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Aquilo que Nos Separou

Victor Medeiros

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Dedicatória:

Caia

Caia bela no mar

Vem ver o belo viver Que brilha no ar

Sonha no toar

O bom mimo que é tom Das ondas do mar

Crê, sob o luar

Que nua a bela é voz tua Um doce ninar

Chega a hora

Condor livra-se da dor E voa embora

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Aquilo que Nos Separou —

Victor Medeiros

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Primeira Parte

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Capitulo I

la pulava de alegria. Acabara de receber a notícia de que o Banco do Brasil a contrataria dali a duas se-manas. Não continha a felicidade! Seria o primeiro

emprego, garantia de independência e, com isso, realização dos so-nhos de jovem adulta. Faltavam três anos para terminar a faculdade de psicologia.

Sorrindo, abraçou a mãe, a senhora Madalena e as duas fes-tejaram de mãos dadas. O irmão, Pedro, nada disse e após olhar para a cena com indiferença, continuou a assistir ao programa televisivo, enquanto ingeria cerveja barata.

Poliana tinha então 24 anos, força e disposição, mas sem ex-periência profissional. Ela fez, no começo do mês, um processo sele-tivo oferecido pelo banco, que visava a recrutar estudantes. Como já era de se esperar, saiu-se muito bem nas provas e ficou tímida duran-te a entrevista com a gerência.

Após a comemoração, sentou-se à mesa da cozinha e come-çou a escrever diversas cartas para os queridos que moravam em outros Estados do Brasil. Era desta forma que mantinha contato com os colegas da escola e outros conhecidos. Escreveu para cada ende-reço, diferenciando o texto por vezes ou omitindo detalhes para os menos íntimos. Saiu à rua, virou três esquinas e colocou os envelopes no correio. Ao voltar, deparou-se com o carteiro. Ele a cumprimentou e disse:

— Senhorita Poli! Trago-lhe dezenas de cartas mais uma vez! A senhorita deve conhecer muita gente que mora longe!

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Ela concordou com meigo sorriso. Pegou as correspondências das mãos do homem e separou as contas e também as remetidas à mãe e ao irmão.

— Obrigada, moço! Que o Rei Supremo lhe abençoe e lhe dê muitas felicidades!

Entrou às pressas em casa e deixou as que não eram sua res-ponsabilidade à mesa. Foi para o quarto e atirou-se na cama. Com maravilhosas expectativas e empolgação, selecionou as mais impor-tantes e leu-as sem pressa. A primeira não possuía nada redigido, somente uma imagem:

— Mais um desenho do Homero! A segunda era de uma moça que ela conheceu no ensino

primário: “Poli, estou com saudades de você e quero te ver na minha

festinha de um ano de casada (...) meu filho já vai fazer cinco ani-nhos! Como o tempo passa depressa! (...) Apareça, por favor!”.

A terceira tinha como remetente Álvaro Borges dos Santos. Ela a abriu devagar, como se não quisesse encarar as linhas escritas. Dentro, um texto datilografado, sem erros de ortografia:

“Querida Poli, meu amor (...) você vem me ver esta semana? Se vier, venha rápido, pois só estarei livre no final da tarde de sábado e você sabe a demora da viagem, não me force a te lembrar. Traga-me um presente bonito e me fale sobre assuntos agradáveis, pois estou muito chateado com o trabalho, aliás, estou ocupadíssimo es-tes últimos dias e sem tempo para você. Espero resposta”.

Esta foi uma das muitas cartas recentes de Álvaro e, como as outras, trouxe lágrimas ao rosto de Poliana. A mudança no compor-tamento do rapaz, iniciada meses antes, a fez triste e desiludida. A moça pensou consigo e imaginou que talvez a visita solicitada fosse uma ótima oportunidade de terminar de vez com o sofrimento.

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Capítulo II

onheceram-se anos antes, em uma colônia de férias. No fim da tarde que antecedia a última semana da estação, ele a viu, sentada com a mãe tomando um

refresco e decidiu aproximar-se. Apresentou-se: nome e sobrenome, com educação, a fim de ser visto como um rapaz cortês, cheio de boas intenções.

— Olá! — Pois não? respondeu a senhora Abrantes. — Será que eu poderia roubar a mocinha aí? Rapidinho? Poliana Abrantes, a princípio não se permitiu interesse nas

palavras do desconhecido. Até então nunca tinha se relacionado; por isso, não sabia o que dizer. Já era moça e tinha curiosidade de saber a sensação de um toque afetivo. Madalena incentivou um passeio pelo clube para se conhecerem melhor:

— Não vejo por que não! Vai, filhota! Quem sabe vocês não têm muita coisa em comum?

Ela concordou receosa. Os dois andaram e conversaram so-bre assuntos juvenis banais. Ela mostrava-se tímida e explicitava ino-cência.

— O passeio não a está agradando? perguntou Álvaro com ar paterno.

— Não, não é isso... É que eu nunca saio para passear com garotos, nem costumo ficar assim tão longe de minha mãe.

— Uma garota bonita como você nunca teve um namorado? — Você só está sendo gentil em me elogiar.

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Estava mesmo. Apesar do rosto simpático, Poliana não era exemplo de beleza. Tinha os cabelos longos e grossos, até o meio das costas. Na época usava óculos: recomendação de um oftalmologista, que era bem mais lojista que oftalmo. No entanto, ela o atraía com o jeito de ser, o sorriso acanhado e as curvas redondas. No mais, ele também não era modelo de perfeição.

— Não me leve a mal, mas você parece ser do tipo que não tem malícia e sonha com príncipes encantados.

— Eu já tenho um príncipe encantado. Namoramos há muitos anos e eu o amo muito.

— É mesmo? E como ele se chama? — Ele se chama...? — É, seu príncipe. Não sabia como contornar a mentira que acabara de contar.

Em vez disso, o psicológico a obrigou a enrubescer. — Não tem nome, não é? — Tem! Só não quero te falar! — Por quê? — É segredo! Não ganho nada te falando sobre meus amo-

res. Aliás, nem conheço você direito. Ela fez beicinho como se o desafiasse a dar mais detalhes de

sua rotina. Esperando resposta, fechou os olhos e só reabriu um de-les, de forma cômica, proposital, quando notou que o rapaz nada disse, apenas sorria para ela; Percebeu meiguice no gesto. A sensa-ção a desarmou.

No momento seguinte, ela mordeu o lábio inferior, como se o contemplar lhe penetrasse a alma. Ele tentou aproximar-se. Embo-ra encantada, ao perceber que ele avançava, retomou a posição an-terior.

— Então não vai dizer nada? — Bom, eu estudo Administração há meses. Gosto de tocar

teclado e de ir ao cinema. Às vezes, saio para bailes, mas é muito raro.

“Bailes”, pensou Poli, a imaginar a noite. O brilho das estrelas e a fome de carinho dos amantes a bailar em belos salões. Doeu o

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fato de ainda não ter vivido essas experiências e inveja invadiu seu coração.

— E você? Gosta de fazer o que nas horas vagas? — Ah! Eu ajudo nas tarefas de casa, pois sou muito prendada.

Isso quando não estou estudando para tirar as melhores notas de minha turma.

— Não parece muito divertido. — Mas é! — É chato, isso sim! Você não tem outra atividade? Não sai

para se divertir com as amigas? — Não gosto dessas coisas fúteis. Esta última frase saiu dos lábios de uma moça cabisbaixa. Lá-

grimas queriam descer pela face. Sentiu-se triste por demonstrar que, mesmo estando na melhor fase da vida, não a aproveitava. Era uma pessoa caseira, retraída e antissocial. Com o dedo, o pretenden-te levantou-lhe o queixo:

— Você não precisa se sentir inferior por ser quem é e nem mentir, pois seu jeito desmente cada palavra.

Sentindo o toque e o desejo das bocas se aproximarem, ela ficou duas vezes mais vermelha, viu que o céu mudou de cor e mirou a lua cheia por um milésimo de segundo. Quando voltou a fitar o acompanhante, notou que ele ainda estava com o venenoso sorriso.

De estáticas, as mãos tornaram-se dinâmicas, trocando carí-cias. Ela nulificou as defesas e entregou-se. Percebeu o rapaz colocar algo no bolso traseiro de sua calça. A fricção deu-lhe suave arrepio. De repente, sentiu o tocar dos lábios, em um demorado encontro, que foi sucedido por outro, este segundo fora um sonoro estalo.

“Filha, onde está você?” gritou a senhora Madalena, preocu-pada com tão demorado sumiço. Ao ouvir, Poli correu envergonhada. Uma mistura de medo, prazer e rancor apoderaram-se dela que se dirigiu para os braços maternos.

— Que demora, hein?! Aconteceu algo? — Sim mãe, digo, não mãe. Não houve nada. — Vamos indo? — É claro!

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Poli forçou a mãe a dar as costas e retirarem-se. Madalena, um tanto confusa com o gesto, disse:

— Menina! Você não vai dizer tchau pro seu colega, não? — Não precisa! Eu já fiz isso ainda agorinha! Assim que ouvi

você me chamando. Depois dos primeiros passos, virou-se para trás: Álvaro estava

parado acenando. Observou-o por instantes, como se arrependida de dali sair.

A senhora Abrantes começou a falar sobre um assunto, sem ter atenção da filha, que não parava de recordar do que houvera nos últimos minutos. Andavam abraçadas e Poli desejava que o momento anterior jamais findasse. Ao término da euforia, percebeu que a mãe sugeria voltarem para casa no dia seguinte.

— Sim, precisamos voltar à nossa vida normal! disse isso en-quanto lia o papel colocado no bolso, que em verdade, era o cartão de visita do Sr. Almir Borges (seria este o pai dele?); que e continha dados importantes, como endereço e demais contatos profissionais.

*** Uma semana depois, ela criou coragem para enviá-lo uma

correspondência. Fez isso escondida, embora duvidasse de que re-provassem o relacionamento com o rapaz. Ainda assim, a cautela e a timidez da adolescente a fizeram preferir a omissão.

No primeiro texto, ela afirmou não ter gostado do desrespei-to e da inconveniência do beijo. Disse que não era a forma de se tra-tar uma senhorita respeitosa e que o suposto namorado o procuraria e tomaria as devidas satisfações. Parecia perfeito! Mas, depois de assinar, pensou nos questionamentos que a mãe faria caso uma ré-plica fosse recebida. Neste caso, o melhor seria exigir que terminas-sem ali. Preparou o envelope, porém antes de proceder, considerou a hipótese de o pedido ser atendido:

— E se ele me odiar? E se acreditar que eu não gostei? Eu o perderei para sempre!

Abdicou da primeira tentativa. Numa segunda versão, disse que não esqueceu o que houve e que não tirava os pensamentos dele. Estava convicta de que já sabia e que tentaria vê-la, marcar um encontro.

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Mas uma possível resposta também resultaria em interroga-tórios. Refletiu a respeito e concluiu: “é óbvio ela já sabe o que acon-teceu, pois eu mudei bastante nestes dias”.

De fato, mudara: estava mais vaidosa. Começou a, durante atividades rotineiras, cantarolar sucessos românticos populares da época e fazer pesquisas (e questionamentos) sobre a cidade de São Paulo. Não foi difícil para a senhora Abrantes associar aos fatos. Tal-vez fosse melhor pedir conselhos.

No corredor da casa, esbarrou com Pedro. Depois do baque, trocaram olhares tenebrosos. Era um rapaz complicado, não demons-trava carinho pela família. Não havia afeição recíproca: já estavam habituados a passarem dias e dias sem trocar palavra.

Madalena estava na cozinha, terminava de lavar a louça do almoço e percebeu a filha entrando de mansinho.

— Oi? — Oi mamãe! Vai querer ajuda? — Não filha. Estou em vias de terminar. Você está bem? — Sim... — Que carinha é essa? — É que eu estou pensando em um monte de coisas. — Quer saber mais coisas sobre São Paulo? — Não, mas tem a ver! Não sei o que a senhora vai achar do

que aconteceu outro dia. — Com o rapaz da colônia? Ela já esperava pela indagação. Passava muito tempo com a

mãe e ela a conhecia bem. Cada gesto, cada palavra, cada expressão era de fácil interpretação.

— É sim. — Por que você não escreve para ele? Diga como se sente e

veja se ele quer ver você. Use os dias que te restam das férias. Sem a minha vigilância, você pode se soltar mais. Você vai se divertir se fizer isso.

Álvaro morava na capital de São Paulo (e Poliana no Paraná, daí tamanha curiosidade), ou seja, seriam seis horas de viagem e mais um trajeto de metrô para se encontrarem.

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— Ele mora longe daqui. Não sei se um namoro à distância faria bem pra mim. Você sabe do que estou falando.

— Sei sim. — Essa distância desgraçada só atrapalha. Essa falta de liber-

dade maldita empobrece minha vida. Começou a chorar. O discurso perdeu o sentido. Deitou-se na

mesa, ficou quieta e disfarçou soluços. Levantou-se de cabeça baixa e esmurrou a parede com violência. A mãe tentou conter a crise, mas foi intimidada por um grito desesperado da filha.

— Calma Poli! Calma! Ela tentou a abraçar por força. Poli mordia os lábios e amaldi-

çoava a própria vida. Debateu-se tentando escapar do afago mater-no. A mãe a apertou forte, acariciando-lhe, falando que ficaria bem. Ela, enfim, se acalmou.

Madalena a levou para o quarto e a deitou. Encostou sua ca-beça no colo e dedilhou-lhe os cabelos até ela adormecer. Foi invadi-da por grande tristeza ao refletir sobre a situação da filha, que estava destinada a passar o resto da vida com altos e baixos.

Passaram-se horas. Quando acordou, repleta de imensurável energia e empolgação, com a permissão e com o frio na barriga, típi-co das pessoas apaixonadas. Pegou mais uma vez caneta e papel e transcreveu o grande amor que estava sentindo.

Uma colorida confissão foi redigida. O destinatário não pode-ria mais especial. Poderia viver feliz com o rapaz que a salvou do es-curo mundo dos tímidos. A distância não impediria o romance. Ela lutaria até o fim. Poliana já o imaginava apresentando-a a família. Sonhava com um possível casamento, cheio de alegria e de paz.

Aos saltos, assinou e preencheu o envelope. Antes de selá-lo, mostrou para a mãe o que havia escrito: o desmentir da história do namorado, a declaração do amor que começou com o beijo. Estra-nhou o fato de Madalena estar chorando tanto, pois tamanha tristeza não fazia mais sentido. O estado de euforia não a permitia discernir sua situação. Isso fazia a mãe sofrer.

Saiu à rua, decidida a colocar a correspondência no correio. Da esquina, apareceu o carteiro, que tomou a carta da mão da se-

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nhorita e explicou o que ela deveria fazer para enviar. Ele sugeriu que poderia se tornar um hábito. Ela sorriu, aprovando a ideia.

Dias depois, recebeu a resposta. Ele dizia estar com saudades dela e queria revê-la logo. Poli decidiu visitá-lo no final de semana seguinte. Comunicou à mãe que viajaria para São Paulo e que talvez voltasse somente na segunda-feira.

Na data prevista, preparou a mochila e partiu rumo à rodovi-ária, tomando o primeiro ônibus a deixar Curitiba. No caminho, ob-servou a paisagem da estrada, a visão deu-lhe calma. A bela vista somada à grande vontade de rever o paquera a colocou num sereno estado de espírito.

Ela partira de casa muito cedo e pôde ver o nascer do sol no horizonte. Chegaria ao destino às onze da manhã. Poucos minutos antes do desembarque, retocou a maquiagem e o perfume, visando a ficar o mais atraente possível. Seguiu a multidão para localizar-se melhor ao chegar à estação do metrô.

No local devido, ele a esperava. Ela correu ao encontro e a-braçou-o. Sorria de tal forma que o rapaz não a reconheceu. O que houve com a timidez de outrora? Álvaro impressionou-se com uma Poliana mais dinâmica e expansiva, que não media as palavras e tinha a atenção desviada por coisas bastante simples, como a mudança do farol de trânsito e as propagandas das lojas.

— Al, eu tenho dinheiro! Posso comprar os presentes que quiser! Podemos sair para jantar, podemos assistir a um filme, po-demos ir ao teatro, podemos fazer o que quisermos!

— Tenha calma! Sei disso, mas não acha que é melhor deba-termos sobre coisas mais importantes?

— De que tipo? Estou ouvindo você. O assunto que ele pretendia propor focava nos contras de um

possível relacionamento. Até ali eram estranhos um para o outro, em verdade, ficou admirado quando soube que ela iria visitá-lo, pois estava acostumado às histórias de verão, a seduzir e deixar menini-nhas com saudades de amores que jamais aconteceram. Com ela não seria diferente.

— Eu queria falar sobre nós dois.

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Ele percebeu que ela não dava a mínima para o que dizia. Es-tava entretida com uma loja de roupas, observando os modelos, ab-sortamente fitando manequins. A atitude fê-lo impaciente.

— Está me ouvindo, Poliana? — Claro que estou! — Eu falava sobre a gente. Eu posso ficar um tanto incomo-

dado se você decidir me ver com frequência. É que sou muito ocupa-do com meu curso e não sei se terei tempo para você.

— Não tem problema. Eu apareço por aqui só pra te visitar ou te perturbar. Damos uma volta por aí e eu sumo da sua frente.

Ele ficou desnorteado com tamanha convicção. Talvez ela não estivesse atrás de um namoro ou era diferente das outras meni-nas. Não era a mesma que ele conhecera; estava mais radiante, viva, desapegada, enfim, independente.

Passearam até o começo do anoitecer. Ele precisou policiá-la para não gastar o dinheiro que possuía com coisas sem utilidade. Fez bom uso das recém-chegadas habilidades de administrador, mas tanta euforia começava a irritá-lo. Dar-se-ia por satisfeito só com o passeio e mandá-la de volta antes do previsto.

— Poli, agora eu preciso que você vá para casa. O dia está no fim e não sei bem onde eu poderia alojar você.

— Você é um grande mentiroso! Disse que eu poderia ficar em sua casa! Minha presença está te incomodando?

— Não é bem isso. Na verdade, você está um tanto diferente. Ela começou a agir e falar como criança. — Não, não! Você prometeu dois dias inteiros comigo! Eu

passei seis horas num assento só pra ficar aqui com você, agora cum-pra sua promessa! Não me force a chorar!

— Eu sei, eu sei! Comporte-se como a moça que é! — Por quê?! Álvaro sentia-se vítima de uma piada do destino. Era impossí-

vel mudar tanto em pouco mais de uma semana. Não fazia ideia de como se livraria da pessoa inconveniente.

— Poli, eu preciso que você aja como uma adultinha agora. Estamos no meio da rua.

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Ela pulou em seu pescoço com ternura. Exalava carinho em cada movimento. A abrupta atitude o confundiu a um nível preocu-pante e a doçura do afago o fez sentir-se responsável por ela. Era isso o que o importunava.

Ao chegar a casa dele, ambos sentaram-se no sofá. O pai (a-gora o sabia: o dono do cartão era de fato pai de Álvaro), o senhor Almir Borges, viajava a trabalho para o Norte do país. A mãe, Judite, a recebeu bem, oferecendo-lhe o jantar e dando-lhe a chave do quarto de hóspedes.

Á mesa, conversaram sobre diversos assuntos. As atitudes da menina pareceram mais extravagantes a partir dali: como se quisesse marcar território e tomar o filho da senhora Santos para si, agindo de tal forma que pareciam já estarem casados há anos, referindo-se a ele com palavras carinhosas. A mãe, impressionada com a intensida-de da situação e já habituada com as visitas que o filho trazia para casa, não sabia se ficava feliz com a forma que ela gostava do menino ou triste por saber o que ele faria com ela.

Mais tarde apagaram as luzes e foram dormir. No quarto, Ál-varo refletiu bastante sobre a situação atual, procurando na mente a melhor forma de livrar-se de Poli, não só porque detestava compro-missos, mas também porque as evidências indicavam que a garota não era normal. Ficou certo que pensaria numa desculpa convincente para ser aplicado no próximo dia.

Outro sol nasceu. Descendo as escadas, o rapaz notou que a visita conversava com a Sra. Santos. Achou estranho o tom de voz equilibrado que ela usava. Parecia ser muitos anos mais velha. Ele decidiu ali ficar e ouvir o que as duas falavam, na certeza de que uma passagem o ajudaria a livrar-se dela com mais rapidez.

— Então, Poli, você está gostando de verdade do meu filho? — Ele parece um bom rapaz, mas sei que relacionamentos à

distância não dão certo. Na verdade, eu acho que ele é um tanto imaturo, saindo por aí colocando o endereço no bolso de meninas que acabou de conhecer. Eu podia ser uma má pessoa.

— Ele costuma fazer isso. Concordo quando você diz que ele não tem maturidade. Gosta de brincar com os sentimentos das pes-soas.

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— E por que me diz isso? — Existe algo puro em você. Eu também já fui adolescente e

sei o quanto dói ser enganada. Ao ouvir este trecho, o espião desceu o mais rápido que pô-

de. Cumprimentou-as (a expressão facial exibida à mãe era de repro-vação) e sentou-se ao lado de Poli. Assumiu a extravagância que ela usou na noite anterior. Agora era ele quem fazia declarações e carí-cias explícitas.

Judite observava a cena, já ciente das intenções do filho. Pre-feriu nada dizer, até porque as palavras da nora a fizeram acreditar que ela talvez não fosse tão inocente quanto quis aparentar a princí-pio. Sua mente não lhe permitiu fazer previsões de resultados.