Isso ocorre desde sua encavernação como um cárcere

sombrio, sua crucificação como expressão pecaminosa, sua coisificação e redução à

funcionalidade de um instrumento mecânico, a objeto de produção e de consumo,

75

até sua cultuação extremada e fisicalista – a corpolatria –, sua constituição como

corpo biônico.

Nesse universo cultural, o corpo, muitas vezes, foi e é considerado um

“estranho no ninho” do existir humano, abordado com desdém e repugnância.

Outras vezes é demonizado no fremir da pregnância de sua carnalidade. Assim, o

mesmo é destituído da visceralidade de suas afecções, de seu vigor seminal, das

expressões de sua energia e de sua sinergia. Enfim, de sua condição

biocultural/simbólica que traduz seus valores e crenças, a polissemia de seus

sentires e Sentidos.

Porém, no dinamismo dos territórios das culturas dos povos em que as formas

de conhecimento foram instituídas mediante processos mais voltados para a

compreensão do mundo vivido/vivente, a partir dos contextos das experiências

vividas cotidianamente, em que o saber emerge diretamente da carnalidade

pregnante da vida cotidiana, a corporeidade é concebida de modo diferenciado,

apesar das similaridades também presentes. Os propósitos fundantes das referidas

culturas implicam na busca de uma sabedoria que entrelaça o corpo e o espírito, o

pensar e o sentir. Para as diversas tradições indígenas, em sua multiplicidade de

formas expressivas, para as tradições africanas, como entre outros povos da

humanidade, considerando aí alguns nichos em nossa própria tradição cultural, o

corpo, de modo geral, é compreendido, em sua relação originária e estruturante,

como visceralmente coexistente com o espírito na fruição das in-tensidades dos

Sentidos do existir.

Nessas tradições culturais, considerando suas diversidades, limites e

contradições, através dos inúmeros rituais que são realizados, com sua dinamicidade

pregnante e anímica, o corpo e o espírito se re-velam e se desbordam, de modo

coexistencial, alternada e conjuntamente, mediante os compassos e as in-tensidades

das contingências e as danças de celebração e de afirmação da vida que traduzem

os processos de re-encantação do existir.

02.1.2 - A pregnância do corpo como estofo

biocultural, simbólico e andrógino

O meu corpo sabe mais que me sei.

Carlos Drumond de Andrade

Um corpo fraco debilita a alma.

Rousseau

Sem o corpo a alma não goza.

76

Adélia Prado

Felizmente, continuamos a ser de carnepara não perder o sabor do mundo.

David Le Breton

Numa perspectiva de compreensão que transita pelas abordagens

fenomenológicas, hermenêuticas e existenciais, em suas acepções mais vastas, a

corporeidade pode se traduzir no estado de nosso ser encarnado composto da

hibridação entre a fibra bio-físico-química de sua sensorialidade e o feixe simbólico

que o atravessa. Hibridação que revela os significados e Sentidos constituídos no

dinamismo da teia da cultura. Essas dimensões diversas se plasmam de modo

entrelaçado mediante processos de co-determinação e de interpenetração que

instauram a in-tensidade da relação de coexistência criante entre as mesmas. Assim,

a plasticidade da corporeidade se configura como expressão existencial das

polifonias e das ambigüidades do humano em seus modos de estar sendo no mundo.

Na corporeidade, as instâncias internas e externas, intensiva e

extensivamente, se interligam e se interpenetram compondo a espessura biocultural

(orgânica e simbólica) da condição humana. As texturas da corporeidade apresentam

e representam os repertórios de crenças e de valores, de sentires e de pensares que,

de modo imbricado, perfazem os contextos culturais de cada indivíduo em seu estar-

sendo-no-mundo-com-os-outros. A corporeidade é plasmada com os repertórios dos

tons, dos relevos, das texturas e dos símbolos que compõem os imaginários dos

indivíduos nos compassos de seus modos de vida (modus vivendi).

As envolturas da corporeidade se re-velam mediante os feixes pregnantes de

sua carnalidade, nos processos in-tensivos de expressão de suas afecções que

movem e co-movem, que fremem e interpelam, que vibram e desinstalam. Na

expressão de sua nervura pulsional e energética, o corpo perturba e provoca

espanto. Desinstala os modelos enrijecidos com a incontornabilidade de seus fluxos.

Instala gestos e movimentos que inauguram novos modos de ser e de estar sendo

nos ciclos de suas sístoles e de suas diástoles. Com o elã criante de suas

potencialidades o corpo instaura performances que descortinam a eterna novidade

do mundo.

Em sua constituição simbiótica, o corpo configura a unidade dinâmica dos

sentidos físicos, plasmando, conjunta e polifonicamente, os Sentidos existenciais.

Serres (2004, p. 15) acentua que “O corpo em movimento federa os sentidos e os

unifica nele”. Cada sentido físico processa percepções singulares que, de modo

intersensensorial, leva ao descortinar do multissensorial implicando na expressão

interligada dos demais sensos (intuição, imaginal...). Dessa forma, o corpo projeta os

77

feixes de suas potencialidades sencientes (afeccionais) e anímicas (espirituais).

Gurmendez (1981, p. 22) afirma que “El cuerpo aparece como la unidad de todos los

sentidos”. E continua declarando que el “cuerpo coordina las actividades de los

sentidos elaborando una síntese entre ellos” (GURMENDEZ, 1981, p. 25). A

confluência dos diversos sentidos plasma a plasticidade deste e dis-põe o corpo para

a intercorporeidade, para a aventura do mundo em nosso estar-sendo-com-os-outros.

Ou seja, cada corpo singular se constitui como corpo próprio, existencial, mediante

os fluxos das interrelações estabelecidas com os demais corpos numa relação in-

tensiva de sinestesia e de sinergia intercorpórea.

Gurmendez (1981, p. 36) arremata que “la excitación o vibración corporal

crea, entre los cuerpos, una correspondencia sensible”, uma fricção sensível, no

jorrar dos feixes de suas afecções e de suas energias, no lampejar das fagulhas de

suas sinergias. Tanto a dimensão pentassensorial (sentidos físicos) quanto a

multissensorial (diversos sensos perceptivos) se estruturam e se desdobram através

dos vínculos culturais que o corpo estabelece, em seu estar-sendo-no-mundo-com-

os-outros – a intercorporeidade –, nas experiências tecidas entre as contingências do

mundo vivido/vivente. O corpo é, como vimos, biocultural, na proporção em que se

estrutura através da fibra pulsional e energética da sua constituição física,

conjuntamente com a sua plasmação cultural através dos Sentidos existenciais. Ele

se torna, assim, corpo próprio, simbólico, esculpido pelas marcas e pelos tons dos

valores que nutrem e estampam a carne da cultura.

Gusdorf (1960, p. 297) debulha: “O corpo concreto e vivido, quer o mostremos

quer o ocultemos, não é simples anatomia: nele se realiza a epifania de valores

sexuais, amorosos, estéticos, ligados muito de perto à própria essência da

civilização”. Enredado na teia da cultura, o corpo vivido/vivente está impregnado de

Sentidos que re-velam as crenças, os valores, as cosmovisões que constituem a

complexidade da condição humana nos influxos da história. Sua fibra sensível vibra

em consonância com os acordes de cada contexto cultural. Sua tangibilidade revela,

de modo mais patente ou latente, o intangível – universo dos valores – mediante

seus diversos modos de expressão: seus gestos e texturas, seus relevos e cores,

seus silêncios e sons.

O corpo não se encerra em si mesmo, em sua composição bio-físico-química.

Referindo-se ao cientista russo Vasiliev, Morais (2002, p. 46) fala do “corpo

bioplasmático” como “uma realidade extrafísica que há no ser humano e que modela

e regula o corpo orgânico e a vida de todos nós”. O corpo se desborda, em sua

condição bioplasmática, através de seus campos magnéticos, de seus feixes de

energia, na intangibilidade de suas sutilezas; apresenta ressonâncias magnéticas que

impelem os processos de interligação e de sinergia intercorpórea na dinâmica da

78

intercorporeidade. Bergson (1971, p. 197) declara que “é evidente que a

materialidade dum corpo não termina no ponto em que o tocamos, mas se acha

presente em toda parte onde a sua influência se faz sentir”; se desdobra nos fluxos

de suas ondas quânticas.

O corpo irradia e faz vibrar na intensidade de seus feixes quânticos que

movem e co-movem, que interpelam e en-volvem. Em suas ressonâncias

magnéticas, o corpo é volvente, en-volvente. Interpela e faz emergir laços que

interligam, teias que entrelaçam. Esses feixes que emanam e vibram da e na

corporeidade animam o existir, irradiam o elã do anímico; fazem emergir o advento

do sopro vital que jorra da alma e que, recursivamente, nutre a ambos.

A expressão do intangível que compõe a corporeidade, ultrapassa os limites

da pele, do pentassensorial, na vibração das energias que sinergizam, dos afetos que

simpatizam e que entrelaçam os indivíduos na trama da intercorporeidade. Merleau-

Ponty (1999, p. 314) fala do “sistema sinérgico” que constitui o corpo em sua

intersensorialidade e em sua dinâmica sinergética, em sua multissensorialidade. A

pregnância da corporeidade borda enredamentos que nos dis-põem para a busca dos

Sentidos primordiais. As partículas de sua dimensão física, de sua tangibilidade,

movidas por suas ondulações intangíveis, nutrem sua espessura originária que co-

move e faz desbordar o anímico.

As texturas da carne do corpo traduzem, visível e invisivelmente, as

contexturas da carne do mundo, de suas ambigüidades e obliqüidades. As imagens

da carne do corpo estão impregnadas dos Sentidos que entretecem os imaginários,

as texturas e a cromaticidade do simbólico. Chauí (1990, p. 59) assevera:

Rede intricada de proporções de movimento e repouso, esforço para conservar-se na existência, sistema de relações internas e externas, o corpo é potência imaginante, isto é, produção de imagens pelas afecções que sofre e causa nas relações com os demais corpos.

Assim, além dos filamentos de sua matéria física, a corporeidade humana,

sobretudo, se constitui da tessitura do simbólico, da rede de Sentidos que circulam

na plasticidade de suas posturas, da pluriformidade de seus modos de plasmar o

existir. Merleau-Ponty (1999, p. 122) proclama que “tenho consciência do mundo por

meio de meu corpo”. A consciência emerge no estofo do corpo, impregnada de

corporeidade. “É por meu corpo que compreendo o outro, assim, como é por meu

corpo que percebo as 'coisas'” (MERLEAU-PONTY, p. 253). É o corpo que percebe,

que compreende. A carne sensível do corpo me implica e me co-implica com a carne

do corpo dos outros, com a carnalidade das coisas, do mundo, mediante a presença

da sensorialidade e da consciência compreensiva.

79

Como amálgama biocultural que agrega coexistencialmente opacidade e luz,

matéria e espírito, a corporeidade é ambivalnte, traduz as incertezas e as

indeterminações do existir humano. Como expressão simbiótica, nela se projetam as

in-tensidades do vivido, do vivente, através dos fluxos tensoriais de seus

movimentos, de suas contradições e paradoxos. Sua espessura magmática

potencializa modos de ser e de estar sendo que descortinam as in-tensidades das

trajetórias humanas. Trajetórias que compelem a corporeidade do ser-sendo de cada

indivíduo aos desafios das aprendências e co-aprendências que expandem e afinam

sua Sensibilidade.

O corpo nunca está pronto e acabado, mas se constitui caminheiro, andarilho,

na cadência dos ciclos recurvados do devir, de nosso estar sendo no mundo.

Constitui-se como poiesis, como autopoiesis, ao se criar e se recriar constantemente

com o elã de sua poeticidade, em sua condição de ser inacabado e itinerante,

itinerrante. É movido por suas instâncias implicadas de caos e de cosmos – da

Caosmose –, de ordem e de desordem, de permanências e de alterações constantes.

Como potência imaginal e criante, marcado de imanência e de transcendência, o

corpo é um constante estar-sendo em seus processos de mutação, de recriação e de

transformação. Como ser híbrido, composto de caos e de cosmos, o corpo está

sempre prenhe das potencialidades de mutação que o vivificam e renovam, que o

mantêm redivivo nas trajetórias do humano.

Na plasticidade de suas curvaturas, o corpo é irredutível, imbuído de

incomensurabilidade. Não se cabe nas fôrmas instituídas dos clichês e das leis que o

pretendem empadronar, conformar e silenciar. Irreverente, no fluxo de suas afecções

e no lampejar de seus feixes, ele transgride os determinismos reducionistas, os

modelos que comprimem e cerceiam seus movimentos, a pregnância de suas

vibrações co-moventes. Com suas torções, escapa à unidimensionalidade das normas

que o pretendem domesticar e enrijecer. Suas in-tensidades desinstalam e

desbordam as lógicas instrumentalistas, desafiam os cânones que o pretendem

conformar aos auspícios da homogeneização.

Como expressão fractálica o corpo é composto de texturas porosas, de

reentrâncias e de recurvamentos. É plasmado pela confluência de sua heterogênese

que traduz os feixes da multiplicidade de seus sentidos físicos e de seus Sentidos

existenciais. Serres (1993, p. 14) verseja que “Sobre o eixo móvel do rio do corpo,

estremece, comovida, a nascente do sentido”. Rio-carne que, no fluir de seu

movimento, singra nascentes de Sentidos pregnantes e anímicos. Corpo-enigma

como expressão híbrida atravessada de opacidade e luz – de luscofusco –, de

penumbra e de clareira que se projeta nos horizontes de sua composição crepuscular

(solunar).

80

É o corpo que, a partir de sua sensorialidade, com a nervura de suas afecções,

e com sua expressividade anímica, nos provoca arrepio e espanto suscitando

inquietudes e perplexidades que conduzem às buscas dos Sentidos. Sentidos que,

nas encruzilhadas das travessias, nos co-movem e nos con-vocam. Dessa forma, a

pregnância do espírito altaneiro impele aos processos de expansão e de

transmutação na destilação do anímico. É da nervura das afecções do corpo – de seu

húmus – que jorra a seiva que dá sabor ao saber, que anima o existir. O húmus

vigoroso do corpo traduz o estado telúrico, a fecundez da terra de nosso ser-sendo,

na geografia encarnada do planeta. O corpo é nossa composição telúrica que, como

magma, traduz as camadas fundas em que ressoam o elã das emoções e dos

sentimentos, os Sentidos estruturantes de nosso existir.

A corporeidade se desdobra como uma teia dinâmica plasmada pela trama

dos significados e Sentidos que constitui o existir cotidiano, como urdidura móvel

que, em sua policromia, configura uma multiplicidade de entrelaçamentos; como um

entre-lugar em que se entrecruzam veredas transversais agregadoras de uma

diversidade de formas e de conteúdos existenciais. Nessas travessias, o jogo de sua

plasticidade incide no trânsito de sentires e de pensares que o põem e o dis-põem

em movimento e que o fazem renascer constantemente nos influxos dos ciclos do

existir.

As trajetórias da corporeidade são marcadas pela presença biopsíquica e

simbólica de dores e de prazeres, como estados que perfazem, alternada e

implicativamente, os fluxos recurvados de suas travessias; como estados que

potencializam as in-tensidades de suas vivências, as aprendências que sedimentam

os Sentidos do existir. Tanto o excesso de dor, como o excesso de prazer, pode

desencadear posturas dilacerantes e destrutivas. A tensividade das dores, se

canalizadas de modo aberto e criativo, potencializa partejamentos para o corpo e

para o espírito, para o corpo-espírito, que podem incidir em estados de maturação e

de renovação; podem conduzir a estados de graça. Ou seja, o fremir de dores e de

prazeres constitui a dinâmica in-tensiva da corporeidade como estados

coexistenciais, e, portanto, complementares e interdependentes, nos processos de

constituição e de lapidação da inteireza do existir humano.

Assim, a composição do corpo físico, biológico, na tessitura híbrida da

corporeidade humana, está impregnada de Sentidos que re-velam uma

multiplicidade de sentires e de pensares. Na esfera da cultura, a carne do corpo está

encharcada da seiva dos significados e Sentidos que nos constituem humanamente.

Sua carnalidade está impregnada de Sentidos mestiços, de símbolos polissêmicos. O

corpo traduz, portanto, uma encarnação simbólica, um entramado simbólico que

agrega e co-implica sensorialidade e cognitividade, sentires e pensares, como

81

instâncias interpenetradas e coexistentes, na in-tensidade da constituição simbiótica

do existir humano.

Nessa perspectiva, não “tenho”, nem “possuo” um corpo, mas, sou todo

corpo. Ele é condição estruturante, condição sine qua non da existência de meu ser-

sendo. Só posso existir no mundo na pregnância do ser corpóreo. Tenho e possuo

aquilo que é externo a mim mesmo, aquilo que me é extensivo. Portanto, não tenho

um corpo, mas sou, originária e existencialmente, todo corpo. Ele é intensivo.

Compõe a in-tensidade estruturante e nuclear de minha existência: é estofo vivo que

anima o ser-sendo, magma que me faz existir bioculturalmente (orgânica e

simbolicamente).

As afecções, como expressão de emoções e de sentimentos, traduzem o

pathos, as intensidades frementes que nos movem e co-movem nas vicissitudes

cotidianas. Os impulsos afeccionais, em suas expressões criantes, mobilizam a

corporeidade na fluição das ações que instalamos no mundo e impelem os

movimentos que dão ritmo e vivacidade ao existir. “Cada pormenor da vida corporal,

cada sinal ou sintoma é imediatamente percebido na perspectiva vital da totalidade.

(...) Deste modo, o corpo como organismo está associado ao corpo como horizonte

vivido” (GUSDORF, 1960, p. 294). O dinamismo das afecções compele o estado de

pregnânca do corpo, no pulsar de sua carnalidade, e impulsiona seus feixes anímicos

que potencializam a transversalidade dos horizontes de Sentidos das ações

humanas.

A nervura das afecções humanas, com suas potências mobilizadoras, tanto

podem se desdobrar na fecundez de posturas e atitudes criadoras, como podem

descambar na destrutividade de posturas dilapidantes. Desprovidos do cuidado com

a dimensão sensível, com a consciência compreensiva, com o elã do espírito, os

desdobramentos corpóreos das afecções, dos sentires humanos, são canalizados de

modo meramente instintivo podendo incidir em atitudes que dilaceram e barbarizam.

Um corpo asfixiado pelas expressões de suas afecções canalizadas apenas na

esfera do instintivo tende a ser devorado pelas mesmas. Um corpo comprimido e

recalcado pelas normas institucionais, pelos estatutos dos dogmas morais,

encavernado pelos espectros do medo, se encolhe e se impotencializa, se torna

vítima da docilização e da subjugação. Um corpo disforme e domesticado se converte

em objeto manejável pelos poderes instituídos com suas posturas opressivas (REICH,

1989; FOUCAULT, 1991).

A pesura do siso, da sisudez que entrava, enrijece o corpo em armaduras

compressivas, ata-o em nós que aprisionam. Esses estados de compressão do corpo

atrofiam sua própria respiração, seu sopro vital, forjam processos de desfiguração e

de desvitalização do mesmo. Dessa forma, o corpo tende a bloquear suas

82

potencialidades criantes, a ficar confinado nos curtos-circuitos emocionais dos

ressentimentos, das atitudes defensivas que o impotencializam e o impedem de se

rebelar de modo altivo, de dançar e de expressar as in-tensidades de suas dimensões

simbólicas e anímicas.

Em sua composição simbiótica, a corporeidade carece da articulação alternada

e interligante de suas dimensões afetivas, conjuntamente com as dimensões

espirituais, na dinâmica in-tensiva de sua inteireza. Em sua constituição híbrida, a

corporeidade se descortina através da complexidade e dos paradoxos da condição

humana, da fibra material e simbólica que compõe a pregnância de suas texturas e

porosidades.

Nietzsche (1987, p. 57) afirma que “a todo espiritual pertence algo de corporal

(...) o corporal fornece a pega que se pode pegar o espiritual”. Dessa forma, o elã do

espírito só pode se manifestar, no estofo de nossa existência, através da pregnância

do corpo com seu vigor seminal. Gusdorf (1960, p. 297) assevera que

A encarnação é o fato de o corpo não ser separável: existe uma participação originária da consciência no corpo, participação que impede este e aquela de existirem em si e para si. O corpo não é instrumento do espírito, o espírito não está 'enviscado' ou 'atascado' no corpo.

Corpo e espírito se constituem, primordialmente, como polaridades

interpolares que só são providas de Sentido na dinâmica de sua relação

coexistencial. Mediante a relação de copulação entre os mesmos são plasmados os

Sentidos que vicejam o existir. Os valores convalidam-se através da pregnância das

fibras da corporeidade.

Espinosa (1997, p. 12) declara: “concluímos com clareza que a alma está

unida ao corpo”. E continua: “Daí resulta que o homem consta de uma alma e de um

corpo, e que o corpo humano existe exatamente como o sentimos” (ESPINOSA, 1997,

p. 235). Para ele, “a alma e o corpo são um só e mesmo indivíduo” (ESPINOSA, 1997,

p. 247). Somente no e através do corpo a alma respira, exala o sopro, o alento que

dá vitalidade ao existir. Merleau-Ponty (1989, p. 61) realça que “A alma pensa

segundo o corpo, e não segundo ela própria”. Ou seja, as expressões da alma são as

expressões do corpo, em seus diferentes estados anímicos. Ambos são modos ou

atributos de uma mesma substância. O corpo é um substrato que sente e pensa,

simultânea e alternadamente, em sua dinamicidade semovente.

Gusdorf (1960, p. 259) afirma que

Meu corpo já não é o outro, diferente do espírito, mas é muito no íntimo o mesmo, o denominador comum de tudo quanto, por qualquer título, intervém em meu domínio vital. Reúnem-se aqui o íntimo e o externo, ao ponto de comungarem de tal sorte que a busca de uma espiritualidade pura e desencarnada, bem como a apuração de uma ciência da matéria, não logram realizar a especificidade do ser pessoal.

83

Corpo e espírito, na confluência de suas in-tensidades sinérgicas, compõem a

inteireza de nosso ser-sendo. Dessa coexistêcnia, emergem os Sentidos anímicos. O

espírito vibra e lampeja na carnalidade do corpo. O corpo celebra suas danças,

irradiado pelas fagulhas do espírito. O advento do corpo traduz o advento do ser-

sendo na in-tensidade de sua plasticidade orgânica e simbólica.

Um corpo desprovido do elã do espírito fenece e se desfigura. Um espírito

desprovido de carnalidade se cadaveriza e se esfuma. Portanto, a relação entre

corpo e espírito é de co-implicação originária e originante. Ambos só podem existir

na dinâmica da juntura de sua coexistência seminal. Heidegger (1987, p. 264)

assevera que “o homem é apreendido como um composto de corpo e espírito”. A

expressividade do corpo traduz a presença visível da plasticidade do espírito. A

energia, o elã vital do espírito circula e se plasma no estofo do corpo, numa aliança,

numa relação de copulação criante. Na esfera da neurobiologia, Damásio (2004, p.

201 e 202) afirma que

É necessário compreender que a mente emerge num cérebro situado dentro de um corpo-propriamente-dito, com o qual interage; que a mente tem os seus alicerces no corpo-propriamente-dito; que a mente prevaleceu na evolução porque tem ajudado a manter o corpo-propriamente-dito; e que a mente emerge em tecido biológico – em células nervosas – que partilham das mesmas características que definem outros tecidos vivos no corpo-propriamente-dito.

São bastante complexas e vastas as concepções que procuram compreender o

espírito e a alma, bem como as diferenças entre os mesmos. Os vocábulos latinos

anima (alma) e spiritus (espírito) apresentam muita proximidade semântica com as

conotações comuns de sopro, alento, respiração e aragem. Para o que considero

pertinente nessas ponderações, endosso a fala de Lepargneur (1994, p. 68-69) ao

asseverar que “A alma designa o princípio vital, eminente no ser humano, presente

nele, portanto desde a fecundação; e o espírito designa nele o princípio de

transcendência imaterial que torna a pessoa esse ser vivo” (grifos do autor). A alma

configura a condição de imanência, o espectro animado de cada indivíduo, no arco

de sua singularidade, enquanto que o espírito configura o elã, a potência do sopro

criante que move e sinergiza os seres, em sua condição de materialidade e de

transcendência.

Morin (2002, p. 108 e 109) considera que

A alma humana emerge a partir das bases psíquicas da sensibilidade, da afetividade; em complementaridade íntima com o espírito (animus), ela é anima. (...) O espírito é organização do pensamento e energia da vontade; a alma é intuitiva, ressente e pressente.

84

O espírito pode ser traduzido como a vibração do fogo cósmico que move o

universo (Heráclito) e a alma como a fagulha sensível que emana e frui na

singularidade de cada indivíduo.

Guattari (1993, p. 148) realça a compreensão do “corpo concebido como

interseção de componentes autopoiéticos parciais, de configurações múltiplas e

cambiantes”. Desse modo, o corpo é compreendido como feixe de ambigüidades e

de polifonias, como teia mestiça em que vibram as policromias do existir humano,

em sua diversidade de tons, em suas ambivalências e entrecruzamentos. Corpo

como “feixes de indeterminação” (MOUNIER, 1976, p. 45), como expressão

autopoiética que se autocria e se autorecria permanentemente, nas flutuações das

contingências, no cambiar de seus dobramentos e desdobramentos. Serres (2004, p.

17) afirma que “o corpo todo inventa; a cabeça adora repetir. A cabeça é ingênua. O

corpo é genial” apontando assim para a potência inventiva de nossa corporeidade,

na dinâmica de sua sensitividade criante, de seus feixes imaginais.

Destarte, o corpo é compreendido como arlequim, como saltimbanco que

estampa as cores de seus tons multicores na dança rítmica de seus movimentos

desconcertantes e afirmadores da vida; que se enreda nas curvas de suas

encruzilhadas, de suas indeterminações e incompletudes. Corpo aberto que se dis-

põe para as errâncias e as aprendências das sagas do existir humano,

demasiadamente humano. Corpo brincante, maroto, que volteia fagueiro nos

encurvamentos de suas cambalhotes travessas. Corpo lúdico que faz jorrar o riso

despojado que se desliza escorrente nas ondulações do jogo dançante do existir.

Corpo que também projeta tremor e vertigem nos rasgos de sua pregnância

fremente, em sua condição de ser selvagem.

Em sua constituição orgânica, o corpo é plasmado pela composição química e

alquímica dos elementos materiais e primordiais da terra, da água, do ar e do fogo.

Na perspectiva de uma compreensão simbólica, a terra traduz o estofo material,

orgânico, a pregnância de seu húmus fecundo, fecundante. A água, na expressão dos

fluxos sanguíneos, re-vela o pulsar ondeante, a fluidez das emoções, dos sentires. O

ar, na plasticidade de sua fineza etérea, traduz os vôos dos sonhos, do imaginário

mitopoético, o sopro vital do anímico. O fogo, com sua potência ígnea, implica em

combustão, em transformação; na energia que tanto pode criar como destruir.

Como feixe que projeta as intensidades das energias magnéticas, da

afetividade e do simbólico, o corpo é um evento, um acontecimento que faz jorrar a

polissemia dos Sentidos do existir no ritmo das contingências do ser-sendo. Corpo

como carne trêmula que lampeja força e fragilidade, que arpeja sons e silêncios, que

rumina dor e prazer, que celebra tristeza e alegria, que permanece e que se

transmuta, inelutável e constantemente.

85

Corpo orgânico onde circula sangue, que exala o sopro vivificador. Corpo táctil

que se arrepia com o toque de ternura, que se contorce de dor e de prazer nas

proezas das vicissitudes humanas. Corpo que exala os feixes das ressonâncias

magnéticas da vibração de suas energias. Corpo que nasce pentassensorial (com

seus cinco sentidos) e que se desborda no multissensorial, na proporção em que as

dimensões mais intuitivas, espirituosas e sutis são cultivadas e lapidadas nos

processos de expansão de suas faculdades perceptivas, na fruição alargada das

potencialidades humanas. Corpo andarilho que se envereda pelos riscos inaugurais e

que inventa Sentidos nas in-tensidades das curvaturas do existir. Corpo metamorfose

que, na cambiância de seus ciclos, se renova e se reinventa continuamente.

O corpo é ubíquo. Merleau-Ponty (1984, p. 118) pontua que “somos presença

no mundo através do corpo e presença no corpo através do mundo, sendo carne”. O

corpo está visivelmente (e invisivelmente) presente, onipresente, em todas ações

humanas, em suas configurações mais diversificadas, desde as perspectivas que o

afirmam e o realçam existencialmente, às que o desfiguram e o denegam. A

presença ubíqua do corpo, em seu estado animado, traduz dis-posição para as

vicissitudes do vivido, do vivente, na multiplicidade das tonalidades do existir. Ele é

não-indiferente. Sempre co-move e é co-movido, mais ou menos intensa e

extensivamente, pelos fenômenos do humano.

Merleau-Ponty (1984, p. 121) afirma que “as coisas passam por dentro de nós,

assim como nós por dentro das coisas” numa relação dinâmica de impulsos e de

sinergias intra e intercorpóreas. Somos atravessados e atravessamos as coisas, os

Sentidos, mediante as texturas porosas de nossa corporeidade. “Todo pensamento

que conhecemos advém de uma carne” (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 141), emerge da

e na existência de um ser encarnado, vivente. Todo pensamento humano se

processa e se projeta na nervura de um corpo. É a materialidade da existência

encarnada do corpo que dá substrato e vigor à imaterialidade do pensamento.

Desprovido da fibra originante da carne, o pensamento, as formas das idéias

se desfiguram e se desqualificam. Schiller (1995, p. 118) pontua que “O pensamento

precisa de um corpo, e a forma pode realizar-se apenas numa matéria”. Assim,

avento a relevância da instauração de um “pensamento orgânico” (MERLEAU-PONTY,

1999, p. 117), encarnado, que rumina e projeta idéias impregnadas da nervura do

vivido, de Sentidos vívidos, de um “corpo cognoscente” que parteja saberes e

sentires existenciais.

Gurmendez (1981, p. 26) anuncia que “conocer es incorporarse a una cosa o

criatura para sentirlos”. Ou seja, conhecer é impregnar-se nas texturas da carne do

mundo, contaminar-se na carne dos fenômenos para sorver seus sabores, entretecer

86

e ruminar seus Sentidos encharcados das in-tensidades de sua carnalidade. Gusdorf

(1960, p. 284) pondera que

O corpo não é resquício ineliminável de uma análise lógica, mas sim o fundamento do ser humano, não é obstáculo ao conhecimento, mas meio de todo conhecimento. Meu corpo define, para mim, o lugar da encarnação, seu ponto de inserção num local do espaço e num momento do tempo. Continua sendo o centro do domínio vital que a atividade orgânica e prática desenha em volta dele.

O conhecimento, na vastidão de suas formas de expressão mais fecundas,

emerge de uma inteligência (intus legere) encarnada que busca com-preender e dar

Sentido a pluridimensionalidade do existir. Serres (2004, p. 68), parafraseando

Aristóteles, enfatiza que “Não existe nada no conhecimento que não tenha estado

primeiro no corpo inteiro” E arremata: “a inteligência permanece inútil e embotada

sem o corpo alado” (SERRES, 2004, p. 141). Sem as asas que estão impregnadas no

corpo, a inteligência, o espírito, ficam impedidos de alçar seus vôos. Sem a seiva do

sangue, sem o húmus de sua materialidade, o espírito fica imobilizado, desprovido de

vitalidade.

Na trama da intercorporeidade, cada corpo singular se constitui e se

descortina, se projeta no mundo, em seus modos próprios de existir, de co-existir,

mediante a teia viva e co-operativa de relação com os outros corpos, em que os

compartilhamentos que vigoram corpo e alma nutrem e fecundam as in-tensidades

de ambos. Gurmendez (1981, p. 38) afirma que “Mi cuerpo al ser abrazado por otro,

adquire presencia para mi, se hace carne o encarna”. A relação com a alteridade,

com a corporeidade do outro, afirma minha própria existência, realça minha condição

de ser coexistente e interdependente, no fluxo sinérgico da intercorporeidade. O laço

do abraço que nos entrelaça com os outros se desborda no estado de bem estar, de

vibração fraternal – de fraternura – em que o corpo floreja com seu semblante

gracioso.

Nesse horizonte compreensivo, o corpo é concebido como um ser andrógino,

constituído, originária e organicamente, como estofo biocultural e simbólico,

configurado pelos matizes que entrelaçam os princípios do masculino (animus) e do

feminino (anima), de luzes (solar) e de sombras (lunar), do apolíneo e do dionisíaco.

Plasmada pela dinâmica coexistencial que entrelaça carne (terra) e espírito (céu), a

corporeidade potencializa a fruição in-tensiva da inteireza do ser-sendo-com. Fruição

que ocorre mediante os feixes que plasmam o existir humano em sua pregnância

anímica. Assim, a plasticidade simbiótica da corporeidade constela o dinamismo que

compõe as in-tensidades da inteireza de nossa androginia matizada de ambigüidades

e de polifonias.

87

02.2 - Da Afetividade

O homem não conhece a si mesmo, a não serpelas afecções de seu corpo e pelas idéias destas.

Espinosa

As emoções que nos originaram não foram asde agressão, de competição, mas foram as emoções

do amor, da co-laboração, da co-participação.

Humberto Maturana

A sensação é a alma do mundo.

Clarice Lispector

A afetividade nos constitui e nos estrutura como humanos, plasmados de

húmus, como expressão do humor, dos estados de ânimo que se projetam mediante

a plasticidade dos impulsos de nossas afecções. Plasticidade que é composta pelo

fluxo das sensações, das emoções e dos sentimentos que nos dão vitalidade, que

performam a pregnância da corporeidade humana, de nossa constituição anímica.

Romero (2001, p. 41) acentua que “os estados de ânimo revelam a forma de

sintonizar e de encontrar-se o sujeito no mundo, forma que estabelece um

verdadeiro clima anímico em nosso espaço vivencial”. Com a movência de seus

impulsos, as afecções se originam do estado de pregnância do ser-sendo, e nos

compelem no suceder das ações cotidianas, na multiplicidade dos matizes de sua

cromaticidade, de sua animosidade.

O vocábulo afetividade se deriva de afeto, de afeição. Afeição, afecção, se

origina do latim affectione, affectatio onis, que se traduz em ser e estar tocado por

algo, pelas coisas; ser movido e co-movido interna e externamente. Traduz uma

“impresión interior que se produce por algo, originando un cambio o mudanza”

(ROJAS, 1987, p. 13). Impressão interior que se desdobra nas expressões exteriores

de nossos gestos e atitudes. Quiroga (2001, p. 16) assevera que “La capacidad

afectiva consiste en la aptitud para ser modificado interiormente por la realidad

externa: de ser afectado por ella” através de nossos modos sencientes de estar

sendo na realidade vivida/vivente.

A afetividade traduz estado de dis-posição da alma, de nosso ser sensível,

biocultural, com sua compleição orgânica e simbólica, em que as emoções e

sentimentos são mobilizados e se expressam dos modos mais diversos, com seus

movimentos de dores e de prazeres, de tristezas e de alegrias, de simpatia e de

88

empatia, de acolhimento e de repulsão etc. Assim, a afetividade se constitui como

território vasto, marcado por sua complexidade e sinuosidade, que é composto pelo

fluxo das emoções e dos sentimentos como estados sensíveis e anímicos que

mobilizam a singularidade de nossa corporeidade, de nossa condição

bioculturalmente humana. Estados que se manifestam na flutuação de sua

pregnância traduzindo os arcos tensoriais que fremem na nervura da carne e nos

feixes do espírito através da cadência de seus ritmos ondeantes.

Os sistemas sinestésicos de nossa sensitividade formados pelos cinco sentidos

e pelos processos mais sutis de percepção que daí se descortinam constituem a

esfera do “multissensorial” (ZUKAV, 1992). Esses sistemas são interpelados pela

plasticidade dinâmica dos fenômenos, sendo, assim, afetados pelos mesmos. Dessa

forma, nosso ser físico, psíquico e biocultural/simbólico, expressa uma diversidade de

estados afetivos que se manifestam, nas vicissitudes do vivido/vivente, mediante a

fibra in-tensiva das emoções e dos sentimentos. As manifestações dos mesmos

tomam características e tonalidades bastante diversificadas de acordo com o fluxo, a

intensidade e a qualidade de cada momento, de cada experiência vivida, e da

condição de relação que cada um estabelece com sua estrutura afetiva. Assim, as

afecções podem se expressar de modo mais aberto e amoroso, ou de modo mais

fechado e odioso, bem como, na interrelação in-tensiva dessas tonalidades,

simultânea e alternadamente.

As emoções e os sentimentos

Emoção origina-se do latim emotio onis, emovere, mover, mover-se, estar em

movimento, ser movido e co-movido pelo fluxo dos fenômenos do existir. As

emoções apresentam um “estado de ánimo asociado con una conmoción física”

(ROJAS, 1987, p. 21) e se revelam através de atitudes externas tradutoras dos

estados de afecção que nos movem e se projetam através das mais diversas

atitudes; são marcadas por instabilidades e tremores, por equilíbrios instáveis,

desequilibrações e reequilibrações em suas manifestações ondeantes.

Maturana (2001b, p. 15) enfatiza que as “emoções são disposições corporais

dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação em que nos movemos”.

Nossas ações são movidas pelos influxos tensivos das emoções com a diversidade de

seus movimentos que impulsionam e estruturam.

Gurmendez (1981, p. 55) considera que “La emoción está constituída por un

temblor y una sacudida orgánica”. Os tremores das emoções cadenciam os fluxos

dos movimentos que impulsionam e animam nossa corporeidade, nosso ser sensível.

89

A emoção é uma comoção orgânica que se processa internamente e se

plasma externamente. “Emocionar-se é sentir-se atingido e impactado pelos eventos

(ou por situação-estímulo) externos (atuais) ou internos (lembrados, imaginados)”

(ROMERO, 2001, p. 41). As emoções são alterações somáticas que, com suas

flutuações e in-tensidades, se projetam nos gestos e movimentos físicos de nossa

corporeidade de modo imediato e súbito. Em sua plasticidade visível, elas tendem a

se manifestar com agudeza e fugacidade.

Como afirma Rojas (1987, p. 47), “Las emociónes son concequencias de las

valoraciones cognitivas”. Somos co-movidos pelas coisas e fenômenos a partir de

nossos repertórios de valores, de nossas cosmovisões, de nossos modos de estar-

sendo-no-mundo-com-os-outros.

Sentimento origina-se do latim sentire que conota perceber pelos sentidos,

dar-se conta da plasticidade das coisas, dos fenômenos; experimentar e

compreender de modo multissensorial.

O sentimento tende a ser mais difuso que as emoções e “se alarga mas en el

tiempo (...) tiene más permanencia” (ROJAS, 1987, p. 60). Penetra com mais

intensidade nas esferas espácio-temporais, nos acervos dos imaginários, das idéias e

crenças; se instala com significativa profundidade e duração.

Damásio (2004, p. 15) assevera que “os sentimentos são a expressão do

florescimento ou do sofrimento humano, na mente e no corpo”. En-volvem a

inteireza dinâmica de nosso ser pregnante e revelam os estados de humor de nosso

existir, na intimidade de suas expressões viscerais. Assim, ressoam os murmúrios e

silêncios internos de nossa condição demasiadamente humana, em suas vibrações

sensíveis.

Os sentimentos, como expressão de estados de dis-posição mais in-tensivos e

alargados de nosso campo afetivo, incidem na criação de vínculos e de laços en-

volventes que interligam os indivíduos. São expressões ligantes que nos unem às

coisas e, sobretudo, aos seres humanos. São elos e feixes que fomentam e nutrem os

afetos. Esses afetos matizam as relações interpessoais mediante um campo

magnético que nos sinergiza e entrelaça.

Barbier (1993, p. 2000) assevera que “O sentimento é uma espécie de

compreensão intuitivo-afetiva da complexidade da realidade”. Traduz-se em dis-

posição, em estado de receptividade que nos permite sermos afetados pelas coisas,

pelos outros ao estabelecermos com estes uma relação de acolhimento e de fruição

de suas in-tensidades nas texturas de nossa condição de seres bioculturais. “O

sentimento é uma forma sutil de consciência desperta” (BARBIER, 1993, p. 204).

Consciência que implica numa abertura alargada e desvelosa da

90

pentassensorialidade e da multissensorialidade que perfazem nossa corporeidade e

nossa espiritualidade.

Gurmendez (1981, p. 86) afirma que

Los sentimientos son interiorizaciones de emociones, o sea, sentidos espirituales y materiales que se funden (...) son realidades interiores, subjetivas, espirituales, son sentidos experimentados, sensibles porque sólo podemos sentir con el cuerpo.

Destarte, os sentimentos estão impregnados no pulsar de nossa corporeidade,

e, de modo implicado, no vibrar de nosso elã vital, de nossa espiritualidade.

Os sentimentos são portadores de intenções e de valores que envolvem a

presença da dimensão cognitiva. São ressonâncias in-tensivas de nossos repertórios

culturais, de nosso senso de compreensão do mundo. Sentimos alegria ou tristeza a

partir do universo de valores que constituem nossos repertórios culturais marcados

por crenças, sentires e cosmovisões singulares. Dessa forma, os modos de expressar

sentimentos se diversificam de acordo com as diferentes tradições culturais. Os

sentimentos estão eivados de ethos, dos valores e sentires subterrâneos que

constituem a cepa de nossa existencialidade, dos tons de nossas singularidades e

diversidades culturais. Quiroga (2001, p. 153) afirma que “hay sentimientos

comunes, universales pero se manifiestan en cada cultura con su modalización

específica”, com suas formas próprias de expressão.

Na pregnância do existir cotidiano, tanto as emoções como os sentimentos,

em sua multiplicidade de formas expressivas, como potências que apresentam

tonalidades vitais, também podem ser canalizados de modo compressivo

desembocando em processos de destrutividade e de barbárie – canalização que

acontece com frequência no seio de nossa tradição cultural com seus modelos

patriarcais e mecanicistas que denegam e atrofiam a fruição da afetividade.

A compressão da afetividade

A afetividade humana foi bastante denegada e comprimida em nosso processo

civilizatório com a supremacia dos paradigmas de cunho patriarcal e tecnocientífico

que superestimam a funcionalidade das expressões lógico-formais, com suas leis

abstratas e incorpóreas. As dimensões caracterizadas como racionais, como

expressão do “masculino”, com suas modulações técnico-instrumentais, foram

privilegiadas, enquanto que as expressões da afetividade, da corporeidade, com suas

sensações, emoções e sentires foram, em grande medida, confinadas a processos de

recalcamento e interdição em nossa vida cotidiana. Nos tornamos, de certa forma,

especialistas na esfera do pensamento abstrato, do técnico-funcional – da

91

externidade – e analfabetos na vivência de nossos afetos, de nossas emoções e

sentimentos – da internidade.

No tratamento semântico dado ao próprio vocábulo afecção, tanto pelos

dicionários, como nas articulações verbais cotidianas, ocorre uma certa prevalência

da vertente que a considera como expressão daquilo que é enfermiço. O pathos,

como já vimos, de modo geral, foi reduzido a estado de perturbação patológica, foi

revestido de um caráter pejorativo, sendo até demonizado. Assim, privilegia-se as

posturas que expressam apatia e frieza entre as pessoas. Essas posturas traduzem a

predominância de atitudes reativas que desqualificam as expressões pregnantes e

anímicas da afetividade humana.

O descuido para com o campo de nossa afetividade, como expressão visceral

e constitutiva da radicalidade de nosso existir pregnante, incide em processos

danosos e devastadores. Se não cuidamos com desvelo de nossas emoções e

sentimentos, tendemos a canalizá-los meramente pela força dos instintos

vegetativos. Dessa forma, podemos ser escravizados pelos mesmos. O recalque das

expressões afetivas tende a cercear a singularidade dos desejos mais íntimos, as

potencialidades criantes, o elã da amorosidade. Assim, forjam-se atitudes marcadas

pela defensividade e por ressentimentos, tingidas pelo medo e pelo encolhimento,

que impedem a expansão e a expressão livre dos sentimentos mais internos. Esse

estado de compressão e de empolação da afetividade projeta armaduras que

desembocam em atitudes mecânicas com a denegação das dimensões profundas da

singularidade humana. Dessa forma, nossas atitudes são contaminadas por

ressentimentos, apegos etc. que, se descuidados, implicam em processos que

dilapidam a teia do ser-sendo-com.

Por outro lado, ocorrem posturas excêntricas que extremam a esfera da

afetividade – um certo afetivismo – através dos apelos consumistas que redundam na

canalização e no controle mecanizado das emoções, dos sentires, através dos

processos de manipulação e de empolação dos mesmos para fins utilitários. O

emplastamento das emoções e sentimentos – da afetividade humana –, através dos

artifícios do consumismo, redunda em atitudes meramente instintivas que

domesticam e empobrecem a mesma, que a canalizam de modo grotesco com a

desqualificação de seus impulsos vitais. A expressão artificial das afecções se traduz

em seu esvaziamento se consideramos que as mesmas são formas e estados

pregnantes que emergem, organicamente, das dimensões mais íntimas de cada ser,

das relações interpessoais, no elã de seu pathos seminal.

A programação funcional das afecções, por meio das instituições que operam

com os diversos dispositivos midiáticos, bem como pelas diversas leis e estatutos de

diversas formas de poderes instituídos, com seu cunho, tanto consumista, por parte

92

daquelas, como moralista e compressivo, por parte destes, pretende reduzir os

indivíduos à condição de apatia, a seres docilizados, que, assim, se despotencializam

do elã criador de suas capacidades afetivas. Dessa forma, estes são expropriados da

feição dos sentires próprios de suas singularidades e se convertem em seres

vulneráveis que facilmente podem ser manipulados pelas estruturas dos poderes

instituídos (religioso, social, econômico...). Poderes que, de modo geral, pretendem

converter os indivíduos em “massa de manobra”.

Os ascetismos e purismos difundidos pelas instituições religiosas etc

desbotam a tonalidade vívida da afetividade com a denegação e o encolhimento da

mesma. Dessa forma, os indivíduos tendem a se tornar defensivos e inseguros

manifestando atitudes de frieza e apatia. Nessa perspectiva, através de posturas

imbuídas de preconceitos, as afecções são consideradas como expressão de

impurezas, e, assim, devem ser comprimidas e denegadas.

O elã pregnante da afetividade

A afetividade está diretamente vinculada ao pathos que traduz padecer, ser e

estar afetado e mobilizado por; como paixão que nos perturba e co-move na trama

do existir cotidiano. Rojas (1987, p. 18) assevera que “La afectividad es el modo de

como somos afectados interiormente por las circunstâncias que se producen al

nuestro alrededor” (grifos do autor). O pathos que constitui a afetividade se expressa

mediante o ritmo de seus fluxos tensoriais, com suas in-tensidades e movências que

atravessam as texturas pregnantes da corporeidade.

Os rasgos do pathos dinamizador da afetividade são volventes, en-volventes.

Nos envolvem por inteiro e nos precipitam em espasmos e estados in-tensivos de

vivência do ser-sendo, mediante o pulsar das sensações com seus ritmos

cambiantes. Espinosa (1997, p. 348) assevera que “a alma é dominada por alguma

afecção, o corpo é simultaneamente afetado por uma modificação pela qual se

aumenta ou diminui o seu poder de agir”. As afecções atravessam e entrecruzam

corpo e alma em movimentos e intercursos pregnantes e anímicos.

A força, a potência movente do pathos, das paixões, dos afetos – das emoções

e sentimentos –, tanto podem ser articulados e mobilizados com simpatia e

amorosidade, para propósitos altivos, como também com indiferença e odiosidade,

para propósitos mesquinhos. Depende do modo como atuamos e dos fins que

animam nossas posturas. Podemos ser co-movidos pelo pathos afirmador do elã do

existir com suas potencialidades criantes, ou por um pathos lacerador do existir, com

sua potência dilapidante. Nas encruzilhadas dos fluxos existenciais, marcadas por

ambigüidades e contradições, essas dimensões do pathos tendem também a se

93

entrecruzar e desdobrar processos dualéticos diversos nas trajetórias ambivalentes

do humano, mediante a interrelação dos sentires opostos.

A afetividade, como “integración de capacidades vegetativas, sensibles y

intelectuales” (QUIROGA, 2001, p. 17), se compõe dessa rede complexa e dinâmica

de emoções, de sentimentos e de valores que entretecem a nervura do existir

encarnado. As expressões pregnantes do sentir nos co-movem no fluxo das ações

cotidianas e nos impulsionam para atitudes que podem apresentar, de modo

pluriforme, tonalidades das mais diversas, como vimos anteriormente. Como realça

Quiroga (2001, p. 77), “Las experiencias afectivas incluyen en sí mismas una

valoración cognoscitiva, un conocimiento experiencial”. Ou seja, a teia polifônica de

nossa afetividade é tingida pelo matiz dos valores que performam nosso existir. Os

valores são marcados pela cromaticidade das estampas de nossa afetividade, pelo

humor, pela energia vital de nossas emoções e sentimentos.

A plasticidade das afecções, dos impulsos sensíveis, se desdobra numa

multiplicidade de formas e de movimentos que conduzem nossas atitudes, tanto na

esfera do orgânico (corpóreo), como na do psíquico (anímico), como instâncias

coexistentes. Essa plasticidade é semovente, se plasma na nervura de nossa

corporeidade, de nossas ações contingentes. Schiller (1995, p. 103) realça que “O

impulso sensível desperta com a experiência da vida”. É na trama da experiência

vivida, das curvaturas das contingências, que desfiamos e bordamos o impulso

sensível de nossa afetividade.

Em nosso destino biocultural, as coisas do mundo, a dinâmica dos fenômenos

da vida, do cotidiano vivido/vivente, nos tocam e interpelam, nos desafiam e co-

movem através de nossos sensos perceptivos, de nossa percepção sensorial, dos

perceptos do corpo e do espírito que se articulam e se interpenetram de modo

coexistencial. Os afetos nos implicam diretamente com o mundo vivido dando in-

tensidade à dinâmica de nossas relações com o mesmo.

Cyrulnik (1995, p. 8) pontua que “a forma do mundo percebido depende da

forma do aparelho perceptivo”. É mediante a dis-posição da sensorialidade, de

nossos perceptos, de nossos receptores sensíveis, portanto, de nosso estado

afeccional, que percebemos e sentimos com in-tensidade a cromaticidade, as

texturas e a porosidade do real, das coisas do mundo, em suas policromias e

polifonias mestiças. O mundo, para cada um de nós, tem a cromaticidade de nossas

disposições afetivas. A percepção dos sentidos, o modo como sedimentamos essas

disposições afetivas, instituem e projetam os significados e os Sentidos das coisas,

do existir, do co-existir.

Ao atravessarmos o mundo, somos co-movidos pelos impulsos de nossas

potências afetivas em sua multiplicidade de modos expressivos. Espinosa (1997, p.

94

373) afirma que “A alegria é uma afecção pela qual se aumenta ou favorece a

potência de agir do corpo; a tristeza, pelo contrário, é uma afecção pela qual se

diminui ou entrava a potência”. Cada travessia é configurada pelos matizes das

diferentes in-tensidades que co-movem o pathos.

Nascemos, como seres humanos, com potencialidades diversas que

possibilitam a articulação de nossas afecções. Porém, se não cuidamos e

garimpamos com desvelo de nossos processos afeccionais, podemos nos confinar à

mera condição zoológica, aos instintos primários de sobrevivência da vida vegetativa

mediante atitudes de caráter meramente reprodutivo. Dessa forma, restringimos e

cerceamos nossas potencialidades sensoriais que proporcionam o desdobramento

das afecções, na perspectiva de expansão e de expressão criante das mesmas.

Cyrulnik (1997, p. 289) pontua que “o homem é o único animal capaz de

escapar à condição animal”. Assim, se não escapamos dessa condição estritamente

animal, tendemos a nos barbarizar, a nos reduzir a atitudes meramente instintivas.

No ser humano, o instinto isolado e desprovido dos contornos do sensível tende a

desembocar em processos de crueldade e de barbarização.

As experiências afetivas, como vimos, são in-tensamente pregnantes. Salvo

quando comprimimos e anestesiamos as afecções e provocamos processos diversos

de retenção e de represamento. Porém, mesmo nessas circunstâncias, não demora

muito e essas emoções e sentimentos comprimidos tendem a se rebelar, de modo

escapatório e com ostensividade, implosiva e/ou explosivamente.

As expressões dos desejos, dos sentimentos de alegria, de tristeza etc. se

manifestam, nas texturas de nossa corporeidade, com seus movimentos e ritmos

internos e externos que perturbam e desinstalam, que arrepiam e co-movem. São

experiências encarnadas, embaraçadas na dinâmica in-tensiva do vivido, das ações

vividas cotidianamente. São expressões vitais que embalam cada vivente na trama

transversal de suas vivências mais singulares e interpessoais.

É através dos repertórios afetivos, do desbordar aberto e livre de nossas

emoções e sentimentos que nos espantamos e nos co-movemos diante dos desafios

do existir, das in-tensidades das contingências. A fibra do pathos que compõe a

afetividade nos provoca espanto e admiração, nos faz exclamar e ser tocados com os

rasgos e lampejos do existir humano, das relações interpessoais, dos fenômenos do

mundo. De modo geral, a condição de ser pático implica em ser criante, em

vivacidade, enquanto que a condição de ser apático incide em posturas vegetativas,

em passividade. Cyrulnik (1997, p. 200) afirma que “Uma tensão crescente cria em

nós um delicioso mal-estar que nos leva à busca”. É mediante o fluxo tensorial de

nossas afecções que somos impelidos a estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, a nos

enredar pelos desafios que mobilizam e interpelam nossa imaginação criante.

95

As expressões de nossas afecções emergem na dinamicidade de nossa teia de

relações com o mundo, desde dentro da singularidade de nossos estados sensoriais

internos e in-tensivos e, de modo implicado, se projetam em nossos estados externos

e ex-tensivos. As afecções são impansivas, revolvem o dentro de nossa textura

psicossomática, e, de modo implicado, são também expansivas, tanto no que se

refere a seus alargamentos qualitativos, como na sua jorrância externamente visível.

O fremir de nossas afecções, mediante o feixe magnético de suas vibrações in-

tensivas e agregadoras, nos en-volve, nos simpatiza e nos empatiza uns com os

outros. Assim, podemos expressar o tônus dos sentires que nos cumpliciza e

entrelaça através dos sentimentos de ternura e cordialidade. A afetividade, em suas

potencialidades afirmadoras da vida, nos faz imergir nos desvãos das inutilezas do

existir, do âmago do qualitativo, das coisas que não têm preço e que traduzem

incomensurabilidade. Coisas que, desse modo, não podem ser medidas e

quantificadas, nem vendidas e compradas. Coisas que só podem ser sentidas na

esfera do inefável: a generosidade, a contenteza, o amor...

Podemos compreender a afetividade, em suas expressões de afirmação da

vida, como uma teia pulsional que, com o cromatismo de nossos afetos, pode nos

entrelaçar uns com os outros mediante a sinergia en-volvente do abraço que nos une

e faz compartilhar os segredos finos do coração, das coisas que aproximam e

amorizam. Espinosa (1997, p. 404) desborda: “quanto maior a alegria de que somos

afetados, tanto maior é a perfeição a que passamos”. Os sentimentos de exultância

desbordam estados de criação que implicam em magnitude e alumbramento.

O Sensus, em sua acepção de sensação, de expressão sensorial, dá vigor às

ações humanas na pregnância das texturas da corporeidade configurada por nossos

processos afetivos. Duarte Jr. (2001, p. 176) afirma que “Sentir o mundo consiste,

primordialmente, em sentir aquela sua porção que tenho ao meu redor, para que

então qualquer pensamento e raciocínio abstrato acerca dele possa acontecer a

partir de bases concretas e, antes de tudo, sensíveis”. A afetividade, o sensível, se

presentifica na concretude do mundo vivido/vivente, na plasticidade orgânica das

experiências cotidianas do ser-sendo.

As escorrências das afecções dão ritmo e cromaticidade às vicissitudes

humanas. Sem os matizes e a seiva da afetividade, nosso fazer se torna descorado.

As in-tensidades de nossas expressões afetivas dão essa plasticidade vigorosa à

dinâmica do existir. Plasticidade que, assim, plasma o elã vital na pregnância de

nossa corporeidade e infunde o estado de humor anímico. Humor (humore) como

seiva que vivifica, como umidade que fecunda. A “substância” das emoções e dos

sentimentos constitui o vigor do húmus. Gurmendez (1981, p. 14) afirma que “Somos

96

desde el origen, seres sensitivos, es decir, que nuestros sentidos están abiertos,

impregnados de húmus terrestre” (grifos do autor), do humor que viceja.

A textura pregnante da afetividade compõe a compleição de nossa estrutura

psíquica, da singularidade e da feição de nosso espectro existencial na policromia de

suas expressões. O pulsar de nossas sensações, conduzido de modo despojado, nos

dis-põe para os elos de implicação com os outros mediante a fruição dos sentimentos

que despontam da cadência rítmica do coração. Os feixes da afetividade nos

cumplicizam uns com os outros, podem nos entrelaçar na sinergia e no

compartilhamento de nossos sonhos e paixões, de Sentidos con-sentidos.

Na proporção em que cuidamos de nossa afetividade composta das

expressões constitutivas do húmus, do humor que anima o existir humano, podemos

potencializar nossas emoções e sentimentos como impulsos vitais, como feixes

anímicos que nos proporcionam vivacidade e amorosidade; que nos impulsionam a

processos de buscas e de descobertas que animam e dão Sentidos ao existir. Abertos

para o fluxo dinâmico de nossas sensações e sentires, podemos aprender a deixá-los

fluir criativamente na in-tensidade dos desejos e paixões; a nos en-volver com os

outros no compartilhar de sentimentos que agregam e fazem celebrar as sagas do

viver na fruição da cromaticidade de seus tons multicores. Essas estampas mestiças

da afetividade, mediante os entrelaces das teias coletivas, dão alumbramento ao

existir humano.

O cuidado com a fruição da afetividade se configura como postura

fundamental e imprescindível nos processos de construção do conhecimento, do

saber. Morin (2000, p. 20), proclama que

no mundo mamífero e, sobretudo, no mundo humano, o desenvolvimento da inteligência é inseparável do mundo da afetividade, isto é, da curiosidade, da paixão, que, por sua vez são a mola da pesquisa filosófica ou científica (...). Há estreita relação entre inteligência e afetividade: a faculdade de raciocinar pode ser diminuída, ou mesmo destruída, pelo déficit de emoção.

Como já fiz referência em outro capítulo, saber origina-se de sapere, sabor. O

conhecimento, o saber desprovido do gosto e da cromaticidade de nossas afecções

se empalidece e se esteriliza. Gurmendez (1981, p. 65) realça: “mis sentidos

materiales son, a la vez, espirituales, humanos”. É mediante a fecundez da relação

de coexistência entre afetividade e cognitividade, entre sentimento (corporeidade) e

pensamento (espiritualidade) – a cognitio affectiva – que podemos partejar saberes e

sentires, modos de ser e de estar sendo no mundo, imbuídos de Sentidos

existenciais.

Bárcena (2004, p. 87) afima: “La implicación afectiva con la situación es

esencial, aunque también el distanciamento congitivo” (grifos do autor). Sem

implicação afetiva nosso vínculo com as coisas, com o conhecimento/saber perde

97

Sentido, se torna mecânico; se converte num vínculo desumanizado porque

desprovido de húmus, do humor que vigora. Aristóteles ([19__], p. 836) arremata: “Es

cierto que no se produce sin la sensación, y sin esta no hay concepción”. As emoções

e os sentimentos – a afetividade – não apenas impulsionam e dão vigor às nossas

concepções e idéias, são também estruturantes das mesmas.

Os afetos são tecidos por uma teia dinâmica de permeabilidade que

proporciona suas interpenetrações e que os tornam co-operativos. Essa dinâmica de

permeabilidade os entrelaça, de modo flexível e in-tensivo, proporcionando fluxos de

alternâncias e de alterações constantes. O enrijecimento e a contenção das afecções

mutila a pulsão de seu próprio dinamismo, da condição alterativa de sua expressão

rítmica, de seu estado originário.

A simpatia e a empatia

Nenhuma qualidade da natureza humanaé mais importante do que a propensão que temos

para simpatizar uns com os outros.

Hume

O vocábulo simpatia vem do grego sympatheia, em que sym traduz união,

includência e epathon sentir, movência. Assim, simpatia conota sentir com o outro

mediante o participar e o compartir emoções, sentimentos e desejos que incidem no

estabelecer laços de con-sentimento. Scheler (1943, p. 182) afirma que “El acto del

amor es, pues, lo que determina radicalmente con su próprio radio la esfera en que

es posible la simpatía”. É o sentimento ligante do amor que engendra e nutre a

relação de simpatia mediante o acolher compartilhante – a Ordo Amoris.

A simpatia é um fenômeno da afetividade que se descortina mediante a

relação de dis-posição e de abertura de cada indivíduo para o acolhimento do outro,

da alteridade. Sym-pathos revela o estar aberto para acolher e participar das

afecções do outro, de seus movimentos afetivos. A dis-posição para a simpatia supõe

a postura altruísta do estado afetivo de solicitude para o reconhecimento das

expressões da alteridade, dos sentires do outro, em suas singularidades e modos

próprios de sentir.

A simpatia é como o elo, como uma ponte que interliga e aproxima as pessoas

mediante o sentimento de acolhimento e de solidariedade para a escuta e o diálogo,

para a convivialidade. A simpatia emerge da cordialidade que emana do coração

através da vibração de suas cordas que fazem ressoar os sentimentos de

generosidade e de altruísmo através da floração do riso largo que, ternamente,

contagia e aproxima.

98

A empatia, do grego empatheia, em-pathos, conota sentir desde dentro numa

acepção de acolhimento afetivo mais intenso e íntimo através de uma cumplicidade

penetrante para com o outro. Na relação de empatia, o vínculo se tece de modo mais

aproximante em que cada indivíduo se compadece e se envolve com os sentires do

outro, de modo co-implicado. Supõe uma relação de entrelaçamento de afetos na

instauração de redes afetivas que incidem em compartilhamentos íntimos que se

desbordam em relações de trocas e de implicação mútuas.

Cyrulnik (1997, p. 224) enfatiza que a empatia “Em suma, é uma aptidão para

partilhar as acções (passeios, rituais), os afectos (aplaudir, indignar-se) e os

pensamentos (emocionais ou abstractos) do outro”. A empatia estampa sentimentos

de benquerença através da co-presença dos indivíduos no compartilhamento de

quereres e de desejos, de valores e de idéias que matizam as singularidades, que

entretecem a interpessoalidade, a coexistência.

Para Ostrower (1998, p. 26), “Compeender e criar envolve nossa capacidade

de empatia com as coisas” (grifos da autora), nossa dis-posição para uma abertura

in-tensiva que implica em dialogia e acolhimento com as mesmas para que

possamos com-preendê-las com amplitude e de forma penetrante, e, assim,

expressar melhor nossas potências criantes.

As relações de simpatia e de empatia proporcionam teias sinérgicas que

incidem em cumplicidade, em com-paixão, desde as vivências mais específicas e

microfísicas entre os seres humanos, como as mais amplas, em nosso co-

pertencimento planetário – a simpatia do todo de que falavam os estóicos. Simpatia

do todo, que compreende a existência de laços interligantes na dinâmica in-tensiva

entre a multiplicidade de elementos e de seres do cosmos, numa perspectiva de en-

redamentos complementares. Assim, podemos com-preender e articular a

experiência da “solidariedade orgânica” através da juntura que nos simpatiza e nos

empatiza com os seres humanos e com os demais seres do universo; podemos

envidar a com-preensão, a relação co-implicativa nos limiares do entre, do

intermundo, como teia entrelaçada.

A simpatia e a empatia implicam entrar em sintonia com a freqüência

vibratória dos sentires do outro, no cuidado desveloso com este mediante os

sentimentos de com-paixão, de solidariedade e de altruísmo. Implica a coexistência

fra-terna imbuída de ternura e graça. Repetto (1979, p. 193) assevera que “Tanto la

simpatía como la empatía, tienden al conocimiento de los sentimientos, del outro y

de la persona del outro, basado en la afectividad”. As atitudes de simpatia e de

empatia proporcionam, portanto, a com-preensão do outro e a implicação com ele;

insuflam a presença graciosa da alegria e da contenteza que jorram dos entrelaces

anímicos entre os indivíduos.

99

Maturana (2001a, p. 185) afirma que “A origem antropológica do Homo

sapiens não se deu através da competição, mas sim através da cooperação”, e

complementa: “Afirmo que os seres humanos são animais sensuais cooperativos,

entendendo por cooperação um comportamento que implica confiança e estabilidade

nas relações de aceitação mútua” (MATURANA, 2001, p. 239). Desse modo, como

seres humanos somos bioculturalmente “vocacionados” para instaurar relações co-

operativas mediante o compartilhamento de nossas emoções e sentimentos na

composição de nosso existir coexistencial, de nossa amorosidade anímica.

Referindo-se à “escuta sensível”, Barbier (1993, p. 210) explicita que a mesma

“procura compreender por 'empatia'”, como escuta que implica em despojamento

numa atenção auscultante, numa escuta marcada de silêncio que entra “numa

relação com a totalidade do outro, considerado em sua existência dinâmica”

(BARBIER, 1993, p. 212). Uma escuta que se dá a partir da cooperação conjuntiva de

todos os sentidos físicos, e que, assim, os prolonga e ultrapassa se enredando no

chamado “sexto sentido”, numa perspectiva multissensorial que considera a

intuição, as dobras do farejar interno, as dimensões anímicas do ser-sendo.

Para Barbier (2002, p. 94), “A escuta sensível reconhece a aceitação

incondicional do outro” com suas características peculiares, com sua singularidade

irredutível, numa atitude com-preensiva que se destitui da univocidade dos modelos

uniformizantes. Implica em escutar o outro enquanto outro, na plurivocidade de sua

outridade. Mas, também, escuta sensível de si mesmo, de nossos silêncios e ruídos,

das flutuações de nossas emoções e sentimentos.

Quanto mais cuidamos e expandimos os horizontes de nossa afetividade mais

se alarga nossa compreensão do mundo, mais realçamos a cromaticidade das

estampas mestiças de nosso existir, de nosso co-existir, e mais podemos nos

entrelaçar com os outros nas in-tensidades do sentimento amoroso – da fraternura –

que nos fazem imergir nos desvãos da fineza do ser.

100

02.3 – Da Intuição

A intuição comporta muitos graus de intensidade.

Henri Bergson

La intuición percibe relaciones donde la razón veprofusión y disgregación de elementos.

Ángels García Ranz

A sensibilidade intuitiva assenta na lógicado vivente e sua dinâmica orgânica.

Michel Maffesoli

O vocábulo intuição se origina do latim intueri em que in significa dentro e

tueri ver. Assim, intuição conota ver, contemplar, observar desde dentro, desde as

disposições internas de nossas instâncias sensitivas e inconscientes, de nosso senso

pré-reflexivo. Esses perceptos dos sensos internos operam de modo imediato através

de nossa relação direta e pregnante com as coisas, com os fenômenos, e, portanto,

nos levam a insights que trazem os estalos de uma percepção sintética que

vislumbra a plasticidade da inteireza dinâmica dos mesmos. Shultz (1996, p. 15)

assevera que “Sendo primordialmente um processo inconsciente, ela [a intuição]

desafia aquilo que consideramos o raciocínio racional (...) é um processo interior no

qual os dados e informações são sintetizados sem a ajuda de uma calculadora ou de

um fluxograma”.

O senso intuitivo flecha, desde dentro, o coração da experiência, da ação

contingente, mediante suas potencialidades de apreensão das especificidades destas

no conjunto da globalidade dos fenômenos, das coisas. Capta a dinâmica orgânica e

101

viva da realidade, das vicissitudes do existir. Contempla a relação de includência e

de interdependência dinâmica entre parte e todo operando sínteses que com-

preendem a internidade da teia de interrelações que os constituem.

Bergson (1979, p. 14) chama de intuição “a simpatia pela qual nos

transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que ele tem de

único e, conseqüentemente, de inexprimível”. A intuição implica no fluir de nossa

relação de abertura e de acolhimento sim-pático para com o pulsar dos fenômenos e

das coisas para que, assim, possamos apreendê-los e com-preendê-los em suas

singularidades e expressões próprias e originárias.

A percepção intuitiva emerge das texturas sensíveis de vivências penetrantes

traduzindo nossas impressões do mundo vivido, de nossa condição de viventes, em

que somos movidos pelas torrentes das sensações, das emoções, dos sentimentos;

pelo fluxo de nossos instintos e impulsos vitais. Ela se estrutura a partir da juntura,

da conjunção de nossos sentidos, do espectro pentassensorial, na expressão

interligada das intensidades destes, e se prolonga e se expande na configuração do

multissensorial (ZUKAV, 1992). Assim, a intuição se desdobra em processos sutis e

finos de percepção interna constituindo o que se chama de “sexto sentido”, o

“sentido de si”.

A intuição, compreendida como expressão de um sexto sentido, traduz o arco

que agrega e interliga os sentidos físicos e que os desborda, mediante as

constelações das ressonâncias multissensoriais. Daí se origina um campo de

percepção mais agudo que faz despontar novos sensos e estados de percepção.

Dessa forma, podemos atingir Sentidos expansivos em que coexistem

dinamicamente os sentidos físicos e o senso anímico. Esssa coexistência, tramada

com despojamento e desvelo, desemboca na plasmação de Sentidos anímicos que

re-velam a fineza de uma compreensão espirituosa.

Cyrulnik (1997, p. 156) fala do sexto sentido como o “sentido de si”,

conotando uma concepção do ser-sendo que, na composição in-tensiva de sua

inteireza, pressupõe uma compreensão polifônica de que somos estruturalmente

constituídos, de modo co-implicado, de sensitividade e de racionalidade, de

corporeidade e de espiritualidade.

Para Ortega y Gasset (1971, p. 98) “a palavra intuição quererá dizer 'presença

imediata'”. A intuição apreende o coração dos fenômenos do existir, nos fluxos de

sua presentidade imediata, de nossa relação orgânica e direta com as coisas.

Portanto, em sua vigência nascente, originária, e não através de representações

indiretas moduladas por abstração. Sayegh (1998, p. 162) declara que “Intuir é

passar a viver o objeto em si mesmo, e não somente pensá-lo”. Desse modo, a

intuição pode captar a movência das in-tensidades, o elã originante, as curvaturas

102

das continuidades e das descontinuidades dos acontecimentos; se expressa, na

radicalidade da pregnância de seus feixes, desde dentro dos núcleos anímicos do

coração do ser-sendo.

Maffesoli (1998, p. 135) compreende a “intuição como expressão de um

conhecimento orgânico” que faz despontar insights, como lampejos que re-velam

uma “visão interior” contaminada do senso compreensivo, de nossa relação de

implicação orgânica, de enraizamento com o ser das coisas, na fruição dos

acontecimentos, do elã dos Sentidos anímicos. O senso intuitivo surge de nossa

aderência aos fluxos dos fenômenos e das coisas, em seu suceder movente,

mediante uma relação de inerência, de aproximação íntima e imediata com o pulsar

de cada momento. Estrutura-se numa lógica impregnada do pathos existencial que

co-move as in-tensidades de nosso ser vivente em suas impressões e expressões de

claro enigma.

Os processos intuitivos se projetam na pregnância e na imanência de nossos

fluxos de relação direta com o mundo, mediante os influxos de nossas experiências e

do modo em que somos co-movidos por estas; transitam na inteireza in-tensiva de

nossa corporeidade – a sensitividade – e de nosso estado anímico – a espiritualidade

– ao penetrar na dinâmica dos movimentos rítmicos que constituem a trama mestiça

do existir.

Na proporção em que nossos sensos internos, nossos perceptos sensitivos

estão despertos e dis-postos para seguir os fluxos curvos dos sentires, podemos

captar com mais proximidade as intensidades dos fenômenos, os recurvamentos de

suas expressões imponderáveis, em suas lógicas transversais.

A percepção intuitiva tende a apreender, na calidez de cada momento, os

feixes tensoriais das coisas e dos fenômenos, a farejar a plasticidade dos

movimentos e ambigüidades do ser-sendo em seus contornos mais difusos; adentra

pelas suas instâncias incomensuráveis. A intuição leva a cavucar, a penetrar nos

recônditos dos vazios e das opacidades de nossa existencialidade, das sinuosidades

das trajetórias do existir, na escuta de seus silêncios; se configura como uma escuta

co-movente que se processa desde os sentires do coração, do anímico, na

perspectiva de flagrar o ritmo e os enigmas do coração dos fenômenos; como uma

escuta silente que faz ecoar os murmúrios internos do ser, dos fenômenos, e que

penetra em seus estados originários nos flancos das penumbras que compõem as

ambigüidades do existir.

A compreensão intuitiva ocorre mediante as expressões do espectro mais

inconsciente de nosso ser-sendo, no âmbito do pré-reflexivo, do ainda não pensado,

na esfera em que a racionalidade ainda não foi acionada. Emerge das regiões mais

incontornáveis atinando para a escuta e a compreensão do lusco-fusco, do

103

crepuscular, daquilo que escapa à esfera do cálculo, das lógicas iluministas. A

intuição é “Lo que usted sabe, pero ignora que sabe, le afecta mas de lo que sabe”

(MYERS, 2003, p. 80). Assim, um saber senciente que nos afeta de modo implícito,

que penetra nos desvãos do ser-sendo, em suas camadas e territórios de

indeterminação e de imponderabilidade. Um perceber e um sentir que se engendram

dos subterrâneos do existir.

Na proporção em que cuidamos do senso intuitivo, mediante uma atenção

zelosa, podemos perceber e compreender melhor os meandros mais tácitos, as

imponderabilidades que constituem os territórios da sensitividade e do inconsciente

que não são redutíveis às esferas do pensamento analítico. Zukav (1992, p. 63)

afirma que a intuição “Impele-nos a buscar aquilo que não tem nenhuma razão

aparente para que possamos sobreviver (...) serve à criatividade (...) à inspiração”.

Os estalos tocantes do senso intuitivo fazem jorrar os feixes que nos inspiram e

fomentam processos in-tensivos de criação.

Dessa forma, os processos intuitivos inspiram e fomentam as potencialidades

criantes e fecundam o universo imaginal, a imaginação, no desbordar dos fluxos de

criação e de renovação dos Sentidos do existir. Poincaré (apud Abbagnano, 1962, p.

554) assevera que “Com a lógica demonstra-se, mas somente com a intuição

inventa-se”, realçando assim, a relevância da intuição nos processos de criação e de

invenção, do dinamismo criador do ser-sendo.

O senso intuitivo se manifesta a partir de nossa relação aberta e pregnante

com a dinâmica das flutuações dos fluxos tensoriais do existir; se projeta na sua

destinação imprevisível. A dis-posição intuitiva, com seu senso perspicaz de

percepção, apreende as sutilezas dos meandros e dos encurvamentos que plasmam

a vida cotidiana que, de modo geral, passam despercebidos pelo senso de

racionalidade com seus tons de sistematicidade analítica.

Zukav (1992, p. 59) pontua que “Do ponto de vista multissensorial, intuições,

revelações, pressentimentos e inspirações são mensagens da alma”. Assim, a

intuição emerge diretamente dos recônditos da alma, da pregnância das espessuras

do anímico. Penetra, portanto, nos extratos mais sincopados e discretos das texturas

e porosidades das coisas, das escorrências do coração do existir.

Mayr (1989, p. 21), assevera que “La fuerza originaria del espíritu humano no

es racional (dianoia, ratio, Verstand) sino extática, o sea, basada en la intuición

(nous, intellectus)”. A intuição, sendo da esfera do sensitivo, do mântico, se traduz

em potência anímica que, de modo sutil, inspira e nutre o espírito.

A percepção intuitiva contempla o dinamismo da inteireza orgânica dos

fenômenos, das coisas, atravessando as relações intrínsecas de suas redes de

conexões; aponta para a interligação do que foi fragmentado, para o entrelaçar os

104

fios das redes através de sentires e de posturas que religam e vislumbram o

dinamismo da inteireza das coisas. Realça as conexões mais difusas e até invisíveis

que compõem a trama de Sentidos. A intuição é orgânica na medida e na desmedida

em que desponta da nervura in-tensiva das contingências, do coração das

experiências de cada vivente.

Não sendo determinada nem previsível, a intuição aparece no ritmo aleatório

das vicissitudes do ser-sendo, com seus desdobramentos inusitados. Estrutura a

consciência imediata e desperta para que possa perceber os sinais e os indícios

imponderáveis que se manifestam em nossas relações com as contingências do

viver. “Intuir é acompanhar a estrutura do movimento” (SAYEGH, 1998, p. 174). A

intuição é intensamente dinâmica ao se expressar através da plasticidade dos

fenômenos da vida, de nossos modos vivos de relação com o existir, na abertura de

seu suceder transversal.

A intuição, com seu farejar que emana desde dentro dos perceptos mais

íntimos, é da esfera do curvilíneo, da dinamicidade do tempo cíclico do Kairós, como

tempo de sendas, de indeterminação. Tempo que, em seus influxos, potencializa

lampejos inspiradores e oportunidades abertas na eternidade in-tensiva da jorrância

de cada instante (carpe diem). Assim, o senso intuitivo apreende as in-tensidades do

presente, as reentrâncias dos acontecimentos, no ondear de seus movimentos, e em

sua presentidade pregnante.

A intuição traduz sentires penetrantes que flecham o âmago do coração das

coisas humanas ao captar suas dimensões tácitas, suas imponderabilidades. Com

seu farejar garimpante, agrega todos os sentidos, os prolonga e os transborda,

descortinando camadas perceptivas mais sutis. Hogarth (2002, p. 60) fala da intuição

como um sistema tácito “capaz de recoger una amplia variedad de aportaciones

informativas y de conectar con las experiencias pasadas de la persona”. Sistema

tácito que, desse modo, se constitui em repertórios de informações e de Sentidos

que, através de mecanismos inconscientes, mobiliza nossa reserva viva de memória,

nossos sentires mais fundos (sem fundo) em nossas trajetórias cotidianas. E continua

Hogarth (2002, p. 257): “la intuición opera dentro de un sistema complejo de

procesado de informaciones que ha evolucionado a lo largo de millones de años”,

traduzindo assim, a complexidade dos processos perceptivos da condição humana

em seus devires existenciais.

Assim, a intuição incide em processos acurados de observação que, com

desvelo, proporcionam escutas que se aproximam com intimidade das ambigüidades

e dos enigmas do ser-sendo, do estado de fineza do existir anímico. As sensações

suscitadas por nosso senso intuitivo re-velam algo de dentro que se manifesta, com

105

sutileza, de modo difuso, e nos impulsiona, mais inconsciente do que

conscientemente, no rendar das ações cotidianas.

A percepção intuitiva não existe e nem tem Sentido apenas em si e por si

mesma. Ela carece da interrelação dialógica com as outras esferas de percepção do

existir para que nos conduza a modos de compreensão alargados e criadores, aos

Sentidos anímicos. A relação dialógica entre Intuição e Razão (a Razão-Sentido) é

primordial em nossas ações humanas, em nossos processos de compreensão e de

fruição da polifonia dos Sentidos do ser-sendo. Os desdobramentos das impressões e

das percepções proporcionadas pelo senso intuitivo, sem a presença co-participativa

da Razão meditante, podem incidir em posturas que reduzem e desqualificam.

As impressões proporcionadas pela intuição, através das centelhas que

emanam dos perceptos internos, são repertórios inspiradores e nutridores de um

pensamento meditativo e criante. Assim, a cognitio intuitiva se põe como idéia-força

que apresenta pertinência heurística ao se configurar como um conhecimento eivado

do senso racional e do senso intuitivo, da co-presença e da coexistência inspirante e

fecunda destes.

Destarte, o senso intuitivo, com seus modos estruturantes de constituição dos

Sentidos, se prolonga com a co-participação do senso da Razão-Sentido, mediante a

interposição, a relação de coexistência in-tensiva entre ambos, na articulação

vigorosa dos Sentidos do existir. Ambos os sensos se implicam e se enriquecem nas

buscas e formas de compreensão das polifonias do humano, da complexidade da

condição humana. Implicação que se tece mediante os interfluxos dialógicos de in-

tensidades que polemizam e potencializam desdobramentos que alargam e vigoram

os Sentidos.

Merleau-Ponty (1999, p. 515) acentua que “o pensamento formal vive do

pensamento intuitivo (...) o lugar em que a certeza se forma e em que uma verdade

aparece é sempre o pensamento intuitivo”. O pensamento racional, com seu teor de

sistematicidade e de analiticidade, com suas potencialidades criantes, se insurge, de

modo geral, a partir da cepa do senso intuitivo, do farejar interno de nossos modos

de percepção sensível.

A intuição se re-vela quando permitimos que o “estado de inocência”

(KRISHNAMURTI, 1992, p. 39) se expresse. Estado de inocência que se traduz como

dis-posição dos sensos perceptivos desprovidos de preconceitos e de juízos pré-

estabelecidos de modo determinante. Juízos que, assim, impedem a percepção e a

compreensão mais aproximada dos fenômenos do existir, em seus estados

originários, que nos impedem de sorver as in-tensidades do suceder de cada

acontecimento em suas aleatoriedades e indeterminações.

Bergson (1979, p. 114) assevera que

106

Intuição significa, pois, primeiramente consciência, mas consciência imediata, visão que quase não se distingue do objeto visto, conhecimento que é contado e mesmo coincidência. É também consciência alargada, pressionando a borda do inconsciente que cede e que resiste, que se desvenda e que se oculta: por via de rápidas alternâncias de obscuridade e de luz, ela nos faz constatar que o inconsciente lá está.

Portanto, a intuição se traduz, com os estalos de seus insights, como uma

cons-ciência imediata e viva, que se afirma mediante uma com-preensão originária,

em seus modos conjuntivos de expressão. Que, com suas camadas mais

inconscientes, dialoga com as instâncias conscientes, em processos dinâmicos de

interpenetração.

Para Merleau-Ponty (1984, p. 125), “Seria preciso retornar a esta idéia da

proximidade pela distância, da intuição como auscultação ou palpação em

espessura, de uma vista que é vista de si, torção de si e sobre si e que põe em causa

a 'coincidência'”. Assim, a intuição é concebida como expressão aguda do senso

interno que nos leva a auscultar, a tatear e a penetrar nas espessuras e nas torções

dos acontecimentos, nas vicissitudes do ser-sendo, para que possamos sentir e

compreender, com intimidade e intensidade, suas vibrações e texturas, seus fluxos

entrelaçados.

107

02.4 – Do mitopoético

Sempre, imaginar será mais que viver.

Gaston Bachelard

O homem é inacabado, ainda que seja cabal em sua própriainconclusão, e por isso faz poemas, imagens nas quais se realiza e se acaba, sem se acabar nunca de todo.

Octávio Paz

O símbolo surge como restabelecedor do equilíbrio vital. (...) A missão do símbolo é unificar planos heterogêneos de

consciência e ação, sem confundi-los.

Gilbert Durand

02.4.1 - O simbólico

O conhecimento humano, como modo de expressão de significados e

Sentidos, de valores, idéias e sentimentos, se manifesta, na teia dinâmica da cultura,

mediante diversas configurações. Em nossa cultura ocidental, como vimos, tem

predominado a forma de conhecimento que é constituído pelos estatutos da

racionalidade analítica considerada como portadora de precisão e de clarividência.

Tal predominância é marcada, com seus desdobramentos excessivos, por

procedimentos que primam pela retilineidade das lógicas que reduzem a

complexidade do existir, da cultura, a unidimensionalidade de suas modulações.

Esse modelo de conhecimento, estatuído com suas formas conceituais que

exerce supremacia em nossa tradição cultural, tendo como emblemas

paradigmáticos as formas de saberes científico e filosófico modernos, é de grande

relevância para a cultura humana na porporção em que possibilita o entendimento

crítico do mundo, a análise sistemática dos fenômenos, o discernimento das coisas.

Porém, nas fronteiras de seus limites, a esfera da racionalidade analítica não dá

conta da inteireza e da complexidade dos fenômenos da vida e da cultura, com seus

ritmos e movimentos, com seus paradoxos e imponderáveis.

A supremacia do pensamento conceitual reduz as experiências vividas

meramente aos parâmetros de entendimento da racionalidade que se apresenta de

forma descontextualizada da pregnância do cotidiano vivido/vivente. Articula as

operações mentais por instrumentos lógicos que tendem a fragmentar a

110

compreensão do real e a reduzir este ao âmbito da percepção lógico-formal. Como

afirma Cassirer (1997, p. 25): “Há coisas que, em virtude de sua sutileza e de sua

infinita variedade, desafiam toda tentativa de análise lógica”. Notadamente as coisas

da condição humana com a vastidão e a riqueza de suas polifonias e

indeterminações.

Isolado, o pensamento analítico toma contornos bastante abstratos tendendo

a se descarnar e perder o sangue da vitalidade do vivido, da carnalidade da vida, e

se confinar numa estrutura estéril. Cassirer pontua (1994, p. 25):

O pensamento racional, o pensamento lógico e metafísico só são capazes de compreender os objetos que estão livres de contradição e que tenham uma natureza e uma verdade coerentes. Contudo, é precisamente essa homogeneidade que nunca encontramos no homem.

A vida e a cultura humana, na radicalidade de suas formas expressivas, são

tecidas pela trama da heterogeneidade, das contradições e das ambigüidades que

são irredutíveis aos modelos monológicos fundados na homogeneização.

Além do pensamento conceitual, existe também, entre outras possibilidades, o

pensamento simbólico que apresenta características diferenciadas e que pode e

deve co-existir com aquele, mediante relações in-tensivas e fecundas de

complementaridade e de enriquecimentos mútuos. O simbólico se constitui através

de imagens, de símbolos que, em sua composição dinâmica, são prenhes de sentires

e de valores, de crenças e de percepções intuitivas que marcam conjuntamente o

corpo e o espírito, que plasmam a plasticidade do imaginário dos indivíduos.

Em seus primeiros passos e balbucios na esfera do planeta terra, os seres

humanos começaram a constituir modos próprios de expressão, de apresentação e

de representação de suas sensações, de seus espantos e descobertas, de seus

sentires e pensares, através de interpretações e de compreensões circunscritas ao

âmbito pré-reflexivo, mediante a pregnância de sua relação intrínseca com a

experiência vivida. Essas formas expressivas primevas se configuram como símbolos

(desenhos e pinturas rupestres, máscaras etc) que, como liames, unem os

fenômenos, as coisas, ao universo imaginal e compreensivo dos indivíduos; instituem

o homo symbolicus.

Desse modo, os símbolos vão tecendo a rede da cultura, na in-tensidade de

seu dinamismo, como formas expressivas de linguagem que são caudatárias dos

sentires e dos pensares, das crenças e dos valores que povoam o universo

perceptivo e compreensivo dos indivíduos no seio de seus grupos e comunidades. Os

166

símbolos vão tecendo os fios do ethos, da rede simbólica que entretece o

“emaranhado das experiências humanas” (CASSIRER, 1997, p. 48). Emergem

diretamente dos fluxos tensoriais do mundo vivido e são marcados pela presença da

percepção senciente (afecção, intuição...), ao traduzir a força seminal dos Sentidos

da experiência vivida em seu estado nascente – nascem encarnados na nervura do

vivido/vivente.

Creio que seja pertinente pontuar que abordo a temática do símbolo, do

simbólico, a partir dos lastros semânticos da Antropologia e da Hermenêntica

simbólicas, protagonizadas por Gilbert Durand, Mircea Eliade, Ernst Cassirer, Andrés

Ortiz-Osés etc., por considerar que os mesmos se traduzem em abordagens profícuas

para as meditações que descortino. Desse modo, não transito pelos territórios das

abordagens semióticas de Pierce, Eco etc.

Os símbolos são constituídos por imagens que são bordadas a partir da

percepção dos sentidos e da capacidade imaginal dos indivíduos, conjuntamente com

a articulação da consciência compreensiva; gravitam entre as afecções, a intuição e

o pensamento meditativo. Maffesoli (1995, p. 103) assevera que “A imagem é uma

espécie de 'mesocosmo', um mundo do meio entre o macro e o microcosmo”. Para

ele, “a imagem religa, fornece os vínculos, relaciona todos os elementos do dado

mundano entre si” (MAFFESOLI, 1995, p. 115). As imagens dos símbolos apresentam

a percepção dos sentidos, da intuição, urdidas pelo imaginário – pela imaginação – e,

portanto, se manifestam impregnadas da plasticidade e do vigor da experiência

vivida/vivente se alojando nas camadas mais internas do inconsciente humano.

Eliade (1991, p. 11) afirma que

as imagens são por si próprias estruturas multivalentes. Se o espírito utiliza as imagens para captar a realidade das coisas, é exatamente porque essa realidade se manifesta de maneira contraditória, e conseqüentemente não poderia ser expressada por conceitos.

A imagem é portadora de um ímã que atrai e liga, que interliga e religa as

margens separadas dos limites que são estabelecidos pelas dicotomias

fragmentadoras, pela linguagem lógico-formal. Assim, a imagem anuncia os

agregados de Sentidos que se desbordam na terceira margem, que inclui isto e

aquilo. Ou seja, a imagem proporciona a apreensão das coisas, dos fenômenos, do

existir, desde dentro de suas teias entrelaçadas, de suas ambigüidades e polifonias,

em seu fundo sem fundo penetrante, interpenetrante.

167

Para Allean (apud LIMA, 1983, p. 39) o símbolo é “ao mesmo tempo um foco

de acumulação e de concentração das imagens e de suas cargas afetivas e

emocionais, um vetor de orientação analógica da intuição”. No desbordamento de

suas imagens, o símbolo traduz os feixes de nosso senso intuitivo tingido da

cromaticidade de nossas afecções (emoções e sentimentos) que emanam das in-

tensidades das vivências cotidianas, das instâncias mais sensitivas e inconscientes

de nossas relações com o mundo. Traduz, também, de modo entrecruzado com

aqueles, as expressões da consciência compreensiva, do pensamento meditativo.

Em sua gênese etimológica grega, o vocábulo símbolo origina-se de

symballéin que agrega os termos sym - unir, juntar, e bálléin - lançar, projetar.

Assim, a expressão símbolo conota um constructo, um dispositivo que une e integra

os Sentidos. Configura a reunião, a interseção de significados e de Sentidos

múltiplos. Entrelaça e religa os pólos e as instâncias diversas dos fenômenos; os

interpolariza. O símbolo lança e projeta as coisas juntas, agrega elementos e

dimensões que compõem a multiplicidade dos Sentidos que emanam dos fenômenos,

das coisas, dos seres.

Ortiz-Osés (2003, p. 83) verseja que “El símbolo está impregnado o preñado

de sentido”. Para ele, o “simbólico es por tanto la comprensión de las cosas por el

alma humana, la interpretación anímica del mundo, la intelección del ser por nuestra

razón afectiva” (ORTIZ-OSÉS, 2003, p. 31). A plasticidade dos símbolos apresenta

com maior proximidade os Sentidos com-preendidos pelos indivíduos, em sua relação

de pregnância com as coisas, na proporção em que os mesmos penetram no coração

das mesmas, em que falam diretamente à alma e ao coração humanos, atingindo,

portanto, seus desvãos incontornáveis. Maffesoli (1998, p. 98) afirma que o símbolo

traz um “saber incorporado”, encarnado nas vicissitudes do viver, do vivido, em seu

“enraizamento dinâmico”. O símbolo fomenta a includência dessa vertente sinérgica

em que os campos de energia e de Sentidos se interligam e compartilham sínteses

integradoras; nos conecta e nos religa às coisas e aos fenômenos envolvendo a

inteireza in-tensiva do ser-sendo mediante a interpenetração de nossos sensos

(afecções, intuição, razão-sentido...).

Ruiz (2003, p. 134) assevera que o “símbolo tem como potencialidade a

conjunção das partes plasmadas numa nova unidade significativa”. O símbolo, como

amálgama, agrega e religa os fragmentos levando à recomposição das coisas, dos

fenômenos, da vida, reintegrando assim, a dinâmica de suas inteirezas. Nos

proporciona a vivência da relação de implicação direta e originária com o existir e o

168

co-existir em que estabelecemos vínculos de efetividade e de afetividade mais

próximos nos processos de coexistência, de criação e de recriação da cultura.

Afirmando a pertinência do pensamento simbólico, Eliade (1991, p. 8)

proclama que “o pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do

poeta ou do desequilibrado: ele é consubstancial ao ser humano; precede a

linguagem discursiva”, sendo portanto, inaugural na estruturação e na constituição

da condição humana, dos Sentidos humanos.

No pensamento analítico predomina a postura explicativa, a análise lógico-

formal, em que os fenômenos e as coisas tendem a se reduzir à monossemia dos

formatos de seus modelos de entendimento descambando nas dicotomias entre o ser

humano e as coisas, o vivido e o pensado. No pensamento simbólico, com seus

contornos agregantes, predomina a postura implicativa em que os fenômenos e as

coisas são compreendidos nas curvas de sua complexidade, em suas interligações e

polissemias. Nessa esfera, as relações entre o dentro e o fora, o vivido e o pensado

etc., ocorrem de modo inclusivo; os Sentidos são sorvidos e compreendidos no

dinamismo da teia das relações.

O universo do simbólico se fundamenta no fundo sem fundo do indeterminado

transitando pelos itinerários da incerteza, da complexidade da cultura, do existir

humano. Imbuído dessa compreensão, o pensamento simbólico é nômade, está

sempre a caminho, fazendo-se e refazendo-se, nos fluxos do ser-sendo, em sua

eterna inconclusão. O símbolo apresenta o ritmo dos movimentos do vivido na

ondulação da polifonia de seus Sentidos que não se reduzem à fixidez dos modelos

deterministas. Ultrapassa a mesura no desbordar de sua desmesura. Visualiza as

luzes e também as sombras dos fenômenos, da teia da vida. Busca a não

obscuridade, mas também descansa e relaxa nas sombras do caminho. Enreda-se

pelas penumbras.

O pensamento conceitual, em sua expressão isolada, tende a se enrijecer, a se

alojar no siso. O pensamento simbólico transita mais na mobilidade, no riso. O

pensamento conceitual tende mais a monologia e a disjunção. O pensamento

simbólico tende mais a dialogia e a conjunção. O pensamento conceitual tende a

apressar-se em arremates uniformes, na instituição de certezas e conclusões. O

pensamento simbólico convive com a probabilidade e a inconclusão, com a incerteza

e a multiplicidade de caminhos e de Sentidos. O pensamento conceitual tende mais

a generaliidade e a abstração. O pensamento simbólico cuida da relação de

interpenetração e de interdependência entre a parte e o todo, entre a materialidade

169

e a espiritualidade. Está mais atento às relações, às sutilezas e às reentrâncias da

concretude do vivido.

Eliade (1991, p. 8 e 9) pontua que

O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser.

Ou seja, proporciona a imersão na intimidade das camadas profundas do ser-

sendo ao penetrar nos recônditos da condição humana, em sua incontornabilidade,

em seus estados mais inconscientes.

A lógica binária que exclui os diferentes, as contradições, tem sido

predominante no pensamento conceitual, enquanto que o pensamento simbólico,

com transversalidade, opera a inclusão na escuta e na compreensão das diferenças,

dos contraditórios. O pensamento conceitual se fundamenta mais na ordem. O

pensamento simbólico acentua mais a dialogia entre ordem e caos. O pensamento

conceitual privilegia e superestima a inteligência racional. O pensamento simbólico

vislumbra as “múltiplas inteligências” (racional, emocional, intuitiva...). O

pensamento conceitual tende mais a estaticidade e a conservação. O pensamento

simbólico realça as aberturas, os fluxos e as mutações. O pensamento conceitual

apresenta posturas mais individualistas. O pensamento simbólico é mais aberto à

pluralidade, se tece nos entrelaces dos coletivos. O pensamento conceitual tende a

fragmentar e mutilar os diversos. O pensamento simbólico os reúne e os interliga

dinamicamente.

Na perspectiva de compreensão da Antropologia e da Hermenêutica

Simbólicas o símbolo, em seu Sentido mais radical, difere do signo. O signo é um

sinal indicativo que aponta imediatamente, de modo linear e funcional, para um

significado, para um propósito pré-determinado. Opera por denotação e é arbitrário

em sua unidirecionalidade. O símbolo se traduz numa imagem polissêmica que

apresenta, mediata e transversalmente, Sentidos diversos. Ele é conotativo, com

suas aberturas e polifonias. Vernant (1992, p. 201) afirma que “O signo é arbitrário

em sua relação com o significado (...) faz referência a uma realidade externa a si, à

qual remete como a um objeto de conhecimento (...) é determinado, circunscrito (...)

unívoco, transparente”. Enquanto que o símbolo, para Vernant, “comporta, ao

contrário, um aspecto 'natural' e 'concreto' (...) não se refere a um objeto exterior a

si (...) ele se coloca e se afirma a si mesmo”. Assim, o símbolo,

170

Não pertence então, como o signo, à ordem intelectiva e sim à da afetividade e do querer cujas reações fundamentais, as aspirações mais profundas não são apenas vividas subjetivamente na intimidade de cada um, mas se projetam, se objetivam do lado de fora exprimindo-se nas formas do imaginário, nas configurações míticas (VERNANT, 1992, p. 202).

O signo apresenta caráter técnico, atende aos propósitos de

instrumentalidade. O símbolo apresenta caráter evocativo, conduz ao meditar. Morin

(1999, p. 172) afirma que “no sentido evocativo, há aderência, contaminação em que

prevalece as realidades concretas e subjetivamente vividas”. No simbólico, o vivido é

afirmado e realçado com suas porosidades e curvaturas, com seu fulgor seminal.

Cassirer (1997, p. 58) assevera que um signo, “um sinal faz parte do mundo físico do

ser; um símbolo é parte do mundo humano do significado”. Mundo humano que se

tece e se entretece a partir de uma multiplicidade de significados inacabados e que

está em constante de ressignificação.

O simbólico não explica; nos implica com a in-tensidade e a complexidade dos

fenômenos do existir nos levando a senti-los e a compreendê-los, encharcados em

seu vigor seminal, em suas dimensões anímicas. Nos implica de modo direto e

pregnante com a vida, com a aventura de estarmos-sendo-no-mundo-com-os-outros,

como caminheiros, co-aprendentes e co-criadores dos Sentidos da epopéia do

humano.

Através da polifonia dos símbolos, o espírito humano se projeta com os feixes

da vastidão de suas potencialidades imaginais. Nos símbolos, o espírito encarnado

desborda a imaginação criante, a inventividade, nos processos de expansão da

consciência, de alargamento das fronteiras do ser-sendo, em seus fluxos

permanentes de criação e de recriação de valores, de sentimentos, de Sentidos. Os

símbolos movem e co-movem os sentidos e a cognição em processos abertos de

percepção e de compreensão mediante o dinamismo das ações que conduzem às

buscas das liberdades do ser-sendo, do ser-com-os-outros. Vernant (1991, p. 202)

pontua que “o símbolo jamais está em equilíbrio ou repouso. Há nele um constante

movimento” que revela as in-tensidades dos compassos rítmicos das ondulações do

existir.

Eliade (1991, p. 177) proclama que “a função de um símbolo é justamente

revelar uma realidade mais total, inacessível aos outros meios de conhecimento: a

coincidência dos opostos”. Com a polifonia de suas imagens, do dinamismo de sua

composição, os símbolos nos aproximam do núcleo seminal da carnalidade do vivido,

de suas reentrâncias, de suas danças e estampas que configuram os imponderáveis

171

dos fenômenos humanos, da totalidade (intotalizável) do existir. Os símbolos podem

expressar, de forma expansiva, as contradições e ambivalências das coisas;

impulsionam a presença da consciência meditativa propiciando uma interpretação e

uma compreensão vastas e imbuídas de cromaticidade.

Portanto, os símbolos penetram com intensidade nos meandros, no âmago das

coisas, da vida, da complexidade e dos paradoxos do humano. Morin (1999, p. 189)

assevera que “o simbólico/mitológico tem sempre caráter existencial”. Impregnados

no âmago do vivido, os símbolos desbordam Sentidos jorrantes. Maffesoli (1998, p.

148) assevera que a metáfora, o símbolo se configura “numa maneira de dizer que

não enclausura aquilo que entende descrever”, como um dizer aberto que não

claudica o dinamismo nem a polifonia dos Sentidos do existir.

A plasticidade visível dos símbolos, com seus entornos, cores, dobras, relevos,

desenhos e espessuras, sedimenta a consciência viva/vívida mobilizando,

coexistencialmente, o corpo e o espírito; nos aproxima das dimensões mais invisíveis

das coisas, da teia dinâmica de Sentidos que compõem nossos imaginários; projeta

os enigmas da anima mundi, da alma do mundo.

Referindo-se a Jung, Lima (1983, p. 43) explicita que, para ele

o símbolo é um arquétipo, um sistema de virtualidades; constitui um fenômeno universal, um centro de força invisível, um núcleo dinâmico, uma estrutura organizada de imagens que ultrapassam sempre as materializações individuais.

Com seus núcleos dinâmicos, as imagens dos símbolos são portadoras de

forças semânticas invisíveis que, interpenetradas nos imaginários humanos,

potencializam os vôos de nossa imaginação, de nossa consciência imaginal, para

compreensões primordiais do mundo, da vida, impregnadas da alma do vivido;

inspiram o universo onírico na incrementação de nossos sonhos e utopias. As

imagens dos símbolos animam as palavras, as texturas e os compassos das sagas

humanas.

A teia aberta do simbólico potencializa e pode compelir o fluxo das relações

interculturais na perspectiva das in-tensidades das trocas dialógicas, mediante a

diversidade de significados e de Sentidos singulares que podem enriquecer, ampliar

e entrelaçar as culturas. Lima (1983, p. 57) pontua que

Os símbolos são, por excelência, instrumentos de integração social, porque constituem uma força unificadora que leva à união dos contrários, portanto, uma espécie de força centrípeta que se opõe às forças centrífugas da ordem

172

cultural, levam a constituir uma memória coletiva, a edificar uma mundivivência.

Nas situações em que prevalecem posturas etnocêntricas, os símbolos podem

também se reduzir a instrumentos que desembocam na intolerância e nos

sectarismos insanos. Como todas as criações humanas, os símbolos estão

vulneráveis aos usos que deles fazemos (vide os desdouros do nazismo, da

Inquisição, dos colonialismos traduzidos nos emblemas de suas imagens etc). Durand

(1995, p. 26) fala de uma “inflação patológica de imagens desorientadas, carentes a

priori de qualquer valor hermenêutico, cancerizando a imaginação criadora”. O

símbolo é também apropriado de forma mecânica, sendo, assim, reduzido a

estereótipos reificados que aplastam e esvaziam seu dinamismo criador. Porém, na

proporção em que os mesmos são articulados como reveladores e mediadores dos

valores humanos primordiais, mobilizando crenças, sentimentos e idéias humanistas,

ecohumanistas, as possibilidades de trocas interculturais são bastante fecundas com

suas potencialidades peculiares que sugerem agregação e religação das e entre as

multiplicidades e as diferenças, nas esferas da uni-diversidade humana.

Isolados em si mesmos, sem a presença acompanhante da consciência

compreensiva, da Razão aberta – da Razão-Sentido –, o uso dos símbolos incide em

posturas sectárias que reduzem e embotam o discernimento, levando a processos

obscurecedores de destrutividade e de barbarização. Morin (1999, p. 170) debulha:

“Devemos pois nos aventurar evitando o excesso de clareza, que mata a verdade e a

excessiva obscuridade que a torna invisível”. Tanto a presença excessiva da

luminosidade do pensamento analítico, quanto a excessiva obscuridade que também

pode se presentificar na dimensão simbólica, podem incidir em posturas que

desqualificam e desumanizam.

Como pontua Eliade (1991, p. 174), “é a presença das imagens e dos símbolos

que conserva as culturas ‘abertas’” dis-pondo os indivíduos e as culturas para as

teias que incidem em dialogias e interligações e que mediatizam o dinamismo in-

tensivo das relações interculturais.

Para Cassirer (1994, p. 89), “a memória simbólica é o processo pelo qual o

homem não só repete sua experiência passada, mas também reconstrói essa

experiência”, redimensionando-a e reinventando-a. Com sua feição arquetípica, o

símbolo funda-se na arché, na intemporalidade das fontes arcaicas, nas origens

fundadoras da cultura humana que, em seus Sentidos primordiais potencializam os

fluxos de renovação e a tornam rediviva. O dinamismo do símbolo é estruturante no

173

processo de constituição da consciência humana, do pensamento vivo, da

multiplicidade dos Sentidos humanos.

Nessa perspectiva, os tesouros de sabedorias da humanidade, sedimentados

na memória simbólica e coletiva dos indivíduos e dos grupos, são fontes inspiradoras

para a imaginação e para o espírito criantes dos mesmos como protagonistas de sua

história. Ainda Cassirer (1997, p. 104) pontua que “É o pensamento simbólico que

supera a inércia natural do homem e lhe confere uma nova capacidade, a capacidade

de reformular constantemente seu universo humano”. Compondo a teia do

mitopoético, o símbolo, com o feixe da força viva de suas imagens portadoras de

idéias mobilizadoras, rega e fomenta a dimensão utópica, os sonhos e os desejos nas

itinerâncias das sagas humanas. Assim, podemos ultrapassar as fronteiras de nossos

limites físicos, impulsionar a inventividade instituinte de nossa imaginação envidando

novos horizontes de Sentidos, novas formas de ser e de estar-sendo-no-mundo-com –

os-outros.

Em sua poeticidade, o símbolo transita entre os sons das palavras e das falas,

mas também escuta os sussurros dos seus silêncios; desborda a plasticidade

estésica, a percepção e a compreensão sensível das coisas. O que não fica marcado

na pregnância do imaginário tende a perder seus Sentidos mais profundos na

dinâmica de nossas relações com o cotidiano vivido. Para Kujawski (1994, p. 88),

o signo indica a relação entre as coisas, ao passo que o símbolo inclui a representação das coisas, no sentido mais primevo e genuíno de sua presentificação (...) No símbolo é a própria coisa que tem voz (grifos do autor).

O símbolo, como vimos, apresenta e ecoa os Sentidos dos fenômenos, das

coisas, com mais aproximação e vivacidade, através de suas figuras evocativas que

interpelam e comovem, que unem e interligam implicativamente. Ruiz (2003, p. 157)

acentua que “o símbolo infunde anima ao mundo” (grifos do autor), anima o existir

ao mobilizar os recônditos do imaginário, da alma humana, na in-tensidade de sua

expressão magmática. Traz encantamento na espessura de suas polifonias e de seus

tons mitopoéticos.

A força expressiva do símbolo está, principalmente, em sua condição de

ambigüidade e de ambivalência que, com sua potência agregadora e religante,

traduz uma constelação de Sentidos. Eliade (1991, p. 178) declara que no

“pensamento simbólico (...) o universo não é fechado, nenhum objeto é isolado, em

sua própria existencialidade; tudo permanece junto, através de um sistema preciso

174

de correspondências e assimilações”. Com suas margens abertas, o símbolo atinge

os flancos da terceira margem, dialoga e reúne territórios semânticos diversos

incluindo as diferenças que configuram e estampam a heterogeneidade da cultura

humana potencializando interlocuções e fricções agregadoras.

De modo geral, os arquétipos primordiais da humanidade que povoam os

imaginários humanos, e que apresentam, representam e traduzem os tesouros das

sabedorias ancestrais, são plasmados através das imagens simbólicas que se

adentram e se projetam nas camadas mais fundas das encruzilhadas do humano, dos

imponderáveis do ser-sendo-com. As formas simbólicas dos arquétipos configuram os

desejos e as crenças, os sentires e os valores mais vastos, plasmam idéias-feixe,

idéias-força; são forças magmáticas que germinam e vicejam os sonhos e as ações

humanas.

As tradições sapienciais da humanidade, em suas expressões originárias e nas

mais diversas fontes ancestrais (Budismo, Taoísmo, Cristianismo, Hinduísmo,

Judaísmo, Islamismo, Xamanismo, Tradições africanas etc) são re-veladas, na teia

movente da cultura, através do pensamento simbólico (imagens, metáforas,

parábolas, alegorias...) como repertórios que traduzem as fontes anímicas de suas

sabedorias, de modo mais aproximado, pregnante e anímico. A própria tradição

originária da cultura e do pensamento gregos, tão difundidos em nossa tradição

cultural, emerge e se propaga a partir das fontes incomensuráveis dos mananciais de

seus símbolos mitopoéticos.

Os diversos rituais de celebração da vida que mobilizam profundamente

indivíduos e grupos (indígenas, africanos, orientais etc) são marcados pela presença

majestosa das formas simbólicas (gestos, movimentos, estandartes, adereços,

figurinos, ícones diversos) que revelam a expressividade dos valores e das crenças

primordiais de cada comunidade, de cada povo.

Para Maffesoli (1998, p. 116), “o universo está povoado de símbolos cujo

sentido não se consegue esgotar, mas cujas significações não valem senão por suas

interações, vividas dia-a-dia sem que isso seja ‘conscientizado’ ou verbalizado” . O

símbolo se enraiza entre os subterrâneos da cultura vivida/vivente exprimindo o feixe

de Sentidos que fulgura a radicalidade do existir. Traduz, com pregnância, as coisas

e os fenômenos, ao apresentar saberes eivados de sabor que entrelaçam mente e

coração; ao ruminar os Sentidos impregnados da seiva do vivido/vivente.

A plasticidade dos símbolos, re-vela e proporciona formas de relação mais

aproximadas com as camadas instintivas e afeccionais, com as ambivalências e a

175

complexidade do existir, da cultura, operando com e no jogo semântico de suas

polifonias. O símbolo rompe com a rigidificação formal das estruturas uniformizadas

proclamando possibilidades de relações mais recurvadas que nos levam a brincar

com as proezas e as ondulações das coisas, do existir, da policromia de seus

Sentidos.

02.4.2 - O mítico

O mito se introduz nas grandes idéias,tornando-as vivas, ardentes, potentes.

Edgar Morin

A imagem mítica fala diretamente à alma.

Gilbert Durand

Os sonhos são mitos privados; os mitos são sonhos partilhados.

Joseph Campbell

O conhecimento mítico está circunscrito nos territórios do pensamento

simbólico, da linguagem simbólica, e se caracteriza através de suas estruturas

polilógicas que cingem ambigüidade e que descortinam as curvaturas dos horizontes

indeterminados. Configura, assim, as lógicas da inclusividade, da implicação, do

contraditorial que incluem e co-implicam as ambivalências, os contraditórios.

O vocábulo mito se origina do grego mythos que traduz palavra, narrativa,

discurso. Vernant (1992, p. 172) afirma que o “mythos designa uma palavra

formulada, quer se trate de uma narrativa, de um diálogo ou enunciação de um

projeto”. Apresenta também a expressão mythoi, que revela “discursos sagrados”,

como acepção que tece um liame entre o mito e as dimensões mais anímicas do

existir. Enquanto o logos procura demonstrar, o mythos mostra, com seus umbrais

mânticos, as ambigüidades dos fenômenos e dos enigmas humanos. Vernant (1992,

176

p. 175) acentua que o logos é apresentado como o “discurso despojado de mistério”

nos pilares do pensamento analítico que exerce supremacia em nosso processo

civilizatório.

Durand (2002, p. 62 e 63) afirma: “Entendemos por mito um sistema dinâmico

de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um

esquema, tende a compor-se em narrativa”. Continuando suas declarações, Durand

(2002, p. 361) pontua que “o sincronismo do mito não é apenas um simples refrão:

ele é música mas à qual se acrescenta um sentido verbal, é no fundo encantação,

(...) capacidade mágica de 'mudar' o mundo” (grifo do autor). A palavra mítica se

apresenta como um discurso singular, como uma narrativa animada pelos contornos

e pelos tons das imagens fabulosas que descortinam Sentidos inaugurais tecidos pela

intuição, pela escuta senciente, pelos entornos das retinas dos olhares. A palavra

mítica é revestida pelas cores do vivido, pelos rumores da experiência vivida em sua

expressão mais originária. O mito emite sons que ressoam os fenômenos de modo

mais intenso porque fala diretamente aos sentimentos, ao coração, às camadas mais

fundas do ser. Kujawski (1994, p. 9) afirma que o

O mito é aquela ficção, aquela mentira primordial que nos desvela o corpo da verdade. É o modo originário de interpretação da realidade, certa forma de pensamento válida como qualquer outra e das mais ricas que existem.

Através do mito, o espírito humano se plasma e se re-vela na trama da

cultura, projetando com in-tensidade, mediante nossas faculdades sensíveis,

intuitivas e meditativas, o estado anímico que irradia o existir, operando a religação

entre o divino e o humano.

O mito re-vela, ou seja, anuncia velando as reentrâncias do ser-sendo.

Apresenta as coisas, os fenômenos do existir, em seu estado de penumbra, de lusco-

fusco. É crispado pelas silhuetas de sombra e de luz que os matizam e os constituem.

Cassirer (2004, p. 77) afirma que

o mito torna-se mistério: sua autêntica significação e sua autêntica profundidade não residem naquilo que ele revela em suas próprias figuras, mas naquilo que encobre. A consciência mítica equivale a uma escritura cifrada, inteligível e legível apenas para aquele que possui sua chave.

O mito se plasma no jogo da pluralidade de suas imagens polifônicas. Se

esconde e se manifesta alternadamente. Nunca aparece de todo. Se configura como

símbolo polilógico que reverbera e ecoa uma multiplicidade de vozes, na ondeação

da incomensurabilidade de suas imagens arredias às lógicas iluministas.

177

As narrativas míticas, desenhadas pela tragicomicidade do demasiadamente

humano, infundem poeticidade na tessitura da história; engendram a floração do

inefável e se entretecem com os fios multicores que bordam magia e encantamento.

Durand (1996, p. 52) enfatiza que “o mito é naturalmente poético”. Revela a

poeticidade do ser-sendo, do existir.

O mito carrega a marca do mistério. Cifra enigmas. Suas urdiduras realçam,

notadamente, a ordem/desordem do noturno. Nos arcanos da noite, suas estrelas

alumiam com tons prateados fazendo desbordar enigmas abissais. Sousa (1995, p.

55) realça que o logos é “regrado pelas normas do dia, o mythos desregrado pelas

paixões da noite”, na incontornabilidade de seus desvãos.

Da esfera do pathos, o mito sempre provoca espanto, mobiliza os sentimentos

e crenças humanas para o inusitado e para o descabido. Nos precipita no fundo sem

fundo do indeterminado, nos flancos dos subterrâneos mais impenetráveis pelas vias

do pensamento conceitual. Nos descentra pelos espaços acêntricos, concêntricos. A

tradição mítica não se institui de forma determinada e acabada. Ela se compõe em

fontes abertas, como o leito do rio, que continua sendo o mesmo e que também se

altera e se renova constantemente com o fluxo dinâmico do singrar de suas águas.

As imagens fabulosas do mito, nas proezas de seu jogo sincopado, são

tingidas de ambigüidades e de ambivalências, nas dobras de seus contornos e

reentrâncias; jorram no rasgo das experiências vividas com a intensidade das

instâncias afeccionais e intuitivas do existir. Mobilizam nossos sensos perceptivos e

imaginários para a vivência e a fruição dos Sentidos sedimentados nos labirintos da

cultura humana.

Enquanto que o logos conceitual se configura, sobretudo, pela expressão do

pensamento abstrato, com sua composição mais externa, o mythos se constitui,

desde dentro, a partir das dimensões mais internas. Está imbuído de emoções e

sentimentos, de crenças e energias que movem com in-tensidade a nervura das

ações humanas. Kujawski (1994, p. 9) explicita que “O mito tem seu Logos próprio e

característico, sua lógica peculiar, e o Logos não passa de um Mito entre outros” . O

mito é atravessado por um Logos spermatikós.

O mythos, ao se estruturar na esfera do pensamento simbólico, não carece de

comprovação, mas de uma compreensão que adere e implica. Morin (1999, p. 174)

proclama que

178

logos torna-se o discurso racional, lógico e objetivo do espírito pensando um mundo que lhe é externo; mitos constitui o discurso da compreensão subjetiva, singular e concreta de um espírito que adere ao mundo sentindo-se do interior.

Como já aventamos, o mito é irredutível a processos explicativos, a análises

estritamente conceituais. Ele transborda as fronteiras do pensamento analítico.

Borda os sem fim do inescrutável. Boff (199, p. 36) acentua que “as mitologias se

plasmam com sua linguagem plástica, com imagens tiradas das profundezas do

inconsciente coletivo”. E continua: “o mito quer expressar valores de grande

irradiação que não podem ser adequadamente expressos por conceitos” (1999, p.

60). Os mitos estão impregnados no “inconscente coletivo”, na “memória coletiva”

da humanidade como feixes irradiantes potencializadores de desejos, de energias e

de crenças profundas que povoam os imaginários dos indivíduos e grupos.

Para Morin (2001, p. 29), “a renúncia ao mito não apenas desencantaria, mas,

desencarnaria nosso universo e desintegraria as comunidades. As imagens míticas

animam (imago mundi, ãnima mundi)” e infundem um poder entusiasmante que

mobiliza os laços coletivos e sedimenta a vivência comunitária. Co-movem corpo e

espírito nas venturas coletivas impelidas pela in-tensidade das paixões, sonhos e

utopias. Kujawski (1994, p. 45) acentua que “o mito é sempre imago mundi, a

contração do mundo numa história, numa cena primordial, num símbolo universal”

(grifo do autor). Portanto, o mito se compõe de imagens animadas que inspiram,

nutrem e alumbram o espírito encarnado.

Campbell (1990, p. 92) pontua que “o mito ocorre na mesma zona que o

sonho, zona que eu chamaria Sabedoria do corpo”. O mito anuncia e fomenta os

sonhos que animam e impulsionam as aventuras do espírito humano na pregnância

do existir cotidiano.

Com o poder mobilizador de suas imagens simbólicas, os mitos podem

conduzir as ações humanas para propósitos mais nobres que levam à emancipação e

à celebração da vida, em sua conotação que podemos chamar de mais

positiva/qualificante. Como também podem desembocar em processos destrutivistas

que aprisionam, em que as emoções e as crenças dos indivíduos e grupos são

canalizadas para propósitos que oprimem e domesticam com a dilapidação das

liberdades humanas – em sua conotação mais negativa/desqualificante.

Na constelação incontornável das imagens míticas, em suas diversas

modalidades expressivas, podemos encontrar desde os mitos fundadores como em

Hesíodo, nas tradições africanas, indígenas etc., aos ícones que estão plasmados em

179

nossos imaginários como Gandhi, Luther King, Chico Mendes, Lampião, John Lenon,

Che Guevara etc., como também encontramos Hitler etc. Esses ícones míticos são

tradutores de sentimentos, crenças e valores que povoam as zonas mais fundas de

nossos imaginários. De modo panorâmico, podemos considerar que Gandhi traduz a

paz, a não-violência. Luther King a tolerância, a convivência entre as diferenças.

Chico Mendes os valores ecológicos. Lampião a luta pela justiça (como também é

associado à imagem da violência). John Lenon a paz, a liberdade. Che Guevara a

emancipação. Hilter a intolerância, o totalitarismo.

Como expressão simbólica, a imagem do mito, com sua força germinal e

afirmadora da vida, potencializa vôos intensos em nossa imaginação criante,

inspirando, a partir do feixe da polissemia de seus de Sentidos, nossos desejos e

utopias nas ações audaciosas que mobilizam e agregam. Mobilizada na perspectiva

dos valores humanos, do ecohumanismo, a força do mito anima projetos e ações

coletivas que podem religar e entrelaçar as diferenças na busca de relações

interculturais in-tensivas que podem inaugurar caminhos que interligam; que podem

plasmar os sonhos presentes nos arquétipos primordiais da humanidade: a paz, a

liberdade, a justiça, o amor, a beleza... Nesse sentido, Cassirer (2004, p. 323) afirma

que o mito traduz o “originário sentimento de unidade” presente nesses arquétipos

primordiais – a dinâmica da unidade na diversidade mediante a harmonia conflitual.

Como vimos, o mítico é irredutível às esferas do pensamento conceitual,

porém, como ponderamos quando falamos do simbólico, sua presença carece de ser

acompanhada e compreendida abertamente por um pensamento meditativo – a

Razão-Sentido – para que não redunde nas armadilhas de posturas sectárias que

cegam, tomando, assim, contornos que desumanizam. Dessa forma, realço a

pertinência de uma Razão-Sentido que dialoga com o Mito de forma com-preensiva.

Dialogia que estabelece entre estes uma relação de co-determinação na tessitura da

complexidade da condição humana. Gusdorf ([19__], p. 266) anuncia que

es la conciencia mítica que permite la instalación de la razón en la existencia, lo que inserta a la razón en la totalidad – pues, abandonada a si misma, ésta permaneceria como suspendida en lo abstracto, sin asidero en el mundo real.

Gusdorf realça também que “La conciencia mítica no significa pues, de ningún

modo, renunciamento a la razón. Más bién, se nos manifiesta en el sentido de una

contaminación y de un enriquecimiento de la razón” (GUSDORF, [19__], p. 282). A

Razão-Sentido se alarga e se enriquece com a presença do dinamismo e da

plasticidade das imagens míticas.

180

Na polifonia de sua expressão arquetípica, o mito traz elementos de

permanências e de mudanças; um núcleo primal como fonte germinadora que

proporciona compreensões e Sentidos múltiplos e que também inspira recriações e

transformações mediante sua dinâmica imaginal, os fluxos ondeantes do imaginário,

do próprio dinamismo vivo, redivivo, da cultura humana. Jaeger (1989, p. 66) declara

que “O mito é como um organismo: desenvolve-se, transforma-se e se renova sem

cessar (...) só se mantém vivo por meio da contínua metamorfose de sua idéia”. O

mito permanece vivo na proporção em que, com seu dinamismo próprio, inspira

processos de renovação constante.

A mítica e a mística se entrecruzam nos desdobramentos de seus respectivos

itinerários. Encontram-se nas encruzilhadas de seus destinos abertos. A mística é

aqui compreendida como expressão profunda de nossas energias mais sutis que

animam os desvãos dos sentimentos e crenças que nos sinergizam conosco mesmos

e com o universo; que mobilizam nossa percepção intuitiva, que nos religa aos

diversos seres mediante o sentimento do mundo. Assim, a mística se assemelha e se

correlaciona, intimamente e de modo profundo, com a mítica. Podemos dizer que

todo mito é portador de características místicas ao nos mobilizar coletivamente em

torno de sonhos, crenças e sentimentos fundos que sinergizam. A mística se plasma,

na esfera da cultura, através das imagens simbólicas que tomam configurações

míticas, com suas potências mobilizadoras, com seus núcleos de irradiação.

Eliade (1991, p. 7) afirma que “o símbolo, o mito, a imagem pertencem à

substância da vida espiritual, que podemos camuflá-los, mutilá-los, degredá-los, mas

jamais podemos extirpá-los”. Plasmam a anima mundi que dá vitalidade e fulgor às

nossas existências, que anima o sopro de nosso espírito criante, altivo. Com a

dinâmica de sua plasticidade visível, as imagens míticas re-velam o invisível, os

Sentidos mais fundos que movem o humano na existencialidade de seu ser-sendo, de

sua imanência e de sua transcendência.

Morin (1999, p. 192 e 193) proclama:

A evacuação total do simbólico e do mítico parece impossível, pois, insuportável de viver; significa esvaziar o nosso intelecto da existência, da afetividade, deixando lugar apenas para as leis, equações, modelos, formas (...) Seria dessubstancializar a realidade.

O mítico e o místico se processam e se projetam, nos interstícios da rede que

entretece as dimensões sutis de nossos sentires e crenças, nas funduras do

inominável em que o sagrado se desborda em seus estados numinosos. Impregnado

181

das imagens míticas, o espírito humano re-vela as potências de suas energias

criantes; infunde o elã vital que compõe a poeticidade do existir. Um povo

desprovido de mitos seria um povo marcado pelo desencantamento. Uma história

isenta de mitos seria uma história desfigurada, não seria mais uma história humana.

O mítico se desdobra na presença do tempo kairós, entre a sinuosidade de

seus contornos e o dinamismo de sua cadência cíclica. O tempo cronos se projeta

pela retilineidade de seus caminhos. O tempo kairós se projeta pela curvilineidade de

suas trilhas. O tempo cronos é de ordem quantitaviva. O tempo kairós é de orbe

qualitativa. O mítico perambula na saga do eterno retorno do mesmo, que se

precipita, nos ciclos de suas estações, de modo sempre diferente com suas polifonias

abertas e irredutíveis. O mesmo do mito é marcado pela dobra da diferença, em sua

expressão originante e na polissemia de suas potencialidades. O mesmo, desse

modo, é compreendido como fonte primordial que jorra continuamente, na proporção

em que se renova, e assim, permanece rediviva.

Como o mítico passou a ser bastante subestimado e desqualificado com o

desdobramento da supremacia dos modelos excessivamante racionalistas que

pretendiam desfigurá-lo, se tornou senso comum, nas ações cotidianas, o tratamento

da palavra mito como expressão de algo que é falso e ilusório, que não tem

consistência e que é desprovido de veracidade (“isso é mito”, “o mito da .....” ).

Assim, o mito foi revestido de um tratamento pejorativo e é abordado com

superficialidade, inclusive pelas instâncias midiáticas. Parece pertinente acentuar

que esses modelos que difundiram a desqualificação do mítico, de modo difuso e

com suas dissimulações, também se auto-instituíram como “representações míticas”

no imaginário da modernidade.

As imagens míticas tocam fundo. Interpelam os sentidos e a imaginação com a

pregnância de seus contornos, de suas curvas e texturas proporcionando uma

percepção estética dos fenômenos, do existir; leva, assim, a uma relação implicativa

de admiração e de encantação; à tecedura poemática do humano. Cassirer (1997, p.

49) ponteia que o mito traduz “a linguagem da imaginação poética”, estampa a teia

da poeticidade do ser-sendo.

Morin (1999, p. 180) debulha que “O mito emociona. Dirige-se à subjetividade,

diz respeito ao temor, à angústia, à culpabilidade, à esperança e dá-lhes resposta”.

Tanto afirma e projeta os meandros da subjetividade humana, suas dores e prazeres,

suas alegrias e tristezas, suas contradições e paradoxos, como nos interliga com os

182

outros e com o cosmos ao realçar a relação de coexistência in-tensiva e de co-

pertencimento entre estes.

Como pontua Leite (2001, p. 18), “o mito lança uma ponte entre o corpo e o

espírito”, os religa com a potencialidade conjuntiva de suas imagens grávidas com o

fulgor do espírito e a pregnância do corpo. Assim, essas imagens podem

proporcionar uma compreensão e uma vivência mais in-tensiva e alargada da vida,

do ser-sendo.

Campbell (1992, p. 373) declara que a força do símbolo mítico está em

“Transmitir uma vivência do inesgotável através do local e concreto, e assim,

paradoxalmente, ampliar a força e a atração das formas locais ao mesmo tempo que

conduz a mente além deles”. Assim, o mito traça um liame entre o local e o chamado

universal. Ele é marcado por crenças e sentimentos mais localizados, mas que se

universalizam na proporção em que, polissemicamente, projetam aspirações que

ressoam dos sem fim da alma e dos imaginários humanos, em suas potências

inesgotáveis de Sentidos. Campbell (1992, p. 375) afirma que o mito apresenta um

“sistema transcultural substancial de constantes” como elementos que emanam e

movem as camadas arquetípicas do humano, em sua expressão transcultural, ou

seja, em suas possibilidades de interpenetração e de aberturas dialógicas e in-

tensivas entre as diversas culturas – a unidade na diversidade. Paz (1990, p. 62 e 63)

assevera que “El mito, aí, contiene a la vida humana en su totalidad: por médio del

ritmo actualiza un pasado arquetípico, es decir, un pasado que potencialmente es un

futuro dispuesto a encarnar en un presente”.

As tradições sapienciais da humanidade, como indicado anteriormente nas

considerações referentes ao simbólico, re-velam os núcleos e mananciais de valores

e de Sentidos que constituem suas cosmovisões através da polifonia das imagens

míticas. Ferreira Santos (2004, p. 92) afirma que “o mito é a matriz criadora das

tradições culturais nas suas diferentes e coloridas manifestações”. As tradições

ameríndias, africanas, mediterrâneas, orientais etc, na intemporalidade de suas

fontes de sabedorias ancestrais, são configuradas pela força vigorosa dos símbolos

de suas matrizes míticas.

Muitas vezes, os símbolos míticos de cada tradição, em suas formas

diferenciadas de expressão visível, traduzem os mesmos significados e Sentidos. Ou

então, se descortinam de modo bastante similar, re-velando crenças e valores

primordiais que constituem os arquétipos humanos. Podemos considerar, por

exemplo, as imagens míticas de Ganesha, no Hinduísmo, de Exu, na Tradição

183

africana, de Hermes, na Grécia, de Chaski, na Tradição ameríndia (Inca), que

caracterizam, aproximadamente, encruzilhada, entrecruzamentos, celebração da

multiplicidade, pontes que interligam, força vital que religa etc.

Os mitos fazem irromper o poder extraordinário de seus símbolos polilógicos

ao conduzirem o espectro imaginal, os imaginários dos indivíduos, para o inominável,

a irredutibilidade dos Sentidos, as esferas da fantasia, dos sonhos que inspiram e

fazem descortinar novos horizontes e utopias nas trajetórias do existir humano.

Os pensadores originários da Grécia antiga empreendiam suas investigações

na busca da sabedoria na proporção em que eram inspirados pela perplexidade

provocada pelos símbolos mitopoéticos com os quais procuravam compreender os

Sentidos do existir, do cosmos, em sua expressão originante, penetrando nos

meandros incomensuráveis dos enigmas humanos. Nesse contexto, a Filosofia estava

irradiada do mântico, do espantamento, daquele elã que move e co-move o pathos, o

daimon (COLLI, 1996).

Os segredos do mito estão enlaçados no arco da inefabilidade do sagrado.

Segredos que velam, que re-velam, entre as flutuações do visível e do invisível, os

Sentidos anímicos. O mito se localiza no entre-lugar, no lugar da imprecisão, entre

um plano e outro, no limiar. Entre-lugar marcado por multiplicidades, por

deslocamentos, por transversalidades e indeterminações; um lugar de interstícios e

de reentrâncias, tecido nas entrelinhas, no entreaberto, na entreidade. O mito,

imbuído de sua condição polifônica, pode aproximar e agregar os contrastes, as

diferenças, interpenetrar os contraditórios sem os anular. O mito de Eros, no

“Banquete” de Platão, apresenta essa possibilidade de coexistência e de interligação

entre elementos contrários. Eros nasce a partir da abundância de Recurso e da

carência de Pobreza. O mito transita pela tragicidade e pela comicidade; compõe

imagens tragicômicas que versejam as proezas da tragicomédia das sagas humanas.

Os rituais celebrativos das mais diversas tradições culturais da humanidade,

inspirados na ancestralidade das sabedorias primordiais, de modo geral, são

configurados pela estampa da presença pregnante dos símbolos míticos, através da

pluriformidade de suas expressões que se desbordam nas manifestações da dança,

do teatro, da música, das estampas dos estandartes, das pinturas corporais etc.

Rituais que, eivados desses símbolos míticos, propiciam processos de re-encantação

da vida, da cultura; afirmam e renovam os laços de afetividade e de solidariedade no

compartilhamento religante dos sentires humanos.

184

Campbell ([1972], p. 29) declara que “a sociedade que fomenta e conserva

vivos os mitos será nutrida a partir das mais vigorosas e das mais ricas camadas do

espírito humano”. E Gusdorf ([19__], p. 269) proclama “un mundo sin mitos no sería

ya un mundo humano; es la intención mítica la que define las modalidades de la

presencia en el mundo”. E arremata: “la conciencia mítica designa la instancia

suprema, reguladora del equilíbrio ontológico del hombre” (GUSDORF, [19__], p.

287).

Nessa perspectiva, o mítico se constitui e se afirma como repertório simbólico

que estrutura e dá vigor na constituição da consciência, da Sensibilidade humana,

como manancial de reservas das sabedorias primordiais da humanidade. Repertório

que, assim, proporciona ao espírito humano o cultivo dos valores anímicos que dão

Sentido e alumbramento ao existir. Compele os humanos às sinergias e aos

entrelaces que projetam a simpatia do todo.

185

02.4.3 - O estado poético

La experiencia poética es un abrir las fuentes del ser.

Octavio Paz

Viver poeticamente significa viver intensamente a vida.

Edgar Morin

O estado poético é esse estado de encantamento.

Mikel Dufrenne

É no entanto poeticamente que o homem habita esta terra.

Hölderlin

O estado poético desborda o sopro originante que infunde espanto e

admiração, que faz jorrar in-tensidade e encantamento na pregnância de nossa

relação com os fenômenos, com a vida, com o mundo. O poético, eivado de poiesis,

traduz o elã do estado nascente das coisas que arrepia com sua vertigem originária,

com seu estado criante que entretece a cromaticidade da trama do existir humano.

Paz (1990, p. 154) acentua que “La experiencia poética es una revelación de nuestra

condición original”. O poético nos dis-põe para a fruição das venturas do existir

cotidiano, de nosso ser-sendo, com o fremir da corporeidade e a vibração quântica

do espírito, no alumbrar de seus feixes entrelaçados.

Os feixes do poético revelam a “epifania do sensível” (DUFRENNE, 1969, p.

105) na jorrância e na intensidade de sua fruição en-volvente; nos faz penetrar no

âmago dos fenômenos, das coisas, do existir. Assim, podemos nos aproximar mais e

melhor do coração das mesmas, tocar suas texturas e relevos, vislumbrar suas

opacidades e clareiras, sentir melhor suas umidades e securas, seus odores e

sabores.

O estado poético nos enreda pelos enigmas do existir e nos implica nos

desvãos de suas dobras e curvaturas imponderáveis; nos dis-põe para os encontros

com os vazios e as cheiúras, com as ambigüidades e os paradoxos do humano,

demasiadamente humano. O poético não procura decifrar os enigmas do existir, do

mundo, nem destrinçar seus paradoxos. Nos leva a escutá-los e nos implica com

estes como expressões dos espectros do fundo sem fundo, da incomensurabilidade

186

dos labirintos que compõem o existir humano. Nos adentra nos confins das

dimensões intuitivas e imaginárias em que habitam as imagens incontornáveis que

plasmam nossas crenças, sentimentos e valores fundos. Esse estado de poeticidade

nos mergulha nas esferas do ontológico e nos faz adentrar na inteireza e na

expressividade originária e originante do ser, do ser-sendo, nos fluxos de suas ondas

e partículas, de suas luzes e sombras.

Em seus enredamentos, as fímbrias do estado poético matizam a penumbra

do crepuscular, entre as margens da clareira do diurno e do breu do noturno, em que

o dia e a noite se interpenetram e copulam, resvalando os matizes da fineza de seus

tons que nos tocam e co-movem de espanto com o fulgor de suas in-tensidades. O

estado poético se traduz na presença das brumas escorrentes da lua cheia que,

como musa prateada, enfeitiça os corações e almas, infundindo encantação com os

volteios dos véus de seus mistérios; é crispado pela ambigüidade do solunar, pelo

esplendor do aurorescente; nos põe à escuta dos murmúrios que ressoam dos

silêncios das montanhas.

O sopro inaugural e inaugurante do poético instaura o advento do ser-sendo

na vastidão de suas vertentes; faz brotar o elã vital do anímico; nos precipita nos

desvãos do abismo, da terceira margem, em que o humano e o divino se encontram,

desbordando, assim, os feixes do arco-íris nos horizontes do existir. Nos flancos de

indeterminação e das sendas da terceira margem, podemos penetrar nos estados em

que jorram os Sentidos das in-tensidades dos acontecimentos, de nosso existir.

Estados que fazem constelar a altivez do espírito na pregnância paixonal do humano.

Morin (2002, p. 138) proclama “O estado poético dá-nos o sentimento de superar os

nossos próprios limites, de sermos capazes de comungar com o que nos ultrapassa”;

leva “ao estado de graça” que nos torna graciosos.

O estado poético é suscitado pela inquietude de nosso daimon que perturba e

faz despontar as in-tensidades que crepitam nos quadrantes de nossa singularidade,

de nosso existir cotidiano; nos precipita nas jornadas dos riscos e dos desafios

ingentes. Nos leva a garimpar as preciosidades que ficam escondidas nos

subterrâneos da alma e do coração, e que, portanto, carecem da tenacidade do

espírito audacioso para que sejam garimpadas e lapidadas.

Paz (1996, p. 57) assevera que “A experiência poética não é outra coisa que a

revelação da condição humana, isto é, desse transcender-se sem cessar no qual

reside precisamente a sua liberdade essencial”. O estado poético nos conduz, como

seres em aberto, às itinerrâncias das travessias em que o espírito bandoleiro singra

187

trilhas e urde venturas de passagens que nos iniciam, nos alargam e emancipam no

peregrinar das sagas, tingidas de luzes e sombras, de tristezas e alegrias. Assim, na

tessitura das errâncias, podemos tecer as tranças de aprendências lapidares,

podemos alçar vôos altaneiros. A vivência do poético incide em epifanias que nos

enleva aos estados d'alma, em seus contornos iridescentes.

O estado poético é um estado de ser em que o existir humano é co-movido

pelo pathos do admirável, con-vocado pelo espanto que arrepia o corpo e lampeja o

espírito, que nos dis-põe para a fruição do anímico. Traduz exclamação na ação que

clama e que proclama os estados de assombro e de admiração. Morin (2002, p. 136)

pondera: “O estado poético é um estado de emoção, de afetividade, realmente um

estado de espírito (...) proporciona satisfações carnais e espirituais”. É um estado

que faz desbordar as in-tensidades e a policromia dos Sentidos que plasmam o

imaginário e que compõem as texturas estésicas da plasticidade da condição

humana.

Ao sermos flagrados pela jorrância do estado poético, somos compelidos aos

territórios do onírico, da fantasia, como instâncias que bordam desejos descomunais

e nos desbordam em devaneios. Bachelard (1988a, p. 15) ponteia: “O devaneio nos

põe em estado de alma nascente”; nos adentra nas aventuras inaugurais das

encruzilhadas abertas, entre os recônditos do tudo e do nada. Volteia entre caos e

cosmos pelos sulcos da incompletude humana. O estado poético nos faz sorver as in-

tensidades de cada momento como centelhas de eternidade na fruição do carpe

diem.

Pelos compassos do estado poético, podemos penetrar nos entre-lugares

mestiços em que o coração e o espírito se dis-põem para os liames dos fluxos

tensoriais que nos entrecruzam com os outros na celebração da riqueza das

diferenças que podem nos entrelaçar. Nesse estado, nossas almas podem

compartilhar com as demais almas do universo a dança cósmica de nosso co-

pertencimento planetário, mediante a vibração das ondas quânticas que dão ritmo e

movimento ao planeta, na fruição da anima mundi. Nesse bailado andrógino, anima e

animus se interligam mediante a relação in-tensiva da coexistência que sinergiza e

vivifica. Barbier (2003, p. 79) pontua “Toda palavra poética é corda vibrante. Uma

linha de alta tensão, na verdade. Ela articula paradoxalmente uma palavra animus e

uma anima”. Palavra poética como metáfora da lavradura do estado poético que se

compõe dessa vibração tensorial que co-implica os princípios do masculino e do

188

feminino, que faz lampejar as in-tensidades dos paradoxos e das contradições que

constituem a condição humana.

A trama do poético desinstala e transgride os modelos e posturas

emplastadoras do anestésico e instala a movência do estésico na expressão do

dinamismo de sua fractalidade. Fractalidade que traduz recurvamentos e

reentrâncias, ambigüidades e policromias. O poético insufla o crisol da imaginação

criante infundindo alumbramento aos estados de criação (poiesis); potencializa a

inauguração do novo com sua aura renovadora.

Esse estado poético que se configura como o cuidado primoroso pela

plasticidade do estésico, implica na floração do belo, do admirável, conjuntamente

com o afinco do zelo pelo ético, pelo trato com o bem. Supõe a urdidura de uma po-

ética e de uma est-ética soberanas: uma coexistência vigorosa entre ética e estética

que supõe entrelaçamento entre o bem e o belo, a dignidade e a elegância.

As vertentes recurvadas do estado poético versejam as rimas do ad-mirável

garimpando os enigmas do existir humano; vertem, nos recônditos do existir, os

fluxos das nascentes do ser, no regato de seus adventos, nos fluxos de suas

sinuosidades.

Heidegger (2001, p. 180), inspirado em Hölderlin, assevera que “Se o poético

acontece com profundidade o homem habita esta terra humanamente”. Para ele, “É

a poesia que permite ao homem habitar sua essência. A poesia deixa habitar em seu

sentido originário” (HEIDEGGER, 2001, p. 178). As texturas e as imagens do poético

tornam o habitar humano mais aprazível, infundem neste o estado de acolhimento.

Com as in-tensidades de suas ambigüidades e ambivalências, o estado poético

também é rasgante. Nos precipita nos abismos do belo e do feio, nos desafios das

cordas bambas. Nos joga na voracidade dos redemoinhos, nos precipícios das zonas

íngremes. Faz lampejar estados de paixões estremecedoras em que podem rebentar

momentos de prazer e de contenteza, bem como, momentos de dores e de

angústias; interpõe a ambos. Penetra e revolve as fraturas, a precariedade e a

tragicidade da condição humana, no fremir de sua carne trêmula. Pode também

potencializar processos alquímicos que transmutam a lama em lótus. O dinamismo

do estado poético implica na emergência dos feixes tensoriais que impulsionam e

dão ritmo às in-tensidades do existir na pregnância de seu pathos originário e

originante.

Nas esferas do estado poético são projetadas rebeliões impetuosas que

traduzem nossos sentimentos de indignação e de transgressividade diante da

189

minimização do humano; se instalam levantes que erguem os estandartes das

liberdades, das utopias primordiais que compõem os repertórios arquetípicos da

condição humana. Levantes que desinstalam os estados do ordinário, com seu bolor

cinzento, e que evocam o extraordinário, na vigência de seu elã inaugural.

A profusão do estado poético descortina a vastidão da incomensurabilidade

dos horizontes que interpõem e interligam o finito e o infinito, a terra e o céu,

estabelecendo pontes entre estes, entre o dentro e o fora, o imanente e o

transcendente. A plasticidade das esculturas visíveis do poético nos incursiona no

orbe do invisível, com o magnetismo de suas ressonâncias; floreja os cachos do

sublime.

Paz (1990, p. 117) declara que “la recitación poética es una fiesta: una

comunión”. Ao sermos co-movidos pelo elã do estado poético, somos compelidos aos

sentimentos de simpatia e de empatia que nos impulsionam e podem nos co-

implicar, de modo terno e ligante, com os seres humanos, com todos os seres do

universo; que fazem despontar em nós a simpatia do todo, numa teia entrelaçada

em que seus fios entretecem os filamentos da sinergia que comunga. Possuídos por

esse elã do amoroso, podemos fazer vibrar as cordas magnéticas da mística que nos

entrelaça.

O estado poético é irradiado pelo sopro anímico que pulsa dentro da condição

divinal de cada ser, que insufla e dá ritmo ao existir; que nos inspira nas lides

cotidianas ao tecermos as redes de nossos projetos e sonhos. No estado poético, os

sopros de nossos deuses e deusas suspiram na espiritualidade encarnada de nosso

ser, acendem as chamas da pira que nos anima no lusco-fusco das travessias.

No estado poético se descortina o espírito nômade que, nos influxos de suas

aventuras, nos precipita nos riscos dos perigos que desconcertam e entusiasmam; se

projeta o espírito travesso e despojado da criança que se desmancha de alegria com

as estripulias das revoadas de suas pipas. O poético suscita o espírito saltimbanco

entre as veredas das paragens desgrenhadas do viver; penetra nas ondeações do

aleatório instigando o espírito brincante, na expressão desmesurada de seu vadiar.

Traduz, com leveza e despojamento, a dança sincopada da plasticidade do jogo

vivente, das obliqüidades do ser-sendo.

As brumas da aragem do estado poético nos precipitam em instantes de

êxtase, nos arrebata em arrepios que espantam e co-movem nos impulsos da

admiração. Esse estado de ad-miração, com a potência criante de sua mobilidade,

engravida a pregnância do imaginário e do espírito altivo que nos impelem ao vicejar

190

da autopoiesis (autocriação), da ecopoiesis (processo do criar com os outros na teia

planetária); envida as utopias que apaixonam, os sonhos que acendem o facho do

existir.

O estado poético instala aberturas largas em nosso ser-sendo, nos dis-põe

para a emergência e a fruição do inesperado, do que surpreende; descortina a

postura entusiasmante e nos enreda nas franjas do extraordinário. Conduz à busca

da eterna novidade do mundo (Pessoa), do sentimento do mundo (Drumond), em

nossa relação altaneira com este, mediante as escorrências do crepuscular, com suas

luminescências e penumbras. De modo arco-írico, o estado poético desborda

vertigem e alumbramento.

02.4.4 - O mitopoético

E o poder poético do símbolo define a liberdadehumana melhor do que qualquer especulação filosófica.

Gilbert Durand

Na linguagem poética, as palavras conotam mais do que denotam, evocam, transformam-se em metáforas, impregnam-se

de uma nova natureza evocativa, inovadora, encantatória.

Edgar Morin

Nos auspícios de nosso processo civilizatório, com a supremacia dos modelos

de conhecimento que privilegiam a tecnociência e a razão calculista que pretendem

reduzir a vida, o ser e os fenômenos à órbita da clarividência e da precisão, o fulcro

do mitopoético foi, durante muito tempo, ameaçado de ser proscrito, sendo

considerado como manifestação do ilusório, do “louco da casa”, como expressão de

pieguice, de inconsistência etc. Essa postura reducionista se traduz na denegação

das instâncias incomensuráveis que compõem os campos da intuição, do imaginário

e da afetividade, da curvilineidade e das opacidades do existir, descambando nos

processos mecânicos de desencantamento do mundo.

O mitopoético configura imagens-feixes, “idéias-força” que agregam, implicam

e co-implicam a pujança da plasticidade polifônica dos símbolos míticos com o

desbordar do elã do estado poético. O mitopoético traduz, então, um espectro

fractálico, um flanco de intermediação entre as instâncias internas e externas do

191

existir. Espectro que proporciona a compreensão e a vivência dos fenômenos

humanos a partir das camadas incontornáveis de nossos imaginários, em suas

expressões de ambigüidade e de ambivalência, de polifonia e de sinuosidade.

Na encruzilhada do mitopoético, envidamos a fruição da dimensão poética das

texturas e contornos, dos relevos e estampas que configuram os fenômenos, o

existir, mediante a mobilização dos símbolos arquetípicos que povoam nossos

imaginários, dos desvãos da intuitividade, da corporeidade e da espiritualidade.

Barbier (2003, p. 89) propugna uma “escuta mito-poética, que leva em conta o

instituído e o instituinte em suas repercussões simbólicas, axiológicas e míticas”,

uma escuta sensível que, polifonicamente, penetra no núcleo dos valores primordiais

e se manifesta mediante o dinamismo da plasticidade e da poeticidade dos símbolos

míticos.

Como imagem e como idéia-feixe que traduz uma encruzilhada polissêmica, o

mitopoético pode ser também compreendido como um entre-lugar constituído pela

abertura de camadas permeáveis, por uma multiplicidade de horizontes semânticos

que propiciam uma compreensão e uma vivência pregnante dos fenômenos, do

existir.

Assim, o mitopoético se descortina como um espectro pluridimensional que,

na plasticidade de suas imagens, nos contornos de sua hibridez, nas aberturas e

brechas de sua porosidade, penetra nas instâncias do imaginário, do inconsciente

coletivo, no pulsar da fibra de nosso ser sensível. Constitui os desvãos do entre-lugar

desse imaginário dinâmico que consubstancia o existir humano, na in-tensidade dos

Sentidos que, desde dentro, nutrem e inspiram anima e animus – o masculino e o

feminino de nosso existir andrógino. Ferreira Santos (2004, p. 84) assevera que “o

vetor positivo das mediações mitopoéticas propicia o desenvolvimento de uma

consciência crítico-reflexiva e sensível que alia tanto as possibilidades intelecto-

racionais, como a sensibilidade em sua capacidade de organizar o real”.

Nos influxos do mitopoético, caminhamos, alternada e interativamente, pelas

veredas alumiosas do dia, do pensamento crítico-meditativo, bem como, pelas

sombras da penumbra da noite, do espectro lunar, na fruição de momentos-limiares

em que os tons de ambos se entrelaçam bordando o crepuscular. O mitopoético se

tece trançado de lusco-fusco, nas silhuetas do laço, do liame que entrecruza sombra

e luz.

O espectro do mitopoético penetra com in-tensidade nos rasgos da tragicidade

do existir humano, das tragicomédias cotidianas, nos flancos de seus abismos sem

192

fundo; singra suas itinerrâncias e mergulha em suas agonias e inquietudes;

atravessa a instabilidade da saga dos acontecimentos ecoando a pregnância de suas

ressonâncias co-moventes; resvala os confins das incertezas e imprecisões humanas.

O mitopoético opera nos territórios híbridos do entre ao expressar as in-tensidades

das ambivalências humanas, ao entrecruzar seus oxímoros na implicação da

tensividade dos contrários que fomentam a coexistência e o advento da inteireza do

ser-sendo.

O mitopoético, ao operar a hibridação dinâmica entre o mito e a poesia, faz

emergir nossas potencialidades intuitivas e imaginárias e nos mergulha pelos

recônditos das imponderabilidades da condição humana. Entrelaça, tensiva e

dinamicamente, as dimensões do caos, do aleatório – dionisíacas – com as

dimensões cósmicas, da ordem – apolíneas –, potencializando encontros entre

polaridades diversas e opostas que se entrecruzam e fazem descortinar os horizontes

de Sentidos. Nessa mirada compreensiva, Ortiz-Osés (2003, p. 70) realça a

pertinência de “un lenguaje mitopoético de ida y vuelta que trata do coimplicar los

opuestos”. Portanto, o mitopoético proclama nossa condição de seres andróginos ao

plasmar a co-implicação dos contrários que se interpenetram in-tensivamente,

constituindo, assim, os entre-lugares da terceira margem, a polifonia da rede mestiça

em que circulam os feixes de Sentidos con-sentidos que tecem e movem a

policromia da teia do existir, da cultura.

A presença do mitopoético enreda uma compreensão e uma vivência mais

originária e pregnante do mundo vivido/vivente, na proporção em que mobiliza

nossos sensos de percepção e de fruição mais internos e em que toca no âmago dos

sentimentos, da intuição, da corporeidade, dos fulcros da Sensibilidade. O

mitopoético traduz uma compreensão e uma fruição estésica da vida, do mundo.

Dessa forma, nos proporciona com estes uma relação admirante que co-move e co-

implica.

Ao nos adentrar nos territórios do imaginário mítico e da jorrância do estado

poético, o mitopoético mobiliza o espírito para as travessias que conduzem ao estado

anímico em que as partículas da materialidade e as ondas da espiritualidade

lampejam o elã dos Sentidos que alumbram. Ortiz-Osés (2003, p. 7) afirma que

al levantar el velo nos topamos precisamente con el enigma o mistério, con lo interior o íntimo, con el corazón o alma invisible, con lo opaco y lo indecible en un lenguaje directo; de donde la necesidad de un lenguaje sugerente y mitopoético, metafórico y simbólico.

193

O mitopoético emerge e conduz, recursivamente, dessas e a essas regiões

incontornáveis em que se localizam os enigmas do existir, em que ressoam as

vibrações da alma e do coração através da tangibilidade das formas dos símbolos re-

veladores da intangibilidade do ser-sendo. Ressoa as inutilezas do existir, a

delicadeza e a grandiosidade das coisas imponderáveis, que não têm preço, da

gratuidade e da fineza dos sentires.

Essa plasticidade do mitopoético se desdobra em sendas abertas que

apresentam os horizontes dos amanheceres do existir ao fomentar o crisol da

imaginação criante e ao impulsionar processos germinadores do novo na floração

das metamorfoses. Estimula as relações interativas de sinergia e de

compartilhamentos afetivos entre os indivíduos mediante a confluência da

diversidade dos sentires, da abertura simpática; impulsiona processos de juntura que

religa o dentro e o fora, o intensivo e o extensivo; opera a interpenetração que faz

copular prosa e poesia. O mitopoético, com sua potência interligante, empatiza e

agrega os indivíduos na interpenetração de sentires comuns em torno da poeticidade

das imagens míticas, com seus eixos arquetípicos; impulsiona os laços que implicam

no fortalecimento dos vínculos, no compartilhamento de valores, crenças e desejos.

Podemos observar isso nas diversas manifestações populares (bumba-meu-boi, folia

de reis, maracatu etc.), mediante a expressividade dos diversos emblemas que

traduzem arquétipos étnicos e religiosos. Esses emblemas estampam símbolos

mitopoéticos que dão encantação aos rituais de celebração da vida realçando e

afirmando a teia que projeta a animação do estar-juntos.

A rede do mitopoético é urdida com o feixe dos fios matizados que entrelaçam

a trama do existir, em suas zonas de aberturas e de indeterminação, mediante o jogo

de imagens que, ludicamente, compõem a plasticidade e a pregnância de nossa

relação com os outros, com os fenômenos. Assim, a dinamicidade dessa trama incide

em nossa dis-posição para o jogo aberto, para o despojamento do estar-sendo, em

seus contornos brincantes, para as venturas dos riscos e das travessuras, para as

aberturas das dobras, dos vazios e das porosidades do existir. Esse estado brincante

impele e nutre a imaginação criante, a relação de aderência e de proximidade com

as desmesuras do vivido, do vivente, na inutileza de seus influxos mais ínfimos.

Com a exuberância de sua policromia, as estampas do mitopoético compelem

ao senso estésico – a estesia – mediante processos de percepção e de fruição em

que a corporeidade e a espiritualidade copulam. Essa copulação potencializa a

194

manifestação de seu elã criante na expressão da plasticidade e da cromaticidade das

curvaturas dos enigmas e paradoxos do existir humano.

Morin (2002, p. 140) anuncia que “a vida poética está irrigada em

profundidade pelo pensamento analógico-simbólico-mitológico. O amor, emergência

suprema de poesia, vive de símbolos, cria seu mito e sua magia”. A in-tensidade do

estado poético desponta, sobretudo, a partir da presença dos símbolos, dos feixes

das imagens e metáforas que constituem nosso imaginário, com sua potência

germinal e inspiradora. A polifonia das expressões dos símbolos, ao mobilizar nossas

instâncias mais inconscientes e fundas, potencializa o vicejar das centelhas do

anímico, das flamas do amoroso.

A presença do mitopoético evoca e instaura o advento do ser-sendo em seu

estado de homo viator, de andarilho, na trajetória nômade da saga do humano.

Possuído pelo pathos do mítico e do poético, o mitopoético inaugura a aura dos

estados de espanto e de admiração ao nos con-vocar e nos dis-por diante dos ritmos

e das in-tensidades das coisas, dos fenômenos, infundindo o sopro do extraordinário.

O mitopoético é in-tensivo ao penetrar nas instâncias mais internas do ser-

sendo através da força expressiva e interpeladora da plasticidade e da polissemia de

suas imagens. Traduz in-tensidade ao penetrar no fremir pregnante que desinstala e

toca fundo no corpo e na alma, de modo perturbador. Envolve e entrecruza o

imanente (mais interno) e o transcendente (mais externo) do ser. Impulsiona os

contraditórios, os tensiona e coteja; os aproxima em suas possibilidades de

interpenetrações, de interpolarizações.

Com sua natureza indeterminada e indeterminante, o mitopoético apresenta

sendas sempre abertas que, com o reverberar de suas imagens, instigam a

imaginação criante potencializando processos constantes de criação e de recriação

do destino humano, dos Sentidos das coisas, do existir; descortina processos de

transgressão que levam a mutações inaugurais.

As imagens, os símbolos que constelam o mitopoético, desinstalam as

posturas e modelos que se afirmam sobre a uniformidade que conforma e comprime;

perturbam a ordem enrijecida do mesmo com sua cadência decadente; compelem o

manifestar das dimensões oníricas, do espírito alterativo. O dinamismo das imagens-

feixes do mitopoético provoca, na psique humana, a in-tensidade de processos que

ativam as capacidades imaginais, a imaginação e o espírito poético dos indivíduos –

não divisíveis. Ao catalisar e plasmar o advento da imaginação criante, o universo da

fantasia, dos devaneios, da fruição do sensível, o mitopoético suscita sonhos

195

inspiradores que possibilitam a emergência de energias, de emoções e de

sentimentos que fazem vigorar processos de criação e de mutação. Processos que

podem envidar formas e conteúdos que implicam inovação e metamorfoses

expressivas enredando ações audaciosas que renovam e alumbram a policromia dos

Sentidos do ser-sendo, do próprio existir (DURAND, 1993).

Com sua composição fractálica, o espectro do mitopoético cinge os feixes que

desbordam os tons e os ritmos sincopados do existir, as torções e ondulações de

nosso estar-sendo-no-mundo, na afirmação da composição híbrida e multicor da

condição humana. O mitopoético realça o elo que entrelaça alma e coração

percutindo a vibração do elã que anima e revigora, que faz florejar o iridescente.

Referindo-se aos Sentidos do mito – do mítico – e da poesia – do poético –, em

nosso destino terreno, Durand (1996, p. 54) proclama

a consolação dos últimos sobreviventes será a de se saberem depositários destes gérmens de cultura planetária, de fraternidade antropológica, que essa mesma civilização ocidental terá permitido acumular graças à imaginária conservatória dos mitos, dos poemas e dos sonhos de toda humanidade.

Os mananciais do mitopoético que compõem nossos imaginários, nosso

inconsciente coletivo, na dinamicidade de seus repertórios vivos, se traduzem em

recursos, em tesouros inspiradores que nutrem o estofo de nossa condição humana;

se convertem em estandartes de esperança para toda a humanidade na proporção

em que reservam as fontes inesgotáveis das sabedorias e dos sonhos que animam o

coração e o espírito humanos. O mitopoético opera a alquimia da ação animada que,

com o sopro do espírito criante e o húmus de nosso barro, esculpe e projeta a

radiância do estado anímico do existir.

Para Durand, (1996 p 53), “o poema, como o mito, é o que confere um sentido

autêntico ao acontecimento humano ou ao destino, (...) pela reconquista poética

sobre os semantismos mortos”. O mítico e o poético – o mitopoético – conferem,

portanto, energia vital e Sentidos anímicos aos acontecimentos, ao existir humano;

potencializam a instalação de um semantismo vivo que reinventa e ultrapassa os

“semantismos mortos” dos acervos de uma cultura emoldurada por lógicas

mecânicas; nos inicia na dinamicidade dos ritos de celebração da vida, mediante a

festa do espírito que dança na plasticidade do corpo, em seus estados poéticos de

alumbramento; borda a urdidura de nossa condição andrógina na policromia de seus

feixes entrelaçados que, in-tensivamente, enredam e copulam anima e animus no

desbordar do estado que faz jorrar o sentimento do mundo.

196

02.5 – Da Razão-Sentido

Há dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão.

Pascal

A função da razão é promover a arte da vida.

A. Whitehead

Uma vida totalmente razoável torna-se demente.

Edgar Morin

02.5.1 - Gênese do termo Razão

Ruminar a temática da Razão incide em penetrar num território de grande

vastidão e complexidade no decurso da cultura ocidental. Aqui, a mesma será

abordada dentro dos limites de um capítulo/sub-capítulo da tese com o propósito de

explicitar a relevância fulcral da Razão-Sentido na constituição da Sensibilidade

humana. Partirei do veio etimológico de Razão, apresentando as tonalidades

polissêmicas do termo, e, em seguida, interlocucionando com alguns autores, tecerei

197

algumas ponderações acerca da Razão ocidental moderna. Por fim, realçarei a

perspectiva semântica mais atinente às meditações da tese: a Razão-Sentido.

Etimologicamente, Razão origina-se de dois troncos linguísticos: do latim Ratio

e do grego Logos. Ratio provém do radical ratus que traduz metron, medida, cálculo,

técnica discursiva, forma de ordenação e de organização das coisas na procura de

precisão. Ou seja, a ratio é uma forma operativa, um dispositivo lógico que

proporciona as operações do mensurar e do calcular, de modo preciso e sistemático,

traduzindo também proporção, cômputo e operação de contabilidade.

Marías (1985, p. 166) apresenta, como uma das acepções de Ratio, a idéia de

“dar conta”, de recordar afirmando que

Em lugar da interpretação visual e dizente da razão [o logos grego], o latim nos oferece uma vivência da mesma baseada na memória e na compreensão (…). Enquanto a forma suprema de posse mental da realidade chama-se, em grego, teoria, isto é, visão, em latim chama-se contemplação

Assim, Marías aponta para uma acepção de Razão que acentua um caráter

mais qualitativo e compreensivo da mesma.

Nesse eixo, Bohm (1992, p. 43-44) afirma que

Na concepção antiga, a razão é vista como insight numa totalidade de ratio ou de proporções, considerada interiormente pertinente à própria natureza das coisas (e não só externamente como uma forma de comparação com um padrão ou unidade). Evidentemente, essa ratio não é, necessariamente, uma mera proporção numérica (embora é claro, inclua tal proporção). Mais precisamente, é em geral, um tipo qualitativo de proporção ou relação universal. (…) A razão essencial ou ratio de uma coisa é então a totalidade das proporções internas em sua estrutura e no processo em que ela se forma.

Desse modo, a ratio é também compreendida como expressão daquilo que é

qualitativo e interno na constituição dos Sentidos do existir, dos fenômenos, das

coisas.

O Logos grego provém de lego, légein e traduz falar, dizer, declarar, ligar,

recolher, revelando ao mesmo tempo, o “discurso coerente e a verdade manifestada

no discurso” (PEGORARO, 1994, p. 124), a palavra dizente. Supõe tanto a forma, o

modo de expressão, como também o conteúdo, o fundamento. Desse modo, Logos

designa discurso, fala, instrumento comunicativo, forma expressiva – uma dimensão

mais lógica –, bem como, a verdade, o Sentido, o fundamento – uma dimensão mais

ontológica (em sua acepção existencial). Heidegger (1997, p. 62), afirma que nas

mais diversas interpretações do Logos, este tem sido concebido como “razão, juízo,

conceito, definição, fundamento, relação, proporção”.

198

Heráclito se refere ao Logos como o que “vive em con-juntura”

(ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO, 1991, p. 59). Con-juntura que,

tensionada por polemos, dinamiza a harmonia dos contrários. “O contrário em tensão

é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia”

(ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO, 1991, p. 61). Jaeger (1989, p. 154) afirma

que, para Heráclito, o Logos traduz a “palavra e a ação” como espírito e como

expressão de uma ação sábia que plasma uma vida sapiente. Um Logos

caracterizado por um espectro enigmático, configurado através de imagens que

agregam Sentidos comuns na busca de sabedoria. Um Logos que penetra na

intimidade do ser-sendo, na relação de conexão entre ser humano e universo, numa

unidade constituída pelo interfluxo tensorial entre os opostos e que desemboca

numa tensão criadora, numa harmonia conflitual.

Inspirado em Heráclito, Heidegger (2002, p. 158) concebe o Logos (legen)

como um pensar que deixa “a coisa vigorar”, como “des-encobrimento” (2002, p.

187) do Sentido, como “o de-por e pro-por, é o puro deixar dispor-se em conjunto”.

Deixar vigorar o acontecer, o que emerge, em seu vigor originário, mediante uma

escuta atenciosa e concentrada dos sons e dos silêncios que emanam do ser-sendo-

com. Heidegger (2002, p. 191) fala de “uma escuta em sentido próprio”, auscultante,

que penetra nas instâncias mais fundas e largas dos fenômenos. Galeffi (2003, p.

222) considera o Logos “algo assim como um “ler-dizer”, “perceber-falar” (…), soa

como des-velamento e presentificação do sentido”.

Colli (1996a) assevera que o Logos emerge, na Grécia, a partir do agonístico,

da loucura, do mântico, sendo relacionado com sabedoria divina e com enigma. Para

ele, o Logos se apresenta como “palavra oracular”, como “jogo apolíneo” (COLLI,

1996a, p. 32) que lança enigmas, que se indaga a si mesmo. Um Logos que se

descortina como fluxo dia-lógico, como expressão indagativa dos Sentidos das

coisas, das angústias, perplexidades e agonias humanas. Colli (1996a, p. 71) pontua

que “muitas gerações de dialéticos elaboram na Grécia um sistema de razão, do

logos como fenômeno vivo, concreto, puramente oral”. Esse Logos traduz a

vivacidade da oralidade, do verbo, como expressão direta e pregnante da

experiência vivida, como sonoridade rítmica que alude ao mundo vivido/vivente, à

dinâmica de suas curvaturas, em sua concretude existencial. Zubiri (1982, p. 16) fala

de um “logos sentiente” como “un movimiento impresivo: es el momento sentiente”,

um Logos impregnado das texturas do senciente.

199

Em grego, os verbos noein e legein que correspondem aos substantivos nous

e lógos, apresentam semanticamente acepções aproximadas que equivalem a

Razão. Acepções que enunciam apreensão, percepção intelectiva, mental (estrutura

ideativa), propósito, significação, Sentido (dimensão existencial).

Uma das ramificações semânticas constituintes do Logos se traduz em

recolher, reunir, juntar; fluxo de relação entre diversos. Dessa forma, Logos se

desdobra em dia-logos, diálogo. Marías (1985, p. 161), afirma que “a idéia de

conexão está na própria raiz do conceito de logos”, em que este se configura como

ponte que une, que liga e religa as significações, os Sentidos. Desse modo, Logos é

compreendido como disposição, capacidade e forma de articular e de agregar os

componentes e significados diversos das coisas para expressar seus fundamentos,

seus Sentidos. Isso ocorre mediante sua potencialidade interrogante, seu espírito de

radicalidade que procura penetrar nos meandros mais profundos e vastos dos

fenômenos, das coisas humanas.

Considerando a multiplicidade de acepções que resvalam dos vocábulos Ratio

e Logos, apresento, como possibilidade de estrutura-síntese, três eixos semânticos

que me parecem mais expressivos: 1. Logos/Razão como faculdade e disposição

humana de pensar, de inteligir; 2. Logos/Razão como expressão de fala, discurso,

enunciado, forma e dispositivo/instrumento lógico; 3. Logos/Razão como

manifestação de Sentido, direção/rumo, fundamento; como expressão axiológica que

revela valores, fins, o conteúdo existencial.

A acepção de Logos/Razão como faculdade específica da condição humana

que potencializa o exercício do pensar compõe a esfera de suas capacidades

cognitivas, intelectivas. Essas capacidades possibilitam aos humanos a elaboração

do pensamento que os permitem perceber, entender e compreender as coisas, a

vida, através de seus mecanismos de discernimento, de interpretação e de análise,

propiciadores dos processos de ruminação mental, de articulação das idéias.

Em sua acepção como forma que se revela através da fala, do discurso, o

Logos/Razão se configura como modo de expressão, como recurso representativo,

como estrutura formal e como um instrumento, um meio que potencializa a presença

e a manifestação do pensamento, do Sentido; como dispositivo e operador lógico

pelo qual se estrutura e se sistematiza o pensamento, a idéia, que viabiliza o

calcular, o ordenar e organizar as coisas. Assim, Razão como técnica discursiva,

como instrumento analítico.

200

Como expressão de Sentido, de rumo e de valores, o Logos/Razão se revela

com potencialidades polifônicas que traduzem os Sentidos, os conteúdos existenciais

que sedimentam o núcleo anímico do existir humano, que animam a condição

humana; como repertório de horizontes, de referências que norteiam e projetam os

fins e a destinação do ser-sendo. Nessa esfera, Razão pode também ser considerada

como expressão da phronesis que implica no cuidado com o bom-senso, com a justa

medida, com a temperança; na postura sábia que, a partir de pólos opostos e de

estados extremos procura o caminho do meio numa relação de coexistência e de

interpolaridade em que pensar e agir se interligam e se projetam de modo fecundo.

Logos/Razão como Razão-Sentido que projeta as in-tensidades ontológicas como

motivos, como fundamentos abertos e plásticos, como fundo sem fundo do existir

humano, como polifonia de Sentidos anímicos.

Os pensadores estóicos, latinos, renascentistas e românticos, com seus

repertórios constituintes da humanitas, com suas posturas e formas de conceber e

de compreender a vida, mediante uma relação de aproximação com o existir

cotidiano, erigiram algumas expressões verbais bastante singulares para traduzir o

Logos/Razão: logos spermatikós, ratio seminales, libido cognoscendi/sciendi, cognitio

sensitiva, intellectus amoris. Expressões que apresentam um Logos/Razão como

expressão do anímico, que está imbuído da pregnância do existir contingente.

Na proporção em que nos detemos com afinco em alguns dos termos mais

pontuais do vocabulário alusivo à Razão, podemos perceber nuanças curiosas e de

expressiva relevância. A estrutura etimológica latina de inteligência, intus legere,

supõe ler de dentro, do interior; de congição, cognitio, cognosco, refere-se a

conhecer com os sentidos; intelecção, intellectus, ação de discernir pela inteligência

e pelos sentidos, percepção sensível e mental; conhecer, cognoscere, se traduz em

perceber, sentir, inteligir, e no francês cum nascere, nascer com, junto; conceito, con

ceptum, concipere, ação de compreender, abraçar, conter, reunir, recepcionar

(NUEVO DICCIONARIO ETIMOLÓGICO, 2001; FRAILE, 1960).

Assim, a gênese das expressões do vocabulário que constitui o vocábulo

Razão, aponta para a idéia e a compreensão de que a mesma se estrutura a partir de

nossos canais e capacidades perceptivas, tanto cognitivas e intelectivas – noéticas –,

quanto afetivas e sensíveis – afeccionais –, mediante uma relação de interpenetração

complementar, de juntura e de hibridação entre ambas. Porém, no decurso de nosso

processo civilizatório, com a proeminência da racionalidade calculadora, esses

201

termos são utilizados tecnicamente apenas em sua acepção instrumental, em

detrimento das acepções de tonalidades mais existenciais.

02.5.2 - A Razão na cultura ocidental (modernidade)

No decurso de nosso processo civilizatório, com as trajetórias diversificadas de

cada momento histórico, a Razão foi sendo articulada, de modo geral, como

expressão potencial do pensamento crítico e inventivo, através dos processos de

análise e de sistematização. Por meio desses processos, os indivíduos podem

expressar e desenvolver suas capacidades críticas de discernimento, de

interpretação e de compreensão do mundo e, quiçá, de si mesmos. Além dessas

perspectivas, a Razão também foi concebida como expressão ontológica na

constituição de valores e de Sentidos fundantes para o existir humano. Nessa esfera,

plasmada na carnalidade da cultura (ethos), a Razão pode proporcionar ao ser

humano, mediante seu espírito criante, a condição de instituir sua própria história, de

emancipar-se das servidões e dos estorvos que aprisionam a vida. Portanto, como

expressão potencializadora das liberdades humanas, da busca de rumos e de

Sentidos para o existir humano no mundo, em suas manifestações mais expansivas.

No início da Idade Moderna, a Razão se projeta, de modo intensivo, como luz

emancipadora que incide na superação dos obscurantismos e preconceitos (“crenças

sobrenaturais”, superstições…), através dos questionamentos ao “argumento de

autoridade” então predominante, às posturas autocráticas dos regimes monárquicos,

tanto na esfera da política como da religião. Assim, a Razão se revela como potência

vigorosa na efetivação de processos de ruptura das servidões e de busca das

liberdades humanas através da livre expressão de pensamento e de idéias, da

constituição dos Sentidos do próprio existir humano, em que cada indivíduo passa a

ser autor de seu próprio destino – passa-se do chamado teocentrismo para o

chamado antropocentrismo. Nesse contexto, a Razão passa a ser concebida como

expressão de luminosidade clarividente, como estandarte alumioso que traria

progresso e felicidade a toda humanidade.

Porém, na medida (desmesurada) em que sua luminosidade se torna

excessiva, mediante a instituição de um sistema de racionalidade lastreado no

“Penso, logo existo” (DESCARTES, 1996, p. 92), o existir humano passa a ser

exclusivamente confinado ao âmbito do pensar em detrimento dos outros modos de

expressão. Assim, a Razão se caracteriza por posturas reducionistas ao pretender

202

converter toda a complexidade da vida apenas ao pólo do pensar, do analítico. Dessa

forma, a mesma se ofusca no excesso dos raios de sua própria luz, se torna cega e

se cristaliza na monossemia de seus imperativos uniformizadores que a impedem de

perceber seus próprios limites, sua condição de ser apenas uma das formas de

expressão dos Sentidos humanos.

No processo de formação da cultura ocidental, no eixo da chamada

modernidade, a Razão foi sendo constituída, de modo predominante, como estatuto

único e uniforme de verdade, de conhecimento verdadeiro. Isso ocorre, na medida

em que essa Razão é concebida como luz que triunfa sobre as trevas, que dissolve

toda escuridão e que pode revelar a totalidade do ser, das coisas, a partir de sua

potência luminosa, tornando a realidade, os fenômenos e as coisas transparentes,

clarividentes. O chamado iluminismo estatui a Razão como parâmetro supremo de

definição da verdade, como modelo unívoco de determinação daquilo que é

verdadeiro.

Mayr (1989, p. 42) assevera que “La logificación griega del tiempo encontrará

su final concequente en la destemporalización de la razón como logos puramente

lógico en nuestra tradición iluminista o ilustrada”. Nessa esfera, Zubiri (1983, p. 66)

afirma que o tratamento da Razão como “forma suprema de rigor lógico” redundou

na sua logificação e, assim, esta passa a ser estatuída como “evidencia conceitual

absoluta” (ZUBIRI, 1983, p. 67).

Com esse processo de logificação, de formalização funcional, o Logos, a Razão

se reveste de características meramente técnicas e se converte numa lei, numa

convenção jurídica marcada por traços patriarcais. Passa-se, em grande medida, do

logos spermatikós, com a pregnância de seu dinamismo interno, ao Logos externo,

imbuído de formalidade e de frieza – um Logos desprovido de vitalidade.

Nessa esfera, a Razão iluminista pretende iluminar todos os confins da cultura,

da existência humana, sob os imperativos da supremacia de sua luminosidade

diáfana, de seu reino solar. Assim, viveríamos sob os auspícios permanentes da luz

do dia, da extrema clarividência, em que o regime da lua, o breu da noite, as

sombras, as penumbras do humano, seriam diluídos e excluídos do panorama do

existir. Essa Razão iluminista que pretende atingir o grau máximo de transparência

performa-se numa Razão vítrea que ilustra um suposto estado de pureza cristalina do

mundo, do real.

Nietzsche (2000, p. 23) proclama que “A luz diurna mais cintilante, a

racionalidade a qualquer preço, a vida luminosa fria, precavida, consciente, sem

203

instinto, em contraposição aos instintos não se mostrou efetivamente senão como

uma doença”. Ao denegar e expurgar os instintos, as afecções (emoções,

sentimentos…), a corporeidade, considerando-as como dimensões impuras e

ilusórias, os imperativos da racionalidade iluminista negam dimensões estruturantes

da condição humana. Essa negação incide em enfermidades que descaracterizam e

mutilam o existir implicando em posturas de apatia e desumanização.

O excesso de luz ofusca e impede a Razão de perceber seus próprios limites.

Converte esta numa doutrina lastreada em dogmas que propugnam verdades

absolutas e inquestionáveis estruturando ortodoxias deterministas. A luminosidade

dessa racionalidade desqualifica sua própria capacidade crítica na medida em que se

torna cega para criticar-se a si mesma; esgarça suas potencialidades crítico-

criadoras, seu senso de discernimento e de compreensão dialógica. Assim, se torna

uma Razão autofágica devorando-se a si mesma na cegueira de sua irracionalidade.

(BERGSON, 1979; NIETZSCHE, 1987a; HEIDEGGER, 1987; HÜHNE, 1994; COLLI, 1996;

HORKHEIMER, 2002; MORIN, 2002; ORTIZ-OSÉS, 2003).

Essa Razão especular e especulativa que se apresenta de modo autocentrada

e que se autodelega como espelho de toda a verdade, como fundamento de uma

verdade única, se torna, portanto, obnubilada em seu ofuscamento e se caracteriza

pela prepotência de posturas autocráticas. Nesse prisma, só pode ser concebido

como verdade, como verdadeiro, o que está refletido nos invólucros dos limites

esquadrinhados em sua moldura, em seu formato especular, ou seja, em suas fôrmas

compressivas.

Meditando acerca da problemática, Gusdorf ([19__], p. 258) afirma que

La noción de razón siempre ha correspondido en el pensamiento humano al ideal de una norma inteligible de verdad, que permite arbitrar las afirmaciones teóricas y prácticas en virtud de principios universales y necesarios. Afirmar la razón es referirse a una autoridad que prevalece por su evidencia intrínseca, impuesta a todo hombre en tanto que tal (…) como un código de procedimiento que legaliza la marcha legítima del pensamiento (…) como patria de toda verdad.

Uma verdade estatuída como pátria, como manifestação exclusiva do poder

do masculino (virtus), em seus traços enrijecidos, na predominância de seu caráter

disciplinador.

Esses regimes disciplinares, de cunho patriarcal, subjugam tanto a Natureza

(Physis) em sua acepção geral, como a condição de naturaza de cada indivíduo em

suas expressões sensíveis. Mayr (1989) fala de um “logos patriarcal” que se estatui a

204

partir das imagens arquetípicas de Zeus Pai, na instauração de princípios

monoteístas, caracterizados pelo individualismo, pela abstração de leis formais.

Esses princípios denegam e demonizam os princípios da Deusa Mãe, presentes nas

bases das tradições culturais de nossas civilizações primordiais, com suas

características materiais (Physis, Mater), com sua dialogicidade, com seus tons en-

volventes que afirmam sua vocação comunitária. O Logos patriarcal arquitetado com

seu rigor lógico-formal, com seus traços reveladores de imobilidade e apatia, se

impõe ao Logos matriarcal, configurado como expressão da pregnância do existir,

com suas tonalidades maternas que revelam simpatia e cordialidade.

A Razão patriarcal elege o “Dios de la razón pura, clara y transparente, exenta

de la matéria, devenir o aparencia”, se estriba numa “visión objetivadora de las

cosas en el esquema de sus formas inmóviles” (MAYR, 1989, p. 25 e 26). O Deus do

patriarcado é um Deus sem forma, sem matéria, como expressão de uma

racionalidade ascética. Mayr (1989, p. 45) afirma ainda que “Este logos patriarcal-

racionalista es un logos definidor y definitivo que vive de la opresión de otros logos y,

muy especialmente, del fondo matriarcal-femenino”.

Dessa forma, essa Razão, imbuída de caráter disciplinar, funcionaliza a “lógica

do domínio”, fomenta formas de poderes dominantes que são exercidos, implícita e

explicitamente, mediante as astúcias de seus aparatos técnicos, se desdobrando nos

regimes disciplinares tanto da Ciência, da Política etc., como nos ditames do

Patriarcado, com seus contornos monolíticos e que levam à excludência, presentes

nas diversas instituições sociais.

O racionalismo, como modo de racionalidade que exerce proeminência nos

constructos culturais da modernidade, traduzido numa Razão instrumental, se

constitui como um sistema de estrutura conceitual que projeta modelos de

pensamento fundados na uniformidade. Propaga idéias afirmadoras de valores que

traduzem univocidade e determinismo. Representa um sistema funcional que

pretende reduzir a porosidade do mundo, do real, aos auspícios de uma estrutura

forjada nos pilares da linearidade e da fixidez. Projeta leis universais que determinam

valores e atitudes que uniformizam plasmando identidades que traduzem um mundo

idêntico a si mesma, à sua postura especular. Desse modo, forja-se uma Razão

identitária que se impõe como regime imperativo de verdade, incidindo, portanto, na

excludência e na intolerência.

Na proporção em que vai se desvinculando do mundo vivido, se

descontextualizando da experiência agonística, a Razão se converte em artifício, em

205

mero instrumento conceitual desprovido da carnalidade dos conteúdos do existir

cotidiano. Assim, a mesma é substancializada como entidade abstrata, estatuída

como um valor em si mesmo, como uma coisa em si. Colli (1996a, p. 82) afirma que

esse impulso original da razão foi esquecido, deixou-se de entender essa sua função alusiva, o fato de que a ela cabia exprimir uma separação metafísica, e passou a considerar o “discurso” como se tivesse uma autonomia própria, fosse um simples espelho de um objeto independente sem pano de fundo, chamado racional, ou fosse até mesmo, ele próprio, uma substância.

Dessa forma, ao ser substancializada em si mesma, a Razão passa a ser

estatuída como substrato de verdade universal que se impõe imperativamente. Essa

Razão abstrata é vista por Colli (1996a, p. 82) como um “logos espúrio” que

desqualifica seu Sentido originário como expressão existencial, como potência de

indagação que fomenta as buscas dos Sentidos do existir, do real.

Esse Logos espúrio se institui com mais intensidade na cultura ocidental

moderna, e se caracteriza pelas astúcias desse racionalismo estatuído a partir de leis

universais concebidas como verdades inquestionáveis. Assim, esse Logos legitima o

poder do discurso, se autolegitima e se impõe como cânon de uma verdade unívoca,

como fim em si mesmo. A Razão passa a exercer as astúcias de um poder que se

plasma como discurso retórico se traduzindo num “instrumento de la voluntad de

domínio” (COLLI, 1996b, p. 238), de controle.

Nessa perspectiva, Barbosa (1994, p. 30) assevera que

ao se pressupor que o real é racional e que a ciência era a quintessência da razão, pressupõe-se também que, através dos procedimentos ditos racionais, seria possível fazer com que a totalidade do ser se tornasse transparente aos olhares da razão, e porisso mesmo, controlável.

Essa Razão calculista pretende reduzir a complexidade dos paradoxos da

existência humana, do existir cotidiano, com a polissemia de seus valores e Sentidos,

aos formatos da linearidade de sua ordem, das esferas do controle e do cálculo,

levando a coisificação do ser. O fim é convertido em meio, o ontológico ao lógico.

Heidegger (1989, p. 50) acentua que “o pensamento calculador submete-se a si

mesmo à ordem de tudo dominar a partir da lógica de seus procedimentos”. E

referindo-se a esse pensar, pondera que o mesmo “destrói, por seus conceitos

rígidos, o fluxo da vida” (HEIDEGGER, 1987, p. 47). O pensamento calculador se

desdobra, como “Un pensamiento algorítmico, esto es, un pensamiento que siga

unas reglas que de suyo evitan toda equivocación” (ARREGUI, [200_], 160), porque

estruturado pelos aparatos da univocidade e da precisão. Os esquemas unitários

206

dessa racionalidade que se pretendem sem fissuras, tendem a se fraturar, nos limites

de sua rigidez, diante das ondeações e dos fluxos tensoriais do existir humano, das

contingências e vicissitudes do cotidiano, como abordarei posteriormente.

Os instrumentos lógicos do metron dão conta dos operadores de realidade

atinentes ao campo da quantitatividade, do matemático (em sua acepção de

precisão), porém, não conseguem penetrar nas instâncias qualitativas do existir, na

esfera dos valores e Sentidos primordiais. Pretender reduzir os fenômenos

qualitativos do humano à identidade da lógica instrumental significa pretender

coisificar e instrumentalizar o ser-sendo, a vida, torná-los coisas calculáveis sob o

controle das leis ordenadoras da precisão. A monologia desse princípio denega o

movimento, as contradições e as mutações do existir com sua pretensão de reduzir

as coisas, o ser-sendo, à univocidade de suas leis deterministas. Como afirma

Pessanha (1994, p. 91), “a medida apenas mede, ela não é a coisa medida”. Ela

apenas representa quantitativamente a coisa, mas não dá conta da multiplicidade

dinâmica e in-tensiva de suas qualidades. Uma Razão predominantemente objetiva

que se instala desde fora, do ex-tensivo, não penetra no orbe do dentro, do in-

tensivo.

Os estatutos dessa racionalidade, lastreados no metron, na medida fixa,

instituíram a ordem como fundamento das coisas, do ser. Uma ordem imbuída de

fixidez que desenha uma ontologia denegadora da dinamicidade do ser-sendo, da

mobilidade do existir. Dessa forma, a Razão é concebida como

algo absoluto y universal capaz de juzgar y criticar desde fuera toda creencia, costumbre cultural o autocomprensión própia y ajena. La Razón ha adquirido el estatuto extramundano de la fe y, por ello, pretende determinar la perspectiva absoluta (ARREGUI, [200_], p.134).

Esses estatutos são regidos por princípios mecânicos, desvinculados das in-

tensidades do mundo vivido/vivente, da conflitividade dos fluxos tensoriais do existir.

Existir que, portanto, é movido pelos constantes lampejos das contradições, pelos

paradoxos e pelas mutações que constituem esse mundo vivido/vivente; que se

plasma entre ordem (metron) e desordem (hybris), entre caos e cosmos, entre o

instituído e o instituinte.

Uma Razão linear não consegue perceber a porosidade, a tortuosidade, as

texturas e os matizes dos fenômenos, da vida; não penetra em seus imponderáveis,

não transita por seus recurvamentos. Essa Razão, como vimos, mutila o próprio

existir, no dinamismo de sua complexidade que é irredutível a modelos-fôrmas que

207

uniformizam; conforma-se na frieza de sua representação funcional que, assim, não

traduz a calidez das in-tensidades do vivido-vivente. O técnico-instrumental é apenas

um dispositivo operativo que, como meio, deve proporcionar condições que nos leva

a operar com a quantitatividade das coisas em sua pertinência específica, bem como,

indicar, muitas vezes, mediante procedimentos diversos, a incursão nos recônditos

do qualitativo.

Os sistemas racionais, os estatutos de racionalidade, desprovidos da nervura

do vivido/vivente, da conflitividade das vicissitudes e deambulações do cotidiano, se

convertem na funcionalidade dos mecanismos de caráter meramente formal. Ortega

y Gasset (1944, p. 239) assevera que “El racionalismo tiende dondequiera y siempre

a invertir la misión del intelecto, incitando a este para que, en vez de formarse ideas

de las cosas, construya ideales a los que éstas deben ajustarse” (grifos do autor).

Dessa forma, o racionalismo pretende confinar o real, no dinamismo de sua

plasticidade, à ordem de suas leis deterministas, da univocidade; à funcionalidade de

seus instrumentos lógicos com a compressão da mobilidade e da pluriformidade do

ontológico.

Barbosa (1994, p. 19) arremata: “a razão científica moderna, com sua

estrutura técnico-teórica transformou-se na suprema forma de potência e de domínio

(…) a forma suprema da verdade existente (…) forma eficaz de precisão”. Uma

precisão que não corresponde com o caráter impreciso do existir humano, das coisas

humanas, que prescinde, assim, do estado de indeterminação e de ambigüidade da

condição humana.

Essa postura imperativa da Razão moderna que privilegia a precisão e o

controle é desafiada e desconcertada diante dos fluxos do devir, das

indeterminações das contingências, da presença do caos no coração dos fenômenos.

Essa presença do Caos, com suas in-tensidades, desborda os formatos mecânicos

dos estatutos dessa racionalidade. A plasticidade e a assimetria do real, do mundo

vivido/vivente, não pode ser contida e nem aprisionada, ao menos durante muito

tempo, na unidimensionalidade de fôrmas simétricas. Suas manifestações são

marcadas de transversalidade. Diante dos determinismos da lógica da previsão e da

precisão se descortina a emergência da imprevisibilidade, do aleatório e, portanto,

da imprecisão do ser-sendo, dos paradoxos da condição humana.

Ortiz-Osés (2003, p. 84) enfatiza que “La abstracción reduce lo real a su

significado funcional abandonando el cromatismo afectivo (…) en nombre de la

racionalización de lo real de acuerdo a parámetros lógico-matemáticos”. Esses

208

modelos de racionalidade que se pretendem puros, que são elaborados sob os

auspícios de uma ordem abstrata, desprovida de carnalidade, eclipsam o cromatismo

do ser-sendo, do existir humano; não podem traduzir e expressar as in-tensidades da

pregnância do vivido-vivente, nem da policromia mestiça de suas impurezas vitais.

Ortega Y Gasset (1981, p. 93) pontua que “La pura intelección o razón, no es otra

cosa que nuestro entendimento funcionando en el vacío, sin traba alguna, atenido a

sí mismo y dirigido por sus normas internas”. Uma Razão que se pretende portadora

de pureza e se considera suficiente perde a força de seu interrogar, de seu

autointerrogar, se desvitaliza e se esvazia.

Essa estrutura de racionalidade moderna estatui uma Razão ascética,

destituída de pathos, da potência vigorosa de Eros, de Mythos e de Physis; uma

Razão desprovida do ritmo ondeante do devenir, do acontecer, do ser-sendo. Se

torna, assim, uma Razão imbuída de apatia. Se plasma como uma Razão desprovida

de materialidade, das texturas do existir humano. Dessa forma, se converte numa

Razão funcional que não consegue flagrar nem sorver a cromaticidade do viver na

polifonia de seus Sentidos anímicos; não penetra na tragicidade do existir, em suas

impurezas contaminadas e nutridas de húmus. Porém, essa Razão pretensamente

pura parece não se sustentar por si mesma na proporção em que seu arcabouço

abstrato se encontra destituído de estruturas/formas e de conteúdos/repertórios que

possam revelar a robustez do existir. Estes carecem do elã vital que viceja e faz

jorrar os Sentidos anímicos que constituem o existir humano, a condição humana.

Com esses desdobramentos, a racionalidade moderna arquitetou uma Razão

ancorada nos pilares de suas leis e conceitos universais, de seu “pensamento de

sobrevôo”, estatuída como modelo monista de verdade. Modelo que, ao se

substancializar e se autonomizar, se desvinculando das contingências humanas, se

autodelega como Razão suficiente. Razão suficiente que é forjada como entidade

portadora de uma verdade autoevidente; que, em sua limpidez, se desterra das con-

texturas das coisas humanas, do vivido/vivente. Ora, uma Razão suficiente,

autosuficiente, já não seria mais uma Razão humana, se concebemos que a condição

humana se caracteriza, sobretudo, por sua precariedade, por suas incertezas e

fragilidades, pela incompletude de seu estar-sendo indeterminado, por suas

permanentes insuficiências e imperfeições. Assim, uma suposta Razão suficiente se

caracteriza como Razão deficiente.

O conceito, como expressão operativa da Razão, supõe uma representação do

real, sendo assim, apenas um mapa do mesmo. Portanto, com suas características

209

formais, o conceito não pode traduzir o real, nas in-tensidades de sua organicidade,

sobretudo se é caracterizado pela Razão instrumental. O conceito pode possibilitar

uma aproximação entre o pensamento, as coisas e os fenômenos. Na perspectiva da

racionalidade calculista, o conceito tende à imobilidade e à rigidez diante da

movência dos fluxos do existir, da realidade semovente. Bergosn (1979, p. 28),

tecendo críticas ao racionalismo, aos conceitos abstratos, afirma: “Mas querer, com

conceitos, penetrar na natureza última das coisas é aplicar à mobilidade do real um

método feito para fornecer pontos de vista imóveis a ela”. E continua “este rigor

deriva apenas de que se operou sobre uma idéia esquemática rígida, em vez de

seguir os contornos sinuosos e móveis da realidade” (BERGSON, 1979, p. 70).

Na esfera dessa racionalidade, os conceitos são estabelecidos

mecanicamente, tomam uma configuração estática, enquanto que a realidade está

sempre enredada no dinamismo de suas flutuações e mutações. A conformação

homogeneizante dos conceitos não penetra nem traduz as in-tensidades da

heterogeneidade dos fenômenos. Os conceitos tendem à determinação e à

linearidade enquanto que o ser-sendo, o existir, são constituídos de indeterminação e

de sinuosidades.

Na proporção em que os conceitos se estabelecem como formas abstratas,

perdem sua qualitatividade, seu vigor seminal, e se convertem em meras cascas

desprovidas de seiva, de conteúdo existencial. Horkheimer (2002, p. 48) arremata

que “vaciados de su contenido, todos los conceptos fundamentales se han convertido

en meras cáscaras formales”, em fôrmas esvaziadas de Sentido.

Dessa forma, ao ser modulada a partir de conceitos como formas fechadas, a

Razão perde o vínculo com a concretude do existir cotidiano, se converte em

forma/fôrma ideal reificada, em seus emblemas desprovidos de materialidade. Esse

processo de substancialização da Razão que se fundamenta num princípio monista

desemboca na sua própria deificação através da instituição de um racionalismo

caracterizado pela sua onipresença, sua onipotência e sua oniciência.

Essa Razão instrumental moderna, essa racionalização emplastadora que,

como traduziu Weber (1974), se converte numa “jaula de ferro” que descamba no

“desencantamento do mundo”, se encontra em crise no mundo contemporâneo.

Seus estatutos estão sendo questionados e desestruturados (ORTIZ-OSÉS, 1986 e

2003; ROUANET, 1987; HEIDEGGER, 1989; HÜHNE, 1994; MORIN, 1999 e 2002;

HORKHEIMER, 2002; ARREGUI, [200_]). Atravessamos tempos crísico-seminais que

apontam para a germinação de novas formas de racionalidade. Dessas fraturas

210

podem emergir perspectivas pluralistas de olhar e de compreender o existir, o

mundo, que podem configurar uma Razão marcada de polifonias e de elã vital; uma

Razão-Sentido.

02.5.3 – A Razão-Sentido: polifonias

E se vivenciarmos o pensamento e o sentimento,em vez de nomeá-los e de fixá-los, os sentimentosfluirão nos pensamentos e estes nos sentimentos.

David Bohm

Parece que na contemporaneidade, notadamente no momento presente (início

século XXI), mediante os aprendizados sedimentados na teia da história humana,

nossas mentalidades se encontram com possibilidades e condições mais propensas

de alargamento de nossas formas de compreensão do mundo, da vida, de nossas

cosmovisões. Parece que, de certa forma, dispomos de horizontes noéticos mais

vastos que permitem articular modos de percepção e de compreensão reveladores

de maior abertura que nos levam a compreender melhor a perspectiva “dualética”

(O. OSES, 1993; WUNENBURGER, 1990) do existir humano. A compreensão dualética

concebe que os opostos se interrelacionam de modo in-tensivo e coexistencial –

coincidentia oppositorum. Assim, estes podem se ampliar e se enriquecer

dialogicamente, mediante a dinâmica interligante entre pólos diferentes e contrários

que constituem a in-tensidade da inteireza do ser, do existir, sem que um precise

negar ou eliminar o outro numa relação de interpolaridade que implica em processos

de coexistência seminal.

Ortiz-Osés (1986, p. 12) afirma que “La vieja racionalidad científico-filosófica

basada en el principio de no-contradicción parece empezar a entender hoy que un

profundo conocimiento debe dar razón a la contradicción como condición (con-

dicción) de vida”, como “conjunción o configuración de contrários y articulación de

opuestos en reunión radical” (ORTIZ-OSÉS, 2003, p. 32). Essa radicalidade supõe

uma Razão implicada com a coincidentia oppositorum através do diálogo in-tensivo

com as oposições e as contradições que fermentam o vivido/vivente, no acolhimento

de seus movimentos e torções. Supõe uma perspectiva implicativa e co-implicativa

dos elementos e Sentidos heterogêneos que são constituintes da complexidade da

211

condição humana, projetando, assim, uma mirada com-preensiva que apreende

conjuntamente.

Wunenburger (1990, p. 65) fala de uma “razão contraditória” que se nutre das

“relações tensoriais múltiplas” dos fenômenos humanos que são “atravessados por

antagonismos dinâmicos” (WUNENBURGER, 1990, p. 88). A dinamicidade desses

estados de tensão impulsiona os fluxos do existir, incrementa as interconexões.

Dessa forma, a contradição é concebida como força constitutiva do ser, da transitude

do ser-sendo que se projeta no mundo mediante o ritmo de seu dinamismo tensorial,

de seus ciclos mutacionais. Wunenburger (1990, p. 252), inspirado em Heráclito,

proclama o princípio da dualitude que “permite, portanto, que se associe o dado a

uma tensão em profundidade, a conexão entre pólos extremos” que se traduz na

compreensão de que “a Vida inteira está atravessada por uma tríade tensorial no

interior da qual os opostos coexistem na sua especificidade” (WNENBURGER, 1990,

p. 103).

A perspectiva triádica compreende a complexidade dinâmica dos fenômenos,

da vida, além dos dualismos excludentes. Opera, assim, a inclusão do terceiro

excluído da lógica formal, contempla a coexistência in-tensiva dos opostos, mediante

os pontos de intermediação entre estes. Intermediação marcada pelo jogo de tensão

permanente dos equilíbrios e desequilíbrios que constituem a pluralidade dos

Sentidos, a unidade na multiplicidade do existir humano.

Dessa forma, os pólos opostos não são considerados como impermeáveis.

Existem brechas e impulsos que impelem e possibilitam a permeabilidade entre as

tensões dos mesmos e que, assim, não os excluem, senão, que potencilizam a sua

interpenetração mediante o dinamismo dos processos de relacionalidade, de

interrelação, de interdependência.

Os pólos contrários dinamizam os fluxos do existir, dão ritmo e movimento à

complexidade da condição humana. Existe um “elemento ligante” entre os opostos.

Os fluxos tensoriais dinamizam as suas interligações. “É no conflito que eles

constituem uma unidade viva” (WUNENBURGER, 1990, p. 214). Unidade que não se

traduz em univocidade e implica em plurivocidade, como a unidade dinâmica de uma

canção que conforma uma harmonia conflitual mediante a confluência da

diversidade de suas notas.

Na perspectiva de ultrapassamento da racionalidade identitária com suas

posturas que levam a excludência, Wunenburger (1990, p. 256) propugna “uma

212

racionalidade aberta e plural”, que “penetra na unidade conflitual e rítmica das

coisas” (1990, p. 259) na in-tensidade de seus recurvamentos e ambivalências.

Aprendemos, com o suceder da odisséia humana, que o excesso de luz ofusca

e cega, bem como, que o excesso de obscuridade imobiliza e paralisa. A condição

humana é ontologicamente constituída, de modo originário, estrutural e estruturante,

de luzes e de sombras, de luminosidade e de escuridão, em suas ambigüidades e

fluxos cíclicos, em suas in-tensidades rítmicas. Aprendemos que da ordem rebenta a

desordem, bem como, da desordem a ordem, e que, assim, ambos os pólos são

interdependentes e complementares. Ou seja, que os estados e modos opostos são

ontologicamente constitutivos da condição humana, e que é da relação in-tensiva de

coexistência entre os mesmos que emerge o movimento que dá ritmo e Sentidos à

vida, que torna a mesma rediviva.

Inspirado em Ortiz-Osés, propugno uma compreensão de Razão como Razão-

Sentido. Ao se referir à idéia de Razão-Sentido, Ortiz-Osés (2003, p. 17) enfatiza que

“La abstracta razón en crisis debe reconvertirse en razón-sentido” en su “doble

acepción de senso o sentimiento y senso o significación: se trata de una significación

existencial”, portanto, de uma “razón embarazada de sentido pregnante” (2003, p.

20), encharcada das in-tensidades do existir cotidiano, da nervura da existência

encarnada. A partir do seu núcleo genésico latino, sensus, Sentido implica em sentir,

sentimento, percepção sensível, como também conota valores, rumo, significação

existencial.

Ortiz-Osés (1995, p. 156), se referindo ao Sentido como sensus, pontua que o

mesmo se apresenta “como proyección implicativa, salida entrante, dirección

asistida, contuición axiológica de los contrarios”, posibilitando assim, “la mediación

del pensamiento y el sentimiento en un doble proceso senti-mental” (grifo do autor).

Desde essa perspectiva, o Sentido se constitui numa relação de copulação entre

carne (matéria, Physis) e espírito (logos, nous). O Sentido se configura como um

amálgama que interpenetra múltiplas dimensões e significações numa juntura que

agrega a policromia das estampas do existir. Ou seja, é a expressão pregnante de

significações e de valores que constituem o existir humano traduzindo destinação,

finalidade e horizonte existencial.

O Sentido se processa de modo encarnado, imerso nas texturas da

corporeidade. Assim, Razão-Sentido se traduz numa Razão encarnada, numa Razão

humanada que rumina, engendra e faz jorrar a polifonia dos Sentidos existenciais;

que religa e agrega os Sentidos dispersos das coisas. Uma Razão implicada, imbuída

213

de cordialidade dialógica e que se enreda na transversalidade da trajetória do

humano, cúmplice de seus paradoxos e das in-tensidades dos acontecimentos.

Ortiz-Osés (2003, p. 45) pondera que “se trataría de recuperar nuestra otra

tradición humanista del sensus latino: el sentido como razón afectiva e inteligencia

sentiente o emocional”. Uma Razão-Sentido nutrida de sensus se desdobra como

uma Razão sensível, processada pela inteligência senciente que lê desde dentro, que

com-preende de modo implicado. “Porque el sentido nunca es absoluto sino

relacional, nunca es impuesto sino consentido, no es razón pura sino razón impura:

razón compartida” (ORTIZ-OSÉS, 2003, p. 224). O Sentido é tecido como teia mestiça

mediante a cadência das relações dialógicas contaminadas da cromaticidade das

vivências do existir cotidiano; emerge do compartilhar as significações que tramam o

vivido/vivente. E Ortiz-Osés (2003, p. 86) arremata: “el sentido como verdad

encarnada, idea enmaterializada, razón incorporada o esencia existencial fruto de

una inteligencia valorativa”. Um Sentido prenhe da pregnância do existir.

Grondim (2005, p. 155) assevera que “El verbo noien que es la origen de nous

(inteligencia), designa en primer lugar una capacidad de sentir, de olfatar, de oler. Y

es que eso es también la inteligencia: tener buen olfato para lo que se encuentra tras

las aparencias”. Desse modo, nossa disposição inteligível configurada pela Razão,

supõe a capacidade de farejar o real, em suas múltiplas dimensões, de sentir seus

odores e sabores, de apreendê-lo em sua expressividade existencial. Nessa esfera,

também faço alusão à pertinência do vocábulo sapere, sabor, como originante do

termo saber. Assim, saber é uma expressão racional que tem Sentido na proporção

em que está imbuído de sabor, de gosto. Tem Sentido aquilo que está impregnado de

sabor. Uma vita sapiens é uma vida que tem sabor, uma vida sábia porque tem

Sentido, e, assim, é palatável, tem gosto. Essa compreensão de saber vai além de

sua conotação meramente técnica e desemboca nos processos de busca da

sabedoria.

Sentido traduz horizonte transversal nas curvaturas das sagas humanas.

Parafraseando Antonio Machado, Ortiz-Osés (1993, p. 96) verseja que “Se hace

sentido al sentir”, ao vivermos com in-tensidade as vicissitudes das contingências.

Como afirma Santo Agostinho “No hay sentido sin alma” (Apud ORTIZ-OSÉS, 1995, p.

156). Os Sentidos são sentidos na in-tensidade da fruição das vivências; emergem e

se desbordam nos e dos núcleos anímicos do existir, na esfera da anima-mundi. En-

volvem, de modo penetrante, as potências coexistenciais da afecção e da intelecção,

214

co-movendo a inteireza do ser-sendo, suscitando, assim, sim-patia e cordialidade,

meditação e com-preensão.

Considerando o Sentido primordial do Logos grego apresentado por Heráclito,

o mesmo se revela como “juego expresivo oracular” (COLLI, 1996b, p. 211 e 212),

como “discurso que revela la phyisis, es decir, el nacimiento, la inmediatez”, como

expressão de vigor, como verbo encarnado. Um Logos que tem locus, que está

localizado na carnalidade das contingências.

Colli (1996b, p. 222) faz alusão ao Logos a partir do fio de Ariadne no labirinto

cretense, como “una red multiforme con infinitos centros de irradiación: un

laberinto”. Assim, um Logos que se traduz numa Razão transversal configurada pelas

tortuosidades e pelas incertezas do existir humano; uma Razão labiríntica que se

adentra pelas curvaturas e dobras, pelas sendas e gretas da complexidade desse

existir plasmado na heterogeneidade da cultura; que, assim, busca compreender

seus recônditos de luzes e de sombras.

Essa Razão labiríntica, como Razão-Sentido, se descortina como uma Razão

oracular que conduz às esferas do conhece-te a ti mesmo, que impele ao

autoconhecimento, ao autoindagar-se; que penetra nos umbrais do ser-sendo

vislumbrando a compreensão de suas ambigüidades. Uma Razão que, portanto, não

se instala desde fora, a partir dos sistemas analíticos plasmados na extensão de suas

estruturas formais, com suas características externas e desprovidas de carne. Ela

emerge desde dentro, dos núcleos internos do ser-sendo, na expressão de suas

angústias e interrogações, de suas mundivivências. Uma Razão que transita na

trama das trajetórias dos paradoxos humanos, na imponderabiliadde de seus

enigmas.

Essa Razão tingida de características mânticas, imersa nas vicissitudes e

contingências da vida, que traduz suas agonias e ambivalências, é marcada pela

plasticidade do dia-lógico, pelo tônus do elã vital, pelo jogo de Sentidos que se

tramam e transitam na urdidura dos acontecimentos, do existir cotidiano; se

configura como elo com-preensivo, com sua veia sensível e fecunda – o logos

spermatikós.

Compreendo um modo de expressão racional que implique no relacional, na

relacionalidade, como expressão da relação de implicação coexistencial entre os

indivíduos, com os repertórios de suas singularidades prenhes de Sentidos; que tece

a implicação entre o ser e o evento, entre o dentro e o fora, entre as polaridades

interpolares dos paradoxos do existir humano.

215

Nessa esfera, uma Razão dialógica que se processa na abertura, na dis-

posição para compreender, tanto o ponderável como o imponderável da condição

humana; que dialoga, se nutre e se enriquece com os mananciais do simbólico, do

mito, do mitopoético; que, assim, percebe o leque de suas possibilidades e as

fronteiras de seus limites. Uma Razão aberta que escuta os influxos do aleatório, das

ambivalências dos acontecimentos, com suas in-tensidades heterogêneas. Uma

Razão caósmica que é entrecruzada por Caos (desordem) e Cosmos (ordem), e que é

constituída pela conflitividade da interrelação complementar de ambos os pólos, por

sua interpolaridade. Uma Razão que, simbolicamente, implica Apolo e Dioniso, o

plano e o curvo, o pensado e o vivido, o que organiza e o que desinstala, o

pensamento e o instinto, o lógico e o poético; o mundus intelligibilis e o mundus

sensibilis como constitutivamente coexistentes.

Nesse horizonte compreensivo, vislumbro uma Razão que seja lúcida e

imbuída de sensatez, que, com seu senso de discernimento e de criticidade, saiba

discernir, interpretar e compreender com vastidão e radicalidade; que seja irradiada

pela luz do espírito altaneiro, mas, que também seja lúdica, marcada por abertura e

flexibilidade, que dance com as sinuosidades do existir, que possa rir de si mesma.

Uma Razão que também percebe suas fragilidades, suas errâncias. Uma Razão

“errabunda” na expressão de Colli, encharcada da pregnância dos conteúdos do

vivido/vivente, do húmus que fecunda o humano.

Uma Razão que prima pelos valores primordiais da Ética, da dignidade, da

liberdade, da solidariedade, do bem, mas que, conjunta e complementarmente, se

nutre do admirável da Estética, da fruição sensível que sorve a feieza e a beleza das

coisas, a plasticidade do existir humano; que mergulha em sua tragicidade, marcada

por fragilidades e precariedades; que se adentra em suas opacidades buscando

compreendê-las como expressões demasiadamente humanas. Uma Razão que,

portanto, transita e dialoga com a penumbra, com a tortuosidade do viver, que re-

vela sua crepuscularidade, seus estados de lusco-fusco, de claro enigma.

A Razão-Sentido destila-se como uma Razão impura, tingida com as

tonalidades mestiças das vicissitudes do existir cotidiano, que é contaminada com os

odores e os sabores, os ruídos e os silêncios, as fricções e as texturas das proezas

humanas, com as errâncias/itinerrâncias do homo viator, no suceder das travessias.

Ortiz-Osés (2003, p. 45), referindo-se a Tomás de Campanella, fala de “una razón

impura auténticamente humana” – a cognitio sensitiva. Uma Razão que, assim, não

eclipsa a multiplicidade dos tons da condição humana, mas que apresenta seus

216

eclipses, seus crepúsculos e auroras como momentos cíclicos de sua saga, marcada

pela policromia dos matizes que revelam o trágico e o cômico. Uma Razão impura

que ultrapassa a unidade da Razão pura e que afirma a pluralidade do devir, a

dinamicidade do ser-sendo; que se nutre da porosidade e da transitividade do existir.

Uma Razão-Sentido emerge e se presentifica a partir do ethos que constitui a

nervura do mundo vivido/vivente em que os indivíduos tecem e entretecem seus

destinos mediante a teia de suas vivências. Portanto, uma Razão axiológica

implicada no ethos, embaraçada nos valores fundos que plasmam a existência dos

indivíduos enraizados em seus modos de estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, em

sua estância nele, entre as curvaturas de suas sagas. Arregui ([200_], p. 117)

assevera que

El concepto de razón no designa una realidad preexistente y el sentido indicado sino que es una noción acuñada en una determinada tradición cultural que sus membros utilizan para descubrir y comprenderse a sí mismos y sus actuaciones, y que por tanto, los conforma, configura su subjetividad.

Desse modo, uma Razão contextual atravessada e maculada pelo teor das

tramas e das impurezas desse viver cotidiano, perfurada por suas porosidades,

donde brotam os Sentidos ingentes do existir. Uma Razão não-indiferente que é

impelida pelo fluxo tensorial dos riscos e dos desafios de cada trajetória,

contaminada pelas in-tensidades das dores e dos prazeres do mundo; circunscrita

entre os vãos dos limites e os desvãos das possibilidades que configuram o existir.

Uma Razão que transita entre os abismos, que penetra nos vazios e nos

silêncios desconcertantes e que dialoga com o “sem-sentido” evocando suas

polifonias. Que penetra com despojamento nas tramas do imponderável, nos

territórios da indeterminação. Morin (2002, p. 105) acentua que

A racionalidade fechada não pode compreender as necessidades humanas que alimentam mito e religião; ela ignora que na racionalidade mesma há emoção e paixão. Em contrapartida, quando é autocrítica e aberta, a racionalidade pode reconhecer seus limites, compreender as características humanas profundas do mito e da magia.

Uma Razão impregnada de daimon, do senso de inquietude e de tensividade

de Polemos, uma vez que, em suas trajetórias, interroga e problematiza (de pro

ballein – lançar enigmas) na busca de Sentidos e mais Sentidos diante do

emaranhado das contingências e dos paradoxos que compõem as espessuras do

existir. Uma Razão que, portanto, indaga com radicalidade, mas que também

217

exclama, que manifesta assombro, que é compelida por este na mobilidade que faz

jorrar perplexidade e admiração; que pondera e medita sobre as manifestações

contingentes do ser-sendo.

Nessa perspectiva, podemos conceber uma Razão que fomenta e canaliza a

potência interrogante do espírito humano mediante a pulsão do espanto co-movente,

na busca e na instituição de Sentidos anímicos que instalam a afirmação e o advento

do ser, do existir, do ser-sendo-com-os-outros. Uma Razão que, nas dobras de suas

aberturas, permanentemente se espanta e se interroga a si mesma, e, assim, pode

estar constantemente se renovando.

Uma Razão-Sentido que, ao se auto-interrogar, ao se auto-questionar, se

percebe como Razão humana, demasiadamente humana; que se descortina e se

constitui nas curvaturas das itinerrâncias humanas; que, inacabada, se faz e se refaz;

qual fênix, vive, morre e renasce incessantemente. Uma Razão dialógica e

meditativa que se constitui na proporção em que escuta/ausculta a si mesma, bem

como as alteridades, mediante processos de interlocução, de dialogias in-tensivas

que complementam e enriquecem mutuamente. Heidegger (2002, p. 159) fala do

“passo que passa de um pensamento, apenas representativo, isto é, explicativo, para

um pensamento meditativo, que pensa o sentido” (grifos do autor), que escuta e

medita, com cuidado e proximidade, o suceder do existir, do ser-sendo; que garimpa

seus Sentidos. Uma Razão tecida pelo pensamento que desinstala a verticalidade da

Razão monolítica e se horizontaliza na dis-posição para o aberto, que dialoga com

despojamento.

Merleau-Ponty (1999, p. 117) fala de um “pensamento orgânico”, ou seja, um

pensamento que, em sua expressão de espírito intangível, impulsiona e é

impulsionado pela pregnância do corpo. Pensamento concebido como seiva que

viceja e que é vicejada pela carnalidade do vivido, pelas in-tensidades de nosso

estar-sendo no mundo. Um pensamento pregnante que se constitui como ondas de

ressonâncias das in-tensidades do viver contingencial. “No se piensa 'sobre' la

realidad sino que se piensa 'en' la realidad” (ZUBIRI, 1983, p. 37). Um pensar que,

desde dentro, problematiza as in-tensidades do mundo vivido/vivente com a

radicalidade de suas interrogações espirituosas; que busca compreender a

multiplicidade de modos de expressão do ser-sendo em suas trajetórias cotidianas.

Um pensar que expressa discernimento, criticidade, e que procura não se fragmentar

nem fragmentar a rede entrelaçada das coisas, da vida; que busca com-preender

suas articulações e implicações, seus fluxos entrecruzados.

218

Zubiri (1982, p. 51) pondera que “No hay oposición entre inteligir y sentir, sino

que hay unidad estructural: inteligir y sentir son sólo dos momentos de un solo acto:

el acto de aprehender impresivamente la realidad”. O pensamento é estruturado

desde o âmbito do sentir. Toda ação inteligente do pensar está impregnada do

senciente.

Nessa perspectiva de compreensão, a Razão-Sentido articula um pensamento

não coagulado nem coagulante, mas um pensamento que move e que circula, que

não interrompe nem atrofia, mas afirma e traduz o dinamismo tensorial das

vicissitudes do existir cotidiano; que não aprisiona senão liberta o sopro do espírito

inventivo e que anima a inqueitude de seu daimon interrogante. Pensamento como

expressão do espírito encarnado que “dá o que pensar”, que lampeja Sentidos, que

revela os valores estruturantes, que plasma a radicalidade do fundo sem fundo do

humano; que desborda os feixes anímicos do existir na in-tensidade de suas

polifonias. Paz (1996, p. 42) proclama:

Pensar é respirar. Reter o alento, deter a circulação da idéia: produzir o vazio para que o ser aflore. Pensar é respirar porque pensamento e vida não são universos separados e sim vasos comunicantes: isto é aquilo.

Os pensamentos são estruturados por idéias que são plasmadas em conceitos.

Os conceitos, como modalidades de expressão da Razão, podem ser compreendidos

como formas expressivas que pretendem traduzir as coisas de modo sistemático. São

modulações do pensar em processos analíticos e meditativos que articulam idéias,

valores e concepções de mundo.

Deleuze e Guattari (1992b, p. 37), tratando dos conceitos, asseveram que

Por muito tempo eles foram usados para determinar o que uma coisa é (essência). Nós, ao contrário, nos interessamos pelas circunstâncias de uma coisa: em que casos, onde e quando, como etc. Para nós, o conceito deve dizer o acontecimento e não mais a essência.

Nessa esfera, uma compreensão de conceito não como uma essência

determinada e dotada de imobilidade, mas como forma viva que procura traduzir a

plasticidade e as in-tensidades dos acontecimentos.

Galeffi (2003, p. 179) pondera que “O conceito é sempre força ativa, nunca

passividade perceptiva e imaginante”, e desdobra: “conceito compreendido como

abertura para o aberto e engendramento do ser” (2003, p. 180), como dispositivo

aberto, como fluxo de interrogações, de des-encobrimento e de criação de Sentidos.

Assim, avento uma acepção de conceito que não reifica os fenômenos em fôrmas

219

fechadas, mas que os revela mediante idéais e formas abertas, e que, portanto,

aciona o potencial de interrogação e de problematização da Razão-Sentido. Razão de

formas plurais que ultrapassa a Razão de fôrmas uniformizadas.

A Razão-Sentido transpõe a esfera da Razão retilínea que se aloja apenas na

ordem do metron e se arremessa pelas searas das vias transversais, da desmesura.

Desinstala a preponderância da univocidade de uma Razão de retas – a reta Razão –

na instauração de uma Razão de redes em que, por suas teias entrecruzadas, flutua

a polifonia dos Sentidos que circulam nos acontecimentos, na instabilidade de suas

encruzilhadas mestiças. Uma Razão que, muito além da medida se traduz como

mediação. Uma Razão plural que interpenetra in-tensivamente metron (a mesura) e

hybris (a desmesura), que penetra nos rasgos das tramas dessa teia policrômica; que

escuta e sorve o pulsar do coração da multiplicidade das experiências

vividas/viventes. Multiplicidade que é irredutível aos modelos unidimensionais de

uma universalidade abstrata. Uma Razão-Sentido que agrega, in-tensivamente,

unidade e multiplicidade.

Desde essa mirada, uma Razão-Sentido implica, portanto, numa Razão

intrínseca às vicissitudes humanas, encharcada dos sabores e dos dissabores da

tragicomicidade do mundo vivido/vivente e impelida pelas ondulações que perfazem

seus ritmos e movimentos; que rumina as texturas das contingências, sendo,

portanto, movida pelo fluxo tensorial dos fenômenos humanos. Seu Sentido está no

entramado de sua implicação visceral com a pregnância da urdidura das coisas

humanas – das coisas-sendo – com suas fragilidades e potencialidades.

Avento uma Razão-Sentido como Razão pática, porque “la afección aporta la

razón a la vida” (ORTIZ-OSÉS, 1995, p. 103). Uma Razão pática eivada do elã do

pathos que provoca perplexidade, que infunde tensão (tesão) e ritmo; que con-voca

às indagações e buscas; que transita pela plasticidade dos ritmos do existir em seu

suceder sincopado. Uma Razão tocada pelo pathos da admiração que surpreende,

que incide no extraordinário, no estado co-movente e que faz sorver a polifonia dos

Sentidos das coisas na jorrância das in-tensidades de cada instante; que cria e

institui Sentidos pregnantes. Dessa forma, uma Razão prenhe de uma “racionalidade

orgânica” (MAFFESOLI, 1998, p. 64) que se espanta e que vibra com os impulsos do

pathos, e que, assim, medita e pensa com vivacidade sem perder o encanto da

cromaticidade que compõe as estampas da transitude do existir, a trama dos

acontecimentos.

220

Arregui ([200_], p. 103) realça que “Es la afectividad y la experiencia vivida, el

contacto existencial, el que pone en marcha el proceso de comprensión”.

Compreensão que, assim, se traduz em com-paixão, implica em co-mover-se

existencial e coexistencialmente, em que cada um se torna cúmplice com o seu si

mesmo e com os outros, numa relação de co-implicação que faz despontar Sentidos

con-sentidos. Uma Razão com-preensiva e, portanto, imbuída de altruísmo.

Nessa esfera, uma Razão-Sentido que busca Sentidos no entramado do jogo

do viver, que se entranha pelas sinuosidades das travessias humanas. Uma Razão

“errabunda” e, portanto, aprendente. Uma Razão sábia que transita, dialoga e se

nutre com as polaridades interpolares do existir potencializando sua fruição, sua

com-preensão. Uma Razão que emerge desde dentro das inquietudes ingentes do

humano e que se destina para a phronesis, para a busca de sabedoria. Uma Razão-

Sentido que faz jorrar os Sentidos anímicos do ser-sendo no advento de seus sons e

silêncios, do fundo sem fundo dos enigmas humanos. Que, na radicalidade de seu

núcleo existencial, aponta para os flancos do aberto, para os horizontes vastos do

fundo sem fundo como espaço de indeterminação em que as liberdades primordiais

podem se desbordar com magnitude.

Considerando essas meditações, urge o advento da Ratio seminales, do Logos

spermatikós, que, com sua potência germinal, se traduz numa Razão interna,

imbuída do germe da transgressividade e da inventividade. Uma Razão enredada no

húmus que fecunda a condição humana, em sua dimensão mater – matéria –, que dá

concretude e corporifica o espírito. Uma Razão que se espanta e se faz aurorescente,

se projetando em processos constantes de nascimento e de re-nascimento dos

Sentidos; que, na vigência do ser-sendo, proporciona metamorfoses na renovação e

na afirmação do elã vital.

Uma Razão que se revigora no fluxo ondeante das águas de seus rios, dos rios

tortuosos do existir humano. Uma Razão poética que, como poien, poiesis, é

autopoética ao se criar e se recriar permanentemente, numa autopoiesis que re-vela

o ser-sendo, em seus estados nascentes – nascentes de Sentidos seminais nas

entranhas do existir cotidiano. Zambrano (2004, p. 220) proclama uma Razão poética

que fala do “ser y no ser, silencio y palabra (…) necesidad de la convivencia, de no

estar sola en un mundo sin vida; y de sentirlo, no sólo con el pensamiento, sino con

la respiración, con el cuerpo, (…) el sentir la vida, donde está y donde no está”. Uma

Razão que nos une e nos re-liga com as coisas, com os enigmas do ser, do

universo/pluriverso; que, ao se renovar constantemente, com sua potência

221

transgressiva, desinstala a ordem dos cânones instituídos, e, com seu vigor

instituinte, se incursiona pelos flancos do extraordinário inaugurando Sentidos

anímicos.

Uma Razão meditativa que se processa mediante a acepção do meditar como

um pensar que escuta e ausculta, que penetra com profundidade e largueza nas

texturas e in-tensidades dos fenômenos humanos indagando sobre seus sem-

sentidos, sobre seus Sentidos. Uma Razão que mergulha nas luzes e sombras desses

fenômenos numa atitude de abertura e de dis-posição para a emergência do que

acontece, do que devém, do inesperado; que escuta com esmero as ressonâncias

destes; que expressa a fruição de um ruminar sorvente, a fineza do cuidado, na

perspectiva de uma postura com-preensiva e implicativa, co-implicativa. Dessa

forma, como Razão meditativa, a Razão-Sentido supõe a decantação de Sentidos que

emergem do coração das coisas, que evocam, com simptia e cordialidade, as

emanações dos ruídos e dos silêncios do ser-sendo.

Ortega Y Gasset (1944, p. 16) afirma que “Razonar es, pues, ir de un objeto –

cosa o pensamiento – a su principio. Es penetrar en la intimidad de algo,

descubriendo su ser más entrañable tras el manifiesto aparente”. Assim, uma Razão

meditativa que penetra no magma, nos recônditos do ser-sendo; que, muito mais do

que saber, se enreda pelas sendas da sabedoria na fruição da multiplicidade dos

sabores do vivido/vivente.

Ortiz-Osés (1999, p. 113) propugna uma “razón implicativa” em que implicar

se traduz em imbricar, enredar. “La implicación ingresiva o asuntiva, situandose en

la mediación simbólica de estos contrários cointegrados en el escenario del hombre”

(ORTIZ-OSÉS, 1999, p. 152). Implicação supõe entrecruzamento, intermediação. Na

fala de Ortiz-Osés (1999, p. 153) “supuración y no superación” em que,

dualeticamente, os fenômenos, as coisas, os Sentidos, se interpenetram, se

entrecruzam in-tensivamente. Assim, os mesmos podem se complementar e se

enriquecer. “El implicacionismo afirma el parentesco de todas las cosas en el ser-

sentido: mas se trata de un parentesco ontosimbólico que se manifiesta a través del

hombre y su razón-sentido” (ORTIZ-OSÉS, 1999, p. 158), em que os Sentidos se

constituem a partir da rede dinâmica da tessitura simbólica que constitui o humano.

Tessitura que, na policromia de seus fios entrelaçados, revela Sentidos implicados.

Uma Razão implicativa que, muito mais que explicar – Razão explicativa –,

busca se implicar com as coisas, com os fenômenos, com a carnalidade do mundo

vivido/vivente para compreender, desde dentro, suas interpelações e desafios, para

222

re-velar os entrelaces de suas polissemias. Re-velar, porque todo velar traz implícito

o esconder. Um revelar velante. O existir, com sua multiplicidade de formas e de

Sentidos e com sua composição de claro enigma, nunca se revela de todo.

Uma Razão que, portanto, apreende e aprende mediante a in-tensidade do

dinamismo das relações, compreendendo que, como vimos, os Sentidos emergem e

se tecem na teia viva dessas relações. Uma Razão implicativa porque os Sentidos são

germinados e jorrados no entre, nessa teia de relações implicadas, na rede de co-

implicação entre os diversos, entre as diferentes formas de existir e de estarmos-

sendo-no-mundo-com-os-outros. Uma Razão afetiva, imbuída de pathos, que, com

simpatia e cordialidade, tece laços que acolhem e entrelaçam; que se percebe e se

sente verdadeiramente humana, humanada.

Uma Razão simbólica que se enreda pela polifonia e pela policromia da rede

dos imaginários humanos, buscando dialogar, interpretar e compreender a

plasticidade de seus símbolos míticos que, de modo arquetípico, estão instalados nas

camadas mais inconscientes do humano impulsionando e animando as jornadas das

sagas cotidianas. Os sistemas simbólicos que nos constituem são impregnados da

polifonia de seus Sentidos. Ortiz-Osés (1999, p. 160) fala de uma “lógica simbólica”

de caráter “ambíguo, abierto y ambivalente” que abarca a multiplicidade e a

cromaticidade dos fenômenos do existir. Assim, uma Razão simbólica que penetra na

intensidade da polissemia dos territórios míticos buscando compreender seus

Sentidos anímicos como expressões do homo simbolicus. Uma Razão simbólica que,

dualeticamente, se configura com sua dimensão diurna e com sua dimensão noturna,

com sua crepuscularidade.

Ortega y Gasset (1979, p. 69) fala de uma Razão vital que “quiere decir

concreta y taxativamente, que los conceptos fundamentales no se los saca de sí

mismo el intelecto o razón pura, sino que vienem impuestos como necesidades

vitales”. Uma Razão que se projeta “como función vital” (ORTEGA Y GASSET, 1944, p.

105), como forma de afirmação da vida, como expressão da radicalidade do existir

em que a vida “vale por sí misma” (1944, p. 133), por sua expressividade originária,

por seu elã vital.

Uma Razão vital como forma de expressão da pregnância do espírito humano

que penetra, revolve e anima a saga do ser-sendo, na fruição de seus Sentidos. Um

espírito animado como disposição imaterial que pensa, medita e sente, impregnado

nas texturas da corporeidade do existir; que se desdobra conjuntamente como anima

(feminino) e como animus (masculino); como o alento do sopro que coaduna pater –

223

o solar, o urânico – e mater – o lunar, o ctônico – na androginia de suas

manifestações criantes. Ortiz-Osés (1999, p. 11), fala de um “Espírito androgínico

capaz de integrar animus e anima en una espiritualidad anímica” (grifos do autor).

Nesse horizonte compreensivo, vislumbro uma Razão vital, intrínseca ao

existir, que proclama e afirma a vida em suas ambigüidades e paradoxos, em sua

conflitividade movente. Desprovida da carnalidade de mater a Razão perde seu vigor

e se dissolve, se desvitaliza e se esteriliza.

Desde essa perspectiva, a relação de simbiose, de coexistência seminal entre

espírito e corpo, entre animus e anima, entre o noético e o afeccional, faz despontar

a potência criante da Razão-Sentido como poiesis na radicalidade de sua condição

andrógina. Uma Razão anímica – anima ratio – infundida pelo estado de ânimo que

viceja as in-tensidades do existir. Uma Razão-Sentido como Razão fractálica

constituída pelos recurvamentos, pelas policromias e pelas ambigüidades do existir

humano, que assim, constela Sentidos polifônicos.

224

Capítulo 03

URDIDURAS DO VIVIDO:

RESSONÂNCIAS DAS PRÁTICAS EDUCACIONAIS

Nossos verdadeiros mestres são as experiências e o sentimento.

Rousseau

03.1 – O exercício da escuta do vivido/vivente

Nesse capítulo, explicito as ressonâncias das vozes que emergem diretamente

das experiências vividas no cotidiano das ações educacionais, em sua modalidade

escolar, no que se refere à busca do cuidado com o advento da Sensibilidade.

Inicialmente apresento, tanto através de falas como de imagens, as ressonâncias das

vozes dos estudantes de minhas disciplinas “Introdução a Filosofia” e “Filosofia da

Educação”, nos cursos de Pedagogia, na Universidade do Estado da Bahia-UNEB e na

Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS, e “Abordagens estéticas e lúdicas

na Educação” e “Arte e Educação”, em cursos de Pós-graduação nas referidas

Universidades.

Nas experiências com essas disciplinas procuro envidar ações educativas que

primam pela articulação de atividades “teórico-vivenciais” mediante a tentativa de

estabelecer uma relação de coexistência dinâmica e fecunda entre os pólos

interpolares do corpóreo (corporeidade) e da intelecção (mente/pensamento).

Articulação que vislumbra a compreensão da ação de educar como um rito vivo de

iniciação ao advento da Sensibilidade, dos Sentidos humanos.

Os conteúdos das vozes dos estudantes se configuram como textos escritos

de forma livre, em linguagem coloquial ou em forma de poemas/versos, bem como

através de desenhos. Essas produções foram realizadas pelos respectivos estudantes

nos momentos de “avaliação” das atividades das disciplinas, relativamente no meio

e no final dos períodos letivos. Nessas “avaliações” estes explicitam suas percepções

e compreensões alusivas aos processos teórico-metodológicos articulados nas

disciplinas.

225

Em seguida, apresento também as ressonâncias das vozes de estudantes de

outras disciplinas, nas referidas Universidades, obtidas a partir de Oficinas realizadas

com estes acerca das implicações da presença e da ausência do cuidado com a

Sensibilidade no cotidiano das ações do educar. As falas foram provocadas a partir

das seguintes indagações:

1. O cuidado com a Sensibilidade (emoções, sentimentos, intuição, simpatia,

corporeidade, imaginação/imaginário, poético, razão compreensiva…) está

mais presente ou mais ausente no cotidiano das práticas educativas?

Como e Por que?

2. Quais as implicações da ausência desse cuidado com a Sensibilidade nas

práticas educativas?

3. Quais as implicações da presença desse cuidado com a Sensibilidade nas

práticas educativas?

03.2 – As ressonâncias das vozes dos

estudantes I

Nas citações das diversas falas, tanto dos conteúdos alusivos às “avaliações”

dos estudantes de minhas disciplinas, como das vozes que emergiram a partir das

indagações nas Oficinas, utilizarei nomes fictícios (pseudônimos).

No primeiro momento, farei a descrição dos depoimentos referentes às

experiências educativas tecidas no bojo de minhas disciplinas nas duas

Universidades. Nas mesmas, como já anunciei, articulo atividades pedagógicas de

cunho teórico-vivencial através da presença de momentos teóricos em que

ruminamos os textos/conteúdos temáticos de modo sistemático. Dessa forma,

porpugno o suscitar do pensamento crítico e inventivo, e de modo entrelaçado e

alternado, incluo a presença de experiências vivenciais em atividades que implicam

na mobilização da corporeidade, do imaginário mitopoético, através de exercícios de

sensibilização, de relaxamento, de sinergização (interação simpática e empática); de

dinâmicas de grupos; linguagens de Arte; exercícios lúdicos; recursos imagéticos

(filmes, fotografias, símbolos, desenhos...) etc.

No decurso dos processos pedagógicos das disciplinas, procuro escutar dos

estudantes como estão se transcorrendo os desdobramentos e as ressonâncias das

atividades dentro dos propósitos vislumbrados. As expressões dos sentires e

pensares dos estudantes se desdobram através de textos escritos de forma livre

168

(linguagem discursiva, poemas/versos) como também de imagens (desenhos...), e

através de movimentos e de performances em que o corpo fala com a pregnância de

suas intensidades.

Os conteúdos revelados pelos estudantes, nesses diversos modos de

expressão, são bastante profícuos ao enfatizar a percepção, a compreensão e a

vivência de suas singularidades, como também são apresentadas nuanças das

implicações na órbita da teia do coletivo. Os depoimentos apresentados a seguir se

referem às diversas atividades teórico-vivenciais descortinadas no cotidiano das

aulas nas duas Universidades. Esses depoimentos foram selecionados entre as

diversas turmas e períodos de 1999 a 2003 como aqueles que me pareceram mais

expressivos para o contexto desse trabalho.

“Introdução à Filosofia”/UNEB - 1999

A disciplina de “Introdução a Filosofia”, na época, era ministrada na turma de

primeiro semestre do curso de Pedagogia, na Faculdade de Educação, Campus

XI/UNEB.

A estudante Sueli afirma que as experiências articuladas nas aulas ajudaram a

“superar barreiras (...) nos faz sentir mais confiantes em nós mesmos (...) assim,

conseguimos assimilar com mais facilidade os conteúdos”. Ana enfatiza: “aprendi a

olhar mais as pessoas, a celebrar a vida”, e acrescenta que essas experiências

causaram “uma grande sacudidela no meu Q.I. Foi a partir dessa desestruturação

que comecei a me situar, a gingar”. Amélia diz: “me levou a compreender melhor,

conhecer a mim mesma (...) admirar melhor a natureza e a vida (...) descobri que

somos errantes e aprendizes”.

Raquel pontua que “desperta nossa sensibilidade para tudo o que existe”.

Paula afirma que “ocasionou bem-estar na aula (...) que fica bem mais proveitosa”.

Salientando os desafios que as experiências trouxeram para ela, realça: “agora vejo

que foi preciso passar por todas essas dificuldades”. Edvan desdobra: “vejo que criar

é muito mais gostoso, muito mais prazeroso (...) se tiver criatividade, motivação,

dança, vibração e energia positiva”.

Júlio proclama: “Aprendi a abrir as portas para que a imaginação crie asas e

decole para um mundo de indagações e criações”. Aparecida diz que “fez brotar,

nascer através do mais lindo processo de 'partejamento' (...) me fez enxergar mais

plenamente a vida”. Áurea afirma que as “cantigas de roda, piadas, brincadeiras e

outras” levaram a nos “sentirmos mais soltas, mais abertas ao conhecimento”.

Fazendo alusão a momentos específicos de experiências vivenciais, Iara revela:

“Minhas pupilas dilatavam-se de tal maneira que um brilho novo surgiu de meu

169

olhar”. Ivo diz que “somos levados a descobrir que as dificuldades e os desequilíbrios

são importantes para o nosso crescimento interior e pessoal”. Cecília assevera:

“aprendi (...) que nossa vida é um constante aprender”.

A estudante Simone verseja:

“Relaxamento e integraçãoBuscando o conhecimento e a uniãoAssim começa a aulaDe um educador que celebra paixão.

O medo e a timidezForam embora de uma vezDepois de muita cantoriaDeixei fluir minha alegria.

Deixei 'parir' minhas idéiasE meu conhecimentoAprendi a admirar a belezaDe cada momento”.

“Filosofia da Educação”/UNEB - 1999

A disciplina “Filosofia da Educação” era ministrada na turma de segundo

semestre do curso de Pedagogia, do Departamento de Educação, Campus XI/UNEB.

Elza afirma que “A utilização de 'ritos de iniciação' (...) no decorrer das aulas

ajuda muito na compreensão dos conteúdos, com o desenvolvimento da consciência

e da vivência de sentimentos”. Mírian acentua que “as dinâmicas trabalhadas em

sala de aula fazem uma interação entre corpo, mente e espírito despertando nossa

sensibilidade” e Isa complementa: “criando assim um ambiente de mais

descontração, leveza”. Lúcia pontua que “as aulas (...) buscam fazer uma interação

entre corpo e alma (...). Não aprendo apenas os conteúdos dados, mas busco

realizar-me como mulher (...) celebrar a vida na inteireza de meu ser”.

Manoel enfatiza que “não há experiência mais animadora e excitante do que

unir a sensibilidade humana ao aprendizado científico”. Jeruza diz: “comecei a perder

um pouco da 'vergonha' de aparecer”, ou seja, de participar das apresentações

performáticas etc. Marcos pontua que “os momentos de dinâmica de auto-

conhecimento e também de reconhecimento do outro sempre trazem uma espécie

de lição de vida”.

Vera verseja: “Nos ensaios para o desabrochar/ comecei a me enxergar/ me

soltei das amarras/ fiquei livre, solta no ar/ como a libélula que sai do casulo/

enxerguei um novo mundo”. Vanusa afirma que é “Um caminho com alguns medos

(...) medo de ir (...) mas também com muitas possibilidades (...). Percebi a

importância de olhar o outro”.

170

“Filosofia da Educação”/UEFS – 1999

No curso de Pedagogia da UEFS, a disciplina “Filosofia da Educação” era

ministrada, no terceiro semestre.

Dalva afirma que “a disciplina (...) mostrou (...) que a aula pode ter mais

encanto se houver exposição dos assuntos de forma mais lúdica e participativa”

Gabriel diz: “me senti à vontade”. Joseane realça: “o que mais me marcou foi a

integração em todos os momentos da arte (cantigas, brincadeiras, versos, poesia,

dança...) com o conhecimento científico”. Paula pontua que “o uso do corpo como

forma de expressão é fascinante”.

O estudante Antonio parteja em seus versos:

“Tudo que aqui fazemosVisa celebrar a vidaPara despertar em nósA criança adormecida.

Corpo e mente em conjuntoDevemos desenvolverPois somente dessa formaO homem pode crescer.

De forma bem integradaTudo foi desenvolvidoOs assuntos estudadosGanharam novo sentido.

Tudo aqui se desenrolaCom muita satisfaçãoPromovendo crescimentoEm forma de integração.

Tudo o que vivenciamosCom certeza foi demaisTudo foi muito gostosoPor isso queremos mais”.

“Arte e Educação” – Curso de Especialização

em “Alfabetização”/ UEFS - 2000

A disciplina “Arte e Educação” compõe o currículo do Curso de Especialização

em Alfabetização, na UEFS. O período em que a mesma é oferecida é variável no

conjunto das disciplinas do mesmo.

171

Para diversos estudantes, as experiências pedagógicas tecidas na disciplina

proporcionaram expressiva “integração” e “interação” entre a própria turma, mesmo

depois de um certo tempo de encontro através de outras disciplinas. Alice diz que as

mesmas levam à compreensão do “ser humano dotado de emoção e razão”. Marluce

acentua a relevância das atividades da disciplina, sobretudo as experiências com a

corporeidade, e afirma que nas práticas educativas cotidianas “deixamos de

trabalhar com o todo (...) nos centramos exclusivamente nas partes”. Dilma pontua a

importância de “vivenciar mais nossas emoções despertando o lado humano que

muitas vezes fica adormecido” e realça que foram “momentos intensos”.

Joana fala que as atividades na disciplina levaram a perceber os “silêncios que

brotam em meu interior”, realçando que o cultivo do “imaginário” a tornou “mais

aberta a ver a vida de um prisma não mais linear (...) experiência belíssima!”. Eva

afirma que “pudemos a todo momento utopiar, recriar, transformar, bailar e poemar

sobre os conteúdos (...) de forma prazenteira”. Carlos por sua vez declara que as

mesmas levaram a “mergulhar em meu interior”, a uma “relação mais dialógica com

o outro” impulsionando ao “entusiasmo”. Júlia pontua que passou a “enxergar

melhor o mundo”. Referindo-se aos processos de aprendências, Antonia afirma que

as atividades da disciplina estabeleceram “um clima propício para aprendizagem”

em que a mesma se deu “de forma gostosa e prazerosa”.

“Abordagens estéticas e lúdicas na Educação” –

Curso de Especialização em “Psicopedagogia”/UNEB

(Paulo Afonso) - 2001

A disciplina “Abordagens estéticas e lúdicas na Educação” constitui o currículo

do Curso de Especialização em “Psicopedagogia” do Campus VIII/UNEB, sendo

oferecida como terceira ou quarta disciplina do currículo.

Cássia traduz um pouco a vivência de outros estudantes afirmando que “No

primeiro encontro, um choque, uma barreira que começou a ser quebrada ao largo

do curso”. Daniela declara que as experiências com a disciplina levaram à

“metamorfose do velho no ritual de passagem”. Sanare pontua que as mesmas

traduziram um “Renascer!”. Marta diz: “descobri que ser sensível não é ser besta!” e

acrescenta que aprendeu a “valorizar o corpo e a alma” conjuntamente. Nessa

esfera, Railda acentua a integração do “masculino e do feminino”.

Rosa realça: “Aprendi que posso chegar muito mais longe do que pensei ser

possível”. Carmem fala que as experiências levaram a “pensar a vida com

entusiasmo e sensibilidade”, e para Carlos as mesmas implicaram na “Mobilização do

ser enquanto ser sensível”. Rita, referindo-se às vivências, verseja: “Deixar o corpo

172

falar/ A mente fluir/ E ter a certeza/ Que posso parir”, e complementa dizendo que as

mesmas “fizeram acreditar mais em mim, na minha capacidade criadora”. Hélio

declara que as experiências vividas na disciplina realçaram a aprendência do

“Conviver com o diferente, descobrir-se e descobrir a magnitude da vida humana”.

Jandira arremata que as atividades da disciplina foram “momentos de

encantamento”.

Ilma debulha em seus versos:

“Corpo e mente se encontrarame gozaram juntosnum orgasmo tão intensoque resultou num parto.

E parimos a vidaparimos a emoçãoparimos artenos parimos”

“Introdução a Filosofia”/UNEB – 2002

Mônica pontua que nas experiências da disciplina ocorre “Uma busca

constante, um desafio inacabado”. Arlene diz: “Aprendi a observar mais as coisas

simples vendo uma verdadeira complexidade”. Gervásio fala da descoberta de que

“devemos estar sempre admirando, nos surpreendendo”. Silva, referindo-se às

atividades vivenciais, assevera que os “momentos de relaxamento (...) serviram para

que eu conhecesse melhor meus colegas. Pude até aprender a olhar nos olhos das

outras pessoas”.

No que se refere aos desafios da trajetória, Arlinda ecoa: “foi desafiador, mas

tudo que constitui desafio é muito bom”. Débora proclama que foi uma “etapa

difícil”, porém, afirma que isso leva as pessoas à “busca de si mesmas”. Lino

anuncia: “despertou em nós inquietações, paixões, coragens, buscas”. Janice

arremata que foi “Tudo inovador/ causou perturbação/ mas que bela emoção”.

“Introdução à Filosofia”/UNEB – 2003

Sandra fala de seu processo de participação nas experiências da disciplina

afirmando que “No início muita apreensão, com o decorrer das aulas, a novidade de

trabalhar com o corpo em sintonia com a mente (...) o despertar de ser realmente

SER HUMANO”. Bárbara diz: “Eu me sinto como um peixe, mergulhando nas

profundezas do oceano e encontrando o verdadeiro significado da beleza da vida”.

Márcia afirma que as mesmas representam “uma experiência ímpar pois sempre tive

muita dificuldade de trabalhar o corpo (...) está sendo momentos de realizações,

173

apesar das resistências internas, eu estou tentando me libertar”. Pedro realça a

“importância que é o despertar, o espantar-se” e Fabiana pontua a importância de

“compreender (...) a minha própria existência (...) descobri o mundo com um novo

olhar”. Aline declara: “Que bom aprender com prazer e alegria”.

“Filosofia da Educação”/UNEB – 2003

Camila acentua que as experiências vividas na disciplina levam à

compreensão de que “O aprendizado é um renascimento constante do ser” e Miraci

afirma que as mesmas implicaram no “fazer-me desfazendo-me”. Julieta pontua:

“Mostrou a razão com emoção e nasceu uma verdadeira paixão”.

“Filosofia da Educação”/UEFS – 2003

Nas atividades pedagógicas da disciplina Selma declara: “Aprendi a parir com

alegria (...) a reinventar, a criar”. Francisco pontua: “aprendi a aprender com o meu

próximo, a respeitar melhor as diferenças e a compreender mais as pessoas” e Nadir

acentua que a disciplina leva ao “desenvolvimento do ser humano enfocando a

compreensão, a criticidade”. Célia assevera: “Pude descobrir, criar, recriar, enfim,

me tornei participativa”, e Maria afirma que despontou “um novo caminho de

descobertas, levando em conta o lado criativo”. Luciana exclama: “Me sinto (...) livre

para voar”. Rúbia explicita que as atividades da disciplina “procuram entrelaçar o

bem e o belo para descobrir a cada dia mais o encantamento da vida”.

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03.3 – Considerações alusivas às vozes dos

estudantes, imagens etc.

As considerações que teço nesse momento acerca das falas dos estudantes de

minhas disciplinas, das observações que apresento acerca de momentos vivenciais e

das fotografias e desenhos elaboradas no decurso das experiências, terão caráter

panorâmico, e, portanto, serão sucintas. No capítulo seguinte “O fenômeno do

educar como um rito de iniciação ao advento da Sensibilidade”, me deterei com mais

intensidade e vastidão em meditações acerca dessas considerações aqui enunciadas,

direta ou indiretamente.

A perspectiva de urdir a ação de educar como rito vivo de iniciação ao advento

da Sensibilidade, mediante a articulação de atividades teórico-vivenciais, implica em

desafios intensos no contexto das práticas educativas instituídas. Para tanto, a dis-

posição para o aprendizado do cuidado, da com-preensão, da tolerância, da simpatia

e da empatia; para a expressão do pathos e do elã criantes etc. são ingredientes

imprescindíveis. Carece de que, como educadores, estejamos nos iniciando e nos

reinventando continuamente.

Ao sugerirmos essas experiências teórico-vivenciais que interpenetram a

corporeidade, o imaginário (emoção, sentimento, imaginação, poético...) e a

racionalidade (pensamento meditativo, crítico e inventivo), a maioria dos estudantes

se dis-põe aos compassos dos desafios. Porém, em cada turma, existem alguns que

apresentam certas dificuldades ou resistências – o que considero “naturalmente”

compreensível na esfera de nossos contextos culturais etc. Obviamente que a

participação em tais atividades deve sempre ocorrer de forma espontânea e livre.

Como algumas falas anunciam, inicialmente surgem sentimentos de “medo”,

um certo “choque”, como vimos na voz de Sandra: no “início muita apreensão”. As

posturas de espanto e de estranhamento são comuns diante dos desafios que o novo

suscita. Porém, com o decurso do processo, a grande maioria se envolve e sorve as

experiências com a corporeidade, com as linguagens de Arte etc. de modo bastante

fecundo e até surpreendente, como na afirmação da própria Sandra: “com o decorrer

(...) o despertar de ser realmente SER HUMANO”, ou com Janice: “causou

perturbação/ mas que bela emoção”. Assim, por dentro dos limites, das brechas de

suas potencialidades, podemos cultivar as possibilidades do aberto na plasticidade

dos fenômenos do educar, do existir. São muitos os momentos em que sou

intensamente surpreendido com processos de participação, de criação e de recriação

extraordinários das formas e dos conteúdos, dos Sentidos, por parte dos estudantes,

através do dinamismo dessas atividades. Nestas, de modo geral, eles revelam suas

descobertas e aprendências com senso de espirituosidade extraordinário.

184

Como os depoimentos apontam, as in-tensidades dessas experiências teórico-

vivenciais apresentam ressonâncias bastante amplas e expressivas, na inteireza in-

tensiva de cada ser-sendo, como os processos de “autodescoberta” e de

“autoconhecimento”, do “crescimento como pessoa”, do “compreender melhor a si

mesmo e os outros”, do conseguir “olhar o outro”, do descobrir e do cultivar as

“potencialidades”, a imaginação criante, o pensamento crítico e inventivo; da

abertura e da expansão do senso de “compreensão da vida, do mundo”; das

possibilidades de “parir idéias”, sentimentos e valores, em processos de re-

nascimentos; do tecer as redes de simpatia e de empatia que incidem em “relações

interpessoais” mais aprazíveis e solidárias, mais humanadas; do compartilhamento

de saberes e sentires; da instalação de um ambiente educativo (sala de aula etc.)

“mais leve e agradável”; do emergir de “novos olhares”, do “enxergar mais

plenamente a vida” (Aparecida); do “admirar melhor a natureza e a vida” (Angélica);

do visualizar “um novo mundo” (Vera), o “verdadeiro significado da beleza da vida”

(Bárbara), da escuta dos silêncios internos; dos “momentos de encantamento”

(Jandira).

Os estudantes realçam bastante a diferença entre o tratamento dos conteúdos

realizado apenas, e de modo constante, no âmbito teórico (analítico), e o tratamento

dos mesmos de modo teórico-vivencial, através da alternância e do entrecruzamento

entre meditação/reflexão sistemática e atividades dinâmicas que envolvem a

corporeidade, linguagens de Arte, ludicidade etc. Desse modo, acentuam como o

saber passa a ser ruminado e sorvido com mais sabor ao passar pelo crivo do

vivencial, mediante a fruição que articula a carnalidade e a contextualidade no

dinamismo do vivivo/vivente; realçam que a atividade vivencial “ajuda muito na

compreensão” (Elza) dos conteúdos. Os mesmos passam a ter “mais sentido”, sendo,

portanto, compreendidos de modo pregnante e anímico. Enfatizam que com a

presença do “criar é muito mais gostoso” (Edvan). Assim, o processo de aprendência

fica mais “prazeroso”, as aulas ficam “bem mais proveitosas” (Paula), têm “mais

encanto” se tornam acontecimentos fecundos.

Nessa perspectiva de educar, outro dos momentos bastante relevantes, é a

elaboração individual e coletiva dos trabalhos, das performances (linguagens de Arte

etc.) que são apresentados acerca dos conteúdos das disciplinas com o meu

acompanhamento. Acompanhar e orientar nos desafios desses processos de

partejamento é uma experiência bastante in-tensa que requer muito afinco e

despojamento. São co-aprendências expressivas em que partejamos juntos

(educador e educando). São muitas as curvas e dobras que constituem os momentos

de tensão, de dores e de angústias, mas, que, na dinamicidade dos processos,

potencializam e podem se converter na alquimia das iniciações que animam e

185

engendram os partos, os nascimentos. Como ressoa a afirmação de Ivo: “descobri

que as dificuldades e os desequilíbrios são importantes”. Quanto mais intensos os

desafios dos processos de partejamento – se bem conduzidos –, mais vastos tendem

a ser os gozos das descobertas, das criações extraordinárias que desbordam os

Sentidos existenciais.

Além de sorver as texturas e policromias das referidas performances, também

escuto depoimentos verbais tocantes que revelam parimentos e percepções

expressivas: descoberta da plasticidade e da vivacidade do corpo, das

potencialidades criantes do imaginário; das possibilidades de fruição prazenteira dos

conteúdos com uma “compreensão” viva dos mesmos; o começo do vivenciar

processos de “libertação” existencial, de superação de bloqueios e de “preconceitos”

que asfixiam etc. Escuto ecos como o de Selma: “Aprendi a parir com alegria (...) a

reinventar, a criar”, e de Iara ao falar que com essas experiências “um brilho novo

surgiu de meu olhar”. Também escuto muito a expressão: “os conteúdos foram bem

melhor compreendidos, de modo dinâmico e vivo” (diversos) que afirma o vigor do

saber encarnado, que atravessa por dentro, na busca de um educar como poiesis,

como processo de criação.

Reitero que esses processos se configuram como empreitadas difíceis, como

são todas as buscas no garimpar das preciosidades dos Sentidos do existir, mas que,

com o decantar das aprendências, nos fluxos in-tensivos das trajetórias, podemos

rendar os mesmos, cada vez com mais desvelo, intensidade e audácia. Assim, em

cada compasso, os feixes do espanto e da admiração se propagam com o surgimento

do novo, eivado de Sentidos, infundindo animosidade e encantação. Desse modo,

sigo buscando converter as in-tensidades dos fluxos e movimentos que compõem

cada travessia em possibilidades e em oportunidades múltiplas de errâncias e de

aprendências, em momentos de iniciação, tanto minhas como dos estudantes. São

processos de itinerâncias/itinerrâncias que tocam e fascinam.

Portanto, como os depoimentos revelam, podemos tornar o educar, com suas

peculiaridades e sinuosidades, com suas heterogeneidades e ambivalências, em

momentos de afirmação e de renovação dos Sentidos do humano. Nessa esfera, as

falas apontam para o “despertar nossa sensibilidade” (Raquel), o aprender “a

admirar a beleza” (Simone), o aprendizado da admiração; a busca da “interação

entre corpo, mente e espírito” (Mírian) vislumbrando assim, a inteireza in-tensiva do

ser-sendo. Alguns falam que essas iniciações educativas proporcionam a “celebração

da vida”, a fruição de saberes encharcados de sabor que traduzem a passagem do

“mecânico” para o “dinâmico”, para o orgânico, vislumbrando a busca de sabedoria,

do entrelace entre “o bem e o belo”, no sorver o “encantamento da vida” (Rúbia).

186

Nos momentos em que nos encontramos em roda (dançando, cantando,

brincando, celebrando...), emerge, de modo bastante intenso, o compartilhar do

estar-juntos, dos sentimentos de cordialidade e de solidariedade, de alegria e de

contenteza que sinergizam e entrelaçam. Momentos que estampam os tons mestiços

que entrecruzam as diferenças na in-tensidade de vivências preciosas de celebração

da vida, da coexistência; momentos de re-encantamento.

As imagens dos desenhos elaborados por alguns estudantes nas “avaliações”

das disciplinas, constantes nas fls. 175 a 179, se desdobram em 2 momentos

trazendo características que representam, em primeira instância, a postura dos

mesmos no início das atividades e, em segunda instância, a postura destes do meio

pro final da trajetória. Em todos eles, as primeiras imagens tracejam posturas

marcadas pela linearidade e pela formalidade que conotam certa imobilidade e

apatia. As segundas imagens revelam a dinamicidade dos tons mais curvos,

conotando posturas que traduzem vivacidade e alumbramento. Ressalto que essa

disposição das imagens em dois momentos foi iniciativa dos próprios estudantes.

Nas primeiras ilustrações é patente a representação de posturas marcadas por

enrijecimento e imobilidade, enquanto que nas segundas são plasmadas posturas

que revelam mais mobilidade e expansividade traduzindo a plasticidade do

dinamismo dessa perspectiva de educar, do próprio existir. Nalgumas imagens, em

primeira instância, também ficam bem realçadas posturas mais individualizadas, e

em segunda instância, posturas mais coletivizadas acentuando o despertar do

espírito de solidariedade e de compartilhamento que desponta com os

desdobramentos das experiências tecidas.

Também é muito freqüente a elaboração de desenhos (vide fls. 180 e 181)

que revelam os símbolos do sol, da clareira da compreensão, do olhar mais

expansivo e alumioso; das flores, traduzindo alegria, florescimento do espírito e do

coração; das árvores, conotando enraizamento, esverdecimento e o vicejar de flores

e frutos; das borboletas que podem traduzir estados de fluência e de aberturas,

expressão de movimentos e metamorfoses, como também a policromia do existir.

Outras imagens (fls. 182 e 183) configuram, de modos diversificados, os

símbolos do círculo, da roda, traduzindo os entrelaces do estar-juntos; o compartilhar

de sentires e pensares; os fluxos rítmicos e expansivos do existir, do co-existir; o

florescer coletivo de uma compreensão e de uma vivência do espírito interrogante e

altivo, do trilhar caminhos curvos e abertos; a busca da relação entrelaçada entre

razão e emoção, masculino e feminino, na fruição de sua coexistência criante.

As fotografias constantes nas fls. 184 a 187 revelam a plasticidade rítmica e a

policromia de alguns dos performances elaborados e apresentados, tanto em aulas

como noutros eventos pedagógicos que realizei. As performances se traduzem em

187

apresentações plasmadas através das linguagens de Arte ou de expressões étnicas

em que os conteúdos temáticos das atividades são ressemantizados, recriados e

transfigurados através dos símbolos polifônicos dessas expressões. Dessa forma,

conteúdos e formas se entrelaçam de modo in-tensivo através de momentos que

podem ser considerados como ritos vivos de iniciação e que implicam na afirmação e

na expansão, na criação e na recriação dos significados e Sentidos humanos de

modo pregnante e anímico.

Tanto através das falas, como de minhas observações, percebo que as

atividades que envolvem a corporeidade ao mobilizar emoções, sentimentos,

energia/sinergia, interação etc., na proporção em que são conduzidas com cuidado,

nos momentos mais diversos, podem contribuir, com bastante relevância e primor,

nos processos educativos que vislumbram o advento da Sensibilidade.

Os diversos exercícios de sensibilização, de relaxamento, de sinergização etc.

que implicam em processos de desbloqueamento, de descontração, de con-

centração, de contato mais próximo com o corpo próprio, bem como nos contatos

que se descortinam com os outros através de olhares, toques etc., se convertem em

experiências singulares de autodescoberta, de autoconhecimento, de despojamento,

de auto-estima, do suscitar a simpatia e a empatia, o feixe do elã vital, a teia viva

das co-aprendências. Implicam na dis-posição de educandos e educadores para os

desafios dos processos educativos de modo mais despojado; na composição de um

ambiente inter-humano acolhedor e prazeroso, de incrementação de uma atmosfera

educativa com mais arejamento e animação; no cuidado com a inteireza do ser-

sendo de cada um e de sua interligação com os outros; no cultivo da afetividade que

entrelaça, amoriza, e que dá cromaticidade educar, ao existir e ao co-existir.

03.4 – As ressonâncias das vozes dos estudantes II

O que entitulo como “As ressonâncias das vozes dos estudantes II” apresenta

as escutas que realizei nas Oficinas com estudantes de outras disciplinas em duas

turmas de Pós-graduação em Psicopedagogia na UNEB (Serrinha e Paulo Afonso) e de

três turmas do curso de graduação em Pedagogia, sendo uma turma na UEFS e duas

na UNEB, entre os anos de 2005 e 2006.

Indagação 01: O cuidado com a Sensibilidade (emoções, sentimentos,

intuição, simpatia, corporeidade, imaginação/imaginário, poético, razão

compreensiva...) está mais presente ou mais ausente no cotidiano das práticas

educativas? Como e Por que?

Das 85 “enquetes” em que obtive respostas das indagações, 75% dos

estudantes afirmaram que está mais ausente e 25% afirmaram que está mais

188

presente (ou ficando mais presente). Algumas das “enquetes” foram respondidas em

duplas ou em trios.

Os que consideram que a Sensibilidade está mais presente nas ações do

educar, de modo geral, justificam (como e por que) que está ainda “timidamente” e

“aos poucos” se tornando presente; está mais “no campo do discurso” (José); “os

educadores hoje, buscam incrementar atividades com textos poéticos, (...) músicas,

danças, dramatizações” (Lívia). Sueli afirma que a presença do cuidado com a

Sensibilidade tem ocorrido “com brincadeiras, jogos, músicas, expressão corporal

etc.” Diversos respondentes pontuam que essa perspectiva, com dificuldade e

processualmente, tem se tornado mais presente, sobretudo, através dos “temas

transversais” (Cássia) que sugerem a “necessidade de trabalhar com o corpo

evitando os preconceitos” (Paula). Flávia e Júlia afirmam que atualmente “o aluno

tem mais liberdade em sala de aula, maior aproximação com o professor e colegas e

oportunidade de expressar sentimentos”. Cássia, Lúcia e Rita falam que “atualmente

o docente trabalha mais a imaginação dos alunos”.

Dos 75% que consideram a Sensibilidade mais ausente nas práticas

educativas, alguns acentuam que isso ocorre em decorrência do fato de que a

grande maioria dos professores não teve nenhuma formação nem preparação para o

cuidado com a Sensibilidade: “tivemos professores duros” (Márcia). A grande maioria

dos professores prima pelo cumprimento do conteúdo programático em que a

“matéria é passada de forma fria, sem vida” (Alberto). Muitos professores se

“acomodam” em reproduzir as “receitas” apresentando o “sistema como desculpa”

(Ana). Nádia realça a “falta de compromisso e sensibilidade dos educadores” que,

muitas vezes, consideram apenas o “mero vínculo profissional”.

Dessa forma, as práticas educativas são desenvolvidas “sem sentimentos,

sem criatividade e dinamismo” (Cláudia). Alguns falam que muitos professores

consideram que as atividades que mobilizam a Sensibilidade “os fazem perder

tempo” (Elma), são vistas como “algo ilusório” (Maria, Amélia e Paulina), pois o

“importante é o conteúdo” (José).

Também está muito presente, de acordo com muitas das falas, os

preconceitos que impedem os indivíduos de “se aproximar dos outros” (Geovane e

Selma), o não saber lidar “com as próprias emoções” (Raimundo). Muitos

argumentam também a predominância das “práticas educativas mecânicas” (Maria,

Amélia e Paulina), o estado de conformismo no “cumprir as regras” (Cida). Núbia

pontua que “não fomos educados para a transversalidade” mas para a “divisão do

saber em disciplinas” (Admilson e Cleide) que desembocou na sua “fragmentação”,

em atitudes que “aviltam o corpo” (Tavares). Alguns também acentuam a “violência

crescente nas escolas”.

189

Para muitos estudantes, as práticas educativas se circunscrevem na esfera do

superficial, acentuando apenas a “mecanização” e a “reprodução”. Fomentam

também a “competitividade”, em que “as pessoas se petrificam cada vez mais”

(Leila) mediante experiências em que reina a “distância entre professor-aluno” em

que “os sentimentos não são valorizados” (Solange) e que projeta “seres rancorosos

e insensíveis” (Marcos). Jesiel e Aura afirmam que “A escola não vê o indivíduo como

um todo e sim fragmentado, separado do lado afetivo/emocional”.

Indagação 02: Quais as implicações da ausência do cuidado com a

Sensibilidade nas práticas educativas?

Muitas das respostas realçam que a ausência do cuidado com a Sensibilidade

na ação do educar implica nos processos de “mecanização” e de “tecnização” da

mesma através de um “ensino mecânico” que se traduz em “aulas desmotivadas”,

em “ausência de interação”, em que os estudantes “ficam 'inertes' em suas

cadeiras” (Rosane). Desse modo, “as aulas tornam-se apáticas, frias, repetitivas”

(Conceição) em que o “processo de ensino e aprendizagem perde seu significado”

(Leila). Nessa esfera, o “corpo está reprimido”, forja-se “corpos estáticos, apáticos e

amorfos” (Mirtes e Luciene) e ocorre “baixa auto-estima” (Telma).

Nesse contexto em que é afirmado que o descuido com as emoções e com os

sentimentos é prevalente, é grande o índice de “atitudes agressivas e violentas”.

Essa escola forja “seres irritados, tristes e doentes” (José), “relações estressantes e

agressivas” (Rosa e Sandra), “relações ásperas” (Diana). Torna-se, assim, “um lugar

chato, cansativo” (João), na proporção em que predomina o racional em detrimento

do emocional; “leva a produção de 'robóticos'” (Adriana e Clécia), de seres “frios” e

“insensíveis”. Assim, “as pessoas ficam como que travadas” (Inácia) e “fechadas”.

Mônica afirma que “a aprendizagem puramente racional não surte muito

efeito”. Dessa forma, diversos estudantes falam que a mesma “fica muito chata”

com o atrofiamento “das linguagens do sentir” (Telma), o que incide na “falta de

ética (...) de afetividade, interação e compreensão” (Telma), levando à

“desumanização”. Assim, com essa “falta de amor” (Rosa e Sandra), a educação

projeta o indivíduo “fechado, recalcado que não consegue se relacionar por completo

com outras pessoas” (Cida). Valéria declara que “não se pode educar sem

sentimentos” e Carlos pontua que, dessa forma, o educar privilegia o “ter, a

mecanização, a automatização (...) que deixa de lado a poesia da vida”. Cássia, Lúcia

e Rita acentuam que nessas práticas educativas que desconsideram o cuidado com a

Sensibilidade ocorre “o fracasso escolar, evasão, repetência, aluno não reflexivo e

sem criticidade”.

Alguns apontam também para aspectos de cunho mais institucional e

estrutural como a “superlotação das salas”; as posturas de “cobrança da direção”; o

190

“descompromisso” de professores e de admnistradores; a superestimação da

dimensão técnica: “quem manda no pedaço é a técnica” (Fábio); a presença

assustadora da “violência” etc., como variantes que estão diretamente ou

indiretamente implicadas no descuido do educar como formação para os valores

humanos, para a Sensibilidade.

Indagação 03: Quais as implicações da presença desse cuidado com a

Sensibilidade no cotidiano das ações educativas?

O cuidado com a Sensiiblidade no cotidiano das ações educativas “humaniza e

aclara o raciocínio lógico” (Leila). Para muitos, “desenvolve a interatividade”, “leva à

humanização”, ao “aprender a viver”, a “descoberta e desenvolvimento das

potencialidades”. Faz “aflorar a consciência, aquilo que somos” (Mércia). Contribui na

“formação de um ser mais feliz, mais aberto para a convivência” (Bete). Implica em

“mais abertura e compreensão de si e dos outros” (Lenilda), leva ao “conhecimento

de si mesmo (...) a estar aberto ao novo” (Delma). Instaura uma “relação de amizade

entre aluno e professor” (Miguel) em que procura-se “valorizar o compartilhar, o

doar-se” (Dulce e Natália). Supõe “Um professor bem aberto para lidar com as

diferentes situações” (Tânia), para que haja “mais humanização”.

Dessa forma, o educar leva à “paixão de criar” (Telma), ao “fortalecimento

das relações interpessoais, aulas significativas, desenvolve o ser humano

integralmente” (Cátia). Isso se traduz num “ensino satisfatório” (Vanda) que

proporciona o “crescimento interior” (Marta e Cleonice), “a auto-estima, socialização,

solidariedade, bem-estar coletivo, criatividade” (Telma). Ocorrem “melhores

condições de aprendizagem e de convivência além de proporcionar um ambiente de

trabalho e de estudo prazeroso e descontraído onde o processo de construção e

reconstrução do conhecimento brota significativamente” (José), mediante um

“dinamismo” e uma “interação” em que “predomina a simpatia, a compreensão, a

amorosidade e o prazer de celebrar a vida” (Maria, Amélia e Paulina).

Assim, Isaias afirma que “teremos seres mais humanos e menos mecânicos” e

podemos ultrapassar o “educar para 'vencer'” (Iara) e atingirmos o “educar para

viver” (Iara). Um educar “na formação de alunos (...) capazes de compreender o

outro e o mundo” (Lívia), de “forma mais aprazível (...) com empatia (...) interrelação

amorosa” (Telma); que fomenta a formação de “indivíduos despojados, espontâneos”

(Rosane); que leva ao “respeito mútuo, solidariedade (...) [a] práticas criativas e

inovadoras, [à] valorização do ser humano” (Jorge e Maura).

Esses desdobramentos proporcionam uma “melhor interação professor-aluno

e comunidade” (Marcela). Antonia afirma que “Não se pode conceber qualquer

atividade interpessoal sem sensibilidade” pois a mesma leva à “humanização do ser”

(Valmira), “torna as pessoas mais amorosas” (Graça). O cuidado com a Sensibilidade

191

implica no “preservar tanto as relações interpessoais como o meio ambiente” em

que “aprendemos a respeitar as diferenças culturais” (Renilda), vislumbrando o

“espírito de solidariedade”, de “relações mais abertas” (Ivani).

Marleide fala da “formação de um ser que se vê como um todo”. Flávio e Júlia

falam de um “sujeito capaz de amar e respeitar o próximo vivendo de maneira mais

prazerosa”. Maria, Amélia e Paulina pontuam que essa ação de educar possibilita a

“formação de cidadãos sensíveis à problematização e situações existentes no nosso

cotidiano”, e Ada fala da “formação de pessoas aptas a desenvolver estímulos que

possam transformar sua vida e o mundo”. Júlia e Aura afirmam que essa ação de

educar torna a “pessoa mais sensível diante dos problemas do mundo (...) mais

aberta ao diálogo, à compreensão”. Cássia, Olinda e Pereira enfatizam que a mesma

implica em “motivação, criatividade (...) aluno reflexivo e crítico”, em que o mesmo

“explora um novo mundo” (Sara). Diversos estudantes acentuam que com essa

perspectiva de educar ocorre a constituição de um ambiente educacional “mais

prazeroso”, “acolhedor”, de “interação e diálogo” que fomenta a compreensão de

que “somos interdependentes” (Alcione).

João assevera que “quando envolve o amor, carinho, simpatia (...) vamos

contribuir na formação de cidadãos mais humanos”. Avani acentua que precisamos

contribuir na “formação de cidadãos críticos, porém humanos”. Celita diz que o “ser

humano não é só razão (...) precisa ser amado, compreendido”. Elma pontua que

essas atividades fazem “com que preste-se mais atenção ao educando percebendo

que ele é um ser que pensa e que tem sentimentos”, “levam a uma boa

aprendizagem” (Marcos).

Referindo-se às experiências com a corporeidade, Leila fala em “se descobrir

no outro através do contato físico e emocional” e Nádia realça que “a partir do sentir

a si mesmo você percebe e valoriza o outro (...) você entende mais, compreende

mais, ajuda mais”. Cátia pontua que com as atividades corporais “nos sentimos mais

relaxados, cheios de luz, vida e temos ânimo para conviver com o próximo”. Carlos

afirma que essas experiências educativas levam “a pessoa a sentir-se com mais

ânimo e disponibilidade” para as trajetórias do educar, do existir. Delma enfatiza a

relevância de “começar de dentro para fora”. Lenilda sabiamente arremata que

assim as mesmas “torna[m] o aluno mais consciente de seu 'eu', de sua capacidade

e limitação, do cuidado que deve ter com seu corpo e sua alma”.

03.5 - Considerações acerca das vozes dos estudantes II

Também serão sucintas as considerações acerca das falas dessas indagações,

pois, de modo similar às vozes dos estudantes de minhas disciplinas, os conteúdos

192

das mesmas serão tratados, direta e indiretamente, com ponderações mais

expansivas no próximo capítulo da tese.

Como vimos nas falas dos estudantes, 75% enfatizou que o cuidado com a

Sensibilidade está mais ausente nas práticas educativas cotidianas, e 25% destes

afirmou que está mais presente nelas. Desses 25% que apontaram essa presença,

alguns explicitam que a mesma está ocorrendo gradativamente, “aos poucos”, de

modo que, assim, não representa ainda maior presença. José, como vimos, afirma

que essa presença está mais “no campo do discurso”. A incorporação desse cuidado

com a Sensibilidade mediante a pregnância de posturas vivenciais é um desafio

bastante difícil em nossas práticas educativas instituídas em conseqüência da

predominância dos modelos mecanicistas. De certo modo, considero um passo

significativo o fato de que, mesmo ainda no plano mais teórico, a temática da

Sensibilidade começa se fazer presente nas ações do educar.

Outros pontuam que essa presença tem ocorrido com certa frequência

revelando algumas mudanças qualitativas que começam a acontecer nas ações

educativas, mesmo que em pequenas proporções. Essas mudanças acontecem

mediante a articulação nas diversas aulas e em alguns eventos educacionais de

linguagens de Arte como “músicas”, “textos poéticos”, “teatro” (dramatizações),

“danças”, como também através de “jogos e brincadeiras”, de “expressão corporal”

etc. Alguns atribuem essas alterações às tentativas de aplicação do programa

instituído pelo MEC dos “Temas transversais” que aponta para a relevância de temas

como Ética, Valores humanos, Ecologia, Corporeidade etc. na ação de educar.

Nessa esfera, alguns acenam com a perspectiva de que, de certo modo, nos

últimos anos os professores têm tido mais cuidado nas formas de relação com os

estudantes em que estes passam a ter “mais liberdade (...) e oportunidade de

expressarem sentimentos” (Flávio e Júlia). Suas singularidades começam a ser um

pouco mais consideradas e a “imaginação” tem estado mais presente através de

atividades pedagógicas criativas.

Dos 75% que afirmam que o cuidado com a Sensibilidade está mais ausente

na ação de educar, alguns argumentam o fato de que os professores, de modo geral,

não tiveram formação para tanto. Essa constatação é patente dado a predominância

das concepções e posturas pedagógicas escolásticas erigidas sobre os pilares do

patriarcalismo, dos modelos mecanicistas. Em sua fala, Márcia diz que “tivemos

professores duros”. Essa postura rigidificada se refere tanto às estruturas e aos

regimes disciplinares que configuram os espaços escolares, suas ações pedagógicas,

com sua herança militarista, como às posturas que incidem em compressão dos

sentires, dos fenômenos da corporeidade, do imaginário.

193

Muitos acentuam que a maioria dos professores prima meramente pelo

cumprimento funcional de seus papéis, dos conteúdos programáticos, o que ocorre

através de processos instrucionais que se traduzem em posturas mecânicas e

imbuídos de apatia em que “a matéria é passada de forma fria, sem vida” (Alberto),

descontextualizada do vivido/vivente. Assim, a maioria dos professores se acomoda e

se confina a esses ritos mecânicos em que apenas se reproduz as “receitas”

determinadas pelo “sistema”, pelas estruturas tecno-burocráticas instituídas.

Como alguns realçam, tratar das dimensões sensíveis e imaginais que

compõem a condição humana (corporeidade, sentimentos, paixões, imaginação,

criatividade...), muitas vezes é até concebido como “perder tempo”, como coisas

sem sentido, como “ilusões”. Esse quadro revela a extremação dos processos de

dessensibilização e de desumanização dos sistemas escolares ao se lastrearem nas

pedagogias redutoras que estabelecem a dicotomização entre sentir e pensar, entre

corpo e mente. Dessa forma, prevalece a funcionalidade da reprodução mecânica de

conteúdos desprovidos de vitalidade, desvinculados da pregnância do existir

humano, descontextualizados da cotidianidade do viver dos protagonistas da ação do

educar. Educar que, assim, é reduzido a processos instrucionais caducativos que

incidem na desqualificação do ser mediante a superestimação da esfera da

quantificação, da lógica instrumental, dos ditames do ter, da competição que

barbariza, do “educar para vencer” (Iara).

Dessa forma, muitos acentuam que as práticas educativas estimulam apenas

a “mecanização”, a “competitividade” desembocando em atitudes glaciais em que as

pessoas se “petrificam cada vez mais” (Leila) projetando, assim, “seres rancorosos e

insensíveis” (Marcos). Forja-se, portanto, processos sistemáticos de desumanização e

de barbarização. A maioria realça que a ausência do cuidado com a Sensibilidade no

educar implica em ações educacionais que traduzem um “ensino mecânico”, a

“tecnização” em que predomina a “ausência de interação” através de aulas

“desestimulantes” que incorrem na “apatia”, no descuido com a afetividade, com as

potencialidades criantes, com o elã vital.

Nessa perspectiva, as experiências pedagógicas se configuram na insipidez de

processos considerados “chatos”, “cansativos” e “fechados”, como também

desembocam em “relações estressantes e agressivas” (Rosa e Sandra) forjando

“seres irritados, tristes e doentes” (José). A compressão das emoções, dos

sentimentos, leva a atitudes defensivas, a processos de “robotização” e de

desqualificação da vida que implicam na denegação do húmus do humano, dos

valores humanos. Assim, as práticas educativas, como meras práticas instrucionais,

afirmam os processos sistemáticos de “desumanização” e de desencantamento do

humano, de desfiguração da condição humana. Práticas educativas que, desse modo,

194

também contribuem no fortalecimento dos processos de esgarçamento e de

barbarização do planeta.

De acordo com a maioria dos estudantes, a presença do cuidado com o

advento da Sensiblidade nas práticas educativas implica em processos intensivos de

“humanização” que levam ao “aprender a viver”, à “interatividade”, o “aflorar a

consciência, aquilo que somos” (Mércia); leva ao “conhecimento de si mesmo (...) a

estar aberto ao novo” (Delma). Desse modo, instala-se um educar que se processa a

partir do pathos criante que faz despontar o espanto, a “paixão de criar” (Telma),

que impulsiona as “relações interpessoais”, o cultivo do saber com sabor que torna

as “aulas significativas”; que leva ao “desenvolvimento do ser humano

integralmente” (Cátia) ultrapassando as pedagogias que fragmentam e mutilam. Um

educar que inspira e impulsiona a “auto-estima”, os valores da “solidariedade”, do

“bem-estar coletivo”, a “convivência”. Ou seja, que promove as aprendências do ser-

sendo de si mesmo e do ser-sendo-com-os-outros através dos ritos de iniciação aos

valores primordiais que dão Sentido à vida, ao “viver”.

Nesse horizonte, com alguns tons similares às vozes apresentadas

anteriormente, educar se traduz na busca do cuidado com os valores humanos;

proporciona processos de “autoconhecimento”, de auto-educação, de auto-

aprendência; impele à expressão livre e fluente dos sentires e pensares; das co-

aprendências do estar-sendo-no-mundo-com-os-outros; do cuidado com a simpatia e

com a empatia que aproximam e entrelaçam no “compartilhar” as expressões mais

intensas do existir, do co-existir e que nos fraterniza; suscita a expressão da

imaginação criante, do pensamento inventivo, da consciência compreensiva; conduz

às buscas do advento da inteireza in-tensiva do ser-sendo, da complexidade da

condição humana.

Um educar que, portanto, leva à formação “de cidadãos sensíveis” (Maria,

Amélia e Paulina), “críticos, porém humanos” (Avani), que, assim, podem articular a

interligação criante entre o corpo e o espírito, o pregnante e o anímico. Que projeta

cidadãos capazes de “transformar sua vida e o mundo” (Ada), abertos “ao diálogo, à

compreensão” (Júlia e Aura), mediante o despertar da consciência de que todos

“somos interdependentes” (Alcione). Um educar que implica no cuidado com a ética

e a estética, com os valores supremados do bem e do belo; que, assim, pode

compelir na busca do Ecohumanismo em que aprendemos a nos relacionar dialógica

e amorosamente com todos os seres constituintes da teia ecossistêmica, em nossa

condição de interdependentes.

195

196

Capítulo 04

O FENÔMENO DO EDUCAR COMO UM

RITO DE INICIAÇÃO AO ADVENTO DA SENSIBILIDADE

Educação é aquilo que fica depois queesquecemos o que nos foi ensinado na escola.

Albert Einstein

A educação tem sentido porque o mundo não é necessariamente isto ou aquilo, porque os seres humanos

são tão projetos quanto podem ter projetos para o mundo. A educação tem sentido porque mulheres e homens

aprenderam que é aprendendo que se fazem e se refazem, porque mulheres e homens se puderam assumir como seres

capazes de saber, de saber que sabem, de saber que não sabem. De saber melhor o que já sabem, de saber o que ainda não sabem. A educação tem sentido porque, para serem, mulheres e homens precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente

fossem não haveria porque falar em educação.

Paulo Freire

Educar é arrancar de dentro para fora, fazer brotar os sonhos e, às vezes,

rir do mistério da vida.

Daniel Munduruku

As meditações que teço nesse capítulo se configuram como articulações que

se desdobram, direta e indiretamente, dos capítulos anteriores da tese, tanto em

suas incursões mais especificamente teóricas, como das urdiduras do vivido relativas

à ação cotidiana de educar. Mediante um processo de decantação desses capítulos,

essas meditações operam ponderações que os fazem convergir para a compreensão

do fenômeno do educar como um rito de iniciação ao advento da Sensibilidade.

Compreendo o educar como ação que se descortina nas mais diversas

instâncias de nosso estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, desde as esferas mais

institucionais e formais como a Família, a Escola, as Igrejas, as Associações, as ONGs

etc., às esferas mais aleatórias e informais nos influxos do co-existir cotidiano.

Portanto, as meditações que são plasmadas nesse texto se norteiam nessa

compreensão pluralista de educar, e pontuam, sobretudo a especificidade da ação

educativa nas práticas das instituições escolares/acadêmicas. Porém,

analogicamente, essas meditações também atravessam as demais instâncias

educativas considerando as similaridades que existem entre estas, apesar de suas

diferenças, no transcurso de nosso processo civilizatório.

Nascemos no mundo como seres depositários de potencialidades diversas

que, mediante os processos educativos que vivenciamos, na dinâmica dos contextos

culturais em que estamos imersos, podem ser garimpadas e cultivadas, na

constituição de nossa condição humana como homo sapiens-demens-simbolicus.

Apenas o nascimento biológico que implica, intrinsecamente, em certas marcas da

atmosfera do humano, não garante, necessariamente, nossa presença existencial no

mundo como seres ontologicamente humanos. Carecemos da inserção na teia

dinâmica da cultura para que nos humanizemos (ou nos desumanizemos).

Esses processos formativos de iniciação são chamados de ação educativa, do

exercício de educar – de Educação. Processos que se descortinam mediante uma

multiplicidade de repertórios e de modalidades, tanto por vias formais, quanto por

vias informais, como pela imbricação de ambas, nos interfluxos do cotidiano

vivido/vivente de cada indivíduo.

Há duas vertentes etimológicas que apresentam conotações distintas para o

vocábulo Educação/educar que são as expressões latinas educare e educere

(DEBESSE e MIALARET, 1974; FULLAT, 1995). Educare significa ação de formar,

nutrir, guiar e instruir. Educere conota tirar para fora de, conduzir, levar e criar.

Educare apresenta características mais externas que configuram uma ação de cunho

instrucional, de transmissão de saber que se processa de modo assimilativo. Refere-

se mais à formação técnica. Assim, educare implica em posturas mais funcionais que

concebem a ação educativa como processo de transmissão de conhecimento, de

reprodução de saberes e de valores instituídos, de modo relativamente estático e

mecânico.

Educere incide em processos educacionais que emergem desde dentro, que,

com seu dinamismo e in-tensidade, fomentam o espírito de criticidade e de

inventividade, o senso intuitivo e a imaginação criante dos indivíduos. Processos que

também implicam na transmissão e na assimilação dos saberes e dos valores

instituídos, mas, sobretudo, implicam em sua expansão, criação e recriação, nas in-

tensidades dos fluxos moventes da cultura, através da renovação e da instituição de

novos saberes e sentires. Desse modo, a ação de educar incide no cuidado com a

iniciação aos Sentidos humanos, de modo teórico e vivencial. Descortina processos

que fomentam as potencialidades criantes de cada indivíduo imerso em seus

contextos culturais, em seu ethos vivo, redivivo.

Assim, a ação de educar se nutre nos repertórios desse ethos de cada

grupamento humano, como tesouros pregnantes e anímicos que sedimentam os seus

203

valores primordiais. O ethos se constitui como amálgama que se estrutura nas

camadas mais profundas e inconscientes do ser-sendo, expressando os sentimentos,

as crenças e os valores que performam as cosmovisões e as posturas dos indivíduos

e de seus grupamentos. O dinamismo do ethos instaura hábitos e atitudes, modos de

ser e de estar sendo no mundo vivido/vivente; se compõe de arquétipos configurados

pelas imagens que povoam nosso inconsciente coletivo e que, com sua plasticidade,

inspiram e co-movem as afecções, a imaginação criante, a Sensibilidade. A

dinamicidade dos repertórios do ethos traduz os valores e os Sentidos que animam o

existir.

De modo antropofágico, a ação de educar se nutre do deglutir e do ruminar a

carne e o espírito desses repertórios alumbrados dos símbolos mitopoéticos que

estruturam o ethos. Com sua seiva anímica, esse ethos inspira processos de

afirmação, de criação e de recriação dos valores, dos Sentidos. Portanto, além dos

processos de apreensão e de compreensão dos repertórios culturais instituídos,

portadores de valores e de sentires, das cosmovisões que constituem cada

grupamento, nas ações do educar esses repertórios são também ressemantizados e

reinventados nos fluxos da cultura. Cultura como entramado simbólico que é

marcado por permanências e mudanças, no dinamismo de seus processos abertos e

inacabados, em que podemos instituir e descortinar a eterna novidade do mundo, o

estado re-nascente do ser-sendo.

Nessa esfera, o educar se configura como ação dinâmica e in-tensiva dos

indivíduos e grupos que articula seus saberes e sentires mediante os influxos de seus

repertórios culturais. Ação que ao se nutrir desses acervos culturais implica no

cuidado com a iniciação aos valores humanos nas in-tensidades de nosso estar-

sendo-no-mundo-com-os-outros; que supõe processos constantes de aprendência e

de co-aprendência dos Sentidos do existir humano em sua constituição biocultural.

O eixo semântico de educere traduz processos de condução. Ou seja, partindo

do lugar existencial em que estamos circunscritos no mundo, na contextura dos

entre-lugares, somos impulsionados às aventuras das buscas e descobertas, dos

processos de renovação e de criação de valores e de Sentidos que afirmam e

robustecem a condição humana. Assim, educar traduz uma aventura inaugural,

alterativa, na dinamicidade do horizonte aberto dos Sentidos. Nesses fluxos,

mobilizamos as potencialidades criantes de nossas singularidades proporcionando a

afirmação e a construção dos Sentidos do existir, da saga aberta de nossa destinação

no mundo com os outros.

Con-duzir conota caminhar com, co-participar dos processos, dos

deslocamentos, das travessias, de modo co-laborativo. Portanto, não significa uma

postura de passividade e de apatia em que alguém, de modo vertical, impõe saberes

204

sobre os outros, monológica e autocraticamente. Educar supõe a química do

aprendizado das relações, da relacionalidade, de modo horizontal e co-implicado, em

que os en-volvidos na ação co-operam e co-participam dialogicamente, mediante os

matizes das singularidades e as inter-relações das diferenças nas in-tensidades dos

processos de co-aprendência. Assim, muito mais que ensinança educar conota

aprendência, co-aprendência. Toda aprendência, em seu sentido mais vasto, traduz

co-aprendência, em níveis diferenciados, nos interfluxos das relações de coexistência

entre os indivíduos humanos.

Aprendência e co-aprendência supõem com-partilhamento de sentires e de

pensares, dos modos diversificados do ser-estar-sendo, da pluriformidade das

condições do existir. Com-partilhamento de cosmovisões e de posturas singulares e

plurais dos repertórios dos saberes e sentires que constituem a complexidade da

condição humana. Condição humana que, como vimos, se configura através de suas

ambigüidades e paradoxos, de suas incertezas e indeterminações, como condição

eternamente inacabada em seu estar-sendo, mediante o dinamismo dos feixes

tensoriais das contingências.

Educação como rito de iniciação implica numa compreensão da mesma como

ação viva, tecida de modo teórico e vivencial, nos processos de afirmação e de

renovação dos Sentidos humanos. Ou seja, através da articulação de

saberes/conteúdos (repertórios culturais), de processos de meditação e de

ruminação teórica, e conjuntamente, de forma simultânea e alternada, através de

experiências vivenciais em que os saberes são mediados por momentos e processos

de fruição em que o corpo e o espírito copulam com in-tensidade. Inspirado nas

sabedorias de seu povo indígena, Munduruku (2002, p. 72) proclama que “Aprende-

se a tradição vivendo-se a tradição. A fórmula é simples, é a fórmula do exemplo”, da

experiência vivida/vivente com seu poder educativo incontornável.

Assim, podemos tecer saberes (sapere) que incidem em buscas de sabedorias

que podem ser sorvidas na pregnância das vivências cotidianas. Aprendemos e

compreendemos de forma mais intensa aquilo que atravessamos e que nos

atravessa por inteiro, na calidez e na nervura das experiências vividas/viventes.

Martins (1992, p. 85) realça que “Somente o que é aprendido por meio da

experiência e pessoalmente apropriado será verdadeiramente conhecido”.

Aprendência como apropriação e reapropriação singular de Sentidos provados pelos

sensos perceptivos do corpo e do espírito, de modo coexistencial.

Nas ressonâncias das falas que apresentamos, Elza, de forma lapidar, afirma

que “A utilização de 'ritos de iniciação' (...) no decorrer das aulas ajuda muito na

compreensão dos conteúdos, com o desenvolvimento da consciência e da vivência

de sentimentos”. As ações de educar que se configuram como ritos de iniciação são

205

realizadas de modo teórico-vivencial e proporcionam aprendências que nos marcam

por inteiro, através das mais diversas formas de vivenciação destes, em que corpo e

espírito se enredam de modo coexistencial. Essas iniciações mobilizam de forma

ampla nossos sensos perceptivos e compreensivos, bem como, nossa imaginação e

espírito criantes para as in-tensidades dos desafios e buscas, para a sedimentação e

a criação de Sentidos anímicos.

O que nos atravessa desde dentro mobilizando a corporeidade, a pregnância

dos sentires, e de modo implicado, a consciência compreensiva, a espiritualidade,

inspira e infunde o elã do anímico, a polifonia dos Sentidos do existir. Ao ritualizar,

re-atualizamos, elaboramos e perlaboramos internamente, de modo pregnante e

anímico, operando a fruição das aprendências, da afirmação, da criação e da

recriação dos Sentidos. Assim, os sensos perceptivos e compreensivos, a consciência

e o imaginário ruminam e decantam projetando saberes e sentires encarnados,

impregnados de elã vital. Saber eivado de sapere, encharcado de húmus, que tem o

gosto da pregnância do viver e que, assim, implica na busca espirituosa de

sabedoria.

Essa ritualização desborda in-tensidades germinais que nos mobilizam nos

processos de invenção e de criação; dão cromaticidade aos Sentidos, ao existir. Leva

ao cuidado atencioso com os valores primordiais do ser-sendo-com-os-outros; às

aprendências e às co-aprendências da fineza do ser. Naranjo (2005, p. 138) afirma

que “la educación necesita volver a ocuparse de la dimensión profunda del ser

humano”, de sua condição anímica.

04.1 - A predominância das práticas

educativas instrucionais

Não basta ensinar ao homem uma especialidade. Porque se tornará uma

máquina utilizável, mas não uma personalidade.

Albert Einstein

O ensino dominantemente racional e objetivose tornou absurdo e monstruoso no seu desperdício de vida.

Carlos Amadeu B. Byington

206

Se somos educados, apenas, para sermos cientistas,eruditos com seus livros, ou especialistas devotados à ciência,

estaremos então contribuindo para a destruição e a desgraça do mundo.

J. Krishnamurti

As práticas educativas instituídas em nossa sociedade se configuram, de modo

predominante, como práticas instrucionais na proporção em que privilegiam a

pragmaticidade e a funcionalidade vislumbrando a (in)formação técnica dos

indivíduos para o exercício de suas funções profissionais, de seus papéis sociais.

Dessa forma, como vimos nas falas dos estudantes, as práticas instrucionais se

caracterizam como processos “mecanizados” de transmissão dos saberes

tecnocientíficos instituídos através de procedimentos de natureza técnica e

instrumental em que as demandas do ter são superestimadas em detrimento dos

valores do ser incidindo em processos sistemáticos de “desumanização”. Investe-se

em processos instrucionais de caráter informativo que funcionalmente instruem os

indivíduos para o cumprimento de seus papéis sociais. Papéis que, em si mesmos, se

configuram como representações externas, como máscaras que projetam os modelos

empadronados pelas instituições sociais.

Essas práticas instrucionais se estruturam e se fundamentam nos princípios

pragmáticos da eficiência e da eficácia em que o saber é considerado, de modo

utilitário, como capital e como mercadoria que funcionaliza os processos

tecnológicos, a produtividade, através de suas lógicas mecanicistas.

Desse modo, as práticas instrucionais “preparam” “recursos humanos” como

entes competentes para funcionalizarem as máquinas e os modos de produção sócio-

econômicos garantindo, assim, a eficácia dos aparatos tecno-burocráticos dos

poderes instituídos através da cadência de sua ordem monocórdica que privilegia os

princípios do ter, a posse das coisas. Inclusive a posse dos próprios seres humanos

que, nessa esfera, são reduzidos aos formatos de seus papéis profissionais, sendo

assim expropriados de si mesmos. Profissionais que, com a eficiência no

cumprimento de seus papéis, garantem a eficácia da ordem estabelecida na

compulsão de processos que uniformizam e coisificam. Desse modo, os seres

humanos são convertidos em meros recursos, em coisa, sob os ditames da

hegemonia dos poderes que operam a tecnociência e as estruturas sócio-econômicas

na funcionalização das instituições sociais com seus sistemas produtivos.

Nas práticas instrucionais as coisas são privilegiadas em detrimento do existir

das pessoas, da condição humana. A existência passa a ser instrumentalizada a

serviço dos fins que se traduzem na funcionalização eficaz da tecno-lógica para o

fomento dos processos de produção. Processos que devem incrementar lucros cada

207

vez mais extravagantes mediante a lógica perversa dos modelos econômicos que

superestimam a instância do quantitativo, do ter, vilipendiando a expressão

qualitativa do existir humano, do ontológico. Dessa forma, as instituições educativas,

como se fossem fábricas, em grande medida, são confinadas à produção da

ignorância no que se refere à compreensão do humano, ao cuidado com os valores

humanos, com a condição humana.

Nessa perspectiva, as práticas instrucionais forjam indivíduos bem

comportados e bem conformados aos parâmetros da tecno-lógica, dos cânones dos

poderes instituídos para que sua reprodução e afirmação sejam garantidas. Para

tanto, são articulados procedimentos metodológicos sofisticados através de

processos disciplinares que ordenam, com eficácia, os saberes e os comportamentos.

Nas salas de aula, como vimos nas falas dos estudantes, predominam as “aulas

desmotivadas” (diversos), “apáticas, frias e repetitivas” (Conceição). Salas de aula

que tendem a se converter em “celas de aulas”, com sua arquitetura geométrica

linear e com seus procedimentos didáticos rigidificados. As mesmas são moduladas

em filas retas que forjam relações disciplinadas levando à imobilidade e à apatia dos

e entre os indivíduos.

Gusdorf (1995, p. 86) afirma que “a maior parte dos professores não são

mestres. Dão aulas, se encarregam de cursos, honestamente, como bons

funcionários”. Cumprem, de certo modo com eficácia, seus papéis de transmissores e

de reprodutores de informações, de saberes técnicos; funcionalizam os sistemas

instrucionais instituídos. Porém, não cuidam nem deflagram processos educativos de

iniciação ao advento dos valores humanos, do cuidado com a Sensibilidade humana.

Como afirma Márcia “tivemos professores duros” que se restringem apenas ao

âmbito funcional e instrumental dos seus papéis profissionais, ao cumprimento das

ordens estabelecidas.

Os estatutos da ordem e da disciplina são instituídos pedagogicamente na

formatação de comportamentos ordeiros, controlados e controláveis. Desde o

disciplinamento dos saberes tecnocientíficos, com suas fragmentações que mutilam,

ao controle dos comportamentos, os processos instrucionais se instalam com suas

pedagogias disciplinares que ordenam e domesticam. Essas pedagogias são

lastreadas nos princípios do patriarcalismo com a supremacia das posturas do

masculino, em suas modalidades infladas, que se traduzem na hostilidade dos

instintos primários mediante o poder de apropriação e de dominação.

Como vimos anteriormente, as atitudes patriarcais implicam em competição e

apropriação dos bens e dos indivíduos que são, assim, reduzidos a objetos servis, a

coisa apropriável. Essa pedagogia patriarcal é bastante presente em nossas práticas

educativas através da tirania de seus poderes fundados tanto no machismo como no

208

economicismo. Poderes que são denegadores da Sensibilidade e dos valores

humanos primordiais.

Destarte, as pedagogias instrucionais instituem processos de

empadronamento dos indivíduos aos estatutos de suas lógicas homogeneizantes. As

diferenças são comprimidas e pretensamente diluídas para que os mesmos sejam

docilizados e conformados pela uniformidade de suas lógicas. Instala-se assim, uma

“pedagogia de rebanho” que pretende reduzir os indivíduos a seres bem

comportados e controlados pelo aparato de suas leis e normas que aprisionam e

bestializam.

O corpo, as dis-posições sensíveis, as afecções, a imaginação criante dos

indivíduos são emplastados pela austeridade das normas disciplinares para que os

mesmos sejam convertidos em seres “robóticos”, em “máquinas produtivas”, em

entidades disformes tomadas pela apatia. Forja-se “corpos estáticos, apáticos e

amorfos”, na fala de Mirtes e Luciana. Projeta-se uma pedagogia mecanicista que,

com suas normas e procedimentos técnicos e fechados em si mesmo, tende a

instrumentalizar e reduzir os corpos à frieza da funcionalidade das máquinas. Os

procedimentos técnicos, como meios, como instrumentos lógicos, são convertidos

em fins, e a esfera do ontológico, dos fins e dos Sentidos, é reduzida a meios; é

instrumentalizada.

Dessa forma, a escolástica das práticas instrucionais forja indivíduos apáticos,

conformados aos cânones de suas doutrinas que interditam o dinamismo do elã de

sua Sensibilidade. Indivíduos que, assim, apresentam “baixa auto-estima” (Telma).

Essas práticas instrucionais se encerram na sua funcionalidade utilitária que

desqualifica a singularidade do humano e que embaça o horizonte dos Sentidos

existenciais e anímicos.

As pedagogias escolásticas instauram o ascetismo de práticas educativas que

propagam valores moralistas denegadores da pregnância das afecções e da

corporeidade humana, pretendendo, desse modo, forjar indivíduos glaciais. Como

vimos no capítulo 3, nos desdobramentos dessas posturas pedagógicas, o cuidado

com a Sensibilidade é até considerado, por alguns professores, como “perder tempo”

(Elma), como coisa “ilusória”. Expressões que traduzem com intensidade o estado de

extremação a que chegou o processo de dessensibilização e de desencantamento na

cotidianidade da ação de educar.

Desse modo, essas pedagogias instituem ações educativas inodoras,

marcadas pela insipidez, desprovidas de elã vital. Superestimam as instâncias

intelectivas mediante a propagação de conceitos rigidificados, de conteúdos e formas

descontextualizados das in-tensidades do existir. Propagam um saber descarnado

que represa o dinamismo rítmico da corporeidade e da plasticidade das afecções, do

209

pathos criante; que privilegia a esfera do extensivo, do fora, em detrimento da esfera

do intensivo, do dentro.

Essas pedagogias instrucionais concebem suas ações

didáticas/procedimentais como “treinamento” em que os indivíduos são

“preparados” para a execução dos papéis e funções pré-estabelecidas pelas

instituições sociais. Nos “treinamentos”, cabe a cada um assimilar e se adaptar aos

conteúdos e formas empadronados com passividade e conformidade. Treinamento

incide numa ação verticalista de cunho instrumental em que a uniformidade dos

modelos que são impostos deve, necessária e funcionalmente, ser absorvida e

reproduzida. Desse modo, os indivíduos são considerados como entes passivos,

desprovidos de afecções, de imaginação criante, de capacidade de pensar crítica e

inventivamente. Essas potencialidades são comprimidas e os mesmos tendem a se

reduzir à sua mera condição de vegetatividade zoológica.

Na mecânica funcional dessas práticas educativas instrucionais os indivíduos

não protagonizam nem inventam suas trajetórias e destinos, eles apenas funcionam;

funcionalizam os saberes e valores já estabelecidos e determinados. Barbier (2001,

p. 121) pontua que “O formador preocupa-se com o imaginário da relação com o

saber. O instrutor interessa-se somente pela dimensão funcional-real da transmissão

de conhecimentos”. Os professores, como instrutores, se confinam à condição de

funcionários no exercício de seus papéis e os estudantes são confinados ao papel de

alunos – alúmenos – desprovidos de luz própria. Instrui-se para a administração das

coisas e não para o cuidado com a Sensibilidade, com a condição humana, o que leva

à perda do senso do humano.

Nessa perspectiva, essas práticas educativas instituem uma educação

dessensibilizada em que as expressões das afecções (emoções e sentimentos), da

intuição, do imaginário mitopoético e do pensamento meditativo, são denegadas.

Operam processos de anestesiamento que atrofiam e entorpecem as dimensões

sensíveis, a plasticidade dos sensos perceptivos e dos Sentidos.

Essa compressão das afecções, como vimos, tende a forjar ressentimentos e

modos inflados de expressão das mesmas em que predominam os estados instintivos

de afetação. Estados que traduzem a hostilidade dos instintos vegetativos quando

isolados dos demais sensos humanos. Assim, as emoções são canalizadas através de

atitudes que incidem em agressividade e defensividade. O descuido para com as

emoções e com os sentimentos tanto pode incidir em apatia e frieza, como em

afetação e sentimentalismo em que os mesmos são mobilizados de modo excêntrico

levando a estados de dilapidação. Na proporção em que as emoções e os

sentimentos não são cuidados com abertura e fluência, na expressão de suas

potencialidades afirmadoras da vida, os recalques e bloqueios tendem a provocar as

210

inseguranças e os medos que incidem em agressão e defensividade. Desse modo,

como já fiz referência, as afecções são confinadas ao âmbito de seus instintos

primários.

Com esses desdobramentos essas práticas instrucionais se circunscrevem na

esfera da funcionalidade de seus objetivos que aprisionam e mutilam o dinamismo

rítmico da transversalidade existencial do ser-sendo de educandos e educadores, dos

acontecimentos educacionais. São confinadas na repetição da cadência mecânica da

rotina do instituído. Tornam-se, assim, ações articuladas “de forma fria, sem vida”

(Alberto). Ações desbotadas que, com a regulação de suas normas conformadoras,

represam os fluxos de renovação da dinamicidade do existir.

A mera formação técnica para os papéis, para a profissão, modulada pelas

lógicas patriarcais e mercadológicas, leva a processos de barbarização em que

prevalecem os instintos primários de apropriação e de posse, a condição de

hostilidade primária dos indivíduos. Confinados a esse estado de barbárie, de modo

geral, os mesmos passam a se autodestruir, a destruir os outros, e se tornam, assim,

os principais predadores do ecossistema planetário.

Essas práticas mecanicistas incidem na internalização sistemática de

automatismos nos indivíduos através da mecanização de procedimentos que

atrofiam o dinamismo de suas potencialidades criantes. Esses automatismos

engendram hábitos (habitus) que tendem a robotizar os comportamentos e reduzir

as pessoas a compulsividade das máquinas. A predominância dessas práticas

instrucionais descamba no que podemos chamar de caducação da educação. Ou

seja, ao denegar e comprimir a dinâmica da plasticidade do educar, como processo

in-tensivo e vivo que fomenta a expressão do elã vital, as capacidades criantes dos

indivíduos, as práticas instrucionais tendem a desfigurá-lo através de suas posturas

homogeneizantes; tendem a se desertificar na esterilidade de seus métodos e

conteúdos desprovidos de vitalidade.

Obviamente que as pretensões dessas pedagogias instrucionais e

mecanicistas não conseguem se instalar inelutável e implacavelmente nas práticas

educativas na proporção em que estas se encontram imersas na dinâmica in-tensiva

da cultura humana, dos fluxos tensoriais do mundo vivido/vivente; em que se

processam mediante a expressão de suas contradições e de suas heterogeneidades.

Assim, no interior das mesmas, através das inquietudes do daimon de seus

protagonistas, se insurgem posturas transgressivas que resistem e desafiam os

processos de homogeneização e de dessensibilização.

211

04.2 - O educar como processo de

fruição da Sensibilidade

O mundo possui mentes brilhantes, mas hoje, o mundo precisa de corações brilhantes.

Dalai Lama

Vivendo se aprende; mas o que se aprendemais, é só a fazer outras maiores perguntas.

Guimarães Rosa

Conhece-te a ti mesmo, pois assim, compreenderástudo que és e saberás o que podes e deves fazer.

Sócrates

A maior missão do homem é dar à luz a si mesmo.É tornar-se aquilo que ele é potencialmente.

Erich Fromm

Os espaços em que acontecem as ações do educar são constituídos,

geoculturalmente, como entre-lugares em que os indivíduos, em sua condição

biocultural, se encontram para com-partilhar e expandir as diversidades de seus

saberes e sentires. São encruzilhadas mestiças em que se entrecruzam, com in-

tensidade, a pluralidade de valores e de crenças dos indivíduos e grupos humanos e

212

que potencializam fluxos tensoriais de relações dialógicas que podem enriquecer,

aproximar e entrelaçar.

Esses entre-lugares fomentam a perspectiva da unidade na diversidade

mediante o reconhecimento dos Sentidos humanos atinentes à singularidade de cada

indivíduo e de seus grupamentos, bem como, a consciência da relevância dos

processos de compartilhamentos in-tensivos das diferenças. Isso pode ocorrer

através do cultivo e do cuidado para com os elos que nos agregam naquilo que é

comum à nossa condição humana. Ou seja, mediante as interligações das

semelhanças que nos proporcionam a coexistência como seres humanos, no

garimpar as pequenezas e as grandezas, os enigmas dos tesouros da alma e do

coração.

Essa compreensão do educar, em suas diversas modalidades, considera o

mesmo como um rito vivo de iniciação que ocorre nesses entre-lugares como

encruzilhadas em que se interpenetram os diversos saberes e sentires, as crenças e

os valores que constituem os repertórios de seus protagonistas. Ferreira Santos

(2004, p. 53) assevera que “a educação de sensibilidade perpassa as práticas

iniciáticas à Cultura (mundo simbólico), através da cultura (no sentido agrário e

hermesiano) das várias culturas (de grupos sociais num determinado espaço-

tempo)”. Esses processos de iniciação podem proporcionar, tanto a afirmação das

singularidades das tradições culturais dos indivíduos e seus grupamentos, como

também despertar o senso de interculturalidade, de com-partilhamento in-tensivo e

de enriquecimento mútuo entre as diferenças.

Serres (1993, p. 14) afirma que as aprendências acontecem no “lugar meio

onde se integram as direções (...). Quem não se mexe nada aprende”. Como espaço

que traduz encruzilhada, a ação de educar se configura como um território

transdisciplinar em que constelam os entrecruzamentos dos mais diversos ramos de

saberes, das diversas formas de conhecimento, da multiplicidade de crenças, de

sentires e de valores que constituem os Sentidos humanos. Encruzilhada que se

desdobra no dinamismo tensorial de seus fluxos, e, de modo interdependente,

plasma os entrelaces da teia híbrida da cultura, do existir humano. Dessa forma, os

Sentidos dessa diversidade de saberes, conhecimentos, crenças e valores,

constituintes da cultura e do existir humanos, emergem, em sua compreensão mais

vasta, mediante a relação de coexistência in-tensiva, da harmonia conflitual entre

estes. Coexistência que se traduz na hibridação dessa teia movida pelas in-

tensidades que perfazem a polifonia do jogo de Sentidos que se processam no entre,

na dinâmica da entreidade. Que, assim, faz desbordar a policromia dos Sentidos

pregnantes e anímicos.

213

Portanto, as aprendências se tecem no dinamismo das encruzilhadas, das

passagens em que se entrecruzam os saberes e sentires humanos; são experiências

nômades que supõem desinstalações, deslocamentos e cruzamentos iniciáticos.

Desse modo, podemos instalar processos de aprendência e de co-aprendência

em que nos aprendemos uns com os outros, uns aos outros. Em que rendamos a

estampa da rede in-tensiva da coexistência humana em seus tons humanizante e

ecohumanizante. Assim, aprendemos a ser nós mesmos, na proporção em que

urdimos a aprendência do ser-com-os-outros, em que nos aprendemos uns aos

outros. Maturana (1998, p. 29) pontua:

O educar se constitui no processo em que a criança ou o adulto convive com o outro e, ao conviver com o outro, se transforma espontaneamente, de maneira que seu modo de viver se faz progressivamente mais congruente com o do outro no espaço de convivência.

Dessa forma, o educar implica, sobretudo, uma con-vivência com o outro,

efetiva e afetivamente. Con-vivência que proporciona processos in-tensivos de auto-

educação, hetero-educação e de eco-educação (PINEAU, 1999). Assim, tecemos os

fios da auto-educação mediante as aprendências do si mesmo, da autoaprendência;

da hetero-educação mediante as aprendências coletivas com os outros seres

humanos; da eco-educação no enredar as co-aprendências na teia ecossistêmica

mediante nossa relação com todos seres do planeta. Nos educamos, em todas essas

perspectivas, por meio da relação in-tensiva conosco mesmos e com os outros seres

humanos, como também com os demais seres com os quais estamos vinculados em

planos diversos, em nossa condição de seres interdependentes.

A auto-educação se processa na proporção em que escutamos as vozes

internas de nosso daimon que emergem dos confins imponderáveis das camadas

intuitivas e inconscientes que plasmam o ser-sendo. Daimon que, com seus rumores

subterrâneos, nos inquieta e nos interpela para as empreitadas e desafios ingentes

do existir; para as buscas de compreensão das ambigüidades do ser-sendo em suas

expressões de tangibilidade e de intangibilidade. A movência do daimon conduz aos

processos autoconhecentes como buscas de compreensão do si mesmo, dos limites e

das possibilidades de nosso estar-sendo-no-mundo nas trajetórias curvas do existir,

do co-existir. Compreensão de si mesmo que, portanto, implica na com-preensão do

outro, nas interrelações co-aprendentes.

Delors (1999, p. 97) assevera que “A educação tem por missão, por um lado,

transmitir conhecimentos sobre a diversidade da espécie humana e, por outro, levar

as pessoas a tomar consciência das semelhanças e da interdependência entre todos

os seres humanos do planeta”. A coexistência se processa mediante a interrelação

214

das in-tensidades entre as diferenças, em que estas dão ritmo àquela; nas buscas

das semelhanças que nos unem como seres humanos, com nossos sonhos

primordiais, na diversidade dos tons que compõem a unidade na multiplicidade; na

proporção em que nos co-determinamos, de modo interdependente, em nosso co-

pertencimento planetário.

A ação de educar, protagonizada pelos fluxos tensoriais que perfazem a

condição humana, é atravessada pelos princípios do Caos e do Cosmos. Ou seja,

como rito vivo de iniciação, como ação poiética, plasmada por processos de criação,

o educar gravita entre as in-tensidades de Caos, através de suas perturbações, de

seus rasgos e torções, nas expressões da tragicidade do humano – sua dimensão

dionisíaca –, e a ordenação, a sobriedade de Cosmos, mediante o plasmar da

plasticidade e das proporções elegantes de sua forma, na configuração da placidez

de seus contornos – sua dimensão apolínea. Assim, Caos e Cosmos, o dionisíaco e o

apolíneo, a hybris e o metron, a conflitividade e a serenidade, se traduzem em

potencialidades interpolares que compõem o ritmo dinâmico dos processos de

criação, dos ciclos de alternância e de complementaridade constitutivos da harmonia

conflitual, dos fluxos tensoriais do existir humano.

É mediante a in-tensidade da interrelação entre as forças da ordem e da

desordem, da estabilidade e da instabilidade que, nas práticas educativas, se insurge

o dinamismo dos processos de criação, de recriação e de renovação dos valores e

dos Sentidos humanos – um educar caósmico. A presença dinâmica dessas

polaridades interpolares ocorre nos meandros mais diversos da ação de educar como

nas relações in-tensivas entre educando e educador, nos intercursos das mais

variadas atividades pedagógicas.

Essa perspectiva educativa se instaura na proporção em que cuidamos das

dimensões anímicas do ser-sendo. Ou seja, na medida em que, de modo teórico e

vivencial, garimpamos os valores primordiais do existir, com a presença coexistente

da pregnância da corporeidade, dos sentires e crenças, e da altivez dos valores que

plasmam a espiritualidade. Delors (1999, p. 99) pontua que “a educação deve

contribuir para o desenvolvimento total da pessoa – espírito e corpo, inteligência,

sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade”. Cuidar

com esmero da complexidade e da inteireza dinâmica e tensorial do existir, do co-

existir, de nossa anima (feminino) e de nosso animus (masculino), nos conduz a

nossa condição de seres andróginos que se desborda, com suas in-tensidades,

através do dinamismo relacional entre essas polaridades interpolares que constituem

a incompletude da inteireza do ser.

De acordo com investigações de alguns pesquisadores, como Henri Laborit,

Mac Lean, o cérebro humano é constituído, de modo triúnico, de três dimensões: o

215

paleocéfalo ou cérebro reptiliano, o mesocéfalo ou mamiferiano e o córtex/neo-

cortex (MORIN, 2002; MORAIS, 2002; NARANJO, 2005). O paleocéfalo caracteriza o

cérebro reptiliano que revela nossos instintos de sobrevivência, nossas pulsões

primárias. O mesocéfalo (límbico) traduz nossa condição de mamíferos expressando

o universo das emoções. O córtex/neo-córtex caracteriza nossa condição de homo

sapiens-simbolicus, de seres que pensam e que imaginam. Essa condição triúnica de

nossa estrutura cerebral revela os estados constitutivos da inteireza de nossa

condição biocultural, como seres orgânicos e simbólicos; como seres que podem

estar em processos de expansão e de aprimoramentos constantes. O educar para a

Sensibilidade implica no cuidado zeloso com essas três dimensões cerebrais, que,

articuladas conjuntamente, potencializam o advento da inteireza in-tensiva do ser-

sendo, da complexidade da condição humana composta de unidade e de

multiplicidade, de sapiens-demens-simbolicus.

Avento uma prática educativa que busca o cuidado primoroso com a

corporeidade, em sua constituição orgânica e simbólica, como estofo que traduz a

pregnância e a animicidade dos Sentidos humanos. Um cuidado que implica no trato

com as afecções e energias humanas, partindo do pentassensorial, dos cinco

sentidos primários, através do cultivo e da lapidação dos mesmos em que

aprendemos a cheirar, a escutar, a degustar, a olhar e a tocar com fineza as

expressões dos fenômenos do existir cotidiano. Ao cuidar da lapidação do

pentassensorial, podemos nos incursionar no multissensorial com a expansão dos

múltiplos sensos perceptivos entrelaçando suas instâncias pregnantes e anímicas.

Esse trato com a corporeidade, com as expressões pregnantes do existir

(emoções, sentimentos, energias...), com nossas dis-posições afetivas, com nossos

estados de humor, nos leva a articular suas potencialidades de modo a proporcionar

o desbordar do intersensorial e do multissensorial. Assim, os diversos sensos

perceptivos, de forma conjuntiva e interpenetrante, aguçam e expandem o espectro

de nossa sensorialidade, de nossa Sensibilidade.

Restrepo (1998, p. 35) afirma que

A tarefa do pedagogo é formar sensibilidades e, para isso, deve passar da razão teórica à razão sensorial e contextual, cinzelando o corpo sem pretender atacá-lo à dureza do código ou esmagá-lo com a arrogância professoral que desconhece as potencialidades da singularidade humana.

Nas ações educativas, através de exercícios e atividades diversas que

mobilizam a corporeidade com suas afecções (emoções, sentimentos) e energias,

podemos instalar processos que contribuem na descompressão e no

desbloqueamento de emoções e de energias congestionadas através de nós

reveladores de medos e ressentimentos que entravam e fecham. Essas experiências,

216

cuidadosamente articuladas, podem incidir no contato mais próximo de cada um

consigo mesmo, com sua corporeidade, com a intercorporeidade, levando à

“compreensão de si mesmo” e “dos outros”, como vimos nas falas de alguns dos

estudantes; podem compelir ao laço do abraço terno que irradia, entrelaça e

amoriza.

Ao procurarmos cuidar da corporeidade, das afecções, afirmando suas

potências que vivificam e humanizam, podemos potencializar posturas e relações

imbuídas de despojamento e de simpatia que implicam, tanto nos processos de

crescimento pessoal, como interpessoal, e projetam ambientes, relações e ações

educativas estimuladoras e aprazíveis. Podemos instalar entre-lugares educativos em

que a simpatia e a empatia nos co-movem mediante a tecelagem de teias abertas

que enredam ritos de iniciação as aprendências da afetividade humana. Afetividade

humana em suas expressões afirmadoras da cromaticidade e das in-tensidades do

existir, do co-existir.

Naranjo (2005, p. 138) realça que “nada necesitaríamos tanto como una

educación afectiva o interpersonal, una educación de esa capacidad amorosa que es

la base de la buena convivencia y la participación en la comunidad – y que tan

criticamente está faltando en el mundo”. Assim, um educar pático como fricção

intercorpórea e interpessoal que realça e desborda vínculos de sinergia, de simpatia

e de empatia, em que podemos com-partilhar toques, olhares e abraços que nos

tornam mais cordiais e fra-ternos na fluição da fraternura.

Escola vem do grego skholé que conota espaço de lazer, de expressão da

espontaneidade em que os aprendizados são descortinados de modo prazenteiro e

com descontração; espaço curvo marcado pela abertura de suas sendas, pelo tempo

livre do ócio criativo (kairós). A presença da ludicidade, do impulso lúdico no educar,

através dos mais diversos exercícios recreativos/recriativos, no dinamismo do jogo,

com seus movimentos sincopados e com sua plasticidade rítmica, pode instalar

ações educativas marcadas de animação e vivacidade em que o espírito de aventura

e de busca, de solidariedade e de despojamento podem tornar estas mais intensas. A

ludicidade desarma a pesura da austeridade do siso e instala a leveza da

graciosidade do riso; faz despontar estados de humor que levam a dis-posição do

ser-sendo para os processos de criação e de recriação na expressão do espanto que

conduz ao inesperado, ao que surpreende. A plasticidade do lúdico instala o pathos

do encantamento que faz desbordar a celebração das in-tensidades do jogo de cada

momento, o zelo com o carpe diem, com o aproveitar bem e com gosto a

oportunidade única de cada instante.

Os estados de abertura, de dis-posição do corpo e do espírito, provocados pela

ludicidade, trazem “descontração, leveza” (Isa), fomentam a expressão do espírito

217

inventivo, da cromaticidade das afecções, da imaginação criante, levando também à

compreensão dos limites e das possibilidades do existir, na plasticidade de seu jogo

sincopado. Destarte, é primordial no educar tecer uma relação coexistencial entre o

lúdico e o lúcido, potencializando vivências, tanto prazenteiras como espirituosas.

Assim, corpo e espírito podem copular na jorrância da dança brincante dos ritos que

alumbram.

Nesse horizonte compreensivo, a ação educativa se instala e se desdobra a

partir da tragicomicidade ontológica do existir humano. Existir que é marcado por

suas fragilidades e precariedades, por seus limites e possibilidades. Desse modo, o

educar se revela como um acontecimento que se processa mediante os fluxos

tensoriais do existir, com suas contradições e paradoxos, suas tortuosidades e

porosidades, em que cada momento pode ser vivido como um rito vivo que

proporciona o advento do ser-sendo, em seu a-con-te/cer sendo, na fruição dos

Sentidos que traduzem as ambigüidades do existir. Os momentos crísicos, os influxos

da conflitividade do cotidiano, das vicissitudes do educar, podem ser compreendidos

e articulados como instantes potencializadores de processos alvissareiros de

transformação.

Os “desafios”, os “desequilíbrios” constituem e dão ritmo à dinâmica das

travessias aprendentes. Nas falas explicitadas no cap. 3, Arlinda declara que “tudo

que constitui desafio é muito bom” e Janice, referindo-se às atividades pedagógicas

vivenciadas diz: “causou perturbação, mas que bela emoção”. Na sabedoria chinesa

a palavra crise (wei ji) traduz perigo e oportunidade. Portanto, a presença das

fraturas, dos conflitos, como momentos constitutivos das itinerâncias do educar, do

existir e do co-existir, potencializa a dinâmica das alterações, das mutações

qualitativas. Os fluxos tensoriais podem ser compreendidos como momentos

propiciadores de processos de cura, de cuidado desveloso com o existir. Desse

modo, a ação de educar inspirada nessa compreensão de cuidado, potencializa a

fruição dos ritos de passagem que conduzem a novos saberes e sentires, a Sentidos

anímicos.

Carece de muita coragem para que aprendamos a trilhar com desenvoltura as

sinuosidades e dobras das travessias convertendo a dramaticidade das crises, dos

rasgos tensoriais, em dores de parto. Dores que podem fazer rebentar o novo com

seu fulgor que vivifica e renova, com sua jorrância extraordinária. Se

pedagogicamente convertemos esses momentos de conflitância em ritos de

passagem, mobilizando o espectro policrômico da Sensibilidade, de nossos sentires,

intuíres e pensares, através da coexistência entre a pregnância da corporeidade e a

sutileza da espiritualidade, podemos sedimentar processos de iniciação, de

aprendências e de co-aprendências que alargam e robustecem o existir. Assim,

218

podemos nos incursionar no cultivo do anímico, da sabedoria primordial, do conhece-

te a ti mesmo, do “autoconhecimento”, da “autodescoberta”, nas falas que vimos.

Nesse rumo, os momentos crísicos como constitutivos e fermentadores da

saga humana, podem ser ruminados e sorvidos como oportunidades que

potencializam processos de crescimento e de maturação existenciais – o que requer,

de cada um de nós, a perspicácia da maestria na condução dos mesmos, como

ingredientes propiciadores das passagens, das iniciações.

Assim, o educar é compreendido como um acontecimento marcado de luzes e

de sombras, de dores e de prazeres, através da urdidura do modo de condução do

suceder das contingências, do cuidado alquímico com a complexidade e com a

policromia do ser-sendo-com, em suas dimensões pregnantes e anímicas. Desse

modo, podemos enredar o advento do humano realçando e afirmando suas

ambivalências, sua expressividade iridescente.

Como rito de iniciação ao advento da Sensibilidade, a ação de educar penetra

nas in-tensidades do entramado multicor dos símbolos mitopoéticos que plasmam

nossos imaginários garimpando e se nutrindo do vigor de seus mananciais. As

imagens, as metáforas, os símbolos que estruturam o imaginário mitopoético, com

seu dinamismo e sua cromaticidade, revelam estruturas arquetípicas primordiais.

Estruturas que se alojam em nossas camadas mais internas e inconscientes,

marcadas pela intuição, pelas afecções do ser-sendo, por nossa memória coletiva.

Desse modo, como vimos, o espectro do mitopoético traduz crenças e desejos,

sonhos e sentires fundos de nosso existir e co-existir, e projetam a polifonia dos

Sentidos de modo implicado com o vivido/vivente mediante a potência ligante dos

símbolos.

Destarte, o cultivo do imaginário simbólico, do mitopoético na ação de educar,

implica no descortinar de ações iniciáticas encharcadas com o elã da dinamicidade

do imaginal, da força inspiradora e nutridora das metáforas, dos símbolos, dos feixes

do mítico e do poético. Esse cultivo incide no fomentar as potencialidades criantes do

espírito e da imaginação dos indivíduos na fruição da poeticidade dos fenômenos, do

existir, do senso intuitivo e afeccional. Dessa forma, os saberes e sentires são

ruminados mediante a expressividade de suas dimensões prosáicas e poéticas em

que os Sentidos são sorvidos em sua constituição polifônica e em sua implicação com

a pregnância do vivido/vivente. Na fala de Joana, citada no capítulo três, o cultivo do

“imaginário” permitiu a ela se sentir “mais aberta a ver a vida de um prisma não

mais linear”, e, portanto, a compreender melhor as sinuosidades do existir. Nesse

eixo, a voz expressiva de Eva revela que, nessa perspectiva de educar, “podemos

(...) utopiar, recriar, transformar, bailar e poemar sobre os conteúdos (...) de forma

219

prazenteira”. Assim, a presença irradiadora do mitopoético na ação de educar

infunde nesta estados de criação e de fruição da poeticidade do existir.

A presença da Razão-Sentido na ação de educar se traduz como possibilidade

que fomenta a expressão da inquietude do espírito interrogante que desafia e

problematiza os fenômenos, o existir, com seu senso vasto de com-preensão

meditativa e dialógica, de ponderação espirituosa, com seu tino de discernimento e

com a inventividade de seu pensar encarnado.

A Razão-Sentido re-vela a altivez do espírito audacioso. Espírito que transita

pelas pedras do caminho como oportunidades estimulantes, como momentos

impulsionadores das buscas sequiosas de Sentidos; em que este pode se descortinar

de modo altaneiro. Espírito-águia que se nutre do húmus da terra, do telúrico, das

finitudes das contingências do cotidiano, mas que alça seus vôos pelos horizontes da

infinitude urânica. Que, desde dentro do visível, da imanência, da tangibilidade do

existir, vislumbra e penetra pelos desvãos do invisível, da transcendência, da

intangibilidade do existir.

Assim, o fulcro da Razão-Sentido projeta o pensamento interrogante que, com

seu senso de criticidade, busca problematizar e discernir, compreender com

radicalidade as expressões da cultura humana, os fenômenos do existir, a

complexidade do educar. Uma Razão-Sentido como Razão compreensiva que escuta

e dialoga, que se implica com os fenômenos, com o existir e o co-existir.

Considerando a presença da Razão-Sentido nas experiências educativas, a fala

da estudante Avani pondera sobre a pertinência da formação de “cidadãos críticos,

porém humanos”, e Marta revela, de forma expressiva, “descobri que ser sensível

não é ser besta!”. Ou seja, o cuidado com a Sensibilidade supõe espírito lúcido que

pondera e discerne, que articula o senso agudo de criticidade, mas, de modo

despojado, sem perder o tom do sensível, o senso do humano. Como também, nessa

perspectiva, o cuidado com a dimensão sensível não implica, absolutamente, em

processos de alienação e de bestialização em nome de posturas equivocadas que

denegam o senso espirituoso do pensamento, a própria dignidade humana.

A tecedura da plasticidade da ação do educar como cuidado com a

Sensibilidade supõe uma relação de coexistência entre a Ética e a Estética, a

interpenetração entre o bem e o belo, a dignidade e a beleza – o kalokagathos. Uma

ação educacional que pretende iniciar os seres humanos no advento de seu ser-

sendo pregnante e anímico, opera esse entrecruzamento in-tensivo entre a

consciência Ética e a fruição Estética. Assim, promove o cuidado com os valores

primordiais da solidariedade, da justiça, da paz, da liberdade, do bem etc., e

compreende que os mesmos se fragmentam e se desbotam se prescindem da

delicadeza, da elegância, das estampas do belo, da fineza da beleza. Freire (1996, p.

220

26) realça que a prática educativa deve ser “estética e ética, em que a boniteza deve

achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade”.

A coexistência entre Ética e Estética, portanto, traduz a busca primorosa do

advento da inteireza in-tensiva do humano em seus estados de grandeza e de fineza.

Busca que instaura uma morada humana tanto vistosa como benfazeja, tanto bonita

quanto digna. Assim, uma ação de educar que procura “entrelaçar o bem e o belo

para descobrir cada dia mais o encantamento da vida”, no depoimento precioso de

Rúbia.

Como as aprendências das experiências apontam, essa iniciação aos

territórios entrecruzados da Ética e da Estética não pode fecundar apenas na esfera

estrita do plano teórico, nas articulações abstratas de saberes. Carece da iniciação

teórico-vivencial, da nervura do vivido/vivente, por meio de ações desafiadoras que

mobilizam conjuntamente corpo e espírito. Dessa forma, podemos nos iniciar

existencialmente nessas aprendências anímicas. Apenas a esfera do saber teórico

pode instruir e in-formar, mas não implica, de modo geral, em processos de iniciação

ao existir cotidiano, nas buscas de sabedoria – propósito maior da ação do educar, da

Educação. O mero saber, como vimos, se confina apenas às práticas instrucionais, ao

âmbito funcional da técnica. Não penetra no horizonte existencial dos valores, dos

Sentidos.

O cuidado com o advento dos valores humanos, da Sensibilidade, mediante os

ritos vivos de iniciação, implica num processo pedagógico que se lastreia no pathos

do amoroso. Os feixes do amoroso nos abrem e nos dis-põem para vivências in-

tensivas conosco mesmos e com os outros, suscitando entrelaces que nos

aproximam e que compelem aos abraços que ecofraternizam. A sinergia do amoroso

implica na fruição dos sentires que nos co-movem, e que, assim, jorram in-tensidade

e alumbramento. A vibração do amoroso desborda a simpatia e a empatia dos laços

afetivos que nos co-implicam como humanos e nos fazem com-partilhar as

diferenças. Assim, podemos celebrar os elos que nos unem e engrandecem, que

fazem expandir o sentimento do mundo, a sinergia do ser-sendo-com-os-outros.

Naranjo (2005, p. 155) fala de “una educación del sentimiento de humanidad”, do

sentimento de co-pertencimento à humanidade.

O elã do amoroso mobiliza nossas potencialidades criantes nos impulsionando

aos desafios das travessias. O magma do amoroso decanta a alquimia que entrelaça

os sentimentos da coragem e da ternura com o pulsar do coração e com o flamejar

do espírito. Implica no trato fino, no cuidado com a delicadeza do ser-sendo.

A sinergia do amoroso fomenta processos de co-laboração, de co-operação e

de com-partilhamento, eivados dos sentimentos de carinho e de ternura, das

221

posturas altruístas, da expressão magnética dos feixes de energias que aproximam,

sinergizam e interligam, que nos agregam como semelhantes e diferentes.

O amor como princípio educativo, potencializa o desbordar do advento da

condição humana, em suas fragilidades e limites, na vastidão de sua magnitude, no

cultivo dos valores que enobrecem – da Sensibilidade; acende as flamas da alma e

do coração conduzindo à floração do ser-sendo-com-os-outros no tecer o desafio da

ecofraternização, de nosso co-pertencimento planetário – a Ordo Amoris.

Assim, podemos, processualmente, ultrapassar os valores e posturas

egocêntricas – o espectro da egocidadania – e nos enredar pelos desafios dos valores

e posturas ecocêntricas – no espectro do ecocidadania. Ou seja, podemos fazer a

travessia que nos leva do egoísmo que mutila e encaverna para a postura

compassiva do ecoísmo que religa e planetariza na compreensão de que “somos

interdependentes” (Alcione).

O educar como cuidado desveloso para com a Sensibilidade implica na escuta

dos silêncios e dos vazios que compõem as reentrâncias da pluriformidade do existir

humano, de suas ambivalências e imponderáveis. Implica penetrar nos territórios

vastos das incertezas e dos paradoxos da condição humana atravessando os flancos

de seus enigmas, de suas encruzilhadas, dos abismos e das estranhezas do ser-

sendo. Ser-sendo que implica nos estados do ser e do não-ser nos influxos do estar-

sendo. Ser-sendo, portanto, que, em sua condição de ser em aberto, em sua

estância, é constituído de brechas e de sendas que potencializam o seu tornar-se,

suas metamorfoses, na in-tensidade dos movimentos que descortinam o surgimento

do novo, do renovar-se; na vigência de seu estado nascente.

Essa escuta se torna possível se nos despojamos dos emblemas e dos modelos

deterministas e plasmados de univocidade e nos dis-pomos para trilhar as sendas

indeterminadas das sinuosidades in-tensivas do existir, de sua plurivocidade. Se nos

precipitamos como caminheiros das aprendências nômades do ser-sendo, como

almas corsárias que se aventuram nos riscos das itinerrâncias que podem nos levar a

garimpar os tesouros da alma e do coração humanos. Nessas itinerrâncias, como

“errantes e aprendizes” (Angélica), nos incursionamos nas aprendências que

emergem das iniciações vividas/viventes que penetram nos recônditos do existir.

Assim, podemos nos parir e nos reparir, nas curvaturas de cada momento, mediante

o dinamismo dos partejamentos que conduzem aos re-nascimentos.

Nessa esfera, o educar tem mais Sentido, sobretudo, na proporção em que

aprendemos o que ainda não sabemos, em que descobrimos o que ainda não

conhecemos, em que somos con-vocados a inventar o que ainda não existe. O já

sabido já está posto, determinado. Apenas o que já existe é muito pouco para o que

pode a alma e o coração humanos em suas potencialidades inesgotáveis de

222

expansão e de criação constantes. Nesse âmbito, Edvan declara que “criar é muito

mais gostoso, muito mais prazeroso”, na proporção em que implica na fruição do

pregnante e do anímico.

A alma e o coração humanos carecem de processos desafiadores que

conduzam às proezas que apaixonam mediante a emergência dos vôos altaneiros

que enlevem o ser-sendo em estados de criação inaugurais. Estados que, assim,

podem renovar e vivificar os Sentidos do existir, do co-existir, que descortinam

processos constantes de “partejamento” de significados e de Sentidos, num “parir

com alegria” (Selma) em que “o aprendizado é um renascimento constante do ser”

(Camila), nas falas primorosas dos estudantes. Rita arremata com entusiasmo:

“Deixar o corpo falar/ A mente fluir/ E ter a certeza/ Que posso parir” traduzindo as

in-tensidades dos processos de parimento de sentires e de saberes – de Sentidos –

nos ritos de iniciação educacionais.

Galeffi (2001, p. 244) proclama que uma “compreensão poemático-

pedagógica é uma disposição de espírito caracterizada pelo eterno prazer do devir –

o amor pelo instante em devir: o fazer inventivo que afirma a vida” (grifos do autor).

Um educar “poemático-pedagógico” é plasmado por espíritos altivos no enredar de

travessias que alargam e irradiam, de travessuras que entusiasmam, na proporção

em que, desde dentro, atravessamos e somos atravessados pelos ruídos e silêncios

dos flancos do existir humano, da epopéia humana. Desse modo, podemos

cotidianamente nos iniciar no gosto e na graça dos ritos vivos que animam e

proporcionam a fruição amorosa das aprendências e das co-aprendências

afirmadoras do existir, do co-existir.

Nesse horizonte, um educar orgânico que emerge do dinamismo dos fluxos

tensoriais do existir, das estabilidades e instabilidades de nosso estar-sendo-no-

mundo-com; em que nos criamos e nos recriamos individual e coletivamente; em que

nos instalamos no mundo ex-istindo e in-sistindo na urdidura da rede policrômica de

suas proezas.

Como pontua Gusdorf (1995, p. 52), a educação “tem por finalidade promover

o advento da humanidade no homem”, promovendo as expressões dos valores

primordiais que compõem a condição humana; que afirmam a “magnitude da vida”

(Hélio). Dessa forma, o educar se consubstancia no esmero desse cuidado com os

valores humanos primordiais sedimentados pelas diversas tradições da humanidade.

Valores que, na dinamicidade do existir e da cultura humana, se revelam em

processos constantes de renovação e de recriação. Valores que envidam nossas

posturas como seres em aberto, como errantes e aprendentes; como seres

destinados à saga do amoroso nos influxos do ser-sendo-com-os-outros, naquilo que

mais nos dignifica e embonita, nos entrelaces do bem e do belo.

223

Nessa perspectiva, o fenômeno do educar se traduz em processos que

vislumbram a formação de “cidadãos sensíveis” (Maria, Amélia e Paulina), de seres

humanos, na amplitude de sua condição humana, e não de alunos empadronados em

papéis e modelos. Um educar que implica em potencializar a emergência dos sonhos

que nos inspiram fomentando a expressão do onírico, da fantasia, dos espectros do

mitopoético que constituem nossos imaginários e que nos compelem aos compassos

policrômicos das trajetórias, que animam e estampam nossas jornadas. A alma

carece da plasticidade e do dinamismo do imaginário mitopoético, de se nutrir de

sonhos impossíveis, das centelhas das estrelas, para que nosso ser-sendo biocultural,

em seus estados de imanência e de transcendência, possa fazer desbordar o elã vital

do anímico, a poeticidade do existir, possa “admirar a beleza” (Simone), fruir sua

seiva nas dobras do possível, no desdobrar do impossível.

A mirada da ação de educar para a Sensibilidade, com a vastidão e a

intensidade de sua policromia, nos dis-põe para a “escuta sensível” (BARBIER, 1993;

2001), para a escuta silente e atenciosa que nos implica e nos co-implica, com

simpatia e com empatia, como educadores e educandos. Escuta sensível que penetra

nas camadas da singularidade, nos recônditos mais irredutíveis do humano e que

leva a processos de com-preensão. Essa atenção cuidadosa ocorre na proporção em

que, com desvelo, afinamos nossos sensos perceptivos, nossas afecções, nossa

intuitividade e nossa consciência meditativa. Assim, podemos estabelecer conosco

mesmos e com os outros, uma relação de cuidado amoroso, de implicação e de co-

implicação que supõe acolhimento e com-partilhamento, estabelecendo, portanto,

um educar humanado, encharcado do húmus sensível do humano.

O educar como advento da Sensibilidade incide numa mirada que proporciona

o ad-mirar, o mirar contemplativo e penetrante que interpela e co-move. Resvala em

nosso estado de dis-posição e de receptividade para a percepção da policromia que

configura os fenômenos do existir, na compreensão mais acurada de suas curvaturas

e reentrâncias, de suas opacidades e clarezas. “Uma educação que se dirige à

totalidade aberta do ser humano e não apenas a um de seus componentes”

(NICOLESCU, 1999, p. 137). Nessa perspectiva, a dis-posição policrômica da

Sensibilidade nos implica com as in-tensidades da inteireza do ser-sendo, da

condição humana, e nos co-implica com os fenômenos, com os seres, com o

ecossistema. Essa mirada da Sensibilidade nos interpela e con-voca, através de

nosso estado de dis-posição para o espanto e para a perplexidade, para os processos

de com-partilhamento das dores e prazeres, das tristezas e alegrias que nos co-

movem, individual e coletivamente, nas travessias do educar, nas contingências da

tragicomédia humana.

224

A presença dessa compreensão da Sensibilidade na ação de educar enreda

processos in-tensivos. Processos que, como vimos, implicam no cuidado com o

advento da condição humana, com os valores humanos primordiais que são

constituídos pelos mananciais das diversas tradições sapienciais da humanidade.

Barbier (2001, p. 127) afirma que “Educar-se quer dizer dar um sentido à vida

através do encontro e do diálogo com os diferentes saberes e habilidades relativo ao

capital cultural da humanidade”.

Esses processos dialógicos se desdobram a partir dos mananciais de

sabedorias da humanidade na afirmação de posturas que manifestam solidariedade,

amorosidade e dignidade. Mas, sobretudo, busca ultrapassar os humanismos que

superestimam o ser humano considerando-o como o centro do universo – o

antropocentrismo – secundarizando e reduzindo os outros seres à condição de

periféricos. Essa postura antropocêntrica leva, freqüentemente, à arrogância e à

prepotência cegantes e incide na subjugação dos demais seres através das posturas

que barbarizam e esgarçam o planeta (vide a dramaticidade dos acontecimentos das

últimas décadas em todo o planeta...).

Assim, urge instaurar a perspectiva policêntrica do ecohumanismo que, como

vimos, vislumbra a relação de coexistência in-tensiva e interdependente entre os

seres humanos e todos os seres do universo/pluriverso, na singularidade irredutível

de cada presença, afirmando a diversidade da teia mestiça que nos une

ecossistemicamente. Nessa perspectiva policêntrica, inexistem centros exclusivos e

deterministas, e sim, uma teia entrelaçada em que todos os seres, cada um em sua

singularidade, se constituem como coexistentes e co-determinantes. Portanto, uma

cosmovisão ecocêntrica em que o centro se encontra em toda parte e em nenhum

lugar especificamente.

Dessa forma, propugno um educar para a Sensibilidade

ecológica/ecossistêmica – uma ecosensibilidade – que compreende a composição do

dinamismo dessa rede que entrelaça todos os seres, e que, assim, pode nos levar a

posturas que afirmam essa cosmovisão. Cuidar da cosmovisão ecohumanista implica

na instauração de uma postura ecofraternizante em que procuramos nos fraternizar

com os seres humanos e a diversidade dos seres que povoam o cosmos com os quais

somos interdependentes. Implica em ultrapassar os ditames do patriarcado ousando

instaurar o fratriarcado, instituindo, assim, modos de relação interhumana e

ecohumana inspirados no sentimento de fraternização – um sentimento do mundo.

Sentimento que, cordialmente, reconhece e acolhe a todos, na magnitude de suas

singularidades, fomentando o com-partilhamento da coexistência que ecofraterniza

ao nos implicar e nos co-implicar uns com os outros.

225

Avento uma ação de educar cravada na terra da carnalidade do vivido/vivente

como ação impura contaminada com o húmus, com a cromaticidade e a pregnância

da tragicomicidade do existir humano, das porosidades e texturas de suas

vicissitudes cotidianas, no entramado de suas contradições e paradoxos. Assim, um

educar humanado, demasiadamente humano.

As experiências educativas, como ritos de iniciação, fomentam a “simpatia, a

compreensão, a amorosidade e o prazer de celebrar a vida” como afirmam Maria,

Amélia e Paulina. Ritos que, portanto, se traduzem em encontros humanos de

celebração e de afirmação da vida mediante a fruição dos repertórios vivos das

sabedorias que dão Sentidos ao existir, ao co-existir. O educador indígena

Munduruku (2002, p. 93), referindo-se às práticas educativas convencionais, afirma

que

Olhamos as crianças como educandos e não como seres humanos. O aluno chega à escola; o ser humano ficou em casa; desejamos educar o aluno, não o ser humano; queremos disciplinar, passar conhecimento, impor fórmulas etc.

Muito mais que encontros entre as funções e os papéis instituídos de

professores e de estudantes, o educar implica em encontros inter-humanos, entre ser

humano e ser humano, mediante a dinâmica da relacionalidade que conduz ao com-

partilhamento de saberes e de sentires, das in-tensidades entre as diferenças que

nos tornam singulares e plurais, que potencializam o co-existir.

Como processo que pode conduzir aos compassos de re-encantação da vida,

do mundo, a ação de educar carece de invenção e de reinvenção constantes, tanto

em seus modos e formas, como nos repertórios de seus conteúdos. Carece de

processos que conduzam à “admiração”, ao “espantar-se”; a “momentos de

encantamento” (Jandira) que implicam em constante renovação. A alquimia desses

processos de renovação supõe espíritos e corações despojados para que possam

estar constantemente se recriando e se reinventando no suceder das contingências

educacionais e existenciais.

Na proporção em que potencializamos a emergência desses processos

poiéticos de criação e de recriação, da fruição dos seus fluxos cíclicos, do dinamismo

das metamorfoses que transmutam e vivificam, a ação de educar afirma nossa

condição de seres inacabados, em eterna mutação, de seres poiéticos, em eterna

criação. Condição que nos possibilita partejamentos constantes. Assim, cultivamos o

elã do pathos criante, criando e recriando cotidianamente, co-movidos pelo espectro

anímico do imaginário mitopoético, do vigor da Razão-Sentido, mediante as in-

tensidades inesgotáveis do existir.

Desse modo, efetivamos a condição de eternos aprendentes no rendar a

tecelagem das aprendências e das co-aprendências. Um educar como estância, ou

226

seja, como estar sempre em fluxo, que, com suas in-tensidades, desemboca em

recriações e em renovações vivificadoras. Implica em nossa formação permanente

como educadores nos processos de auto, hetero e ecoducação, através dos ciclos de

renovação de nossas cosmovisões e posturas.

A presença do senso intuitivo do existir é uma das expressões mais fecundas

mediante a articulação da ação de educar como rito de iniciação na dinamização de

seus processos de criação. O desvelo e a escuta do senso intuitivo, com as sutilezas

de suas tonalidades e texturas internas, fomenta a imaginação criante, nos revela

insights que proporcionam estalos espirituosos. O farejar da intuição implica no

auscultar interior que leva a percepções penetrantes e que alargam a consciência

compreensiva e engravidam processos inventivos impelindo a emergência do

surpreendente.

A intuição, o senso intuitivo, leva a cavucar as reentrâncias e as espessuras

dos fenômenos do educar penetrando em suas opacidades e imponderáveis. Permite

captar indícios internos que levam a uma compreensão minuciosa das curvaturas das

ações educativas. O cuidado atencioso com a intuição possibilita percepções

perspicazes e sentires fundos que brotam desde dentro do dinamismo das relações

entre educadores e educandos, das texturas e porosidades dos influxos das

interrelações: dos gestos, dos movimentos difusos, dos silêncios, dos humores...

A percepção intuitiva capta meandros das atitudes e dos fenômenos que

escapam ao senso lógico-formal tidos como aparentemente insignificantes. Meandros

que, pelo primor dessa mirada, pelos estalos de seus insights, se configuram como

aspectos e detalhes bastante relevantes para a ação de educar na perspectiva da

escuta sensível, do senso com-preensivo, da manifestação da simpatia e da empatia.

O educar esmerado que conduz ao advento da Sensibilidade pode nos

conduzir à compaixão que nos entrelaça uns com os outros na expressão da

grandiosidade de nossos sentires, do sentimento de amorosidade. Pode suscitar o

surgimento do espírito de não-indiferença que, ao mobilizar as inquietudes da alma,

manifesta perplexidade e inconformismo diante da “barbárie civilizóide” que depreda

e dilapida a teia do humano e de todo o ecossistema. Esse estado de mal estar pode

implicar numa indignação mobilizante que nos compele a encampar ações altruístas

diante da dramaticidade dessas paisagens. Ações que se desdobram através de

conspirações que operam a juntura de nossas aspirações altivas imbuídas dos

valores da solidariedade, da dignidade, da amorosidade... Nesse rumo, podemos

tecer práticas educativas que potencializam a radicalidade de práticas alterativas.

Inspirado nessa compreensão ontológica da Sensibilidade, o educar implica

em ações de cunho libertário que apontam para processos heterogêneos de

conquista das liberdades humanas primordiais, de ações que envidem uma

227

transgressão inteligente dos modelos e estruturas dos poderes instituídos com seus

círculos viciosos. Essas formas de poder impregnadas em nossa sociedade, como

sabemos, são bastante presentes nas práticas educativas instituídas, desde suas

expressões mais difusas às mais visíveis.

Desse modo, muito mais do que mera busca de saber, educar supõe busca de

sabedoria na afirmação e na re/criação de Sentidos que dão cromaticidade e

vivacidade ao existir. As práticas educativas que se limitam ao âmbito da técnica, do

saber formal, que se encerram na pragmaticidade do funcional, nos fragmentos da

teia do existir e da cultura se confinam, como vimos, a meras práticas instrucionais.

A ação de educar, como iniciação e como fruição da Sensibilidade, vislumbra o

horizonte de Sentidos que constitui a dinamicidade das relações que estruturam a

inteireza in-tensiva da teia do humano, do inter-humano.

Nessa perspectiva, o educar como advento da condição humana requer

conteúdos e procedimentos técnicos, de cunho informativo e funcional, considerando

sua importância nos processos de formação técnica e profissional, mas os ultrapassa

na medida em que são apenas instrumentos, e, portanto, insuficientes para dar conta

da formação da inteireza do ser-sendo. Assim, se enreda, sobretudo, no cuidado

primoroso com a formação dos valores humanos articulando formas e conteúdos que

traduzem, em seus repertórios existenciais, as in-tensidades qualitativas do existir;

que afirmam e renovam os Sentidos anímicos da condição humana; que podem

suscitar o advento de nossos sonhos e utopias primordiais. Naranjo (2005, p. 167)

propugna “una educación a la que realmente pudiéramos considerar sabia y que

verdaderamente nos ayudase a ser mejores” uns com os outros.

O fenômeno do educar como rito de iniciação ao advento dos Sentidos

humanos, mediante os fulcros estruturantes do Mitopoético, da Razão-Sentido, da

Corporeidade, da Afetividade e da Intuição, vislumbra a compreensão e a vivência da

inteireza in-tensiva do ser-sendo; instala processos de compreensão e de vivenciação

dos Sentidos que implicam na expressão pregnante e anímica de nosso ser

andrógino, no enxerto de suas ambigüidades e das simbioses de suas polifonias;

implica no cuidado do ser-sendo como poiesis que se borda e se desborda, com seu

pathos criante, nas in-tensidades dos feixes das contingências. Assim, diante da

plasticidade plurívoca dos fenômenos do existir, podemos incrementar um educar

para o espanto e para perplexidade, para a inventividade e para a amorosidade, no

urdir das aprendências e das co-aprendências que vicejam o humano.

Na proporção em que aprendemos a cuidar com intensidade da abertura, da

dis-posição de nosso ser-sendo para a vivência desses eixos fulcrais no cotidiano das

ações humanas, das ações do educar, podemos possibilitar, de modo teórico-

vivencial, processos de auto-formação (conhece-te a ti mesmo), de hetero-formação

228

(aprendências coletivas) e de eco-formação (aprendências com a teia dinâmica do

ecossistema) (PINEAU, 1999). Processos alvissareiros que vislumbram a teia

dinâmica da inteireza do existir, a fruição dos valores humanos, do espírito altaneiro.

Um educar orgânico que, compelido pelo pathos do espanto, constela

acontecimentos pedagógicos eivados de entusiasmo e de animação. Acontecimentos

que, se conduzidos com espirituosidade e gosto, podem proporcionar ações

educativas imbuídas de audácia e de amorosidade mediante processos de fruição e

de criação dos Sentidos con-sentidos do existir; que enredam as aprendências da

admiração, do cultivo da poiesis do ser-estar-sendo-com.

Avento um ato de educar que se configura como educação pática (pathos),

que se plasma como processo de sedução – se-ducere – em que educandos e

educadores são con-vocados pela simpatia e pela empatia que os fascina e os

entrelaça. Como se-ducere (BÁRCENA, 2004), o educar se associa ao mexer

alquímico do tacho que infunde um gosto/sabor que enfeitiça, se tornando, assim,

uma ação entusiasmante e humanada que desborda processos de encantação e de

re-encantação. Dessa forma, os estados de sedução implicam na qualidade de

experiências que podem resvalar na alquimia da fruição dos valores supremados que

robustecem os Sentidos pregnantes e anímicos do humano; que podem instalar, “de

forma gostosa e prazerosa” (Antonio), relações educativas animadas através de

processos de fruição e de criação encharcados das humidades do existir. Portanto,

uma educação pática, imbuída de afetividade, que faz desbordar os feixes do

amoroso, que potencializa a aventura da coexistência ecofraternizante.

O pathos do entusiasmo decorrente do se-ducere, mediante a interligação do

apolíneo e do dionisíaco, da lucidez e da ludicidade, dos pensares e dos sentires, nos

co-move e con-voca aos desafios das sendas do extraordinário; faz despontar as in-

tensidades dos Sentidos existenciais que infundem encantação e reencantação ao

existir humano e ao co-existir planetário. O elã criante do pathos erotiza o educar, a

relação com os saberes e sentires, os processos de aprendência e de co-aprendência,

podendo vicejar o humano na transitude de suas travessias mestiças; instala os

feixes do estésico que dão graça e contornam o admirável. Freire (1996, p. 160)

arremata: “Ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e

da alegria”. Portanto, um educar que fascina e co-move desbordando admiração e

contenteza se converte em “rito de iniciação” (Elza) que leva a “celebrar a vida”

(Lúcia). Nessa perspectiva, Aline exclama: “que bom aprender com prazer e alegria”.

Nesse universo compreensivo, o educar como cuidado e como fruição da

Sensibilidade implica no advento dos Sentidos anímicos do humano compreendendo

esse cuidado em sua conotação mais enraizada que se traduz em cura. Assim, o

educar pode ser considerado como ação terapêutica na direção de condução que

229

implica nos fluxos constantes de nascimentos e de re-nascimentos do ser-sendo, de

iniciações contínuas aos Sentidos anímicos do existir que conduzem a alma e o

coração para a aventura do ser-sendo-no-mundo-com-os-outros.

Um educar que implica no cuidar do estado de dis-posição de nossos sensos

afeccionais e noéticos, da inteireza de nosso ser andrógino para a expressão do

pathos criante, do elã vital; que implica na afinação do sentimento do mundo, da

fruição da anima mundi, da simpatia do todo, em que podemos aprender a cuidar,

com primor, da harmonia conflitual que constitui nosso co-pertencimento planetário.

Um educar que compele ao cuidado esmerado de nossa condição de pontes

(pontifex) no dinamismo e na heterogeneidade da teia ecossistêmica; de nossa

condição de seres êntricos, interdependentes.

Enfim, como processo de fruição da Sensibilidade, o fenômeno do educar, ao

nos conduzir à relação de coexistência entre a Ética e a Estética, potencializa a busca

de sabedoria que entrelaça a dignidade e a beleza; faz desbordar as in-tensidades da

policromia dos feixes arco-íricos que constituem as ambigüidades e as curvaturas, os

paradoxos e os enigmas das sagas do existir e do co-existir humanos.

04.3 - Indicativos acerca do modo poiético de

condução da ação de educar que apresento

Caminhante não há caminho.Se faz caminho ao caminhar.

Antonio Machado

Não eu não tenho um caminho novo.O que tenho de novo é o jeito de caminhar.

Thiago de Mello

Apresento aqui algumas possibilidades de compassos, de modos de condução,

como repertórios sedimentados em minhas aprendências no exercício in-tensivo das

sagas cotidianas do educar, na perspectiva compreensiva que propugno. Ao propor

esses indicativos de modos de condução, considero, sobretudo, o elã da imaginação

criante e do espírito inventivo inerentes a cada um de nós, como núcleos

impulsionadores das in-tensidades de cada fazer educativo pelas

itinerâncias/itinerrâncias da polifonia de suas encruzilhadas indeterminadas.

Partindo desse horizonte compreensivo em que o educar é concebido como

um rito vivo de iniciação ao advento da Sensibilidade, dos Sentidos humanos,

concebo, como já aventei anteriormente, a pertinência da articulação da ação do

educar como experiência plasmada pela relação de coexistência seminal entre o

230

teórico e o vivencial. Relação que implica na interpenetração complementar e

interdependente entre conteúdo e forma, entre teoria e experiência vivida/vivente,

na imbricação entre o pensar/mento (intelecção) e o sentir/mento (corpóreo).

Para tanto, se torna impresdincível, para nós educadores, uma postura que

traduz um lastro expressivo de abertura teórica e metodológica, de compreensões

pluralistas que vislumbram a incrementação dessa relação de interligação entre o

teórico e o vivencial, para que, assim, possamos desbordar ações fecundas no

envidar o cuidado com a formação da inteireza existencial do ser-sendo.

Considero muito profícua a articulação de atividades pedagógicas que se

alternam entre momentos individuais e coletivos nos processos de elaboração e de

perlaboração teórico-vivencial. Atividades que, dessa forma, potencializam

possibilidades múltiplas de aprendências, de auto-aprendências e de co-

aprendências.

Nessa perspectiva, são expressivamente relevantes na tecelagem da ação de

educar, as abordagens e meditações teóricas das temáticas/conteúdos, dos saberes

que mobilizam o pensamento crítico-sistemático, com seu elã de inventividade,

através das leituras, dos momentos de sistematização teórica, tanto individual como

coletivamente. Além desse procedimento, que, de certo modo, é prevalente em

nossas ações educativas, considero primordial nestas a presença de experiências de

cunho vivencial através de diversas formas que implicam na presença pregnante da

corporeidade, das dimensões mais sensíveis que mobilizam o imaginário, a

intuitividade.

O horizonte de “recursos/passos metodológicos” – os modos de condução, o

jeito de caminhar – que prima por essa compreensão do educar é bastante vasto e

promissor. Nesse rumo, podemos articular atividades didático-pedagógicas como:

linguagens de Arte e étnico-culturais; exercícios lúdicos; dinâmicas de grupos;

imagens/símbolos; exercícios corporais; experiências em ambientes externos (fora

dos espaços rotineiros); oficinas/atelieres; salas estruturadas em círculo etc.

As linguagens de Arte (dança, música, teatro, poesia, artes plásticas...) se

configuram como expressões bastante profícuas, não apenas como “recursos

metodológicos”, mas, sobretudo, pela vastidão de seus Sentidos, como experiências

pregnantes que potencializam a fruição da intuição, dos sentires, da imaginação

criante, da corporeidade, do estésico. Experiências que, desse modo, fomentam a

expressão do espírito de inventividade, da dimensão poética dos Sentidos e

infundem mais prazer, contenteza e encantamento às ações educativas.

Em sua multiplicidade de formas, as linguagens de Arte potencializam

vivências que implicam no cuidado primoroso com o advento da Sensibilidade e

podem ser articuladas nas diversas disciplinas e matérias pedagógicas em todas as

231

áreas de conhecimento. Propugno essas experiências vivenciais com as linguagens

de Arte, não apenas para crianças, como, de certo modo, se costuma entender e

fazer, mas para todos os indivíduos e em todos os graus e níveis dos processos

educativos, como tenho procurado incrementar. Desse modo, os conteúdos das

disciplinas, além de serem abordados no plano discursivo, também podem e devem

ser incrementados através da plasticidade das expressões do teatro, da dança, da

poesia, da música, das artes plásticas... Assim, os referidos conteúdos passam a ser

ruminados e sorvidos pelo dinamismo e pela poeticidade dessas expressões,

atravessando por inteiro o ser-sendo de cada indivíduo, dando mais cromaticidade e

Sentido aos saberes (sapere). Saberes que, assim, são sorvidos de forma pregnante

e anímica.

Outra possibilidade que considero bastante relevante é a presença das

manifestações étnicas que traduzem as singularidades existenciais e culturais dos

educandos e educadores e de seus grupamentos. As Cantigas de Roda que se

configuram com cantigas, versos, danças etc., presentes nas diversas tradições

culturais, o Cordel, o Repente, o Bumba-meu-boi, o Samba-de-roda, e tantos outros

folguedos populares, podem ser incorporados nas atividades educativas (conteúdo e

forma), em momentos e proporções variadas, como experiências que, com seus tons

de ritualidade, implicam no desbordar o elã do imaginário mitopoético, do espírito e

do sentimento de com-partilhamento. Essas expressões instalam momentos de

celebração e de encantação que envidam o educar como ação de afirmação dos

saberes e sentires do mundo vivido, da plasticidade cromática do viver.

Através da multiplicidade das linguagens de Arte, das manifestações étnicas,

e com a força de seu dinamismo, podemos incrementar na ação de educar,

momentos “ritualísticos” expressivos em que os sentires e crenças, as cosmovisões e

sonhos de seus protagonistas são afirmados e fortalecidos mediante a presença dos

símbolos mitopoéticos das tradições culturais, bem como, ao mesmo tempo,

cuidamos do advento da Sensibilidade vivificando os processos educativos. Esses

ritos vivos de iniciação infundem alumbramento ao fenômeno do educar inspirando

os fluxos de criação e de recriação de valores e Sentidos, de nosso existir, de nosso

co-existir. Nos mesmos, os conteúdos são ruminados e “provados” com gosto e

alegria, em processos intensos de fruição.

Mesmo em momentos breves, a presença das linguagens de Arte e das

manifestações étnico-culturais traduz contribuições pedagógicas bastante

expressivas. O tempo dessas expressões é o tempo do kairós, da in-tensidade do seu

dinamismo, como expressão do qualitativo e da poeticidade. Assim, as pequenas

vivências com essas linguagens podem marcar e instaurar processos educativos que

infundem Sentidos pregnantes e anímicos.

232

A presença dos exercícios lúdicos também se caracteriza como atividades que

podem ser bastante expressivas na medida em que são mobilizadas com

espirituosidade e despojamento. Esses exercícios, além de proporcionarem

ambientes educativos imbuídos de leveza e de prazer, relações interpessoais eivadas

de simpatia e interação etc., instigam o espírito de curiosidade e de inventividade

dos protagonistas da ação do educar.

Nessa perspectiva de educar, também se torna relevante a articulação de

exercícios corporais diversos que impliquem em momentos de autodescoberta e de

com-partilhamento de emoções e de sentimentos que instalam relações de sinergia,

de simpatia e de empatia. Exercícios que contribuem nos processos de desbloqueio e

de relaxamento, de sensibilização e de con/centração. Que, assim, potencializam

relações abertas e próximas com o corpo, com as emoções, sentimentos e energias;

que fomentam contatos de maior proximidade entre os educandos e destes com os

educadores estabelecendo uma atmosfera educativa marcada de cordialidade e mais

humanada; que suscitam processos vívidos de compreensão e de expressão de

idéias. Dinâmicas de grupos, atividades em roda, através de brincadeiras, danças e

cantigas, podem implicar em momentos expressivos de com-partilhamento de

olhares, de toques e de abraços que fraternizam, de com-preensão e de

criação/recriação dos Sentidos do existir, do co-existir.

Nesse rumo, podemos converter muitas das nossas aulas, por exemplo, em

oficinas e atelieres, para utilizar nomes que, de certo modo, estão presentes em

algumas práticas educacionais, como experiências teórico-vivenciais vigorosas de

ruminação, de criação e de recriação de saberes e de sentires.

É bastante expressiva a articulação de experiências pedagógicas fora do

ambiente rotineiro das atividades educacionais (sala de aula etc.). A dimensão

geográfica dos espaços físicos, com as texturas e a cromaticidade de suas paisagens,

é significativamente relevante nos processos educativos. Desrotinizar o espaço físico,

possibilitar contatos com outros espaços, com outras texturas, volumes, cores,

desenhos e espessuras, proporcionar outros fluxos e movimentos, leva a descobertas

expressivas e desperta percepções novas que renovam e alargam os sensos de

percepção e de compreensão. Os espaços e os modos de conduzir diferenciados

tendem a proporcionar novos sentires e pensares, a expandir esses processos de

percepção e de compreensão. O mesmo espaço pode também ser reconfigurado e

ressignificado.

A utilização de recursos imagéticos, de metáforas e de símbolos, através do

poder mobilizador da plasticidade das imagens que tocam e inspiram, articuladas

com senso estésico e de espirituosidade, é bastante alvissareira nessa compreensão

de educar. O dinamismo das imagens/símbolos (fotografias, filmes, desenhos,

233

pinturas, fábulas, símbolos míticos...), com suas policromias e polissemias, aguça

bastante o imaginário dos educandos e educadores potencializando experiências

extraordinárias de afirmação, criação e recriação de Sentidos. Como vimos, o

dinamismo da plasticidade das metáforas, das imagens diversas, toca com in-

tensidade no pregnante (corporeidade) e no anímico (espiritualidade).

Nos momentos de conflitância e de desarranjos demasiadamente humanos do

exercício do educar, ao invés de posturas reativas que, de modo geral, com sisudez,

pretendem comprimir e ordenar, e com articulações apenas no plano verbal,

podemos, de modo vivencial, entrar nos fluxos das ondas dos mesmos. Assim, desde

dentro, com despojamento e maestria, podemos converter essas vicissitudes em

momentos de passagens pedagógicas que fecundam, dão ritmo e dinamismo às

travessias do educar; que potencializam aprendências profícuas para educadores e

educandos. Isso pode ocorrer através de gestos, de sons, de movimentos, de

músicas, de atividades de danças, de teatro etc. que proporcionam processos

espirituosos de articulação e de elaboração pedagógica.

A disposição das salas em círculos potencializa encontros humanados que

envidam a co-participação in-tensiva de todos, na singularidade de cada

participação; instala relações mais democráticas e horizontais entre educandos e

educadores que enredam dialogias mais calorosas; leva aos encontros dos olhares

(“espelhos da alma”) – aos encontros d'alma. Enfim, converte o espaço educativo

num entre-lugar de com-partilhamento de saberes e de sentires que afirmam e dão

ritmo à roda viva do educar, do existir humano.

Nesse horizonte compreensivo, o planejamento das ações educativas se

traduz num esboço teórico-metodológico, do modo mais aberto e flexível possível,

como instrumento potencializador dos processos de fruição das atividades, dentro de

seus contextos específicos, na transversalidade de suas trajetórias abertas. Assim,

considero mais potente o planejamento que mais inspira o espírito criante e

inventivo, que implica em processos de instituição do novo, em que emerge o

surpreendente.

Se, nas atividades educativas, apenas executamos aquilo que planejamos,

tendemos a encerrar as mesmas em meras ações instrucionais que não penetram

nos territórios vastos do educar. O planejar mais fecundo e fecundante tende a ser

aquele que mais incide em seu ultrapassamento, que instala processos de

transgressão e de reinvenção, de modo inteligente/espirituoso, e que provoca o

surgimento do inusitado, do inesperado. Assim, o planejamento deve ser apenas uma

boa referência, um mote inspirador marcado por brechas e porosidades, por vazios e

silêncios que potencializam a emergência do novo, do extraordinário, nas travessias

das aventuras educativas.

234

Nessa perspectiva, precisamos também reinventar as práticas avaliativas, que

quase sempre são instituídas de modo compressivo e mecânico. Isso pode ocorrer

mediante uma multiplicidade de formas expressivas de avaliação de natureza

qualitativa que podem descortinar a dinamicidade das ações educativas. Os

processos avaliativos devem ser momentos abertos que podem ocorrer de modo

individual e coletivo, e que fomentam a expressão do pensamento crítico e inventivo

e da imaginação criante dos educandos: produção de textos e de pesquisas críticas e

inventivas, de linguagens e símbolos de Arte etc. Produções que não devem ser

confinadas em um momento único e estanque, mas devem se descortinar em

processos constantes de qualificação e de aprimoramento. A elaboração de um

texto, como por exemplo: “prova” etc., que apresenta resultados insuficientes, deve

implicar em sua re-elaboração pelo educando para que o mesmo tenha oportunidade

de expandir e de aprimorar sua compreensão e postura crítico-inventiva acerca dos

respectivos conteúdos.

Para transitar por esses modos de condução, entre tantos outros, carece de

nos reinventarmos a todo amanhecer; de garimparmos, com afinco, a poiesis, o

pathos criante, o conhece-te a ti mesmo, para que, assim, possamos alvorecer nas

brumas do arrebol de cada aurora: aurorescer nos desafios de cada aventura

educativa, existencial. A Natureza, sábia e primorosamente, renasce

permanentemente na poeticidade dos modos de expressão de seus ciclos alquímicos.

Somos também Natureza, e mais ainda, somos expressão da Cultura, do Simbólico

(biocultural). Dessa forma, com a alquimia da imaginação criante, do espírito

altaneiro, do elã sensível, podemos nos renovar constantemente; podemos

entretecer e bordar formas de conduzir e de cerzir a urdidura da ação do educar que

sejam inspiradoras e impregnadas de vivacidade; que, assim, levam a processos

constantes que implicam em sua reencantação.

235

Capítulo 05

ARREMATES INCONCLUDENTES:

POR UMA PEDAGOGIA DO ENCANTAMENTO

É poeticamente que o homem habita esta terra.

Holderlin

Acontecia o não-feito, o não-tempo, o silêncioem sua imaginação. Só o um-em-outra, um em-si-juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento,

pensamor. Alvo. Avançavam, parados, dentro da luz,como se fosse no dia de Todos os Pássaros.

Guimarães Rosa

A urdidura da ação de educartraduz um rito vivo de iniciação

na fruição dos Sentidos humanosque em processos de renovação

entrelaçam o pregnante e o anímiconas in-tensidades da reencantação.

M. A.

Um educar como rito de iniciação que prima pelo advento dessa compreensão

ontológico-policrômica da Sensibilidade implica na urdidura de uma Pedagogia do

Encantamento.

O vocábulo encantamento deriva do verbo encantar. Encantar,

etimologicamente, vem do latim incantare que conota cantar para, entoar ecos

mágicos, enfeitiçar e seduzir. Desse modo, encantamento traduz a radiância de um

estado de humor em que os feixes do pathos jorram com in-tensidade; um estado de

animosidade co-movente; um estado de enfeitiçamento e de apaixonamento em que

somos tomados e en-volvidos pelo canto dos enigmas, dos paradoxos e da

poeticidade do existir que nos seduz e co-move, que nos evoca e con-voca para a

fruição dos Sentidos existenciais.

Concebo o estado de encantamento, com seus matizes pedagógicos, em sua

expressão de entusiasmo e de apaixonamento, de contenteza e de alumbramento,

como expressão das in-tensidades existenciais em que jorra o elã do pathos que co-

move e con-voca; que, assim, faz despontar o espanto e a admiração impulsionando

a imaginação e o espírito criantes. Portanto, não me refiro a um estado de

encantamento que se confina apenas na sua expressão de deslumbramento como

mero desbunde extático, como mera borbulhação espumante que pode anestesiar e

cegar, que se dissolve em si mesmo.

Nesse horizonte, compreendo o encantamento como um estado constituído a

partir de um “enraizamento dinâmico” e que se enrama em processos in-tensivos de

fruição e de criação através de ações pedagógicas tocadas com apaixonamento e

audácia. Ações que revelam estados de inquietude, de mobilidade e de implicação.

Assim, um encantamento que agrega e interpenetra a pregnância da corporeidade,

do dionisíaco, e a animosidade da espiritualidade, do apolíneo.

Encantamento como expressão do estado de jorrância do impulso vital, do

pathos criante, dos feixes da anima mundi, do logos spermatikós; como estado de

humor que infunde animação ao existir nos co-movendo e nos con-vocando para os

desafios das ações altaneiras. Estado que emerge das fontes e das nascentes

inspiradoras do onírico, do imaginário mitopoético, com a plasticidade de suas

potências mobilizadoras de nossos sentires e desejos; que nos precipita nas in-

tensidades das ações matizadas de irreverência e de transgressividade.

Desprovidas do elã do encantamento, as ações educativas, tendem a se

desbotar, a se tornar frias e mecânicas; a se tornar práticas caducativas. Sem os

feixes da paixão murchamos nosso humor, nos impotencializamos e nos

conformamos à esfera decadente do ordinário, à uniformidade do instituído. O

dinamismo da plasticidade do estado de encantamento constela as centelhas do

entusiasmo que nos inspiram e irradiam. Como foco irradiante, o estado de

encantamento nos toca e arrebata, de modo penetrante. Compele o corpo e a alma

às aventuras e travessias do extraordinário com seu vigor seminal. Parodiando

Espinosa, quanto mais prazer e radiância, mais fruição e criação.

Nessa perspectiva, propugno uma Pedagogia do Encantamento que

compreende o fenômeno do educar como um rito vívido de iniciação que se

descortina mediante o cuidado in-tensivo com o advento da Sensibilidade, dos

Sentidos humanos. Rito que se processa nos influxos do estar-sendo-no-mundo-com-

os-outros, que suscita laços sinérgicos de simpatia e de empatia na tecedura dos

entrelaces e com-partilhamentos humanos, inter-humanos; que articula a

239

coexistência entre o pregnante e o anímico na fruição de nosso ser andrógino: de

nossa anima e de nosso animus entrelaçados. Que, assim, infunde alumbramento e

poeticidade ao educar, ao existir e ao co-existir.

Estado de encantamento que se traduz num estado de êxtase, no extático,

com seu dinamismo mobilizante, e não como estado estático que anestesia e

imobiliza. Assim, uma Pedagogia do Encantamento que articula o educar como

fruição da poiesis, como fazer sensível e criante, imbuído de inventividade e que

conduz a novos lugares, entre-lugares e Sentidos. Que faz jorrar o estésico, o

admirável, numa relação de coexistência e de co-implicação originária e originante

com os fenômenos, com o existir no ser-sendo-com-os-outros; que entrelaça a Ética e

a Estética, o bem e o belo.

Avento uma Pedagogia do Encantamento que, como expressão orgânica das

in-tensidades da cotidianidade do educar, afirma a conflitividade do viver, que revela

os fluxos tensoriais inerentes à ação do educar e que dão vivacidade à mesma. Uma

Pedagogia errante, itinerrante, e, portanto, aprendente, ao singrar a aventura das

sagas recurvadas da transitude do educar. Assim, concebo que é de suas in-

tensidades e instabilidades que podem emergir aprendências e co-aprendências que

tocam fundo com a força motriz/matriz do pathos criante. Pathos que impulsiona

ações educativas germinais que renovam os Sentidos humanos, que instituem o

extraordinário com seu elã vivificador.

Pedagogia do Encantamento como teia policrômica que contempla e afirma o

dinamismo da coexistência in-tensiva da trama co-implicada do fazer educacional,

em suas múltiplas formas de expressão e de Sentidos; que plasma o crepuscular,

com seus matizes de luzes e de sombras – o solunar; que atravessa o ascetismo das

Pedagogias monocrômicas, com sua sisudez e uniformidade, e instala Pedagogias

impuras, matizadas de policromia, que afirmam as in-tensidades do existir com suas

reentrâncias e seus movimentos sincopados.

Uma Pedagogia do Encanctamento que, cravada na nervura do vivido/vivente,

inspirada nas inquietudes do daimon, se faz interrogante na radicalidade do

pensamento problematizador, do espírito que medita e cria; que, de modo

entusiasmante, interpenetra o lúcido e o lúdico, a prosa e a poesia. Que, assim,

impulsiona a dis-posição para o aberto atravessando as ambivalências e

ambigüidades do ser-sendo nas in-tensidades da tragicomicidade dos

240

acontecimentos humanos; que entrecruza caos e cosmos, desordem e ordem,

operando o dinamismo do jogo que en-volve os processos de criação. Pedagogia do

Encantamento que compreende o educar como esse rito vivo de iniciação aos

paradoxos e enigmas do humano, às ambivalências e incertezas da condição

humana.

Destarte, uma Pedagogia do Encantamento não retém nem represa os fluxos

do impulso vital, das in-tensidades dos fenômenos do educar, do existir, mas,

sobretudo, potencializa a jorrância de seus estados nascentes. Com seus feixes

teórico-vivenciais, eivados do húmus do vivido/vivente, essa postura pedagógica se

projeta na jactância dos momentos em que o espírito e o coração copulam para

afirmar e celebrar a vida. Pedagogia do encantamento que se desborda na vastidão

incomensurável da terceira margem, do estado poético, como constelação dos

Sentidos anímicos, da plasticidade e da poeticidade do existir, do co-existir; que

infunde contenteza e prazerosidade mediante seus estados pregnantes e anímicos

que projetam alumbramento.

Uma Pedagogia fractálica que, com a plasticidade dos recurvamentos e

escorrências do simbólico, se desdobra como potência ligante, que interliga e religa,

que se descortina arco-írica nas estampas da policromia dos Sentidos humanos. Que

entrelaça e copula o apolíneo, que traduz a forma, o urânico (o céu), com o

dionisíaco, que traduz o conteúdo existencial, o ctônico (a terra). Que, assim, ao

entrecruzar o Mitopoético e a Razão-Sentido, faz resvalar a androginia de sua

crepuscularidade mediante as in-tensidades da coexistência entre luzes e sombras,

numa encruzilhada hermesiana, e, portanto, mestiça.

Encruzilhada que, com o pathos do encantamento se descortina a partir dos

fulcros magmáticos que constituem a Sensibilidade: o senso penetrante da Intuição,

a pregnância da Corporeidade, a plasticidade da polifonia do Mitopoético, a

cromaticidade e o pathos criante da Afetividade e o senso do espírito que interroga,

medita e inventa da Razão-Sentido. Encruzilhada que, portanto, pode inspirar as

possibilidades e os desafios que incidem na instauração de relações ecohumanistas

mediante a expressão das ressonâncias magnéticas da sinergia do amoroso. Sinergia

que anima nosso estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, seres humanos e não

humanos, em processos de co-pertencimento planetário.

241

Nesse horizonte compreensivo, avento uma Pedagogia do Encantamento que

compreende o educar como se-ducere, como sedução que fascina e impulsiona o

advento do estado da ad-miração e do espanto mobilizadores, de contenteza e de

prazerosidade. Estado que constela momentos educativos supremados em que o

espírito e o coração, entrelaçados, podem garimpar a busca da sabedoria, a fruição

da beleza. Uma Pedagogia do Encantamento como fruição e como celebração dos

Sentidos pregnantes e anímicos do existir, do co-existir.

242

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Imprecisão

Viver não é precisoEstá aquém e além

Do siso da linha reta.Está no gozo desmedidoDa gratuidade do riso.

Viver é desrealizarNo alumbramento do sonho

A urdidura do caminharNa escuta dos segredosDo coração fremente.

Viver é e não éÉ ser tão sim

E tão bem nãoNo sertão de cada ser

Na curva de cada estação.

254

Viver é afinar Tons de ordem e desordem

Entre o prumo e o piãoAmanhecer redivivo

Na vertigem da aurora.

Viver é sorver o doce-amargoDa proeza de cada momento

Decantar o sopro vesgoDa pesura e leveza do vento

Inventar no cio entãoO som e o silêncio.

Miguel Almir

255