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APP-SINDICATO 1

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APP-SINDICATO 1

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2 APP-SINDICATO

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APP-SINDICATO 3

Programa de formação da APP-Sindicato / UFPR

Abril / 2010

Escola e Desigualdade Social

Projeto 2010 / 2012

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4 APP-SINDICATO

CoordenaçãoIsabel Catarina Zollner - APP-Sindicato, Taís Moura Tavares - UFPR e Andréa Caldas - UFPR

ColaboraçãoMarlei Fernandes de Carvalho, Maria Madalena Ames, Isabel Catarina Zöllner, Janeslei Aparecida Al-

buquerque, Miguel Angel Alvarenga Baez, Lirani Maria Franco da Cruz, Solange Ferreira dos Santos, Giselle Christina Corrêa, Edmilson Feliciano Leite, Rosani Moreira, Valdirene de Souza, Vanessa Reinchenbach,

Tomiko Kiyoku Falleiros e Catarina Ribeiro Lenartovicz.

Imagens: Poty Lazarroto

Programação VisualProjeto Gráfico: W3OL Comunicação - (41) 3029-0289 - www.w3ol.com.br

Gráfica: World Laser - Tiragem: 2.300 mil exemplares

APP-SINDICATO DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO PÚBLICA DO PARANÁRua Voluntários da Pátria, 475 14º andar - Ed. Asa - Curitiba/PR - CEP: 80.020-926Fone: (41) 3026-9822 - Fax: (41) 3222-5261www.appsindicato.org.br - [email protected]

Secretaria GeralMariah Seni Vasconcelos Silva

Secretaria de FinançasMiguel Angel Alvarenga Baez

Secretaria de Administração e PatrimônioClotilde Santos VasconcelosSecretaria de Organização

José Ricardo CorrêaSecretaria de Aposentados

Tomiko Kiyoku FalleirosSecretaria de Municipais

Edilson Aparecido de PaulaSecretaria Educacional

Janeslei Aparecida AlbuquerqueSecretaria de Formação Político-Sindical

Isabel Catarina Zollner

DIREÇÃO ESTADUAL

PresidênciaMarlei Fernandes de Carvalho

Secretaria de Imprensa e DivulgaçãoLuiz Carlos Paixão da RochaSecretaria de SindicalizadosMaria Madalena AmesSecretaria de Assuntos JurídicosÁurea de Brito SantanaSecretaria de Política SindicalJosé Rodrigues LemosSecretaria de Políticas SociaisSilvana Prestes de AraujoSecretaria de FuncionáriosJosé Valdivino de MoraesSecretaria de Gênero e Igualdade RacialLirani Maria Franco da CruzSecretaria de Saúde e PrevidênciaIdemar Vanderlei Beki

Expediente

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APP-SINDICATO 5

ÍNDICE

Apresentação 07 Uma Reflexão sobre o Processo de ConsciênciaMauro Luis Iasi 08 Dialética da Totalidade ConcretaKarel Kosik 28

Neoliberalismo e Educação: manual do usuárioPablo Gentili 37

O Papel do Empresariado na EducaçãoClaudio de Moura Castro 53 Roteiro para Turmas Regionais 58

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6 APP-SINDICATO

A flor e a náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjoo?

Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos...

Drummond

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APP-SINDICATO 7

APRESENTAÇÃOElogio da Dialética de Brecht

Os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã e o “nunca” se tornará “ hoje mesmo”.

Este é o primeiro caderno da nova etapa do curso de formação da APP- Sindicato.

O nosso objetivo é continuar proporcionando formação de qualidade e transfor-

madora para os professores/as e funcionários/as de escola, para os representantes de

escola e município, representantes da APP em conselhos e educadores/as que dirigem

nosso sindicato.

A formação amplia a consciência dos educadores, levando-os a assumir um papel

social e político, a tomar partido, deixando de lado a omissão, compreendendo melhor o

mundo em que vivem e a escola em que trabalham.

Vamos iniciar nossos estudos refletindo sobre o processo da consciência, em suas

três formas: a consciência alienada, a consciência em si e a consciência para si ou revolu-

cionária. Em seguida aprofundaremos nossos conhecimentos sobre método e metodo-

logia. E finalizamos os conteúdos analisando a escola e as desigualdades sociais.

O caderno contém textos, indicação de leitura, filmes e documentários que contri-

buirão para formação dos educadores e para o trabalho nas turmas regionais.

Desejamos um bom estudo e trabalho para todos e todas!

Secretaria de Formação da APP-Sindicato

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8 APP-SINDICATO

Uma Reflexão sobre o Processo de Consciência

Mauro Luís IasiDoutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo, Brasil (2004).Professor adjunto I da Universidade do Rio de Janeiro, Brasil.

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APP-SINDICATO 9

Uma Reflexão sobre o Processo de Consciência

Mauro Luís Iasi*

“Até que ponto a classe (...) realiza

conscientemente, até que ponto

inconscientemente, até que ponto

uma consciência falsa, as tarefas que

lhe são impostas pela história?”

Georg Lukács

INTRODUÇÃO

Este texto foi produzido originalmente para um estudo do programa de Psicologia Social da PUC de São Paulo no ano de 1985. Foi baseado numa pesquisa sobre a história de vida e militância de alguns companheiros e companheiras, e posteriormente incorporado como texto de apoio a um seminário do Curso de Monitores do 13 de Maio NEP.

A partir desta inserção no curso de monitores, esta reflexão foi ganhando forma com os depoi-mentos dos diferentes participantes, que contavam como acontecera seu processo de consciência, a forma de pensar anterior, os passos de sua militância e os impasses vividos nas formas de compreender o mundo e a luta dos trabalhadores.

Partindo de uma compreensão marxista, o processo de consciência é visto, de forma preliminar e introdutória, como um desenvolvimento dialético, onde cada momento traz em si os elementos de sua superação, em que as formas já incluem contradições que ao amadurecerem remetem a consci-ência para novas formas e contradições, de maneira que o movimento se expressa num processo que contém saltos e recuos.

Também é importante ressaltar que esse estudo sobre processo de consciência nos deu base para a reflexão de nossa própria concepção de formação, nos permitindo um olhar crítico sobre o pa-tamar das formulações sobre educação popular até então desenvolvidos, sobre o da formação e suas relações com o processo de consciência dos trabalhadores.

A CONSCIÊNCIA COMO PROCESSO

Falamos em processo de consciência e não apenas consciência porque não a concebemos como uma coisa que possa ser adquirida e que, portanto, antes de sua posse, poderíamos supor um estado de não consciência. Assim como para Marx, não nos interessa o fenômeno e suas leis enquanto tem forma *Ensaios sobre Consciência e Emancipação. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 6-45.

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10 APP-SINDICATO

definida, o mais importante é a lei de sua transfor-mação, de seu desenvolvimento, as transições de uma forma para outra1.

Nesse sentido procuraremos entender o fenômeno da consciência como um movimento e não como algo dado. Sabemos que só é possível conhecer algo se o inserirmos na história de sua formação, ou seja, no processo pelo qual ela se tor-nou o que é, assim é também, com a consciência, ela não é, se torna. Amadurece por fases distintas que se superam, através de formas que se rompem, gerando novas que já indicam elementos de seus futuros impasses e superações. Longe de qualquer linearidade, a consciência se movimenta trazendo consigo elementos de fases superadas, retomando aparentemente, as formas que abandonou.

Esse processo é ao mesmo tempo múltiplo e uno. Cada indivíduo vive sua própria superação particular, transita de certas concepções de mundo até outras, vive subjetivamente a trama de relações que compõe a base material de sua concepção de mundo. Como então podemos falar em processo como um todo? Acreditamos que a partir da diver-sidade de manifestações particulares podemos en-contrar nitidamente, uma linha universal quando falamos em consciência de classe.

Esta consciência não se contrapõe à consci-ência individual, mas forma uma unidade, onde as diferentes particularidades derivadas do processo próprio de vida de cada um sintetizam pois, sob al-gumas condições, um todo que podemos chamar de consciência de classe. Vejamos então, como se forma a consciência e o processo de seu desenvol-vimento.

1 “Para Marx só uma coisa importa: descobrir as leis do fenômeno que ele pesquisa. Importa-lhe não apenas a lei que o rege, enquanto tem forma definida e os liga relações observada em dado período histórico. O mais importante de tudo para ele é a lei de sua trans-formação, de seu desenvolvimento, isto é a transição de uma forma para outra, de uma ordem de relações para a outra.” (Comentário de um resenhista em relação ao método empregado por Marx contido no posfácio da 2a edição de O Capital, pp. 14. Editora Civilização Brasileira.

A PRIMEIRA FORMA DE CONSCIÊNCIA Partindo da forma elementar na qual se

apresenta o fenômeno de consciência, podemos dizer que toda pessoa tem alguma representação mental de sua vida e seus atos. Como afirma Gra-msci:

“Todos são filósofos, ainda que ao seu modo, incons-

cientemente, porque inclusive na mais simples manifestação

de uma atividade intelectual, a linguagem, está contida uma

determinada concepção de mundo” 2.

Como se formaria esta representação que todos possuem? Parece-nos que é constituída a partir do meio mais próximo, no espaço de inser-ção imediata da pessoa. Como nos diz Marx:

“A consciência é naturalmente, antes de mais nada,

mera conexão limitada com as outras pessoas e coisas situadas

fora do indivíduo que se torna consciente”3.

Essa exterioridade da consciência, o pro-cesso pelo qual ela parte de fora até se interiori-zar, parece ser confirmado também por Freud, que mesmo buscando compreender o fenômeno pela aproximação psicológica, nos afirma:

“O processo de algo tornar-se consciente está, acima

de tudo, ligado às percepções que nossos órgãos sensoriais re-

cebem do mundo externo” 4.

Dessa forma inicialmente, a consciência se-ria o processo de representação mental (subjetiva) de uma realidade concreta e externa (objetiva), formada neste momento, através de seu vínculo de inserção imediata (percepção). Dito de outra maneira, uma realidade externa que se interioriza.

A materialidade deste movimento não

2 Gramsci, A - A Concepção Dialética da História. p.11.

3 Marx, K. Engels, F. - A Ideologia Alemã. p. 43.

4 Freud, S. - Esboço de Psicanálise, In Os Pensadores. p.210.

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deve ser buscada apenas no seu aspecto físico/orgânico, apesar de que ninguém ainda tenha conseguido formar qualquer representação sem cérebro ou um sistema nervoso central, mas no fato de que a consciência é gerada a partir e pelas relações concretas entre os seres humanos, e des-tes com a natureza, e o processo pelo qual, em ní-vel individual, são capazes de interiorizar relações formando uma representação mental delas.

A questão se torna complexa, na medida em que esta representação não é um simples re-flexo da materialidade externa que se busca re-presentar na mente, mas antes, a captação de um concreto aparente, limitado, uma parte do todo e do movimento de sua entificação5.

O novo indivíduo ao ser inserido no con-junto das relações sociais, que tem uma história que antecede a do indivíduo e vai além dela, cap-ta assim, um momento abstraído do movimento. A partir daí busca compreender o todo pela parte ultrageneralização o que consistirá, como vere-mos, em um dos mecanismos básicos de sua pri-meira forma de consciência.

Outras informações chegam ao indivíduo, não pela vivência imediata, chegam já sistemati-zadas na forma de pensamento elaborado, na for-ma de conhecimento, que busca compreender ou justificar a natureza das relações determinantes em cada época. Tais manifestações da consciência só agirão na formação da concepção de mundo do indivíduo algum tempo depois e, como ten-taremos argumentar, sob uma base já sólida para que sejam aceitas como válidas.

Se a consciência é a interiorização das re-lações vividas pelos indivíduos, devemos buscar as primeiras relações que alguém vive ao ser in-serido numa sociedade. A primeira instituição que coloca o indivíduo diante de relações sociais é a

5 Entificação é o termo filosófico que designa o processo de algo tornar-se o que é.

família6. Ao nascer, o novo ser está dependente de outros seres humanos, no caso do estágio cultural de nossa sociedade: seus pais biológicos.

Logo após o nascimento, a criança vive uma fase que, em termos psicológicos é chama-da de pré-objetal, na qual ela não distingue o que seria ela e o que não seria. Vinda de nove meses de gestação quando se confundia organicamen-te com o corpo da mãe, ela percebe ainda preca-riamente o mundo como um complemento de si mesma. O seio materno é visto como parte da anatomia de seu próprio corpo e, logo o bebê des-cobre o meio de acioná-lo: o choro. Não podemos dizer, neste momento, que a criança tenha consci-ência, embora tenha percepções básicas, uma vez que por não conceber algo que seja o outro, não estabelece propriamente uma relação. Suas ações são ainda determinadas mais pelo universo pul-sional e orgânico do que social.

Num determinado momento de seu ama-durecimento, a criança percebe que não pode controlar parte do que supõe ser sua própria ana-tomia. Somente a partir da descoberta da existên-cia de algo externo é que passa a fazer sentido a noção de eu. Dadas estas condições, podemos fa-lar de uma relação.

É na interação com o mundo externo que se forma o psiquismo, a estrutura básica do uni-verso subjetivo do indivíduo. Chegamos ao mun-do munidos apenas de nosso corpo orgânico e de seus instintos, ou impulsos básicos (o que Freud chama de ID: instintos que se originam da organi-zação somática). A vivência das relações na famí-lia permite que se interiorize estas relações cons-truindo o universo interiorizado. Freud descreve de maneira sintética tal processo:

6 Quando falamos da família como determinação das relações a serem vivenciadas pelo indivíduo em formação, não podemos nos esquecer de que essa família é por sua vez determinada pelo está-gio histórico em que se encontra, sendo, portanto, uma subjetivi-dade já educada.

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“Sob influência do mundo externo que nos cerca, uma

porção do ID sofre um desenvolvimento especial (...) que atua

como intermediário entre o ID e o mundo externo, o EGO” 7.

O mecanismo primordial dessa intermedia-

ção, entre o EGO e o mundo externo, é o chamado princípio do prazer. Buscando o prazer e tentando evitar o desprazer, o EGO busca realizar as exigên-cias do ID, levando em conta a realidade que limi-ta as condições desta satisfação. A ação dos pais mediatiza as exigências sociais, histórica e social-mente determinadas apresentando-se ao EGO em formação como uma força a ser levada em conta na sua busca de equilíbrio e adaptação. Isto dei-xa atrás de si, diz Freud, como que precipitado, a formação de um agente especial no qual prolon-ga-se a influên-cia parental, o SUPEREGO. O externo se in-terioriza, uma relação entre o EGO e o mundo externo interio-riza-se, forman-do uma parte constitutiva do universo subjetivo do indivíduo. O que é introjetado não é apenas a conduta dos pais. Como complementa o próprio Freud:

“Esta influência parental, inclui em seu processo não

somente a personalidade dos pais, mas também a família, as

tradições raciais e nacionais por eles transmitidas, bem como

as exigências do meio social imediato que representam”8.

Acontece que aquilo que é visto pela pessoa em formação como mundo externo, como objeti-vidade inquestionável, portanto como realidade,

7 Freud, S. op. cit; pp. 199 e 200.

8 Idem, p. 200.

é apenas uma forma particular historicamente de-terminada, de se organizar as relações familiares. No entanto esse caráter particular não é captado pelo indivíduo, que passa a assumi-lo como natu-ral9. Assim, o indivíduo interioriza essas relações, as transforma em normas, estando pronto para reproduzi-las em outras relações através da asso-ciação.

Ainda nesta fase ocorre uma passagem de-cisiva para a formação da personalidade: o chama-do “complexo de Édipo”. Apesar do risco das ge-neralizações e conclusões nem sempre exatas que derivam desta concepção freudiana, podemos considerar que seu mecanismo básico representa, em nossa sociedade, um elemento fundamental que compõe a personalidade e a consciência dos

indivíduos. N a

luta do EGO para adminis-trar as exigên-cias pulsionais do ID diante das condições estabelecidas

pelo mundo externo, os instintos se diferenciam em dois grupos fundamentais: alimentação (liga-da à sobrevivência imediata e física) e o sexo (li-gado à afetividade e ao desejo, que vinculam-se à reprodução). Esses impulsos se diferenciam pelo seu grau de maleabilidade. O impulso da alimen-tação é inexorável e pouco maleável, quer dizer, cobra sua satisfação imediata e ameaça continui-dade da existência, já o impulso sexual é mais ma-

9 Buscando compreender as relações sociais na velha Grécia, Aris-tóteles diz: “todo ser vivo se compõe de alma e corpo, destinado uma a ordenar e outro a obedecer (...). O macho é mais perfeito e governa, a fêmea o é menos e obedece. A mesma lei se aplica na-turalmente a todos os homens. Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como corpo o é em relação a alma (...) são os homens nos quais o emprego da forma física é o que deles melhor se obtém. Partindo de nossos princípios, tais indivíduos são desti-nados, por natureza, à escravidão.” (A Política, parágrafos 10, 12 e 13, pp 15 e 16).

Esta influência parental, inclui em seu processo não somente a personalidade dos pais, mas também a família, as tradições raciais e nacionais por eles transmi-tidas, bem como as exigências do meio social imediato que representam.

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APP-SINDICATO 13

leável, pode ser deslocado ou reprimido. Isto não ocorre sem consequências, às vezes sérias, mas de qualquer modo, não comprometem a sobrevivên-cia imediata da pessoa.

Toda criança elege um objeto de seu dese-jo, e fantasia sua perfeita integração afetiva com ele. Na estrutura triangular da família monogâmi-ca (pai, mãe e filho/a), esta ação é interrompida pela presença de uma terceira pessoa. A criança, com a mesma intensidade que fantasia seu desejo, fantasia a eliminação do concorrente. No entanto a plena realização do desejo colocaria em risco a sobrevivência da relação, que garante a existência física da criança. Por uma série de mecanismos, a criança desenvolve um sentimento de impotência e culpa, que o EGO sente como desprazer e busca eliminar. A forma encontrada é dada pela própria natureza dos impulsos, reprime-se o desejo para garantir a sobrevivência imediata.

A cada passo, o novo ser vai criando a base sobre a qual estruturará seu psiquismo e sua per-sonalidade, ao mesmo tempo em que se amolda à sociedade da qual está interiorizando as relações e formando, a partir delas, a consciência de si e do mundo.

Evidente que aquilo que fica interiorizado não são as relações em si, mas seus valores, nor-mas, padrões de conduta e concepções. Nesta fase, ainda embrionária, cola-se a própria cons-tituição do aparato psíquico uma concepção de mundo. Diríamos que já estão presentes aqui to-dos os principais elementos que constituirão as características da primeira forma de consciência.

Vejamos: 1- a vivência de relações que já estavam

preestabelecidas como realidade dada; 2- a percepção da parte pelo todo, onde o

que é vivido particularmente como uma realida-de pontual torna-se a realidade (ultragenera-lização);

3- por este mecanismo as relações vividas perdem seu caráter histórico e cultural para torna-

rem-se naturais, levando à percepção de que sem-pre foi assim e sempre será.

4- a satisfação das necessidades, seja da so-brevivência ou do desejo, deve respeitar a forma e a ocasião que não são definidos por quem sente, mas pelo outro que tem o poder de determinar o quando e o como;

5- estas relações não permanecem exter-nas, mas interiorizam-se como normas, valores e padrões de comportamento, formando com o SUPEREGO um componente que o indivíduo vê como dele, como autocobrança e não como uma exigência externa;

6- na luta entre a satisfação do desejo e a sobrevivência reprime ou desloca seu desejo;

7- assim o indivíduo submete-se às rela-ções dadas e interioriza os valores como seus, zelando por sua aplicação, desenvolvimento e re-produção.

As relações familiares, por maior importân-cia que tenham na formação da personalidade, não têm o monopólio das relações humanas. As relações lançadas a partir da família são comple-mentadas, reforçadas e mesmo revertidas pela in-serção nas demais relações sociais, pelas quais o indivíduo passa no decorrer de sua vida: na escola, no trabalho, na militância, etc.

Essas outras relações são potencialmente diversas das relações assumidas na formação da personalidade, fundamentalmente pelo fato de que agora o indivíduo assume um papel menos dependente, podendo vir a assumir o papel de sujeito ativo na relação. No entanto nem sempre este potencial se manifesta. Na maioria dos casos estas vivências secundárias acabam por reforçar as bases lançadas na família.

Vejamos se cada nova relação, posterior-mente assumida, reverte ou reforça os sete ele-mentos que compõem a primeira forma da cons-ciência.

Parece-nos que na escola, por exemplo, ao nos inserirmos em relações preestabelecidas, não

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14 APP-SINDICATO

conseguimos ter a crítica de que é apenas uma forma de escola, mas a vivemos como a escola. Passamos a acreditar ser esta a forma natural e acabamos por nos submeter. Na escola, as regras são determinadas por outros que não nós, outros que têm o poder de determinar o que pode e o que não pode ser feito e nosso desejo submete-se diante da sobrevivência imediata. As normas internas interiorizam-se: a disciplina converte-nos em cidadãos disciplinados.

O mesmo ocorre no trabalho. Aqui, de modo ainda mais claro, as relações já se encontra-vam pré-determinadas, outros determinam o que se pode e o que não se pode fazer, o capital de-termina o como, o quando e o que fazer. Vender sua força de trabalho ao patrão em troca de um salário não é visto como algo absurdo, mas como algo perfeitamente natural. Sempre foi assim... sempre será..., nosso desejo submete-se à sobre-vivência imediata... temos que trabalhar para vi-ver, por isso nos submetemos. A lógica imposta pelo capital (externa), interioriza-se e nós mesmos nos levamos ao mercado para sermos esfolados... e alegramo-nos quando algum capitalista dispõe-se a comprar nossa força de trabalho. Pregamos alegre e convictamente as ideias do capital como se fossem nossas.

Assim formada, esta primeira manifestação da consciência, o indivíduo passa a compreender o mundo a partir de seu vínculo imediato e parti-cularizado generalizando-o. Tomando a parte pelo todo a consciência expressa-se como alienação.

No senso comum, a alienação é tratada como sendo um estágio de não consciência. Após essa análise preliminar, percebemos que ela é a forma de manifestação inicial da consciência. Esta forma será a base, o terreno fértil, onde será plan-tada a ideologia como forma de dominação.

IDEOLOGIA E ALIENAÇÃO A alienação não é o mesmo que ideologia e

dela diferencia-se substancialmente. A alienação que se expressa na primeira forma da consciência é sub-jetiva, profundamente enraizada como carga afetiva, baseada em modelos e identificações de fundo psi-cológico. A ideologia agirá sobre esta base e se servi-rá de duas características fundamentais para exercer uma dominação que, agindo de fora para dentro, en-contra nos indivíduos um suporte para que se esta-beleça subjetivamente.

A ideologia não pode ser compreendida ape-nas como um conjunto de ideias, que pelos mais di-ferentes meios (meios de comunicação de massas, escola, igrejas, etc.), são enfiadas na cabeça dos in-divíduos. Isso levaria ao equívoco de conceber uma ação anti-ideológica como a simples troca de velhas por novas ideias.

Quando, numa sociedade de classes, uma delas detém os meios de produção tende a deter também os meios para universalizar sua visão de mundo e suas justificativas ideológicas a respeito das relações sociais de produção que garantem sua do-minação econômica. “As ideias da classe dominante são em cada época as ideias dominantes”10.

Essa universalização da visão de mundo da classe dominante se explica não apenas pela posse dos meios ideológicos e de difusão, mas também e fundamentalmente pela correspondência que en-contra nas relações concretas assumidas pelos indi-víduos e classes. Como afirma Marx, não “são simples ideias”:

“As ideias dominantes nada mais são que a expressão

ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais do-

minantes concebidas como ideias; portanto, a expressão das rela-

ções que tornam uma classe a classe a classe dominante, as ideias

de sua dominação”11.

10 Marx, K. e Engels, F., A Ideologia Alemã, p. 72.

11 Idem.

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APP-SINDICATO 15

As relações sociais determinantes, basea-das na propriedade privada capitalista e no assa-lariamento da força de trabalho, geram as condi-ções para que a atividade humana aliene ao invés de humanizar12. A vivência dessas relações produ-zem uma alienação expressa em três níveis13.

Ao viver o trabalho alienado, o ser huma-no aliena-se da sua própria relação com a nature-za, pois é através do trabalho que o ser humano se relaciona com a natureza, a humaniza e assim pode compreendê-la. Vivendo relações onde ele próprio se coisifica, onde o produto de seu traba-lho lhe é algo estranho e que não lhe pertence, a natureza se distancia e se fetichiza.

Num segundo aspecto, o ser humano alie-na-se de sua própria atividade. O trabalho trans-forma-se, deixa de ser a ação própria da vida para converter-se num “meio de vida”. Ele trabalha para o outro, contrafeito, o trabalho não gera prazer, é a atividade imposta que gera sofrimento e aflição. Alienando-se da atividade que o humaniza o ser humano se aliena de si próprio (auto-alienação).

Isto nos leva ao terceiro aspecto. Alienan-do-se de si próprio como ser humano, se tornan-do coisa (o trabalho não me torna um ser humano, mas é algo que eu vendo para viver), o indivíduo afasta-se do vínculo que o une à espécie. Ao invés do trabalho tornar-se o elo do indivíduo com a hu-manidade, a produção social da vida, metamorfo-seia-se num meio individual de garantir a própria sobrevivência particular.

Em resumo podemos descrever assim estes três aspectos da alienação:

a) o ser humano está alienado da natureza; b) o ser humano está alienado de si mesmo; c) o ser humano esta alienado de sua espécie; A materialidade dessas relações produtora

da alienação, são expressas no universo das ideias

12 Ver: Marx, K., Os manuscritos econômicos e filosóficos.

13 Ver também: István Mészáros, Marx: a teoria da alienação, pp. 16 e seguintes.

como ideologia. São, nas palavras de Marx, as rela-ções materiais concebidas como ideias.

A ideologia encontra na primeira forma da consciência uma base favorável para sua aceita-ção. As relações de trabalho já têm na ação prévia das relações familiares e afetivas os elementos de sua aceitabilidade14. Antes mesmo que a criança venha a receber qualquer informação sistematiza-da, já possui um conjunto de valores interioriza-dos que para ela são verdadeiros e naturais, pois estabelece com eles profundos vínculos afetivos e percebe uma correspondência com as relações concretas em que está inserida. Para ilustrar esta constatação vejamos um trabalho escolar de um menino de dez anos, que busca responder uma questão de história sobre os comerciantes portu-gueses, na época das Grandes Navegações:

“O Português levanta cedinho e vai para seu armazém

vender suas coisas. Ele vende pão, leite, café e outras coisas

mais. E quando ele acaba, pega suas economias, aluga um na-

vio, pega os amigos, e vai de continente em continente, desco-

brindo coisas para comerciar. Só que um dia eles foram pegar o

mesmo caminho para comerciar e o caminho estava fechado,

então eles foram a procura de outros caminhos e encontraram

muitas coisas para comerciar como seda, cravo, canela e mate-

rial de luxo. Levaram de volta para sua terra e só os mais ricos

é que compravam e eles ficaram ricos e importantes. É assim o

dia-a-dia dos portugueses e procurando é que se acha”15.

Este texto é ilustrativo não apenas por evidenciar valores e noções ideologizadas já pre-sentes na concepção de mundo de um menino, mas por dar-nos uma mostra da forma como sua

14 Numa passagem de sua Crítica da razão dialética, Sartre ironiza algumas concepções marxistas que buscam compreender o fenô-meno da alienação apenas a partir das relações de trabalho. Diz: “Os marxistas de hoje só se preocupam com os adultos: ao lê-los, podia-se crer que nascemos na idade em que ganhamos nosso primeiro salário; esquecem-se de sua própria infância”. (Sartre, J. P., Crítica de la razón dialéctica, pp. 56 e 57).

15 Coletado de um estudante da E.E.P.S.G. Palmira Graciotto, em São Bernardo do Campo, no ano de 1985.

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consciência agiu para responder uma questão, que para ele era desconhecida. Em primeiro lugar, ele só pode julgar algo que desconhece trazendo para um referencial que ele domina vai reinterpre-tar os fatos a partir da realidade e dos parâmetros que dispõe em sua vivência imediata. É evidente que os artífices da expansão marítima dos séculos XIV e XV não eram padeiros, no entanto um padei-ro é o que de mais real e próximo o menino dispõe para identificar um “português”.

Da mesma forma, discorrerá sobre o tema proposto buscando referenciar-se em modelos e por um sistema de valores que ele interiorizou em sua formação. Neste sentido “pegar as economias”, “procurando é que se acha”, a relação “vender para os ricos” e ficar também “rico e importante”, apare-cem como que naturalmente no discurso do me-nino, ele se espantaria acaso questionássemos se são ideias dele mesmo ou não. Mais que isso, são verdadeiras. As relações em que está inserido re-forçam e, aparentemente comprovam a validade dos juízos formulados. Em seu bairro pobre, as pe-quenas lojinhas e camelôs que só vendem coisas para pobres não tornam ninguém rico, ao passo que os grandes shopping centers, com seus sofis-ticados produtos para ricos, dão a impressão de fazer fortunas nas mãos de seus proprietários.

A percepção generalizada da vivência particular não apenas se baliza em valores como deforma a realidade pela transposição de juízos presos à particularidade. Quem chamar para par-ticipar de uma grande aventura como aquela? Evidente que “os amigos”, com quem mais? Não se poderia imaginar marujo, condenados e es-cravos embarcados a força. Como conseguir algo tão grande como um navio? Com certeza não às custas da Coroa Portuguesa, da prática secular de expropriar camponeses, ou com guerras de rapi-na, mas através de economias para que se possa “alugar o navio”.

Os valores que aparecem como sendo do menino não foram interiorizados pelo contato per-

ceptivo com as “relações sociais determinantes” na sociedade onde vive. Os valores são mediatizados por pessoas que servem de veículo de valores, são modelos. Não se trata da identificação com “a so-ciedade”, “as relações capitalistas” ou as ideias; são as relações de identidade com os outros seres hu-manos, seus modelos, que a pessoa em formação assume valores dos outros como sendo os seus.

O ser humano é modelo do ser humano16.Nossa concepção de mundo e de nós mesmos, a formamos a partir do outro. Numa passagem mar-ginal de O Capital, Marx afirma que:

“O homem se vê e se reconhece primeiro em seu se-

melhante, a não ser que já venha ao mundo com um espelho

na mão ou como um filósofo fichtiniano para quem basta o

“eu sou eu”.  Através da relação com o homem Paulo, na con-

dição de seu semelhante, toma o homem Pedro consciência de

si mesmo como homem. Passa a considerar Paulo com pele,

cabelos, em sua materialidade paulina a forma em que se ma-

nifesta o gênero homem”17.

Assim o indivíduo vai construindo uma visão de mundo que julga como sendo própria. Apesar de sua utilidade prática, de sua aparente coerência, esta visão caracteriza-se, como afirma Gramsci, por ser ocasional e desagregada. Isto sig-nifica que não chega a formar um todo unitário e coerente, mas soma seus aspectos componentes de forma arbitrária e bizarra. Esta visão acrítica, de-sistoricizada, sem um inventário18, Gramsci chama

16 “Quem descobre o quem sou descobrirá o quem é” (Pablo Neruda).17 Marx, K., O capital, p. 60, nota 72.18 “Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma mul-tiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é com-posta de maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente localistas, e intuições de uma futura filosofia que será própria do humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção de mundo significa, portanto, torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido. Sig-nifica portanto criticar, também, toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que

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de senso comum19. O pensador italiano afirma que todos os

seres humanos moldam-se a algum tipo de con-formismo, não no sentido de passividade, mas pelo fato de se amoldar à algum tipo de forma, e quando isso ocorre de maneira não crítica, nossa personalidade acaba por ser composta de manei-ra bizarra, encontrando-se nela “elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente localis-tas e instituições de uma futura filosofia” 20.

Este conjunto que une desordenada e con-traditoriamente elementos de senso comum e insti-tuições de um pensamento crítico, é a base do que chamamos de primeira forma de consciência. Ela apresenta-se como alienação não porque se desvin-cula da realidade, mas pelo fato de naturalizá-la, por desvincular os elementos componentes da visão de mundo de seu contexto e de sua história.

AS CONTRADIÇÕES DA PRIMEIRA FORMA DE CONSCIÊNCIA A relação dialética entre as relações con-cretas assumidas e suas representações ideais, nos permitem superar a visão mecânica que bus-ca uma compreender o universo ideológico como reflexo, caindo em armadilhas do tipo: é a família que determina a alienação ou as relações de tra-balho?

Como vimos, a família, que antecede no tempo sua ação no indivíduo em relações às ativi-dades econômicas de produção, é por sua vez de-terminada por estas relações, na verdade as me-diatiza. Aquilo que determina é determinado. Ao

somos realmente, isto é, um ‘conhece-te a ti mesmo’ como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefício do inventário. Deve-se fazer, inicialmente, esse inventário.” (Gramsci, A. Concepção dialé-tica da História, p. 12). 19 Idem, pp. 11-13.20 Idem.

mesmo tempo, nesse âmbito, reproduz e reforça as relações sociais de produção, dando a base ne-cessária para que a ideologia frutifique e garanta a reprodução daquelas.

Aqueles que se servem de uma visão me-cânica do mundo e do processo histórico fecha-ram aqui o círculo da dominação. A ideologia cor-responde às relações concretas que comprovam e reforçam esta ideologia ao mesmo tempo em que esta lhes justifica e reforça. Não há saída. Isto cons-titui um dos principais mitos de nossos tempos: a dominação ideológica perfeita, assim como anun-ciam as ficções de Orwell e Huxley21.

Entretanto, o fato é que a ideologia e as re-lações sociais de produção formam um todo dialé-tico, ou seja, não estabelecem simples relações de complementariedade, mas uma união de contrá-rios. Por mais elaborada, sofisticada ou eficiente que seja uma ideologia, ela é ainda a representa-ção mental de certo estágio das forças produtivas historicamente determinadas.

Uma vez interiorizada uma visão de mun-do não se transforma numa inevitabilidade, pois corre em seus calcanhares a contínua transfor-mação da estrutura produtiva e das relações que lhe originaram e que lhes servem de base. Esta transformação constante das condições materiais é mesmo vital para os próprios interesses domi-nantes, e constituem uma das características mar-cantes do modo de produção capitalista.

Eis aqui uma contradição insolúvel da so-ciedade capitalista: enquanto as forças produtivas devem constantemente desenvolver-se, as rela-ções sociais de produção e sua manifestação e jus-tificativa ideológica devem permanecer estáticas em sua essência. Com o desenvolvimento das for-ças produtivas, acaba por ocorrer uma dissonân-cia entre as relações interiorizadas como ideologia

21 Aqui, referimo-nos aos livros desses dois autores ingleses que tratam em seus romances de situações em que a dominação ideo-lógica teria se tornada perfeita. Os romances são 1984, de George Orwell, e Admirável mundo novo, do Adouls Huxley.

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e a forma concreta como se efetivam na realidade em mudança. É o germe de uma crise ideológica.

Os autores de Ideologia Alemã, descrevem desta maneira este processo:

“Quanto mais a forma normal das relações sociais e,

com ela, as condições de existência da classe dominante acu-

sam a sua contradição com as forças produtivas avançadas,

quanto mais nítido se torna o fosso cavado no seio da própria

classe dominada, mais natural torna-se, nestas circunstân-

cias, que a consciência que correspondia originalmente a esta

forma de relações sociais se torne inautêntica, dito por outras

palavras, essa consciência deixa de ser uma consciência corres-

pondente, e as representações anteriores, que são tradicionais

deste sistema de relações, aquelas em que os interesses pesso-

ais reais eram apresentadas como interesse geral, degradam-

se progressivamente em meras fórmulas idealizantes, em ilu-

são consciente, em hipocrisia deliberada”22.

Como o indivíduo viveria esta contradição entre ideias e a realidade em mudança? Sabemos que sua consciência inicial é formada pela inte-riorização de valores, normas, juízos e comporta-mentos a partir das relações imediatas que esta-belece. De posse desta concepção de mundo, o indivíduo segue sua vida e estabelece o mecanis-mo provocador da contradição na primeira forma de consciência, que não é outro se não o próprio que lhe tornou possível a existência. As novas re-lações vividas têm o mesmo potencial de interiori-zação que as anteriores, da mesma forma que gera novos valores, juízos e são a base para novas con-dutas e comportamentos.

O indivíduo vive as novas relações, julgan-do-as e buscando compreendê-las, com o mesmo arcabouço de valores (interiorização de novas re-lações), coexistem com velhos provocando uma contradição que é vivida pelo indivíduo como um conflito interno e subjetivo.

22 Marx, K. e Engels, F. A ideologia alemã. Volume II, p. 78.

A primeira forma de manifestação desta contradição não é ainda a superação da alienação, é mais uma forma transitória que expressa-se de maneira mais nítida, no estado de revolta.

Alguém, por exemplo, que acreditasse que trabalhando conseguiria tudo o que se quer, mas passa a viver uma situação na qual, apesar de trabalhar muito, não consegue o mínimo para viver, vivencia uma contradição que pode levá-lo à revolta. As relações atuais passam a não corres-ponder ao valor interiorizado, mas antes de fazer saltar toda a concepção é vivida como um conflito subjetivo, individual, que é compreendido tendo por base a própria estrutura da primeira forma da consciência.

As relações podem não ser mais ideali-zadas, são agora vividas como injustas, existe a disposição de não se submeter, no entanto ain-da aparecem como inevitabilidade: “sempre foi assim”. Muda-se apenas o julgamento valorati-vo: sempre foram injustas, preparando-se a sen-tença... sempre serão injustas. A primeira forma da consciência pode então ser reapresentada. É apenas em certas condições que a revolta pode tornar-se uma passagem para uma nova etapa do processo de consciência.

A SEGUNDA FORMA DA CONSCIÊNCIA: A CONSCIÊNCIA EM SI

Em determinadas condições, a vivência de uma contradição entre antigos valores assumido, e a realidade das novas relações vividas, pode ge-rar uma inicial superação da alienação. A pré-con-dição para esta passagem é o grupo. Quando uma pessoa vive uma injustiça solitariamente, tende à revolta, mas em certas circunstâncias pode ver em outras pessoas sua própria contradição. Este também é um mecanismo de identificação da pri-meira forma, mas aqui a identidade com o outro produz um salto de qualidade.

Uma mulher, por exemplo, submetida a condições de opressão em casa, condenada aos

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trabalhos domésticos e ao cuidado dos filhos, pode viver isto a vida toda como natural, portan-to, para ela, inevitável. Mesmo o desmoronar da idealização na família diante das condições reais do cotidiano, pode gerar no máximo a revolta, a constatação de uma terrível “sina”. No entanto esta mesma mulher, num grupo onde possa ver em ou-tras companheiras a mesma sina, julgada somen-te sua, só sua, pode começar a desenvolver uma ação contra o que considera injusto23.

Esta via de superação é ainda mais clara ao tratarmos da classe operária, é na greve a sua mais didática manifestação. A injustiça vivida como re-volta é partilhada numa identidade grupal, o que possibilita a ação coletiva.

A ação coletiva coloca as relações vividas num novo patamar. Vislumbra-se a possibilidade de não apenas revoltar-se contra as relações pré-determinadas, mas de alterá-las. Questiona-se o caráter natural destas relações e, portanto, de sua inevitabilidade. A ação dirige-se, então, à mobili-zação dos esforços do grupo no sentido da reivin-dicação, da exigência para que se mude a manifes-tação da injustiça.

É a chamada consciência em si, ou consci-ência da reivindicação. A forma mais clássica de manifestação desta forma de consciência é a luta sindical, sua forma de organização mais típica é o sindicato, mas podemos incluir nessa forma, as lutas populares, os movimentos culturais, o mo-vimento de mulheres e outras manifestações de lutas coletivas de setores, grupos e categorias so-ciais das mais diversas. O que há de comum nestes casos particulares é a percepção dos vínculos e da identidade do grupo e seus interesses próprios, que conflitam com os grupos que lhe são opostos.

23 Sartre desenvolve em seu trabalho, Crítica da razão dialética, u m estudo sobre a evolução do grupo que seria útil à compreen-são desse processo. Fala de uma etapa pré-grupo, a serialidade e sua passagem pela fusão ao estágio de grupo. Na continuidade, o grupo, em desenvolvimento, passa pela definição de metas, jura-mentos e organização.

AS CONTRADIÇÕES DA SEGUNDA FORMA E A CONSCIÊNCIA REVO-LUCIONÁRIA

A consciência em si representa ainda, a consciência que se baseia na vivência das relações imediatas, não mais do ponto de vista do indiví-duo, agora do grupo, da categoria e pode evoluir até a consciência de classe. Ela é parte fundamen-tal da superação da primeira forma de consciên-cia, portanto da alienação, no entanto seu pleno desenvolvimento ainda evidencia traços da antiga forma ainda não superados.

O processo de negação de uma parte da ideologia pela vivência particular das contradições do modo de produção, que pese toda sua impor-tância, não vai destruir as relações anteriormente interiorizadas e seus valores correspondentes de uma só vez. Isso significa que apesar de “conscien-te” de parte da contradição do sistema (por exem-plo, dos baixos salários, da opressão da mulher, de sua identidade étnica, etc.), a pessoa ainda traba-lha, age, pensa sob a influência dos valores ante-riormente assumidos, que apesar de serem parte da mesma contradição, continuam sendo vistos pela pessoa como naturais e verdadeiros.

Na sua luta contra o capital, o proletariado, num primeiro momento, nega a pretensão do ca-pitalismo em supor uma igualdade entre capital e trabalho, assumindo-se como uma classe distinta e particular. A principal afirmação do capitalismo, e sua ideologia liberal, é que todos são livres pro-prietários de distintas mercadorias. O proletário afirma-se como classe com interesses distintos e antagônicos ao capital quando se organiza para buscar maiores salários ou melhores condições de vida e trabalho.

No entanto, o proletariado, ao se assumir como classe, afirma a existência do próprio capital. Cobra desse uma parte maior da riqueza produ-zida por ele mesmo, alegra-se quando consegue uma parte um pouco maior do que recebia antes. A consciência ainda reproduz o mecanismo pelo

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qual a satisfação do desejo cabe ao outro. Agora, ela manifesta o inconformismo e não a submissão, reivindica a solução de um problema ou injustiça, mas quem reivindica ainda reivindica de alguém. Ainda é o outro que pode resolver por nós nossos problemas.

Além disso, temos que nos submeter às formas e condições estabelecidas por outros para manifestar este inconformismo. A materialização desses limites não poderia ter como exemplo mais adequado, a permanência da estrutura sin-dical atrelada, em sua essência, desde os anos de 1930 até hoje. Estes não são, como vemos, apenas limites de uma certa forma de consciência, mas também o limite dos instrumen-tos políticos que correspondem a esta consciência: as greves e o sindicato.

Não se trata de diminuir a importância desses instrumentos de luta da classe trabalha-dora, mas concebê-los dentro de seus limites. Não se trata de analisar os limites das greves, por exemplo, quando elas não são vitoriosas, quando os militantes mais destacados são identificados, demitidos e não conseguem mais emprego; mas, fundamentalmente, quando as greves são vitorio-sas é que podemos perceber os limites dessa se-gunda forma de consciência.

Quando um setor da classe operária con-fronta-se com o patrão exigindo, por exemplo, maiores salários, melhores condições de trabalho e outras reivindicações, dá mostras que desven-dou em parte o caráter da contradição fundamen-tal entre a produção social e a acumulação privada e, sabendo disto, cobra do capitalista uma parte maior daquilo que produziu e que lhe foi retira-do. O proletariado apercebe-se de sua força, de ser elemento chave para o processo de produção, percebe seu poder de barganha e o usa contra o

capital, adquire consciência de sua força, de sua união enquanto classe. Mas, digamos que essa luta atinja seus objetivos, que a greve seja vito-riosa. Os trabalhadores retornam ao trabalho com suas reivindicações atendidas. Estão novamente aptos a revalidar as relações de exploração, o tra-balho alienado, ou seja, o próprio capitalismo.

Isso porque ao se assumir enquanto classe, o proletariado nega o capitalismo afirmando-o. Organiza-se como qualquer vendedor que quer alcançar um preço maior por sua mercadoria. Por-tanto, em sua luta revolucionária, não basta o pro-letariado assumir-se enquanto classe (consciência

em si), mas para além de si mes-mo (consciência para si). Conce-ber-se não ape-nas como um grupo particular

com interesses próprios dentro da ordem capita-lista, mas também se colocar diante da tarefa his-tórica da superação desta ordem.

A verdadeira consciência de classe é fruto dessa dupla negação: num primeiro momento o proletariado nega o capitalismo assumindo sua posição de classe, para depois negar-se a si pró-prio enquanto classe, assumindo a luta de toda a sociedade por sua emancipação contra o capital.

O mesmo mecanismo pode ser visto em diferentes lutas específicas, como as que carac-terizam o movimento de mulheres, por exemplo, o que leva a diferenciação entre o que podemos chamar genericamente de “movimento de mulhe-res”, até um movimento feminista e daí, a um femi-nismo socialista.

No âmbito da consciência individual, essa passagem evidencia uma difícil transição, na qual nem sempre o movimento se completa com a superação da consciência imediata que levaria a consciência a um patamar superior.

Quais seriam as consequências de uma es-

No âmbito da consciência individual, esta passa-gem evidencia uma difícil transição, onde nem sempre o movimento completa-se com a superação que levaria a consciência num patamar superior.

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APP-SINDICATO 21

tagnação nessa etapa da consciência? São muitas as manifestações, como o corporativismo, o carrei-rismo e a burocratização. A consciência volta a ser espectadora passiva de forças que não controla, vive uma realidade da qual desconhece as raízes e o desenvolvimento, acabando assim submetido por ela, ainda que mantenha na forma os elemen-tos questionadores da segunda forma de consci-ência. Vejamos este depoimento de Gramsci, de 1919, sobre esse fenômeno:

“Os operários sentem que o complexo da sua organiza-

ção se transformou num aparelho tão enorme que acabou por

obedecer a leis próprias, íntimas a sua estrutura e ao seu com-

plicado funcionamento, mas estranhas à massa que adquiriu

consciência de sua missão histórica de classe revolucionária.

Sentem que a sua vontade de poder não consegue exprimir-

se, em sentido nítido e preciso, através das atuais hierarquias

institucionais. Sentem que também em sua casa, na casa que

construíram tenazmente com esforços pacientes, cimentan-

do-a com sangue e com lágrimas, a máquina trai o homem,

o funcionalismo esteriliza o espírito criador e o diletantismo

banal e verbalista tenta encobrir em vão a ausência de concei-

tos precisos acerca das necessidades da produção industrial e

a nenhuma compreensão da psicologia das massas operárias.

Os operários se irritam por estas condições de fato, mas são in-

dividualmente incompetentes para as modificar: as palavras e

as vontades de cada um dos homens são coisa muito pequenas

em confronto com as leis férreas inerentes à estrutura funcional

do aparelho sindical”24.

O processo de consciência não é linear,

pode e muitas vezes regride até etapas anteriores. Se analisarmos bem o depoimento de Gramsci, e nem precisaríamos ir até 1919 para obter um exemplo, podemos ver que se reapresentam ele-mentos da primeira forma de consciência. Outros determinam as normas, o como, o quando: as re-lações são pré-determinadas e individualmente

24 Gramsci, Antonio. “Sindicatos e conselhos, L’Ordine Nuovo, 11/9/1919”, in Escritos políticos, vol. II, p. 41.

nada podemos fazer a não ser nos submetermos. O mais complicado é que agora uma parte da pró-pria classe passa a ter um status, uma estabilidade e um poder que não tinha. Antes vivíamos para denunciar a miséria... hoje vivemos dela. Abrimos mão de nosso desejo para nos rendermos à satis-fação da sobrevivência imediata. Alguns ganham muito bem para isso.

A consciência nessa fase é ainda prisionei-ra das aparências, ainda alimenta-se da vivência particular e das inserções imediatas e não encon-tra neste âmbito os elementos necessários à sua superação. Cristalizada nesta fase acabará por re-forçá-la aquilo que inicialmente pensava estar ne-gando. Lukács em seu estudo sobre a consciência de classe afirma que:

“Na verdade essas hesitações, e até incertezas, são um

sintoma de crise da sociedade burguesa. Enquanto produto do

capitalismo, o proletariado está submetido às formas de exis-

tência de seu produtor. Estas formas de existência são a desu-

manidade, a reificação25.O proletariado é, pela sua existência,

a crítica, a negação dessas formas de vida. Mas, até que a crise

objetiva do capitalismo esteja consumada, até que o próprio

proletariado tenha conseguido discernir completamente esta

crise da reificação, e como tal, apenas negativamente ascende

acima de uma parte do que nega. Quando a crítica não ultra-

passa a simples negação de uma parte, quando pelo menos,

ela não tende para totalidade, então não pode ultrapassar o

que nega, como por exemplo, nos mostra o caráter pequeno

burguês da maior parte dos sindicalistas”26.

A consciência em si, quando não “ultrapas-sa a simples negação de uma parte”, acaba por distanciar-se de sua meta revolucionária, busca novamente, mecanismos de adaptação à ordem estabelecida27. Ela trabalha com os efeitos, com

25 Reificação é o processo complementar à fetichização. Enquanto a fetichização atribui poderes e características humanas às coisas, a reificação coisifica os seres humanos.

26 Lukács, G. História e consciência de classe, pp. 91-92.

27 Diríamos que a consciência patina no mecanismo da reivindica-

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sintomas e não com causas. Essa contradição pode levar o indivíduo em seu processo de consciência para um novo patamar: a busca da compreensão das causas, o desvelar das aparências e a análise da essên-cia do funcionamento da sociedade e suas relações. Buscar saber como funciona a sociedade para saber como é possível transformá-la. É na própria consta-tação de que a sociedade precisa ser transformada que se supera a consciência da reivindicação pela da transformação. O indivíduo transcende o grupo ime-diato e o vínculo precário com a realidade dada, bus-ca compreender relações que se distanciam no tem-po e no espaço, toma como sua a história da classe e do mundo. Passa a conceber um sujeito coletivo e histórico como agente da transformação necessária.

AS CONTRADIÇÕES DA CONSCIÊN-CIA REVOLUCIONÁRIA E O INDIVÍ-DUO

“Hoje o movimento se faz imperceptível.

Os filhos estão mortos.

O povo adormecido.”

Pedro Tierra

“Ernesto Che Guevara é chegada a tua hora

e o povo ignora se por ele lutavas.”

Ferreira Gullar

Na etapa anterior, mesmo supondo o sujeito coletivo, o motor básico da reivindicação é a satis-fação de algo para o próprio indivíduo. Quem luta por moradia, por exemplo, luta para ter onde morar, se possível no mais curto espaço de tempo. Agora a transformação da sociedade exige um outro sujeito:

ção. Um exemplo muito ilustrativo nos foi dado por uma declaração de Lula, então candidato às eleições presidenciais de 1989, quando afirmava: “Nós reivindicamos nossos direitos como trabalhadores, e reivindicamos o direito de se organizar em sindicatos livres. De-pois reivindicamos o direito de organizar um partido político que organizasse os trabalhadores e hoje reivindicamos o direito de ser o presidente do país”.

a classe. Na passagem da consciência em si para a

consciência revolucionária, ou para si, abre-se uma importante contradição. Apesar das alterações da consciência só poderem ser vivenciadas em nível in-dividual, o processo de transformação que irá realizá-la é necessariamente social, envolvendo mais que a ação individual, a de classe. O amadurecimento sub-jetivo da consciência de classe revolucionária, se dá de forma desigual, depende de fatores ligados a vida e a percepção singular de cada indivíduo. Coloca-se assim a possibilidade de haver uma dissonância, que pode ou não se prolongar de acordo com cada perí-odo histórico, entre o indivíduo e sua classe, surgindo a questão do indivíduo revolucionário inserido num grupo que ainda partilha da consciência alienada. As mediações políticas consistem, em parte, no esforço de superar esta distância.

O isolamento da pessoa dentro de seu grupo de inserção social é acompanhado por um intenso conflito interno. Dentro do indivíduo a consciência nova ocupa, por assim dizer, uma área liberada, que faz fronteira com setores fortemente ocupados pelo inimigo, ou seja, as antigas relações sociais interioriza-das como valores, juízos e normas. Psicologicamente, o EGO se enfraquece diante das sempre presentes exigências dos impulsos básico, e de um SUPERE-GO que foi criado pela interiorização de normas e padrões anteriores. O indivíduo afirma algo novo e aspectos de seu próprio universo subjetivo são con-testados.

A tomada de consciência, ou o amadureci-mento de sua consciência, nem sempre é acompa-nhada das condições objetivas de realizar as tarefas que a história lhe impõe. Afirma Lukács:

“Esta consciência não é nem a soma nem a média do que

pensam, sentem, etc., os indivíduos que formam a classe, toma-

dos um por um. E, no entanto, a ação historicamente decisiva da

classe como totalidade é determinada, em última análise, por esta

consciência”28.

28 Lukács, G., op. cit., pp. 64-65.

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APP-SINDICATO 23

A consciência assume uma dimensão que não tem como se realizar dentro dos limites do pensamento, arvorando-se, necessariamente, pelo campo da prática.

Na verdade, a vida cobra da pessoa uma postura para qual não foram internalizadas estru-turas prévias para a sua realização. Ao contrário, toda a bagagem psíquica, cultural e moral está es-truturada para agir contra a postura exigida pela nova consciência, que tenta se impor. O indivíduo está apto a aceitar a realidade, assumindo sua im-potência diante de relações estabelecidas e pré determinadas. Por isso, o indivíduo que se torna consciente é, antes de tudo, um novo indivíduo em conflito.

É comum ouvir de militantes que passando por processos semelhantes, que pensam em “cui-dar da vida”. Produzimos algo como uma tentação de rendermo-nos ao princípio do prazer, negando as exigências de uma nova consciência, que se an-tagoniza com um mundo e que se recusa a mudar de um Superego que ainda nos impõe velhas nor-mas. “Pensar em mim mesmo” é o grito de guerra do Ego contra o mundo.

A sociedade capitalista, por mais hipócrita que isso possa parecer, se auto proclama a socie-dade da harmonia. O indivíduo em conflito é iso-lado como se não expressasse uma contradição, mas fosse ele mesmo a contradição, mais que isto: o culpado por sua existência. Enquanto isso o alie-nado recebe o rótulo de “normal”.

O indivíduo sob essa contradição, com o grau de compreensão alcançado e diante da re-alidade objetiva, que não reúne condições ma-teriais para uma superação revolucionária, tem diferentes caminhos a trilhar.  Pode buscar me-diações políticas que construam junto à classe os elementos que Lênin denominava de “condições subjetivas”29, ou diante de insucessos nessas ten-

29 “A revolução não surge de toda situação revolucionária, mas so-mente nos casos em que as mudanças objetivas (...) vêm se juntar a

tativas, caminhar para ansiedade e depressão. Sua consciência retorna a patamares an-

teriores, como a revolta isolada ou mesmo a alie-nação. Evidente que nunca se retoma ao mesmo ponto, e a passagem pela consciência de classe deixa marcas, como por exemplo, a justificativa mais elaborada, o discurso e talvez algumas pos-turas. Pode se manifestar por outro lado em ceti-cismo, hipocrisia ou outras manifestações.

A primeira fase da consciência guarda cor-respondência com alguns comportamentos in-fantis. Diante das tarefas que se anunciam para a consciência que busca assumir-se como revo-lucionária, o indivíduo pode trazer ainda esses elementos primários que bem caracterizam esta encruzilhada entre a ansiedade e a depressão, ou como no caso da criança a onipotência e a impo-tência. “Assim, diz Lukács, ou a consciência torna-se espectador inteiramente passivo do movimen-to das coisas, sujeito a leis e no qual não se pode de maneira nenhuma intervir, ou considera-se como uma força que pode dominar ao seu bel-prazer, subjetivamente, o movimento das coisas, em si despido de sentido”30.

Esses estados psicológicos aparecem in-terligados de maneira que a depressão segue a ansiedade, ou vice-e-versa. A forma de lidar com uma ou outra manifestação guarda relação com os traços de personalidade de cada um, no entan-to no aspecto que nos interessa, evidencia a velha contraposição entre a vontade e a materialidade.

Os seres humanos fazem sua própria histó-ria, mas não a fazem da forma como querem, pois agem sob circunstâncias que estão dadas pelo de-

uma mudança subjetiva, a saber: a capacidade, no que concerne à classe revolucionária, de conduzir ações revolucionárias de massa bastante vigorosas para destruir completamente (ou parcialmente) o velho governo.” Convém ressaltar que, ao falar em condição ou mudança subjetiva, Lenin não está aludindo a aspectos do indiví-duo, mas da classe, ou seja, confrontando elementos da realidade objetiva (histórica e da luta de classes) a elementos próprios da ação dos sujeitos históricos, daí subjetivos. (Lenin, “A falência da Segunda Internacional”, In “A questão do partido”, Obras Completas, volume XXI, pp. 47-48).

30 Lukács, G., op. cit. p. 92.

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senvolvimento histórico anterior31. A contradição entre a intenção subjetiva e a materialidade na qual essa vontade terá que agir, explode no indi-víduo isolado como algo que parece intransponí-vel. O problema é que para a tarefa em questão, e em se tratando de indivíduos isolados, na verdade trata-se de uma barreira intransponível.

CONSCIÊNCIA E TEMPORALIDADE

“Sinto que o tempo sobre mim abate

Sua mão pesada. Rugas, dentes, calva...

Uma aceitação maior de tudo,

O medo de novas descobertas.”

Carlos Drummond de Andrade

Más de una mano em lo oscuro me conforta

y mas un paso siento marchar comigo

pero si no tuviera, no importa:

sé que hay muertos que alumbram los caminos.

Silvio Rodriguez

Aqui entra em questão um importante fa-tor na discussão dos limites pessoais, diante da ta-refa de transformar a sociedade: a concepção que o indivíduo tem, ou ainda, aquela que a sociedade legou-lhe como válida, de sua temporalidade.

Na sociedade capitalista, o foco e núcleo é um indivíduo, como célula isolada e auto-suficien-te, em perfeita harmonia com a concepção de ser abstrato, trabalho alienado e propriedade privada. A vida da pessoa dá-se em um campo definido de tempo, quando ela deve lutar o máximo possível para vencer e acumular para si e sua família. A morte encerra esse ciclo e a vida pode virar ma-téria para inúmeros filmes e biografias de grandes

31 “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com quem se defrontam diretamente, legadas e transmiti-das pelo passado.” (Marx, K., O 18 Brumário, p. 17).

homens, e suas trajetórias individuais. A religião entra em cena para solucionar

esse final tão sem perspectivas para o indivíduo da sociedade burguesa. Ele tem muitas dificulda-des em continuar no outro, enquanto vê esvane-cer sua embalagem individual, consumida pela inexorabilidade da morte. A religião resolve este problema afirmando que a transcendência dá-se através da continuação do indivíduo em sua alma privada, salvando assim, o indivíduo burguês do inferno coletivo, ou da irreversível decomposição da matéria.

Como se sentiria uma pessoa diante da enorme tarefa de destruir uma sociedade e cons-truir uma nova, na medida que esse tipo de idéia sobre a temporalidade se impusesse às cabeças da classe trabalhadora?

Até agora a consciência havia se movido no campo individual. Mesmo em se tratando da consciência em si, onde a satisfação do desejo de-pende não mais do outro, mas de nossa própria ação, tendemos a procurar soluções para nós. Queremos uma revolução que liberte todo um povo, mas no íntimo a queremos para nós, quere-mos estar lá para ouvir os gritos de vitória, beber na grande festa da libertação, participar direta-mente dos fatos, se possível na posição de desta-que para ser lembrado na História32.

Quando a consciência era regida pelo prin-cípio do prazer ela queria tudo e já. Quando nos organizamos para reivindicar algo sabemos que não será de imediato, mas o movimento só se mantém enquanto perdura a esperança de alcan-çar a vitória o mais cedo possível. Mesmo quando já se apresenta a consciência da necessidade de constituir patamares de organização mais perma-nentes, imaginamos as possibilidades de realiza-ção dentro dos limites de nossa temporalidade. Agora, no entanto, a consciência nos aponta uma

32 “Por que deveria meu nome ser lembrado?” é um poema de Ber-tolt Brecht que ilustra magistralmente essa questão.

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tarefa que transcende nossa vida individual. A partir do momento que o traba-

lhador se apercebe do caráter das relações sociais em que está inserido, coloca-se a necessidade de buscar uma transformação. No entanto, nesse momento do processo de consciência, já não é suficiente saber que é necessário mudar a sociedade, destruir o capitalismo, mas como fazê-lo e o que colo-car no lugar. A concepção da potencialida-de da classe, a consciência da possibilidade de vitória33, é parte integrante da consci-ência de classe. Esta tarefa exige outro tipo de indivíduo, não o moldado pelos valores burgueses e liberais, correspondentes às repre-sentações ideológicas das relações de exploração da sociedade capitalista, ou seja, o individualismo pequeno-burguês e todas as suas matizes. Essa tarefa exige um novo indivíduo capaz de compre-ender sua temporalidade além dos limites de si próprio, compreender esse esforço como esforço coletivo de sua classe e além dela.  A consciência que ao fazer a segunda negação, expressa o mo-vimento essencial da classe ao se superar como classe.

“Ao meu partido...

me fizeste indestrutível

porque contigo

não termino em mim mesmo.”

Pablo Neruda

Aqui, como em outros momentos, a tarefa

não é fácil. O sentido que nossa sociedade e sua cultura atribuem à morte é bastante contundente. O que se exige é um esforço do indivíduo capaz de conceber, ao mesmo tempo, a fraqueza da pessoa, seu caráter transitório e a percepção no outro, a

33 Ernensto Che Guevara, “Cuba, exceção histórica?” coleção Gran-des Pensadores Sociais nº 19, p. 52.

continuação da obra coletiva que é a história. Na dificuldade dessa trajetória é natural que muitos acabem por recuar, é muito tentadora e reconfor-tante a possibilidade de sedução que a ordem ofe-rece aos que se rendem.

A NOVA CONSCIÊNCIA

Na sociedade capitalista não podemos al-cançar uma nova consciência, a não ser de forma embrionária. Somos, no máximo, indivíduos da sociedade burguesa, dispostos a destruí-la. É certo que já se apresentam em germe, elementos dessa nova consciência, no entanto ela pressupõe uma nova ordem de relações para que tenha a base tornando-a possível.

Isto não deve levar à compreensão de que a transformação revolucionária se dá material-mente e só depois é que o universo das ideias vai transformando-se automaticamente. Essas esferas combinam-se, ainda que preservada a determi-nação material, de forma que a luta das ideias e a capacidade de uma classe revolucionária apresen-tar suas concepções e valores, como os valores do conjunto da sociedade, antecipam-se e preparam o terreno para transformações revolucionárias.

Foi o que de fato ocorreu com a própria revolução burguesa. O pensamento burguês an-tecipou-se à revolução burguesa. No entanto, isto

“Se nesta hora o inimigo te procurarecusa o jantar que te oferece.Recusa a paz, a vida que te oferece.O jantar te daria um assento à mesa da noite.Esta paz é tua escravidão.E se agora o inimigo te propõe a vida,é chegada a hora de sua morte.”Pedro Tierra

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não implica no fim da determinação material. As ideias revolucionárias burguesas, entre elas a ilus-tração e o liberalismo, só puderam constituir-se tendo por base a própria gestação material das bases objetivas do modo de produção capitalista e, com elas o desenvolvimento de novas classes sociais que buscavam expressar. Gramsci, ao tratar da questão afirma que:

“A supremacia de um grupo social manifesta-se de

duas maneiras, como “dominação” e como “direção intelectual

e moral”. Um grupo social domina os grupos adversários que

tende a “liquidar” ou a submeter valendo-se também da força

armada e é dirigente dos grupos fins e aliados. Um grupo social

pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder

governativo (e esta é uma das principais condições para a pró-

pria conquista do poder); em seguida, quando já está exerci-

tando o poder, e ainda que o mantenha firmemente em suas

mãos, o grupo social torna-se dominante, mas deve continuar

sendo dirigente”34.

É bem verdade que muitos confundem esses princípios, que constituem a base da teoria gramsciana de hegemonia, de tal forma que se perde um valioso tempo tentando ser “dirigente” de nossos adversários, enquanto, por diversos meios, tenta-se impor uma coação sobre nossa própria classe e os grupos sociais aliados.

A lógica indicada pelo revolucionário ita-liano, e que deve ser resgatada, é que toda classe é uma manifestação particular da sociedade. Nos momentos revolucionários, uma classe reúne con-dições de expressar, através de sua particularida-de, os anseios universais, sintetizando os interes-ses particulares de outros setores sociais em luta. Tornar-se “dirigente” desses setores implica numa luta de ideias, juízos e valores, e mais, numa luta te-órica. Significa dar unidade e coerência a sua con-cepção de mundo, em luta contra a do adversário de classe, que tem sua própria unidade e coerência,

34 Antônio Gramsci, Quaderni del carcere., pp. 2010-2011.

que, pelas contradições objetivas com a realidade, torna-se cada vez mais moral e hipócrita.

A questão de fundo aqui não pode ser dis-cutida sem encarar o fato de o processo de cons-ciência insere-se em um momento maior, que é a transição de um modo de produção para outro. Na medida em que se operem transformações revo-lucionárias, em que se passe a estabelecer novas relações podemos estar iniciando a construção de um novo patamar da consciência humana.

“A consciência não está para além da evolução histórica

real. Não é o filósofo que lança no mundo, o filósofo não tem o

direito, portanto de lançar um olhar arrogante sobre as peque-

nas lutas do mundo e de as desprezar”35.

Portanto a transformação das consciências não está além da luta política e da materialidade onde esta se insere. É ao mesmo tempo um produ-to da transformação material da sociedade e um meio político de alcançar tal transformação.

CONCLUSÃO É muito difícil determinar a linha que se-

para o velho que caduca, do novo que germina. Brecht dizia, em um poema, que as eras não co-meçam de uma vez, nossos avós já viviam em um novo tempo e nossos netos ainda viverão, talvez, no velho. Nos momentos de passagem, de transi-ção, as consciências captam contraditoriamente este momento e os indivíduos repletos de sonhos novos, por vezes, perecem “às margens do ama-nhã”.

Não devemos julgá-los. Um comunardo que fugia da Paris em chamas em 1871, vendo seus camaradas sendo fuzilados no frio muro de Père Lachaise, tem o direito de blasfemar contra a humanidade. Os trabalhadores russos que, com bravura e sinceridade construíram o sonho sovié-

35 George Lukács, op. cit., p. 92.

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tico têm o direito de, diante da barbárie estalinis-ta, acreditar por um momento que a humanidade não merece nosso sacrifício.

A história segue seu curso indiferente às nossas misérias e heroísmos. Nossa consciência não pode fazer o mesmo. Estamos atados a vida e a sua teia cotidiana, nela colhemos os materiais que compõem nossa consciência e, nem sempre, este cotidiano permite vislumbrar algo além da in-justiça e da indignidade que marcam o presente. Temos, então, que recolher a revolta e a inquieta-ção de quem não se submete e ousar dar forma às sementes do futuro, ainda que em tempos onde o futuro parece ter sido abolido.

“Mas é nelas (bocas e mãos,

sonhos, greves e denúncias)

que te vejo pulsando,

mundo novo,

ainda que em estado de soluços e esperança.”

Ferreira Gullar.

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Tudo se transforma.

Recomeçar é possível mesmo no último suspiro.

Mas o que aconteceu, aconteceu. E a água

que puseste no teu vinho não pode

mais ser retirada. Porém

tudo se transforma. E recomeçar

é possível mesmo no último suspiro.

Bertold Brecht

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Dialética da Totalidade Concreta

Karel Kosik 26 de Junho de 1926- 11 de Fevereiro de 2003. Foi um militante e filósofo marxista de origem tcheca.

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O Mundo da Pseudoconcreticidade

e a sua Destruição A DIALÉTICA trata da “coisa em si”. Mas a “coisa em si” não se manifesta imediatamente

ao homem. Para chegar à sua compreensão, é necessário fazer não só um certo esforço, mas também um “détour”. Por este motivo o pensamento dialético distingue entre representação e conceito da coisa, com isso não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois graus de co-nhecimento da realidade, mas especialmente e sobretudo duas qualidades da práxis humana. A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é a de um abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente, porém a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce a sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista a consecução dos pró-prios fins e interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais. Portanto, a rea-lidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo pólo oposto e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo; apresenta-se como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento sur-girá a imediata intuição prática da realidade. No trato prático-utilitário com as coisas - em que a realidade se revela como mundo dos meios, fins, instrumentos, exigências e esforços para satisfa-zer a estas - o indivíduo “em situação” cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade.

Todavia, “a existência real” e as formas fenomênicas da realidade - que se reproduzem ime-diatamente na mente daqueles que realizam uma determinada práxis histórica, como conjunto de representações ou categorias do “pensamento comum” (que apenas por “hábito bárbaro” são consideradas conceitos) - são diferentes e muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno, com a estrutura da coisa e, portanto, com o seu núcleo interno essencial e o seu conceito correspondente. Os homens usam o dinheiro e com ele fazem as transações mais com-plicadas, sem ao menos saber, nem ser obrigados a saber, o que é o dinheiro. Por isso, a práxis utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de

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orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade. Por este motivo Marx pôde escrever que aqueles que efetivamente determinam as condições sociais se sentem à vontade, qual peixe n’água, no mundo das formas fenomênicas desliga-das da sua conexão interna e absolutamente incompreensíveis em tal isolamento. Naquilo que é intimamente contraditório, nada vêem de misterioso; e seu julgamento não se escan-daliza nem um pouco diante da inversão do racional e irra-cional. A práxis de que se trata neste contexto é historicamen-te determinada e unilateral, é a práxis fragmen-tária dos indiví-duos, baseada na divisão do trabalho, na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais que sobre ela se ergue.

Nesta práxis se forma tanto o determina-do ambiente material do indivíduo histórico, quanto a atmosfera espiritual em que a apa-rência superficial da realidade é fixada como o mundo da pretensa intimidade, da confiança e da familiaridade em que o homem se move “naturalmente” e com que tem de se avir na vida cotidiana.

O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consci-ência dos indivíduos agentes, assumindo um as aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade. A ele per-tencem:

- O mundo dos fenômenos externos, que

se desenvolvem à superfície dos processos re-almente essenciais;

- O mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens (a qual não coincide com a práxis crítica revolucioná-ria da humanidade);

- o mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na consciência dos homens, produto da práxis feti-chizada, formas ideológicas de seu movimento;

- o mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de serem condições naturais e não

são imediata-mente reco-nhecíveis como resultados da atividade social dos homens.

O mun-do da pseudo-concreticidade é um claro-

escuro de verdade e engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indi-ca a essência e, ao mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no fenômeno, mas só de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e aspectos. O fenômeno indica algo que não é ele mesmo e vive apenas graças a seu contrário. A essência não se dá imediata-mente; é mediata ao fenômeno e, portanto, se manifesta em algo diferente daquilo que é. A essência se manifesta no fenômeno. O fato de se manifestar no fenômeno revela seu movi-mento e demonstra que a essência não é inerte nem passiva. Justamente por isso o fenômeno revela a essência. A manifestação da essência é precisamente a atividade do fenômeno.

O mundo fenomênico tem a sua estrutu-ra, uma ordem própria, uma legalidade própria que pode ser revelada e descrita. Mas a estru-tura deste mundo fenomênico ainda não capta

O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, ime-diatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um as aspec-to independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade.

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APP-SINDICATO 31

a relação entre o mundo fenomênico e a essên-cia. Se a essência não se manifestasse absoluta-mente no mundo fenomênico, o mundo da re-alidade se distinguiria radical e essencialmente do mundo do fenômeno: em tal caso o mundo da realidade seria para o homem “o outro mun-do” (platonismo, cristianismo), e o único mun-do ao alcance do homem seria o mundo dos fenômenos. O mundo fenomênico, porém, não é algo independente e absoluto: os fenôme-nos se transformam em mundo fenomênico na relação com a essência. O fenômeno não é ra-dicalmente diferente da essência, e a essência não é uma realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno. Se assim fosse efeti-vamente, o fenômeno não se ligaria à essência através de uma relação íntima, não poderia manifestá-la e ao mesmo tempo escondê-Ia; a sua relação seria reciprocamente externa e indiferente. Captar o fenômeno de determina-da coisa significa indagar e descrever Como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e Como ao mesmo tempo nele se esconde. Com-preender o fenômeno é atingir a essência. Sem o fenômeno, sem a sua manifestação e revela-ção, a essência seria inatingível. No mundo da pseudoconcre-ticidade o as-pecto fenomê-nico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é considerado Como a essên-cia mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece. Por conseguinte, a dife-rença que separa fenômeno e essência equiva-le à diferença entre irreal e real, ou entre duas ordens diversas de realidade? A essência é mais real do que o fenômeno? A realidade é a unidade do fenômeno e da essência. Por isso a

essência pode ser tão irreal quanto o fenôme-no, e o fenômeno tanto quanto a essência, no caso em que se apresentem isolados e, em tal isolamento, sejam considerados como a única ou “autêntica” realidade.

O fenômeno não é, portanto, outra coisa senão aquilo que - diferentemente da essência oculta - se manifesta imediatamente, primeiro e com maior frequência. Mas porque a “coisa em si”, a estrutura da coisa, não se manifesta imediata e diretamente? Por que são necessá-rios um esforço e um desvio para compreendê-la? Por que a “coisa em si” se oculta, foge à per-cepção imediata? De que gênero de ocultação se trata? Tal ocultação não pode ser absoluta: se quiser pesquisar a estrutura da coisa e quiser perscrutar “a coisa em si”, se apenas quer ter a possibilidade de descobrir a essência oculta ou a estrutura da realidade – o homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve necessaria-mente possuir uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível de ser definido como estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em si”, e de que existe uma oculta ver-dade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente. O homem faz um

desvio, se esfor-ça na descober-ta da verdade só porque de um modo qual-quer, pressu-põe a existên-cia da verdade, porque possui

uma segura consciência da existência da “coisa em si”. Por que, então, a estrutura da coisa não é direta e imediatamente acessível ao homem, por que, então, para captá-la ele tem de fazer um desvio? E a que leva tal desvio? O fato de na percepção imediata não se captar a “coisa em si” mas o fenômeno da coisa, dependerá,

Como a essência - ao contrário dos fenôme-nos - não se manifesta diretamente, e desde que o fundamento oculto das coisas deve ser desco-berto mediante uma atividade peculiar, tem de existir a ciência e a filosofia.

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32 APP-SINDICATO

talvez, do fato de que a estrutura da coisa per-tence a outra ordem de realidade, distinta da dos fenômenos, e que, portanto, constitui uma outra realidade existente por trás dos fenôme-nos?

Como a essência - ao contrário dos fenô-menos - não se manifesta diretamente, e desde que o fundamento oculto das coisas deve ser descoberto mediante uma atividade peculiar, tem de existir a ciência e a filosofia. Se a apa-rência fenomênica e a essência das coisas coin-cidissem diretamente, a ciência e a filosofia se-riam inúteis36. 0 esforço direto para descobrir a estrutura da coisa e “a coisa em si” constitui desde tempos imemoriais, e constituirá sem-pre, tarefa precípua da filosofia. As várias ten-dências filosóficas fundamentais são apenas modificações desta problemática fundamental e de sua solução em cada etapa evolutiva da humanidade. A filosofia é uma atividade hu-mana indispensável, visto que a essência da coisa, a estrutura da realidade, a “coisa em si”, o ser da coisa, não se manifesta direta e ime-diatamente. Neste sentido a filosofia pode ser caracterizada como um esforço sistemático e crítico que visa a captar a coisa em si, a estru-tura oculta da coisa, a descobrir o modo de ser do existente.

O conceito da coisa é compreensão da coisa, e compreender a coisa significa conhe-cer-lhe a estrutura. A característica precípua do conhecimento consiste na decomposição

36 “... Se os homens apreendessem imediatamente as conexões. para que serviria a ciência?” (Marx a Engels, carta de 27-6-1867). “Toda ciência seria supérflua se a forma fenomênica e a essência coincidissem diretamente:” Marx, O Capital. III, sec. VII, cap. XLVIII, III. (Tr. ital. Roma, Rinascita, 1959, III, a, pág. 228). “Para as formas fenomênicas... a diferença da relação essencial... vale exatamente aquilo que vale para todas as formas fenomênicas e para o funda-mento oculto por detrás delas. As formas fenomênicas se repro-duzem imediatamente por si mesmas, como formas correntes do pensamento, mas o seu fundamento oculto tem de ser descoberto somente pela ciência:” Marx, O Capital, I, sec. VI, cap. XVII. (Tr. ital. I, 2, pág. 259).

do todo. A dialética não atinge o pensamen-to de fora para dentro, nem de imediato, nem tampouco constitui uma de suas qualidades; o conhecimento é que é a própria dialética em uma das suas formas; o conhecimento é a de-composição do todo.

O “conceito” e a “abstração”, em uma con-cepção dialética, têm o significado de método que decompõe o todo para poder reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e, portan-to, compreender a coisa37.

O conhecimento se realiza como separa-ção de fenômeno e essência, do que é secundá-rio e do que é essencial, já que só através dessa separação se pode mostrar a sua coerência in-terna, e com isso, o caráter específico da coisa. Neste processo, o secundário não é deixado de lado como irreal ou menos real, mas revela seu caráter fenomênico ou secundário mediante a demonstração de sua verdade na essência da coisa. Esta decomposição do todo, que é ele-mento constitutivo do conhecimento filosófico - com efeito, sem decomposição não há conheci-mento - demonstra uma estrutura análoga à do agir humano: também a ação se baseia na de-composição do todo.

O próprio fato de que o pensamento se move naturalmente numa direção oposta à natureza da realidade, que isola e “mata”, e de que neste movimento natural se assenta a ten-dência à abstração, não constitui uma particu-laridade imanente do pensamento mas emana de sua função prática. Todo agir é “unilateral”38,

já que visa a um fim determinado e, portan-to, isola alguns momentos da realidade como

37 Alguns filósofos (por ex. Granqer, L’ancienne et la nouvelle éco-nomie, “Esprit”, 1956, pág. 5515) atribuem apenas a Hegel o “mé-todo da abstração” e “do conceito”. Na realidade este é o único ca-minho da filosofia para chegar à estrutura da coisa e, portanto, à compreensão da coisa.

38 Kosik, Karel - Dialética do Concreto, 4ª ed., Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1976. No plano desta “unilateralidade” prática, Hegel e Go-ethe se colocam contra a universalidade fictícia dos românticos.

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essenciais àquela ação, desprezando outros, temporariamente. Através deste agir espontâ-neo, que evidencia determinados momentos importantes para a consecução de determina-do objetivo, o pensamento cinde a realidade única, penetra nela e a “avalia”.

O impulso espontâneo da práxis e do pen-samento para isolar os fenôme-nos, para cindir a realidade no que é essencial e no que é se-cundário, vem sempre acompanhado de uma igualmente espontânea percepção do todo, na qual e da qual são isolados alguns aspectos, embora para a consciência ingênua esta per-cepção seja muito menos evidente e muitas ve-zes mais imatura. O “horizonte” - obscuramen-te intuído - de uma “realidade indeterminada” como todo constitui o pano de fundo inevitável de cada ação e cada pensamento, embora ele seja inconsciente para a consciência ingênua.

Os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem espontaneamen-te no pensamento comum como realidade (a realidade mesma) não porque sejam os mais superficiais e mais próximos do conhecimento sensorial, mas porque o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana. A práxis utilitária cotidiana cria “o pensamento comum” - em que são captados tanto a fami-liaridade com as coisas e o aspecto superfi-cial das coisas quanto a técnica de tratamento das coisas - como forma de seu movimento e de sua existência. O pensamento comum é a forma ideológica do agir humano de todos os dias. Todavia, o mundo que se manifesta ao ho-mem na práxis fetichizada, no tráfico e na ma-nipulação, não é o mundo real, embora tenha a “consistência” e a “validez” do mundo real: é “o

mundo da aparência” (Marx). A representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: é a projeção, na cons-ciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas.

A distinção entre represen-tação e conceito, entre o mundo da aparência e o mundo da re-alidade, entre a práxis utilitária

cotidiana dos homens e a práxis revolucionária da humanidade ou, numa palavra, a “Cisão do único”, é o modo pelo qual o pensamento cap-ta a “coisa em si”. A dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a “coisa em si” e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade. Por isso, é o oposto da sistematização doutri-nária ou da romantização das representações comuns. O pensamento que quer conhecer adequadamente a realidade, que não se con-tenta com os esquemas abstratos da própria realidade, nem com suas simples e também abstratas representações, tem de destruir a aparente independência do mundo dos conta-tos imediatos de cada dia. O pensamento que destrói a pseudoconcreticidade para atingir a concreticidade é ao mesmo tempo um proces-so no curso do qual sob o mundo da aparência se desvenda o mundo real; por trás da aparên-cia externa do fenômeno se desvenda a lei do fenômeno; por trás do movimento visível, o movimento real interno; por trás do fenômeno, a essência39 O que confere a estes fenômenos

39 O Capital, de Marx, é construído metodologicamente so-bre a distinção entre falsa consciência e compreensão real da coisa, de modo que as categorias principais da compreensão conceitual da realidade investigada se apresentam ao.s pares: fenômeno - essência

A dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a “coisa em si” e sistema-ticamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade.

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o caráter de pseudoconcreticidade não é a sua existência por si mesma, mas a independência com que ela se manifesta. A destruição da pseu-doconcreticidade - que o pensamento dialéti-co tem de efetuar - não nega a existência ou a objetividade daqueles fenômenos mas destrói a sua pretensa independência, demonstrando o seu caráter mediato e apresentando, contra a sua pretensa independência, prova do seu ca-ráter derivado.

A dialética não considera os produtos fixados, as confi-gurações e os ob-jetos, todo o con-junto do mundo material reificado, como algo origi-nário e indepen-dente. Do mesmo modo como assim não considera o mundo das representações e do pensamento comum, não os aceita sob o seu aspecto imediato: submete-os a um exa-me em que as formas reificadas do mundo ob-jetivo e ideal se diluem, perdem a sua fixidez, naturalidade e pretensa originalidade para se mostrarem como fenômenos derivados e me-diatos, como sedimentos e produtos da práxis social da humanidade40.

mundo da aparência - mundo realaparência externa dos fenômenos - lei dos fenômenosexistência positiva - núcleo, interno, essencial, ocultomovimento visível - movimento real internorepresentação - conceitofalsa consciência - consciência realsistematização doutrinária das representações (“ ideologia”) - teo-ria e ciência

40 “O marxismo é um esforço para ler, por trás da pseudo-imediaticidade do mundo econômico reificado as relações inter-humanas que o edificaram e se dissimularam por trás de sua obra.” A. de Walhens, L’idée phénoménoloqique d’intentionslité, ln Husserl et la pensée moderne, Haia, 1959, págs. 127-28. Esta definição de um autor não-marxista consti-tui um testemunho sintomático da problemática filosófica do Séc. XX, para a qual a destruição da pseudoconcreticidade e das mais variadas formas de alienação se transformou em uma

O pensamento acriticamente reflexivo41 co-loca imediatamente - e portanto sem uma análi-se dialética - em relação causal as representações fixadas e as condições igualmente fixadas, fazen-do passar tal forma de “pensamento bárbaro” por uma análise “materialista” das ideias. Como os ho-mens tomaram consciência de seu tempo (e, por-tanto, já o viveram, avaliaram, criticaram e com-preenderam) nas categorias da “fé do carvoeiro” e do ceticismo pequeno-bruguês”, o doutrinador supõe que se fizera a análise “científica” daquelas

ideias ao procurar para elas um equi-valente econômico, social ou de classe. Ao invés, mediante tal “materialização” efetua-se apenas uma dupla mistifi-cação: a subversão

do mundo da aparência (das ideias fixadas) tem as suas raízes na materialidade subvertida (reificada). A teoria materialista deve iniciar a análise com a

das questões essenciais. Os filósofos se distinguem, entre si, pelo modo Como a resolvem, mas a problemática comum já é dada, tanto para o positivismo (a luta de Carnap e de Neura-th contra a metafísica real ou suposta), como também para a fenomenologia e o existencialismo. É sintomático que o senti-do autêntico do método fenomenológico husserliano e toda a conexão do seu núcleo racional com a problemática do Séc. XX só tenham sido descobertos por um filósofo de orientação marxista, cuja obra constitui a primeira tentativa séria de um confronto entre a fenomenologia e a filosofia materialista. O autor define expressivamente o caráter paradoxal e rico em contrastes da destruição fenomenológica da pseudoconcreti-cidade: “O mundo da aparência havia abarcado, na linguagem ordinária, todo o sentido da noção de realidade... Desde que as aparências ai se impuseram a titulo de mundo real, sua elimi-nação se apresentava como uma colocação entre parênteses deste mundo... e a realidade autêntica à que se retomava to-mava paradoxalmente a forma da irreal idade de uma consci-ência pura.” Tran-Duc- Thao. Phénoménologie et metérielisme dialectique, Paris, 1951, págs. 223-24.

41 Hegel assim define o pensamento reflexivo: “A reflexão é a atividade que consiste em constatar as oposições e em passar de uma para outra, mas sem ressaltar a sua conexão e a uni-dade que as compenetra” Heqel, Phil. der Religion, I, pág. 126 (Werke. Val. XI). Ver também Marx, Grundrisse, pág. 10.

A teoria materialista deve iniciar a análise com a questão: por que os homens tomaram consciência de seu tempo justamente nestas categorias e qual o tempo que se mostra aos ho-mens nestas categorias?

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questão: por que os homens tomaram consciên-cia de seu tempo justamente nestas categorias e qual o tempo que se mostra aos homens nestas ca-tegorias? Fazendo esta indagação, o materialista prepara o terreno para proceder à destruição da pseudoconcreticidade tanto das ideias quanto das condições, e só depois disso pode procurar uma explicação racional para a íntima conexão entre o tempo e a idéia.

Entretanto a destruição da pseudocon-creticidade como método dialético-crítico, graças à qual o pensamento dissolve as cria-ções fetichizadas do mundo reificado e ideal, para alcançar a sua realidade, é apenas o outro lado da dialéti-ca, como método revolucionário de transformação da realidade. Para que o mundo pos-sa ser explicado “criticamente”, cumpre que a ex-plicação mesma se coloque no terreno da “prá-xis” revolucionária. Veremos mais adiante que a realidade pode ser mudada de modo revolu-cionário só porque e só na medida em que nós mesmos produzimos a realidade, e na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós. A diferença entre a realidade natural e a realidade humano-social está em que o ho-mem pode mudar e transformar a natureza; enquanto pode mudar de modo revolucionário a realidade humano-social porque ele próprio é o produtor desta última realidade.

O mundo real, oculto pela pseudocon-creticidade, apesar de nela se manifestar, não é o mundo das condições reais em oposição às condições irreais, tampouco o mundo da transcendência em oposição à ilusão subjetiva; é o mundo da práxis humana e a compreensão da realidade humano-social como unidade de produção e produto, de sujeito e objeto, de gê-nese e estrutura. O mundo real não é, portanto,

um mundo de objetos “reais” fixados, que sob o seu aspecto fetichizado levem uma existência transcendente como uma variante naturalis-ticamente entendida das ideias platônicas; ao invés, é um mundo em que as coisas, as rela-ções e os significados são considerados como produtos do homem social, e o próprio homem se revela como sujeito real do mundo social. O mundo da realidade não é uma variante secu-larizada do paraíso, de um estado já realizado e fora do tempo; é um processo no curso do qual a humanidade e o indivíduo realizam a própria verdade, operam a humanização do homem. Ao contrário do mundo da pseudoconcretici-

dade, o mundo da realidade é o mundo da realiza-ção da verdade, é o mundo em que a verdade não é

dada e predestinada, não está pronta e acaba-da, impressa de forma imutável na consciência humana: é o mundo em que a verdade devém. Por esta razão a história humana pode ser o processo da verdade e a história da verdade. A destruição da pseudoconcreticidade significa que a verdade não é nem inatingível, nem al-cançável de uma vez para sempre, mas que ela se faz; logo, se desenvolve e se realiza.

Portanto, a destruição da pseudoconcre-ticidade se efetua como: 1) crítica revolucioná-ria da práxis da humanidade, que coincide com o devenir humano do homem, com o proces-so de “humanização do homem” (A. Kolman), do qual as revoluções sociais constituem as etapas-chave; 2) pensamento dialético, que dissolve o mundo fetichizado da aparência para atingir a realidade e a “coisa em si”; 3) re-alizações da verdade e criação da realidade humana em um processo ontogenético, visto que para cada indivíduo humano o mundo da verdade é, ao mesmo tempo, uma sua criação

a realidade social dos homens se cria como união dialética de sujeito e objeto.

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própria, espiritual, como indivíduo social-his-tórico. Cada indivíduo - pessoalmente e sem que ninguém possa substituí-lo - tem de se formar uma cultura e viver a sua vida.

Não podemos, por conseguinte, consi-derar a destruição da pseudoconcreticidade como o rompimento de um biombo e o des-cobrimento de uma realidade que por trás dele se escondia, pronta e acabada, existindo independentemente da atividade do homem. A pseudoconcreticidade é justamente a exis-tência autônoma dos produtos do homem e a redução do homem ao nível da práxis utilitá-ria. A destruição da pseudoconcreticidade é o processo de criação da realidade concreta e a visão da realidade, da sua concreticidade. As correntes idealísticas absolutizaram ora o su-jeito, tratando do problema de como encarar a realidade a fim de que ‘ela fosse concreta ou bela, ora o objeto, e supuseram que a realida-de é tanto mais real quanto mais perfeitamen-te dela se expulsa o sujeito. Ao contrário delas, na destruição materialista da pseudoconcreti-cidade, a liberalização do “sujeito” (vale dizer, a visão concreta da realidade, ao invés da “intui-ção fetichista”) coincide com a liberalização do “objeto” (criação do ambiente humano como fato humano dotado de condições de trans-parente racionalidade), posto que a realidade social dos homens se cria como união dialética de sujeito e objeto.

A palavra de ordem ad fontes, que ressoa periodicamente como reação contra pseudo-concreticidade nas suas mais variadas mani-festações, assim como a regra metodológica da análise positivista - “libertar-se dos precon-ceitos” - encontram o seu fundamento e a sua justificação na destruição materialista da pseudoconcreticidade. Todavia, o próprio re-torno “às fontes” apresenta dois aspectos com-pletamente distintos. Sob o primeiro aspecto ele se apresenta como uma douta e humanis-

ticamente erudita crítica das fontes, como um exame dos arquivos e das fontes antigas, das quais cumpre deduzir a realidade autêntica. Sob o aspecto mais profundo e mais significa-tivo, que aos olhos da douta erudição se afigu-ra barbárie (como o testemunham as reações contra Shakesrpeare e Rousseau), a palavra de ordem ad fontes significa critica da civilização e da cultura; significa tentativa - romântica ou revolucionária - de descobrir por trás dos pro-dutos e das criações a atividade e operosidade produtiva, de encontrar “a autêntica realidade” do homem concreto por trás da realidade rei-ficada da cultura dominante, de desvendar o autêntico objeto histórico sob as estratifica-ções das convenções fixadas.

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Neoliberalismo e Educação: manual do usuário

Doutor em educação e professor do programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Pablo Gentili

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Neoliberalismo e educação: manual do usuário

Neste trabalho pretendo abordar criticamente algumas dimensões da configuração do discurso neoliberal no campo educacional. Começarei destacando a importância teórica e política de se com-preender o neoliberalismo como um complexo processo de construção hegemônica. Isto é, como uma estratégia de poder que se implementa sentidos articulados: por um lado, através de um conjunto razo-avelmente regular de reformas concretas no plano econômico, político, jurídico, educacional, etc. e, por ou através de uma série de estratégias culturais orientadas a impor novos diagnósticos acerca da crise e construir novos significados sociais a partir dos quais legitimar as reformas neoliberais como sendo as únicas que podem (e devem) ser aplicadas no atual contexto histórico de nossas sociedades. Tentarei mostrar de que forma esta dimensão cultural, característica de toda lógica hegemônica, foi sempre re-conhecida como um importante espaço de construção política por aqueles intelectuais conservadores que, em meados deste século, começaram a traçar as bases teóricas e conceituada do neoliberalismo enquanto alternativa de poder. Em segundo lugar, tentarei apresentar algumas considerações gerais sobre como se constrói a retórica neoliberal no campo educacional. Pretendo identificar as dimensões que unificam os discursos neoliberais para além das particularidades locais que caracterizam os diferen-tes contextos regionais onde tal retórica é aplicada. Meu objetivo será questionar a forma neoliberal de pensar e projetar a política educacional. Finalizo destacando algumas das mais evidentes consequên-cias da pedagogia da exclusão promovida pelos regimes neoliberais em nossas sociedades.

1. O neoliberalismo como construção hegemônicaExplicar o êxito do neoliberalismo (é também, é claro, traçar estratégias para sua necessária derro-

ta) é uma tarefa cuja complexidade deriva da própria natureza hegemônica desse projeto. Com efeito, o neoliberalismo expressa a dupla dinâmica que caracteriza todo processo de construção de hegemonia. Por um lado, trata-se de uma alternativa de poder extremamente vigorosa constituída por uma série de estratégias políticas, econômicas e jurídicas orientadas para encontrar uma saída dominante para a crise capitalista que se inicia ao final dos anos 60 e que se manifesta claramente já nos anos 70. Por outro lado, ela expressa e sintetiza um ambicioso projeto de reforma ideológica de nossas sociedades a construção e a difusão de um novo senso comum que fornece coerência, sentido e uma pretensa legi-timidade às propostas de reforma impulsionadas pelo bloco dominante. Se o neoliberalismo se trans-formou num verdadeiro projeto hegemônico, isto se deve ao fato de ter conseguido impor uma intensa dinâmica de mudança material e, ao mesmo tempo, uma não menos intensa dinâmica de reconstrução discursivo-ideológica da sociedade, processo derivado da enorme força persuasiva que tiveram e estão tendo os discursos, os diagnósticos e as estratégias argumentativas, a retórica, elaborada e difundida por seus principais expoentes intelectuais (num sentido gramsciano, por seus intelectuais orgânicos). O neoliberalismo deve ser compreendido na dialética existente entre tais esferas, as quais se articulam adquirindo mútua coerência.

Com frequência costumamos enfatizar a capacidade (ou a incapacidade) que o neoliberalismo possui para impor com êxito seus programas de ajuste, esquecendo a conexão existente entre tais pro-gramas e a construção desse novo senso comum a partir do qual as maiorias começam aceitar, a defen-der como próprias as receitas elaboradas pelas tecnocracias neoliberais. O êxito cultural mediante a im-

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posição de um novo discurso que explica a crise e oferece um marco geral de respostas e estratégias para sair dela - se expressa na capacidade que os neoliberais tiveram de impor suas verdades como aquelas que devem ser defendidas por qualquer pessoa medianamente sensata e responsável. Os governos neoliberais não só transformam mate-rialmente a realidade econômica, política, jurídica e social, também conseguem que esta transforma-ção seja aceita como a única saída possível (ainda que, às vezes, dolorosa) para a crise.

Desde muito cedo, os intelectuais neolibe-rais reconheceram que a construção desse novo senso comum (ou, em certo sentido, desse novo imaginário social) era um dos desafios prioritários para garantir o êxito na construção de uma ordem social regulada pelos princípios do livre-mercado e sem a interferência sempre perniciosa da inter-venção estatal. Não se tratava só de elaborar recei-tas academicamente coerentes e rigorosas, mas, acima de tudo, de conseguir que tais fórmulas fossem aceitas, reconhecidas e válidas pela socie-dade como a solução natural para antigos proble-mas estruturais.

As obras de Friedrich A. Hayek e Milton Frie-dman, dois dos mais respeitados representantes da intelligentsia neoliberal, expressa com eloqu-ência, e por diferentes motivos, esta preocupação. Seus textos de intervenção política nos permitem observar a sagacidade desses intelectuais em re-conhecer a importância política de acompanhar toda reforma econômica com uma necessária mudança nas mentalidades, na cultura dos povos.

Em seu prefácio de 1976 a The Road to Serfdom (O caminho da servidão), Hayek lamentava que as ideias defendidas naquele tex-to fundacional, editado originariamente em 1944, continuassem, trinta anos depois, mantendo ple-na vigência, embora a prédica “intervencionista e coletivista” da social-democracia gozasse de boa saúde e relativa popularidade entre as maiorias. Passadas mais de três décadas, a sociedade ainda não tinha aceito plenamente o que para Hayek era uma evidência ineludível: toda forma de in-

tervenção estatal constitui um sério risco para a liberdade individual e o caminho mais seguro para a imposição de regimes totalitários como o da Alemanha nazista e o da União Soviética comu-nista. Trinta anos depois, o desafio de O caminho da servidão continuava aberto: só quando a so-ciedade reconhece o verdadeiro desafio da liber-dade é possível evitar as armadilhas do coletivis-mo. Hayek não deixava margem a dúvidas sobre as consequências que derivavam de uma cultura mais disposta a reconhecer a necessidade da in-tervenção estatal que os méritos do livre-merca-do. Se o homem comum não afirma na sua vida cotidiana o valor da competição, se a sociedade não aceita as enormes possibilidades moderni-zadoras que o mercado oferece quando passa a atuar sem a prejudicial interferência do Estado, as consequências, defendia o intelectual austríaco - são nefastas para a própria democracia: os piores serão os primeiros, o totalitarismo aumentará e a planificação centralizada tomará conta da vida das pessoas, impedindo-lhes de expressar seus dese-jos individuais, sua vocação de melhora contínua, sua liberdade de escolher. Hitler, Stalin e Mussolini não expressavam um ocasional desvio totalitário na história dos povos europeus, eram o espelho onde deveriam mirar-se aqueles líderes políticos que ainda confiavam na suposta eficácia da plani-ficação estatal centralizada.

Poucos anos depois, Milton Friedman en-frentava um panorama menos desolador. Seu livro Free to Choose [Liberdade de Escolher], publi-cado no início dos anos oitenta, tinha vendido ra-pidamente, nos Estados Unidos, mais de 400.000 exemplares em sua edição de luxo e várias cente-nas de milhares em sua edição popular. O princi-pal expoente da Escola de Chicago se pergunta-va sobre as razões do incrível êxito este volume, sobretudo se comparado à “tímida” recepção que havia tido Capitalism and Freedom [Capitalismo e Liberdade], seu antecedente mais direto, embora publicado vinte anos antes. Por que Liberdade de Escolher tinha vendido em apenas poucas sema-nas o que Capitalismo e Liberdade vendeu duran-

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te vinte longos anos? Como explicar semelhante fato, se os dois livros abordavam a mesma pro-blemática e defendiam as mesmas ideias? O es-petacular impacto de Free to Choose, segundo o próprio Friedman, não podia ser exclusivamente atribuído à difusão alcançada pela série televisiva de mesmo nome que acompanhou o lançamen-to do livro e que o teve como protagonista. Antes disso, existia uma mudança mais profunda: a opi-nião pública havia mudado, as pessoas estavam mais receptivas à prédica insistente dos defenso-res do livre-mercado; as pessoas, agora estavam alertas para se defenderem da voracidade de um Estado disposto a monopolizar tudo, inclusive o bem mais apreciado pelo ser humano a liberdade individual. Em seu prefácio de 1982 à nova edição de Capitalism and Freedom, Milton Friedman reco-nhecia satisfeito: 411 as ideias expostas e nos dois livros ainda se acham muito distantes da corrente intelectual predominante, mas agora, pelo menos, respeitadas pela comunidade intelectual e parece que se tornaram quase comuns entre o grande pú-blico” (l985: 6), Margaret Thatcher já era Primeira Ministra da Inglaterra e Ronald Reagan, Presidente dos Estados Unidos. Helmut Khol acabara de ga-nhar as eleições na Alemanha... o neoliberalismo se transformava em uma verdadeira alternativa de poder no interior das principais potências do mundo capitalista.

Obviamente, a penetração social desses dis-cursos não foi produto do acaso nem apenas uma questão decorrente dos méritos intelectuais da-queles obstinados professores universitários. Será no contexto da intensa e progressiva crise estrutu-ral do regime de acumulação fordista que a retóri-ca neoliberal ganhará espaço político e também, é claro, densidade ideológica. Tal contexto oferece-rá a oportunidade necessária para que se produza esta confluência histórica entre um pensamento vigoroso no plano filosófico e econômico (embo-ra, até então, de escasso impacto tanto acadêmico quanto social) e a necessidade política do bloco dominante de fazer frente ao desmoronamento da fórmula keynesiana cristalizada nos Estados

de Bem-estar. A intersecção de ambas as dinâmi-cas permite compreender a força hegemônica do neoliberalismo.

Estes processos tiveram também eu impacto específico na América Latina. Com efeito, alguns países da região constituíram um verdadeiro labo-ratório de experimentação neoliberal de resulta-dos aparentemente milagrosos. A América latina, de fato, foi o cenário trágico do primeiro experi-mento político do neoliberalismo em nível mun-dial: a dita dura do general Pinochet iniciada no Chile em 1973.

Entretanto, a contribuição latino-americano ao neoliberalismo mundial não se esgotou na ex-periência chilena. Durante os anos 80, e no con-texto das incipientes democracias pós-ditatoriais, o neoliberalismo chegará ao poder, na maioria das nações da região, pela via do voto popular. Algumas experiências, inclusive, transcenderam as fronteiras como modelos “exitosos” capazes de iluminar (de forma quase universal) o caminho de uma verdadeira e profunda reforma econômica, a partir da qual garantir a estabilidade monetária e política, a partir da qual garantir uma suposta go-vernabilidade democrática. Durante a segunda metade do século XX, o neoliberalismo deixou, as-sim, de ser apenas uma simples perspectiva teóri-ca produzida em confrarias intelectuais, a orientar as decisões governamentais em grande parte do mundo capitalista, o que inclui desde as nações do Primeiro e do Terceiro Mundo até algumas das mais convulsionadas sociedades da Europa Orien-tal.

Cinco décadas de história teórica e quase vinte anos de experiência no exercício do poder permitem-nos identificar mais regularidades que, para além das especificidades locais, contribuem para a definição da natureza e do caráter dos pro-gramas de ajuste neoliberal num sentido global. Na seguinte, nosso interesse se concentrará nas regularidades apresentadas pela retórica neolibe-ral no campo educacional. Resumiremos a seguir algumas dimensões discursivas que configuram esta retórica, a partir da qual são elaboradas uma

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série de diagnósticos e, consequentemente, uma série de propostas políticas que devem, sob a perspectiva neoliberal, orientar uma profunda re-forma do sistema escolar nas sociedades contem-porâneas. Pretendo, desta forma, contribuir para a necessária tarefa de caracterizar a forma neoliberal de pensar e projetar as políticas . A possibilidade de conhecer e reconhecer a discursiva do neolibe-ralismo obviamente não é suficiente para freiar a força persuasiva de sua retórica. No entanto pode ajudar-nos a desenvolver mais e melhores estraté-gias de luta contra as intensas dinâmicas de exclu-são social promovidas por tais políticas. Pretendo aqui contribuir minimamente para esse objetivo.

Podemos nos aproximar de uma compreen-são crítica da forma neoliberal de pensar e traçar a política educacional procu-rando responder, brevemente, a qua-tro questões:

1. como enten-dem os neoliberais a crise educacional?

2. quem são, de acordo com essa perspectiva, seus culpados?

3. que estratégias definem para sair dela?4. quem deve ser consultado para encontrar

uma saída para a crise?Em primeiro lugar é necessário destacar que

na perspectiva neoliberal os sistemas educacio-nais enfrentam, hoje, uma profunda crise de efici-ência, eficácia e produtividade, mais do que uma crise de quantidade, universalização e extensão.

Para eles, o processo de expansão da escola, durante a segunda metade do século, ocorreu de forma acelerada sem que tal crescimento tenha garantido uma distribuição eficiente dos servi-ços oferecidos. A crise das instituições escolares é produto, segundo este enfoque, da expansão desordenada e “anárquica” que o sistema educa-cional vem sofrendo nos últimos anos. Trata-se fundamentalmente de uma crise de qualidade

decorrente da improdutividade que caracteriza as práticas pedagógicas e a gestão administrativa da grande maioria dos estabelecimentos escolares.

Neste sentido, a existência de mecanismos de exclusão e discriminação educacional resulta de forma clara e direta, da própria ineficácia da es-cola e da profunda incompetência daqueles que nela trabalham. Os sistemas educacionais con-temporâneos não enfrentam, sob a perspectiva neoliberal, uma crise de democratização, mas uma crise gerencial. Esta crise promove, em determina-dos contextos, certos mecanismos de “iniquidade” escolar, tais como a evasão, a repetência, o analfa-betismo funcional etc.

O objetivo político de democratizar a escola está assim subordi-nado ao reconhe-cimento de que tal tarefa depende, inexoravelmente, da realização de uma profunda refor-ma administrativa do sistema escolar orientada pela ne-cessidade de intro-

duzir mecanismos que regulem a eficiência, a pro-dutividade, a eficácia, em suma: a qualidade dos serviços educacionais.

Deste diagnóstico inicial decorre um argu-mento central na retórica construída pelas tecno-cracias neoliberais: atualmente, inclusive nos paí-ses mais pobres, não faltam escolas, faltam escolas melhores; não faltam professores, faltam profes-sores mais qualificados, não faltam recursos para financiar as políticas educacionais, ao contrário, falta uma melhor distribuição dos recursos exis-tentes. Sendo assim, transformar a escola supõe um enorme desafio gerencial: promover uma mu-dança substantiva nas práticas pedagógicas, tor-nando-as mais eficientes; reestruturar o sistema para flexibilizar a oferta educacional; promover uma mudança cultural, não menos profunda, nas estratégias de gestão (agora guiadas pelos novos

Cinco décadas de história teórica e quase vinte anos de experiência no exercício do po-der permitem-nos identificar mais regularida-des que, para além das especificidades locais, contribuem para a definição da natureza e do caráter dos programas de ajuste neoliberal num sentido global.

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conceitos de qualidade total); reformular o perfil dos professores, requalificando-os, implementar uma ampla reforma curricular, etc.

Segundo os neoliberais, esta crise se explica, em grande medida, pelo caráter estruturalmente ineficiente do Estado para gerenciar as políticas públicas. O clientelismo, a obsessão planificado-ra e os improdutivos, labirintos do burocratismo estatal explicam, sob a perspectiva neoliberal, a incapacidade que tiveram os governos para ga-rantir a democratização da educação e, ao mesmo tempo, a eficiência produtiva da escola. A educa-ção funciona mal porque foi malcriadamente pe-neirada pela política, porque foi profundamente estatizada. A ausência de um verdadeiro mercado educacional permite compreender a crise de qua-lidade que invade as instituições escolares. Cons-truir tal mercado, conforme veremos mais adiante, constitui um dos grandes desafios que as políticas neoliberais assumirão no campo educacional. Só esse mercado, cujo dinamismo e flexibilidade ex-pressam o avesso de um sistema escolar rígido e incapaz, pode promover os mecanismos funda-mentais que garantem a eficácia e a eficiência dos serviços oferecidos: a competição interna e o de-senvolvimento de um sistema de prêmios e cas-tigos com base no mérito e no esforço individual dos atores envolvidos na atividade educacional. Não existe mercado sem concorrência, sendo ela o pré-requisito fundamental para garantir aquilo que os neoliberais chamam de equidade.

A planificação centralizada e, certamente, o clientelismo que caracteriza as práticas esta-tais impedem e travam a liberdade individual de eleger, única garantia para o estabelecimento de um sistema de prêmios e castigos baseado em critérios verdadeiramente meritocráticos. Para os neoliberais, o Estado de Bem-estar e as diversas formas de populismo que conheceram nossos países têm intensificado os efeitos improdutivos que se derivam da materialização histórica destas práticas clientelistas. Ao criticar enfaticamente a interferência política na esfera social, econômica e cultural, o neoliberalismo questionar a própria

noção de direito e a concepção de igualdade que serve (ao menos teoricamente) como fundamento filosófico da existência de uma esfera de direitos sociais nas sociedades democráticas. Tal questio-namento supõe, na perspectiva neoliberal, aceitar que uma sociedade pode ser democrática sem a existência de mecanismos e critérios que promo-vem uma progressiva igualdade e que se concre-tizam na existência de um conjunto inalienável de direitos sociais e de uma série de instituições pú-blicas nas quais tais direitos se materializam.

Para os neoliberais a democracia não tem nada a ver com isso. Ela é simplesmente, um sis-tema político que deve permitir aos indivíduos desenvolver sua inesgotável capacidade de livre escolha na única esfera que garante e potencializa a referida capacidade individual: o mercado. A cri-se social se deriva, fundamentalmente, de que os sistemas institucionais dependentes da esfera do Estado (da política) não atuam eles mesmos como mercados. Isto ocorre, segundo a perspectiva neo-liberal, no campo da saúde, da previdência, das políticas de emprego e também, é claro, da edu-cação.

De certa forma, a crise é produto da difusão (excessiva, aos olhos de certos neoliberais atentos) da noção de cidadania. Para eles, o conceito de ci-dadania em que se baseia a concepção universal e universalizante dos direitos humanos (políticos, sociais, econômicos, culturais etc.) tem gerado um conjunto de falsas promessas que orientaram ações coletivas e individuais caracterizadas pela improdutividade e pela falta de reconhecimento social no valor individual da competição.

Com efeito, como já tentei demonstrar em outros trabalhos, a grande operação estratégica do neoliberalismo consiste em transferir a educa-ção da esfera da política para a esfera do mercado questionando assim seu caráter de direito e redu-zindo-a a sua condição de propriedade. É neste quadro que se reconceitualiza a noção de cidada-nia, através de uma revalorização da ação do indi-víduo enquanto proprietário, enquanto indivíduo que luta para conquistar (comprar) propriedades-

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mercadorias diversa índole, sendo a educação uma delas. O modelo de homem neoliberal é o cidadão privatizado o entrepreneur, o consumidor.

2. Os culpadosSendo assim, é relativamente fácil avançar

na resposta à nossa segunda pergunta: quem são os culpados pela crise educacional? Existem, desta perspectiva alguns responsáveis diretos e outros indiretos. Entre os primeiros se encontram, obviamente, o modelo de Estado assistencialista e uma das configurações institucionais que o tem caracterizado: os sindicatos. A existência de fortes sindicatos nacionais e organizados em função de grandes setores de atividade, os quais proclamam a defesa de um interesse geral baseado na neces-sidade de construir e expandir a esfera dos direitos sociais, constitui, na perspectiva neoliberal, uma barreira intransponí-vel para a possibili-dade de desenvolver os já mencionados mecanismos de com-petição individual que garantem o pro-gresso social. Nesse sentido os principais responsáveis pela crise educacional se encontram os próprios sindicatos de professores e todas aquelas organizações que defendem o di-reito igualitário a uma escola pública de qualida-de. Entretanto, semelhante argumento apresenta um problema evidente. Com efeito, se o Estado e os sindicatos são os principais responsáveis pela crise, deveria supor-se que a simples redução do primeiro à sua mínima expressão e a desaparição definitiva dos segundos constituem uma garantia mais do que suficiente para superar a crise atual das instituições educacionais. Da perspectiva neolibe-ral isso é o menos em parte, efetivamente assim. Porém, mesmo quando os neoliberais chegam o poder e desenvolvem (muitas vezes com êxito) sua implacável desarticulação dos mecanismos

de intervenção do Estado, e sua não menos impla-cável fragmentação das organizações sociais, nem sempre a crise educacional se soluciona.

Na perspectiva neoliberal, isto acontece porque a crise educacional não se reduz apenas à existência de um certo modelo de Estado, nem ao caráter supostamente corporativo das entidades sindicais. O problema é mais complexo: os indiví-duos são também culpados pela crise. E é culpa-da na medida em que as pessoas ajeitaram como natural e inevitável o status quo estabelecido por aquele sistema improdutivo de intervenção esta-tal. Os pobres são culpados pela pobreza; os de-sempregados pelo desemprego; os corruptos pela corrupção; os faceados pelas violência urbana; os sem-terra pela violência no campo; os pais pelo rendimento escolar de seus filhos; os professores pela péssima qualidade dos serviços educacio-

nais. O neoliberalis-mo privatiza tudo, inclusive também o êxito e o fracasso so-cial. Ambos passam a ser considerados va-riáveis dependentes de um conjunto de opções individuais através das quais as pessoas jogam dia a

dia seu destino, como num jogo de baccarat. Se a maioria dos indivíduos é responsável por um destino não muito gratificante é porque não sou-beram reconhecer as vantagens que oferecem o mérito e o esforço individuais através dos quais se triunfa na vida. É preciso competir, e uma socie-dade moderna é aquela na qual só os melhores triunfam. Dito de maneira simples: a escola fun-ciona mal porque as pessoas não reconhecem o valor do conhecimento; os professores trabalham pouco e não se atualizam, são preguiçosos; os alu-nos fingem que estudam quando, na realidade, perdem tempo, etc.

Trata-se, segundo os neoliberais, de um problema cultural provocado pela ideologia dos

a crise educacional não se reduz apenas à existência de um certo modelo de Estado, nem ao caráter supostamente corporativo das entidades sindicais. O problema é mais complexo: os indivíduos são também culpa-dos pela crise.

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direitos sociais e a falsa promessa de que uma su-posta condição de cidadania nos coloca a todos em igualdade de condições para exigir o que só deveria ser outorgado àqueles que (graças ao mé-rito e ao esforço individual) se consagram como consumidores empreendedores.

A lógica competitiva promovida por um sistema de prêmios e castigos com base em tais critérios meritocráticos cria as condições culturais que facilitam uma profunda mudança institucio-nal voltada para a Configuração de um verdadeiro mercado educacional. Superar a crise implica, en-tão, o desafio de traçar as estratégias mais eficien-tes a partir das quais é possível construir tal mer-cado. Passemos a seguir para a terceira questão.

3. As estratégiasAs políticas educacionais implementadas

pelas administrações neoliberais permitem reco-nhecer uma série de regularidades que, para além das especificidades locais, caracterizam e unificam as estratégias de reforma escolar levadas a cabo por esses governos. Poderíamos dizer que existe um consenso estratégico entre os, intelectuais con-servadores sobre como e com que receitas enfren-tar a crise educacional. Obviamente, tal consenso decorre da formulação de um diagnóstico comum partir do qual é possível explicar e descrever os mo-tivos que originaram a crise e, ao mesmo tempo, de uma identificação também comum sobre os supostos responsáveis por essa crise. A experiên-cia internacional parece indicar a existência de um Consenso de Washington, também no plano de reforma educacional. Na construção desse con-senso desempenharam um papel central as agên-cias internacionais, em especial, o Banco Mundial e, mais recentemente, uma série de intelectuais transnacionalizados (os experts) que, assumindo um papel pretensamente evangelizador, percor-rem o mundo vendendo seus papers pré-fabri-cados a quem mais lhes oferecer. Retornaremos a esses mais adiante.

Essas regularidades se expressam em uma série de objetivos que articulam e dão coerência

às reformas educacionais implementadas pelos governos neoliberais:

a) por um lado, a necessidade de estabelecer mecanismos de controle e avaliação da qualidade dos serviços educacionais (na ampla esfera dos sistemas e, de maneira específica, no interior das próprias instituições escolares).

b) por outro, a necessidade de articular e su-bordinar produção educacional às necessidades estabelecidas pelo mercado de trabalho.

O primeiro objetivo promove e, de certa forma, garante a materialização dos citados prin-cípios meritocráticos competitivos. O segundo dá sentido e estabelece o rumo (o horizonte) das po-líticas educacionais, ao mesmo tempo que permi-te estabelecer critérios para avaliar a pertinência das propostas de reforma escolar. É o mercado de trabalho que emite os sinais que permitem orien-tar as decisões em matéria de política educacio-nal. É a avaliação das instituições escolares e o es-tabelecimento de rigorosos critérios de qualidade o que permite dinamizar o sistema através de uma lógica de prêmios e castigos que estimulam a pro-dutividade e a eficiência no sentido anteriormen-te destacado.

Não vamos desenvolver aqui as característi-cas e o conteúdo que assumem essas estratégias de reforma. No entanto, é importante especificar brevemente duas questões relevantes vincula-das a tais objetivos. O neoliberalismo formula um conceito específico de qualidade, decorrente das práticas empresariais que é transferido, sem me-diações, para o campo educacional. As instituições escolares devem ser pensadas e avaliadas (isto é, devem julgados seus resultados), como se fossem em presas Produtivas. Produz-se nelas um tipo es-pecífico de mercadoria (o conhecimento, o aluno escolarizado, o currículo) e, consequentemente, suas práticas devem estar submetidas aos mesmos critérios de avaliação que se aplicam em toda em-presa dinâmica, eficiente e flexível. Se os sistemas de Total Quality Control (TQC) têm demonstrado um êxito comprovado no mundo dos negócios, deverão produzir os mesmos efeitos produtivos

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no campo educacional.Por outro lado, é importante destacar que

quando os neoliberais enfatizam que a educação deve estar subordinada às necessidades do mer-cado de trabalho, estão se referindo a uma ques-tão muito específica: a urgência de que o sistema educacional se ajuste às demandas do mundo dos empregos. Isto não significa que a função social da educação seja garantir esse empregos e, me-nos ainda, criar fontes de trabalho. Pelo contrário, o sistema educacional deve promover o que os neoliberais chamam de empregabilidade.

Isto é, a capacidade flexível de adaptação in-dividual às demandas do mercado de trabalho. A função “social” da educação esgota-se neste pon-to. Ela encontra o seu preciso limite no exato mo-mento em que o indivíduo se lança ao mercado para lutar por um emprego. A educação deve ape-nas oferecer essa ferra-menta necessária para competir nesse merca-do. O restante depen-de das pessoas. Como no jogo de baccarat do qual nos fala Friedman, nada está aqui deter-minado de antemão, embora saibamos, que alguns triunfarão e outros estarão condenados ao fracasso.

Uma dinâmica aparentemente paradoxal caracteriza a estratégias de reforma educacional promovidas pelos governos neoliberais: as lógi-cas articuladas de descentralização centralizante e de centralização-descentralizada. De fato por um lado, as estratégias neoliberais contra a crise edu-cacional se configuram como uma clara resposta descentralizadora diante dos supostos perigos do planejamento estatal e dos efeitos improdu-tivos das burocracias governamental e sindicais. Transferem-se as instituições escolares da jurisdi-ção federal para a estadual e desta para a esfera municipal: municipaliza-se o sistema de ensino. Propõe-se para níveis cada vez mais micro (inclu-sive a própria escola), evitando-se, assim, interfe-

rência “perniciosa” do centralismo governamen-tal; desarticulam-se os mecanismos unificados de negociação com organizações dos trabalhadores da educação (dinâmica que tende a questionar a própria necessidade das entidades sindicais); flexi-bilizam-se as formas de contratação e retribuições salariais dos docentes, etc.

Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, os governos neoliberais centralizam certas funções, as quais não são transferidas aos municípios, aos governos estaduais nem, muito menos, aos pró-prios professores ou à comunidade:

a) a necessidade de desenvolver sistemas nacionais de avaliação dos sistemas educacionais (basicamente provas de rendimento aplicadas à população estudantil);

b) a necessidade de desenhar e desenvolver reformas curriculares a partir das quais estabele-

cer os parâmetros e conteúdos básicos de um Currículo Nacional;

c) associada à questão anterior a ne-cessidade de desenvol-ver estratégias de for-mação de professores centralizadas nacional-

mente e que permitam atualização dos docentes segundo o plano curricular estabelecido na citada reforma.

O Estado neoliberal é mínimo quando deve financiar a escola pública e máximo quando defi-ne de forma centralizada o conhecimento oficial que deve circular pelos estabelecimentos educa-cionais, quando estabelece mecanismos verticali-zados e antidemocráticos de avaliação do sistema e quando retira autonomia pedagógica às institui-ções e aos atores coletivos da escola, entre eles, principalmente, aos professores. Centralização e descentralização são as duas faces de uma mesma moeda: a dinâmica autoritária que caracteriza as reformas educacionais implementadas pelos go-vernos neoliberais.

Para compreender um pouco melhor a na-

O neoliberalismo formula um con-ceito específico de qualidade, decorrente das práticas empresariais é transferido, sem mediações, para o campo educacio-nal.

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tureza da mudança institucional promovida pelo neoliberalismo nos âmbitos escolares, farei um pequeno parêntese. Estabelecerei, a título ilus-trativo, uma analogia entre as funções atribuídas às instituições educacionais e a lógica que regu-la o funcionamento dos fast foods nas modernas sociedades de mercado. Esta comparação poderá nos permitir avançar na caracterização de um pro-cesso que denominaremos aqui mcdonaldização da escola e que, na minha perspectiva, sintetiza de forma eloquente o sentido assumido pela reforma neoliberal levada a cabo nos âmbitos educacio-nais.

3. 1. A mcdonaldização da escolaOs processos de mcdonaldização têm sido

destacados por alguns autores para referir-se à transferência dos princípios que regulam a lógica de funcionamento dos fast foods a espaços institu-cionais cada vez mais amplos na vida social do ca-pitalismo contemporâneo. A mcdonaldização da escola, processo que se concretiza em diferentes e articulados planos (alguns mais gerais e outros mais específicos), constitui uma metáfora apro-priada para caracterizar as formas dominantes de reestruturação educacional propostas pelas admi-nistrações neoliberais.

Na ofensiva antidemocrática e excludente promovida pelo ambicioso programa de reformas estruturais impulsionado pelo neoliberalismo, as instituições educacionais tendem a ser pensadas e reestruturadas sob o modelo de certos padrões produtivistas e empresariais.

Já temos enfatizado que os neoliberais defi-nem um conjunto de estratégias dirigidas a trans-ferir a educação da esfera dos direitos sociais à esfera do mercado. A ausência de um verdadeiro mercado educacional (isto é, a ausência de meca-nismos de regulação mercantil que configurem as bases de um mercado escolar) explica a crise de produtividade da escola. Para os neoliberais, o reconhecimento desse fato permite orientar uma saída estratégica mediante a qual é possível con-quistar, sem “falsas promessas”, uma educação de qualidade e vinculada às necessidades do mundo

moderno: as instituições escolares devem funcio-nar como empresas produtoras de serviços educa-cionais. A interferência estatal não pode questio-nar o direito de livre escolha que os consumidores de educação devem realizar no mercado escolar. Apenas um conglomerado de instituições com es-sas características pode obter níveis de eficiência baseados na competição e no mérito individual. Os McDonald’s constituem um bom exemplo de organização produtiva com tais atributos e, nes-se sentido, representam um bom modelo orga-nizacional para a modernização escolar. Vejamos algumas das possíveis coincidências entre ambas as esferas. Em primeiro lugar, os fast foods, e as es-colas têm um ponto básico em comum. Ambos existem para dar conta de duas necessidades fun-damentais nas sociedades modernas: comer e ser socializado escolarmente. Embora a primeira seja uma necessidade tão antiga quanto a própria Hu-manidade e a segunda nem tanto, não existiria, aparentemente, nenhuma originalidade nas fun-ções que atualmente são cumpridas tanto pelos McDonald’s quanto pelas escolas. Entretanto, aqui, como na produção de toda mercadoria, o impor-tante não é apenas a coisa produzida ( o hambúr-guer ou o conhecimento oficial), mas a forma his-tórica que adquire a produção desses processos, quer se trate da indústria da comida rápida, quer se trate da indústria escolar. Isto é, o que unifica os McDonalds e a utopia educacional dos homens de negócios é que, em ambos, a mercadoria ofereci-da deve ser produzida de forma rápida e de acordo com certas e rigorosas normas de controle da efi-ciência e da produtividade. O modelo McDonald’s tem demonstrado, graças à universalização do hambúrguer, uma enorme capacidade para ter sucesso no mercado da alimentação “rápida” (se é que o termo “alimentação” pode ser aplicado nes-se caso). A escola, pelo contrário, no que se refe-re a suas funções educacionais, não tem sido tão bem sucedida, se avaliada sob a ótica empresarial defendida pelos neoliberais. Os princípios que re-gulam a prática cotidiana dos McDonald’s, em to-das as cidades do planeta, bem que poderiam ser

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aplicados às instituições escolares que pretendem percorrer a trilha da excelência: “qualidade, servi-ço, limpeza e preço”. A rigor na perspectiva dos ho-mens de negócios, esses princípios devem regular toda prática produtiva moderna. O próprio funda-dor dessa cadeia de restaurantes, Ray Kroc, tem dito, sem falsa modéstia: “se me tivessem dado um tijolo cada vez que repeti essas palavras, creio que teria podido construir uma ponte sobre o Oceano Atlântico” (Peter & Waterman, 1984: 170). A escola, pensada e projetada como uma instituição presta-dora de serviços, deve adotar esses princípios de demonstrada eficácia para obter certa liderança em qualquer mercado.

Esse aspecto de caráter geral se vincula a outra coincidência (ou melhor, a outra lição) que os McDonald’s oferecem às instituições educacio-nais. De forma bastante simples, podemos dizer que os fast foods surgiram para responder a uma demanda da sociedade moderna pós-industrial: as pessoas correm muito; estão, em grande par-te do dia, fora de casa; e têm pouco tempo para comer. Entre os fast foods realmente existentes, o McDonald’s adquiriu liderança mundial, aprovei-tando-se daquilo que na terminologia empresa-rial se denomina “vantagens comparativas”. Uma grande capacidade administrativa permitiu que essa empresa conquistasse um importante ni-cho no mercado da comida rápida. Algumas das correntes dominantes entre as perspectivas aca-dêmicas dos homens de negócios enfatizam que a capacidade competitiva de uma empresa (e inclusive de uma nação) se define por seu dina-mismo e flexibilidade para descobrir e ocupar de-terminados segmentos (ou nichos) que se abrem à competição empresarial. Assim, os mercados expressam tendências e necessidades hetero-gêneas. Reconhecer tal diversidade faz parte da habilidade empresarial daqueles que conduzem as grandes corporações conseguem sobreviver à intensa competição inter-empresarial. O que é tudo isso tem a ver com a educação? A resposta é simples: se o sistema escolar tem que se configu-rar como mercado educacional, as escolas devem

definir estratégias competitivas para atuar em tais mercados, conquistando nichos que respondam de forma específica à diversidade existente nas demandas de consumo por educação. Mcdonaldi-zar, a escola supõe pensá-la como uma instituição flexível que deve reagir aos estímulos (os sinais) emitidos por um mercado educacional altamente competitivo.

Entretanto, alguém, provavelmente intriga-do, poderia perguntar qual é a razão que explica que o mercado educacional deva ser necessaria-mente competitivo. Os neoliberais respondem a essa questão também de forma simples: assim como as pessoas precisam comer hambúrgue-res porque o trabalho (e, claro, a mídia) o exige, também precisam educar-se porque o conheci-mento se transformou na chave de acesso à nova Sociedade do saber. Na perspectiva dos homens de negócios, nesse novo modelo de sociedade, a escola deve ter por função a transmissão de certas competências e habilidades necessárias para que as pessoas atuem competitivamente num merca-do de trabalho altamente seletivo e cada vez mais restrito. A educação escolar deve garantir as fun-ções de classificação e hierarquização dos postu-lantes aos futuros empregos (ou aos empregos do futuro). Para os neoliberais, nisso reside a “função social da escola”. Semelhante “desafio” só pode ter êxito num mercado educacional que seja, ele pró-prio, uma instância de seleção meritocrática, em suma, um espaço altamente competitivo.

A necessidade de permitir a competição inter-institucional (escola versus escola) explica a ênfase neoliberal no desenvolvimento de meca-nismos de desregulamentação, flexibilização da oferta e livre escolha dos consumidores na esfera educacional. Entretanto, essa questão não esgota a reforma competitiva que os neoliberais preten-dem impor na esfera escolar. Nessa perspectiva, a competição deve caracterizar a própria lógica interna das instituições educacionais. A possibili-dade de construção de um mercado escolar com-petitivo depende, entre outros fatores, da difusão de rigorosos critérios de competição interna que

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regulem as práticas e as relações cotidianas da es-cola. Algo similar ocorre nos McDonald’s.

De fato, os sistemas de controle e promoção de pessoal no McDonald’s são conhecidos (e em muitas ocasiões tomados como modelos) pelo uso eficaz de um sistema de incentivos que pro-move uma dura e implacável competição interna entre os trabalhadores bem como a difusão de um sistema de prêmios e castigos dirigidos a motivar o “pertencimento” e a adesão incondicional à em-presa. Esses mecanismos estão sendo cada vez mais difundidos nos âmbitos escolares até mesmo quando as normas jurídicas vigentes não o permi-tem. Quem mais produz mais ganha. E só é pos-sível saber quem mais produz quando se avaliam rigorosamente os atores envolvidos no processo pedagógico(sejam professores, alunos, funcio-nários etc.). Os prêmios à produtividade são, tal como no McDonald’s, tanto meramente simbóli-cos (quadro de honra, empregado do mês), quan-to materiais (aumento salarial, prêmios em espé-cie, promoção de categoria). A educação deve ser pensada como um grande campeonato. Nela, os triunfadores sabem que o primeiro desafio é assumirem-se como ganhadores. “Tu pertences à equipe dos campeões!”, costuma repetir orgulho-so Ray Kroe em suas habituais arengas à sua tropa de despachantes de hambúrgueres e batatas fri-tas baratas. Espírito de luta, de auto-superação, de confiança no valor do mérito, certeza de saber que quem está ao nosso lado só atrapalha nosso cami-nho ao sucesso. Nada mais apreciado na escola do que o título de Mestre do Ano. Nada mais cobiça-do no McDonald’s do que o prêmio All American Hamburguer-Maker.

A pedagogia da Qualidade Total se inscreve nessa forma particular de compreender os pro-cessos educacionais, não sendo mais do que uma tentativa de transferir para a esfera escolar os mé-todos e as estratégias de controle de qualidade próprios do campo produtivo.

O processo de mcdonaldização da escola também tem seu efeito no campo do currículo e na formação de professores. Quem se aventurar

a estudar com mais detalhes os fast foods(tarefa que constituiria uma grande contribuição para compreender melhor nossas escolas) poderá en-contrar uma surpreendente similitude entre os mecanismos de planejamento dos cardápios nes-se tipo de negócio e as estratégias neo-tecnicistas de reforma curricular. O caráter assumido pelo pla-nejamento dos currículos nacionais, no contexto da reforma educacional promovida pelos regimes neoliberais poderia muito bem ser entendido como um processo de macdonaldização do co-nhecimento escolar.

Ao mesmo tempo, no contexto desses pro-cessos de modernização conservadora, as políti-cas de formação de docentes vão se configurando como pacotes fechados de treinamento (defini-dos sempre por equipes de técnicos, experts e até consultores de empresas!) planejados de forma centralizada, sem participação dos grupos de pro-fessores envolvidos no processo de formação, e apresentando uma alta transferibilidade (ou seja, com grande potencial para serem aplicados em diferentes contextos geográficos e com diferen-tes populações). É essa, precisamente, uma das características que têm facilitado a expansão in-ternacional de uma empresa como o McDonald’s. Esse tipo de empresa tem tido um papel funda-mental no desenvolvimento daquilo que poderí-amos chamar aqui “pedagogia fast food”: sistemas de treinamento rápido com grande poder disci-plinador e altamente centralizados em seu pla-nejamento e aplicação. A Hamburguer University de McDonald’s em Chicago e sua competidora, a Harvard dos preparadores de batatas fritas, a Bur-ger King University, na perspectiva dos homens de negócios, constituem invejáveis modelos de insti-tuições educacionais de novo tipo. Assim, inclusi-ve, aparecem tios manuais que estimulam o êxito empresarial, enfatizando o novo valor e a centra-lidade do conhecimento na sociedade do futuro. Formar um professor não costuma ser considera-da uma tarefa mais complexa do que a de treinar um preparador de Hamburguer.

Por último, a mcdonaldização do campo

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educacional se expressa através das cada vez mais freqüentes formas de terceirização (pedagógica e não-pedagógica) que tendem a caracterizar o tra-balho escolar nos programas de reforma propostos (e impostos) pelo neoliberalismo. Vejamos. Uma loja do McDonald’s (suponhamos, em Moscou) é sempre um espaço de integração de diversos trabalhos parciais realizados em outras unidades produtivas. De certa forma, o Big Mac é a síntese “dialética de uma série de contribuições terceiri-zadas: por um lado, existe quem produz a carne, quem fabrica o pão, quem fornece o ketchup e, por outro, quem cultiva os pepinos. O McDonald’s da Praça Vermelha simplesmente articula com a mesma eficiência e limpeza que o McDonald’s da Quinta Avenida( em Nova York) esses insumos, os quais, todos juntos, dão origem a esse grande invento da cultura americana que são duas pequenas bolas achatadas de carne moída cujo supor-te são dois pedaços de pão. O Big Mac só pode ser compreen-dido, a partir da pers-pectiva de um expert na indústria de ham-búrgueres, como o resultado de uma criativa pla-nificação centralizada e uma não menos criativa descentralização das funções exigidas para a ela-boração de um produto cujos insumos são for-necidos por um número variável de produtores. A aplicação de uma série de rígidos controles de qualidade (também centralizados) garante uma alta produtividade, além da redução dos custos de produção e, em consequencia, um aumento da rentabilidade obtida por esses restaurantes. Essa racionalidade se aplica também ao campo educa-cional . A lógica do lucro e da eficiência penetra as administrações neoliberais. É nesse contexto que a terceirização do trabalho educacional constitui uma forma de mcdonaldizar a própria escola.

Alguém de espírito certamente apocalíptico

poderia dizer, com razão, que a mcdonaldização da escola não se aplica a um dos atributos que tem caracterizado o notório crescimento dos fast foods nesta segunda metade do século X: sua pro-gressiva universalização. Analisando as condições atuais do desenvolvimento capitalista, podería-mos suspeitar, com efeito, que os McDonald’s têm melhor futuro o que a escola pública. Provavel-mente, as vantagens comparativas dos fast foods permitirão que, em muitos de nossos países, os hambúrgueres e as batatas fritas se democratizem mais rapidamente do que o conhecimento. Entre-tanto, este é um problema de caráter especulativo que excede nossas possibilidades de reflexão? ao menos por enquanto.

O processo de mcdonaldização da escola deve ser considerado de forma “relacional”. Não

se trata de um fato isolado e arbitrário. Pelo contrário, ele só pode ser explicado no contexto do pro-fundo processo de reestruturação políti-ca, econômica, jurídi-ca e também, é claro, educacional que está ocorrendo no capi-

talismo de fim de século. A crise do fordismo e a configuração de um novo regime de acumulação pós-fordista permite entender. O caráter e a natu-reza das reformas impulsionadas pelos regimes neoliberais na esfera escolar. Na economia mundo capitalista se articulam novos mapas institucio-nais cuja geografia do benefício produz e reproduz novas e velhas formas de exclusão e desintegra-ção social.

A escola não é alheia a esses processos; sua própria estrutura e funcionalidade é colocada em questionamento por tais dinâmicas. O processo mcdonaldização expressa essa mudança institu-cional dirigida a conformar as bases de uma es-cola toyotizada, uma escola de alto desempenho, a administrada pelos novos líderes gerenciais, os

A pedagogia da Qualidade Total se ins-creve nessa forma particular de compreen-der os processos educacionais, não sendo mais do que uma tentativa de transferir para a esfera escolar os métodos e as estratégias de controle de qualidade próprios do campo produtivo.

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quais planejam formas de aprendizagem de novas habilidades exigidas por um local de trabalho re-estrurado, formas que sejam “concretas”, “práticas”, ligadas à vida real e organizadas através de equi-pes de trabalho (Wexler- 1995: 162).

De qualquer forma, é importante destacar que essa nova racionalidade do aparato escolar se constrói sobre aqueles princípios que regulavam a escola taylorista. Trata-se de um processo de re-estruturação educacional onde se articulam novas e velhas dinâmicas organizacionais, onde se defi-nem novas e velhas lógicas produtivistas através das quais a reforma escolar se reduz a uma série de critérios empresariais de caráter alienante e ex-cludente.

4. Os sabichõesTendo chegado a este ponto, procuraremos

responder à nossa última pergunta: quem, na perspectiva neoliberal, deve ser consultado para poder superar a atual crise educacional? Podería-mos formular nossa pergunta de forma negativa: quem não deve ser consultado? A resposta é, em princípio, simples: os próprios culpados pela cri-se (especialmente, é claro, os sindicatos e aque-les “perdedores” que sofrem as conseqüências do infortúnio e a desgraça econômica por terem desconfiado do esforço e da perseverança merito-crática que permitem triunfar na vida, ou seja: as grandes maiorias). Defender e promover aquele velho e “improdutivo” modelo de Estado de Bem-Estar parece também não ser um bom caminho para superar a crise.

Quem, então, deve ser consultado? Quem pode nos ajudar a sair da crise? Obviamente, os exitosos: os homens de negócios. O raciocínio neoliberal é, neste aspecto, transparente: se os empresários souberam triunfar na vida (isto é, se souberam desenvolver-se com êxito no mercado) e o que está faltando em nossas escolas é justa-mente “concorrência”, quem melhor do que eles para dar-nos as “dicas” necessárias para triunfar? O sistema educacional deve converter-se ele mesmo em um mercado.... devem então ser consultados

aqueles que melhor entendem do mercado para ajudar-nos a sair da improdutividade e da inefici-ência que caracterizam as práticas escolares e que regula a lógica cotidiana das instituições educa-cionais em todos os níveis. É nesse contexto que deve ser compreendida a atitude mendicante e cí-nica dos governantes que solicitam aos empresá-rios “humanistas” a adoção de uma escola. Se cada empresário adotasse uma escola, o sistema edu-cacional melhoraria de forma quase automática graças aos recursos financeiros que os “padrinhos” distribuiriam (doariam), bem como aos princípios morais que, vinculados a uma certa filosofia da qualidade total, da cultura do trabalho e idade do esforço individual, eles difundiriam na comunida-de escolar.

No entanto, a questão não se esgota aqui. Em certo sentido, para os neoliberais, a crise en-volve um conjunto de problemas técnicos (ou seja: pedagógicos) desconhecidos pelos empresários, mas que também devem ser resolvidos de forma eficiente. Assim, sair da crise pressupõe consultar os especialistas e técnicos competentes que dis-põem do saber instrumental necessário para levar a cabo as citadas propostas de reforma: peritos em currículo, em formação de professores à distância, especialistas em tomadas de decisões com escas-sos recursos, sabichões reformadores do Estado, intelectuais competentes em redução do gasto público, doutores em eficiência e produtividade, etc. Alguém candidamente poderia perguntar-se de onde tirar tanta gente. A resposta a semelhan-te questão pode ser encontrada nos corredores dos Ministérios de educação de qualquer governo neoliberal: são os organismos internacionais (es-pecialmente o Banco Mundial) os que fornecem todo tipo de especialistas nestas matérias. Para trabalhar nestes organismos, que não são precisa-mente de beneficência e ajuda mútua, basta fazer projetos que se retro-alimentem a si mesmos e, de preferência, ter sido de esquerda na puberdade profissional.

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ConclusãoO aumento da pobreza e da exclusão condu-

zem à conformação de sociedades estruturalmen-te divididas nas quais, necessariamente, o acesso às instituições educacionais de qualidade e a per-manência nas mesmas tende a transformar-se em um privilégio do qual gozam apenas as minorias. A discriminação educacional articula-se desta for-ma com os profundos mecanismos de discrimi-nação de classe, de raça e gênero historicamente existentes em nossas sociedades. Tais processos caracterizam a dinâmica social assumida pelo ca-pitalismo contemporâneo, apesar dos mesmos se concretizarem com algumas diferenças regionais evidentes no contexto mais amplo do sistema mundial. De fato, o capitalismo avançado também tem sofrido a intensificação deste tipo de tendên-cias no seio de sociedades aparentemente imunes ao aumento da pobreza, da miséria e da exclusão.

Dois processos decorrentes das políticas neoliberais produzem também um impacto dire-to na esfera das políticas educacionais: a dificul-dade (ou, em alguns casos, a impossibilidade) de manter expandir mecanismos democráticos de governabilidade, e o aumento acelerado da vio-lência social, política e econômica contra os seto-res populares urbanos e rurais.

Por outro lado, e ao mesmo tempo, a cres-cente difusão de intensas relações de Corrupção - sendo a corrupção política apenas uma das ex-pressões mais eloquentes deste processo - tende a criar as bases materiais e culturais um tecido social marcado pelo individualismo e pela ausência de mecanismos de solidariedade coletiva. O darwinis-mo social intensifica o processo de fragmentação e de divisão estrutural produzido no interior das sociedades neoliberais. A corrupção como proble-ma que ultrapassa o âmbito da moral particular das elites políticas e econômicas, isto é, como lógi-ca cultural, constitui um fator característico deste processo de desagregação e desintegração social. Tal lógica cultural penetra capilarmente em todas as instituições principalmente nas educacionais, as quais tendem a Converter-se em promotoras e

difusoras desta nova forma de individualismo exa-cerbado.

Em suma, os governos neoliberais deixaram (e estão deixando) nossos países muito mais po-bres, mais excludentes, mais desiguais. Incremen-taram (e estão incrementando) a discriminação social, racial e sexual, reproduzindo os privilégios das minorias. Exacerbaram (e estão exacerbando) o individualismo e a competição selvagem, que-brando assim os laços de solidariedade coletiva e intensificando um processo antidemocrático de seleção “natural” onde os “melhores”” triunfam e os piores perdem. E, em nossas sociedades dualiza-das, os “melhores” acabam sendo sempre as elites que monopolizam o poder político, econômico e cultural, e os “piores”, as grandes maiorias subme-tidas a um aumento brutal das condições de po-breza e a uma violência repressiva que nega não apenas os direitos sociais, mas, principalmente, o mais elementar direito à vida.

A resposta neoliberal é simplista e engana-dora: promete mais mercado quando, na realida-de, é na própria configuração do mercado que se encontram as raízes da exclusão e da desigualda-de. É nesse mercado que a exclusão e a desigual-dade se reproduzem e se ampliam. O neoliberalis-mo nada nos diz acerca de como atuar contra as causas estruturais da pobreza; ao contrário, atua intensificando-as.

O desafio de uma luta efetiva contra as po-líticas neoliberais é enorme e complexo. A es-querda não deve ser arrastada (ou arrasada) pelo pragmatismo conformista e acomodado segundo o qual o ajuste neoliberal é, hoje, a única opção possível para a crise. Para os que atuamos no cam-po educacional, a questão é simples e iniludível: logo após o dilúvio neoliberal as nossas escolas serão muito piores do que já são agora. Não se tra-ta apenas de um problema de qualidade pedagó-gica (embora também o seja), serão piores porque serão mais excludentes.

Os neoliberais estão tendo um grande êxito em impor seus argumentos como verdades que se

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derivam da natureza dos fatos. Desarticular a apa-rentemente inquestionável nacionalidade natural do discurso neoliberal Constitui apenas um dos desafios que temos pela frente. No entanto, trata-se de um desafio do qual depende a possibilida-de de se construir uma nova hegemonia que dê sustentação material e cultural a uma sociedade plenamente democrática e igualitária.

Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. Nunca a sentença gramsciana teve tanta vigência. Nosso pessimismo da inteligência deve

permitir-nos considerar criticamente a magnitude da ofensiva neoliberal contra a educação das maio-rias. Nosso otimismo da vontade deve manter-nos ativos na luta contra um sistema de exclusão social que quebra as bases de sustentação democrática do direito à educação como pré-requisito básico para a conquista da cidadania, uma cidadania ple-na que só pode ser concretizada numa sociedade radicalmente igualitária.

(Texto tirado do livro “Escola S.A.”, Tomaz Tadeu da Silva e Pa-

blo Gentili - org.)

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APP-SINDICATO 53

O Papel do Empresariado na Educação

Claudio de Moura CastroDoutor em Economia pela Universidade Vanderbilt.Presidente do Conselho Consultivo da Faculdade Pitágoras.

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O papel do empresariado na educação

No Brasil, como no restante da América Latina, os Ministérios de Educação são fracos e vulne-

ráveis. Nem há profissionalismo e claro sentido de missão – como na Europa – e nem são capazes de

resistir a pressões políticas nas suas contratações, promoções e outras atividades.

Dai a importância de uma sociedade civil ativa, organizada e inteligente, para servir de contrapon-

to para a inércia da máquina pública e para resguardá-la das pressões do nepotismo e patrimonialismo

vindos de fora. Os segmentos modernos da nossa sociedade devem servir de anteparo, bloqueando as

forças destrutivas dos segmentos mais tradicionalistas e retrógrados.

Sem subestimar a primeira linha de defesa da educação que são os pais, devemos esperar muito

mais do nosso empresariado, pois é ele, em última análise, o consumidor da educação oferecida em

nossas escolas. Ademais, esta classe tem acesso privilegiado à informação, aos meios econômicos e aos

centros decisórios da sociedade.

Mas se esperamos uma ação decisiva do em-

presariado, isso não vai acontecer como resultado

espontâneo da sua boa vontade e motivação. A

ação organizada e efetiva depende de premedita-

ção e estratégia. É preciso entender, educação não

é o seu negócio. Para que o seu protagonismo seja

eficaz, é preciso que as boas intenções sejam tra-

duzidas em programas inteligentes.

No que segue, proponho algumas linhas de

atividades onde um esforço relativamente modes-

to pode resultar em impactos consideráveis.

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Sinalizar a importância da qualidade da educação

Ao escolher quem contratam , as empresas si-nalizam fortemente ao mercado o perfil educacional que querem. Por haverem aumentado abruptamen-te as exigências formais de escolaridade, no curso da década de 90, induziram uma grande expansão na matrícula de primeiro e segundo graus.

Mas ao mesmo tempo, ao não sinalizar exigên-cias de qualidade, por omissão, enviaram os sinais errados para as escolas e para a sociedade. É hora de corrigir a omissão. O bom exemplo foi dado pelas grandes empre-sas americanas que se reuniram e decidiram não só examinar as notas dos candidatos a empregos, mas tam-bém, dizer alto e para todos o que estavam fazendo. Isso ocorreu faz uns dez anos e, pelo que se sabe, o impacto foi muito positivo.

O Brasil está em uma posição privilegiada nes-te momento para tais políticas, pois tem dois exce-lentes exames de saída de cursos: o ENEM e o Provão. A ideia, portanto, é muito simples e repete o que foi feito nos Estados Unidos. Um grupo de empresas de primeira linha, tão grande quanto possível, anuncia-ria com todo o apoio da midia que passaria a exami-nar os escores dos alunos nesses dois testes, como um dos critérios decisivos de contratação.

Um catálogo de “best practices” em-presariais na educação.

Quando somamos tudo o que fazem pela educação as empresas brasileiras– ou suas funda-ções, duas observações vêm à mente. Em primei-ro lugar, fazem muito. Em segundo, podiam fazer ainda mais.

Qualquer empresário que se consulte co-nhece meia dúzia de iniciativas, suas ou de seus colegas. Só que no total, estamos falando de mui-tas centenas de coisas acontecendo no país. Ou

seja, coletivamente, não se sabe quase nada.Encalhamos, pois, no primeiro escolho, li-

mitando a expansão de tais iniciativas: sequer os próprios empresários tem uma visão de um qua-dro mais amplo das atividades em curso. Isto cria uma imagem pálida do esforço total e, também, priva muitos empresários de boas sugestões que podiam utilizar em suas próprias ações. De fato, não são poucos os empresários que gostariam de ajudar, mas não sabem como.

E obviamente, o idealismo inegável de mui-tos empresários fica reforçado quando há reconhecimento pú-blico do seu esforço. Ou seja, a melhor di-vulgação do que é feito provavelmente aumenta a disposição de fazer.

Há também uma outra curiosidade no impacto da divulgação. Ao tornar-se alvo de atenções públicas, uma iniciati-va desse naipe fica melhor protegida de acidentes de percurso e erosão da motivação inicial. Ao ver que o seu programa é respeitado e admirado, o empresário terá que pensar duas vezes antes de permitir que se deteriore ou seja extinto.

Já houve algumas tentativas de listar inicia-tivas das empresas na educação (por exemplo, o livro editado pela Fundação Herbert Levy e um outro feito pela Fundação xxx, para a América La-tina como um todo). Mas tais levantamentos já estão muito defasados. Há espaço para um novo esforço, mais completo e mais sistemático. É razo-ável supor que houve um aumento extraordinário no escopo e na sofisticação do que hoje fazem as empresas em prol da educação.

No bojo desse esforço, vale a pena destacar alguns deles que merecem uma avaliação mais pormenorizada. Não se trata aqui de propor ava-liações muito caras e exaustivas, mas de um olhar mais detalhado e crítico por parte de pessoas que estão habituadas a avaliar programas deste tipo.

Qualquer empresário que se consul-te conhece meia dúzia de iniciativas, suas ou de seus colegas. Só que no total, esta-mos falando de muitas centenas de coisas acontecendo no país. Ou seja, coletiva-mente, não se sabe quase nada.

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Observatório de políticas públicas em gestação

Dentre as forças do empresariado moderno, há que se destacar a relativa facilidade com que podem identificar e mobilizar as melhores cabeças do país. Igualmente, têm um acesso privilegiado à mídia. Ainda mais importante, historicamente, nosso empresariado tem tido um protagonismo político muito forte, sobretudo em assuntos do seu interesse direto. E não é ocioso lembrar, a edu-cação é um dos assuntos mais importantes para a saúde das nossas empresas.

Diante desse quadro de um grande poten-cial de advocacia de causas educativas, pode fazer sentido criar um observatório para seguir as políti-cas educativas. Em princípio, seriam políticas fede-rais, mas nada impede iniciativas mais locais. Não podemos esperar que os empresários tenham posições tecnicamente bem fundamentadas so-bre cada um dos temas candentes que aparece na educação. Todavia, a sua grande possibilidade de mobilização das melhores cabeças na área não pode ser subestimada. É relativamente fácil e pou-co dispendioso criar um pequeno grupo de mo-nitoramento do mundo da educação. Diante da iminência de políticas que possam parecer impor-tantes ou perigosas, a pequena equipe do obser-vatório consultaria – via e-mail – com um ou mais membros de um conselho de pessoas com grande experiência na área e reconhecida legitimidade.

Identificada a perspectiva de uma iniciativa importante na área – para o bem ou para o mal – os empresários seriam notificados, devendo então decidir se o assunto justifica alguma ação, indivi-dual ou concertada da sua parte. Por exemplo, há quase unanimidade por parte dos observadores mais serenos com relação aos riscos que nesse momento corre o Provão. Esse seria um assunto captado pelo observatório e submetido ao conse-lho para opinar. No caso particular, é fácil imaginar consenso dentre os membros de um tal conselho, levando a uma recomendação de que os empresá-rios devem fazer alguma coisa.

Os instrumentos de ação política são os já

bens conhecidos: E-mails, manifestações na im-prensa, audiências com tomadores de decisão e políticos, por aí afora. A diferença não está aí, mas na existência de um mecanismo de identificação de temas, onde algum tipo de ação política se jus-tifica, bem como o respaldo técnico para tomar decisões. Note-se que o conselho faz o que faz um conselho: aconselha. Não cabe a ele mais iniciati-vas ou decisões do que essa. E se as opiniões do conselho se dividem, provavelmente não estamos diante de um tema onde os empresários estariam dispostos a um esforço grande de advocacia.

A municipalização das iniciativas em prol da educação

Em grande medida, a educação de base – ainda o maior gargalo do nosso ensino – é ofereci-da no nível municipal. Os municípios são autôno-mos em praticamente todo o ciclo da educação. Coletam impostos, criam uma rede municipal, contratam professores e operam as escolas. O pa-pel do MEC e mesmo das secretarias estaduais é muito menor, limitando-se a questões normativas e de programas complementares.

Portanto, o maior impacto de alguma ação sobre o ensino do município se dá dentro do seu próprio quadro político. Esse é o elo esquecido na equação das forças a que estão sujeitas as de-cisões educativas. Sobretudo em municípios me-nores, o acesso aos centros de decisão são muito facilitados e os empresários não podem deixar de ser ouvidos.

Portanto, faz sentido pensar em uma agen-da para a ação das empresas no nível municipal. Obviamente, as grandes empresas precisam de relativamente pouco apoio para identificar pro-blemas e encontrar formas de agir. Mas em geral, nas cidades menores, as empresas tendem a ser também menores. E sobre estas, não se pode dizer o mesmo.

Portanto, faz sentido que as grandes empre-sas criem um programa de apoio às pequenas na identificação de focos privilegiados para a ação. Em outras palavras, as grandes empresas passam

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a equipar outras menores para um ativismo inte-ligente no nível municipal. Podemos pensar em duas etapas do projeto.

Uma primeira consiste na identificação dos problemas mais usuais na educação municipal, sobre os quais as empresas podem ter um papel relevante. Por exemplo, os gastos com educação, cuja contabilidade escapa aos conhecimentos do cidadão comum. Mas os contadores das empresas sabem exatamente como monitorar o cumpri-mento da lei, bem como identificar a presença de irregularidades.

A segunda etapa tem a ver com as armas de que dispões uma empresa ou grupos de empresas para agir politicamente. Mutatis mudandis, são os instrumentos mencionados no item anterior.

Ainda no nível local, há uma outra vertente que pode ser explorada – o que já foi feito com sucesso em alguns casos. Pode ser criado um mo-vimento local para que as empresas deixem de ter nos seus quadros pessoas com menos do que um primeiro grau completo. É óbvio que não estamos sugerindo que despeçam os que não atingem tal nível, mas sim que ofereçam, pela via do supleti-vo, a educação que falta para os seus funcionários. Em cidades de alto nível de escolaridade, a univer-salização do segundo grau pode ser considerada. Em Minas Gerais, em meados da década de 90 a FIEMG fez uma campanha nesta direção, parte do Pacto Educativo, com grande sucesso.

A educação dos pais como consumidores de educação

Os pais podem ter uma ação decisiva na melhoria das escolas, como demonstrado no RGS, Paraná e Minas Gerais. Mas os esforços de mobi-lização deles não chegou a ser completado, pois os pais dos alunos frequentando as escolas mais fracas são menos educados e não sabem cobrar da escola.

É possível desenvolver um roteiro ou um manual de instruções para os pais, ensinando a eles o que podem cobrar com eficácia. Por exem-plo, presença dos professores, dever para casa,

correção dos deveres e outras anifestações onde podem ter informações seguras e poderosas para pressionar as escolas.

Ao mesmo tempo, os pais precisam apren-der como ajudar. A equação é dupla: vigiar e aju-dar. Os professores precisam de apoio, de alguém que lhes diga que estão fazendo um bom trabalho e que seu esforço nem é em vão e nem passa des-percebido.

Foram feitas algumas tentativas nesta direção, mas não se chegou até o fim. Essa é uma iniciativa fácil, onde um grupo de empresas pode encomen-dar um manual e, mais adiante, providenciar a sua duplicação e disseminação.

Assim se faz o homem:

dizendo sim e dizendo não,

batendo e apanhando,

unindo-se a uns aqui, a outros acolá.

Assim se faz o homem: transformando-se:

assim e forma em nós a sua imagem,

igual à nossa, no entanto diversa.

Bertold Brecht

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Roteiro para Turmas Regionais

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AçúcarO branco açúcar que adoçará meu café

Nesta manhã de IpanemaNão foi produzido por mim

Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puroE afável ao paladar

Como beijo de moça, águaNa pele, flor

Que se dissolve na boca. Mas este açúcarNão foi feito por mim.

Este açúcar veioDa mercearia da esquina e

Tampouco o fez o Oliveira,Dono da mercearia.

Este açúcar veioDe uma usina de açúcar em Pernambuco

Ou no Estado do RioE tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era canaE veio dos canaviais extensosQue não nascem por acaso

No regaço do vale.

Em lugares distantes,Onde não há hospital,

Nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fomeAos 27 anos

Plantaram e colheram a canaQue viraria açúcar.

Em usinas escuras, homens de vida amargaE dura

Produziram este açúcarBranco e puro

Com que adoço meu café esta manhãEm Ipanema.

Ferreira Gullar

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