apreciação musical uma porta de entrada para a reflexão estética

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    Apreciao musical: uma porta de entrada para a reflexo esttica

    Sara Ceclia Cesca

    Centro Universitrio Claretiano

    [email protected]

    Ao pensar sobre os desdobramentos artsticos ocorridos desde o incio do sculo

    XX, bem como a plural e muitas vezes confusa ideia sobre o belo, ideal ou moral em

    torno dos fenmenos artsticos atuais, como educadora musical, venho refletindo sobre

    diferentes formas educativas que possam contribuir para um modo de pensar crtico,

    analtico e reflexivo voltado para questes dessa natureza. Nesse sentido, penso que

    uma abordagem esttica enquanto estudo filosfico possa enriquecer o trabalho do

    educador musical mediante o uso de ferramentas especulativas que substanciam o seu

    propsito, possibilitando desde a mais tenra idade atividades musicais que privilegiem

    alm da vivncia prtica, vivncias reflexivas.

    Tomando como princpio uma abordagem esttico-educativa como proposta

    integrada outras atividades prtico-musicais, pude verificar diante de algumas

    intervenes pedaggicas a aceitao e insero das crianas ao pensamento reflexivo,

    propiciando um contato significativo com as artes, especialmente, com obras

    contemporneas.

    De um modo geral, os mtodos tradicionais de ensino pressupem que para

    haver uma compreenso da linguagem musical, necessrio um domnio prvio dos

    cdigos musicais (escrita musical), no entanto, atravs de vivncias estticas

    compartilhadas em sala de aula com meus alunos, venho observando que a compreenso

    musical em sua concretude sonora transcende qualquer elemento grfico (compreenso

    da notao musical), e um dos mecanismos mais importantes para apreender o

    fenmeno musical reside no exerccio da apreciao e recepo.

    Refletir sobre o processo de criao, sobre a obra ou sobre o autor, sobre o

    intrprete ou sobre o ouvinte, sobre o que arte ou para que(m) ela serve possibilita aos

    nossos alunos uma prtica dialgica entre seus pares e a habilidade de abstrao do

    prprio pensamento. Atividades que promovem reflexes em torno dos fenmenos

    artsticos contribuem para uma apreciao significativa voltada para a produo daquele

    que faz, como tambm para uma compreenso artstica considerando diferentes

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    perodos da histria. Em suma, penso que pensar sobre msica tambm fazer msica.

    De acordo com Gabriel Periss, a arte:

    educa na medida em que, atraindo nossa viso, encantando nossa

    audio, agindo sobre nossa imaginao, dialoga com a nossa

    conscincia. Mais do que nos fazer reagir melodia, rima,

    composio pictrica, s cenas do filme, esses estmulos que nos

    chegam pela arte criam um espao de liberdade, de beleza, no qual nos

    sentimos convidados a agir criativamente (PERISS, 2009, p.36).

    Vejamos no excerto abaixo, outra afirmao do autor:

    A arte educa, influenciando nossa maneira de sentir e pensar, de

    imaginar e avaliar. Influncia forte e sutil. E renovadora. Para o

    bem ou para o mal, no samos inclumes de uma experincia

    esttica verdadeira. Os artistas so educadores, perturbadores,

    levam-nos aos extremos de ns mesmos. Educadores

    provocadores, desestabilizadores (PERISS, 2009, p.38).

    Assim sendo, diante das afirmaes acima apresento este relato num ato de

    compartilhar reflexes estticas vivenciadas por mim em dois diferentes contextos

    educativos, so eles: uma instituio escolar e uma sala de concertos. Com essas

    reflexes objetivo demonstrar a importncia da esttica como instrumento para o

    desenvolvimento do pensamento crtico-reflexivo no ensino de msica (artes em geral),

    bem como seus desdobramentos para aes transcendentes prpria experincia

    artstica.

    Na sala de aula

    O cenrio desse relato se deu numa escola privada de ensino fundamental I e II

    da cidade de Ribeiro Preto/SP caracterizada por seu espao interativo e acolhedor.

    Composta por crianas de faixas etrias distintas, as salas de aula desse contexto escolar

    so designadas como espaos de auxlio mtuo ou multiseriado. A conveno que

    estabelece sries sucessivas de primeiro, segundo, terceiro e quarto ano, por exemplo,

    no compe o cenrio dessa instituio. O presente relato destaca uma atividade de

    apreciao e fruio artstica entre alunos de seis, sete e oito anos de idade que

    compem a sala de nvel I desse espao escolar.

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    De acordo com a proposta interdisciplinar que regularmente orienta as atividades

    pedaggicas, no momento em que registrei essa atividade, o grupo de crianas que

    compunham o nvel escolar I vivenciavam os estudos sobre mares e oceanos. Com o

    intuito de integrar o meu trabalho como professora de msica ao projeto em voga,

    conversei com professores de outras disciplinas sobre a possibilidade de trabalhar

    imagens impressionistas a partir de uma atividade de apreciao e interpretao da obra

    La Mer1 do compositor francs Claude Debussy (1862-1918). Embora o direcionamento

    da minha aula estivesse em consonncia com o tema geral, a proposta do trabalho

    musical no consistia em nenhum momento em dizer o que ouviramos. O objetivo da

    atividade baseava-se numa apreciao especulativa em torno da obra do compositor

    francs, no entanto, aps a escuta musical e alguns dilogos o mar foi desvelado pelos

    alunos. Considerando o ambiente interdisciplinar e propcio para apreciar as impresses

    musicais de Debussy, as crianas descobriram o mar em La mer. A seguir, em destaque

    alguns dos dilogos que conduziram a atividade:

    Profa. Sara: Quando escutamos uma msica com letra, ou seja, uma cano

    compreendemos sua mensagem, mas e quando ela no tem letra, ser que ela diz

    alguma coisa?

    Algumas crianas levantaram as mos e disseram que sim, mas certo aluno me

    intrigou dizendo que no, afirmando o seguinte: sem letra a msica no quer dizer

    nada. Considerei sua colocao e dei continuidade ao dilogo. Imersos nesse dilogo

    de que a msica sem texto poderia ou no comunicar, propus aos alunos que antes de

    qualquer afirmao aprecissemos uma msica. Foi ento que ouviram La mer de

    Debussy pela primeira vez. Aps a apreciao da obra todos j estavam com suas mos

    levantadas prontos para falarem sobre suas impresses. Foram muitas histrias e

    imagens que a msica suscitou, dentre elas, poucos mares ou oceanos. Para minha

    surpresa o primeiro aluno a dizer que imaginou um mar foi o mesmo que outrora havia

    dito que a msica sem letra nada dizia. Dei continuidade ao dilogo levantando mais

    problemas estticos, por assim dizer:

    1 Para ouvir. Disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=RLAIJjWdJRQ Data de acesso:

    26/03/2015.

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    Professora Sara: Como pode uma msica ser capaz de dizer tantas coisas? Ser que

    aqui na sala existe uma histria verdadeira?

    Ana2: Todas as histrias so verdadeiras, pois a msica pertence ao mundo e ela de

    todos!

    Maria: como o folclore3!

    Ana: Diz o que voc imaginou professora? Conta pra gente!

    Professora Sara: No posso, eu j possuo muitas imagens desta obra e se eu falar

    posso influenciar nas histrias de vocs, e mais: como sou professora, alguns podem

    achar que a minha impresso melhor ou mais verdadeira.

    Aps este dilogo coloquei novamente a obra para que pudessem apreciar outros

    detalhes. Ao trmino da escuta, as mos j estavam levantadas novamente.

    Ciro: Professora imaginei outra histria agora!

    Ana: verdade! Aquela que eu pensei est ficando embaada!

    Professora Sara: Vejam s que interessante! Sabe o que teria acontecido se eu tivesse

    contado minha histria?

    Maria: Se voc tivesse contado professora, ns no teramos imaginado a nossa

    segunda histria! Teramos imaginado a sua!

    Assim sendo, propus como atividade um desenho a partir das imagens e histrias

    que lhes ocorreram; a professora tutora da sala sugeriu tambm, que cada aluno contasse

    numa carta destinada ao compositor Debussy suas impresses. Ao trmino da aula

    questionei-me se havia ensinado msica, mas no tive dvidas: alm de ensinar msica

    atravs do ato de apreciar, tive a oportunidade de apresentar mais um dos problemas que

    circundam a atividade artstica, ou seja, a complexidade de ressignificao que a obra

    possui quando entregue ao pblico.

    2 Ana, Maria e Ciro so nomes fictcios. 3 Num dos projetos interdisciplinares vivenciados por essas crianas foi trabalhado as nuances e

    ressignificaes regionais do folclore. Por essa razo foi citado pela aluna.

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    Na sala de concertos

    A partir do momento em que a obra chega ao ouvinte ela no mais pertence ao

    autor. Estas foram as palavras que o compositor Lucas Galon dirigiu ao pblico num

    dos concertos da srie Juventude tem concerto realizado no Teatro Pedro II aps a

    execuo de sua obra Qohelet (2012).

    Aps a apresentao da obra Qohelet de Lucas Galon, conversei discretamente

    com algumas crianas da escola Professora Elvira Yolanda Ervas (Brodowski) e da

    Creche Modelo (Ribeiro Preto) sobre as impresses que as obras daquele concerto lhes

    tinham causado. Diante desses curtos dilogos, pude perceber de que forma o fenmeno

    artstico tocou significativamente a vida daquelas crianas, embora narrassem com

    timidez suas consideraes.

    De maneira simples e bem didtica o maestro levantou a mesma questo

    abordada por Galon para a plateia, porm naquele momento ningum se sentiu

    vontade para expressar o que sentiu ou pensou na presena de autoridades como o

    prprio compositor. O fato que, externar experincias artsticas individuais sempre

    traz incutido o receio de que o que expressamos no seja legtimo ou verdadeiro, mas

    justamente por ser a obra ao mesmo tempo aberta e fechada e por no mais

    pertencer ao compositor - conforme afirmou Galon -, adentramos o seu campo como

    espectadores, intrpretes e coautores. Quem pode deter a plural e diversificada forma de

    recepo e imaginao que possumos perante o fenmeno artstico?

    Atravs de uma abordagem esttico-educativa constatamos a impossibilidade de

    resolver os diversos problemas filosficos que circundam a atividade artstica como um

    todo, como por exemplo, especular sobre essas mltiplas verdades que ela suscita, no

    entanto, alcanamos mediante sua natureza reflexiva maturidade e autonomia crtica

    para a partir dela alar voos transcendentes sua prpria essncia, isto , para a vida

    (como um todo).

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    Figura 1. Carta destinada ao compositor Debussy sobre as impresses da obra La Mer

    Debussy, quando ouvi sua msica pela primeira vez eu imaginei assim: era um barco e

    quando a msica aumentava o mar ficava agitado, ento uma hora o barco vira para a

    esquerda e encontra uma terra cheia de pssaros. Da segunda vez imaginei: eram

    grandes aventureiros que descobriram novas terras, terras cheias de obstculos.

    Ana, 8 anos [transcrio].

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    Figura 2. Desenho inspirado na obra La mer de Debussy

    Referncias

    PERISS, Gabriel. Esttica e Educao. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2009.