apostila criação para criadores

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Prof: Fábio Cardia CRIAÇÃO para CRIADORES 2009 APOSTILA DE TEXTOS COMPLEMENTARES

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Apostila do curso Criação e Inovação, ministrado por Fábio Cardia e realizado pelo Papo Criativo

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Page 1: Apostila Criação para Criadores

ÍNDICEProf: Fábio Cardia

CRIAÇÃO para CRIADORES2009

APOSTILA DE TEXTOS

COMPLEMENTARES

Page 2: Apostila Criação para Criadores

FÁBIO CARDIA

ÍNDICE

Página Título

03 e 04 Algumas palavras para quem vai cair na vida05 Faça isso ou morra!06 a 08 Criatividade 09 e 10 Revoltado ou criativo?11 a 15 Sobre gênios e loucos16 e 17 Metáforas18 e 19 Embodiement20 a 22 Deu Branco?23 a26 O Cérebro27 a 32 Os estados afetivos, Inteligência Emocional 33 Teorias Psicológicas34 e 35 O prazer36 a 41 Sistemas42 a 44 A palestra dos bispos45 a 54 A filosofia da Nova Chave55 a 62 Imagem como representação mental e visual63 a 66 Subjetividadade na recepção 67 a 69 A mensagem publicitária69 a 74 Em busca da consciência75 a 85 O poder da forma: design86 e 87 Dentro da mente do consumidor88 Produto, marca e publicidade: a ambivalência do mito

99 BIBLIOGRAFIA INDICADA

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FÁBIO CARDIA

ALGUMAS PALAVRAS PARA QUEM VAI CAIR NA VIDA

... Sou ex-aluno da ESPM, do tempo em que a escola não era reconhecida pelo MEC. Sou da 1ª turma a

ser reconhecida..

...o que falar para a turma, quando o Presidente não tem curso superior, Roberto Marinho e Sílvio Santos

também não...

O primeiro grande desafio: encontrar um emprego.

Segundo: gostar dele. Apesar dos tempos difíceis, se você não conseguir ter tesão no seu trabalho, você

irá fracassar. Saiba ver o lado interessante das coisas. Sempre existe um.

Acredite nas idéias das outras pessoas, mesmo que você tenha certeza que a sua é 100 vezes mais

brilhante que a delas. Se eu não acreditasse nas idéias de outras pessoas, eu não teria dado a chance a 1

diretor de arte, 1 fotógrafo, 1 diretor de teatro e 1 coreógrafa a se tornarem diretores de filmes publicitários.

Estou falando de: Ricardo Van Steen, Trípoli, José Posse Neto e Fabrizia Pinto.

Tente sempre trabalhar em equipe e esquecer a autoria. Em marketing e propaganda, estamos sempre

participando de uma corrida de revezamento e chega uma hora que temos de passar o bastão para

alguém.

Procure se aproximar das pessoas que você admira e não queira competir com elas. Tente aprender com

elas.

Se você vai ser um criativo, seja mais irreverente, pare de ler anuários para se inspirar.

As melhores idéias estão nos filmes de longa metragem, nos grandes músicos, nos grandes artistas nos

bons livros. O bom publicitário não é aquele que sabe chupar idéias, mas aquele que sabe adaptar a idéia

certa/ na hora certa/ para o cliente certo.

Leão que imita leão é macaco e não rei das selvas.

Não faça da pesquisa sua muleta. Se o seu feeling e a sua capacidade de persuasão não forem suficientes,

use a pesquisa como um porrete que você vai bater na mesa.

Seja chato sem ser inconveniente. Pergunte, pergunte, pergunte. Questione, investigue. Seja curioso a

mais não poder. Mark Twain disse: ”Conheci um homem que agarrou um gato pelo rabo e aprendeu 40%

mais sobre gatos do que 1 homem que nunca agarrou 1 gato”.

Se eu acreditasse 100% em pesquisa, não teria o Sebastian como nosso garoto propaganda, e nem teria

contratado a Gisele Bündchen.

Faça muito mais do que te solicitam. Se pedirem 1 idéia, apresente 3 e, de preferência, uma melhor que a

outra.Mentes são como pára-quedas, só funcionam quando estão abertos.

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FÁBIO CARDIA

Aproveite que a vida está começando e pense no seu trabalho 24 horas por dia. O trabalho tem que ser a

sua grande diversão e seu grande tesão. Só os apaixonados crescem.

Não perca tempo. Descubra quais são as coisas no seu dia-a-dia que fazem você perder tempo e tente se

livrar delas.Os seres humanos são criados para hábitos; se não desenvolver os bons hábitos, irá

desenvolver os maus hábitos.

Se você for trabalhar do lado do cliente, tente fazer com que a agência seja sua parceira e não fornecedora.

Se você for para agência, idem. Não veja o cliente como aquele que simplesmente paga suas contas ou vai

chegar um momento em que ele não mais vai pagar.

Não deve existir competição entre cliente e agência. Se ambos não estiverem juntos na alegria e na

tristeza, não se chega a lugar nenhum.

Desburocratize sua vida mas seja putamente organizado.

Saiba aceitar os muitos "nãos" e sempre ouça o não como uma proposta para um novo desafio. Aceite

todos os desafios.

O mundo precisa de médicos, cientistas, engenheiros. O mundo não precisa de homens de marketing e

propaganda. Portanto, agradeça a oportunidade que te derem para trabalhar com isso e lembre-se que

você tem uma responsabilidade social grande.

Esqueça a vaidade. Os grandes feitos dos grandes publicitários com certeza não serão registrados em

nenhum livro de história sério. Somos vendedores de idéias, bem remunerados. Sejamos, portanto,

humildes.

E o mais importante: acredite em você, acredite que esse país ainda vai dar certo, tenha paciência e não

perca o humor.

Nosso negócio é parecido com o surf: nós não criamos a onda; a onda é feita pela ação do vento; nós

apenas “as pegamos” e surfamos na onda daquele momento. Às vezes pegamos ondas grandes e boas e

às vezes entramos na onda errada.

“Nós não criamos ondas”. Nosso trabalho é reconhecer as ondas boas e surfar... É reconhecer as ondas

que aparecem e pegá-las,  usando os equipamentos certos.

Também aprendemos a cair fora das ondas quando elas começam a morrer.A tarefa da liderança da C&A é

descobrir e remover barreiras que restringem o crescimento, para que haja um desenvolvimento natural e

sadio.“É sábio aprender pela experiência”, porém é mais sábio aprender por meio das experiências dos

outros. É menos doloroso! 

 

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Ralph B. Choate, ex-aluno da ESPM (Propaganda/ SP) e diretor de Publicidade e Visual Merchandising da C&A 

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Faça isso ou morraEsse anúncio é algum tipo de brincadeira?Não. Mas poderia ter sido.Exatamente nesse ponto localiza-se uma decisão do tipo "faça ou morra" para os negócios americanos.Nós, de propaganda, juntamente com nossos clientes, temos poder e habilidade para enganar as pessoas. Ou pensamos que temos. Mas estamos errados. Não podemos enganar ninguém por tempo nenhum. Há de fato uma mentalidade adolescente neste país; toda criança tem uma. Somos uma nação de espertos. Em vez dissso, falamos uns com os outros. Debatemos interminavelmente sobre o meio e a mensagem. Bobagem. Em propaganda, a própria, mensagem é a mensagem. Uma página em branco e uma tela de televisão "em branco"são uma e a mesma coisa. Acima de tudo, as mensagens que colocamos naquelas páginas e naquelas telas devem ser verdadeiras. Pois, se brincarmos com a verdade, morreremos. Agora, o outro lado da moeda.

Dizer a verdade sobre um produto exige um produto sobre o qual valha a pena dizer a verdade. Infelizmente tantos produtos não valem. Tantos produtos não fazem nada melhor. Ou diferente. Tantos não funcionam direito, Ou não duram. Ou simplesmente não valem a pena. Se também brincarmos com isso, também morreremos. Porque a propaganda apenas ajuda um produto ruim a fracassar mais rápido. Nenhum burro corre atrás da cenoura para sempre. Ele a alcança. E vai embora. É essa lição que temos de lembrar. Se não fizermos, morreremos. Se não mudarmos, a onda da maré da indiferença do consumidor vai bater contra a montanha da propaganda e da tolice do fabricante. Nesse dia, morreremos. Morreremos em nosso mercado. Em nossas prateleiras. Em nossos reluzentes pacotes de promessas vazias. Não com um tiro. Nem com um lamento. Mas através de nossas próprias mãos habilidosas.

Doyle Dane Bernbach, Inc.

 

Extraído do livro "Mais vale o que se aprende do que o que te ensinam" de Alex Periscinoto e Izabel Telles.

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Criatividade

1. Conceitos: o uso vulgar, a definição do dicionário,o uso em psicologia

Quando começamos a discutir sobre criatividade, parece sempre que ingressamos num universo um tanto mágico, habitado por seres escolhidos pelos deuses, seres que possuem o dom da criatividade, geralmente na área de artes, que é negado ao comum dos mortais. Chamamos de criativas as pessoas que sabem desenhar, tocam algum instrumento, têm alguma habilidade manual especial, tipo pintar camisetas ou ser bom marceneiro; enfim, as que sabem fazer coisas que a maioria dás pessoas (principalmente nós) não sabe. Será que basta habilidade técnica para ser criativo? Ou será que a criatividade envolve processos mais complexos?

Vamos começar a discutir este assunto partindo de alguns significados da palavra criar e de seus derivados criador e criatividade que constam do dicionário1

• Criar. V. t. d. 1. Dar existência a; tirar do nada. 2. Dar origem a; gerar, formar. 3. Dar princípio a; produzir, inventar, imaginar.• Criador. Adj. Inventivo, fecundo.• Criatividade. S. f. Qualidade de criador.

Podemos ver, nesses vocábulos, que a criatividade pressupõe um sujeito criador, isto é, uma pessoa inventiva que produz e dá existência a algum produto que não existia anteriormente. Vemos, também, que imaginar é uma forma de inventar ou criar um produto. Portanto, esse produto da atividade criativa de um sujeito não é, necessariamente, um objeto palpável, mas pode ser uma idéia, uma imagem, uma teoria.

Agora estamos prontos para abordar alguns conceitos elaborados por psicológicos que vêm se dedicando à pesquisa na área da criatividade e levando várias hipóteses sobre as pessoas criativas.

Diz Ghiselin que a medida da criatividade de um produto "está na extensão em que ele reestrutura nosso universo de compreensão" ; ou, segundo Laklen, a medida da criatividade é "a extensão da área da ciência que a contribuição abrange" .

2. Critérios de determinação da criatividade

Podemos notar que as definições de Ghiselin e Laklen medem a criatividade através do critério da abrangência de seus efeitos, isto é, quanto maior a contribuição (seja ela um objeto ou uma idéia) remexer nossas crenças estabelecidas, quanto mais revolucionar o nosso universo de saber (o que os como sendo o "certo", o "indiscutível"), mais criativa ela será.

Notamos, também, que em todos esses conceitos já está inserida a idéia do novo. A obra verdadeiramente criativa traz algum tipo de novidade que tios obriga a rever o que já conhecíamos, dando-lhe uma nova organização. 'Acontece quando exclamamos: "Nossa, nunca tinha percebido isso!".

O novo que a obra criativa nos propõe, no entanto, não é gratuito, ou seja, a novidade não aparece só por ser novidade. Podemos, então, dizer que tudo que é criativo é novo, mas nem tudo que é novo é criativo. Explicando melhor: a inovação aparece com relação a um dado problema ou a uma dada à situação, solucionando-a ou esclarecendo-a. A inovação surge, geralmente, do remanejo do conhecimento existente que revela insuspeitas parentescos ou semelhanças entre fatos já conhecidos que não pareciam ter nada em comum. Assim, Gutenberg resolveu o problema da impressão ao ver uma prensa de uvas para fazer vinho. Aparentemente, uvas e vinho, de um lado, e papel e letra, de outro, nada tinham em comum, e, no

1 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa, 1. ed., 14.a impr., Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

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entanto foi a partir do procedimento para fazer vinho que ele pensou em pressionar papel contra tipos molhados de tinta.

Já temos, pois, mais um critério para medir a criatividade: a inovação, além da abrangência já citada. Não podemos esquecer, no entanto, que a inovação tem de ser relevante, isto é, adequada à situação. Um ato, uma idéia ou um produto é criativo quando é novo, adequado e abrangente.

3. Criatividade como capacidade humana

Levando em conta essa discussão, percebemos que a criatividade é uma capacidade humana que não fica confinada no território das artes mas que também é necessária à ciência e à vida em geral. A ciência não poderia progredir se alguns espíritos mais criativos não tivessem percebido relações entre fatos aparentemente desconexos, se não tivessem testado essas suas hipóteses e chegado a novas teorias explicativas dos fenômenos.

A imaginação

O processo de trabalho do cientista aproxima-se do processo de trabalho do artista. Ambos desenvolvem um tipo de comportamento denominado "exploratório", isto é, dedicam-se a "explorar" as possibilidades, "o que poderia ser", em vez de se deter no que realmente é. Para isso, necessitam da imaginação. Assim, um dos sentidos de criar é imaginar. Imaginar é a capacidade de ver além do imediato, do que é, de criar possibilidades novas. É responder à pergunta: "Se não fosse assim, como poderia ser?". Se dermos asas à imaginação, se deixarmos de lado o nosso senso crítico e o medo do ridículo, se abandonarmos as amarras lógicas da realidade, veremos que somos capazes de encontrar muitas respostas para a pergunta. Este é o chamado pensamento divergente, que leva a muitas respostas possíveis. É o contrário do pensamento convergente, que leva a uma única resposta, considerada certa. Por exemplo, à pergunta "Quem descobriu o Brasil?", só há uma resposta certa: Pedro Álvares Cabral. Para a pergunta "Se os portugueses não tivessem descoberto o Brasil, como estaríamos vivendo hoje?", há inúmeras respostas possíveis. A primeira envolve memória; a segunda, imaginação.

Tanto o artista quanto o cientista têm de ser suficientemente flexíveis para sair do seguro, do conhecido, do imediato, e assumir os riscos ao propor o novo, o possível.

A inspiração

No contexto, qual seria o lugar da tão falada inspiração?

Na verdade, a inspiração é resultado de um processo de fusão de idéias efetuado no nosso subconsciente. Diante de um problema, de uma preocupação ou ainda de uma situação, obtidas as informações -fundamentais acerca do assunto, o nosso subconsciente passa a lidar com esses dados, fazendo uma espécie de jogo associativo entre os vários elementos. É como tentar montar um quebra-cabeças: experimentamos ora uma peça, ora outra, até acharmos a adequada. É o momento em que a imaginação é ativada para propor todas as possibilidades, por mais inverossímeis que sejam. E desse jogo subconsciente surgirão em nossa consciência sínteses e novas configurações dos dados sobre as quais trabalhará nosso intelecto, pesando-as, julgando-as, adequando-as ao problema ou situação. Ao surgimento dessas sínteses em nossa consciência damos o nome de inspiração.

Tanto o artista quanto o cientista trabalham intelectualmente a inspiração. O artista tem de decidir entre materiais, técnicas e estilos para a produção da sua obra. O cientista tem de elaborar e testar as suas hipóteses para chegar a uma teoria ou produto novos.

Desenvolvimento e repressão da criatividade

Podemos afirmar que, como capacidade humana, a criatividade pode ser desenvolvida ou reprimida.

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O desenvolvimento acontece na medida em que o ambiente familiar, a escola, os amigos, o lazer ofereçam condições ao pleno exercício do comportamento exploratório e do pensamento divergente, incentivando o uso da imaginação, do jogo, da interrogação constante, da receptividade a novidades e do desprendimento para ver o todo sem preconceito e sem temor de errar.

A repressão, por sua vez, acontece quando essas condições não são oferecidas e, além disso, é enfatizado o não assumir riscos e o ficar no terreno seguro da repetição do já conhecido.

Assim, a criatividade não é um dom que uns têm e outros não. É uma capacidade que todos nós podemos desenvolver se nos dispusermos a praticar alguns tipos de comportamentos específicos.

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FÁBIO CARDIA

Revoltado ou Criativo?!

Há algum tempo recebi um convite de um colega para servir de árbitro na revisão de uma prova. Tratava-se

de avaliar uma questão de Física, que recebera nota zero. O aluno contestava tal conceito, alegando que

merecia nota máxima pela resposta, a não ser que houvesse uma conspiração do sistema contra ele.

Professor e aluno concordaram em submeter o problema a um juiz imparcial, e eu fui o escolhido.

Chegando à sala de meu colega, li a questão da prova, que dizia:

- Mostre como se pode determinar a altura de um edifício bem alto com o auxilio de um barômetro.

A resposta do estudante foi a seguinte:

- Leve o barômetro ao alto do edifício e amarre uma corda nele; baixe o barômetro até a calçada e em

seguida levante, medindo o comprimento da corda; este comprimento será igual à altura do edifício.

Sem dúvida era uma resposta interessante, e de alguma forma correta, pois satisfazia o enunciado. Por

instantes vacilei quanto ao veredicto.

Recompondo-me rapidamente, disse ao estudante que ele tinha forte razão para ter nota máxima, já que

havia respondido a questão completa e corretamente.

Entretanto, se ele tirasse nota máxima, estaria caracterizada uma aprovação em um curso de física, mas a

resposta não confirmava isso.

Sugeri então que fizesse uma outra tentativa para responder a questão. Não me surpreendi quando meu

colega concordou, mas sim quando o estudante resolveu encarar aquilo que eu imaginei lhe seria um bom

desafio.

Segundo o acordo, ele teria seis minutos para responder à questão, isto após ter sido prevenido de que sua

resposta deveria mostrar, necessariamente, algum conhecimento de física.

Passados cinco minutos ele não havia escrito nada, apenas olhava pensativamente para o forro da sala.

Perguntei-lhe então se desejava desistir, pois eu tinha um compromisso logo em seguida, e não tinha tempo

a perder. Mais surpreso ainda fiquei quando o estudante anunciou que não havia desistido. Na realidade

tinha muitas respostas, e estava justamente escolhendo a melhor. Desculpei-me pela interrupção e solicitei

que continuasse.

No momento seguinte ele escreveu esta resposta:

- Vá ao alto do edifico, incline-se numa ponta do telhado e solte o barômetro, medindo o tempo t de queda

desde a largada até o toque com o solo. Depois, empregando a fórmula h = (1/2)gt^2 , calcule a altura do

edifício.

Perguntei então ao meu colega se ele estava satisfeito com a nova resposta, e se concordava com a minha

disposição em conferir praticamente a nota máxima à prova. Concordou, embora sentisse nele uma

expressão de descontentamento, talvez inconformismo.

Ao sair da sala lembrei-me que o estudante havia dito ter outras respostas para o problema. Embora já sem

tempo, não resisti à curiosidade e perguntei-lhe quais eram essas respostas.

- Ah!, Sim, - disse ele - há muitas maneiras de se achar a altura de um edifício com a ajuda de um

barômetro.

Perante a minha curiosidade e a já perplexidade de meu colega, o estudante desfilou as seguintes

explicações.

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FÁBIO CARDIA

- Por exemplo, num belo dia de sol pode-se medir a altura do barômetro e o comprimento de sua sombra

projetada no solo, bem como a do edifício. Depois, usando-se uma simples regra de três, determina-se a

altura do edifício.

- Um outro método básico de medida, aliás bastante simples e direto, é subir as escadas do edifício fazendo

marcas na parede, espaçadas da altura do barômetro. Contando o número de marcas ter-se a altura do

edifício em unidades barométricas.

- Um método mais complexo seria amarrar o barômetro na ponta de uma corda e balançá-lo como um

pêndulo, o que permite a determinação da aceleração da gravidade (g). Repetindo a operação ao nível da

rua e no topo do edifício, tem-se dois g(s), e a altura do edifício pode, a princípio, ser calculada com base

nessa diferença.

- Finalmente, - concluiu, - se não for cobrada uma solução física para o problema, existem outras respostas.

Por exemplo, pode-se ir até o edifício e bater à porta do síndico. Quando ele aparecer; diz-se: - Caro Senhor

síndico, trago aqui um ótimo barômetro; se o Sr. me disser a altura deste edifício, eu lhe darei o barômetro

de presente.

A esta altura, perguntei ao estudante se ele não sabia qual era a resposta esperada para o problema. Ele

admitiu que sabia, mas estava tão farto com as tentativas dos professores de controlar o seu raciocínio e

cobrar respostas prontas com base em informações mecanicamente arroladas, que ele resolveu contestar

aquilo que considerava, principalmente, uma farsa.

Autor: De Waldemar Setzer, professor aposentando da USP. 03/06/2000 16:53:00

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SUPER INTERESSANTEEdição Nº 143 - dezembro de 2004Sobre Gênios e Loucos

Munch, Van Gogh, Picasso - De muitos artistas sempre se disse que não batiam lá muito bem da cabeça. Pois agora aumentam as evidências científicas de que criatividade e doença mental andam de fato muito próximas

Por Ulrich Kraft

Muitas pessoas já me caracterizaram como louco", escreveu certa vez Edgar Allan Poe (1809-1849). "Resta saber se a loucura não representa, talvez, a forma mais elevada de inteligência." Nessa sua suspeita de que genialidade e loucura talvez estejam intimamente entrelaçadas, o escritor americano não estava sozinho. Muito antes, Platão mostrara acreditar em uma espécie de "loucura divina" como base fundamental de toda criatividade.

Uma lista interminável de artistas célebres, parte deles portadores de graves transtornos psíquicos, parece confirmar o ponto de vista do filósofo grego. Vincent van Gogh, Paul Gauguin, Lord Byron, Liev Tolstói, Serguei Rachmaninov, Piotr Ilitch Tchaikóvski, Robert Schumann - o célebre poder criativo de todos eles caminhava lado a lado com uma instabilidade psíquica claramente dotada de traços patológicos. Variações extremas de humor, manias, fixações, dependência de álcool ou drogas ainda hoje atormentam a vida de muitas mentes criativas.

SERÁ MERA COINCIDÊNCIA?

No início do século XX, a busca pelas raízes da genialidade era um dos temas mais palpitantes da investigação psicológica. Cientistas de ponta tinham poucas dúvidas de que certos males psíquicos davam asas à imaginação. "Quando um intelecto superior se une a um temperamento psicopático, criam-se as melhores condições para o surgimento daquele tipo de genialidade efetiva que entra para os livros de história", sentenciava o filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910). Pessoas assim perseguiriam obsessivamente suas idéias e seus pensamentos - para seu próprio bem ou mal -, e isso as distinguiria de todas as outras.

Sigmund Freud também se interessou pelo assunto. Convicto de que encontraria "algumas verdades psicológicas universais", analisou vida e obra de artistas e escritores famosos, buscando pistas de transtornos mentais. Mas foi somente a partir dos anos 70 que Nancy Andreasen, psiquiatra da  Universidade de Iowa, começou a investigar de forma sistemática a suposta ligação entre genialidade e loucura. Participaram de sua experiência 30 escritores cujo talento criativo havia sido posto à prova na renomada oficina de autores da universidade.

Andreasen examinou essas personalidades à procura de distúrbios psíquicos e comparou os dados obtidos aos daqueles grupos de um grupo de controle: 80% dos escritores relataram perturbações regulares do humor, ante 30% no grupo de controle. Quarenta e três por cento dos artistas satisfaziam os critérios para o diagnóstico de uma ou outra forma de patologia maníaco-depressiva, o que, no grupo de controle, só se verificou em uma a cada dez pessoas. Durante o estudo, dois escritores cometeram suicídio - dado que, segundo Andreasen, não seria estatisticamente significativo. A psiquiatra comprovou pela primeira vez e com métodos científicos que, por trás da suposta conexão entre criatividade elevada e psique enferma, haveria algo mais que o mero e surrado lugar-comum.

Em 1983, Kay Redfield Jamison conduziu um estudo em que obteve resultados claros e semelhantes. Psicóloga da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, ela contatou 47 pintores e poetas britânicos

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renomados. Seguindo os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), examinou a presença de transtornos de humor caracterizados por fases depressivas.

Segundo o Manual, esses transtornos são marcados por estados depressivos que duram de duas a quatro semanas e prejudicam sensivelmente o cotidiano dos pacientes, que não conseguem animar-se para nada, sofrem perturbações da concentração e do sono e têm pensamentos negativos beirando o desespero total. A presença desses sintomas aponta para o chamado transtorno depressivo maior. Mas, além desse, há também os transtornos bipolares, nos quais fases depressivas são alternadas com picos de euforia - os episódios maníacos. Nesse caso, os pacientes quase não dormem, estão sempre ocupados com alguma coisa, seus pensamentos saltam de um tema a outro e eles atribuem a suas idéias - e, em geral, também a si próprios - grandeza absoluta.

Tais males psíquicos, caracterizados como depressões maníacas, estão entre os transtornos de humor pelos quais Jamison procurava em seu estudo. Ela constatou que quase 40% dos artistas examinados haviam requerido ajuda médica alguma vez na vida - taxa 30 vezes mais alta que a verificada entre a média da população. A corporação dos escritores revelou ser a que sofria dos problemas psíquicos mais severos. Um a cada dois poetas já havia recorrido a tratamento psiquiátrico em virtude de depressão ou episódios maníacos.

Na década de 80, Hagop Aksikal entrevistou outros 20 artistas europeus, tendo por base os critérios do DSM. Dois terços deles sofriam de episódios depressivos recorrentes, muitas vezes combinados com os chamados estados hipomaníacos - forma menos pronunciada da mania. Como constatou esse psicólogo da Universidade da Califórnia, em San Diego, metade dos artistas tinha enfrentado depressão em algum momento da vida. Tendência semelhante, aliás, Aksikal já havia observado entre músicos de blues nos Estados Unidos.

Com base nessas pesquisas, Jamison concluiu que o grande número de artistas com diagnóstico de depressão ou de transtornos bipolares já não podia ser atribuído ao acaso. A pesquisadora admitia deficiências metodológicas também em seu próprio estudo - por exemplo, o número demasiadamente reduzido da amostra -, mas a conexão entre instabilidade psíquica e potencial criativo era evidente.

Ruth L. Richards e colegas da Harvard Medical School, em Boston, tentaram abordar a questão de outro ponto de vista. Em vez de saírem em busca de males psíquicos em artistas reconhecidos, inverteram a pergunta: portadores de enfermidades psíquicas seriam particularmente criativos? Eles examinaram a criatividade de 17 pacientes com depressão maníaca manifesta e de 16 ciclotímicos - a forma mais amena do transtorno bipolar -, com base na chamada Lifetime -Creativity Scale.

Nessa escala de criatividade influenciam não apenas os testes relacionados ao pensamento inovador e original, mas também o desempenho criativo nas esferas pessoal e profissional. Os pacientes saíram-se melhor que o grupo de pessoas utilizado para comparação, composto de indivíduos sem qualquer histórico psiquiátrico.

O tipo de transtorno desempenhou aí papel bastante decisivo. Os participantes ciclotímicos revelaram-se muito mais criativos. Além disso, ficaram atrás de seus familiares sem distúrbios psíquicos evidentes, também avaliados. A hipótese aventada pelos pesquisadores foi, portanto, a de que os parentes dos pacientes talvez tendessem à instabilidade psíquica, cuja manifestação neles se daria de forma tão amena que não lhes causaria problemas. "É possível que pessoas com tendência reduzida, talvez até imperceptível, à instabilidade bipolar sejam mais criativas", concluíram os pesquisadores.

Nesse meio tempo, o pensamento aguçado, de criatividade incomum, e a produtividade elevada passaram até mesmo a serem considerados indícios no diagnóstico de fases maníacas. Mas como uma enfermidade tão perturbadora e destrutiva pode incrementar nosso poder criativo? Afinal, normalmente reina o caos entre os maníaco-depressivos, tanto no aspecto profissional quanto no pessoal. Em meio a episódios maníacos, endividam-se, mergulham em relacionamentos duvidosos e aventuras sexuais sem medir as

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conseqüências. Agressões e até mesmo alucinações integram o quadro. Então, a esse apogeu temporário segue-se sempre o mergulho em depressão profunda.

O psicólogo americano Joy Paul Guilford (1897-1987) definiu criatividade como a capacidade de, diante de um problema, "encontrar respostas incomuns, de associação longínqua". Para chegar a uma idéia original, abandonam caminhos já trilhados e pensam de modo diferente. O intelecto, então, não se aferra à busca de uma única solução correta, mas move-se em diversas direções. Quanto mais fluentes e livres jorrarem os pensamentos, melhor.

São precisamente esses talentos que os portadores de transtornos bipolares exibem em abundância na fase maníaca. Seu cérebro trabalha à toda, despejando idéias nada convencionais. Essa imensa produção está longe de resultar apenas em coisas sensatas, mas pouco importa: a massa de idéias que brota da mente maníaca eleva a probabilidade de que haja entre elas alguns lampejos mentais "genuínos".

O psicólogo Eugen Bleuler, contemporâneo de Freud, via aí o elo procurado entre genialidade e doença mental. "Mesmo que apenas os casos amenos produzam algo de valor, o fato de neles as idéias fluírem com mais rapidez e, sobretudo, de as inibições desaparecerem  estimula as capacidades artísticas."

Também para Jamison, o segredo está no pensamento rápido e flexível, bem como no dom de unir coisas que, à primeira vista, não possuem qualquer conexão entre si. O que Bleuler, no passado, só podia supor hoje é confirmado por estudos científicos. Assim, pacientes de hipomania mostram superioridade em testes de associação de palavras: num espaço de tempo delimitado e com uma palavra dada, são capazes de associar quantidade bem maior de conceitos que pessoas em perfeitas condições psíquicas. Dão menos respostas estatisticamente "normais" que as do grupo de controle, mas encontram soluções heterodoxas em número três vezes maior.

Hipomaníacos chamam a atenção também por seu modo de falar. Tendem a fazer uso de rimas e empregam com freqüência associações sonoras, tais como as aliterações. Além disso, seu vocabulário compreende em média três vezes mais neologismos que o de uma pessoa saudável. E mais: nos pacientes em fase maníaca, a rapidez do processo de pensamento traduz-se numa elevação do quociente de inteligência.

Maníaco-depressivos exibem também certas qualidades não cognitivas muito úteis aos artistas. Robert DeLong, psicólogo da Harvard Medical School, pediu a um grupo de crianças, todas com sinais precoces de transtorno bipolar, que fizesse desenhos sobre um tema.

Na comparação com o grupo de controle, não apenas seu nítido e transbordante poder de imaginação chamou atenção. DeLong ficou ainda mais impressionado com a extraordinária capacidade de concentração dessas crianças, que se dedicaram durante horas à tarefa, sem se deixar distrair por coisa alguma. Como resultado, seu brilhantismo revelou-se tanto no desempenho espantoso da memória quanto nos desenhos detalhados.

Energia fabulosa e concentração total caracterizam também as fases criadoras de muitos pintores, escultores, escritores e poetas. Muitos deles varam noites escrevendo ou passam horas sem fim no ateliê, sem dormir.

LIMIAR DA LOUCURA

Nancy Andreasen acrescenta outra explicação: "o sistema nervoso, afinadíssimo", simplesmente perceberia mais informações sensoriais, transformando-as em idéias criativas. Embora sem comprovação definitiva, a psicóloga supõe que a causa seja "um defeito nos processos cognitivos que filtram esses estímulos".

No final de 2003, Shelley Carson, da Universidade de Harvard, e Jordan Peterson, da Universidade de Toronto, descobriram que Andreasen estava certa. Eles recrutaram 25 estudantes que haviam se destacado

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por seu desempenho criativo extraordinário e, com auxílio de um teste, puderam determinar a chamada inibição latente em cada um deles - mecanismo cognitivo que exclui do fluxo contínuo de dados sensoriais aqueles que a experiência já demonstrou serem de pouca valia. Nos colegas não criativos, esse processo de filtragem inconsciente se revelou nitidamente mais pronunciado.

Em decorrência da menor inibição latente, pessoas criativas acolhem mais impressões de seu entorno. Mas há também o outro lado dessa moeda. "Quando uma pessoa tem 50 idéias diferentes, o provável é que só duas ou três sejam boas de fato", explica Peterson. "É necessário saber diferenciar essas idéias para não submergir em meio a tantas delas. Daí a importância da inteligência e da memória operacional para evitar que as mentes criativas se afoguem numa torrente de informações", conclui.

Será que os pacientes de transtorno bipolar ultrapassam o limiar da loucura por quase sufocar sob a massa enorme de idéias e pensamentos? Para Carson e Peterson, isso é precisamente o que sua experiência deixa claro: "Um grau reduzido de inibição latente associado a uma extraordinária flexibilidade de pensamento pode, sob certas circunstâncias, predispor o indivíduo às doenças mentais ou, sob outras circunstâncias, a façanhas criativas".

Nessa questão, Jamison - que também sofre de depressões maníacas - defende uma tese interessante. Ela acredita que o mergulho recorrente na depressão evita que portadores de transtorno bipolar se percam em pensamentos e idéias obscuras. Indivíduos depressivos - atormentados por dúvidas, insegurança e hesitação -  teriam um juízo mais realista das coisas. Seu "mecanismo interno de edição", como Jamison o denomina, operaria com a correspondente sensibilidade, ou seja, verificaria a utilidade das idéias produzidas pela mente hiperativa e excluiria as cores berrantes do excesso. Sendo assim, todas as idéias que, na fase maníaca, se revelam grandiosas, seriam submetidas ao crivo de um extremo rigor crítico.

Já o pioneiro Guilford via o segredo- do pensamento criativo na capacidade de estabelecer um vínculo entre o racional e o irracional, o conhecido e o desconhecido, o convencional e o não convencional. Se, porém, a criatividade brota dessas oposições, espíritos criativos arriscam-se continuamente a ir longe demais com suas idéias e seus pensamentos, ultrapassando as fronteiras do inteligível.

ARTE COMO TERAPIA

Uma rápida visita aos livros de história nos mostra como é tênue a linha que separa a genialidade da loucura. Seja a visão heliocêntrica do mundo de Copérnico ou a teoria da evolução de Darwin, muitos lampejos geniais foram a princípio recriminados como produto de um cérebro doentio. Hoje, porém, ninguém mais duvida da saúde psíquica de tais personalidades.

Mas não são poucos os psicólogos que sustentam que portadores de doenças psíquicas com freqüência trabalham em áreas criativas apenas porque a atividade artística os ajuda a proteger a própria mente da destruição. "A literatura me pegou pela mão e me salvou da loucura", ponderava a poeta americana Anne Sexton (1928-1974), que, em virtude de uma grave psicose, vivia sendo internada em clínicas psiquiátricas.

Criatividade como saída para a crise? Residiria aí o famigerado vínculo entre poder de criação e sofrimento psíquico? O fato de tantos pacientes psiquiátricos se beneficiarem de terapias envolvendo a pintura, a dança ou a música parece confirmar essa hipótese. Contudo, dois fatos não devem ser esquecidos: a maioria dos doentes não demonstra possuir fantasia extraordinária nem criatividade especial; tampouco a maioria dos escritores, poetas, músicos, designers, escultores ou pintores reconhecidos revela-se portadora de algum distúrbio mental.

A imagem excessivamente utilizada e romantizada do gênio maluco desacredita em certa medida o trabalho, o caráter e o estado mental dos que lidam com arte. E o fato de muitos artistas com enfermidades psíquicas terem recusado tratamento, no passado, talvez tenha contribuído para essa visão distorcida. O pintor norueguês Edvard Munch (1862-1944), por exemplo, que era maníaco-depressivo, temia que uma terapia pudesse extinguir seu poder criativo. "Prefiro continuar sofrendo desses males, porque são parte de mim e de minha arte", declarou. Sem ajuda médica, porém, corre-se o risco de que depressões e transtornos bipolares se acentuem com o tempo. Munch teve sorte: estava relativamente bem nos últimos anos de vida. Uma declaração da escritora americana Sylvia Plath nos diz um pouco sobre o sofrimento de

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artistas vítimas de distúrbios psíquicos: "Quando se tem uma doença mental, ser um doente mental é tudo que se faz, o tempo todo [...] Quando eu era louca, isso era tudo que eu era". Em casa, na manhã de 11 de fevereiro de 1963, essa poeta de extremo talento, vítima de depressão grave, abriu a torneira do gás. Tinha 30 anos.

 

Vincent van Gogh - histórico de uma doença

Concluída a escola, o jovem Vincent van Gogh vai trabalhar na compra e venda de objetos de arte, primeiro em Haia, depois em Londres. A infelicidade no amor o lança na primeira depressão grave. Seus pensamentos voltam-se para a religião. Passa quatro anos na Bélgica trabalhando como pastor. Ali, ajuda no que pode e luta pelos direitos das pessoas. Contudo, isso desagrada a Igreja, da qual é expulso, fazendo-o mergulhar em nova crise. "Minha única angústia é descobrir como posso ser útil ao mundo", escreve ao irmão Theo, seu mais íntimo confidente.

Somente aos 27 anos, Vincent decide ser pintor. Lança-se ao trabalho com enorme intensidade. Em 1886, vai viver com Theo em Paris, onde sua saúde piora. Começa a sofrer de cãibras na mão esquerda. Passados os acessos, fica perturbado e a memória falha por breves períodos - primeiro indício da epilepsia diagnosticada mais tarde. O gosto do pintor pelo absinto contribui para o agravamento de seu estado. Sabe-se hoje que a bebida contém uma substância que favorece ataques epilépticos e psicoses. Seu temperamento explosivo e as oscilações de humor o tornam persona non grata para vários de seus conhecidos. "É como se fossem duas pessoas: uma delas, de grande talento, culta e sensível; a outra, egoísta e fria de sentimentos", descreve Theo.

No início de 1888, Vincent vai para o Sul da França, "cansado e desesperado", como ele próprio diz. Ali, sintomas de um grave transtorno psíquico manifestam-se com crescente nitidez. Períodos de atividade febril alternam-se com apatia e esgotamento total - sinais típicos de depressão maníaca. Sentindo-se só, pede ao amigo Paul Gauguin que se junte a ele. Juntos, os dois pintores fundam o "Estúdio do Sul". Mas este relacionamento deteriora, culminando numa catástrofe: em dezembro de 1888, van Gogh o ameaça com uma navalha e termina por amputar a própria orelha.

No hospital, o primeiro diagnóstico: psicose grave. O médico Felix Rey também suspeita de epilepsia larvada, em que os acessos convulsivos têm forma bastante amena. Em compensação, imperam outras ocorrências psíquicas e o paciente oscila entre euforia extrema e depressão profunda, acompanhadas de angústia e insônia. Alucinações e mania de perseguição integram o quadro dos sintomas, bem como pronunciada emotividade, que, com freqüência, culmina em solicitude exagerada ou religiosidade extrema.

A epilepsia de lobo temporal é tida como a explicação mais provável para o perturbado estado mental de van Gogh. Rey o trata com brometo de potássio. Passados alguns dias, o artista se recupera. Embora o médico chame sua atenção para os perigos do absinto, o pintor o ignora. Essa é uma das razões para as várias recaídas, que requerem repetidas internações. Seu estado psíquico é tão instável que, em maio de 1889, interna-se espontaneamente no sanatório de Saint Rémy.

O médico da instituição confirma a epilepsia, mas suspende o tratamento com brometo de potássio. Apesar dos episódios de uma grave psicose, van Gogh produz no ano seguinte mais de 300 obras. Depois, muda-se para Auvers-sur-Oise, nas proximidades de Paris. Nos campos ao redor de Auvers, pinta algumas de suas grandiosas paisagens. Em carta a Theo, menciona que gostaria de aumentar sua paleta de cores e pede apoio ao irmão. Três dias depois, o grande artista se mata com um tiro no peito.

 

ULRICH KRAFT é médico e jornalista científico.- Tradução de Sergio Tellaroli

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MetáforasLakoff e Johnson (1980) mostraram como as metáforas são importantes na língua do dia-a-dia. Até então estávamos acostumados a pensar que metáfora só era importante para a literatura. A Lingüística, até bem recentemente, não se interessava por estudar metáfora, que era considerada como uma mera "figura de linguagem". O trabalho magistral desses autores mostra como as metáforas estruturam nosso pensamento. Quando pensamos em certos conceitos abstratos como tempo por exemplo, nós o fazemos sobretudo através de metáforas. O estudo das metáforas revela que elas nos fornecem o meio de falar desses conceitos (como o tempo, por exemplo) de uma maneira coerente. Isto significa que nós estruturamos esses conceitos de maneira metafórica. Mas, como essas metáforas estão incorporadas ao nosso dia-a-dia, nós esquecemos que elas são metáforas. A metáfora "Tempo é dinheiro" é um exemplo - ela informa uma série de expressões metafóricas como "Estou perdendo tempo", "ganhando tempo", "investindo tempo", "economizando tempo" etc. Por trás dessas maneiras tão comuns de falar do tempo está uma concepção que os autores acham que só poderia ter nascido em uma sociedade capitalista, em que o tempo significa literalmente dinheiro, uma vez que nosso trabalho é pago em termos de horas, dias, meses e anos.

Esta concepção mercantilista de tempo informa todo nosso quotidiano, influencia nossas ações e nos faz viver em função dela. E nunca paramos para pensar o que é o tempo independentemente desta visão culturalmente fornada.

Estas metáforas estruturam um conceito (exemplo: tempo) em termos de outro (exemplo: dinheiro) são chamadas por Lakoff e Johnson de estruturais. Segundo eles, elas estruturam nosso sistema conceptual de maneira sistemática.

Existem outras metáforas que eles chamam de orientacionais porque stão ligadas à orientação espacial. Elas "surgem do fato de que temos corpo do tipo que temos e de que funciona da maneira que funciona em nosso ambiente físico"(1980, 14). Um exemplo é que em algumas culturas, como a nossa, o futuro está na nossa frente e o passado está atrás. Segundo eles, há culturas que concebem o futuro atrás. Mas nós dizemos: "Daqui pra frente, tudo vai ser diferente", "De lá para cá tudo mudou", usando os advérbios de lugar cá, aqui, que indicam o lugar em que o falante está, para indicar presente (ou seja, o momento da fala), frente para indicar futuro e lá (que indica lugar afastado do falante) para passado. Dizemos também: "Se olharmos para trás, a situação era ainda pior" - trás indicando passado.

Outra maneira de compreender e lidar com conceitos abstratos como tempo transformá-los em entidades - coisas ou seres. A partir daí, passamos a tratar conceitos como tempo como se fossem seres - coisas, animais ou pessoas. São as metáforas ontológicas. Assim, em português nós dizemos, normalmente, que o tempo "passa", o tempo "voa", o tempo "corre", o tempo "pára", ou seja, o tempo, segundo Lakott e Johnson, é concebido como um objeto que se desloca no espaço. Eu colhi um exemplo interessante, por acaso, que ilustra bem esta concepção do tempo como objeto que se desloca no espaço. Um colega meu, aflito numa reunião do Departamento desenhou uma ampulheta com asas, e me comunicou: "O tempo voa".

Uma espécie de metáfora ontológica é a da personificação, quando atribuímos ao tempo ações como que voluntárias, ao falar de "seus estragos", "suas destruições". Dizemos que o tempo "destrói as coisas e as pessoas", "envelhece a gente", "faz a gente ficar mais sábio", ou "mais amargo" etc. Ele às vezes é visto como um inimigo ou como um aliado, como quando dizemos: "O tempo corre contra nós" ou "O tempo está do nosso lado", "está nos favorecendo", "esta nos prejudicando" etc.

Um ponto importante para o qual Lakoff e Johnson também chamam atenção é que as metáforas iluminam certos aspectos e escondem outros. Por exemplo, quando vemos tempo como dinheiro, enfocamos apenas certos aspectos, dizendo que "economizamos", "investimos", "ganhamos tempo", mas não podemos, por exemplo, dar troco de tempo a uma pessoa como se faz com dinheiro. É nesse ponto, dizem eles, que entra a linguagem poética, que estende a metáfora de maneiras que a língua comum não estende. O exemplo que eles dão é que podemos considerar idéias como objetos (dizemos "minha cabeça está cheia de idéias"), mas não dizemos que estão embrulhadas em belas roupas.

O que é importante observar é que essas metáforas são tão poderosas, que a gente passa a conceber o tempo através delas. Eu quase não consigo imaginar uma maneira de falar do tempo (e de pensar) a ano ser metaforicamente. E essas maneiras metafóricas de falar se incorporaram à nossa vida de tal modo que a gente passa a viver regido por elas.

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Lakoff e Johnson chamam a nossa atenção para o fato de que há verdadeiros sistemas metafóricos e que nós podemos através deles compreender de que maneira nós concebemos a realidade.

Passemos a olhar a crônica à luz da obra de Lakoff e Johnson. A primeira metáfora (tirando o titulo, que é uma metáfora criativa) é a passagem do tempo, em que o tempo é visto como um objeto que se desloca no espaço (metáfora ontológica). No segundo parágrafo aparece o verbo passar, novamente, e o substantivo velocidade. Em seguida, ele usa a metáfora do tempo como um ser (vivo ou objeto?), falando do estrago que ele causa. Vejam, depois, o verbo de ação fazer (fizesse, tem feito), e ainda a referência tempo e pessoa (personificação) e à sua maneira de trabalhar, "seu trabalho". Mais adiante ele quer "obrigá-lo", e diz que "O tempo tudo transforma e arrasa". Sugere que "façamos dele um aliado", diz que "ele não repousa nunca", "fugiu para sempre", "se esqueceu", "Rói as pedras como o vento, rói os ossos como um cão". Fala da "delicadeza com que pratica essas violências" e da sua "impassibilidade". Nesta altura, ele volta a usar a concepção de um objeto que se desloca no espaço: "aumenta de velocidade", "quase pára".

Em "passagem, como a de um animal na noite" ele mistura objeto com pessoa. "Chego quase a tocar nele", "vendo-o passar", "como se diverte", "destruir uma árvore...", "se retira", "prossegue", "Ele corre", "Seu propósito é envelhecern o mundo".

A figura que emerge do tempo nesta crônica, a meu ver, é a da fusão da metáfora de um objeto que se desloca no espaço com a personificação/animalização. E fica a idéia de um ser, uma pessoa (ou animal?) que passa correndo por nós. Mas, ao mesmo tempo, em alguns momentos diz que o tempo está dentro de nós, "de alguém ou de um objeto": "O tempo fica assim tão escondido dentro de nós... ".

O que se pode dizer a respeito da linguagem que A. Machado usa nesta crônica? Por um lado, ele usa algumas expressões supercorriqueiras para se referir ao tempo, expressões que estão consagradas na língua diária, Como "o tempo corre", "passa", "pára". Além disto, ele constr6i sua crônica toda baseada na concepção do tempo que é corrente e estrutura este conceito na base das metáforas do objeto que se desloca no espaço e do ser que age sobre nós e o mundo. Há, porém, um algo mais, que é, em primeiro lugar, fundir as duas concepções, a de um objeto e a metáfora do ser vivo, sugerindo ora um animal, ora uma pessoa (não fica claro) que corre, que passa, que voa e que age. Em segundo lugar, ele cria em cima dessa concepção um quadro meio fantasmagórico, meio terrível, como se houvesse um ser (talvez mitológico, mas de qualquer modo misterioso) deliberadamente agindo assim conosco e com o mundo. A metáfora (criativa) "do animal na noite" ajuda a criar o clima. Creio que sua originalidade está em que, a partir das concepções metafóricas que a língua lhe fornece, leva essas concepções às ultimas conseqüências, montando uma atmosfera, um quadro vivo, como se fosse uma peça de teatro, em que tudo se anima. Me parece que a percepção do artista capta o que a alma popular lhe fornece e compõe o quadro a partir daí, em que, inclusive, o que está por trás das metáforas fica a nu. Creio que não é demais dizer que Anibal Machado acaba mostrando, revelando, na crônica, o que Lakoff e Johnson mostram no livro: concepção anímica que está por trás de nossas idéias de tempo.

Note-se que, embora o autor se baseie nas metáforas que a língua lhe fornece, ele produz uma crônica em que a linguagem, embora simples, cotidiana, é combinada de forma original. A Linguagem é coloquial e ao mesmo tempo é literária. Não é fácil dizer quais as semelhanças e as diferenças. É o continuum de que fala Tannen.

Lakoff e Johnson distinguem as metáforas criativas das que eles chamam "literais". As literais são as que informam nosso dia-a-dia. O que A. Machado faz é estender as possibilidades que a língua lhe oferece e criar a partir daí.

A metáfora "o grande clandestino" para se referir a tempo é original mas se baseia também nas concepções metafóricas de tempo da língua do dia-a-dia, porque clandestino é um passageiro, e isto nos remete a "o tempo passa", "passagem" etc. Lakoff e Johnson mostraram como a inflação pode ser também personificada e vista como um adversário, daí falarmos em lutar contra a inflação, vencê-la etc.

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EMBODIEMENT / Apropriação

Definição

O termo é empregado pela história e pela crítica de arte para indicar a incorporação de objetos extra-artísticos, e algumas vezes de outras obras, nos trabalhos de arte. O procedimento remete às colagens cubistas e às construções de Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1882-1963), realizadas a partir de 1912. Nesse momento do cubismo sintético, elementos heterogêneos - recortes de jornais, pedaços madeira, cartas de baralho, caracteres tipográficos, entre outros - são agregados à superfície das telas. As apropriações, na base das colagens, representam um ponto de inflexão na arte do século XX, na medida em que libertam o artista do jugo da superfície. A partir desse momento, a técnica vai ser largamente empregada em diferentes escolas e movimentos artísticos, com sentidos muito variados. Picasso vai encontrar no novo recurso um instrumento de experimentação inigualável, que tem o seu início com Copo e garrafa de Suze (1912).

Apropriações são realizadas por Marcel Duchamp (1887-1968) em seus ready-mades, construídos a partir da utilização inusitada de elementos da vida cotidiana. Com esse procedimento, Duchamp transforma qualquer objeto escolhido ao acaso em obra de arte, em uma crítica radical ao sistema da arte, em consonância com o espírito do dadaísmo. Objetos utilitários sem nenhum valor estético em si são retirados de seus contextos originais e elevados à condição de obra de arte ao ganharem uma assinatura e um espaço de exposições, museu ou galeria. Por exemplo, a roda de bicicleta que encaixada num banco vira < EM>(1913), ou um mictório que invertido se apresenta como Fonte (1917), ou ainda os bigodes colocados sobre a Gioconda [Mona Lisa] (1503/1506) de Leonardo da Vinci (1452-1519) que fazem dela um ready-made retificado, o L.H.O.O.Q. (1919) - lidas em francês estas letras formam a frase "Elle lâche au cul". Os trabalhos de Kurt Schwitters (1887-1948) fornecem outro exemplo dos rendimentos que têm a apropriação em contexto dadaísta. Neles, a ênfase recai sobre elementos e materiais diversos - sobretudo lixo e sucata -, como mostram as obras Merz (1919). "A pintura Merz", diz ele, "não utiliza só a cor e a tela, o pincel e a paleta, senão todos os materiais percebidos pelos olhos e todas as ferramentas necessárias".

Diversos artistas surrealistas fazem uso de apropriações. Colagens e assemblages, montadas a partir de materiais heterogêneos, expressam a lógica de produção surrealista, amparada na idéia de acaso e de escolha aleatória, princípios centrais de criação já para os dadaístas. A célebre frase de Lautrémont é emblemática dessa direção dos experimentos surrealistas: "belo como o encontro casual entre uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecção". A sugestão do escritor se faz notar na justaposição de objetos desconexos e nas associações à primeira vista impossíveis que particularizam as colagens e objetos surrealistas. Que dizer de um ferro de passar cheio de pregos, de uma xícara de chá coberta de peles ou de uma bola suspensa por corda de violino? O Camarão Telefone (1936) - literalmente um aparelho telefônico com um grande camarão rosado posto sobre ele - de Salvador Dalí (1904-1989) é um dos muitos exemplos das apropriações surrealistas.

Nas décadas de 1950 e 1960, a apropriação torna-se um procedimento corrente nas artes visuais. As assemblages, orientadas por uma "estética da acumulação" (todo e qualquer tipo de material pode ser incorporado à obra de arte) se disseminam. A idéia forte que ancora as assemblages diz respeito à concepção de que os objetos díspares reunidos na obra, ainda que produzam um conjunto outro, não perdem o seu sentido primeiro. Menos que síntese, trata-se aí de justaposição de elementos, em que é possível identificar cada peça no interior do arranjo mais amplo. Em 1961, a exposição realizada no Museum of Modern Art - MoMA [Museu de Arte Moderna] em Nova York, The art of assemblage, reúne obras de Jean Dubuffet (1901-1985), as combine paintings de Robert Rauschenberg (1925) e a junk sculpture, o que nos leva a pensar que o recurso da assemblage é utilizado a partir dos anos de 1950 e 1960, na Europa e Estados Unidos, por artistas muito diferentes entre si. As assemblages de Dubuffet incorporam areia, gesso, asas de borboleta e resíduo industrial às telas. Na Itália, Alberto Burri (1915), volta-se para pesquisas semelhantes, explorando as potencialidades expressivas da matéria, com resultados distintos. Os trabalhos são fruto do ato de soldar, costurar e colar sacos, madeiras, papéis queimados, paus, latas e plásticos (Saco, 1953, Combustões, 1957 e Ferros, 1958). Suas pesquisas com lixo e sucata prefiguram a arte junk norte-americana e a arte povera na Itália. Em solo espanhol, a "pintura matérica" realizada por Antoni Tápies (1923), no mesmo período, faz uso de cimento, argila, pó de mármore, materiais de refugo (restos de papel, barbante e tecidos), partes de móveis velhos etc. As combine paintings e as assemblages de Rauschenberg, por sua vez, caracterizam-se pela aplicação de diversos materiais sobre a tela, sobretudo papéis e materiais planos. A partir de 1953, o leque de elementos utilizados pelo artista se

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amplia (Bed, 1955 e Canyon, 1959). As chamadas junk sculptures - que vêm à luz por meio dos trabalhos pioneiros de David Smith (1906-1965) -, fazem uso de refugo industrial, sucatas e materiais descartados. Os conjuntos evocam o ambiente caótico das cidades, o fluxo desordenado das ruas dos grandes centros, por exemplo H.A.W.K (1959), de John Chamberlain (1927), construído com carcaças de automóveis, ou os trabalhos de Ettore Colla (1899-1968), que realiza suas obras a partir de componentes de máquinas, sucatas e objetos quebrados, ou ainda as obras de Mark di Suvero (1933), com resíduos industriais (Mohican, 1967). A arte pop de Richard Hamilton (1922), Rauschenberg, Jasper Johns (1930), entre outros, concede nova importância aos objetos comuns e à vida ordinária, numa tentativa de comunicação direta com o público por meio de signos e símbolos retirados do imaginário que cerca a cultura de massas e a vida cotidiana. A apropriação de materiais impressos do mundo comercial, histórias em quadrinhos, da publicidade, das imagens televisivas e do cinema torna-se um procedimento usual.

Ainda que o termo apropriação obrigue a retomada das experiências realizadas nas primeiras décadas do século XX, como visto, a sua incorporação pelo vocabulário crítico parece se relacionar preferencialmente a certos artistas norte-americanos dos anos de 1980, sobretudo Sherrie Levine (1947) e aqueles reunidos no grupo Neo-Geo, particularmente Jeff Koons (1955). Em seus trabalhos, Levine faz uso de outras obras de arte, por exemplo, pinturas de Claude Monet (1840-1926) e Kasimir Malevich (1878-1935), com o objetivo de criar novas situações e sentidos a partir de imagens conhecidas. Os trabalhos de Koons, por sua vez, lançam mão de canos, tubos frouxos, formas verticais rígidas e outras similares, além de objetos como aspiradores de pó, secos e molhados, que ele exibe dentro de caixas de plástico com luz fluorescente, ao longo dos anos 1980. A apropriação como procedimento artístico coloca em pauta as questões da originalidade, da autenticidade e da autoria da obra de arte, questionando a natureza e definição mesmas da arte.

Largamente utilizada pela arte moderna em todo o mundo, a apropriação se faz notar na produção brasileira em algumas fotomontagens de Guignard (1896-1962), Jorge de Lima (1893-1953) e Athos Bulcão (1918) e em obras de Farnese de Andrade (1926-1996), Waldemar Cordeiro (1925-1973), Aloísio Magalhães (1927-1982), Nelson Leirner (1932), Wesley Duke Lee (1931) e Rubens Gerchman (1942). Mais recentemente se torna uma prática mais recorrente em artistas como Rochelle Costi (1961), Leda Catunda (1961), Rosângela Rennó (1962) e Leonilson (1957-1993) entre outros.

Fontes de Pesquisa

ARCHER, Michael. Art Since 1960. Londres: Thames and Hudson, 1997. 224 p., il. color., p&b. (World of art).ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. Tradução Denise Bottmann, Frederico Carotti; prefácio Rodrigo Naves. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. xxiv, 709 p., il. color.ARTE híbrida. Texto Aracy Amaral, Sérgio Romagnolo. Rio de Janeiro: Funarte, 1989. 44 p., il. color, p&b.CHALVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. 2.ed. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2001.FINEBERG, J. Art since 1940 - strategies of being. New York: Harry N. Abrams, Inc., Publishers, 1995. 496p. il. color.MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO, 2000, SÃO PAULO, SP. Arte contemporânea. Organização Nelson Aguilar; coordenação Suzanna Sassoun; tradução Arnaldo Marques, Ivone Castilho Benedetti, Izabel Murat Burbridge, Katica Szabó, John Norman; apresentação Edemar Cid Ferreira. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo : Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. 255 p., il. color.

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Deu branco?

Com tanta coisa para lembrar, fica difícil não se esquecer do que você ia fazer 5 minutos atrás. Saiba como a sua memória funciona e o que fazer para não perdê-la

Computadores do tamanho de um fio de cabelo. Cérebros eletrônicos programados para entender as emoções do usuário. Bem-vindo ao mundo de Jean Paul Jacob. Ele é gerente do Centro IBM de Pesquisas, um dos laboratórios de tecnologia mais avançados do mundo, localizado em Almadén, na Califórnia, Estados Unidos. Doutor em Matemática e Engenharia, Jacob recebe todo dia mais de setenta e-mails. Atende cerca de trinta telefonemas. Conversa com dezenas de pessoas. É comum também dar palestras em todo o mundo, ocasião em que entra em contato com centenas de colegas e alunos. Na Internet, lê jornais e revistas eletrônicos. Para receber e processar tantas informações, é justo imaginar que ele tenha uma memória tão precisa quanto a dos supercomputadores que projeta, certo? Nem tanto. "Eu costumo esquecer tudo", diz Jacob. Maria Fátima de Módena, 45 anos, dirige uma empresa que monta feiras e exposições pelo Brasil. Logo depois de acordar, começa a ler os jornais. "Uso muito as notícias no meu trabalho", diz. Em seguida, senta-se à frente do computador e abre as dezenas de e-mails que a esperam no início do dia. No serviço, o celular toca o tempo todo. "A pia do estande está vazando." "Deu curto no sistema elétrico." "O equipamento ainda não chegou." E Fátima sai correndo de um lado para outro, acionando colaboradores, tomando providências. Há três anos, a executiva começou a esquecer coisas. "Minha memória estava péssima. Tinha brancos constantemente. Não conseguia guardar nenhum telefone. Até o da minha própria casa às vezes eu esquecia."Estresse? Não só. A avalanche de informações, uma das características mais marcantes do mundo contemporâneo, aqui ou em qualquer outro país, atinge em cheio a nossa habilidade de recordar. As folhas de fax, os programas de televisão, as notícias do jornal e até as matérias das revistas (opa!) representam uma quantidade de dados que parece ser maior do que aquilo que podemos guardar. Os psicólogos até já inventaram um nome para isso: síndrome da fadiga da informação. "Quando estamos abarrotados de dados, fica difícil se concentrar naquilo que realmente precisamos lembrar mais tarde", diz a psicóloga Cynthia Green, coordenadora do programa de aprimoramento da memória da Escola de Medicina de Mount Sinai, em Nova York. "É muito mais um problema de assimilação do que de esquecimento."A assimilação (é bom repetir a palavra, isso ajuda a lembrar) é a primeira etapa do processo de memorização. Inicialmente, as imagens, os diálogos, movimentos, cheiros etc. são captados pelos sentidos. Há um rearranjo no circuito cerebral, uma alteração na taxa de disparos químicos entre os neurônios - as células que fazem a comunicação de dados no cérebro. Essa é a memória de curto prazo, que você usa rapidamente e esquece em seguida. Exemplo disso são os números de telefone, que vão para o espaço assim que você acaba de discá-los. Para que você possa acionar um dado uma ou duas semanas depois de tê-lo captado, é preciso convertê-lo em memória de longo prazo. Esse trabalho fica a cargo do hipocampo. É ele que entra em ação quando você decide quais as frases, os rostos e os números que devem ser arquivados para uso futuro. O hipocampo envia os dados para diferentes locais do córtex cerebral. Lá ocorre uma alteração química, dessa vez mais profunda, que fortalece as conversas entre as células da massa cinzenta. Quanto mais extensa e bem enraizada for a rede de neurônios, mais fácil será o acesso ao escaninho depois. "Mas, se você lida com a informação de maneira superficial - surfando como um possesso pela Internet, por exemplo -, não vai conseguir reter nada", diz a psicóloga Cândida Camargo, do Hospital das Clínicas de São Paulo. Assim que as cenas, os sons, os cheiros etc. são integrados aos circuitos do cérebro, o hipocampo descansa e entra em cena o lobo frontal, estrutura responsável pelo processo de recordação. É ele que traz à tona todas as informações que foram devidamente estocadas. "O lobo frontal coordena as diversas memórias e é a parte do cérebro que o ser humano tem mais desenvolvida em relação aos animais", diz o psicólogo Orlando Bueno, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No lobo frontal, que é tão complexo quanto frágil, a memória de curto prazo e a de longo prazo se completam para formar aquilo que chamamos de raciocínio. Esse processo de recuperação de dados é o que falhou no cérebro do presidente Fernando Henrique Cardoso quando, há alguns dias, na inauguração de uma fábrica da General Motors elogiou, por engano, a Ford - arquiinimiga da GM.

Além do excesso de informações, a falta de memória pode ser provocada também pela depressão, pela ansiedade e pelo estresse. Uma pessoa com tendência ao baixo-astral, por exemplo, acaba se preocupando mais com o que a está aborrecendo do que com os outros aspectos da vida. Um ansioso tem muita dificuldade para se deter por muito tempo no mesmo assunto. O estresse, além de atrapalhar a concentração, pode interferir de outras maneiras. Suspeita-se que ele

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encolha o hipocampo e libere hormônios que danificam as moléculas transportadoras de energia, deixando o cérebro sem força suficiente para operar. Sem contar que existe um parentesco estreito entre o estresse e a síndrome da fadiga da informação. "Uma das principais causas da tensão é o excesso de conteúdo. Em qualquer função de chefia, a informação é tanta que o sujeito acaba esgotado. É quando você acorda à noite pensando em trabalho", diz o neurologista Iván Izquierdo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e um dos cientistas brasileiros mais prestigiados fora do país.Os brancos de memória motivaram e motivam muitas experiências. No ano passado, cientistas da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, começaram a desenvolver a mais promissora das drogas destinadas a ajudar a memória. Depois de alterar o código genético de alguns ratinhos, eles conseguiram elevar a quantidade de receptores de NMDA (um tipo de neurotransmissor, a substância responsável pela comunicação entre os neurônios). Quando esses receptores são repetidamente acionados, ocorrem reações químicas que produzem uma espécie de ponte entre os neurônios e ajudam a fixar a memória. Calcula-se que daqui a oito ou dez anos já esteja disponível no mercado uma droga inspirada nesses estudos. Ela será útil para pessoas que sofrem de doenças degenerativas do cérebro, como as diversas demências e o Alzheimer, que danificam os neurônios. Mas o mais interessante é que, segundo o neurologista Joseph Tsien, diretor da experiência, ela também será útil para pessoas saudáveis que experimentam leves esquecimentos.Há outras novidades no horizonte. Além de estimular a comunicação entre os neurônios, os novos experimentos buscam induzir, com segurança, sua multiplicação. E isso é algo extremamente recente no mundo da ciência. Até dois anos atrás, era tido como certo que neurônios não se reproduziam. Quando um morria, não era substituído. Agora, está comprovado que a memória não é formada somente pelos neurônios que acompanham a pessoa desde o nascimento. "Mesmo na idade adulta é possível contar com uma reserva de novos neurônios", diz o neurologista Paulo Bertolucci, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Eles surgem a partir de células primordiais (ou células-tronco), que existem em todo o sistema nervoso e podem se especializar em atuar no interior do hipocampo. O desafio do momento é conseguir aumentar a produção dessas novas células cerebrais. "Supondo que possamos determinar os genes que ordenam essa multiplicação, seria só mudar essa chave", diz. Algo que, de acordo com Bertolucci, só vai acontecer daqui a muitos anos. De todo modo, a possibilidade de aportar novos neurônios é uma ótima notícia para cérebros cansados de guerra, que já estão na situação de esquecer mais do que lembrar.Claro, há riscos envolvidos. "O cérebro é o resultado de muitos anos de evolução do homem. Qualquer mudança artificialmente induzida poderia alterar esse equilíbrio", diz Gilberto Xavier, neurofisiologista da USP. "Um crescimento dos receptores NMDA poderia levar a uma maior propensão à epilepsia, por exemplo." É quase um curto-circuito. O sucesso da multiplicação dos neurônios depende basicamente de conseguir organizá-los. Do contrário, um crescimento desordenado poderia até virar um tumor.

Depressão, ansiedade e estresse detonam a capacidade de lembrar

Enquanto as pesquisas caminham, quem sofre com a perda de memória já achou alguns paliativos na farmácia. A droga mais popular é um medicamento fitoterápico de nome esquisito: o ginkgo biloba. O ginkgo é de uma família antiqüíssima de plantas, anterior até aos dinossauros. Para começar, ele deixa o sangue menos denso, fazendo-o correr mais rápido pelos vasos e levar mais energia e oxigênio para os neurônios. Além disso, o ginkgo degrada alguns inimigos do cérebro, como a enzima MAO, que atrapalha as comunicações cerebrais, e os radicais livres, que viajam pelo corpo todo depredando e envelhecendo os tecidos. Em uma pesquisa da Unifesp feita este ano, 23 sexagenários - todos saudáveis - tomaram uma cápsula de ginkgo por dia durante seis meses e se submeteram a vários testes. Um deles consistia em repetir, em uma prancha com nove quadradinhos, a seqüência de posições demonstrada. Antes de usarem o remédio, conseguiam repetir em média 3,4 posições. Depois, foram capazes de acertar 5,4. "Eles demostraram uma melhora de memória, de atenção e de aprendizado", diz a psicóloga Ruth Ferreira dos Santos, responsável pela pesquisa. Mas o ginkgo tem suas limitações. Ao deixar o sangue mais diluído, o poder de cicatrização do indivíduo diminui e podem surgir sangramento internos. Na falta de medicamentos totalmente confiáveis, a prática de exercícios físicos aeróbicos (levantar pesos, atividade anaeróbica, não ajuda em nada) aparece como um dos meios mais garantidos de manter uma boa memória. "Eles ativam a circulação do sangue, reduzem o estresse e a ansiedade", diz o professor de Educação Física Marco Túlio de Mello, da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais. As

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atividades em grupo também aprimoram a coordenação motora, que pode ser entendida como a memória que usamos para movimentar o nosso corpo. Uma dieta balanceada, com refeições na hora certa, também contribui. "Quem acorda de manhã, toma uma xícara de café e sai para a rua corre o risco de ter uma memória menos ativa até a hora do almoço", diz Orlando Bueno, da Unifesp. É que a energia necessária ao bom funcionamento do cérebro chega por meio dos alimentos. Acredite ou não, o próprio ato de mastigar, por si só, ajuda. Em uma pesquisa realizada este ano com ratos de laboratório, cientistas da Universidade de Gifu, no Japão, descobriram que o movimento das mandíbulas conserva as lembranças por mais tempo. Não se sabe ainda como isso acontece, mas se especula que ele reduza o estresse e aumente a irrigação do cérebro.Há também exercícios mentais que podem estimular a memória. Um deles é acrescentar outros significados ao que você quer lembrar - uma forma simples de fortalecer as conexões entre os neurônios. Todo bom professor de cursinho pré-vestibular sabe que isso funciona. "Não dá mais para passar conhecimento de uma maneira tradicional. A gente tem que usar piada, contar histórias, músicas e tudo o mais para que os estudantes consigam guardar o conteúdo das aulas", diz Paulo Figueiredo, professor de Biologia do Curso Objetivo, em Lavras, Minas Gerais, que, aliás, está lançando o seu segundo CD com letras de biologia. O... humm, como é mesmo o nome dele?, ah, é mesmo, hipocampo terá seu nome mais facilmente gravado depois que você souber que ele deriva de uma palavra latina que significa cavalo-marinho. O nome é esse porque o formato do hipocampo lembra o do bicho.Também é recomendável que você assuma o comando da massa de informações com que lida. Como? Não deixando que ela controle você. "Determine quando você está mais disponível a receber novos dados e tente limitar a absorção de conhecimentos novos a horas específicas", diz Cynthia Green (aquela médica do Mount Sinai, em Nova York, lembra-se?). A atarefada Fátima (consegue lembrar quem é?) aprendeu a lidar com isso e hoje desliga o celular quando não está trabalhando.

Cientistas japoneses descobriram que mastigar ajuda a conservar a memória

Outra dica: não deixe toda a responsabilidade de lembrar para os seus pobres neurônios. Alimente uma espécie de memória paralela. Liste as coisas que você tem a fazer. Use muito a agenda. O gerente de treinamento da Johnson & Johnson, Roberto Zardo, 45 anos, recebe uma média de cinqüenta e-mails por dia, assina dois jornais, três revistas e navega todo dia na rede. "A entrada de informação é brutal", diz. Para resolver a questão, decidiu se aliar à tecnologia. Sua agenda eletrônica guarda 706 números de telefone e 467 datas de aniversário. É mais de um parabéns por dia. O pesquisador Jacob também tem seus truques. O primeiro é anotar praticamente tudo. Ele transforma em papeizinhos de recado todas as informações que vê ou ouve. Dá a elas um título (com indicações como "recomendo", "preciso") e depois passa para o computador, em que são organizadas em pastas de acordo com uma hierarquia de assuntos. "Eu não me lembro da informação, mas sim de onde ela está", diz. Seus dados, compromissos, endereços e telefones se encontram todos em um disco rígido que ele carrega para todo lugar que vai e acopla diversos computadores. Até mesmo as conversas telefônicas podem ser incluídas nesse arquivo, pois ele grava cerca de vinte chamadas por dia. O recado é um só: tente liberar a cuca de tudo que puder ser armazenado em outro lugar.Nas livrarias, existem vários livros cheios de promessas. Memória Turbinada, Como Ter uma Memória Superpoderosa. Coisas do tipo. Todos trazem exercícios que buscam ajudar a fixar os arquivos do passado. Alguns ensinam a construir associações tão infalíveis quanto estranhas. Considere, por exemplo, a seguinte frase: "Cavalo-marinho não é lobo mau." Gravando-a, você poderá lembrar-se com mais facilidade de que tanto o hipocampo (cavalo-marinho) quanto o lobo frontal (lobo mau) estão relacionados ao armazenamento e à recuperação de informações, nessa ordem.Bem, mesmo que você não aproveite tanto as dicas dos livros, saiba que o simples fato de ler já é um bom exercício para a memória. Ao ligar os novos conhecimentos ao que já sabe, você promove um caloroso diálogo entre seus neurônios, o que é fundamental para a construção das lembranças. Com tudo isso, temos certeza de que até os mínimos detalhes desta matéria ficarão para sempre na sua mente. Você vai se lembrar de que o ginkgo tem forma de cavalo-marinho, que o hipocampo pode se multiplicar e que os neurônios são vegetais que já existiam na época dos dinossauros

Por Duda Teixeira e Rafael KenskiSuperinteressante – agosto de 2000

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O Cérebro

Quem é você?Tente responder a essa pergunta sem citar filósofos existencialistas ou dramas shakespeareanos e provavelmente lhe restará contar a história da sua vida, suas preferências, emoções, crenças, enfim, tudo aquilo que lhe faz ver o mundo de uma maneira particular. É uma espécie de filme autobiográfico que está agora mesmo em cartaz – por mais concentrado que você esteja na leitura deste artigo. São flashes do último final de semana, do sabor da sobremesa favorita, lembranças da infância mescladas com sensações de alegria, cansaço, fome. Você é capaz de sentir até o tecido da roupa que está usando agora, ou, caso esteja à vontade, a sensação de estar nu. E o mais importante: no fundo, você sabe que essas imagens e sensações são exclusivas. Ninguém, além de você, pode entrar na sua mente e assistir ao mesmo filme.

Mas como essa superprodução é escrita, produzida e dirigida no seu cérebro. Ou melhor: como um órgão com a consistência de um pudim é capaz de criar pensamentos, memória, medo, prazer e toda a complexidade que distingue o homem de outras espécies?Se a astronomia explicou com detalhes as milhares de galáxias e a biologia mapeou nossos mais de 30 000 genes, o cérebro sempre foi uma espécie de caixa preta insondável. Como não se conhecia o interior dessa caixa, durante séculos seu estudo ficou restrito às especulações de teólogos e filósofos. Mas isso está mudando. A moderna neurologia tem revelado uma visão surpreendente do órgão mais complexo do corpo e promete deixar o século XXI conhecido como o século em que entendemos o cérebro. “Começamos a decifrar esse mistério”, diz o neurologista português António Damásio, pesquisador da Universidade de Iowa, Estados Unidos, e autor do livro O Mistério da Consciência. “Comparada com a era da corrida espacial, estamos a meio caminho de explorar esse universo chamado cérebro.”

A analogia com a astronomia não é gratuita. Há no cérebro uma constelação gigante com mais de 100 bilhões de células nervosas, os conhecidos neurônios. A conexão entre os neurônios – sinapses – controla desde as batidas do seu coração até a lembrança de um amor antigo. O número dessas conexões supera o de estrelas nas galáxias e se você resolvesse

contar uma delas por segundo, apenas na região do córtex (camada externa do cérebro), precisaria de 32 milhões de anos.

Enquanto nossos 100 bilhões de neurônios equivalem ao número de árvores na floresta amazônica, as sinapses seriam cada folhinha de todas essas árvores.

Isso explica por que pesando só 1,3 quilo (menos de 2,5% do peso médio de um adulto), o cérebro consome 20% do total de energia produzida no corpo – uma taxa dez vezes maior que a de outros órgãos. O combustível vem dos carboidratos dos alimentos e do oxigênio que respiramos. Por precisar de tanta energia, bastam apenas alguns minutos sem oxigênio para a temida morte cerebral – o momento em que a família tem que decidir sobre a doação dos órgãos do paciente. E mesmo que a medicina possa um dia transplantar qualquer órgão do corpo, não faria sentido receber o cérebro de outra pessoa. Ainda que isso fosse possível, seria mais correto afirmar que foi o cérebro transplantado que recebeu um novo corpo.

Confuso?

É que para os neurologistas, o cérebro guarda o que você é. Incluindo aí a sua personalidade.A primeira grande prova, na medicina, de que até a personalidade pode mudar após uma mudança física no cérebro surgiu com um bizarro acidente ocorrido em 1848, no Estado de Vermont, EUA. Phineas Gage, um capataz de 25 anos que trabalhava na construção de ferrovias, foi vítima de um “acidente maravilhoso”, segundo a manchete do jornal Vermont Mercury no dia 22 de setembro daquele ano. Após uma explosão, uma barra de ferro em forma de lança entrou pelo lado esquerdo da sua face, atravessou a base do crânio e saiu como um projétil pelo topo da cabeça. Gage caiu no chão, sofreu convulsões e, logo depois, ocorreu o inesperado: recobrou a consciência e voltou a falar normalmente. Alguns meses após o acidente, os médicos e os amigos de Gage notaram que ele não era o mesmo. Segundo o relato da época, ele sofrera uma mudança abrupta no caráter. Conhecido até então como uma pessoa amigável e trabalhadora, Gage se transformara numa pessoa insuportável, arrogante e indiferente aos outros – para alguns, ele tinha se transformado num cafajeste.

Uma única atividade do cérebro requer o trabalho de diversas regiões

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Apesar de o acidente ter ocorrido há mais de 150 anos, somente hoje os pesquisadores sabem o suficiente para afirmar que a área afetada no cérebro de Gage, o córtex pré-frontal (camada externa do cérebro logo abaixo da testa), tem um papel importante em nossa capacidade de sentir emoções. As imagens computadorizadas do crânio de Gage e a análise de pacientes que sofreram danos na mesma região mostraram que, quando essa área é afetada, os pacientes parecem incapazes de sentir emoções como antes. Com a perda dessa capacidade, tornam-se geralmente indiferentes, distantes e passam a ter dificuldades para tomar decisões em suas vidas.

Descobertas como essas vêm mudando radicalmente o estudo da mente. Até há pouco tempo, as emoções humanas eram assunto quase exclusivo do divã de um psicanalista. Cabia ao terapeuta buscar no histórico do paciente um fato que justificasse a mudança de comportamento. No caso de Gage, seria razoável prever que seu comportamento mudasse devido ao trauma psicológico sofrido. Depois de tudo que passou, ele podia ter concluído que não valia a pena ser o mesmo e mudado radicalmente seu estilo de vida. As novas pesquisas, no entanto, indicam que não foi apenas isso, reacendendo o polêmico debate sobre a relação mente e cérebro.

Encontrar no cérebro uma área responsável para cada atributo da mente sempre foi uma tarefa ingrata. No século XVIII, o médico vienense Franz Gall analisou as saliências do crânio de pessoas mortas, tentando encontrar algumas protuberâncias que pudesse associar com a descrição da personalidade dessas pessoas quando vivas. Conhecido como frenologia, esse método mapeou o crânio em 32 regiões. Uma delas, por exemplo, era responsável pela “propensão para roubar” – e se você encontrasse alguém com uma saliência grande nessa área, era melhor ficar de olho na carteira. Mas a frenologia foi para o limbo em 1861, quando o neuroanatomista e antropólogo francês Paul Broca analisou o cérebro de um paciente que tinha distúrbios na fala e acabara de morrer. A área atingida no cérebro desse paciente era completamente diferente da prevista para a fala pela frenologia. E apesar da grande revolução na captação de imagens do cérebro no século XX, só nos últimos 20 anos os cientistas puderam ver finalmente quais áreas do cérebro estão em ação quando lemos, falamos ou estamos assustados. A técnica de Tomografia por Emissão de Posítrons mede a quantidade de energia que cada área consome em uma dessas atividades. O resultado foi o que muitos já desconfiavam: uma única tarefa requer o casamento de várias regiões, mostrando como um dano localizado pode repercutir em outra área aparentemente sem ligação com a região atingida.

Assim ficou mais fácil explicar por que a perda das emoções, por exemplo, podia ter conseqüências negativas na capacidade humana de agir racionalmente. Isso mesmo: as emoções, consideradas tradicionalmente pela ciência um entrave para a razão, são, na verdade, muito mais aliadas do que vilãs. “Imagine que você ouvisse um grunhido na floresta e não sentisse medo”, diz Dylan Evans, neurologista da Universidade de Oxford. “Esperaria racionalmente para identificar o animal e então... seria tarde”. Autor do livro Emotions – The Science of Sentiments (Emoções – A ciência dos sentimentos, ainda inédito no Brasil), Dylan diz que até a tristeza, quando não é depressão, tem um papel importante para a inteligência. “A tristeza nos obriga a repensar atitudes, mudar, evoluir”, diz. “Evitá-la a qualquer custo tomando antidepressivos como Prozac pode nos tornar frios, distantes e pessoas menos lapidadas do que poderíamos ser.”

Lembra o doutor Spock, o personagem de orelha pontiaguda da série Jornada nas Estrelas – membro de uma espécie mais inteligente por ser pura razão e zero sensibilidade? Os cientistas estão descobrindo que Spock seria, na verdade, menos inteligente que um humano médio e emotivo. “É claro que há momentos em que a emoção pode perturbar o raciocínio”, diz o neurologista António Damásio. “Mas ela agiliza nossa tomada de decisões.” Damásio diz que um de seus pacientes com danos na mesma região afetada em Gage perdia quase uma hora apenas para marcar a próxima consulta. “Sem emoções, ele tinha que enumerar lado a lado todos os argumentos a favor e contra o dia marcado”, diz. “Não conseguia sentir na pele as conseqüências de suas decisões para agir rapidamente.” Sabe aquele sentimento ruim que você já deve ter sentido na hora de decidir se vai ou não trair uma pessoa de que gosta? São as emoções lhe antecipando na pele o que pode ocorrer caso você vá em frente. Sem o friozinho na barriga, puramente emocional, decisões como essa levariam muito mais tempo. Não é à toa que as emoções são consideradas a porta para a compreensão do maior enigma da mente: a consciência.

Aparentemente, qualquer um pode reconhecer a consciência – pelo menos quando está sóbrio e acordado. Mas você já parou para pensar como o mundo seria sem ela? Para Victor S. Johnston, professor de biopsicologia da Universidade Estadual de Novo México, o mundo não passaria de um amontoado de

Fora do cérebro, o mundo não tem cores, luz, cheiro, sabor ou textura

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matéria e energia sem cores, luz, cheiro, sabor, textura. Autor do livro Why We Feel? (Por que sentimos?, inédito no Brasil) Johnston diz que nossas experiências conscientes não passam de ilusões criadas para que a espécie humana se adapte melhor ao seu meio ambiente. “O cheiro desagradável de um ovo podre não existe fora da nossa consciência”, diz o pesquisador. “Somos nós que sentimos esse cheiro para evitar que comamos algo cheio de bactérias e venhamos a morrer intoxicados.” Como tudo tem suas compensações, o prazer que experimentamos com o sexo seria o melhor lado dessa ilusão. Tudo para lembrar que você precisa cuidar para que os seus genes continuem a existir, mesmo depois da sua morte.

Assim como o prazer proporcionado pelo sexo e por sua sobremesa favorita, as emoções também não existiriam fora do cérebro. É como se o mundo não existisse – e só o que houvesse fosse nossa percepção desse mundo. “O sentimento de um belo pôr-do-sol ou de uma paixão arrebatadora só existe em nossas mentes”, diz Johnston. “Essas sensações são propriedades do cérebro humano, assim como o sistema nervoso de um urubu o programou para sentir prazer diante de um pedaço de carne podre.” Mesmo que a comparação com um urubu não seja lá das mais agradáveis, a visão das emoções como um produto do cérebro e não do mundo exterior vem ajudando os cientistas a entender mais sobre a consciência. “Enquanto a emoção é uma espécie de primeiro sinal do que está acontecendo em nosso corpo e à nossa volta, a consciência é o conjunto de emoções e de outras representações que formam o filme da mente”, diz o neurologista Henrique Del Nero, da Universidade de São Paulo.

Mas em que momento a consciência surge no cérebro? Susan Greenfield, pesquisadora da Universidade Oxford e autora de diversos livros sobre o tema, diz que tudo tem início com as conexões entre os neurônios logo após o nascimento. “É nesse momento que o mundo começa a significar alguma coisa para nós.” Daí para a frente, cada vez que escutamos um barulho, conversamos com alguém ou comemos uma torta de sabor diferente, uma imperceptível mudança ocorre no desenho dessas conexões no cérebro. “É como uma constelação que se expande e se contrai, de acordo com a quantidade de conexões que está sendo estimulada”, diz Greenfield. “Quanto mais o mundo passa a ter significado para você, mais conexões são feitas em seu cérebro.”

Apesar dos novos modelos da mente, os cientistas reconhecem que ainda falta muito para o entendimento de como essas conexões se articulam para produzir nossa capacidade de refletir sobre a própria existência. “Ainda falta um Newton na neurologia”, diz Henrique Del Nero. “Tudo o que temos são mapas provisórios que podem nos ajudar a decifrar esse universo.” Resta saber se, um dia, essa exploração poderá responder à pergunta que aflige os homens desde que o cérebro se tornou capaz de desvendar o cérebro: existe alguma forma de consciência após a nossa morte?Até mesmo René Descartes, o filósofo francês que, no século XVI, provou que existimos pela consciência “penso, logo existo”, o cérebro era uma máquina pilotada pela alma. Descartes chegou a propor que a alma estava alojada na glândula pineal, que hoje os cientistas atribuem ao sono. “Gostaria de acreditar numa vida eterna, mas não tenho nenhuma evidência de que a consciência existe fora do corpo”, diz o neurologista António Damásio. “De qualquer forma, precisamos ser honestos para reconhecer que a neurologia não pode responder a essa pergunta hoje.” Mesmo que um dia alguém consiga “provar” que não existe nada além da morte física do cérebro, Damásio diz que a vida humana não perderá sua beleza e mistério. “O curioso é que a mesma consciência que nos faz saber que um dia morreremos, nos permite ter uma vida incrivelmente bela”, diz Damásio.

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Os Estados Afetivos     Para falar de Inteligência emocional e Psicologia emocional, teremos necessariamente de falar sobre os estados afetivos e da maneira como estes são percepcionados, compreendidos e interpretados pelo ser humano, além é claro da forma como estes se inter-relacionam com as nossas emoções.            Segundo um artigo publicado na revista Cérebro e Mente, por Júlio Amaral e Jorge de Oliveira (1998), estes autores defendem que os estados afetivos dos seres humanos se diferenciam em relação aos restantes seres vivos devido a uma “(...) intensa malha de conexões entre a área pré-frontal e as estruturas límbicas tradicionais, a espécie humana é aquela que apresenta a maior variedade de sentimentos e emoções(...) e quanto mais evoluído é o mamífero, mais acentuados são os seus comportamentos. Já a ablação de partes importantes do sistema límbico (as experiências foram feitas com hamsters) faz com que o animal perca tanto a afetividade maternal quanto o interesse lúdico(...) (Amaral, J. Oliveira, J. 1998) in revista , Cérebro e Mente.           Neste pequeno excerto do referido artigo denota-se de uma forma bastante evidente a importância das estruturas límbicas, no que diz respeito aos estados afetivos.             Ao longo da evolução da Humanidade tem se assistido à tentativa de definição dos estados afetivos, emocionais e das próprias sensações. O ser Humano sempre procurou descrever e compreender o significado de tais estádios, que por vezes se lhe apresentavam como sendo complexos e confusos, e que foi ainda segundo os mesmos autores devido ao desenvolvimento da linguagem que “nomes foram atribuídos a essas e a outras sensações, permitindo sua delimitação e explicitação a outros membros do grupo. Porém, até hoje, dada a existência de um componente subjetivo importante, difícil de ser comunicado, não existe uniformidade quanto a melhor terminologia a ser empregada para designar essas sensações. Assim é que se utiliza, de maneira imprecisa e intercambiável, quase como sinônimos, os termos afeto, emoção e sentimento. Entretanto, assim pensamos, a cada uma dessas palavras deve ser atribuída uma definição precisa, em respeito à etimologia e às diferentes reações físicas e mentais que produzem. Afeto (do Latim affectus, significando afligir, abalar, atingir) é definido por Aurélio como sendo "um conjunto de fenômenos psíquicos que se manifestam sob a forma de emoções, sentimentos ou paixões, acompanhadas sempre da impressão de prazer ou dor, de satisfação ou insatisfação, agrado ou desagrado, alegria ou tristeza" , Curiosamente, existe uma tendência universal para só considerar como afeto (e seus derivados, afetividades, afeição, etc.) as impressões positivas.

Assim, ao se dizer "sinto afeto por fulana" estou manifestando amor ou carinho; nunca raiva ou medo. Já em relação às emoções e sentimentos, o uso se aplica nos dois sentidos : "ela tem bons sentimentos; eu tenho sentido emoções desagradáveis." No dizer de Nobre de Melo, os afetos designam, genericamente, situações vivenciadas, sob a forma de emoções ou de sentimentos. Emoções (do Latim emovere, significando movimentar, deslocar) são, como sua própria etmologia sugere, reações manifestas frente àquelas condições afetivas que, pela sua intensidade, mobilizam-nos para algum tipo de ação(...)podemos dizer que as emoções se caracterizam por uma súbita ruptura do equilíbrio afetivo. Quase sempre são episódios de curta duração, com repercussões concomitantes ou consecutivas, leves ou intensas, sobre diversos órgãos, criando um bloqueio parcial ou total da capacidade de raciocinar com lógica. Isto pode levar a pessoa atingida a um alto grau de descontrole psíquico e comportamental. Por contraste, os sentimentos são tidos como estados afetivos mais duráveis, causadores de vivências menos intensas, com menor repercussão sobre as funções orgânicas e menor interferência com a razão e o comportamento. Exemplificando: amor, medo e ódio são sentimentos; paixão, pavor e cólera (ou ira) são emoções".

(Amaral, J. Oliveira, J. 1998) in revista , Cérebro e Mente.         

Depois desta abordagem do que são os estados afetivos, como evoluíram e a forma como se relacionam com as nossas emoções, parece-nos agora importante aprofundar determinadas noções anatomo-fisiológicas relacionadas com a formação das nossas emoções, com vista a uma melhor compreensão do tema proposto.   

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As Estruturas Cerebrais Implicadas na Formação das Emoções  Falar de Psicologia Emocional e Inteligência emocional implica necessariamente falar das estruturas cerebrais implicadas na formação das emoções.

Nesse sentido é importante destacar que as estruturas envolvidas com a emoção se interligam intimamente e que nenhuma delas é exclusivamente responsável por este ou aquele tipo de estado emocional. No entanto, algumas contribuem mais que outras para este ou aquele determinado tipo de emoção Assim, veremos, uma a uma, aquelas sobre as quais mais se conhece.

Amídala ( Amaral, J. Oliveira, J.1998) – é uma pequena estrutura em forma de amêndoa, situada dentro da região antero-inferior do lobo temporal, que se interconecta com o hipocampo, os núcleos septais, a área pré-frontal e o núcleo dorso-medial do tálamo. Essas conexões garantem o seu importante desempenho na mediação e controle das atividades emocionais de ordem maior, como amizade, amor e afeição, nas exteriorizações do humor e, principalmente, nos estados de medo e ira e na agressividade. A amídala é fundamental para a auto-preservação, por ser o centro identificador do perigo, gerando medo e ansiedade e colocando o animal em situação de alerta, aprontando-se para se evadir ou lutar. A destruição experimental das amídalas ( são duas, uma para cada um dos hemisférios cerebrais) faz com que o animal se torne dócil, sexualmente indiscriminativo, afetivamente descaracterizado e indiferente às situações de risco. O estímulo elétrico dessas estruturas provoca crises de violenta agressividade. Em humanos, a lesão da amídala faz, entre outras coisas, com que o indivíduo perca o sentido afetivo da percepção de uma informação vinda de fora, como a visão de uma pessoa conhecida. Ele sabe quem está vendo mas não sabe se gosta ou desgosta da pessoa em questão.

Ainda acerca da amídala Daniel Goleman (2000) refere citando LeDoux, que as suas pesquisas explicam como a amídala pode assumir o controlo daquilo que fazemos enquanto o cérebro pensante, o neocórtex, está ainda a procurar chegar a uma decisão. Visto que o funcionamento da amídala e as suas interações com o neocórtex estão no cerne da inteligência e Psicologia emocional. Damásio (2000) reforça ainda mais estas idéias a respeito da amídala, afirmando que ela é o centro impulsionador das emoções, é ela quem dá o alarme às principais zonas do córtex que controlam as respostas fisiológicas e emocionais do nosso corpo, determinando uma imagem ou percepção dos estados emocionais, que por sua vez provocam diversas sensações, tais como, o medo, cólera, felicidade, a tristeza etc. A amídala pode se dizer que funciona como “sentinela psicológica”, funcionando também como armazém dos nossos estados emocionais.

Hipocampo ( Amaral, J. Oliveira, J. 1998) - Está particularmente envolvido com os fenômenos de memória, em especial com a formação da chamada memória de longa duração (aquela que persiste, as vezes, para sempre). Quando ambos os hipocampos ( direito e esquerdo) são destruídos, nada mais é gravado na memória. O indivíduo esquece, rapidamente, a mensagem recém recebida. Um hipocampo intacto possibilita ao animal comparar as condições de uma ameaça atual com experiências passadas similares, permitindo-lhe, assim, escolher qual a melhor opção a ser tomada para garantir sua preservação.

Tálamo ( Amaral, J. Oliveira, J. 1998) - Lesões ou estimulações do núcleo dorso-medial e dos núcleos anteriores do tálamo estão correlacionadas com alterações da reatividade emocional, no homem e nos animais. No entanto, a importância desses núcleos na regulação do comportamento emocional possivelmente decorre, não de uma atividade própria, mas das conexões com outras estruturas do sistema límbico. O núcleo dorso-medial conecta com as estruturas corticais da área pré-frontal e com o hipotálamo. Os núcleos anteriores ligam-se aos corpos mamilares no hipotálamo ( e, através destes, via fornix, com o hipocampo) e ao giro cingulado, fazendo, assim, parte do circuito de Papez.

Hipotálamo ( Amaral, J. Oliveira, J. 1998) - Esta estrutura tem amplas conexões com as demais áreas do prosencéfalo e com o mesencéfalo. Lesão dos núcleos hipotalámicos interferem com diversas funções vegetativas e com alguns dos chamados comportamentos motivados, como regulação térmica, sexualidade, combatividade, fome e sede. Aceita-se que o hipotálamo desempenha, ainda, um papel nas emoções. Especificamente, as partes laterais parecem envolvidas com o prazer e a raiva, enquanto que a porção mediana parece mais ligada à aversão, ao desprazer e `a tendência ao riso (gargalhada) incontrolável. De um modo geral, contudo, a participação do hipotálamo é menor na gênese do que na expressão (manifestações sintomáticas) dos estados emocionais. Quando os sintomas físicos da emoção aparecem, a

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ameaça que produzem, retorna, via hipotálamo, aos centros límbicos e, destes, aos núcleos pré-frontais, aumentando, por um mecanismo de "feedback" negativo, a ansiedade, podendo até chegar a gerar um estado de pânico. O conhecimento desse fenômeno tem importante sentido prático, dos pontos de vista clínico e terapêutico.

Giro Cingulado ( Amaral, J. Oliveira, J. 1998) - Situado na face medial do cérebro, entre o sulco cingulado e o corpo caloso (principal feixe nervoso ligando os dois hemisférios cerebrais). Há ainda muito por conhecer a respeito desse giro, mas sabe-se que a sua porção frontal coordena odores, e visões com memórias agradáveis de emoções anteriores. Esta região participa ainda, da reação emocional à dor e da regulação do comportamento agressivo. A ablação do giro cingulado (cingulectomia) em animais selvagens, domestica-os totalmente. A simples secção de um feixe desse giro (cingulotomia), interrompendo a comunicação neural do circuito de Papez, reduz o nível de depressão e de ansiedade preexistentes.

Tronco Cerebral ( Amaral, J. Oliveira, J. 1998) - O tronco cerebral é a região responsável pelas "reações emocionais", na verdade, apenas respostas reflexas, de vertebrados inferiores, como os répteis e os anfíbios. As estruturas envolvidas são a formação reticular e o locus cérulus, uma massa concentrada de neurônios secretores de nor-epinefrina. É importante assinalar que, até mesmo em humanos, essas primitivas estruturas continuam participando, não só dos mecanismos de alerta, vitais para a sobrevivência, mas também da manutenção do ciclo vigília-sono. Outras estruturas do tronco cerebral, os núcleos dos pares cranianos, estimuladas por impulsos provenientes do córtex e do estriado (uma formação subcortical), respondem pelas alterações fisionômicas dos estados afetivos : expressões de raiva, alegria, tristeza, ternura, etc.

Área Ventral ( Amaral, J. Oliveira, J.1998) - Na parte mesencefálica (superior) do tronco cerebral existe um grupo compacto de neurônios secretores de dopamina - área segmental ventral - cujos axônios vão terminar no núcleo accumbens, (via dopaminérgica mesolímbica). A descarga espontânea ou a estimulação elétrica dos neurónios desta última região produzem sensações de prazer, algumas delas similares ao orgasmo. Indivíduos que apresentam, por defeito genético, redução no número de receptores das células neurais dessa área, tornam-se incapazes de se sentirem recompensados pelas satisfações comuns da vida e buscam alternativas de prazer atípicas e nocivas como, por exemplo, alcoolismo, cocainomania, compulsividade por alimentos doces e pelo jogo desenfreado.

Septo ( Amaral, J. Oliveira, J. 1998) - Anteriormente ao tálamo, situa-se a área septal, onde estão localizados os centros do orgasmo (quatro para a mulher e um para o homem). Certamente por isto, esta região se relaciona com as sensações de prazer, mormente aquelas associadas às experiências sexuais.

Área Pré-Frontal ( Amaral, J. Oliveira, J. 1998) - A área pré-frontal compreende toda a região anterior não motora do lobo frontal. Ela se desenvolveu muito, durante a evolução dos mamíferos, sendo particularmente extensa no homem e em algumas espécies de golfinhos. Não faz parte do circuito límbico tradicional, mas suas intensas conexões bidireccionais com o tálamo, amídala e outras estruturas sub-corticais, explicam o importante papel que desempenha na gênese e, especialmente, na expressão dos estados afetivos.

Quando o córtex pré-frontal é lesado, o indivíduo perde o senso de suas responsabilidades sociais, bem como a capacidade de concentração e de abstração. Em alguns casos, a pessoa, conquanto mantendo intactas a consciência e algumas funções cognitivas, como a linguagem, já não consegue resolver problemas, mesmo os mais elementares. Quando se praticava a lobotomia pré-frontal, para tratamento de certos distúrbios psiquiátricos, os pacientes entravam em estado de "obstrução afetiva", não mais evidenciando quaisquer sinais de alegria, tristeza, esperança ou desesperança. Em suas palavras ou atitudes não mais se vislumbravam quaisquer resquícios de afetividade.  

A Natureza da Inteligência Humana   O que permite distinguir pessoas que com um QI elevado falham freqüentemente, enquanto outras com um QI modesto se portam surpreendentemente, será aquilo a que se chama inteligência emocional, que inclui o auto-controlo, o zelo, a persistência e a capacidade de nós próprios nos motivarmos. Através da inteligência emocional, tentamos compreender o que significa trazer inteligência à emoção e como fazê-lo.(Goleman,1995)

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Durante a vida acadêmica, o fato de existirem muitas pessoas com um alto QI elevado, não as impede de cometer atos irracionais, pelo simples fato de que a inteligência acadêmica tem pouco a ver com a vida emocional. As pessoas que possuem um QI elevado podem, no que respeita às suas vidas particulares, serem péssimos pilotos. Porém, em regra geral, muitas pessoas com um QI baixo acabam por desempenhar funções subalternas, enquanto que as que têm um QI elevado tendem a ser mais bem pagas, mas nem sempre.

Para além disto existem outras características, que se podem resumir na inteligência emocional, como, a capacidade de a pessoa se motivar a si mesma, sendo persistente, apesar das frustrações; de controlar os impulsos e adiar a recompensa; de regular o seu próprio estado de espírito e impedir que o desânimo impeça a faculdade de pensar; de sentir empatia e de ter esperança.(Goleman, 1995)

Segundo Arnold (1992, cit. Goleman, 1995) “... saber que alguém faz parte do grupo dos melhores alunos só nos diz que essa pessoa é excelente no desempenho de certas tarefas que são medidas por notas. Nada nos diz a respeito como reage às vicissitudes da vida”. (pág..56)Apesar de QI elevado não ser garantia de prosperidade, prestigio ou vencer na vida, o fato é que as escolas e a própria cultura fixam-se nas capacidades acadêmicas, ignorando assim a inteligência emocional, que engloba um conjunto de características fundamentais para o nosso destino pessoal. Várias provas testemunham que as pessoas que conhecem e controlam os seus próprios sentimentos e sabem também reconhecer e lidar perfeitamente com os sentimentos dos outros, levam vantagem em todos os domínios da vida, porém aqueles que não conseguem obter um determinado controlo sobre as suas vidas emocionais travam constantemente batalhas intimas que os impede de produzir trabalho continuado e pensamentos claros.(Goleman, 1995)

Segundo Gardner (1986, cit. Goleman, 1995) “... a contribuição mais importante que a escola pode fazer para o desenvolvimento de uma criança, é ajudar a encaminhá-la para a área onde os seus talentos lhe sejam mais úteis, onde se sinta satisfeita e competente.” (pág.57)A educação deve alimentar em vez de ignorar ou até frustrar os talentos. Ao encorajar a criança a desenvolver todo o tipo de capacidades a que um dia recorrerá para ter sucesso, ou que utilizará para se realizar naquilo que fizer, a escola transforma-se numa educação da arte de viver. Em 1983, Gardner publica “ Frames of Mind”, onde tem visão de inteligência múltipla, cujo modelo vai para além do conceito padrão de QI como um fator único e imutável. Desta maneira Gardner sustem que possuímos 7 tipos de inteligência distintas, cada uma delas relativamente independentes das outras- Inteligência musical; Inteligência cinestésica – corporal; Inteligência lógico-matemática; Inteligência linguistica; Inteligência intrapessoal2[1] e Inteligência Interpessoal3[2]. (Goleman, 1995)

A respeito das inteligências pessoais, segundo Gardner (1993, cit. Goleman, 1995) “ A inteligência interpessoal é a capacidade de compreender as outras pessoas; o que é que as motiva, como é que funcionam, como trabalhar cooperativamente com elas. Os vendedores, políticos, professores, clínicos e líderes religiosos bem sucedidos terão tendência para ser pessoas possuidoras de um elevado nível de inteligência interpessoal. A inteligência intrapessoal (...) é uma capacidade correlativa, voltada para dentro. É a capacidade de criarmos um modelo correto e verídico de nós mesmos e de usar esse modelo para funcionar eficazmente na vida”. (pág.59)         A visão de Gardner a respeito destas inteligências põe a tônica na cognição, isto é, a compreensão de nós mesmos e dos outros em termos de motivos, de hábitos de trabalho e na interiorização desse conhecimento na condução da nossa vida e das relações que temos com os outros. No seu trabalho Gardner concentra-se mais na cognição dos sentimentos, do que no papel das sensações nessas inteligências. Contudo, Gardner sabe bem a importância que as capacidades emocionais e de relacionamento têm nos altos e baixos da vida. (Goleman, 1995)

Estas características nucleares da inteligência pessoal vêm a constituir-se afinal como a essência em si do conceito de inteligência emocional tal como originalmente o definem Salovey e Mayer (1990, cit.Veríssimo,2000): “capacidade de reconhecer as emoções e os sentimentos pessoais e dos outros, de os discriminar, e de usar esta informação para orientar o seu modo de pensar e agir”. (pág.30)

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Salovey e Mayer (1990, cit. Veríssimo, 2000) referem que “ os processos subjacentes à inteligência emocional são desencadeados quando informações impregnadas de afeto acedem inicialmente ao sistema perceptivo.” (pág.31)

Segundo Salovey, & Mayer, (1990, cit.Lewis, Havinland, Jones,2000) “ as competências emocionais são fundamentais para uma inteligência social. Isto porque, situações e dificuldades sociais estão muito ligadas a uma componente afetiva. Além disso as competências sociais não só se manifestam nas experiências sociais como também nas experiências com o indivíduo.” (pág.504)

A seguinte tabela apresenta um modelo por quatro campos, cada um representando um grupo de características ordenadas hierarquicamente segundo a sua complexidade.  Inteligência EmocionalPercepção e expressão da emoção         Capacidade para identificar emoções tanto a nível físico como psicológico          Capacidade para identificar emoções noutras pessoas e objetos          Capacidade para exprimir emoções correspondentes e exprimir necessidades relacionadas com essas emoções          Capacidade para discriminar expressões emocionais, honestidade desonestidade   Facilidade emocional de pensamento         Capacidade para redirecionar e analisar a prioridade dos seus pensamento baseados em sentimentos associados a objetos, acontecimentos e a outras pessoas.          Capacidade de gerar emoções que facilitam julgamentos e recordações associadas a sentimentos          Capacidade para capitalizar mudanças de espírito para se poder integrar em múltiplos pontos de vista, assumindo diferentes perspectivas.          Capacidade para utilizar os estados emocionais para facilitar a resolução de problemas e na criatividade.   Compreender e analisar informação emocional; emprego do conhecimento emocional          Capacidade de compreender como diferentes emoções estão relacionadas          Capacidade de perceber as causas e conseqüências das emoções          Capacidade de interpretar emoções complexas tal como estados emocionais contraditórios          Capacidade para compreender e prever transições entre emoções   Regulação da emoção         Capacidade de gerir tanto emoções agradáveis como também desagradáveis          Capacidade de refletir sobre as emoções          Capacidade de se envolver, prolongar ou desligar de um determinado estado emocional          Capacidade de gerir as suas emoções  

Tabela adaptada de Mayer & Salovey (1997, cit Lewis, Havinland, Jones,2000)              Este conceito de inteligência emocional proposto por Salovey e Mayer inclui o fato de que são meta-habilidades que podem der categorizadas em cinco competências ou dimensões

1-      Conhecer as nossas próprias emoções. A autoconsciência é a pedra-base da inteligência emocional. As pessoas que têm uma maior certeza acerca dos seus sentimentos governam melhor as suas vidas, tendo uma maior certeza e segurança das decisões que tomam.2- Gerir as emoções. Lidar com as sensações de modo apropriado é uma capacidade que nasce do auto-conhecimento. As pessoas a quem falta esta capacidade estão em constante luta com sensações de angústia, enquanto que aquelas que a possuem, recuperam mais facilmente dos tombos da vida.3- Motivarmo-nos a nós mesmos. Mobilizar as emoções ao serviço de um objetivo é essencial para concentrar a atenção, para a automotivação, para a competência e para a criatividade. O auto-controlo emocional está subjacente a todo o tipo de realizações.

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4-Reconhecer as emoções dos outros. A empatia, que também nasce da autoconsciência é a mais fundamental das “aptidões pessoais”. As pessoas empáticas são mais sensíveis àquilo que as outras pessoas necessitam ou desejam, tornado-as aptas em profissões que envolvam a prestação de cuidados, o ensino, as vendas e a gestão.5- Gerir relacionamentos. A arte de nos relacionarmos é, em grande parte, a aptidão para gerir as emoções dos outros.

Apesar de referidas estas cinco dimensões, as pessoas diferem nas suas capacidades em cada um deles, pois alguns de nós poderão ser particularmente hábeis em controlar a sua própria ansiedade, mas incapazes de acalmar as perturbações de terceiros. A base subjacente ao nosso nível de aptidão é neuronal, contudo o cérebro é notavelmente plástico, capaz de uma aprendizagem constante. (Goleman, 1995)A injunção de Sócrates “ Conhece-te a ti mesmo” refere-se à inteligência emocional: a consciência dos nossos próprios sentimentos no momento em que ocorrem. Geralmente os psicólogos usam a palavra metacognição para significarem a consciência das próprias emoções, contudo Goleman prefere o termo autoconsciência para refletir a atenção continuadas dada aos nossos estados íntimos. É esta consciência das emoções, a competência emocional básica sobre a qual todas as outras se constroem. (Goleman,1995)

Autoconsciência é, segundo Mayer (1993, cit. Goleman, 1995) ” ter consciência tanto do nosso estado de espírito como dos nossos pensamentos a respeito desse estado de espírito”. Os pensamentos típicos que denunciam a autoconsciência emocional incluem “ Não devia sentir-me assim”, “ Estou a pensar em coisas agradáveis para me animar”. (pág.67)Mayer (1995, cit. Goleman, 1995) pensa que as pessoas se distribuem por três grupos principais na maneira de enfrentar e lidar com as próprias emoções :

· Autoconscientes. Conscientes dos seus estados de espírito à medida que eles ocorrem· Imersas. Deixam-se freqüentemente avassalar pelas emoções e são incapazes de escapar-lhes, como se os seus estados de espírito assumissem o comando.· Aceitantes. Embora as pessoas tenham consciência do que sentem, têm também tendência para aceitar os estados de espírito tais como lhe vêem e nada fazendo para modificá-los. (pág.68)

A autoconsciência é fundamental para a introspecção psicológica, pois é esta faculdade que a maior parte da psicoterapia tem como objetivo reforçar. A autoconsciência emocional é o material de base para o próximo componente fundamental da inteligência emocional: ser capaz de se libertar de um estado de espírito negativo.

O sentido do autodomínio, ser capaz de resistir às tempestades emocionais, em vez de ser “escravo das paixões”, é considerado uma virtude desde os tempos de Platão. Ser capaz de controlar as emoções que nos perturbam é a chave para o bem-estar emocional.Os altos e baixos dão sabor à vida, porém precisam ser equilibrados. Nos cálculos do coração, é a relação entre emoções positivas e negativas que determina o sentimento de bem-estar. (Goleman, 1995)          Tal como há na mente um constante murmúrio de fundo de pensamentos, também existe uma presença permanente de emoções. De qualquer forma, tentar gerir as nossas emoções é um trabalho a tempo inteiro, pois grande parte do que fazemos é uma tentativa para controlar o nosso estado de espírito.            O design do cérebro significa que muitas vezes temos pouco ou nenhum controlo sobre quando somos invadidos pela emoção ou sobre qual será essa emoção, contudo temos alguma coisa a dizer a respeito de quanto tempo essa emoção irá durar. Quando as emoções são muito intensas e perduram durante longo tempo, acabam por atingir os extremos, ou seja, ansiedade crônica, raiva incontrolável, depressão. De todos o estados de espírito a que procuramos escapar, a raiva parece ser o mais intransigente, pois ao contrário da tristeza, a raiva dá energia, é excitante.

O estado de espírito que as pessoas mais procuram se afastar é a tristeza. A melancolia é um tipo de abatimento que a pessoa pode enfrentar sozinha, mas apenas se tiver os recursos interiores. Aquilo que nos pode indicar se um estado de espírito deprimido irá persistir durante longo tempo, é o grau a que a pessoa rumina as suas desgraças. Pensar naquilo que nos deprime torna a depressão mais intensa e prolongada. É comum numa depressão preocuparmo-nos com o fato de nos sentirmos cansados, de termos tão pouca energia ou motivação e de produzirmos tão pouco. (Goleman,1995)

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Segundo Susan Nolen- Hocksma, psicóloga de Stanford e que estudou o remoer dos deprimidos, refere que existem duas estratégias eficazes na terapia, Uma é aprender a confrontar os pensamentos perturbadores, questionar-lhes a validade e pensar em alternativas mais positivas e a outra estratégia é programar acontecimentos agradáveis e que proporcionem distração, em que esta quebra a corrente dos pensamentos geradores de tristeza. As distrações mais eficazes são aquelas que alteram o estado de espírito, como um acontecimento desportivo excitante, um filme divertido, um livro emocionante.

Segundo Diane Tice, uma psicóloga de Case Western Reserve University ,outra maneira eficaz de combater a depressão é ajudar os outros, entregar-se a qualquer espécie de trabalho voluntário.

No que respeita aos repressores, de inicio eram vistos como um bom exemplo da incapacidade para sentir emoções, mas o pensamento atual considera-os extremamente competentes na gestão das emoções. Tornaram-se de tal forma peritos em isolarem-se dos pensamentos negativos, que até parece não tomarem consciência da negatividade. Assim, em vez do termo repressores, seria mais adequado o termo imperturbáveis.

Daniel Weinberger, um psicólogo da Case Western Reserve University, mostra através de investigações, que embora estas pessoas possam parecer calmas e impassíveis, podem por vezes fervilhar de perturbações fisiológicas de que nem se apercebem. A implicação é que estas pessoas não fingem a sua falta de consciência; é o cérebro que lhes esconde essa informação.

A imperturbabilidade é uma espécie de negação otimista, uma dissociação positiva e, possivelmente, uma pista para os mecanismos neuronais que intervêm nos mais graves estados dissociativos que podem ocorrer, por exemplo, nas desordens ligadas ao stress pós-traumático. (Goleman, 1995)

Segundo Goleman (1995), ser capaz de gerir as emoções das outras pessoas é o melhor da arte de gerir relacionamentos. Para manifestar um poder interpessoal, a criança tem primeiro de ter um auto-controlo, de ser capaz de dominar os seus sentimentos de ira ou desgosto, os seus impulsos e excitações. A sintonia com as exigências dos outros exige de nós próprios o mínimo de calma. Assim, gerir as emoções dos outros requer a maturação de outras duas habilidades emocionais, que são o auto-controlo e a empatia. É nesta base que as “aptidões pessoais” amadurecem. São estas as competências sociais que explicam o sucesso das relações que mantemos com os outros. Qualquer déficit nesta área leva a pessoa a ter problemas com o mundo social, bem como desastres interpessoais. Sendo assim, estas aptidões sociais, permitem-nos programar um encontro, ter bons relacionamentos íntimos, persuadir e influenciar, pôr os outros à vontade.

Segundo Goleman (1995), o funcionamento da mente emocional é em larga medida determinado por estados específicos, ditado pelos sentimentos dominantes num dado momento. A forma como pensamos e agimos quando nos sentimos românticos é totalmente diferente de quando estamos furiosos ou tristes, isto porque na mecânica da emoção, cada sentimento tem o seu repertório diferente de pensamentos, reações e até recordações.

O que nos indica se um destes repertórios está a funcionar é a memória seletiva. Parte da resposta da mente a uma situação emocional é reorganizar as recordações e as opções de ação, de maneira que as mais relevantes fiquem em primeiro lugar. Cada emoção tem a sua parte biológica característica, um padrão de alterações que modificam o corpo sempre que essa emoção ocorre e um conjunto único de sinais que o corpo emite quando está sob o seu domínio.

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TEORIAS PSICOLÓGICAS

Teorias de conscientização:

1. Teoria de estímulo/resposta - (Pavlov, Skinner, Hull) - O aprendizado ou conscientização ocorre à medida que a pessoa (ou animal) reage a determinado estímulo e é recompensada (reforçada) pela satisfação de uma necessidade pela reação correta, ou punida por uma reação errada.Quando a mesma reação se repete a um dado estímulo, estabelecem-se os padrões de hábito/comportamento.Uma das aplicações deste modelo é o método do behaviorismo - repetir-se os mesmos estímulos seguidamente afim de consolidar os padrões de reação.Daí, surgiu a idéia de repetir constantemente um anúncio, ou um tema, uma idéias, para solidificar uma determinada reação de compra (cigarros Marlboro - uso constante do tema masculinidade - cowboy).Em teoria, quando o estímulo deixa de ser reforçado desaparece o condicionamento.Reflexo condicionado - A exposição de uma garrafa não é a mesma coisa que a exposição de uma garrafa de Coca-Cola.

2. Teoria Cognitiva - Dá maior ênfase ao insight, a aprendizagem se deve a uma reorganização do campo cognitivo que permite a compreensão de um problema e a sua solução, estruturando suas partes e percebendo-o como um todo. Essa posição se opõe às teorias associacionistas (estímulo/resposta), que propõe que o comportamento resulta de ensaio e erro com reforçamento. É a negação da experiência como único fator de aprendizagem e visualizam o aprendizado como resultante de compreensão e percepção.

3. Teoria da Gestalt (do alemão: forma) - É uma resultante das duas anteriores - a percepção, as experiências anteriores e a orientação à meta constituem elemento chave.Em termos de psicologia de consumo entende-se que o bom anúncio - bom para fazer o consumidor aprender a conhecer um novo produto - é aquele que pode ser compreendido e percebido como adequado às necessidades do consumidor.

AS PESSOAS SÃO INFLUENCIADAS PELO AMBIENTE, PORTANTO A MOTIVAÇÃO E O COMPORTAMENTO SÃO INERENTES DO AMBIENTE EM QUE VIVEM.

4. Teoria Freudiana - O comportamento humano é influenciado pelos desejos reprimidos e por motivos ocultos - o verdadeiro motivo para alguém comprar determinado produto, fazer compras em determinada loja ou realizar qualquer outra ação de compra pode estar oculto.A mente contém idéias e impulsos, conscientes ou subconscientes, mas todos afetando o comportamento.O não conhecimento do subconsciente explica porque os consumidores são incapazes de esclarecer a razão real de compra.

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O PrazerVera Felicidade de Almeida Campos

Publicado no Boletim do SBEM, abril/junho 2000, pag.50-51

Prazer é o êxtase, prazer é o bem-estar. Acabamos de criar uma escala para o prazer, ao tentar defini-lo.Sobrevivendo, tendo necessidades satisfeitas, temos prazer com pequenas coisas, com grandes coisas. É prazeroso ver um céu azul, também o é um vinho, uma comida, uma água gelada, uma conversa animada, uma relação sexual, tanto quanto a sensação do dever cumprido, das coisas organizadas. Tudo isso é prazer, causa prazer. Quando há realização de desejos, quando há encaixe, harmonia circunstancial, há prazer. As vivências do prazer, são quase banais, são muito freqüentes, é o bem-estar.

Os aspectos circunstanciais, situacionais são fundamentais para a vivência do prazer como bem-estar. Existe um comando de necessidades e desejos responsáveis pela criação de limites a atingir ou remover. Posto isto, somos remetidos à instabilidade do prazer. Estruturado por necessidades contingentes, construído pelo desejo, pela falta, pela busca de aplacar tensões, rapidamente o prazer é transformado em alívio, ausência de dor, ausência de tensão. Nosso conhecido e banal prazer, por sua instabilidade, se transforma em um complexo paradoxo.

Filósofos como Platão e Kierkegaard escreveram sobre o vazio do prazer. Drogados e viciados em heroína, cocaína, ópio também o fizeram. William Burroughs, famoso escritor beat em seu livro Junky, escreve sobre sua experiência com a droga: "A droga é uma equação celular que ensina a quem a usa fatos de um valor geral. Aprendi muito usando droga. Vi a vida medida nas gotas de uma solução de morfina. Vivi a privação atroz da desmama e o prazer do alívio quando as células sedentas de droga bebiam na seringa. Todo prazer não é talvez senão alívio. Aprendi o estoicismo celular que a droga ensina a quem a usa... Aprendi a equação da droga. A droga não é como o álcool ou a erva, um meio de gozar a vida, a droga não é um prazer. É um modo de vida."

Platão em sua filosofia mostra como o prazer depende de necessidades e de desejos. Esta filiação outorga dependências corporais inadmissíveis para o intelecto, para o homem de bem, para o sábio. No mundo das idéias, no ideal platônico, nada que provenha do chão, do corpo, das sensações é bom, belo ou sábio. Kierkegaard diz que há duas maneiras de viver a vida: uma ética e outra estética. Por ética ele entendia a vida governada pela liberdade, o que só seria conseguido através da fé, da transcendência, do encontro com o absoluto. Estética para ele era tudo que "vinha de fora", do exterior. Esta circunstancialização impedia a liberdade, fazendo com que o homem fosse controlado pelas coisas que lhe causavam bem-estar, desejos e prazer.

A idéia de Kierkegaard - ético e estético - pode agora ser traduzida por objetividade e subjetividade. Neste contexto, conseguiu-se criar dicotomias e valorações acerca do prazer. Pode-se falar de prazer negativo e de prazer positivo. Prazer negativo é todo aquele gerado por situações alheias ao ser, vindas de fora, contingentes, aderentes, conseqüentemente alienantes. O prazer, neste contexto, é sinônimo de hábito, de vício, de repetição, de fixação, de perda da liberdade, de alívio desde que totalmente endereçado para aplacar necessidades e desejos. Prazeres positivos seriam os subjetivos, os da inteligência, os do espírito.Esses dualismos valorativos estão presentes também na visão de Sto. Agostinho, quando em uma tentativa de trazer para a Idade Média os ideais platônicos, diz que só existe prazer na virtude, separando assim os prazeres pecaminosos (da carne) dos virtuosos (do espírito). Deus é o que se encontra depois de enveredar pelo caminho da virtude. Auto-controle, sacrifício são os luzeiros orientadores deste caminho. A humanidade está crivada: pecadores e virtuosos. Evidências e dogmas.

Mais tarde, a psicologia veio em socorro deste homem cravejado. Prazer é prazer, é bom. Entretanto o bom não basta, será que é sinônimo do que não é ruim? Será que é uma repetição habitual de mecanismos despersonalizadores ou é a realização legítima de desejos e encontros?Socorro questionador pois que ao admitir o prazer buscava integrar a personalidade. Com a psicologia aparece uma nova divisão: prazeres legítimos e prazeres ilegítimos. O prazer da droga, do vício são ilegítimos, negativos, existem, mas devem ser abolidos, transformados.

Da banalidade à complexidade surge também a legitimidade do prazer. Descobre-se que o prazer poderia provir de doenças, começou-se a estudar sua patologia. Fenomenologicamente, pensamos que prazer é o que resulta do encontro, é a faísca, luz e calor. Sempre que isso ocorre, há prazer, é bom, é simples, é

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legítimo. O difícil é exatamente existir o encontro. Via de regra, artefatos e instrumentos, aderências e construções é que levam ao encontro, transformando-o em um encaixe de peças de quebra-cabeça.Disponibilidade e aceitação estruturam autonomia, possibilidade de relacionamento. É aí, neste horizonte de possibilidades que nasce o prazer criador de infinito, atemporal, mágico e eterno, merecedor de mitos. Não é por acaso que sempre o prazer vem acompanhado do amor, de Eros. Só no contexto de disponibilidade e autonomia é que se evita a repetição, o hábito e a escravização muitas vezes confundidos com prazer.

São inúteis os anseios modernos de resolver dicotomias e paradoxos relacionais e existenciais através de sobrevivências unificadoras. Criou-se o paradigma neurocerebral para solucionar e explicar o comportamento humano, que pelo seu reducionismo elementarista se torna parcializador. Todos sabem que remédio é droga, sabem também que são as drogas boas e frequentemente dizem que elas servem para o uso, não para o abuso. "A neurofarmacologia nos convida a pensar que há uma homogeneidade qualitativa entre os compostos químicos que absorvemos e aqueles que agem nas células cerebrais para regular nossas alegrias e nossos desgostos. Do ponto de vista de um médico, há apenas moléculas semelhantes, com indicações mais ou menos visadas. O hábito torna-se um efeito colateral entre outros." [Giulia Sissa, O prazer e o mal - filosofia da droga, pag. 171 e 172]

Somos modernos. Temos indústria de lazer, casas de prazer, pílulas de prazer. Prazer atualmente é quase sinônimo de paraíso, logo se transformando em inferno. Luta-se pelo prazer, foge-se do prazer.O prazer é o caos, é alienante se visto como mediação. É um organizador quando integrado. Voltemos ao mestre Kierkegaard: no estético, nas aderências, no lançar mão de o prazer não existe, quando integramos todos os limites, transcendendo contingências e aderências é que estamos livres para este absoluto realizador: o prazer. O prazer de ser, ser no mundo com os outros. Prazer é liberdade, é não estar oprimido nem submetido a nenhuma demanda aderente, mecanizada e repetidora. É a liberdade do encontro, como maneira de integrar as dicotomias ética e estética ou o dentro e o fora ou ainda necessidades e possibilidades, sobrevivência e existência, É também uma maneira de não pensar como Oscar Wilde: "Nesse mundo só existem duas tragédias: uma é não se obter o que se quer e a outra é obter".A vida sem liberdade é tediosa, o prazer é a quebra desse tédio, logo a ele remetido, é a instabilidade do prazer.

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OS SISTEMAS

1.1. Definição para Sistemas

O campo de estudo da cibernética são os sistemas. Stafford Beer define sistema como "qualquer conjunto de elementos que estão dinamicamente relacionados". Para ele sistema dá a idéia de conectividade: "0 universo parece estar formado por conjuntos de sistemas, cada qual contido em outro ainda maior, como um conjunto de blocos para construção". Assim,

Sistema é um conjunto de elementos dinamicamente relacionados formando uma atividade para atingir um objetivo operando sobre entradas (dados, energia e matéria), para fornecer saídas (informações, energia e matéria).

Graficamente os sistemas podem ser representados, de modo genérico, pela seguinte figura, cujos conceitos serão apresentados logo a seguir.

Figura 1 - Representação gráfica simplificada de sistemas

1.2. As Entradas dos Sistemas

Os sistemas recebem entradas (inputs ou insumos) do ambiente para que possam operar, processando ou transformando tais entradas em saídas.

A entrada de um sistema é aquilo que o sistema importa (insumos) do seu mundo exterior, do seu meio ambiente. A entrada pode ser constituída por um ou mais dos seguintes componentes:

● Informação É tudo aquilo que reduz a incerteza a respeito de alguma coisa; quanto melhor a informação, menor a incerteza. A informação proporciona orientação, instrução e conhecimento a respeito de algo, permitindo o planejamento e a programação do comportamento ou do funcionamento do sistema.

● Energia É utilizada para movimentar e dinamizar o sistema, fazendo-o funcionar: elétrica, eólica, as proteínas para os organismos vivos, a força de trabalho braçal ou intelectual, etc.

● Materiais São os recursos a serem utilizados pelo sistema, como meio para a produção das saídas (produtos ou serviços), e podem ser divididos em :

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Operacionais - quando são usados para transformar ou converter outros recursos. Ex.: máquinas, equipamentos, instalações, ferramentas, utensílios, mão de obra, etc.

Produtivos ou matérias primas - quando são transformados ou convertidos em saídas, isto é, em produtos ou serviços.

1.3. Saídas dos Sistemas

Saída ou output é o resultado final da operação ou processamento de um sistema. Através da saída o sistema exporta o resultado de suas operações (exsumos) para o seu mundo exterior, o seu meio ambiente; todo sistema produz uma ou várias saídas.

As organizações produzem bens ou serviços e uma variedade de outras saídas para o seu ambiente: informações, lucros, fim social, pessoas aposentadas ou demitidas, poluição, detritos, etc.

1.4. Sistema (Super, Total, Sub), Fronteiras (Limites) e Meio Ambiente

O termo sistema é geralmente empregado no sentido de sistema total, que é representado por todos os seus componentes, e suas relações, necessários à realização do seu objetivo, dado um certo número de restrições. O objetivo do sistema total determina a finalidade para a qual todos os seus componentes e suas relações foram ordenados.

Os componentes necessários à operação de um sistema são chamados subsistemas, que por sua vez são formados pela união de seus respectivos subsistemas, e, assim sucessivamente.

O sistema, para efeito de raciocínio, tem um grau de abrangência (pode-se dizer, de autonomia) maior do que o subsistema e menor do que o supersistema. Tudo isto é, portanto, uma questão de abordagem. É difícil dizer onde começa e onde termina determinado sistema. O interesse de quem pretende (ou de que se necessita) para analisar um sistema total, é quem determina a abrangência deste sistema.

Uma organização, por exemplo, poderá ser entendida como um sistema, ou um subsistema, ou, ainda, um supersistema, dependendo da análise que se queira fazer.

Os sistemas existem em um meio e são por ele condicionados. Não há sistema fora de um meio específico (meio ambiente), que é o conjunto de todos os objetos que, dentro de um limite específico, possam ter alguma influência sobre a operação do sistema.

As restrições do sistema são as limitações introduzidas em sua operação, que podem ser internas ao sistema, ou impostas pelo meio ambiente. Elas possibilitam explicar as condições sob as quais ele deve operar e definem os limites ou fronteiras do sistema. Assim, genericamente, os limites (ou fronteiras) são a condição ambiental - de restrições de entradas, funcionamento e saídas dentro da qual o sistema deve operar.

1.5. Propósitos (Objetivos) e Globalismo (Totalidade)

Da definição de Bertalanffy, segundo a qual um sistema é um conjunto de unidades reciprocamente relacionadas, decorrem dois conceitos: propósito ou objetivo e globalismo ou totalidade.

● Propósito (ou objetivo): Todo sistema tem um ou alguns propósitos ou objetivos. As unidades ou elementos que o formam, bem como os seus relacionamentos, definem um arranjo que visa sempre um objetivo a ser alcançado.

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● Globalismo (ou totalidade): Todo o sistema tem uma natureza orgânica, pela qual uma ação que produz mudança em uma das unidades do sistema, com muita probabilidade, deverá produzir mudanças em todas as outras unidades do mesmo. Qualquer estimulo, em qualquer unidade do sistema, afetará todas as demais unidades, devido ao relacionamento existente entre elas. O efeito total dessas mudanças ou alterações se apresentará como um ajustamento de todo o sistema. O sistema sempre reagirá globalmente a qualquer estímulo produzido, em qualquer parte ou unidade. Há uma relação de causa e efeito entre as diferentes partes do sistema.

1.6. Retroação, Retroalimentação ou "Feedback"

Retroação, realimentação, retroalimentação, servomecanismo ou “feedback” é um mecanismo através do qual uma parte da saída de um sistema (geralmente informação) volta para a entrada do mesmo, provocando alteração.

A retroação é, basicamente, um subsistema de comunicação de retomo proporcionado pelas saídas do sistema à sua entrada, no sentido de alterá-la de alguma maneira. No caso do piloto, ele observa a rota do barco (o resultado da saída) para comunicar correções que são efetuadas pelo leme (a entrada).

Figura 2 - Representação da retroação

A retroação serve para comparar a maneira de funcionamento de um sistema em relação ao padrão estabelecido para o seu funcionamento. Quando ocorre alguma diferença (desvio ou discrepância) entre ambos, a retroação se incumbe de regular a entrada, que aciona as correções nos respectivos subsistemas, para que a saída se aproxime do padrão estabelecido, reduzindo os desvios ou discrepâncias.

Um sistema de retroação contém dispositivos capazes de reagirem aos eventos externos, de modo específico, até que um estado particular seja atingido. E, para que funcione com eficiência, segundo a Cibernética, precisa receber informações quanto a:

● Posição do objetivo a ser alcançado. ● Sua distância em relação ao objetivo. ● Alterações dessa distância produzidas por sua própria ação. ● Posteriores mudanças em relação à sua própria posição.

Se a ação não atinge o objetivo toma-se necessária uma correção para atenuar a diferença, progressivamente, tanto em distância quanto em direção. Um sistema de retroação, quando bem projetado, produz uma série de erros cada vez menores, até uma convergência rumo à homeostasia (estado de equilíbrio).

O sistema nervoso do homem e dos animais obedece a um mecanismo de retroação. Quando se pretende pegar algum objeto, o cérebro transmite a ordem aos músculos e durante o movimento destes, os órgãos sensoriais (visão, tato, coordenação visual-motora, etc.)

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informam continuamente ao cérebro a posição da mão e do objeto. O cérebro vai repetindo a ordem, para corrigir eventuais desvios, até que o objeto seja alcançado.

O sistema nervoso funciona através de processos circulares de ida e de retomo (retroação) de comunicação, que partem dele para os músculos e retomam através dos órgãos dos sentidos. A retroação confirma se o objetivo foi cumprido, o que é fundamental para o equilíbrio do sistema.

Quando algum órgão sensorial (visão por exemplo) deixa de funcionar e não ocorre a retroação, o sistema nervoso não tem condição de corrigir desvios de movimentos. Às cegas, os movimentos se tomam desequilibrados e desorientados.

As principais funções da retroação são: 1. Controlar a saída, enviando mensagens geradas, após a saída, ao regulador de entrada. 2. Manter um estado relativamente estável da operação do sistema, quando ele se

defronta com variáveis externas que podem ocasionar a flutuação de sua operação. 3. Por causa disto, aumentar a probabilidade de que o sistema seja eficaz face a situações

externas.

O futuro de todo sistema depende da relação mútua entre 4 fatores, que constituem a base da teoria da retroação:

1. Atraso ("Lag") é o tempo decorrido entre o momento em que a perturbação tira o sistema de seu estado de equilíbrio e o momento em que a ação corretiva tem início.

2. Ganho ("Gain ") - é a quantidade de correção exercida pelo mecanismo de retroação. 3. Carga ("Load") - é a extensão e a velocidade das mudanças, que deverão ocorrer para

restaurar o equilíbrio do sistema. 4. Guia ("Lead") - é a distância entre a posição ou situação prevista e a posição ou

situação real.

Como a retroação é basicamente uma ação pela qual o efeito (saída) reflui sobre a causa (entrada), seja incentivando-a ou inibindo-a, pode se identificar dois tipos de retroação : positiva e negativa.

a) Retroação positiva É a ação estimuladora da saída que atua sobre a entrada do sistema. Na retroação positiva o sinal de saída amplifica e reforça o sinal de entrada.

Exemplo: Quando as vendas aumentam e os estoques saem com maior rapidez, ocorre a retroação positiva, no sentido de aumentar a produção e acelerar a entrada de produtos em estoque, para manter um volume adequado.

b) Retroação negativa É a ação frenadora e inibidora da saída que atua sobre a entrada do sistema. Na retroação negativa o sinal de saída diminui e inibe o sinal de entrada.

Exemplo: Quando as vendas diminuem e os estoques saem com menor rapidez, ocorre a retroação negativa, no sentido de diminuir a produção e reduzir a entrada de produtos no estoque, para evitar que o volume de estocarem aumente em demasia.

1.7. Sistemas Fechados

Sistemas fechados são os sistemas que não apresentam intercâmbio com o meio ambiente que os circunda. São herméticos a qualquer influência ambiental; assim, não recebem nenhuma influência do ambiente e, por outro lado, também não o influenciam. Não recebem nenhum recurso externo e nada produzem que seja enviado para fora.

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Os autores têm denominado de sistemas fechados, aqueles sistemas cujos comportamentos são totalmente determinísticos e programados. Que operam com muito pouco intercâmbio de matéria e energia, com o meio ambiente.

O termo sistema fechado também é utilizado para os sistemas completamente estruturados, onde os elementos e relações se combinam de uma maneira peculiar e rígida, produzindo uma saída invariável. São os chamados sistemas mecânicos ou físicos, como as máquinas, relógios e termostatos. Portanto, a rigor não existem sistemas fechados, na acepção exata do termo.

1.8. Sistemas Abertos

Os sistemas abertos são aqueles que apresentam relações de intercâmbio com o ambiente, através de entradas e saídas. Trocam matéria e energia regularmente com o meio ambiente. São eminentemente adaptativos, isto é, para sobreviverem devem reajustar-se constantemente às condições do meio.

Mantêm um "jogo" recíproco com as forças do ambiente e a qualidade de sua estrutura é otimizada quando o conjunto de elementos do sistema se organiza, aproximando-se de uma operação adaptativa. A adaptabilidade é um contínuo processo de aprendizagem e de auto-organização.

Os sistemas abertos não podem viver isoladamente. São os chamados sistemas biológicos e sociais, como a célula, a planta, o homem, a organização e a sociedade. Diversos tipos de equipamentos, conectados a outros para atingir objetivos (finalidades) mais amplos do que o equipamento (por si só) se enquadram nesta categoria.

1.9. Diferenças entre Sistemas Fechados e Sistemas Abertos

a) O sistema aberto está em constante interação dual com o ambiente. É dual no sentido de que influencia e é por ele influenciado. Atua há um tempo como variável independente e como variável dependente do ambiente. O sistema fechado não interage com o ambiente.

b) O sistema aberto tem a capacidade de crescimento, mudança, adaptação ao ambiente e até autoprodução, naturalmente sobre certas condições ambientais. O sistema fechado não tem esta capacidade. O estado atual e final ou futuro do sistema aberto não é necessária nem rigidamente condicionado por seu estado original ou inicial. O estado atual e futuro ou final do sistema fechado será sempre o seu estado original ou inicial.

c) É contingência do sistema aberto competir com outros sistemas, com o sistema fechado isso não ocorre

1.10. Sinergia

A palavra sistema tem muitas conotações, entre elas: ● Um conjunto de elementos interdependentes e interagentes. ● Um grupo de unidades combinadas que formam um todo organizado e cujo resultado

(saída) é maior do que o resultado que as unidades poderiam ter se funcionassem independentemente.

Daí o conceito de sinergia.Sinergia : o todo é maior do que a soma das partes

a + b > |a| + |b|O todo não deve ser comparado com agregações aditivas das partes

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1.11. Dinâmica Cíclica dos Sistemas

Segundo SENGE (1990) a realidade é constituída por sistemas que apresentam uma dinâmica cíclica de relação de casualidade de causa e efeito. Cada uma das partes do sistema (subsistemas) atua de modo circular e cíclico sobre as demais partes, provocando ações e reações de acordo com a atuação e participação dessas partes no sistema todo.

Um exemplo natural e clássico dessa natureza cíclica é o sistema atmosférico; a evaporação da água provoca as nuvens que, em função da sua saturação de vapor d'água ou de variações de temperatura, provoca a chuva. Esta por sua vez aumenta a umidade e, conseqüentemente, a evaporação. as demais condições climáticas, principalmente os ventos, podem influir neste sistema, aumentando ou diminuindo a incidência das chuvas em determinadas regiões ou épocas, como acontece no litoral e algumas regiões áridas ou tropicais.

No exemplo apresentado na figura 4, relativo ao ato de encher um copo de água (SENGE, 1990, 80-84), do ponto de vista linear significa dizermos: "estou enchendo um copo de água", porém, a representação dinâmica deste sistema é cíclica e circular.

As setas (saídas de um subsistema e entrada em outro) representam níveis variados de influência entre os subsistemas, e o "feedback" de cada um deles é quem garante o seu funcionamento adequado para atingir o seu objetivo (resultado da saída) e, assim, atingir o objetivo do todo, do sistema, de modo equilibrado (homeostático).

Figura 4 - A natureza cíclica e circular dos sistemas

Nota-se, nos dois exemplos anteriores, que é necessário entender como cada uma das partes interage com as demais e as afeta - de modo positivo (aumentando) ou negativo (diminuindo), em diversas ordens e seqüências, de acordo com a realidade. Isto corresponde aos conceitos sistêmicos apresentados anteriormente: entrada, funcionamento, saídas, feedback, entropia, correlação entre as partes, etc.

A importância fundamental deste enfoque cíclico reside na possibilidade de entendermos praticamente qualquer sistema, seja de que natureza for, a partir do entendimento da interação cíclica entre os seus subsistemas.

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A PALESTRA DOS BISPOSALEX PERISCINOTO

(extraído do livro “Mais vale o que se aprende do que o que nos ensinam”)

Esta palestra foi feita em 1977 para a CNBB. Foi uma palestra longa e que repercutiu bastante. Muita gente pede uma cópia. Aqui, um compacto, uma versão resumida com as principais analogias e idéias expostas aos bispos.Em vez de uma palestra, vamos fazer um bate-papo informal, porque nós, profissionais da comunicação, descobrimos que há muito o que agradecer a vocês.Todas as ferramentas de trabalho que usamos hoje na nossa profissão, todas, sem tirar nenhuma, foram inventadas por vocês, os religiosos. Senão, vamos lá!O primeiro veículo de comunicação de massa inventado até hoje, no que se saiba, foi o sino. Cada batida transmitia uma mensagem. Atingia de oitenta a noventa por cento das pequenas cidades. E não só atingia como modificava o comportamento físico e mental de outros oitenta ou noventa por cento das aldeias cada vez que batia e espalhava a sua mensagem de maneira circular. Antes do sino, o arauto não passava de uma mala-direta muito mixuruca.Depois desse grande veículo de comunicação de massa, vocês, religiosos, inventaram outra ferramenta que a gente usa muito hoje: o display. Nós usamos o display para destacar, para chamar a atenção sobre uma mensagem ou um produto e suas vantagens. O objetivo do display é ressaltar, diferenciar.Quando todos os telhados das casas das aldeias eram baixinhos, não existia nada além de casas térreas ou sobradinhos, vocês construíram um telhado alto, altíssimo, quatro, cinco, seis vezes mais alto do que os telhados comuns. E em forma de ponta. E isso não era uma forma de facilitar a queda da neve, porque em países onde nunca nevava predominava esse mesmo modelo arquitetônico. Era assim para que, desde longe, a gente apontasse o dedo e dissesse:- É lá!Muito antes de se chegar à aldeia já se enxergava a torre da igreja. Por esse display - palavra de hoje -, por esse destaque, as pessoas podiam, com facilidade, localizar onde estava a igreja.Mais do que isso, vocês inventaram o primeiro logotipo, outra ferramenta que a gente usa muito para trabalhar.Toda firma ou empresa que se preze tem uma marca, um logotipo. Vocês inventaram o mais feliz dos logotipos, a cruz. A cruz, que nunca deixa de estar na ponta de cada display. As pessoas chegavam às aldeias e diziam: "É lá a igreja, e se trata daquela religião da marca em cruz, e não a da estrela, a da meia-lua ou qualquer outra marca concorrente".Para se produzir o texto certo, para o público indicado, na hora própria, a gente usa uma ferramenta chamada pesquisa. E o primeiro departamento de pesquisa, ao que se saiba, foi inventado por vocês: o confessionário. Minha mãe pensa que o confessionário foi feito só para perdoar, mas vocês, religiosos, sabem que o confessionário ajuda a recolher subsídios, informações; um santo departamento de pesquisa. Quando digo santo, cabe aqui a palavra, porque hoje, quando a gente faz um Ibope qualquer, é possível que a pessoa entrevistada minta. O entrevistador bate à porta ou telefona e pergunta: "Que programa você está assistindo?" Às vezes a pessoa está vendo um programa de auditório, mas é capaz de responder que está assistindo a um programa científico da TV Cultura. O Ibope sabe que lida com esse tipo de mentira branca, mentira permitida, pois o entrevistado não quer que seu status seja diminuído.Mas, no departamento de pesquisa da Igreja, no santo departamento de pesquisa de vocês, no confessionário, a resposta não só é espontânea, como necessária e verdadeira. A pessoa não vai lá para mentir. Vai lá para entregar uma informação. E o padre, no tempo das aldeias, podia dizer aquela palavra forte, aquela palavra de quem aconselha sabendo o que está fazendo. Municiado pelo confessionário, o padre se convertia no conselheiro maior das aldeias, mais forte do que o conselheiro político, mais forte do que o conselheiro da venda.Mais uma coisa. Minha mãe com certeza não tem consciência de que recebe, do departamento de pesquisa da Igreja, um subproduto muito gratificante. Se eu quero me construir ou me reconstruir um pouco, de dentro para fora, vou a um analista, pago caro pela consulta de uma hora e ele me dá uma certa ajuda. Mas a minha mãe vai a um confessionário, sai de lá reconstruída de dentro para fora, sai de lá aliviada. E perdoada, coisa que nenhum analista faz nem que você pague o dobro.Esse subproduto que o confessionário dá a minha mãe, esse tratamento psicológico gratuito, é muito conveniente, pois permite à Igreja saber o que está acontecendo na comunidade. Hoje, se você perguntar a um rapaz de vinte anos sobre a Igreja, possivelmente ele estará por fora. A própria Igreja, talvez porque o departamento de pesquisa esteja mais ou menos desativado, não sabe direito o que se passa na mente de um rapaz de vinte anos. E não é porque ele não freqüente o seu departamento de pesquisa, o seu confessionário, mas porque a mãe dele já não vai com a mesma freqüência de antes.

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Vocês inventaram ainda o melhor audiovisual do mundo: a Via Sacra, que vocês criaram há dezenas de séculos. São quatorze quadros, acho que os primeiros feitos de gesso, dispostos sempre sete de cada lado da igreja. A Via Sacra conta a vida de Cristo. Com um visual rico e com um áudio da professora de catecismo ou de alguém do gênero.Outro recurso de comunicação que vocês inventaram e a gente usa até hoje é a trilha sonora. Não se pode fazer um comercial sem a trilha sonora que sobe e desce, o tom mais baixo ou mais alto conforme o momento ou a emoção pedem. A trilha sonora que vocês inventaram vem do órgão, ou do coral, ou mesmo da sineta, na missa, ou até da marcha nupcial. Se você tirar uma dessas trilhas a cena fica tão banal... Sem a marcha nupcial na cerimônia de casamento, perde-se toda a pompa.Outra invenção de vocês foi o rico cenário. Para fazer um filme de televisão, hoje, ou até mesmo uma novela, se você não montar um bom cenário perde 70% da graça. A gente entra na igreja e já fica de olho no cenário de vocês, que é o altar. Você quer logo saber que tipo de cenário tem a igreja, como é o altar daquela igreja, como é decorado, que força ele tem, que iluminação, que mística, e por aí afora.Mas vamos em frente. Podemos também dizer que o sentido promocional que usamos hoje foi outra invenção religiosa. O que é uma procissão que chega a mobilizar uma cidade inteira? Trata-se, sem dúvida, de uma promoção religiosa.Nós fazemos promoção em publicidade a partir do que vocês ensinaram: o estandarte, as bandeirolas, aquela roupa especial. Só que a mística comercial não é tão rica como a mística religiosa.E já que falamos em mística religiosa, quero lembrar que vocês mudaram o sistema da missa. Não existe mais a missa em latim e o padre não fica mais de costas para o público. Pois eu tenho uma péssima notícia para vocês: a minha mãe nunca sentiu que vocês estavam de costas para ela - ela achava que vocês estavam de frente para Deus. Ela gostava do latim, embora não o entendesse. Via aquilo como uma linguagem mística: vocês, de frente para Deus, se entendiam com o Senhor lá em cima e no final da missa, quando se viravam para o público, para as nossas mães, vocês abençoavam e então gratificavam todos os que haviam passado tanto tempo ali, com os joelhos doendo.Essa sensação foi perdida. Agora, com o padre de frente para o público, perde-se um pouco daquela mística de falar com Deus. E a missa em português perde muito em relação ao latim, que encantava os fiéis. Essa mudança na tentativade buscar ou de respeitar mais o público, na minha opinião, foi um tremendo erro. Acho importante ressalvar que essa é apenas a minha opinião, de alguém que nem sequer é experiente em religião, mas que está trabalhando em comunicação há alguns anos e está observando a missa só do ponto de vista de comunicação.Mas, falando em comunicação, vamos a outro ponto da nossa analogia. Vocês sempre tiveram um produto a serpropagado, a ser oferecido; o produto de vocês chama-se fé. Fé. Eu tenho uma boa notícia para vocês: esse produto está fazendo falta na praça, e muita falta, mesmo porque vocês não propagam mais a fé. Hoje se lê nos jornais muito mais sobre divergências entre bispos, entre vocês e o governo. Quase não se lê sobre o produto que vocês oferecem, sobre a fé.Fé é algo que minha mãe ia buscar na igreja. Ela vinha de lá recheada de algum raciocínio, acreditando não só em Deus como nela própria e no próximo. É como se uma empresa parasse de anunciar seus produtos e passasse a anunciar a briga da diretoria.Quero agora propor para vocês um outro raciocínio. Sei que a televisão e a sociedade de consumo não são muito bem vistas por vocês. Mas acho que, em vez de excomungarem a televisão, talvez devessem ver a televisão como o sino de hoje. Porque o sino de vocês, se bater nas grandes cidades, ninguém mais ouve; e se ouvir ninguém mais sabe que tipo de mensagem traz, se é enterro, se é missa, se é chamado.O display de vocês, a torre, que se destacava sempre, também se perdeu na selva de pedra em que passamos a viver. A pesquisa está funcionando precariamente. Acho que de pouco adianta um padre ficar sentado o tempo todo no confessionário, porque a freqüência da igreja não foi renovada. Acho praticamente impossível um rapaz de vinte anos parar a motocicleta na porta da igreja, pegar pela mão aquela linda garota que está atrás, entrar e dizer: "Vamos agradecer a Deus tudo isso que ele está nos dando".Por estatística, o Brasil é um país com mais de 80% de católicos. Mas, em termos de freqüentadores de igrejas, qual será o nível real?Eu queria voltar para, digamos assim, o marketing da igreja. Vamos falar dos segmentos de mercado. O público de vocês está nitidamente dividido em três. O primeiro comprador em potencial do produto que vocês oferecem são os doentes. Os doentes querem, precisam, necessitam de fé. Em relação a eles, vocês nem fazem nenhum esforço: renova-se a fé e há uma necessidade maior de fé. Os doentes, porém, são uma minoria. E graças a Deus que seja assim.O segundo segmento de mercado de vocês são os velhos. Os idosos também modificam o seu jeito de pensar à medida que atingem mais idade; as pessoas passam a acreditar na passagem desse mundo para o outro, tendem a ter fé e há então uma volta à igreja.

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Mas o grande, o terceiro pedaço do mercado, o enorme contingente que vocês talvez estejam com dificuldade de atingir é aquela massa de crianças, jovens e adultos sadios e no auge da vida. Este grande pedaço do mercado, que deve representar mais de 80% do total, está mais ou menos fora do alcance de vocês por várias razões. Primeiro: quando falar com eles? Segundo: como falar com eles? Terceiro: onde? Que tipo de coisa esse pessoal está fazendo, quanto estão dispostos a ouvir?Repito que talvez a televisão seja o veículo próprio, especialmente neste país onde tudo é de distribuição heterogênea. Por exemplo, a minha camisa, apesar de não ser muito chique, é bem melhor que a do homem da periferia. Meu sapato também é melhor que o dele. E por aí vai. Tudo é muito diferente na distribuição deste país.Mas há uma coisa que é igual e eqüitativa. Só uma. A única área neste país em que você pode dizer que "tem distribuição igual" é a comunicação. Porque o Sílvio Santos que o homem da periferia vê é igual ao meu. O nosso Corinthians é o Corinthians dele, o Fantástico a que ele assiste na TV Globo é o mesmo que passa na minha televisão. Só mesmo a comunicação se espalha de maneira tão abrangente neste país. Mais nada.E vocês por certo sabem que a gente recebe, através da comunicação, valores e conceitos que a gente não tem, mensagens e informações que satisfazem o nosso ego, que preenchem o nosso vazio. Só a comunicação faz isso.Com a ajuda da comunicação, não só vou ajudar um próximo - mais do que isso, estou me ajudando a ser gente. Propagar fé não quer dizer apenas rezar uma missa pela televisão todos os domingos. Vale para os doentes, que não podem ir à igreja. Mas aquele grande público que vocês querem atingir possivelmente estará dormindo às oito horas da manhã de domingo.Não estou falando para vocês comprarem canais de televisão, estou falando para vocês usarem a televisão. A televisão em dose certa é uma grande ferramenta para recebermos de vocês, de maneira mais eqüitativa, fé. Como já disse antes, esse produto está em falta na praça; nós estamos precisando dele.Por sinal, a gente tem visto uma pessoa na área de vocês, que sabe utilizar a televisão, alguém que já aparece bem na tela, com a embalagem certa, com o texto indicado, na hora própria: o Papa. Quando ele sai do Vaticano em viagem pelo mundo, sabe até onde estão as câmeras. E quando chega, sempre com toda a imprensa atrás, alguém já preparou uma big production antes, uma produção onde as cores combinam, onde há uma cena lenta e pausada, e o Papa aparece com as palavras que a gente adora ouvir, porque ele fala sobre nós, sobre nossos vazios, sobre nossa fé.

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A NOVA CHAVELanger, Susanne K. Filosofia em Nova Chave

São Paulo: Perspectiva. 2 edição, 1989Págs.15-36

Cada era na história da filosofia tem as suas próprias preocupações. Seus problemas lhe são peculiares, não por razões óbvias de natureza prática..- política ou social - mas por razões mais profundas de desenvolvimento intelectual. Se nosso olhar remontar por sobre a lenta formação e acumulação de doutrinas que marcam a história, poderemos distinguir em seu transcurso certos grupamentos de idéias, não segundo o assunto, mas segundo um fator comum mais sutil que cabe denominar sua "técnica". É mais o modo de tratar os problemas, do que aquilo sobre o qual versam, que os refere a determinada época. Seus assuntos podem ser fortuitos, e dependem de conquistas, descobertas, pragas ou governos; seu tratamento deriva de uma fonte mais constante.

A "técnica", ou tratamento, de um problema começa com sua primeira expressão como pergunta. O modo pelo qual uma pergunta é proposta limita e assenta os meios pelos quais qualquer resposta a ela - certa ou errada - possa ser dada. Se nos indagam: "Quem fez o mundo?", podemos contestar: "Deus o fez'', "O acaso o fez", "O amor e o ódio fizeram-no", ou tudo o que se queira. Podemos estar certos ou estar errados. Mas se replicarmos: "Ninguém o fez'', acusar-nos-ão de tentarmos ser obscuros, espertos ou "pouco simpáticos". Pois no último exemplo, só na aparência demos uma resposta; na realidade, rejeitamos a questão. O inquiridor sente-se solicitado a repetir o problema. "Então como foi que o mundo se tornou como é?" Se agora redargüirmos: "Ele não `se tornou' de modo algum", o interlocutor ficará realmente perturbado. Tal "resposta" repudia claramente a própria estrutura de seu pensamento, a orientação de sua mente, as suposições básicas que sempre considerou como noções de bom senso acerca das coisas em geral. Tudo se tornou o que é; tudo possui uma causa; cada mudança deve visar algum fim; o mundo é uma coisa, e foi certamente produzido por meio de alguma ação, de alguma matéria-prima original, por alguma razão. Estas são vias naturais do pensamento. Tais "vias" implícitas não são confessadas pelo homem médio, porém simplesmente seguidas. Ele não tem consciência de assumir quaisquer princípios básicos. Estes são o que um alemão chamaria de sua Weltanschauung, de sua atitude de espírito mais do que artigos de fé específicos. Constituem seu modo de ver; são mais profundos do que os fatos que ele talvez não possa ou proposições que talvez queira discutir.

Mas, conquanto não declarados, encontram expressão nas formas de suas questões. Uma questão é na realidade uma proposição ambígua; a resposta é sua determinação'. Pode existir apenas determinado número de alternativas que hão de lhe completar o sentido. Destarte, o tratamento intelectual de qualquer dado, de qualquer experiência, de qualquer objeto é determinado pela natureza de nossas indagações, sendo apenas levado a cabo em nossas respostas.

Na filosofia, essa disposição de problemas é a coisa mais importante com que uma escola, um movimento, ou uma época contribui. Aí reside o "gênio" de uma grande filosofia; à sua luz, os sistemas surgem, dominam e morrem. Uma filosofia, portanto, caracteriza-se mais pela formulação de seus problemas do que pela solução que lhes oferece. Suas respostas estabelecem um edifício de fatos; mas suas perguntas compõem a moldura dentro da qual o seu quadro de fatos é delineado. Elas constituem mais do que a moldura; proporcionam o ângulo de perspectiva, a paleta, o estilo em que o quadro é traçado - tudo menos o objeto. Em nossas perguntas encontram-se nossos princípios de análise, e nossas respostas podem expressar, tudo o que esses princípios sejam capazes de admitir.

Há uma passagem em Ciência e o Mundo Moderno, de Whitehead, expondo essa predeterminação do pensamento, que é ao mesmo tempo sua armação e seu limite "Quando estiver criticando a filosofia de uma época", diz o Professor Whitehead, "não dirija a atenção principalmente para aquelas posições intelectuais que seus expoentes julgam necessário defender de maneira explícita. Haverá sempre algumas suposições fundamentais que os adeptos de todos os vários sistemas da época inconscientemente pressupõem. Tais suposições parecem tão óbvias que as pessoas não sabem o que estão assumindo, porque nenhum outro modo de colocar as coisas jamais lhes ocorreu. Com essas suposições certo número limitado de tipos de sistemas filosóficos são possíveis, e esse grupo de sistemas constitui a filosofia da época.

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Há alguns anos, o Professor C. D. Burns publicou um pequeno e excelente artigo denominado "O Sentido do Horizonte", em que efetuou uma aplicação algo mais ampla do mesmo princípio; pois assinalava aí que toda civilização tem seus limites de conhecimento -de percepções, reações, sentimentos e idéias. Para citar suas próprias palavras, "A experiência de qualquer momento possui seu horizonte. A experiência de hoje, que não é a de amanhã, contém algumas insinuações e implicações que são amanhã no horizonte de hoje. A experiência de cada homem pode somar-se à experiência de outros homens, que vivem em seu tempo ou viveram antes; e assim um mundo comum de experiência, maior do que o' de sua própria observação, pode ser vivenciado por todo homem. Todavia, por mais amplo que seja, este mundo comum também possui seu horizonte; e neste horizonte está aparecendo sempre nova experiência..."

"Filósofos de todas as eras tentaram dar conta de tanta experiência quanto lhes foi possível. Alguns, na verdade, pretenderam que aquilo que não logravam explicar não existia; mas todos os grandes filósofos concederam mais do que podiam explicar e assinaram de antemão, portanto, se é que não dataram, a sentença de morte de suas filosofias.”

“ .. A história da filosofia ocidental começa num período em que o sentido do horizonte levanta a vista dos homens dos mitos e rituais, das crenças e costumes correntes da tradição grega na Ásia Menor... Em uma civilização assentada, a regularidade dos fenômenos naturais, e sua conexão em largas áreas de experiência, torna-se significante. Os mitos eram por demais desconexos, mas atrás deles encontra-se a concepção do Fado. Isto proporcionou talvez a Tales e outros filósofos primitivos o primeiro indício da nova formulação, que era uma tentativa de permitir uma escala mais larga de certeza na atitude corrente em face do mundo. Deste ponto de vista, os primeiros filósofos não foram, ao que se concebe, tão perturbados pelas contradições na tradição, quanto atraídos por certos fatores no horizonte das experiências, aos quais sua tradição não fornecia explicação adequada. Encetaram a nova formulação com o fito de incluir os novos fatores, e afirmaram arrojadamente que "tudo" era água ou "tudo" estava em fluxo."

A formulação da experiência contida no horizonte intelectual de uma época e sociedade é determinada, creio eu, não tanto pelos acontecimentos e desejos, quanto pelos conceitos básicos à disposição das pessoas para analisar e descrever suas aventuras para o seu próprio entendimento. Sem dúvida, tais conceitos surgem à medida que se fazem necessários, a fim de dar conta da experiência política ou doméstica; as mesmas experiências, porém, poderiam apresentar-se em muitas luzes diferentes, de modo que a luz em que aparecem depende do gênio de um povo, assim como das demandas da circunstância externa. Mentes diversas hão de tomar os mesmos acontecimentos de maneiras bem diversas. Uma tribo de negros do Congo reagirá de forma assaz diferente a (digamos) seu primeiro contato com o relato da paixão de Cristo do que o fizeram os não menos rudes descendentes dos nórdicos ou dos índios americanos. Cada sociedade enfrenta uma nova idéia com seus próprios conceitos, seu próprio modo tácito e fundamental de ver as coisas; quer dizer, com suas próprias indagações, com sua curiosidade peculiar.

O horizonte ao qual o Professor Burns se refere é o limite das perguntas claras e sensatas que podemos propor. Quando os filósofos jônicos, a quem ele menciona como os inovadores do pensamento grego, perguntaram do que era feito "tudo" ou como se comportava "toda" matéria, estavam supondo uma noção geral, isto é, a de uma substância geradora, uma matéria final e universal à qual podia ocorrer toda sorte de acidentes. Esta noção ditou-lhes os termos de suas indagações: o que eram as coisas e como elas mudavam. Os problemas do certo e do errado, da riqueza e pobreza, da escravidão e liberdade, encontravam-se além de seu horizonte científico. Em tais assuntos adotavam indubitavelmente as mudas e inconscientes atitudes ditadas pelo uso social. Os conceitos que os preocupavam não tinham aplicação nesses domínios é, por conseguinte, não suscitaram novas, interessantes e conducentes questões sobre os problemas sociais ou morais.

O Professor Burns considera todo o pensamento grego uma só e vasta formulação da experiência. "A despeito de contínuos embates com violentas reviravoltas em hábitos convencionais e no uso das palavras", diz ele, "o trabalho de formulação da experiência grega culminou nas magníficas doutrinas de Platão e Aristóteles. Ambos têm sua raiz em Sócrates. Ele se desviara das meras assertivas dos primeiros filósofos, para a questão da validade de qualquer assertiva em geral. Não o que era o mundo, mas como podia alguém saber o que o mundo era e, portanto, o que podia alguém saber a respeito de si mesmo, parecia-lhe a pergunta fundamental. . . A formulação encetada por Tales foi completada por Aristóteles."

Creio que a compacidade e continuidade histórica da civilização helênica influencia esse juízo. É indubitável que., entre Tales e a Academia, há pelo menos um deslocamento ulterior do horizonte, ou seja, com o advento dos Sofistas As questões aventadas por Sócrates eram tão novas no pensamento grego de seus

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dias quanto as de Tales e Anaxímenes o foram anteriormente, em sua época. Sócrates não prosseguiu e completou o pensamento jônico; preocupava-se muito pouco com a física especulativa, que era o próprio sopro vital para os filósofos da natureza, e a obra de sua vida não adiantou a antiga empreitada de um passo sequer. Não tinha novas respostas, mas novas perguntas, e com elas introduziu uma nova estrutura conceituai, uma perspectiva inteiramente diversa, na filosofia grega. Seus problemas haviam surgido nos tribunais de justiça e nas competições de oratória dos Sofistas; eram, no principal e em seus traços significativos, irrelevantes para a tradição acadêmica. A validade do conhecimento não era apenas um de seus novos quebra-cabeças; o valor do conhecer, o propósito da ciência, da vida política, das artes práticas e, enfim, do curso da natureza, tudo se tornou problemático para ele. Pois estava operando com uma nova idéia. Não era a matéria-prima e seus disfarces, seus produtos virtuais e sua identidade derradeira que constituíam os termos de seu discurso, mas a noção de valor. De que tudo possuía um valor, isto era demasiado óbvio para requerer afirmação. Era tão óbvio que os Jônicos não lhe haviam concedido sequer um pensamento, e Sócrates não se deu o trabalho de afirmá-lo; mas suas perguntas centravam-se no valor que as coisas tinham - se eram boas ou más, em si próprias ou em suas relações com outras coisas, para todos os homens ou para alguns poucos, ou para os deuses somente. A luz desse velho conceito recém-recrutado, valor, todo um mundo de novas questões abriu-se. O horizonte filosófico ampliou-se de pronto em todas as direções, como se dá com os horizontes a cada passo para cima.

Os limites do pensamento são estabelecidos menos de fora, pela plenitude ou pobreza de experiências com que a mente defronta, do que de dentro, pelo poder de concepção pela riqueza de noções formuladoras com que a mente enfrenta as experiências. A maioria das novas descobertas são coisas subitamente vistas que sempre lá estiveram. A nova idéia é uma luz que ilumina presenças que simplesmente não tinham forças para nós antes de a luz incidir sobre elas. Acendemos a luz aqui, ali, em toda parte, e os limites do pensamento retrocedem diante dela. Uma nova ciência, uma nova arte, ou um jovem e vigoroso sistema de filosofia, são gerados por semelhante inovação básica. Idéias como identidade de matéria e mudança de forma, ou como valor, validade, virtude, ou como mundo externo e consciência interna, não são teorias; são termos em que as teorias são concebidas; dão origem a questões específicas, e são articulados apenas na forma dessas questões. É possível, portanto, denominá-los idéias gerativas na história do pensamento.

Um tremenda perspectiva filosófica abriu-se quando Tales, ou talvez um de seus predecessores desconhecido para nós, perguntou: "Do que é feito o mundo?" Durante séculos, os homens voltaram os olhos para as mudanças da matéria, o problema do crescimento e decadência, as leis de transformação na natureza. Quando as possibilidades dessa ciência primitiva estavam esgotadas, as especulações encalhadas e as numerosas respostas alternativa armazenadas em toda mente erudita, para a sua confusão, Sócrates propôs as suas indagações simples e desconcertantes - não "Que resposta é verdadeira?", mas: "O que é a Verdade?", "O que é o Conhecimento, e por que desejamos adquiri-lo?" Suas questões eram desconcertantes porque continham o novo princípio de explicação, a noção de valor. Não descrever o movimento e a matéria de uma coisa, mas verificar seu propósito, é entendê-la. A partir desta concepção nasceu uma multidão de novas indagações. Qual é o bem supremo do homem? Do universo? Quais são os princípios próprios da arte, educação, governo, medicinal Com que propósito giram planetas e céus, procriam animais, surgem impérios? Para que fito possui o homem mãos e olhos e o dom da linguagem?

Para os físicos, olhos e mãos não ofereciam maior interesse do que paus e pedras. Eram todos apenas variedades da Matéria-Prima. A concepção socrática do propósito foi além das noções da velha física, porque concedeu importância à diferença entre as mãos do homem e outras "misturas de elementos". Sócrates estava pronto a aceitar a tradição com respeito aos elementos, mas perguntava, a seu turno: "Por que somos feitos de fogo e água, terra e ar? Por que alimentamos paixões, e um sonho de verdade? Por que vivemos? Por que morremos?" - A comunidade ideal de Platão e a ciência de Aristóteles surgiram em réplica. Mas nenhuma parou para explicar o que "escopo último" ou "propósito" significavam; eram idéias gerativas de todos os novos e vitais problemas filosóficos, as medidas de explicação e pertenciam ao senso comum.

O fim de uma época filosófica vem com a exaustão de seus conceitos motrizes. Quando todas as perguntas respondíveis, que se podem formular em seus termos, foram exploradas, restam-nos apenas aqueles problemas que são às vezes chamados "metafísicos" num sentido pejorativo - problemas insolúveis cuja simples enunciação abriga paradoxo. A peculiaridade de tais pseudo-questões é que são passíveis de duas respostas igualmente boas, que derrotam umas às outras. Uma resposta, uma vez proposta, ganha certo número de adeptos que a subscrevem, não obstante o fato de que outras pessoas tenham mostrado de maneira conclusiva quão errada ou inadequada ela é; como suas soluções rivais padecem do mesmo

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defeito, a escolha entre elas repousa realmente em terreno temperamental. Não constituem descobertas intelectuais, como as boas respostas a perguntas apropriadas, mas doutrinas. Neste ponto, a filosofia torna-se acadêmica; sua senha doravante é Refutação, sua vida é mais argumento do que pensamento privado, a eqüidade é reputada mais importante do que a sinceridade, e o centro todo de gravidade desloca-se dos problemas filosóficos reais para assuntos periféricos - metodologia, progresso mental, o lugar do filósofo na sociedade e a apologética.

O período eclético, na filosofia greco-romana, foi justamente um tal fim batido de uma época inspirada. As pessoas tomavam partido sobre velhas questões, em vez de conduzir as idéias sugeridas às suas implicações ulteriores. Procuravam uma crença racional * e não novas coisas para pensar. As doutrinas pareciam encontrar-se, à volta, inteiramente prontas, esperando apenas para, serem adotadas ou rejeitadas, ou talvez dissecadas e recombinadas em novos agregados. As consolações da filosofia estavam mais no espírito dessa época do que as murmurações perturbadoras de um demônio socrático.

A mente humana, no entanto, continua sempre ativa. Quando a filosofia está em pousio, outros campos vicejam fruto abundante. O fim do Helenismo foi o começo do Cristianismo, um período de profunda vida emocional, de iniciativa militar e política, de rápida civilização de hordas bárbaras, de apropriação de novas terras. A selvática Europa setentrional foi aberta ao mundo mediterrânico. Os velhos interesses culturais por certo murcharam, e os velhos conceitos empalideceram, em face de uma tal atividade, novidade e desnorteador desafio. Uma desembaraçada e caprichosa modernidade tomou o lugar do pensamento filosófico profundamente arraigado. Todo o vigor das boas mentes foi consumido pelos problemas práticos e morais do dia, e a metafísica parecia um refinamento venerável mas inútil de gente protegida, educada, um divertimento peculiar e solitário de antiquados eruditos. Levou vários séculos até que as grandes novidades se tornassem uma ordem estabelecida, as fogueiras emocionais se consumissem, as noções modernas amadurecessem em algo parecido a princípios permanentes; então, a curiosidade natural voltou-se uma vez mais para esses princípios de vida, buscando sua essência, suas ramificações interiores e as bases de sua segurança. As interpretações de doutrinas e mandamentos fizeram-se cada vez mais urgentes. Mas a interpretação de proposições gerais não é nada mais nem menos do que filosofia: e assim começou outra idade vital da Razão.

Os maravilhosos vôos da imaginação c sentimento inspirados pelo surgimento e triunfo do Cristianismo, as questões a que sua atitude profundamente revolucionária deu origem, alimentaram quase um milênio de desenvolvimento filosófico, que começou com os Padres da Igreja e culminou nos grandes Escolásticos. Mas, ao fim, suas idéias gerativas - pecado e salvação, natureza e graça, unidade, infinidade, e reino - tinham realizado sua obra. Vastos sistemas de pensamento haviam sido formulados, e todos os problemas relevantes haviam sido debatidos. Vieram então os quebra-cabeças irrespondíveis, os paradoxos que sempre marcam o limite do que uma idéia gerativa, uma visão intelectual, há de fazer. A exausta mente cristã encerrou a apresentação de provas, e a filosofia tornou-se uma reiteração e uma justificação, cada vez mais fraca, da fé.

Novamente, o "puro pensamento" apareceu como um assunto estéril e acadêmico. Os professores de História gostam de contar-nos que os homens cultos da Idade Média discutiam solenemente quantos anjos podiam dançar na ponta de uma agulha. Esta questão, e outras semelhantes, tinham por certo significados mais profundos, perfeitamente respeitáveis - neste caso, a resposta dependia da natureza material ou imaterial dos anjos (se eram incorpóreos, um número infinito podia ocupar um ponto sem dimensão). Contudo, tais problemas, ignorante e maliciosamente mal interpretados, forneciam sem dúvida piada em todos os saltes de banquetes, quando ainda eram seriamente propostos nas sala de aulas. O fato de a pessoa média, ao ouvi-los, não tentar entender estes problemas, mas considerá-los como inventos crípticos de uma classe acadêmica - "demasiado profundos para nós", como diria o nosso Homem da Rua -, mostra que os pontos em debate da especulação metafísica não eram mais de natureza vital para o público letrado em geral. O pensamento escolástico sufocava gradualmente sob a pressão de novos interesses, novas emoções - as afluentes idéias modernas e inspiração artística que chamamos Renascença.

Após vários séculos de tradição estéril, disputa pedantes e sectarismo na filosofia, o tesouro de noções inomináveis, heréticas e amiúde inconscientes, nascidas do Renascimento, cristaIizou-se em problemas gerais e últimos. Uma nova perspectiva sobre a vida reptava a mente humana a fazer sentido de seu mundo desconcertante; e a era cartesiana da "filosofia mental e natural" sucedeu ao reino.

Esta nova época dispunha de poderosa e revolucionária idéia gerativa: a dicotomia de toda realidade em experiência interna e mundo externo. A própria linguagem do que é agora epistemologia tradicional trai essa

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noção básica; quando falamos do "dado", "dado do sentido", "fenômeno" ou "outros eus", supomos a "imediatidade" de uma experiência interna e a continuidade do mundo externo. As nossas questões fundamentais enquadram-se nesses termos: O que é dado realmente à mente? O que garante a verdade dos dados dos sentidos? O que se encontra por trás da ordem observável dos fenômenos? Qual é a relação da mente com o cérebro? Como podemos conhecer outros eus? - Todos estes são problemas familiares em nossos dias. Suas respostas foram elaboradas em sistemas inteiros de pensamento: empirismo, idealismo, realismo, fenomenologia, Existenz-Philosophie e positivismo lógico. As mais completas e características de todas essas doutrinas são as primeiras: empirismo e idealismo. São as plenas, desguarnecidas, vigorosas formulações da nova noção gerativa, Experiência; seus proponentes foram os entusiastas inspirados pelo método cartesiano, e suas doutrinas são as implicações óbvias derivadas, por esse princípio, de semelhante ponto de partida. Cada escola, por sua vez, tomou de assalto o mundo intelectual. Não apenas as universidades, mas todos os círculos literários, experimentaram a libertação de conceitos corroídos pelo tempo, opressivos, de frustradores limites de investigação, e saudaram o novo quadro do mundo na expectativa de uma orientação mais autêntica na vida, arte e ação.

Após um momento, transpareceram as confusões e sombras inerentes à nova visão, e as doutrinas subseqüentes procuraram, de várias maneiras, escapar por entre os cornos do dilema criado pela dicotomia sujeito-objeto, que o Professor Whitehead chamou " a bifurcação da natureza" Desde então, as nossas teorias tornaram-se mais e mais refinadas, circunspectas e sagazes; ninguém pode ser francamente idealista, ou seguir o caminho todo com o empirismo; as formas mais antigas do realismo são agora conhecidas como variedades "ingênuas" e foram substituídas por realismos "críticos" ou "novos". Muitos filósofos negam veementemente qualquer Weltanschauung sistemática e repudiam a metafísica em princípio.

As fontes do pensamento filosófico secaram, uma vez mais. Durante os últimos cinqüenta anos, pelo menos, testemunhamos todos os sintomas característicos que assinalam o fim de uma época - a incorporação do pensamento a "ismos" cada vez mais variegados, o clamor de seus respectivos adeptos a fim de serem ouvidos e julgados lado a lado, a defesa da filosofia como busca respeitável e importante, a multiplicação de congressos e simpósios e uma torrente de crítica de texto, apanhados, divulgações e estudos colaborativos. O leigo educado não se lança a um novo livro de filosofia como as pessoas se lançavam ao Leviatã ou às grandes Críticas ou mesmo a O Mundo como Vontade e Representação. Ele não espera muitas novidades intelectuais de um professor universitário. O que espera é, antes, ser persuadido a aceitar o idealismo ou o realismo, o pragmatismo ou o irracionalismo, como sua própria crença. Chegamos, uma vez mais, a esse conselho do desespero, para achar uma fé racional.

Mas a pessoa comum que tem qualquer fé na realidade pouco se importa se ela é racional ou não. Usa a razão apenas para satisfazer a curiosidade - e a filosofia, presentemente, nem sequer lhe suscita, quanto mais satisfaz, a curiosidade. Apenas a confunde com quebra-cabeças sem qualquer sentido prático. A razão disto não é que seja obtusa ou de fato esteja demasiado ocupada (como diz estar) para desfrutar a filosofia. E simplesmente que as idéias gerativas do século dezessete - "o século dos gênios", chama-o o Professor Whitehead -serviram o seu prazo. As dificuldades inerentes a seus conceitos constitutivos nos emperram, agora; seus paradoxos obstruem nosso pensamento. Se quisermos obter novo conhecimento, precisamos conseguir todo um mundo de novas questões.

Entrementes, a época filosófica moribunda é eclipsada por uma era tremendamente ativa de ciência e tecnologia. As raízes de nosso pensamento científico remontam bem longe, através do período todo de filosofia subjetiva, bem mais longe do que qualquer empirismo explícito, até o brilhante, extrovertido gênio da Renascença. A ciência moderna é amiúde considerada como rebento do empirismo; mas Hobbes e Locke não nos deram uma física, e Bacon, que expressou o credo do cientista à perfeição. não era nem filósofo ativo nem cientista; era essencialmente um homem de letras e um crítico do pensamento corrente. A única filosofia que surgiu diretamente da contemplação da ciência é o positivismo, e trata-se, provavelmente, da menos interessante de todas as doutrinas, de um apelo ao senso comum contra as dificuldades de estabelecer "primeiros princípios" metafísicos ou lógicos.

O empirismo genuíno é, acima de tudo, uma reflexão sobre a validade de nosso conhecimento sensorial, uma especulação sobre os modos como nossos conceitos e crenças se edificam a partir dos informes, fugazes e desconexos, que nossos olhos e ouvidos na realidade prestam à mente. O positivismo, a metafísica dos cientistas, não alimenta tais dúvidas e não suscita quaisquer problemas epistemológicos: sua crença na veracidade dos sentidos é implícita e dogmática. Por isso está realmente fora do páreo na filosofia pós-cartesiana. Repudia os problemas básicos da epistemologia, e nada cria exceto espaço livre

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para trabalho de laboratório. O próprio fato de rejeitar problemas, não respostas, mostra que, em seu crescimento, as ciências físicas estavam engrenadas para uma perspectiva inteiramente diversa da realidade. Elas possuíam as suas próprias assim chamadas "noções atuantes"; e a mais forte destas era o conceito de jato.

Esse conceito central efetuou a aproximação entre ciência e empirismo, a despeito das tendências subjetivas deste último. Não importa que problema possa espreitar visão e escuta, há algo de decisivo nas garantias dos sentidos. E difícil contradizer a pura observação, pois os dados sensoriais têm uma inalienável semelhança de "fato". E tal corte de última apelação, onde os veredictos são rápidos e finais, era exatamente o que os cientistas precisavam, se é que o seu vasto e complexo trabalho havia de seguir à frente. A epistemologia podia apresentar intrigantes quebra-cabeças, mas jamais seria capaz de fornecer fatos para fundamentar a convicção. Uma ingênua fé na evidência dos sentidos, de outro lado, proporcionava justamente terminais dessa espécie ao pensamento. Os fatos são algo que todos nós podemos observar, identificar e ter em comum; em última análise, ver é crer. E a ciência, como que contra a filosofia, mesmo naquela ávida e ativa idade filosófica, professava olhar exclusivamente para o mundo visível em busca de seus postulados indisputados.

Os resultados foram bastante assombrosos para emprestar plena força à nova atitude. A despeito das objeções dos pensadores filosóficos, a despeito do clamor dos moralistas e teólogos contra o "crasso materialismo" e "sensacionalismo" dos cientistas, a ciência física cresceu como o pé de feijão de Jack, na conhecida estória, eclipsando tudo o mais que o pensamento humano elaborou para competir com ela. A paixão pela observação deslocou o amor acadêmico pela disputa erudita, e desenvolveu rapidamente a técnica experimental que manteve a humanidade triplamente abastecida de fatos. As aplicações práticas do novo conhecimento mecânico logo o popularizaram e firmaram fora das universidades. Aqui, os tradicionais interesses da. filosofia não mais puderam segui-]o; pois estavam definitivamente relegados a esse ancoradouro do saber impopular, a sala de aula. Ninguém, na realidade, se preocupava muito com a consistência ou a definição dos termos, com as concepções precisas ou a dedução formal. Os sentidos, longamente desprezados e atribuídos ao interessante mas inconveniente domínio do diabo, foram reconhecidos como os mais valiosos servidores do homem, sendo resgatados de sua clássica desgraça para atendê-lo em sua nova ventura. Foram tão eficientes que não apenas supriram a mente humana de incrível quantidade de alimento para o pensar, como pareciam agora ter em mãos a maior parte de sua atividade cognitiva. O conhecimento da experiência sensorial era julgado o único conhecimento a trazer consigo algum atestado de verdade; pois a verdade identificara-se, para todas as vigorosas mentes modernas, com o fato empírico.

E assim uma cultura científica sucedeu à esgotada visão filosófica. Um empirismo incontestado e não-crítico - não cético, mas positivista -tornou-se o seu credo metafísico oficial, o experimento, o seu método confesso, um vasto mealheiro de "dados", o seu capital e a predição correta de ocorrências futuras, a sua prova. A relação programática dessa grande aventura, magnificamente exposta no Novum Organum de Bacon, foi seguida, apenas alguns séculos mais tarde, pelo completo e triunfante sumário de tudo o que era cientificamente respeitável, nos Cânones de Indução, de J. S. Mill - uma espécie de manifesto metodológico.

A medida que o quadro físico do mundo cresceu e a tecnologia avançou, aquelas disciplinas que repousavam quadradamente sobre princípios "racionais", e não "empíricos", viram-se ameaçadas de completa extinção, e em breve lhes foi negado até o honrado nome de ciência. A lógica e a metafísica, a estética e a ética pareciam ter visto chegar o seu derradeiro dia. Um a um, os vários ramos da filosofia -natural, mental, social ou religiosa -erigiram-se em ciências autônomas; as naturais, com êxito prodigioso, as humanísticas, com mais esperança e fanfarra do que realização efetiva. As ciências físicas encontraram seu andamento sem muita hesitação; a psicologia e a sociologia tentaram árdua e seriamente "pegar a toada e manter o passo", mas jamais conseguiram manejar realmente as leis matemáticas. Os psicólogos gastaram provavelmente quase tanto tempo e caracteres confessando seu empirismo, suas premissas factuais, suas técnicas experimentais, quanto registrando experimentos e fazendo induções gerais. Eles continuam nos dizendo que sua falta de leis e resultados calculáveis se deve apenas ao fato de ser a psicologia muito jovem. Quando a física tinha a mesma idade que a psicologia hoje, já era um corpo definido; sistemático de fatos altamente gerais, e as possibilidades de sua futura expansão eram claramente visíveis em cada linha de seu progresso natural. Podia afirmar a seu próprio respeito, como a menininha: "Eu não fui feita, cresci". Mas nossa psicologia científica é feita no laboratório e, especialmente. no foro metodológico. Um bocado de coisas, na verdade, foi feito; mas o organismo sintético ainda não cresce

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como a planta silvestre; seus triunfos técnicos tendem a ser descobertas em fisiologia ou química, em vez de "fatos" psicológicos.

A teologia, que não poderia talvez submeter-se aos métodos científicos, foi simplesmente empurrada para fora da arena intelectual e entrou em retiro nas bibliotecas enclaustradas de seus seminários. Quanto à lógica, outrora o próprio modelo e norma da ciência, sua única salvação parece residir no repúdio a seu mais precioso artigo de venda, "as idéias claras e distintas", e na profissão de apenas argumentar a partir de fatos empíricos para implicações igualmente factuais. O lógico, outrora um investidor na grande empresa do pensamento humano, viu-se reduzido a uma espécie de sinaleiro de ferrovia, incumbido da tarefa de manter os trilhos e as chaves do raciocínio científico abertos para que as informações sensoriais efetuem as devidas conexões. A lógica, afigurava-se, nunca poderia ter vida própria; pois não possuía fundamento em fatos, afora o fato psicológico de que pensamos assim e assim, de que tais e tais formas de argumentos levam a previsões corretas da experiência ulterior, e assim por diante. A lógica tornou-se mera reflexão sobre métodos provados e úteis para descobrir fatos, bem como autorização oficial para o processo, tecnicamente falacioso, de generalização, conhecido como "indução".

Sim, o apogeu da ciência sufocou e matou nossos antes desgastados interesses filosóficos, nascidos há três séculos e meio passados, daquela grande idéia geratriz, a bifurcação da natureza em mundo interno e externo. As gerações de Comte, Mill a Spencer, afigurou-se certamente que se poderia lançar todo conhecimento humano no novo molde; certamente que nada em qualquer outro molde poderia cristalizar-se. E na verdade, nada se havia cristalizado muito em algum outro molde; mas tampouco foram as disciplinas não-físicas capazes de adotar e desenvolver os métodos científicos que produziram tais maravilhas na física e seus derivados óbvios. A verdade é que a ciência não fecundou e ativou realmente todo pensamento humano. Se a humanidade ultrapassou deveras o estágio filosófico de estudo, como Comte esperançosamente declarou, e não cuida mais de desenvolver idéias fantásticas, neste caso deixamos, sem dúvida, ao longo do caminho muitos e interessantes rebentos do cérebro, natimortos.

Mas a mente do homem é sempre fértil, está sempre criando e refugando. Há sempre vida nova debaixo de velha decadência. As folhas mortas do ano passado ocultam não apenas as sementes, como as plantas plenamente amadurecidas e verdejantes da primeira deste ano, prontas. a florir, tão logo, quase, sejam expostas. O mesmo sucede com as estações da civilização: sob a cobertura de um cansado ecletismo greco-romano, um cinismo aturdido, o Cristianismo desenvolveu sua conquistadora força de concepção e clara interpretação da vida; obscurecido pelo credo, cânon e currículo, pela demonstração e disputa erudita, nasceu o grande ideal da experiência pessoal, a "redescoberta da vida interior", como Rudolph Eucken a denominou, que havia de inspirar a filosofia desde os dias de Descartes até o fim do idealismo alemão. E sob os nossos "ismos" rivais, nossas metodologias, conferências e simpósios, algo também está fermentando, indubitavelmente.

Ninguém observou, em meio à primeira paixão pelo empírico descobrimento de fatos, que a antiga ciência das matemáticas prosseguia em seu imperturbado caminho de pura razão. Harmonizava-se tão bem com as necessidades do pensamento científico, adequava-se tão nitidamente ao mundo observado dos fatos, que aqueles que a aprendiam e a utilizavam não cessavam de acusar aqueles que a tinham inventado e desenvolvido de serem meros arrazoadores e de carecerem de dados tangíveis. No entanto, os poucos empiristas conscientes que julgaram necessário o estabelecimento de bases factuais para as matemáticas efetuaram um emprego notoriamente pobre destas. Poucos matemáticos sustentaram realmente que os números foram descobertos por observação, ou, mesmo, que as relações geométricas nos sejam conhecidas por raciocínio indutivo, a partir de muitos exemplos observados.

Os físicos podem pensar em certos fatos, em lugar de constantes e variáveis, porém as mesmas constantes e variáveis servirão algures para calcular outros fatos, e os próprios matemáticos não concedem sua preferência a nenhum conjunto de dados. Lidam tão somente com itens cujas qualidades sensoriais são assaz irrelevantes: seus "dados" são marcas ou sons arbitrários denominados símbolos.

Por trás desses símbolos encontram-se as mais arrojadas, puras e frias abstrações que a humanidade jamais fez. Nenhuma especulação escolástica sobre essências e atributos alguma vez se aproximou de algo parecido à abstração da álgebra. Contudo, aqueles mesmos cientistas que se orgulhavam de seu conhecimento factual concreto, que pretendiam rejeitar toda prova exceto a evidência empírica, nunca hesitaram em aceitar as demonstrações e cálculos, as incorpóreas, às vezes confessadamente "fictícias", entidades dos matemáticos. Zero e infinito, raízes quadradas de números negativos, comprimentos incomensuráveis e quartas .dimensões, todos foram objeto de indiscutida bem-vinda no laboratório, quando

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o ponderado leigo médio, ainda capaz de tirar da fé uma invisível substância de alma, duvidava de sua respeitabilidade lógica.

Qual o secreto poder das matemáticas que lhes permite ganhar obstinados empiristas, contra as crenças mais ardentes que nutrem, para suas especulações puramente racionais e "fatos" intangíveis? Os matemáticos raramente são pessoas práticas ou bons observadores dos eventos. Tendem a ser almas enclausuradas, como os filósofos e os teólogos. Por que são suas abstrações levadas não só a sério, mas consideradas fatos indispensáveis, fundamentais, por homens que observam as estrelas ou fazem experiências com compostos químicos?

O segredo reside no fato de que um matemático não pretende dizer nada acerca da existência, realidade ou eficácia das coisas em geral. Sua preocupação reside na possibilidade de simbolizar coisas, e de simbolizar as relações que elas podem contrair entre si. Suas "entidades" não são "dados", porém conceitos. Daí por que elementos, tais como "números imaginários" e "decimais infinitos", são tolerados por cientistas para quem agentes invisíveis, poderes e "princípios" constituem anátema. As construções matemáticas são apenas símbolos; possuem significados em termos de relações e não de substância; algo na realidade corresponde-lhes, mas ninguém supõe que sejam itens nessa realidade. Para o verdadeiro matemático, os números não "inerem a" coisas enumeráveis, nem os objetos circulares "contêm" graus. Números e graus, e tudo o mais do mesmo jaez, apenas significam as propriedades reais dos objetos reais. Depende inteiramente da vontade do cientista dizer: "Que x signifique isto, que y signifique aquilo". Tudo o que as matemáticas determinam é que então x e y devem ser relacionados assim e assim. Se a experiência desmente a conclusão, neste caso a fórmula não expressa a relação deste x e daquele y; então x e y podem não significar esta coisa e aquela. Mas nenhum matemático, em sua qualidade de profissional, jamais nos dirá que isto é x, e tem, em conseqüência, tais propriedades.

A fé dos cientistas no poder e verdade da matemática é tão implícita, que sua obra gradualmente se tornou cada vez menos trabalho de observação e cada vez mais trabalho de cálculo. A promíscua coleta e tabulação de dados deu azo a um processo de consignar possíveis significados, entidades reais meramente supostas, a termos matemáticos. de calcular os resultados lógicos e depois ensaiar certos experimentos cruciais a fim de conferir a hipótese ante os resultados reais, empíricos. Mas os fatos aceitos em virtude dessas comprovações não são de modo algum observados na realidade. Com o avanço da técnica matemática em física, os resultados tangíveis do experimento se têm tornado menos e menos espetaculares; de outro lado, sua significação cresceu em proporção inversa. O homem de laboratório afastou-se tanto das velhas formas de experimentação - tipificada pelos pesos de Galileu e pelo papagaio de Franklin - que não pode dizer que observa em geral os objetos reais de sua curiosidade ao invés, atenta para agulhas indicativas, cilindros giratórios e pratos sensíveis. Nenhuma psicologia de "associação" da experiência sensorial pode relacionar tais dados aos objetos que eles significam, pois na maioria dos casos os objetos nunca foram experimentados. A observação tornou-se quase inteiramente indireta; e as leituras tomaram o lugar do testemunho genuíno. Os dados sensoriais, em que se apóiam as proposições da moderna ciência, são, na maior parte, pequenas marcas e manchas fotográficas, ou curvas de tinta sobre papel. Esses dados são, do ponto de vista empírico, suficientes, mas, por certo, não são em si próprios os fenômenos em causa; os fenômenos reais permanecem por trás deles como as supostas causas. Em vez de observar o processo que nos interessa, o qual é preciso verificar -ou seja, uma ordem de eventos celestes, ou o comportamento de objetos, tais como as moléculas ou as ondas de éter -, vemos efetivamente apenas as flutuações de uma minúscula seta, a trilha rastejante de um estilógrafo, ou o aparecimento de uma pinta de luz, e calculamos segundo os "fatos" de nossa ciência. O que é diretamente observável é apenas um signo do "fato físico"; a interpretação faz-se mister para produzir proposições científicas. Acreditar não é simplesmente ver, mas ver e calcular, ver e traduzir.

Isto é mau, por certo, para um empirismo rematado. Os dados sensoriais sem dúvida não compõem o todo, ou sequer a maior parte, do material de um cientista. Os eventos dados à sua inspeção poderiam ser "fraudados" em uma dúzia de maneiras - isto é, seria possível provocar a ocorrência dos mesmos eventos visíveis, mas com significação diferente. Podemos a qualquer momento estar enganados quanto ao que significam, mesmo lá onde ninguém nos trapaceia; podemos ser néscios de nascença. Todavia, se não atribuíssemos uma elaborada, puramente racional e hipotética história de causas aos pequenos tremores e meneios de nossos aparelhos, não poderíamos registrá-los como importantes resultados do experimento. O problema da observação é quase eclipsado pelo problema do significado. E o triunfo do empirismo na ciência é Posto em perigo pela surpreendente verdade de que nossos dados sensoriais são primariamente símbolos.

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A esta altura, de súbito, torna-se patente que a idade da ciência gerou um novo fruto filosófico, inestimavelmente mais profundo do que seu empirismo original: pois com toda a sua tranqüilidade, ao longo de linhas puramente racionais, a matemática desenvolveu-se de maneira tão brilhante e vital quanto qualquer técnica experimental e, passo a passo, manteve-se em igualdade com a descoberta e a observação; e inopinadamente, o edifício do conhecimento humano ergue-se diante de nós, não como uma vasta coleção de registros sensoriais, mas como uma estrutura de fatos que são símbolos e leis que são seus significados. Um novo tema filosófico foi enunciado para uma idade vindoura: um tema epistemológico, a compreensão da ciência. O poder do simbolismo é sua deixa, assim como a finalidade dos dados sensoriais foi a deixa de uma época anterior.

Na epistemologia - na realidade é tudo quanto resta de uma desgastada herança filosófica - uma nova idéia gerativa raiou. Seu poder ainda é mal reconhecido, mas se examinarmos a real tendência do pensamento -sempre o indício mais seguro de uma vista geral - a crescente preocupação com esse novo tema é inteiramente manifesta. É preciso apenas olhar os títulos de alguns dos livros filosóficos aparecidos nos últimos .quinze ou vinte anos: The Meaning of Meaning (O Significado do Significado)?; Symbolism and Truth (Simbolismo e Verdade); Die Philosophie der symbolischen Formen (A Filosofia das Formas Simbólicas)»; Language, Truth and Logic (Linguagem, Verdade e Lógica)"°; Symbol und Existem der Wissenschaft (Símbolo e Existência da Ciência)"; The Logical Syntax of Language (A Sintaxe Lógica da Linguagem); Philosophy and Logical Syntax (Filosofia e Sintaxe Lógica); Meaning and Change of Meaning (Significado e Mudança de Significado)";; Symbolism: its Meaning and Efjects (Simbolismo: seu Significado e Efeitos); Founda tions of the Theory of Sigas (Fundamentos da Teoria dos Signos)"; Seel ais Aeusserung (A Alma como Exteriorização)''; Le pensée concrete: essai sur le symbolisme intellectue (O pensamento concreto: ensaio sobre o simbolismo intelectual); Zeichen, die Fundamente des Wissens (Signo, Fundamento do Saber) e, recentemente, Language and Reality (Linguagem e Realidade ). A lista está longe de ser exaustiva. Há muitos livros cujos títulos não traem preocupação com a semântica: por exemplo, o Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgensteinz1; ou A Primer of Aesthetics (Cartilha de Estética), de Grudin. E se empreendêssemos um inventário de artigos, ainda que apenas sobre o simbolismo na ciência, logo arrolaríamos uma tremenda bibliografia.

Mas não apenas no campo próprio da filosofia que ressoou uma nova tônica. Existem pelo menos dois campos limitados e técnicos, que subitamente se desenvolveram além de todas as previsões, graças à descoberta da suma importância do uso do símbolo ou da leitura do símbolo. São terrenos amplamente separados entre si, e seus problemas e procedimentos não parecem coadunar-se de alguma forma: um é a moderna psicologia, e outro, a moderna lógica.

Na primeira, vimo-nos perturbados - emocionados ou irritados, conforme nossos temperamentos - com o advento da psicanálise. Na segunda, testemunhamos o surgimento de uma nova técnica, conhecida como lógica simbólica. A coincidência dessas duas investigações parece totalmente fortuita; uma origina-se da medicina e a outra da matemática, e nada existe que possa levá-las a comparar notas ou manter debates. No entanto, creio que ambas encarnam a mesma idéia geradora, que há de preocupar e inspirar nossa era filosófica: pois cada uma, à sua maneira, descobriu o poder da simbolização.

Possuem diferentes concepções de simbolismo e suas funções. A lógica simbólica não é "simbólica", no sentido da psicologia freudiana, e A Análise dos Sonhos não oferece contribuição à sintaxe lógica. A ênfase no simbolismo deriva de interesses inteiramente diversos, em seus respectivos contextos. Ainda assim, o crítico cauteloso pode muito bem considerar uma como um fantástico experimento de "filosofia mental" e outra como uma simples moda na lógica e na epistemologia.

Quando falamos de moda no pensamento, estamos tratando a filosofia algo ligeiramente. Há depreciação nas frases: "um problema à moda", "um termo à moda". No entanto, é coisa das mais naturais e apropriadas no mundo que um novo problema ou uma nova terminologia tenham uma voga que exclua tudo o mais por um momento. Uma palavra que todo mundo pega, ou uma questão que agita todo mundo, provavelmente carrega uma idéia gerativa o germe de uma completa reorientação na metafísica, ou pelo menos o "Abre-te, Sésamo" de uma nova ciência positiva. A repentina voga de semelhante idéia-chave deve-se ao fato de que todas as mentes sensíveis e ativas se voltam de pronto para explorá-la; tentamo-la em toda e qualquer conexão, a todo propósito, experimentamos com todas as extensões possíveis de seu significado estrito, com suas generalizações e derivativos. Quando nos familiarizamos com a nova idéia, nossas expectativas não ultrapassam tanto assim o seu uso real, e então sua popularidade desproporcionada acabou. Debruçamo-nos sobre os problemas que realmente gerou, os quais se tornam os pontos de debate característicos de nosso tempo.

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A ascensão da tecnologia é a melhor prova possível de que os conceitos básicos da ciência física, que governaram nosso pensamento por quase dois séculos, são essencialmente sadios. Geraram conhecimento, prática e entendimento sistemático; não é de admirar que nos hajam dado uma Weltanschauung muito confiante e definida. Entregaram em nossas mãos toda a natureza física. Mas, é bastante estranho que as assim chamadas "ciências mentais" tenham lucrado muito pouco com a grande aventura Uma tentativa após outra falhou na aplicação do conceito de causalidade à lógica e estética, e até mesmo à sociologia e psicologia. Causas e efeitos foram por certo encontrados e correlacionados, tabulados e estudados; mas inclusive na psicologia, onde o estudo do estímulo e da reação foi levado a elaboradas minúcias, não resultou daí uma verdadeira ciência. Não se nos abriram, no laboratório, quaisquer perspectivas de realizações efetivamente grandes. Se seguimos os métodos da ciência natural, nossa psicologia tende a desembocar em fisiologia, histologia e genética; afastamo-nos cada vez mais dos problemas dos quais deveríamos estar nos aproximando. Isto significa que a idéia gerativa que dá origem à física, química e toda sua progênie - tecnologia, medicina, biologia - não contém qualquer conceito vivificante para as ciências humanísticas. O esquema do físico, tão fielmente emulado por gerações de psicólogo, epistemólogos e esteticistas, bloqueia-lhes provavelmente o progresso, derrotando possíveis discernimentos com sua força prejudicial. O esquema não é falso - é perfeitamente razoável - mas é inútil para o estudo de fenômenos mentais. Não engendra perguntas mestras nem excita a imaginação construtiva, como nas pesquisas físicas. Em vez de inspirar um método, inspira uma metodologia militante.

Pois bem, nessas mesmas regiões de interesse humano onde a era do empirismo não causou revolução alguma, a preocupação com os símbolos entrou em moda. Ela não saltou diretamente de algum cânon da ciência. Corre pelo menos dois cursos distintos e aparentemente incompatíveis. No entanto, cada curso é um rio de vida em seu campo específico, cada qual fecunda a sua própria colheita; e em vez de encontrar mera contradição na larga diferença de formas e usos aos quais essa nova idéia gerativa é aplicada, vejo nisso uma promessa de poder e versatilidade, e um problema filosófico dominante. Uma concepção de simbolismo leva à lógica e vai de encontro aos novos problemas na teoria do conhecimento; e assim inspira uma avaliação da ciência e uma busca de certeza. Outra nos conduz em direção oposta à psiquiatria, ao estudo das emoções, à religião, fantasia, e a tudo exceto conhecimento. Em ambas, todavia, temos um tema central: a resposta humana, como coisa construtiva e não passiva. Epistemólogos e psicólogos concordam que a simbolização é a chave desse processo construtivo, embora estejam talvez prontos a matar-se uns aos outros, quanto à questão de saber o que é um símbolo e como funciona. Uma estuda a estrutura da ciência e outra a dos sonhos; cada qual tem suas próprias suposições - é tudo o que são concernentes à natureza dos simbolismos mesmos. Suposições, idéias gerativas, eis pelo que pelejamos. Nossas conclusões, contentamo-nos geralmente em demonstrá-las por meios pacíficos. Contudo, as assunções constituem, do ponto de vista filosófico, o nosso estoque mais interessante.

Na noção fundamental de simbolização - mística, prática, ou matemática, não faz diferença - temos a tônica de todos os problemas humanísticos. Nela, reside a nova concepção de "mentalidade", que ilumina questões de vida

e consciência, em vez de obscurecê-las, como fizeram os "métodos científicos" tradicionais. Se for de verdade uma idéia geradora, engendrará por si própria métodos tangíveis, para libertar os paradoxos empatados de mente e corpo, razão e impulso, autonomia e lei, e superará os argumentos em xeque-mate de uma idade anterior, descartando o próprio idioma deles e moldando seus equivalentes em frase mais significativa. O estudo filosófico dos símbolos não é uma técnica tomada a outras disciplinas, nem sequer da matemática; surgiu nos campos que o grande avanço do saber deixou abandonado. Talvez contenha a semente de uma nova colheita intelectual a ser ceifada na próxima estação do entendimento humano.

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IMAGEM COMO REPRESENTAÇÃO VISUAL E MENTAL

O mundo das imagens se divide em dois domínios. O primeiro é o domínio das imagens como representações visuais: desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas, televisivas, holo e infográficas pertencem a esse domínio. Imagens, nesse sentido, são objetos materiais, signos que representam o nosso meio ambiente visual. O segundo é o domínio imaterial das imagens na nossa mente. Neste domínio, imagens aparecem como visões, fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como representações mentais. Ambos os domínios da imagem não existem separados, pois estão inextricavelmente ligados já na sua gênese. Não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que não há imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais.

Os conceitos unificadores dos dois domínios da imagem são os conceitos de signo e de representação. É na definição desses dois conceitos que reencontramos os dois domínios da imagem, a saber, o seu lado perceptível e o seu lado mental, unificados estes em algo terceiro, que é o signo ou representação.

O estudo das representações visuais e mentais é o tema de duas ciências vizinhas, a semiótica e a ciência cognitiva. Comecemos, portanto, neste primeiro capítulo por uma investigação da teoria da representação e da sua relevância para o estudo da imagem.

1. Representação e signo

O conceito de representação tem sido um conceito-chave da semiótica desde a escolástica medieval, na qual este se referia, de maneira geral, a signos, símbolos, imagens e a várias formas de substituição (ver Zimmermann, org. 1971; Scheerer et al. 1992). Hoje o conceito se encontra no centro da teoria da ciência cognitiva, que trata de temas como representação analógica, digital, proposicional, cognitiva ou, de maneira geral, representação mental (ver Palmer 1978).

Na semiótica geral, encontram-se definições muito variadas do conceito de representação. O âmbito da sua significação situa-se entre apresentação e imaginação e estende-se, assim, a conceitos semióticos centrais como signo, veículo do signo, imagem ("representação imagética"), assim como significação e referência. As tentativas da delimitação do conceito são variadas, mas, freqüentemente, imprecisas. Alguns problemas na discussão do conceito de representação, em diferentes línguas, ligam-se à tradução. Sémiologie de Ia représentation (Helbo, org. 1975) é, por exemplo, um livro sobre a semiótica da mídia visual, sobre teatro, televisão e histórias em quadrinhos, mas o termo representação também serve para a tradução de conceitos tão distintos como signo, imaginação ("Vorstellung", por exemplo em Kant, ver Aquila 1983) ou também apresentação ("Darstellung"), no sentido de Bühler.

1.1. Representação como signo

O conceito de representação encontra-se principalmente no conceito inglês representation(s) como sinônimo de signo. Assim, por exemplo, Howard (1980: 502) nos dá a seguinte definição: "As palavras `representação', `linguagem' e `símbolo' são virtualmente intercambiáveis nos seus usos mais vastos." Como um sinônimo de signo, representação se encontra já em Locke, e na sua primeira fase Peirce caracteriza a semiótica, em 1865, como "a teoria geral das representações" (W 1:174; Fisch 1986: 323-324), falando também simplesmente de "signo ou representação" (CP 1.339).

Sperber (1985: 77) também utiliza o conceito de representação, de uma maneira geral, como um sinônimo de signo, quando diferencia o âmbito conceptual em "representação mental" e "representação pública":

Devemos distinguir dois tipos de representação: há representações internas ao dispositivo do processo informativo, isto é, representações mentais, e há representações externas ao dispositivo [...], isto é representações públicas. [...] Há, então, duas classes de processos [...1: processos intra-subjetivos de pensamento e memória, e processos intersubjetivos através dos quais as representações de um sujeito afetam as representações de outros sujeitos através de modificações dos seus ambientes comuns.

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O que Sperber caracteriza como "representações públicas" é sinônimo daquilo que a semiótica descreve como signo ou, mais precisamente, como veículo do signo, enquanto aquilo que ele entende por processos sígnicos intrasubjetivos são as representações mentais da ciência cognitiva a serem discutidas mais adiante. No modelo sígnico de Peirce, ambos os aspectos de um signo são modos de representação. A "representação pública" é o signo no sentido peirciano, enquanto a "representação mental" é o interpretante sígnico.

1.2. Representação como relação sígnica

O substantivo abstrato representação caracteriza também uma função sígnica ou um processo de utilização sígnica. Seu âmbito conceitual se estende de semiose até relação de objeto ou ainda até função referencial sígnica.

Já na escolástica medieval, representação é definida, de maneira geral, como o processo de apresentação de algo por meio de signos. Tomás de Aquino escreve, por exemplo, "cada representação acontece por meio de signos" [omnis repraesentatio fit per aliqua signa] (Op. omn. 18: 377). A amplitude desse conceito escolástico torna clara a diferenciação de quatro tipos de representação, a saber: (1) por tipo de uma imagem, (2) por tipo de um vestígio, (3) através de um espelho e (4) através de um livro (ver Scheerer et al. 1992: 791).

Ainda hoje, Rosenberg (1974: 1) utiliza este conceito de representação, de maneira geral, no sentido de utilização sígnica ou semiose humana na definição seguinte: "A atividade humana característica e essencial é a representação quer dizer, a produção e manipulação de representações." Dretske (1988: 5177) define, de maneira geral, o conceito de representação também como função sígnica. Para ele, tanto signos naturais como convencionais podem representar, desde que desempenhem uma função significativa num sistema de representação.

Representação, na fase tardia de Peirce, é o processo da apresentação de um objeto a um intérprete de um signo ou a relação entre o signo e o objeto: "Eu restrinjo a palavra representação à operação do signo ou sua relação com o objeto para o intérprete da representação" (CP 1. 540). A fim de delimitar os conceitos de representação e signo, ele introduz o termo representamem para o veículo do signo: "Quando é desejável distinguir entre aquilo que representa e o ato ou relação de representar, o primeiro pode ser chamado de `representamen', o último de `representação"' (CP 2.273).

Nesse contexto, Peirce define representar como "estar para, quer dizer, algo está numa relação tal com um outro que, para certos propósitos, ele é tratado por uma mente como se fosse aquele outro" (CP 2.273). Como exemplos para esse processo ou até essa "ação" de representar Peirce cita: "Uma palavra representa algo para a concepção na mente do ouvinte, um retrato representa a pessoa para quem ele dirige a concepção de reconhecimento, um catavento represénta a direção do vento para a concepção daquele que o entende, um advogado representa seu cliente para o juiz e júri que ele influencia" (CP 1.554).

1.3. Representação como referência e função de apresentação

Representação como relação de objeto parece não estar longe da definição de representação como referência e função de apresentação sígnica. Como referência ou designação, por exemplo, Rosenberg (1974: 1) define a representação lingüística das coisas. Bunge (1974: 87) e Kaczmarek (1986: 89), porém, citam critérios para a distinção entre referência e representação: a relação referencial une um veículo do signo a uma coisa na sua totalidade, enquanto a relação representativa relaciona o constructo conceitual a um determinado aspecto da coisa. Referência é possível sem representação, e vice versa. A declaração "não existem pessoas verdes" se refere a pessoas, mas não representa nada. Bunge dá exemplos de conceitos representativos mas nãoreferenciais tomados da física teórica.

Enquanto o referir-se é um ato de remetimento ao mundo, representar significa "apresentar algo por meio de algo materialmente distinto de acordo com regras exatas, nas quais certas características ou estruturas daquilo representado devem ser expressas, acentuadas e tornadas compreensíveis pelo tipo de apresentação, enquanto outras devem ser conscientemente suprimidas" (Kaczmarek 1986: 88).

Somente uma função especial entre outras, a função de apresentação é relacionada, por outros autores, ao conceito de representação. Na tradução inglesa da Teoria lingüística de Bühler (1934), o termo alemão Darstellung, que talvez possa ser traduzido por "apresentação", é traduzido por representation. Jakobson,

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por outro lado, denominou essa função de função referencial. Assim, a função representativa, na terminologia de alguns, é oposta às outras funções comunicativas, como a expressiva e a apelativa.

Ocasionalmente, a função representativa é confrontada com a função comunicativa. A primeira deve, de acordo com essa visão, servir à representação do mundo; a última à mediação de pensamentos entre as pessoas. Com base nisto, por exemplo Tabarroni (1989: 200) chega à conclusão de que a teoria da representação de Ockham despreza a função comunicativa da linguagem. A representação é também oposta à função comunicativa na interpretação de Husserl feita por Derrida. Derrida (1967: 53) resume com as seguintes palavras a teoria de Husserl (1900, vol. 2.1: 36) do monólogo interno, no qual nada é dito "no sentido comunicativo", mas sim somente apresentado como falante ou comunicante: "No discurso interno, eu não comunico nada a mim mesmo. [...] Existem unicamente representação e imaginação." Portanto, representação é aqui menos apresentação do que o processamento mental da imaginação.

1.4. Representação como signo icônico

Determinações conceituais, de acordo com as quais uma representação é um signo baseado numa relação de semelhança, existem desde a escolástica. Johannes Duns Scotus, por exemplo, refere-se ao fato de que o representante copia aquilo que ele representa [repraesentativum imitatur suum repraesentatum] (ver Kaczmarek 1986: 91). A base desse pensamento se encontra na epistemologia medieval, de acordo com a qual as species, as formas externas de manifestação das coisas, são semelhanças [similitudes] das coisas (ver Scheerer et al. 1992: 792).

Nelson Goodman, ainda hoje, define o conceito de representação no sentido de um signo icônico (ainda que ele não apóie o critério da semelhança): para ele, representações são imagens que têm aproximadamente o mesmo tipo de função que descrições.

O filósofo da ciência Mario Bunge (1969: 22) também define a representação no sentido de um signo icônico e considera o critério da analogia como central: "Podemos dizer que um objeto x [...] representa (espelha, modela, desenha, simboliza, está para) o objeto y [...] se x é uma simulação de y [...]. A representação é, então, uma sub-relação da simulação." Outros critérios de uma relação de representação, de acordo com Bunge (ibid.), são: "A representação é não-simétrica, reflexiva, e transitiva: o objeto representado ou simbolizado pode (na maior parte das vezes, ele não o faz) não representar sua contraparte; o objeto que representa pode ser considerado como a melhor representação de si mesmo; e se x representa y, que, por sua vez, representa z, então x representa z."

2. Representação, re-presentação e apresentação

A discussão semiótica em torno da dicotomia representação/apresentação possui dois aspectos. Por um lado, há a questão sobre até que ponto a função de signos é "re-presentativa"; por outro, há a questão sobre a existência de signos não-representativos.

2.1. Representação como re-presentação

Etimologicamente, o conceito de representação se encontra em oposição ao de "(a)presentação".Uma representação parece, de acordo com isso, reproduzir algo alguma vez já presente na consciência. Essa idéia também está consolidada na história da semiótica. Para Ockham, signos representativos eram signos "rememorativos" (ver Tabarroni 1989: 203), quer dizer, signos que nos lembram de algo.

A oposição "representação vs. apresentação" foi aprofundada, na modernidade, na psicologia e na filosofia. Resumindo, Scheerer et al. (1992: 827) relatam: "No alemão se tentou, às vezes, reproduzir a oposição com o par conceitual 'apresentificação' - de acordo com E. Husserl e M. Heidegger e 'presentificação'. Com toda a variedade do uso, é possível se fixar: `apresentação' é utilizada tendencialmente para a presença direta de um conteúdo na mente, enquanto `representação' é reservada para casos de consciência de um conteúdo, nos quais um momento de redação, reprodução e duplicação está em jogo."

Influenciado por isto, Max Bense (1986; Bense & Walther, orgs. 1973: 77) chega à conclusão de que a representação é um pressuposto da qualidade sígnica: "A diferenciação entre um objeto (diretamente) apresentado (e, como tal, que se mostra a si mesmo) e um objeto (mediador) representado é uma diferença

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semiótico-ontológica. Ela pertence às condições da introdução do conceito de signo. [...] Objetos apresentados funcionam ontologicamente; objetos representados funcionam semioticamente."

Principalmente dois argumentos se dirigem contra essa visão da qualidade sígnica como re-presentação. Um contra-argumento se refere a fenômenos sígnicos que parecem não ter nada "novamente significado" em si. Um outro grupo de contra-argumentos se encontra na tese neo-estruturalista da autoreferencialidade essencial dos signos, que se manifesta, no pós-modernismo, com a crise da representação.

2.2. Existem signos que não representam nada?

Argumentos contra a visão da representação (no sentido de re-presentação) como condição necessária da qualidade sígnica se encontram, por um lado, na semiótica fenomenológica e, por outro, na teoria da representação de Nelson Goodman. A semiótica fenomenológica diferencia entre signos que representam e aqueles que não representam (ver Braun 1981: 167). Os símbolos pertencem aos signos representativos, os índices ou indícios aos não-representativos.

O ponto de partida desta distinção é a diferenciação de Husserl (1900, vol. 2.1: 23) entre, por um lado, um signo de expressão, que é intencional e significativo, e, por outro, um indício, que não possui "função significativa". De acordo com isso, por exemplo, o fenomenólogo Alfred Schütz (1932: 165) determina um indício como "um objeto ou conteúdo, cuja existência indica a existência de certos outros objetos e conteúdos no sentido de que a convicção do ser de um não é experienciada como um motivo compreensível para a convicção do ser de outro". Quando, no entanto, o intérprete do indício não tem que estar convicto da existência do objeto de referência ("o outro objeto") de um indício, então esse indício pode também não aparecer na consciência do intérprete como uma "representação" de uma "coerência de sentido", que "se constituiu, como em uma re-presentação, em atos pré-experimentados" (ibid.). Indícios são, portanto, não-representativos e somente símbolos representam.

Em oposição a isso, existe, de acordo com Schütz (1932: 167), uma relação de representação entre os signos não-indexicais (ou símbolos): "Quando nós observamos um símbolo, que é sempre um objeto do mundo exterior no amplo sentido da palavra, não olhamos para ele como o próprio objeto, mas como representante daquilo que ele representa."

2.3. A teoria da representação de Goodman

Goodman (1968: 257) leva adiante a restrição do conceito de representação como sendo somente um entre vários "tipos de função" de signos. Ele diferencia, como formas fundamentalmente diversas da "função referencial", além da representação, a descrição, a expressão e a exemplificação como outras funções. Essa restrição do conceito de representação a uma entre várias funções sígnicas é, contudo, mais de caráter terminológico e somente em parte motivada pelo critério "apresentativo/re-presentativo". Representação é, para Goodman, somente "representação imagética". Descrições possuem, por outro lado, caráter verbal. Ambos os tipos de função são caracterizadas, de acordo com Goodman (1968: 53), por uma relação denotativa com o mundo. Ele define como nãodenotativas as funções de expressão e de exemplificação. A diferença entre representação e expressão se encontra, para Goodman (1968: 56), no fato de que "representação é representação de objetos ou acontecimentos, enquanto expressão é expressão de sentimentos ou outras qualidades".

Goodman, contudo, indicou, com sua categoria da exemplificação, uma função sígnica para a qual a diferenciação entre re-presentação e apresentação é central. Uma exemplificação, como por exemplo uma prova de tecido de um alfaiate, é um veículo do signo que possui as próprias qualidades às quais ele se refere. Neste sentido, a exemplificação é apresentativa e não-representativa. A prova exemplifica, contudo, geralmente não somente a si própria, mas também as qualidades essenciais ou as particularidades da peça de tecido da qual ela provém. Neste caso, ela é representativa. Enquanto o conceito de re-presentação, no entanto, designa uma relação unidimensional ou não-simétrica- o símbolo se refere a um objeto de referência, e não o contrário -, a relação de exemplificação, de acordo com Goodman (1968: 68-69), é bidirecional.

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3. Imagem e representação mental

O tema da representação mental nos leva da semiótica à área da ciência cognitiva, que desenvolve modelos do conhecimento, e portanto representações, e modelos do processamento de suas estruturas em processos mentais, quer dizer, modelos de processos cognitivos. A semiótica parte do pressuposto de que representações cognitivas são signos e operações mentais ocorrem na forma de processos sígnicos. Neste caso, se coloca a questão sobre a natureza desses signos e processos, assim como, de forma geral, sobre a relação entre a semiótica e a ciência cognitiva.

3.1.Formas e modelos da representação mental

A ciência cognitiva estudou, até o momento, principalmente a representação mental da informação lingüística e visual. De que forma esse conhecimento é armazenado? Será que a informação visual (só) aparece na forma de imagens mentais e a informação lingüística (só) é armazenada na forma de símbolos?

Modelos de representação mental do conhecimento são tão antigos quanto a filosofia cognitiva. De acordo com Cummins (1989: 1-6), existem, até hoje, essencialmente quatro modelos. Estes descrevem a formada nossa representação mental (1) como idéias no sentido de uma matéria mental estruturada, (2) como imagens, (3) como símbolos e (4) como estados neurofisiológicos.

(1) O modelo das idéias como uma matéria mental estruturada se baseia na dicotomia aristotélica da matéria e da forma como essência de todas as coisas. A palavra grega eidos, da qual a palavra idéia deriva, significa, primeiramente, "forma". Por exemplo, na escolástica, idéias vigoravam como entidades sem existência física, que, no entanto, eram compostas de matéria e forma. Não só as coisas existentes fisicamente valiam como matéria estruturada, mas também as próprias idéias. Quando, por exemplo, a matéria física é estruturada pelas qualidades "do vermelho" e "do esférico", o resultado é uma "esfera vermelha". De acordo com esse modelo, também a idéia de uma esfera vermelha se desenvolve no espaço mental, a saber, devido ao fato de que a matéria mental é estruturada pelas mesmas qualidades "do vermelho" e "do esférico". A idéia é, portanto, um modelo mental das coisas e tem, em comum com estas, a forma. Assim, uma relação de iconicidade entre as coisas e as idéias que as representam é postulada.

(2) Modelos imagéticos da representação mental do conhecimento encontram partidários desde os epicuristas até a atual ciência cognitiva, na qual eles são hoje discutidos sob a denominação de representação analógica. A validade desses modelos é, no entanto, questionada por alguns representantes da teoria simbólica da representação.

(3) Símbolos, conforme alguns, foram postulados como forma de representação mental primeiramente por Hobbes. Também os teóricos da imagem admitem que a linguagem, principalmente os conceitos abstratos, é representada mentalmente na forma de símbolos. Teóricos radicais da representação simbólica defendem, contudo, a tese de que mesmo imagens na forma de símbolos (como proposições ou descrições) são representadas mentalmente.

(4) A suposição de que representações mentais constituem somente processos neurofisiológicos é defendida no chamado coneccionismo, que vigora como contramodelo em relação ao cognitivismo (ver Jorna 1993). Enquanto os processos da transmissão de impulsos eletroquímicos entre neurônios podem ser interpretados, no nível biossemiótico, como (neuro)semióticos, o conexionismo descreve o aspecto cognitivo da representação mental do conhecimento de uma maneira assemiótica, pois, para o conexionismo, o conhecimento é representado mentalmente não na forma de signos icônicos ou simbólicos, mas na forma de processos de ativação ou inibição fisiológica de ligações sinápticas em redes neuronais. A incompatibilidade do conexionismo assemiótico com o cognitivismo semiótico leva, contudo, a uma complementaridade, se ambas as abordagens são entendidas como referindose a diferentes níveis de descrição de processos mentais (ver Jorna 1993: 192). De acordo com isso, o conexionismo opera em um nível sub-simbólico e o cognitivismo no simbólico e, portanto, no nível semiótico da cognição.

3.2.Modelos da imagem mental

De que forma o conhecimento visual é representado? Será que também existem representações visuais do conhecimento lingüístico? Existem imagens mentais que representam aquilo que é copiado de maneira icônica, ou será também que até imagens, assim como a linguagem abstrata, são codificadas

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simbolicamente? Primeiras tentativas de responder estas perguntas controversas, ainda hoje discutidas na psicologia cognitiva, levam à remota história da semiótica.

Filósofos, de Platão a Wittgenstein, colocaram-se a questão sobre a natureza das imagens mentais, sua relação com a realidade e seu comportamento relacionado ao pensamento lingüístico (ver Manser 1967; Schlüter & Hogrebe 1971; Biser 1973; Maund 1993).

3.2.1. Imagens como idéias, idéias como imagens

Na filosofia das idéias de Platão, a esfera das idéias se constituía primeiramente de palavras (logos) e, somente em segunda linha, de imagens (eikon; ver Eltester 1958: 3-4). Imagens não eram, para Platão, o resultado da percepção (aisthesis), mas tinham sua origem na própria alma. Aristóteles, por outro lado, dava às imagens um significado maior no processo do pensamento e defendia a tese de que "o pensamento é impossível sem imagens" (Sobre a memória 450a).

Na história da semântica também se encontra a idéia de que significados de palavras devem ser interpretados como imagens mentais - mesmo que ninguém tenha defendido com sucesso a tese radical, de que palavras em todos os casos evocam imagens mentais (ver Palmer 1981: 25). Locke (1690: III 2.1) caracteriza pensamentos e significados de palavras também como "idéias invisíveis", mas não se decide inequivocamente em relação à qualidade ima-ética dessas idéias: às vezes, elas parecem ser imagens mentais, mas, na maioria dos casos, ele tem em mente conceitos mais abstratos (ver Woozley 1967: 199-200). No entanto, Berkeley atribui a Locke uma teoria imagética da significação e considera necessário trazer o seguinte argumento contra a tese das idéias como imagens mentais: a idéia geral de um triângulo, de acordo com Berkeley (1710: Introd. 15-16), não pode nunca ser imagética, pois não se pode desenhar uma imagem de todas as formas de triângulos, por exemplo, equilátero ou escaleno, retângulo ou acutângulo. Kant, em sua Crítica da razão pura (1787), retomou exatamente esse exemplo e desenvolveu a tese do esquema (icônico) de um triângulo, que, a priori, é produto da imaginação e somente possível através de uma imagem concreta (ver Rumelhart & Ortony 1977: 1 O1).

3.2.2. Idéias como cópias da realidade

A teoria imagética do pensamento mais radical vê, em imagens mentais, cópias icônicas da realidade. Esta idéia se encontra primeiramente nos epicuristas. Na opinião deles, os objetos da realidade irradiam, na forma de átomos invisíveis, cópias materiais que alcançam o cérebro humano como eidola ou simulacra. Assim, a imagem mental é um ícone da realidade.

No ápice da tradição empiricista, Hume também vê, nas idéias e cognições, imagens mentais, cuja origem se encontra na percepção prévia pelos sentidos: "Para a compreensão do que quero significar pelo poder cognitivo, devemos reconhecer que há continuamente em nossas mentes certas imagens ou concepções das coisas lá fora.(...) Essas imagens e essas representações das qualidades da coisa lá fora, é o que chamamos de concepção, imaginação,idéias, apreensão ou conhecimento delas" (Human nature I.7). Locke e Descartes também defenderam uma teoria da percepção, de acordo com a qual o percebido provoca representações internas que têm uma relação de semelhança com os objetos percebidos sem, no entanto, possuir necessariamente o caráter de imagens reais (ver Maund 1993). Esta teoria da percepção é, por este motivo, também chamada de Teoria Representativa da Percepção.

3.3. A teoria marxista do pensamento como cópia

A teoria do pensamento e do signo como cópia foi defendida dogmaticamente na semiótica e na semântica marxista (Maus & Segeth 1962; Klaus 1963; Resnikow 1977). De acordo com a epistemologia marxista-leninista, cada ato de cognição tem uma imagem mental como resultado. Esta cópia mental é um tipo de cópia da realidade. Tais cópias vigoram como resultados ideais de um processo de espelhamento no qual o homem adquire mentalmente uma "realidade objetiva". Neste caso, a cópia é distinta do objeto que ela copia devido a processos neurofisiológicos de transformação no cérebro. Contudo, a cópia e o objeto são dependentes um do outro e congruentes um com o outro. Isto porque o espelhamento funciona como uma qualidade objetiva da matéria e como causa da cópia. Klaus (1969) define a relação sígnica entre a cópia mental e a realidade significada como uma relação de homomorfia, enquanto Neumann et al. (1976: 334-339) falam de uma relação de similaridade.

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A teoria marxista da cognição como cópia foi também transferida para a semântica da linguagem (Neumann et al. 1976: 392-398): enquanto cada processo cognitivo tem, como conseqüência, um processo copiador ideal, significados de palavras são unicamente aquelas cópias mentais que se ligam mais ou menos rigidamente a uma determinada cadeia de sons em uma comunidade lingüística. A dogmática ideológica, com a qual esta teoria da cópia foi defendida, impediu, por muito tempo, a discussão acerca dos resultados empíricos da psicologia cognitiva.

3.4. A teoria imagética da significação de Wittgenstein

Wittgenstein (1922; 1953) desenvolveu uma teoria lógica do pensamento imagético (ver Aldrich 1958), que foi motivo de algumas controvérsias interpretativas (ver Stegmüller 1969: 539; Kutschera 1971: 52). Em seu Tractatus logico-philosophicus, ele escreve: "Nós formamo-nos imagens dos fatos" (2.1), "a imagem é um modelo da realidade" (2.12), e "a imagem lógica dos fatos é o pensamento"(3). Esse conceito de imagem não se refere a uma imagem visual ou a uma imagem mental, mas sim a uma relação complexa e abstrata, que Stenius (1969) interpreta no sentido do conceito matemático da cópia isomorfa, que corresponde ao conceito peirceano do ícone diagramcítico. Além disso, Wittgenstein associa a idéia do indexical à teoria imagética da significação, pois: "A frase" (como imagem da realidade) "mostra seu sentido" (4.022). Sobre este ponto, Stegmüller (1969: 555) diz: "Nós lemos da estrutura externa da frase a estrutura externa correspondente do fato."

Wittgenstein (1953) desenvolveu, na sua filosofia posterior, uma nova teoria da significação que leva mais fortemente em consideração as condições pragmáticas do uso lingüístico. Aqui, Wittgenstein não parte mais dos fatos ontológicos copiados por imagens lógicas. Em vez de aceitar a realidade do mundo ontologicamente como dada, ele a vê como o resultado de interpretações lingüísticas (ver Kutschera 1971: 133-134). Já que os fatos ontológicos não podem agora ser mais o ponto de partida do processo de cópia, eles se tornam, em vez disso, "projeções das estruturas lingüísticas dadas primariamente, com as quais nós falamos sobre o mundo" (ibid.: 134).

3.5. Modelos da psicologia cognitiva

A psicologia cognitiva também entende como uma imagem (mental) a reprodução mental ou representação de uma experiência perceptiva nãopresente. Discutiremos a seguir, entre os modelos da imagem mental estabelecidos empiricamente no quadro da psicologia e da nova ciência cognitiva, a teoria de Piaget da imagem interna e a situação da discussão da ciência cognitiva sobre as chamadas imagens mentais.

3.5.1. A imagem interior de Piaget

Em sua epistemologia genética, Piaget designa a imagem mental como imagem interior. Ele desenvolve sua teoria da imagem interior com base em categorias explicitamente semióticas, apoiando-se na semiologia de Saussure.

Piaget (1964: 97) define a imagem interior como "esquema representativo" de um acontecimento externo e vê nela uma "imitação interiorizada" e uma transformação de tal acontecimento. A capacidade de trazer à mente imagens internas é um dos aspectos daquilo que Piaget (1970, p. 17) denomina função semiótica. Esta é a capacidade geral do ser humano de "representar algo através de um signo ou um símbolo ou um outro objeto" (Piaget & Inhelder 1966: 55). A imagem mental é, assim, um veículo do signo que representa o objeto de referência externo.

Piaget se coloca contra uma teoria da cópia ingênua, que vê, na imagem mental, um tipo de "vestígio" da percepção passiva de um objeto dado objetivamente e defende, por outro lado, uma teoria assimilatória da imagem (ver Pia get & Inhelder 1966: 12, 19). De acordo com esta, a imagem interna é o produto de uma imitação internalizada. Ela serve como um "instrumento semiótico", necessário para "evocar o percebido e pensar" (ibid.: 498). Piaget (ibid.: 497) define esta imagem, além disso, como símbolo e entende, por este, um signo "que é distinto de seu significado" (ibid.: 518). Ele também define a imagem como um significante figural, cujo significado é o objeto de referência (ibid.: 502).

Piaget se distancia, com essa caracterização da imagem interna, tanto do modelo sígnico diádico de Saussure quanto de modelos sígnicos triádicos. Sob um ponto de vista saussuriano, a "existência do objeto" aceita por Piaget é um fato além do semiótico (Piaget & Inhelder 1966, p. 506). De acordo com seu modelo sígnico diádico, ambos os componentes do signo são definidos mentalmente. Saussure definiu até o

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significante verbal como uma imagem mental, que ele chama de imagem acústica. De acordo com isso, o significante de uma imagem visual deveria também já ser entendido como uma imagem mental. O significado desse significante imagético seria também de natureza mental na tradição saussuriana; não um objeto externo, mas um conceito no sistema conceitual do mundo do perceptor. De acordo com o modelo sígnico triádico de Peirce, a imagem interna de Piaget deveria ter a função do interpretante, que se encontra defronte, por um lado, da imagem visual percebida como representamem e, por outro, do objeto externo como objeto de referência.

Santaella ,Ana Lúcia. Imagem – Cognição, semiótica, mídiaEd. Iluminuras. São Paulo, 1998.

Págs 15-32

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A SUBJETIVIDADE NA RECEPÇÃO O RECEPTOR ENTRE O MONGOLISMO E O AUTISMO

Nunca se entende tudo. Quando alguém entende tudo, é porque ficou louco.(Philip Anderson, físico)

Os estudos sobre as relações mídia-receptor são de difícil abordagem em seu conjunto. Para alguns há fases distintas, cronologicamente marcadas, em que ora se privilegia, às vezes de forma bastante radical, os superefeitos da mídia sobre a sociedade, sendo o receptor visto como uma esponja que indiscriminada e descriteriosamente absorve o que recebe (sendo a falta de filtro na recepção de mensagens uma das principais características do mongolismo), ora se superdimensiona as prerrogativas do receptor de resistir, selecionar, negociar, barganhar e interagir com a mensagem mediática. Nesse último caso, a reconstrução da mensagem, como parte integrante da livre interpretação, ganhou tal importância nas análises científicas que o receptor, enquanto objeto científico privilegiado, foi apartado da mensagem, ou seja, do real no processo comunicativo e, portanto, isolado da realidade (principal característica do autismo).

Denis McQuail14 distingue quatro fases na pesquisa científica sobre a mídia e suas relações com o receptor. Na primeira, até os anos 40, atribuía-se aos meios de comunicação de massa grandes poderes para modificar atitudes e comportamentos. Na segunda fase, até princípios dos anos 60, os meios de comunicação de massa eram considerados parcialmente ineficazes para modificar atitudes e comportamentos. A partir de então, redescobriu-se, em uma terceira fase, os poderes da mídia de construção e manipulação da realidade e de suas representações. A quarta fase, segundo McQuail, indica uma influência negociada dos meios. Este capítulo, de certa forma, constata essa evolução.

Para outros, como Bioca5 assiste-se nos últimos 40 anos a uma espécie de braço-de-ferro entre, de um lado, defensores de uma audiência ativa, individualizada, infensa a influências, racional e seletiva e, de outro, partidários de uma audiência passiva, conformista, moldável, influenciável, vulnerável e vitimada. A audiência passiva seria composta por receptores que "raramente usam a mídia com algum objetivo específico, absorvem indiscriminadamente qualquer coisa que a mídia apresenta e podem ser mudados psicologicamente, socialmente e culturalmente pela mídia"6 .

O psicólogo social Raymond Bauer foi o primeiro a falarem "audiência obstinada", que, mais tarde, por um eufemismo, passou a ser denominada "audiência ativa", com preocupações claramente ideológicas de valorização do indivíduo (central para as democracias liberais), do cidadão racional, livre, independente e, portanto, capaz de decidir sobre seus rumos, destinos e comportamentos. A audiência ativa seria composta por receptores "cognitiva e afetivamente envolvidos pelo conteúdo consumido e capazes de limitar intencionalmente os efeitos da mídia sobre eles"7.

Não são poucos os que se opõem a essa idéia de uma postura ativa do receptor. Uma das críticas é a de que a possível demanda seletiva do receptor é condicionada pela oferta imposta pela mídia. A própria prerrogativa de selecionar depende da diversidade de mensagens ofertadas. "A seleção de fontes mediáticas e, portanto, a própria seletividade da audiência é", como explicam Levy & Windahl8, "condicionada pelo número de possíveis escolhas que um membro da audiência tem a sua disposição."

4 Mass communication theory, p. 328-333; e The historicity of mass media silence, in C. WILHOIT (ed), Mass Communication Review Yearbook, v. 1, p. 109-123.5 Opposing conceptions of the audience: the active and passive hemisphere of mass communication theory, Communication Yearbook, n. 11, 1988, p. 51-80.

6 B. GUNTER, Finding the limits of audience activity, Communication Yearbook, n. 11, 1988, p. 108-126.

7 Idem, p.108.8 The concept of audience activity, in Media gratifications research current perspectives, p. 109-22.

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Nesse sentido, também os arautos do princípio da liberdade de comunicação propõem abundância de canais e máxima amplitude na possibilidade de escolha como condições primárias para uma sociedade democrática e livre.

No entanto, nem sempre a diversidade de canais significa maior diversidade de mensagens e mais ampla oferta para o consumidor. Há que considerar, como aponta Litman9, a existência de dois tipos de diversidade: a vertical, referente ao número de opções oferecido por um único canal durante um espaço de tempo, e a diversidade horizontal, que enfoca toda a oferta de mensagens ao receptor num determinado momento. Nesse segundo caso, se todos os canais disponíveis oferecerem no mesmo instante produtos parecidos, como por exemplo jornais televisivos com o grau de coincidência e consonância temática conhecidos, a exposição seletiva se operará em função de fatores que nada têm a ver com a liberdade democrática de escolha.

Para Levy & Windahl, o mero incremento da oferta teria como efeito o aumento da seletividade, tornando a audiência mais ativa. Essa conclusão, exageradamente reducionista, desconsidera uma série de outros fatores (psicológicos, conscientes e inconscientes, de utilidade da mensagem para o receptor, de familiaridade com a mensagem gerada pela ritualização e dependência da recepção etc.) que atuam com maior ou menor intensidade junto à seletividade na recepção. Esses fatores serão analisados ainda neste capítulo, quando tratarmos da exposição seletiva.

Elisabeth Noelle-Neumann faz outras críticas à audiência seletiva: a rigor, o que ela denuncia são as diferenças do processo receptivo segundo as distintas características dos meios. No que concerne à exposição seletiva, a leitura de jornais, por ser uma recepção solitária, permite maior flexibilidade por parte do receptor e, portanto, uma seleção maior do que as mensagens televisivas recebidas quase sempre em grupo. Entretanto, a leitura dos jornais exige mais esforço e, conseqüentemente, maior motivação que a recepção televisiva. Assim, é mais provável que a recepção televisiva se dê mais por inércia, diferentemente da leitura, intrinsecamente mais exigente.

A rigor, esse cabo-de-guerra entre partidários da audiência ativa e passiva contribuiu, como veremos, para estruturar as posições dentro do campo acadêmico, ou seja, de um espaço social composto por dominantes e dominados em luta pela imposição da representação legítima (circunstancialmente dominante ou dominada, dependendo de quem a defenda) do que é o indivíduo, do que é o receptor, da passividade ou atividade da audiência etc., visando obter o monopólio tendencial dos bens em circulação nesse espaço, ou seja, os troféus próprios ao mundo acadêmico e universitário.Nesse antagonismo, o modelo dos efeitos limitados contribuiu, de forma decisiva, para a divulgação e o conseqüente incremento da superfície de visibilidade acadêmica da "audiência ativa".

Em 1960, foi publicado o livro de Joseph Klapper, The effects of mass communicafion. O autor faz uso das contribuições da psicologia social como base científica para condicionar e impor limites aos efeitos sociais da mídia10.? A idéia central do autor se traduz na célebre frase:

"Mass communication does not serve as a necessary and sufficient cause of audience effects, but rather functions among and through a nexus of mediating factors and influences" (p. 8).

Assim, normalmente pode-se dizer que a comunicação de massa não é, por si só, suficiente para engendrar efeitos junto à audiência. Os efeitos sociais da mídia estariam determinados, segundo Klapper, por um conjunto funcional de fatores mediatizantes e influentes. Esses fatores fazem da comunicação de massa um estímulo co-agente e não uma causa única no processo de reforço das condições existentes. A mídia age sobre seus receptores, mas o faz associada a outros fatores. De acordo com o modelo dos efeitos limitados, a mídia provoca muito mais uma fixação do já existente do que uma eventual modificação.

9 The television networks, competition and program diversity, Joumal of Broadcasting, v. 23, n. 4, 1979, p. 393-409.10 "Estes se fariam presentes numa estrutura preexistente de relações sociais e num contexto social e cultural particular. Estes fatores sociais e culturais tenderiam a ter primazia na formação das opiniões, atitudes e comportamento, e também na formação da escolha, atenção e resposta à mídia por parte da audiência." (D. MCQUAIL, Mass communication theory)

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Essa limitação dos efeitos da mídia teria uma dupla causa: de um lado, a existência de uma rede de comunicações interpessoais que concorrem na produção e principalmente na difusão de informações e, de outro, os mecanismos seletivos que cada receptor coloca em prática e que condicionam a sua exposição, atenção, percepção e retenção da mensagem recebida.

O estudo dessas variáveis, segundo Elihu Katz, está longe de ser total (recepção seletiva), direta (mediação interpessoal e percepção seletiva), imediata (tempo necessário para a mensagem percorrer o longo circuito de relações interpessoais). Marcando os limites da influência da mídia, as noções de seletividade individual e de mediações interpessoais abrem o campo da pesquisa a uma perspectiva teórica proveniente da psicologia social. Essas limitações aos efeitos sociais da mídia incidem sobre sua deontologia e sua ética.

Durante o apogeu das teorias da "agulha hipodérmica" e da "bala de canhão", que sustentavam a ocorrência de superefeitos sociais graças à manipulação absoluta do receptor por parte dos meios, o discurso dominante da ética preconizava a necessidade de um controle que serviria como um escudo protetor da sociedade. O receptor indefeso, à mercê de uma informação jornalística sem freios, carecia de proteção. No entanto, à medida que se desvendava a capacidade de autodefesa, de negociação, de resistência e de barganha do receptor, o discurso da ética como escudo perdia sua razão de ser.

O receptor, na condição de um ser inteligente e seletivo, não necessitava mais de tanta proteção externa. O discurso dominante de ética mediática, então, deixou de ser o do escudo e passou a ser o do controle de qualidade junto ao mercado informativo. O receptor, para selecionar bem, necessitará, antes de tudo, de bons produtos disponíveis. Uma oferta de qualidade é condição necessária de uma seleção conveniente.

Assim, os conceitos de "objetividade", "profundidade", "diversidade temática", "sobriedade" (em relação ao "sensacionalismo"), do lado do produto, e de "utilidade", "seletividade", "busca da certeza", do lado do receptor, ganharam as páginas dos tratados de ética e dos manuais de "bom jornalismo". Essa postura do discurso da ética de valorização do receptor caminhou paralelamente aos estudos sobre a recepção e mormente sobre seu processo seletivo.

O processo seletivo de recepção mediática é apresentado na doutrina como um filtro quadrifásico11, ou seja, composto por quatro camadas sobrepostas e progressivamente seletivas: a exposição e a atenção seletivas (I), a percepção e a retenção seletivas (II).

11 O produto mediático entra na parte superior do filtro. O resíduo filtrado é a reconstrução desse produto subjetivamente marcada. Esse resíduo servirá de base para todas as comunicações interpessoais que se seguirem. Como em qualquer filtro, o resíduo que passa às camadas inferiores é conseqüência direta do trabalho de filtragem (seleção) operado pelas camadas superiores.

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A metáfora do filtro, embora aparentemente atraente e comumente adotada, não nos parece conveniente. Em um filtro quadrifásico comum usado, por exemplo, em um processo de filtragem química, as quatro etapas de filtragem se seqüenciam cronologicamente; as etapas anteriores (da parte de cima do filtro) condicionam o processo de filtragem das etapas posteriores (da parte de baixo do filtro). No processo seletivo da recepção não há essa rigidez na seqüência de etapas (apenas o senso comum indicaria que exposição, atenção, percepção e retenção ocorrem uma após a outra). É verdade que atenção, percepção e retenção seletivas são condicionadas pelas etapas que se apresentariam como anteriores num eventual sistema de filtragem. No entanto, essas fases também influenciarão os processos seletivos de suas fases anteriores, ou seja, a atenção condiciona a exposição, a percepção tem incidência sobre a exposição e a atenção, e a retenção, sobre as três que lhe seriam anteriores.

FONTE:

Barros Filho, Clóvis. Ética na Comunicação: da informação ao receptor. São Paulo: Moderna, 1995. Págs 123 a 128.

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A MENSAGEM PUBLICITÁRIA

Toda a publicidade é uma mensagem: com efeito, ela comporta uma fonte de emissão, que é a firma a quem pertence o produto lançado (e gabado), um ponto de recepção, que é o público, e um canal de transmissão, que é, precisamente, aquilo a que se chama o suporte de publicidade; e como a ciência das mensagens é, hoje em dia, muito moderna, podemos tentar aplicar à mensagem publicitária um método de análise que nos veio (muito recentemente) da lingüística; para isso, é preciso adotar uma posição imanente ao objecto que queremos estudar, quer dizer, abandonar voluntariamente qualquer observação relativa à emissão ou à recepção da mensagem, e colocarmo-nos ao nível da própria mensagem: semanticamente, isto é, do ponto de vista da comunicação, como é constituído um texto publicitário (a pergunta também é válida em relação à imagem, mas é de muito mais difícil resposta)?Sabe-se que qualquer mensagem é a reunião de um plano de expressão ou significante e de um plano de conteúdo ou significado. Ora, se examinarmos uma frase publicitária (a análise seria idêntica para textos mais longos), veremos rapidamente que essa frase contém, de fato, duas mensagens, cuja imbricação constitui a linguagem publicitária na sua especialidade: é o que vamos verificar a propósito de dois slogans, dados aqui como exemplos, por causa da sua simplicidade: Cuisinez d'or avec Astra e Une glace Gervais et fondre de plaisir.

A primeira mensagem (esta ordem de análise é arbitrária) é constituída pela frase entendida (se fosse possível) na sua literalidade, abstraindo-nos, precisamente, da sua intenção publicitária; para isolar esta primeira mensagem, basta imaginar algum Hurão ou algum Marciano, em resumo, qualquer personagem vinda de um outro mundo e que bruscamente desembarcasse no nosso, que, por um lado, conhecesse perfeitamente a língua francesa (pelo menos o seu vocabulário e sintaxe, senão a sua retórica), e, por outro lado, ignorasse por completo o comércio, a cozinha, a gulodice e a publicidade; magicamente dotado deste conhecimento e desta ignorância, esse Hurão ou esse Marciano receberia uma mensagem perfeitamente clara (mas, a nossos olhos, para nós que sabemos, completamente estranha); no caso de Astra, ele tomaria como uma ordem literal começar a cozinhar, tendo a certeza indiscutível de que ó cozinhado assim feito teria como resultado uma matéria semelhante ao metal a que se dá o nome de oiro; e, no caso do Gervais, ficaria a saber que a ingestão de um certo gelado é infalivelmente seguida de uma fusão de todo o ser sob o efeito do prazer. Naturalmente, a intelecção do nosso Marciano não dá, de modo algum, conta das metáforas da nossa língua; mas esta surdez particular não o impede de maneira nenhuma de receber uma mensagem perfeitamente constituída; porque essa mensagem comporta um plano da expressão (é a substância tônica ou gráfica das palavras, são as relações sintáticas da frase recebida) e um plano do conteúdo (é o sentido literal dessas mesmas palavras e dessas mesmas relações): em resumo, há aqui, neste primeiro nível, um conjunto suficiente de significantes, e esse conjunto reenvia para um corpo, não menos suficiente, de significados; em relação ao real que toda a linguagem supostamente «traduz», esta primeira mensagem chama-se mensagem de denotação.

A segunda mensagem não tem de modo algum o caráter analítico da primeira; é uma mensagem global, e recebe essa globalidade do caráter singular do seu significado: esse significado é único e é sempre o mesmo, em todas as mensagens publicitárias: é, numa palavra, a excelência do produto anunciado. Pois é certo que, seja o que for que me digam de Astra ou de Cervais, apenas me dizem, ao fim e ao cabo, uma coisa: a saber, que Astra é a melhor das gorduras e Cervais o melhor dos gelados; este significado único é, de certo modo, o fundo da mensagem, esgota por completo a intenção de comunicação: a finalidade publicitária é atingida no momento em que se percebe esse segundo significado. Quanto ao significaste desta segunda mensagem (cujo significado é a excelência do produto), qual será'? São, em primeiro lugar, traços de estilo, tirados da retórica (figuras de estilo, metáforas, corte de frases, alianças de palavras); mas, como esses traços estão incorporados na frase literal que já abstraímos da mensagem total (e por vezes até a impregnam por completo, quando se trata, por exemplo, de uma publicidade rimada ou ritmada), segue-se que o significante da segunda mensagem é, de fato, formado pela primeira mensagem na sua totalidade, pelo que podemos dizer que a segunda mensagem conota a primeira (que, como vimos, era de simples denotação). Portanto, encontramo-nos aqui perante uma verdadeira arquitetura de mensagens (e não perante uma simples adição ou sucessão): ela própria constituída por uma reunião de significantes e de significados, a primeira mensagem torna-se o simples significante da segunda mensagem, segundo uma espécie de movimento desligado, já que só um elemento da segunda mensagem (o seu significante) é extensivo à totalidade da primeira mensagem.

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Este fenômeno de «retirada» ou de «conotação» é de uma grande importância e está muito para além do próprio fato publicitário: parece, com efeito, que está estreitamente ligado à comunicação de massa (de que se conhece o desenvolvimento da nossa civilização): quando lemos o jornal, quando vamos ao cinema, quando vemos televisão e ouvimos rádio, quando afloramos com o olhar a embalagem do produto que compramos, é quase certo que nunca recebemos nem percebemos senão mensagens conotadas. Sem decidir ainda se a conotação é um fenômeno antropológico (comum, sob formas diversas, a todas as histórias e a todas as sociedades), podemos dizer que nós, os homens do século xx, estamos numa civilização da conotação, e isto convida-nos a examinar a dimensão ética do problema; a publicidade constitui, sem dúvida, uma conotação particular (na medida em que ela é «franca»), portanto, segundo ela, não podemos tomar partido sobre qualquer conotação; mas pela própria limpidez da sua constituição, a mensagem publicitária permite, pelo menos, formular o problema e ver como se pode articular uma reflexão geral sobre a análise < técnica» da mensagem, tal como a acabamos de esboçar aqui.

Que se passará, então, quando recebemos uma dupla mensagem, denotada-conotada (é esta exatamente a situação dos milhões de indivíduos que «consomem» a publicidade)? Não podemos acreditar que a segunda mensagem (de conotação) está «escondida» sob a primeira (de denotação); muito pelo contrário: aquilo que imediatamente apercebemos (nós, que não somos hurões nem marcianos) é o caráter publicitário da mensagem, é o seu segundo significado (Astra, Gervais são produtos maravilhosos): a segunda mensagem não é sub-reptícia (ao contrário de outros sistemas de conotação em que a conotação é desviada, como uma mercadoria de contrabando, para a primeira mensagem, que, assim, lhe empresta a sua inocência). Pelo contrário, em publicidade, o que deve ser explicado é o papel da mensagem de denotação: por que não dizer, simplesmente, sem dupla mensagem: comprem Astra, Cervais? Poder-se-ia, sem dúvida, responder (e será talvez a opinião dos publicitários) que a denotação serve para desenvolver argumentos, numa palavra, persuadir; mas é mais provável (e mais conforme com as possibilidades da semântica) que a primeira mensagem sirva mais sutilmente para naturalizar a segunda: retira-lhe a sua finalidade interesseira, a gratuidade da sua afirmação, a rigidez da sua cominação; o convite banal (comprem) é substituído pelo espetáculo de um mundo onde é natural comprar Astra ou Cervais; a motivação comercial está, assim, não mascarada, mas dobrada por uma representação muito mais ampla, pois ela faz com que o leitor comunique com os grandes temas humanos, exatamente aqueles que em todos os tempos assimilaram o prazer a uma perfusão do ser ou a excelência de um objeto à pureza do oiro. Pela sua dupla mensagem, a linguagem conotada da publicidade reintroduz o sonho na humanidade dos compradores: o sonho, quer dizer, sem dúvida, uma certa alienação (a da sociedade concorrencial), mas também uma certa verdade (a da poesia).

Com efeito, é aqui que a mensagem denotada (que é, ao mesmo tempo, o significante do significado publicitário) detém, se assim podemos dizer, a responsabilidade humana da publicidade: se for «boa>, a publicidade enriquece; se for < má> , a publicidade degrada-se. Mas o que será ser «boa> ou <<má>>, para uma mensagem publicitária? Evocar a eficácia de um slogan não é responder a esta pergunta, porque os caminhos dessa eficácia continuam a ser incertos: um slogan pode «seduzir> sem convencer, e no entanto levar à compra apenas por essa sedução; limitando-nos ao nível lingüístico da mensagem, podemos dizer que a «boa» mensagem publicitária é aquela que condensa em si a retórica mais rica e atinge com precisão (freqüentemente com uma só palavra) os grandes temas oníricos da humanidade, operando assim essa grande libertação das imagens (ou pelas imagens) que define a própria poesia. Por outras palavras, os critérios da linguagem publicitária são os mesmos da poesia: figuras de retórica, metáforas, jogos de palavras, todos esses signos ancestrais, que são signos duplos, dilatam a linguagem em direção a significados latentes e dão assim ao homem que os recebe o próprio poder de uma experiência de totalidade. Numa palavra, quanto mais uma frase publicitária contém duplicidade, ou, para evitar uma contradição nos termos, quanto mais ela é múltipla, melhor preenche a função de mensagem conotada; que um gelado nos faça «derreter de prazer>>, eis aqui, reunidos num enunciado econômico, a representação literal de uma matéria que funde (e cuja excelência se deve ao seu ritmo de fusão) e o grande tema antropológico do aniquilamento pelo prazer; que um cozinhado seja de oiro, e aí está, condensada, a idéia de um valor inestimável e de uma matéria estaladiça. A excelência do significante publicitário deve-se, assim, ao poder, que devemos saber dar-lhe, de religar a sua leitura à maior quantidade de «mundo» possível: o mundo, quer dizer: experiência de imagens muito antigas, obscuras e profundas sensações do corpo, nomeadas poeticamente por gerações e gerações, sabedoria das relações entre homem e natureza, acesso paciente da humanidade a uma inteligência das coisas através do único poder incontestavelmente humano: a linguagem.Assim, pela análise semântica da mensagem publicitária, podemos compreender que aquilo que «justifica> uma linguagem não é, de modo algum, a sua submissão à «Arte> ou à < Verdade> , mas, muito pelo contrário, a sua duplicidade; ou melhor ainda: que essa duplicidade (técnica) não é de modo algum

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incompatível com a franqueza da linguagem, porque essa franqueza se deve não ao conteúdo das asserções, mas ao carácter declarado dos sistemas semânticos usados na mensagem; no caso da publicidade, o significado segundo (o produto) é sempre posto a descoberto pelo sistema franco, quer dizer, que deixa ver a sua duplicidade, pois esse sistema evidente não é um sistema simples. De facto, pela articulação das duas mensagens, a linguagem publicitária (quando é < conseguida> ) abre para uma representação falada do mundo que o mundo pratica desde tempos remotos e que é a «narrativa»: toda a publicidade diz o produto (é a sua conotação) mas ela conta outra coisa (é a sua denotação); por isso é que nada mais podemos fazer senão classificá-la ao lado desses grandes alimentos de nutrição psíquica (segundo a expressão de R. Ruyer) que são para nós a literatura, o espetáculo, o cinema, o desporto, a Imprensa, a Moda: ao apoderarem-se do produto pela linguagem publicitária, os homens emprestam-lhe sentido e transformam assim a sua simples posse em experiência do espírito.

Les Cahiers de la publicité, n.° 7, Julho-Set., 1963.Em

Mitologias – Roland Barthes

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Em busca da consciência

Cientistas estão se aproximando de um dos últimos grandes enigmas da humanidade: a consciência. A abordagem científica deste tema, durante muito tempo reservado à filosofia, pode revelar resultados fascinantes

Por Gerhard Roth

Qual é a natureza da consciência? Perguntar é fácil, determinar a resposta não. A consciência pode parecer uma coisa normal, até banal. As pessoas se desculpam por ter ignorado "inconscientemente" alguém numa festa ou dizem querer "expandir sua consciência". Mas a verdadeira compreensão do fenômeno permanece elusiva.

De que forma os sistemas físicos do cérebro agem em conjunto para criar as experiências subjetivas da mente - os pensamentos particulares e introspectivos que fazem de nós aquilo que somos? A dificuldade em se usar a ciência empírica para quantificar algo tão subjetivo, levou David J. Chalmers, filósofo da University of Arizona, a nomear a questão de o "problema difícil".

Por muito tempo restrita ao campo de investigação filosófica, a consciência passou a ser abordada nos últimos anos também por neurocientistas. Francis Crick, do Salk Institute for Biological Studies de San Diego, e Christof Koch, do California Institute of Technology, por exemplo, sustentam que uma abordagem legítima para a exploração dos mecanismos da consciência seria se concentrar na descoberta dos chamados correlatos neurais - os processos do cérebro mais diretamente responsáveis pela consciência. Localizar os neurônios do córtex cerebral que se relacionam com a consciência e compreender como se ligam a neurônios de outras regiões do cérebro pode fornecer importantes revelações.

Avanços recentes nas técnicas de imageamento tornaram possível observar quais áreas do cérebro estão em ação durante diversos tipos de atividade mental. A consciência pode ser um dos grandes quebra-cabeças da neurociência, mas ao compreenderem melhor os processos envolvidos os cientistas estão gradualmente identificando as peças.

Múltiplos NíveisQualquer tentativa de entender a consciência tem de começar pela constatação de que o fenômeno engloba vários estados. Portanto seria melhor evitar falar em "a" consciência, como acontece com freqüência nas discussões filosóficas. Em um dos extremos desse amplo espectro está o chamado estado de alerta (ou vigília). Estados de menor consciência incluem a sonolência, o cochilo, o sono profundo e o coma.

O fluxo característico da consciência consiste em duas formas: a de fundo e a atual. A consciência de fundo, ou de base, abrange as experiências sensoriais duradouras, como a identidade pessoal, a percepção do corpo físico, o controle desse corpo e do intelecto e o modo como a pessoa se insere no tempo e no espaço. Outros elementos incluem o nível de realidade das experiências de cada um e a diferença entre a realidade e a fantasia. A consciência de fundo fornece as bases para o segundo tipo: a consciência atual. Os estados concretos e às vezes alternantes da consciência atual abarcam a percepção dos processos que ocorrem no corpo e no ambiente; atividades intelectuais, como pensar, imaginar e lembrar; emoções, pensamentos e necessidades (como a fome); e desejos, intenções e atitudes.

A atenção é um elemento importante da consciência. Fatos que não chamam nossa atenção praticamente inexistem para nós, mesmo que influenciem nossas percepções, sensações ou reações. A atenção, no sentido da concentração, aguça os estados atuais da consciência. Quanto mais nos concentramos em um único fato, mais os outros fatos se distanciam de nossa consciência.

No dia-a-dia, nossos cérebros captam e processam uma grande quantidade de informação que nunca chega à nossa consciência. Os neurocientistas se referem a esses dados subconscientes como percepção

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ou aprendizado implícitos. A maior parte dos especialistas acredita que essa percepção inconsciente leve a um processamento superficial da informação: a pessoa reconhece objetos, ocorrências e conexões por meio de características físicas óbvias e regras simples. Detalhes e conteúdo complexo não são reconhecidos. Em comparação, somos conscientemente capazes de dar conta das tarefas complexas envolvidas na percepção e no aprendizado explícitos.

A atenção e a consciência atual se fazem presentes quando o cérebro se defronta com acontecimentos ou problemas que julga ser importantes e novos. Com a ajuda de vários tipos de memória, o cérebro classifica as percepções dependendo se são importantes (ou insignificantes) e conhecidas (ou desconhecidas). Se alguma coisa é categorizada como insignificante, ou não vai nem chegar à consciência ou vai atingi-la de modo impreciso. Uma informação que é "importante mas conhecida" causa a ativação de processos que já lidaram com ela no passado, portanto o cérebro pode executar atos rotineiros com um nível mínimo de consciência. Só quando um acontecimento ou um trabalho é importante e novo - quando a pessoa tem de solucionar um problema complicado ou aprender uma nova habilidade motora, por exemplo - é que os sistemas da consciência e da atenção são totalmente ativados. A consciência, nesse caso, é um método específico de processar informações que seriam intricadas demais para processos subconscientes.

Muitas tarefas, principalmente aquelas que requerem prática, precisam primeiro ser percebidas conscientemente. Temos de nos concentrar para aprender a dirigir, andar de bicicleta ou tocar piano. Com a prática, podemos reduzir o nível de concentração e alerta. Depois disso, prestar atenção aos detalhes pode até mesmo atrapalhar o progresso da ação.

Sinais de ConsciênciaOs neurocientistas descobriram nos últimos anos regiões do cérebro que estariam ligadas ao fenômeno da consciência e criaram teorias sobre o papel que desempenham na formação dessa forma única de apreensão de conhecimento. Uma ferramenta historicamente importante para essa pesquisa é o estudo de pacientes com lesões em áreas específicas do cérebro. Mas a observação dos resultados não revela muita coisa sobre os mecanismos neurais que sustentam a consciência. Para encontrar tais dados são necessários métodos que registrem a atividade neural, começando pelo nível individual das células ou até mesmo por suas sinapses (pontos de conexão), chegando até às redes corticais que contêm milhões ou bilhões de células nervosas. Técnicas especiais de imageamento ajudam a dar pistas: a magnetoencefalografia (MEG), a tomografia por emissão de pósitrons (PET) e a ressonância magnética funcional (fMRI). O eletroencefalograma (EEG) registra as ondas elétricas do cérebro.

Com essas técnicas, os pesquisadores descobriram que os indivíduos percebem conscientemente apenas a informação que é processada nas regiões associativas do córtex cerebral. As atividades de processamento elementar executadas fora do córtex não são acessadas pela consciência. Os vários estados da consciência representam portanto o produto final de atividades extremamente complexas, mas processadas de modo totalmente inconsciente. Até mesmo a sensação de que somos livres em nossas intenções e ações - a impressão subjetiva de livre-arbítrio - é moldada por centros que funcionam inconscientemente. A consciência pode ter um papel mais de "aconselhamento" que de decisão em nossas atitudes.

O que acontece, então, nas regiões associativas quando experimentamos um determinado estado de consciência? Acredita-se que os vários estados se baseiem na "reconfiguração" em frações de segundo das redes neurais do córtex. Essas redes são formadas por milhões de células nervosas densamente interconectadas. As sinapses fortalecem ou enfraquecem as conexões por um curto espaço de tempo, o que altera a maneira como as informações são processadas. Assim, células nervosas de locais específicos das redes compartilham temporariamente o mesmo estado de excitação. Quando, por exemplo, o cérebro está tentando reconhecer um objeto entre muitos ou compreender o significado de uma frase, um grupo de células nervosas forma temporariamente uma unidade com um só objetivo. A combinação de conexões entre o tálamo (um importante centro de ativação) e o córtex (que opera num nível mais localizado e estendido) parece ter uma atuação essencial no surgimento de atividades sincronizadas

Pensando em Intervalos de um SegundoSubstâncias químicas liberadas nas regiões do cérebro relevantes à consciência modulam ou influenciam as rápidas alterações na força da sinapse dos neurônios corticais. As chamadas formações reticulares e os centros límbicos exercem controle significativo sobre essa liberação (ver quadro 1). O material mensageiro

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(os neurotransmissores "rápidos", como o glutamato ou o ácido gama-aminobutírico), responsável pelo transporte de sinais entre as células nervosas, opera em questão de milésimos de segundo. Os processos de neuromodulação, e as reações químicas causadas por eles no interior de uma célula ou numa sinapse, requerem muito mais tempo - aproximadamente um segundo ou até mais. Essa pode ser a base para o intervalo característico de um segundo da consciência: o período durante o qual são liberados a percepção, a imaginação, o pensamento e a memória.

Os processos de neuromodulação exigem quantidades relativamente grandes de oxigênio e glicose. O reabastecimento correspondente, feito através de um aumento no fluxo sangüíneo local, ocorre em segundos. Veja um exemplo de como o processo funciona. Imagine ter de identificar rapidamente um objeto dentro de uma cena complexa. É preciso, em primeiro lugar, se concentrar, o que causa um esforço correspondente nos lobos temporal e occipital. A força das conexões sinápticas se altera nas redes que já existem, ou novas redes se formam até que a solução seja encontrada. Depois de várias repetições da tarefa, essas conexões corticais se tornam mais vigorosas, o que demanda menor esforço mental para sua realização. Uma tomografia ou uma ressonância magnética funcional do cérebro mostrariam uma quantidade quase imperceptível de atividade cortical. Do mesmo modo, depois de praticar o suficiente para obter uma habilidade motora, uma pessoa pode executar o movimento "dormindo" ou mesmo enquanto pensa em outras coisas. As redes envolvidas na ação vão se tornando gradualmente menores, e se transferem para o córtex motor e para centros motores mais profundos, como o cerebelo e os gânglios da base (que operam inconscientemente).

O cérebro está constantemente tentando automatizar os processos, dispensando-os da consciência; dessa maneira, o trabalho será concluído mais rápido, com mais eficácia e num nível metabólico menor. A consciência é lenta, sujeita a erro e trabalhosa.

Associações no CérebroPor que só os processos que ocorrem no córtex associativo são acompanhados da consciência? Um primeiro olhar não revela grande coisa. Aquela área do cérebro não varia muito em aparência em relação ao resto do córtex. Ela também consiste em seis camadas com uma disposição celular relativamente homogênea. Seus pontos de entrada e saída são coordenados nas camadas individuais, assim como acontece no restante do córtex. Mas a resposta pode estar nas próprias conexões - e na sua quantidade assombrosa.

As regiões sensoriais primárias e secundárias do córtex relacionam-se a um processamento inicial da informação captada pelos órgãos sensoriais. Só então as regiões associativas são ativadas (ver quadro 2). A informação que sai dos olhos, por exemplo, passa através do tálamo primeiro para o córtex visual primário e secundário, e depois para as várias regiões associativas visuais dos lobos parietal e temporal. Mas também há muitas conexões reversas que voltam às regiões primárias e secundárias. Os neurônios das áreas associativas respondem a uma informação de modo muito mais complicado que as células das regiões sensoriais - elas trabalham de maneira altamente integrada. Determinadas células nervosas da zona de transição entre os lobos parietal, occipital e temporal reagem especificamente ou a estímulos visuais e auditivos, ou a estímulos visuais e táteis ou a estímulos visuais, auditivos e táteis.

O córtex associativo se conecta de modo muito mais intenso ao hipocampo (o organizador da memória cognitiva) e ao sistema límbico (principalmente à amígdala, a organizadora e possível centro de memória emocional), em comparação com outros córtices. Essas regiões corticais parecem ser extremamente importantes na produção de diferentes estados de consciência.

Aparentemente, o desenvolvimento da consciência se apóia, em grande parte, nas numerosas ligações entre células nervosas do córtex e outras células. O enorme número de conexões do córtex supera em muito o número de pontos de entrada e saída. Essa disposição significa que o córtex se comunica mais consigo mesmo que com os órgãos sensoriais e o aparato motor.

Disparos SincronizadosOs neurocientistas podem, portanto, determinar que funções os estados de consciência exercem e que condições físicas, químicas, anatômicas e fisiológicas são necessárias no cérebro para o desenvolvimento desses estados. Mas ainda resta uma pergunta essencial: Como a consciência acontece? Muitas teorias foram propostas, mas não há consenso; boa parte das idéias dá importância central às interações entre o

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tálamo e o córtex.Uma boa candidata a explicação pode vir da sincronização das bilhões de células nervosas corticais com as trilhões de sinapses - que ao mesmo tempo estão sob a influência da formação reticular, do tálamo, do hipocampo e dos sistemas límbicos. A ocorrência astronomicamente alta de reconfigurações internas no córtex associativo contribui para essa noção. Uma melhor compreensão das propriedades das ligações das redes neurais do cérebro pode lançar luz sobre características como a experiência pessoal.

Se ainda não há explicações definitivas, não será assim para sempre. A consciência tem um caráter muito singular, mas ao menos alguns dos mistérios que a cercam devem, apesar de tudo, acabar sendo derrubados pela persistente investigação científica.

O AUTOR

GERHARD ROTH é chefe do departamento de fisiologia comportamental e neurobiologia do desenvolvimento do Instituto de Pesquisa do Cérebro da Universidade de Bremen, na Alemanha.

 

PARA SABER MAIS

- Brain Evolution and Cognition. G. Roth and M. F. Wullimann. Wiley, 2000.- Neural Correlates of Consciousness. Organizado por T. Metzinger. MIT Press, 2000.- Lista online de David J. Chalmers de trabalhos sobre a consciência: www.u.arizona.edu/~chalmers/online.html

 

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Design, o poder do beloA beleza e o estilo ganham o centro dasatenções no mundo de hoje e influenciama economia, o comportamento e a cultura

Gabriela Carelli

Só as pessoas fúteis não fazem julgamentos baseados na aparência. O verdadeiro mistério do mundo são as coisas visíveis, não as invisíveis." A frase acima, escrita pelo autor irlandês Oscar Wilde (1854-1900), atravessou um século sendo repetida apenas como uma provocação e soando para muitos quase como um insulto. Pois bem, neste começo de século e milênio ela define uma atitude que tem enorme peso nas relações pessoais e que é fundamental na definição de sucesso ou fracasso de carreiras, empresas e produtos. A arte de fazer coisas belas, o design, tornou-se um componente vital da economia moderna. O termo design, da língua inglesa, está dicionarizado em português e definido pelo Dicionário Aurélio como "concepção de um projeto ou modelo". No mercado de trabalho em empresas de ponta e altamente competitivas, os designers são hoje mais bem pagos e admirados do que os engenheiros e administradores. Um dos primeiros estudiosos a detectar e explicitar essa tendência foi o guru econômico americano Tom Peters. Diz ele: "Posso escrever sem esforço uma centena de situações em que o design é decisivo no mundo. Ele varia da aparência física de um quarto ao artista que faz a maquiagem de um apresentador de televisão. As pausas e os improvisos brilhantes nos discursos de Winston Churchill e os computadores da Apple são materializações de excelência no design. O design é tudo aquilo que torna uma coisa cotidiana mais usável ou desejável. Eu diria que viveremos daqui para a frente em um mundo em que a forma das coisas adquirirá mais e mais poder".

Ao americano Steve Jobs, o chefão da empresa de computadores Apple, citada por Tom Peters, atribui-se o feito de ter salvado sua companhia da falência simplesmente desenhando produtos irresistíveis. O mais recentes deles, o iPod, um pequeno tocador de músicas em MP3, tornou-se uma mania mundial e a grande fonte de receita da empresa de Jobs, superando os computadores Mac em unidades vendidas. Jobs tem uma definição de design que resume como poucos sua importância no mundo atual: "O design é a alma das criações humanas". Pode ser um sacrilégio, mas, se não é a alma, o desenho de um produto tornou-se nos dias de hoje o principal componente de sua trajetória no mercado. A elevação de uma peça qualquer à condição de ícone e sonho de consumo ou seu esquecimento nas prateleiras das lojas depende muito mais da forma que de outras características. Diz Peters: "O design já foi apenas um departamento das indústrias onde se dava o acabamento aos produtos. Hoje ele é, ou pelo menos deveria ser, o centro das atenções de todos. O desenho da gravata do executivo principal, a forma da linha de montagem, a capacidade de comunicação da logomarca da companhia ou a sinalização das portas de emergência fazem parte da mesma mensagem que a empresa emite para o público externo. É por esses sinais aparentes que ela será julgada".

fsen Fotos divulgação Bang Olufsen

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A FORMA E A FUNÇÃOVersão reformulada do infusor de chá Bauhaus, de 1924, lançada pela italiana Alessi, e o novo tocador de CD e DVD da dinamarquesa Bang & Olufsen: o impacto das formas

Até pouco tempo atrás, a palavra design evocava produtos de aparência extravagante e, sobretudo, caros. O conceito está hoje totalmente mudado. Pela primeira vez na história, o cuidado estético com objetos, aparelhos, prédios e ambientes não está restrito a uma elite social econômica ou artística, limitado a alguns segmentos da indústria, nem está sendo feito, usado ou adquirido para passar a idéia apenas de refinamento. O apelo estético está em todos os lugares, em todas as coisas e, felizmente, se tornou acessível a quase todos. A origem dessa popularização repousa, em boa parte, numa mudança de percepção por parte da indústria e do comércio. Tradicionalmente, a forma de um produto era mero complemento de sua funcionalidade. No desenvolvimento de um objeto utilitário ou um aparelho, apostavam-se todas as fichas em sua qualidade, eficiência e durabilidade – a aparência era um detalhe adicionado no fim do processo. Criar produtos nos quais a probabilidade de surgir defeitos era próxima de zero foi o mantra entoado pelas corporações. O resultado é que, em inúmeros segmentos, os produtos concorrentes ficaram muito semelhantes. Como se diferenciar e chamar a atenção do consumidor para determinada marca? Resposta: fazendo com que o produto, além de cumprir bem sua função específica, atraia pela beleza, ou pelo estilo inusitado, ou por uma aparência identificada com o próprio jeito de ser e de pensar de seu usuário. Em suma, pelo design.

Fotos Nicola Zocchi occhi

ESTÉTICA NA COZINHAEspremedor de frutas (à esq.) e escorredor de macarrão, ambos do francês Philippe Starck: o glamour no dia-a-dia doméstico

Essa nova configuração é a economia do design. Apesar do nome, não se trata de um mero fenômeno industrial e comercial, e sim de uma inédita confluência de tecnologia e cultura. A própria expressão design superou a definição original, ligada a peças únicas de decoração, e abrange agora um espaço amplo. Serve para tornar os ambientes de trabalho mais prazerosos,

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melhorando a produtividade das empresas. Também está presente no hermético desenho dos circuitos eletrônicos no chip de memória dos computadores. "Foi o design que conseguiu comprimir dentro de uma ambulância e, mais tarde, de um helicóptero os aparelhos imprescindíveis para emergências médicas", diz Flávio Murachovsky, vice-presidente de tecnologia do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Os objetos de design passaram a ser consumidos em larga escala, tornando o cotidiano das pessoas mais agradável. "Depois de passar um século focados em outros objetivos, como resolver problemas de fabricação e baixar custos, estamos cada vez mais engajados em tornar nosso mundo especial, e o design é fundamental para isso", pondera a filósofa americana Ellen Dissanayake, da Universidade de Maryland.

Divulgação

CANIVETE CIBERNÉTICOMesmo o tradicional canivete suíço foi reinventado: vem com cartão de memória com capacidade de até 128 MB

Se antes o design era uma criação de ateliês, hoje ele representa o bom gosto em escala industrial. No novo xadrez da economia do design, os jogadores são as grandes corporações, como a Philips e a Sony. Mesmo os grandes designers que antes desenhavam para poucos clientes endinheirados, como o francês Philippe Starck e o americano Michael Graves, hoje trabalham para empresas que fabricam suas criações em grande escala e as distribuem para lojas de departamentos e supermercados – e, graças à escala, com preços em conta. Com sua popularização, o design tornou-se um combustível de peso das economias.

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A VOLTA DE UM ÍCONEA garrafa da Coca-Cola, lançada em 1915 e de novo no mercado: inspiração nas formas femininas

Os designers são a parte mais visível de uma nova e cada vez mais influente categoria de profissionais, a daqueles que usam a criatividade como fator-chave nos negócios, na educação, na medicina, no direito ou em qualquer outra profissão. Autor de The Rise of the Creative Class (A Ascensão da Classe Criativa), o americano Richard Florida, professor de economia na Universidade Carnegie Mellon, diz que são eles que estão dando forma ao modo como trabalhamos, aos nossos valores e desejos – ou seja, tornaram-se a grande "filosofia visual" do nosso cotidiano. "Como essa criatividade é o motor do crescimento econômico, em termos de influência a classe criativa está se tornando a classe dominante em nossa sociedade", escreveu Florida.

Nos anos 20, a presidência das grandes corporações era em geral ocupada por um engenheiro. Nos anos 50, o posto muito provavelmente caía no colo de um dos administradores mais brilhantes da empresa. Os advogados reinaram nas décadas de 60 e 70. Nos anos 80, foi a vez dos homens de marketing. Hoje, o líder empresarial precisa ter sólido vínculo com o design e o processo criativo – de outra forma, sua empresa arrisca-se a perder a sintonia fina com o mercado.

Warnaco Inc. Divulgação Healtech

PARA O FUTUROProtótipo de carrinho de supermercado com divisórias e balanço para as crianças (à esq.). À direita, instrumento para cirurgia de sinusite cujo design minimiza os traumas operatórios

O aumento na oferta de produtos com desenho inovador acabou por criar uma via de mão dupla: o consumidor também passou a exigir objetos mais bonitos e com os quais se identifique. "Vivemos uma época única, em que a estética se tornou prioridade porque ficou mais fácil enfeitar nosso dia-a-dia, nossa vida, e desejamos fazê-lo", disse a VEJA a jornalista americana Virginia Postrel, autora do recém-lançado livro The Substance of Style – How the Rise of Aesthetic Value Is Remaking Commerce, Culture & Consciousness (A Essência do Estilo – Como a Valorização da Estética Está Mudando o Comércio, a Cultura e a Consciência). Virginia chama atenção para o fato de que a revolução do design se deu não apenas nos produtos industriais, mas também nos ambientes que freqüentamos e nos quais vivemos. Foi justamente ao compreender o papel vital do ambiente na experiência do consumidor que a

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IDEO, baseada na Califórnia, se tornou a mais inovadora e requisitada empresa de seu ramo nos Estados Unidos. Além de criar produtos e embalagens, ela se especializou em organizar espaços físicos.

Uma de suas experiências mais interessantes ocorreu com a maior rede de hospitais americanos, a Kaiser Permanente. Para resolver uma série de queixas e problemas ligados ao atendimento, os executivos da Kaiser viam a necessidade de construir novos e caríssimos edifícios. Para ajudá-los a projetar as novas instalações, contrataram a IDEO e logo tiveram uma surpresa. A firma redesenhou os espaços, criando salas de espera mais confortáveis e consultórios menos gélidos. O problema da Kaiser foi resolvido sem a construção de um único prédio novo. "A IDEO nos mostrou que precisamos construir experiências humanas e não edifícios", disse Adam Nemer, da Kaiser, à revista Business Week, que estampou a IDEO na capa de uma de suas últimas edições.

Fotos divulgação lgação

NA SALA E NA COPACadeira Corallo, dos irmãos Campana (à esq.), e cortador de pães da padaria francesa Poilâne: o visual inusitado se espalha pela casa

Na arquitetura, os novos cartões-postais que surgem nas grandes metrópoles mundiais mostram que hoje a forma é tão – ou mais – importante que a função. E que a combinação de ambas é imprescindível para o sucesso. Milhares de pessoas vão semanalmente visitar o museu Guggenheim, inaugurado em 1997 em Bilbao, e todos o conhecem por fotografias, mas... alguém é capaz de citar uma única obra que ele abriga? Sabe-se que o Louvre, em Paris, guarda a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, assim como o Museu do Prado, em Madri, hospeda a melhor produção pictórica de Francisco Goya. Quanto ao Guggenheim de Bilbao, sua fama reside na construção, e não em seu acervo. Foram as silhuetas acintosamente assimétricas criadas pelo arquiteto canadense Frank Gehry que transformaram a maior cidade do País Basco num pólo turístico internacional.

Monumentos como esses inevitavelmente convidam à reflexão de que, na era do design, os arquitetos conquistam mais reconhecimento e são mais famosos do que os pintores ou escultores. "O grande desafio do arquiteto contemporâneo é construir obras capazes de atrair cada vez mais pessoas", afirma Ruy Ohtake, que vem ajudando a transformar a paisagem de São Paulo com seus projetos ousados. Entre os prédios erguidos por Ohtake está um hotel em forma de meia-lua (ou meia melancia, dependendo do observador) que causa espanto e faz com que os pedestres (e motoristas) se detenham para apreciá-lo. "Hoje há uma procura cada vez maior pela beleza, as pessoas querem lugares bonitos para morar ou visitar", ele completa. Como se pode deduzir, boa parte das transformações no mundo do design se beneficiou de recentes e significativos avanços na tecnologia. As obras de Frank Gehry só estão de pé graças à utilização do Catia, um software destinado à construção de aeronaves militares que o arquiteto adaptou para criar suas curvas e ondulações. De outra forma, os calculistas levariam anos para projetar cada um de seus prédios.

O mesmo se dá com muito mais força no mundo dos automóveis. "Sem a evolução da computação gráfica, a partir dos anos 90, não seria possível construir os elegantes faróis atuais sem perda de intensidade na transmissão da luz", informa Wagner Dias, responsável pelo setor

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de design da General Motors do Brasil. A tecnologia avançou também na quantidade e na qualidade de materiais disponíveis. "Há hoje milhares de tipos de plástico, o que permite utilizações desse material nunca antes imaginadas", disse a VEJA Bill Moggridge, um dos fundadores da IDEO.

O design industrial surgiu junto com a Revolução Industrial. Os primeiros designers, a maioria artistas, tinham a tarefa de transformar produtos recém-lançados em artefatos agradáveis ao olhar. Afinal, os ornamentos sempre foram um alimento para o espírito humano. Eles não criavam novas formas, apenas repetiam as já conhecidas inspirados principalmente em linhas neoclássicas e gregas. A primeira grande evolução no design ocorreu na Alemanha dos anos 20, com o surgimento da chamada escola Bauhaus. Fiéis ao espírito modernista da época, seus ideólogos, como Walter Gropius, defendiam produtos despidos de qualquer enfeite: o importante era que a forma servisse à função. "Ornamento é crime", decretou certa vez Peter Behrens, um dos designers responsáveis pelas formas que vários utensílios de cozinha até hoje possuem. A segunda fase marcante do design ocorreu nos anos 50. Os avanços tecnológicos da II Guerra permitiram que se criassem produtos mais eficientes com custos mais baixos. Foi a época de popularização dos eletrodomésticos, que ganharam uma aparência mais "moderna", compatível com o notável crescimento econômico dos Estados Unidos. Entre as décadas de 60 e 90, o design acompanhou as mudanças de comportamento na sociedade e beneficiou-se das novas tecnologias, principalmente nos materiais – mas continuou atrelado à funcionalidade. "Sempre defendi que um produto tinha de ser sobretudo funcional, mas hoje admito que a beleza passou a ser uma prioridade do consumidor", disse a VEJA Donald Norman, professor de psicologia da Universidade Northwestern, fundador da firma de consultoria Nielsen Norman e autor do livro Emotional Design – Why We Love (or Hate) Everyday Things (Design Emocional – Por que Adoramos [ou Odiamos] os Objetos do Dia-a-Dia). A liberdade hoje desfrutada pelos designers, arquitetos e estilistas representa não apenas uma tendência, mas uma grande virada ideológica. Através da história, os profissionais dessas áreas acreditavam que um único padrão estético era o correto – o estilo em voga traduzia a verdade e a virtude, e quem dele duvidasse poderia ser tachado de louco. "Os detratores do meu projeto devem ser neuróticos", desabafou certa vez Walter Gropius, diante das críticas a um dormitório que idealizara para a Universidade Harvard. Hoje a liberdade de criação é total. Mas a capacidade de rejeição do público também não conhece limites. Da tensão entre essas duas forças é que surgem aquelas poucas formas que vão marcar seu lugar na história.

Com reportagem de Gustavo Poloni e Rosana Zakabi

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Especial

A importância da beleza

Bob Wolfenson Divulgação

AS MAIS BELASGisele Bündchen e a atriz Diane Krueger como Helena de Tróia: simetria e proporção nos traços

A todo momento, mesmo sem perceber, fazemos julgamentos estéticos sobre o que enxergamos, sejam objetos, pessoas ou paisagens. Mas em que critérios se baseiam nossas avaliações? Em outras palavras, como definir a beleza? Eis aí uma questão que, através da história, preocupou filósofos e cientistas – e cada época deu uma resposta diferente a ela. As curvas da modelo Gisele Bündchen hoje deslumbram os homens e provocam inveja nas mulheres, mas nas duas últimas décadas do século XIX sua silhueta esguia seria considerada sinal de pouca saúde ou desleixo: bonitas mesmo eram as mulheres rechonchudas. Durante muitos séculos, beleza foi um conceito intrinsecamente ligado à geometria. "Os ideais matemáticos da beleza, a noção de que ela está ligada à unidade, à organização espacial e à ordem, nasceram na Grécia antiga, perpetuaram-se em outras culturas e até hoje, de certa forma, continuam a ser usados", diz a psicóloga Nancy Etcoff, da Universidade Harvard.

O filósofo grego Platão fez eco a Pitágoras, ao dizer que o belo residia no tamanho apropriado das partes, que se ajustavam de forma harmoniosa no todo, criando assim o equilíbrio. Esse ideal estaria personificado em Helena, pivô da Guerra de Tróia, episódio que pode ser visto atualmente no cinema em versão de Hollywood. De tão deslumbrante, Helena foi elevada à categoria de semideusa no célebre poema épico Ilíada, de Homero. Sabe-se que a beleza da rainha egípcia Nefertiti, esposa do faraó Amenófis IV, que viveu catorze séculos antes de Cristo, também se amparava no equilíbrio das formas. O busto com sua imagem, hoje exposto no Museu Egípcio de Berlim, mostra que tinha o semblante perfeitamente simétrico e perfil bem delineado, além de maçãs do rosto salientes e lábios carnudos – detalhes que remetem ao conceito atual de

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beleza feminina. A doutrina grega da beleza comportava, ainda, um outro conceito importante – o da luminosidade. Em Homero, pode-se ler que "belas são as armas dos heróis, porque são ornadas e resplandecentes; é bela a luz do sol e da lua, e belo é o homem de olhos brilhantes". A luminosidade se tornaria, assim, um ideal a ser perseguido, principalmente na pintura renascentista. Também durante a Renascença, artistas como Leonardo da Vinci, Albrecht Dürer e Michelangelo passaram a utilizar uma equação matemática chamada proporção áurea – aplicada no projeto arquitetônico da maioria das grandes catedrais desde a Idade Média –, para ilustrar o conceito de que muito da beleza de homens e mulheres dependia das proporções entre a cabeça e o corpo. A escultura Davi, de Michelangelo, é um dos exemplos mais perfeitos da aplicação da proporção áurea.

Foi no século XVIII que nasceu a disciplina filosófica que leva o nome de estética e que se ocupa do belo e da arte. Na segunda metade do século seguinte, as explicações sobre a natureza da beleza tomaram um rumo inesperado com as teorias do naturalista inglês Charles Darwin. Em seu livro A Origem das Espécies, de 1859, ele a definiu como um fator biológico necessário à reprodução dos animais. Hoje, psicólogos evolucionistas defendem suas teorias sobre a beleza calcados na premissa darwiniana de que ela serve para assegurar a sobrevivência da espécie humana. A preferência dos homens por mulheres jovens, de quadris largos e cintura fina – atributos ligados à fertilidade – seria uma forma de garantir a geração de filhos saudáveis. Já as mulheres se sentiriam atraídas por homens altos e fortes, porque esses seriam atributos de bons provedores e de defensores da prole em qualquer circunstância.

Muitos estudiosos vão à frente nessa teoria e afirmam que atualmente, mais do que nunca, a aparência física é levada em conta não apenas no terreno do amor e do sexo, mas em todos os relacionamentos pessoais. No ambiente de trabalho, por exemplo. Antigamente, para causar boa impressão quanto ao visual, bastava que o funcionário se apresentasse com roupas adequadas. Hoje, diz o economista Markus Mobius, da Universidade Harvard, é preciso mais do que isso. Sob o título Why Beauty Matters (Por que a Beleza Importa), Mobius publicou o resultado de seu estudo em dezenas de empresas americanas. Ele conclui que as pessoas mais bonitas – e não as mais bem vestidas ou educadas – ganham mais do que aquelas a quem falta esse atributo. "Beleza evoca confiança e ser confiável, hoje, se traduz em melhores salários", ele escreve. Para os menos belos, restam os recursos hoje disponíveis, que incluem desde cosméticos até cirurgias plásticas. É um setor que movimenta anualmente 160 bilhões de dólares no mundo.

 

Guerra de curvas e egos

AFP

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O CARTÃO-POSTALMuseu Guggenheim de Bilbao: Gehry usou um software próprio para projetar aviões militares

O canadense Frank Gehry e o holandês Rem Koolhaas são hoje as duas maiores estrelas da arquitetura – e o estilo de ambos não poderia ser mais diferente, tanto no trabalho quanto na vida pessoal. Gehry, de 75 anos, tem como marca registrada as construções apoteóticas, cobertas por chapas de aço ou titânio que se entrelaçam em curvas côncavas e convexas. Suas obras mais vistosas são o Museu Guggenheim de Bilbao, na Espanha, e o auditório Walt Disney Concert Hall, em Los Angeles. Ambas brilham tanto quanto seu ego. Freqüentemente acusado de se repetir, costuma retrucar dizendo que se utilizar das mesmas formas é uma questão de estilo. "Ninguém nunca acusou Picasso ou Matisse de repetir o tema de suas pinturas", disse ele a VEJA, numa conversa recente.

As obras de Koolhaas, de 59 anos, costumam guardar poucas semelhanças entre si. As mais festejadas são a recém-inaugurada Biblioteca Pública de Seattle, uma caixa com paredes de vidro irregulares coberta por uma espécie de colmeia de aço, e o sensacional túnel ferroviário que passa sobre o campus de Chicago do Instituto de Tecnologia de Illinois. O holandês é um teórico da arquitetura, que abomina os arranha-céus (diz que eles isolam as pessoas em vez de promover sua integração) e em 1978 lançou o explosivo best-seller Delirious New York, um manifesto ranzinza contra o perfil urbano de Manhattan.

Com personalidades tão diferentes, é compreensível que as duas estrelas freqüentemente troquem dardos certeiros. "As posições intelectuais de Koolhaas são muito úteis para os jovens recém-saídos da faculdade", diz Gehry. "Alguns arquitetos começam a capitalizar o sucesso e se repetem em vez de tentar novos territórios", devolve Koolhaas. Enquanto os dois discutem, as grandes cidades do mundo ganham cartões-postais instantâneos com suas obras de ótimo design.

 

Uma idéia criativa: ordem na bagunça

AP

Gehry: o mais famoso

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Embora ofereçam grande variedade de roupas íntimas, as lojas de departamentos nunca foram o local preferido das mulheres para comprá-las. Na hora da escolha, a profusão de ofertas, em vez de ajudar, atrapalha. Disposta a contornar esse problema, a cadeia americana Warnaco contratou a empresa de design Ideo para reformar seu setor de calcinhas e sutiãs. A primeira providência foi ordenar a bagunça. O visual abarrotado, no qual era praticamente impossível encontrar os tamanhos e as cores desejadas, foi substituído pelos designers por um espaço limpo e desimpedido. Cada marca de lingerie ganhou uma seção própria, com divisórias e exibidores coloridos que ressaltam o nome do fabricante. Contrataram-se vendedoras para auxiliar na busca de peças, criou-se um espaço social com sofás e poltronas e um lugar para abrigar bolsas e pacotes de clientes. Tudo para evitar que as americanas acabem, como quase sempre acontece, batendo na porta de uma concorrente glamourosa e arrumadinha, como a Victoria's Secret.

 

REVISTA VEJA edição 1855, ano 37, 26 de maio de 2004

 

Dentro da cabeça do consumidor

Marcas, anúncios publicitários e hábitos de compra recentemente tornaram-se objeto de estudo dos neurocientistas. os primeiros resultados começam a aparecer, e a atrair o interesse dos fabricantes

por Annette Schäfer

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Emoções, lembranças, instinto de rebanho - quando se trata de fazer compras, entram em ação os mais diversos motivos, que pouco têm a ver com considerações racionais como preço ou utilidade. É surpreendente como somos capazes de permanecer fiéis durante décadas à marca mais cara de sabão em pó só porque seu cheiro evoca nossa infância. Ou escolher  um telefone celular por causa do anúncio - com praias, palmeiras e pessoas bronzeadas - , que nos faz lembrar uma viagem ao Nordeste. Por isso os economistas, com seu modelo do Homo oeconomicus que calcula os custos e benefícios de cada ação, têm dificuldade para explicar o que nos move na decisão das compras. Até psicólogos, muitas vezes, limitam-se a tentar adivinhar o que se passa na cabeça do consumidor. Qual é a razão de comprarmos produtos de marca, ou por que alguns anúncios funcionam melhor que outros?

Mas é possível que os pesquisadores do cérebro logo estejam em condições de responder a essas perguntas. Novas técnicas de imageamento e sofisticados experimentos neuropsicológicos começam a sondar o que exatamente se passa na cabeça dos clientes e consumidores. Para isso eles estudam como, por exemplo, a atividade elétrica cerebral se altera quando alguém bebe seu refrigerante preferido, ou quais regiões específicas do cérebro reagem a um anúncio particularmente eficaz.

Neuromarketing é o nome dado a esse novo campo que aplica os métodos de pesquisa do cérebro a questões ligadas ao mundo do consumo e da publicidade.

Henrik Walter, da Universidade de Ulm, Alemanha, investigou o efeito neuronal à visão de diversos tipos de carro. Ele mostrou a 12 jovens apaixonados por automóveis 22 fotos em preto-e-branco de carros esportivos, limusines e automóveis pequenos, em ordem aleatória, e mediu simultaneamente sua atividade cerebral com um tomógrafo de ressonância magnética. Para estimular um processo cognitivo de avaliação, o psiquiatra pediu que atribuíssem uma nota de 1 a 5  para cada imagem.

Não é de surpreender que os carros esportivos tenham recebido as maiores notas. O interessante é o que a imagem computadorizada do cérebro dos amantes de carros revelou. Quando olhavam fotos de carros de corrida, uma particular estrutura de seu cérebro, o núcleo accumbens, exibia muito mais atividade que no momento em que observavam carros pequenos ou limusines. Essa minúscula região, apenas a "beirada de uma beirada", segundo Walter, pertence ao sistema límbico e funciona como o centro do prazer. Suas células nervosas são ativadas por um neurotransmissor, a dopamina, levando à liberação dos chamados opiáceos endógenos (opiá-ceos produzidos pelo próprio organismo) - substâncias que estão associadas à sensação de prazer e bem-estar.

Normalmente essa região é ativada por estímulos vitais para a sobrevivência, como os ligados à sexualidade ou à nutrição. Mas nem mesmo o mais apaixonado admirador de automóveis diria que um Porsche ou uma Ferrari são necessários para manter a vida. Por que, então, a visão desses veículos desencadeia a liberação de dopamina? Segundo o pesquisador, um carro esportivo preenche uma necessidade indireta: "Funciona como a vistosa cauda de um pavão que também não traz vantagem direta para a sobrevivência, mas serve de sinal para concorrentes e fêmeas da sua espécie - vejam, sou tão forte que posso me dar ao luxo de investir nesta coisa inútil e pomposa".

É claro que uma Bugatti é muito mais apropriada para se exibir que um minúsculo Fiat Mille. Mas o que acontece no caso de carros com níveis comparáveis? Em que medida um carro esportivo da Mercedes estimula mais o centro de prazer de um apreciador de automóveis que um da BMW? Diferenças tão sutis na atividade cerebral ainda não podem ser constatadas com os aparelhos existentes. Por enquanto, acredita Walter.Mas ele está seguro de que a precisão das imagens cerebrais e o conhecimento de como interpretá-las serão muito aperfeiçoados nos próximos anos. No futuro talvez seja possível investigar neurologicamente as diferentes versões de um mesmo automóvel. "Os projetistas poderão testar sistematicamente quais variações no design de um modelo têm um máximo efeito sobre o cérebro."

Assim como o psiquiatra, a maior parte dos pesquisadores em neuromarketing emprega a tomografia de

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ressonância magnética funcional (fMRI). O método produz imagens coloridas da troca de substâncias no cérebro e registra instantâneos da localização e intensidade da atividade cerebral, além de mostrar como esta se altera quando alguém testa um produto de limpeza ou observa um cartaz publicitário.

Essa tecnologia serviu para Read Montague mostrar o efeito neuronal das marcas. Para isso, seu grupo do Baylor College of Medicine, em Houston, EUA, escolheu um duelo clássico de marcas. Desde os anos 70 os especialistas em marketing se surpreendiam com o seguinte fato: a Coca-Cola é o refrigerante mais vendido no mundo, mas seu arquiconcorrente, a Pepsi- Cola, é freqüentemente considerada mais saborosa nos testes em que as pessoas não sabem qual marca estão bebendo.

Em outubro de 2003 Montague convidou 40 pessoas para um teste. Enquanto um tomógrafo media sua atividade cerebral, cada participante recebeu 35 amostras de refrigerante, sem saber de qual marca. A Pepsi causou uma reação mais forte no putâmen, região que funciona como fonte dos sentimentos de satisfação, independentemente de qual marca os participantes declararam preferir.

A seguir Montague repetiu o teste com uma pequena variação. Ele identificou claramente algumas das amostras como sendo de Coca-Cola. E o resultado foi que, de repente, quase todos os participantes declararam que elas pareciam mais saborosas. As imagens mostraram o que estava por trás da mudança de preferência. No caso das amostras identificadas como Coca-Cola, além do centro de satisfação, houve também ativação do córtex medial pré-frontal. Sabe-se que essa área está associada a processos complexos de raciocínio e julgamento, assim como à auto-imagem. "Bastou o conhecimento de que se tratava de Coca-Cola  para que houvesse uma mudança fundamental na atividade cerebral." É evidente, portanto, que os participantes sofreram a influência de lembranças e outras impressões não relacionadas ao sabor. Esse efeito foi tão forte que encobriu os sinais enviados pelos nervos gustativos. Por outro lado, no caso das amostras identificadas como Pepsi-Cola, aquela área do córtex cerebral não exibiu nenhuma reação.

"E daí?", poderíamos perguntar. A Coca-Cola é uma marca forte, e carros esportivos servem para alguém se exibir, sabemos disso há muito tempo. Para que, então, toda essa dispendiosa pesquisa neurológica? Os pesquisadores concordam que os resultados não são novidade: o que é novo é a possibilidade de testá-los objetivamente e constatar os mecanismos que conectam estímulos e respostas. Quanto a isso, as técnicas dos neurocientistas estão de fato à frente de outros métodos. Até agora esse tipo de estudo era feito com instrumentos tradicionais das pesquisas de mercado: questionários padronizados, entrevistas individuais e discussões dirigidas num grupo de potenciais compradores. O problema é que todos esses métodos pressupõem que as pessoas sejam capazes de expressar verbalmente seus motivos. Mas é claro que nem todo apreciador de Coca-Cola está consciente do que o atrai em sua marca preferida, e nem todos os fãs do Porsche se descrevem como pavões vaidosos. Os métodos de imagens computadorizadas do cérebro, por sua vez, funcionam sem introspecção e tornam visíveis as lembranças, associações ou emoções que as pessoas testadas não conhecem ou não admitiriam abertamente.

Aqui está talvez o fundamento do comportamento de rebanho dos consumidores. Gregory S. Berns, da Universidade Emory, em Atlanta, EUA, pediu a 30 voluntários que comparassem pares de figuras abstratas tridimensionais e decidissem se eram iguais ou não. Ao mesmo tempo, apresentou-lhes as respostas - às vezes certas, outras erradas - de outros participantes.

As imagens registradas mostraram que, em grupos, freqüentemente o controle é assumido pelo córtex pré-frontal, centro do pensamento e da decisão. No caso dos participantes que confiam mais na opinião da maioria que nas próprias percepções, a atividade nesse local suplanta a do lobo parietal, local onde são tratadas as imagens recebidas pela visão.

Na Universidade de Tecnologia de Melbourne, Austrália, a equipe de Richard Silberstein investigou por que alguns anúncios se fixavam mais na memória. Os cientistas exibiram a um grupo de mulheres um documentário de TV várias vezes interrompido por anúncios comerciais. Durante a exibição, a atividade cerebral das participantes foi registrada. Uma semana mais tarde, um teste de memória mostrou que elas

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eram capazes de se lembrar melhor dos anúncios durante os quais havia ocorrido uma atividade excepcionalmente mais rápida no hemisfério esquerdo frontal.

A importância prática dessa descoberta foi facilmente reconhecida. Com auxílio dos métodos desenvolvidos pelos australianos, as estratégias de publicidade podem testar de antemão se os anúncios programados produzem nos espectadores uma reação desse tipo no hemisfério esquerdo. "Se uma reação como essa for observada, é possível prever que o anúncio também vai se fixar de forma mais durável na memória de longo prazo", afirma Silberstein.

O interesse dos fabricantes pelo neuromarketing está despertado, e cada vez mais os cientistas recebem consultas de empresas. A General Motors e a Ford, bem como a Daimler Chrysler, já estão avaliando em que medida os métodos da neurociência poderiam complementar as pesquisas de mercado tradicionais. Pesquisadores preocupam-se em desfazer expectativas irreais dos fabricantes. "Muitos avaliam com exagero as possibilidades das técnicas neuronais", alerta Walter. Isso decorre sobretudo do poder altamente sugestivo das técnicas de produção de imagens cerebrais. Com isso logo se esquece que essas fascinantes imagens coloridas precisam ser interpretadas com cuidado. "Os mapas de atividade cerebral não refletem concretamente o que se passa no cérebro. Trata-se de fato de um tratamento estatístico, cujo poder preditivo depende também do nível de significação escolhido", adverte.

O economista americano Gerald Zaltman, de Harvard, vê ainda um outro perigo: o erro muito difundido de que seria possível identificar áreas específicas do cérebro que reagiriam de forma unívoca e exclusiva a estímulos bem determinados. Para ele, "a idéia de que há no cérebro um centro especial de compras pode ser muito sedutora do ponto de vista do marketing, mas é tão falsa quanto a tese da frenologia, segundo a qual seria possível deduzir as disposições mentais de uma pessoa a partir da forma de seu crânio". Para explicar ações como assistir a um anúncio publicitário ou deliciar-se com uma barra de chocolate, é preciso levar em conta a atividade simultânea de  diversas áreas cerebrais, cujo funcionamento conjunto não é suficientemente conhecido. Há, além disso, limites práticos, como o alto custo da utilização dos aparelhos, que mesmo no caso de estudos de pequeno porte logo alcança a casa das dezenas de milhares de euros, e prováveis distorções dos resultados pelo fato de os voluntários não se sentirem bem dentro de estreitos tomógrafos ou com capacetes cheios de fios.

É errado supor que o estudo do cérebro vá provocar uma revolução no mundo da propaganda, embora possa trazer importantes estímulos. Em alguns anos, os métodos baseados em imagens cerebrais devem ser parte do repertório padrão das estratégias de marketing com conseqüências positivas também para os consumidores, nota Silberstein: "Quando as empresas estiverem em condições de descobrir o que move os consumidores no nível mais profundo - qual a cor ou forma que os agrada ou que tipo de anúncio publicitário rejeitam -, poderão oferecer produtos que realmente satisfaçam as pessoas".

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PRODUTO, MARCA E PUBLICIDADE: A AMBIVALÊNCIA NO MITO CONTEMPORÂNEO

FÁBIO CARDIA- 2004

CIÊNCIA E ARTE COM CONSCIÊNCIA

Tempos modernos. Entramos no século XXI com a certeza de que o desenvolvimento científico atingiu

níveis sem precedentes durante o último século, o século XX da era cristã. O cientista Carl Seagan, no seu

derradeiro artigo escrito antes de morrer vítima de câncer, fez uma análise sobre as características

fundamentais desse século12. Segundo Seagan as principais conquistas do homem nesse século XX foram:

a) desenvolvimento sem precedentes da capacidade para preservar, salvar, curar e manter a vida, fazendo

com que as taxas de natalidade e crescimento vegetativo fossem maiores que a soma de todo crescimento

ocorrido até então; b) desenvolvimento sem precedentes da capacidade de extinção, destruição e

aniquilação de toda a vida, com criação de armamentos e ataques à natureza de maneira sistemática; c)

desenvolvimento sem precedentes do saber científico e tecnologia em todas as áreas do conhecimento

humano. Sobre esse terceiro tópico pode-se dizer que avanços consideráveis do conhecimento humano

foram conquistados graças a consideráveis mudanças na metodologia da prática de ciências, assim como

pela consciência de que essas mudanças, por mais difíceis que fossem, eram necessárias.

“Ciência com consciência. A palavra consciência tem aqui dois sentidos. O primeiro foi formulado por

Rabelais no seu preceito:” Ciência sem consciência não é mais que ruína da alma “. A consciência de que

ela fala é, evidentemente, a consciência moral (...) O segundo sentido da palavra consciência é intelectual.

Trata-se da aptidão auto-reflexiva que é a qualidade – chave da consciência. (...) Uma ciência empírica

privada de reflexão bem como uma filosofia puramente especulativa são insuficientes; consciência sem

ciência e ciência sem consciência são radicalmente mutilados e mutilantes .”13. Quando Edgar Morin

escreveu essas linhas não estava se referindo única e exclusivamente à ciência em si, como procedimento

dissociado do homem, mas sim ao próprio homem que faz a ciência. Defensor de uma proposta voltada

para o chamado “pensamento complexo”, Morin compreende a presente época como uma era de

extraordinários progressos de conhecimento sobre nossa situação no universo, entre os dois infinitos

(cosmologia, microfísica), sobre nossa matriz terrestre (ciências da Terra), sobre nosso enraizamento na

vida e na animalidade (biologia), sobre a origem e a formação da espécie humana (pré-história), sobre

nosso enraizamento na biosfera (ecologia), e sobre nosso destino social e histórico. Progressos

extraordinários também ocorreram nas linguagens da alma humana (literatura, poesia, música, escultura,

artes no geral), fazendo com que, segundo Morin, o fenômeno humano tenha sido iluminado por todas as

ciências e todas as artes (MORIN 2002:16).

12 Carl Sagan, em artigo publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, Caderno 2, em 26 de dezembro de 199613 Edgar Morin, Ciência com Consciência, prefácio

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É impressionante observarmos as conquistas nos domínios da física, biologia, química, só por exemplo, e o

impacto dessas conquistas na vida do homem. Pudemos criar geradores, bobinas, motores, toda sorte de

máquinas industriais e eletrodomésticos. Criamos a geladeira que nos possibilitou armazenar e preservar

alimentos, fazendo com que as ervas e especiarias antes utilizadas para esse fim se transformassem em

ingredientes culinários, elevando a criação e degustação de alimentos ao posto de arte. Criamos o

gramofone, criamos carros, tratores e aviões com motores e turbinas. Criamos satélites, pílulas

anticoncepcionais, chips, e levamos o homem até a Lua. A cultura humana ganhou novos meios de

permanência e evolução, pois criamos novas e melhores condições para a mídia primária – o corpo humano

–, novos e mais eficientes suportes para mídia secundária como discos, fitas, disquetes, CD, HD, ZIP, assim

como toca fitas, vitrola, CD player e CDROM, e finalmente chegamos à era da mídia terciária criando a TV,

o Rádio, o telefone celular, a Internet.14

De fato, tantos avanços tecnológicos aumentaram a nossa capacidade de gerar e produzir bens

aumentando também nossa necessidade de consumo desses bens. Luis Celso de Piratininga, em seu livro

Publicidade: Arte ou artifício?15 nos coloca que “esse processo de transformação histórica já foi amplamente

estudado por antropólogos, economistas, historiadores, sociólogos, entre eles, Philip Kotler, que criou um

modelo das práticas mercadológicas, caracterizando estágios da Humanidade conforme sua estrutura

predominante de mercado, isto é, procedimentos socialmente adotados para a produção e a troca de bens

ou serviços:

· Estágio da auto-suficiência econômica – pré-história, não se verificava a produção de

excedentes nem atividades de troca: tudo o que se produzia atendia as necessidades imediatas

de consumo para sobrevivência.

· Estágio de comunismo primitivo – inexistência de direitos individuais sobre o resultado da

produção: tudo era de todos e não havia apropriação privada de bens.

· Estágio da simples troca – surge a prática do escambo (ou simples troca), ainda fortemente

baseada no valor de uso de bens e serviços.

· Estágio de mercados locais – nos quais produtos de várias regiões e especialidades

passaram a serem oferecidos.

· Estágio da economia monetária – representa o surgimento de um padrão de valor, no qual

certo material ou objeto simbolizasse determinado valor para as mais variadas aquisições.

· Estágio da produção em massa – surge a produção e o consumo em massa.

· Estágio de sociedade afluente – o estágio atual das sociedades humanas desenvolvidas,

que se caracteriza pelo fato de um número substancial de pessoas dispor de excedentes de

padrão de valor em relação às suas necessidades biológicas básicas, constituindo, assim, um

mercado global significativo para bens e serviços que visem à satisfação de suas necessidades e

desejos sociais, psicoemocionais e culturais.”.

14 O conceito de mídia primária, secundária e terciária foi criado pelo jornalista e teórico da mídia alemão Harry Pross, na década de 70, em seu livro Medienforshung15 Luis Celso de Piratininga, Publicidade: Arte ou artifício?,p.6-7

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Segundo Armando Sant’Anna, “antes do impetuoso avanço da tecnologia, as fábricas se limitavam a

produzir aquilo que o consumidor realmente necessitava e estava em condições de adquirir. Com o advento

da produção em massa para um mercado que já principiava a superar a fase de consumir apenas o

essencial, viram-se os industriais forçados a encontrar meios rápidos de escoar o excesso de produção de

máquinas cada vez mais aperfeiçoadas e velozes.”16. Com o aumento da demanda e da concorrência, seria

preciso chegar ao consumidor, oferecer suas marcas e produtos, comunicar-se.

Essa forma de comunicação levou ao desenvolvimento da publicidade como poderosa ferramenta cultural,

trazendo consigo possibilidades de utilização de parte do conhecimento adquirido em ciências ao

conhecimento adquirido nas artes, numa explosão de novos corpos criados a partir dessa nova cultura: a

cultura publicitária, e esta a serviço das novas mitologias contemporâneas.

MITOS CONTEMPORÂNEOS

Toda a publicidade é uma mensagem: com efeito, ela comporta uma fonte de emissão, que é a empresa a

quem pertence o produto lançado (e gabado), um ponto de recepção, que é o público, e um canal de

transmissão, que é, precisamente, aquilo a que se chama o suporte de publicidade; essa mensagem

comporta um plano de expressão e um plano de conteúdo, e é formada basicamente por dois tipos de

“submensagens”- a conotativa e a denotativa. Toda publicidade diz o produto (é a sua conotação), mas ela

conta outra coisa (é a sua denotação).

A denotação serve para desenvolver argumentos, numa palavra, persuadir; mas é mais provável (e mais

conforme com as possibilidades da semântica) que a primeira mensagem (denotativa) sirva mais sutilmente

para naturalizar a segunda (conotativa); o convite banal (comprem) é substituído pelo espetáculo de um

modo onde é natural comprar; a motivação comercial está, assim, não mais mascarada, mas dobrada por

uma representação muito mais ampla, pois ela faz com que o leitor comunique com os grandes temas

humanos. Pela sua dupla mensagem, a linguagem conotada da publicidade reintroduz o sonho na

humanidade dos compradores: o sonho, quer dizer sem dúvida, uma certa alienação (a da sociedade

concorrencial), mas também uma certa verdade (poesia).

Numa palavra, quanto mais uma peça publicitária contém duplicidade, ou, para evitar uma contradição de

termos, quanto mais ela é múltipla, melhor preenche a função de mensagem conotada (BARTHES). Melhor,

portanto, será seu desempenho como ponte para o sonho.

Sonho, cuja “presença das imagens internas voláteis em seu corpo e as múltiplas linguagens derivadas -

jogos, estados alterados de consciência (I. Bystrina), devaneios, sonhos diurnos (E. Bloch), simulações e

construção de cenários futurológicos - aponta para a construção de um mundo de imagens "aéreas", um

mundo do "espírito", povoado de símbolos, textos, histórias, figuras e sistemas elaborados. O conceito de

humano se amplia, com a segunda realidade, para "sapiens-demens" (Morin).”17

16 Armando Sant’Anna, Propaganda, teoria, técnica e prática. P. 4-517 Baitello, Norval. 2002. Artigo O espírito do nosso tempo: o presente crucificado

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Uma obra assim entendida é, sem dúvida, uma obra dotada de certa “abertura”; o leitor do texto sabe que

cada frase, cada figura se abre para uma multiformidade de significados que ele deverá descobrir. Quando

uma obra apresenta diversos pretextos, muitos significados e, sobretudo muitas faces e muitas maneiras de

ser compreendida e amada, então certamente ela é interessantíssima, então é uma cristalina expressão da

personalidade (ECO, 1976)

A publicidade se transmuta num texto ritualístico e está a serviço das Mitologias - estas contemporâneas

certamente - mas enraizadas no mesmo desafio arcaico da imortalidade e permanência.

RUMO À IMORTALIDADE ESPECULAR

Apesar das tentativas, estudos, pesquisas em genética e clonagem, remédios e máquinas, toda a

tecnologia e conhecimento, não se tem notícia de que o homem tenha conseguido alcançar de maneira

biológica e natural a imortalidade.

O medo da morte e a busca da permanência fizeram com que, se o homem não tenha conseguido alcançar

a imortalidade, ao menos criou coisas que alcançassem esse ideal: as marcas e os produtos, com seus

imortais plásticos e sintéticos são imortais numa escala temporal dos Deuses e fazem com que seus

criadores se identifiquem com suas criações. Na realidade, marcas e produtos são a própria imagem

especular (reflexo de espelho) da imortalidade: são a imagem genética que permanece e assim como em

biologia, não são os indivíduos mas os gens que vencem a morte.(BYSTRINA 1995). A morte humana

comporta uma consciência da morte como a aniquilação do indivíduo e ao mesmo tempo, a negação e

recusa dessa aniquilação. Desde a pré-história, nos mitos e ritos de sobrevivência do duplo (fantasma) ou

nos mitos de sobrevivência e do renascimento num novo ser que o homem encontra nas imagens e na

transmutação da realidade seu caminho para a imortalidade (MORIN 2002: 44-50). Dessa forma, marcas e

produtos são entidades contemporâneas da Noosfera, uma duplicação transformadora e transmutadora do

real (primeira realidade), um meio condutor do espírito humano que nos põe em comunicação com o

mundo. Como entidades da Noosfera, são Deuses, mitos, espíritos, idéias que se alimentam de nossos

desejos e temores.

Esses desejos e temores aliados à explosão demográfica e à explosão tecnológica aumentaram a busca

por novas invenções e descobertas. Em todas as áreas do conhecimento começaram a surgir melhorias e

avanços significativos, logo disseminados pelo mundo afora. O professor Waldenyr Caldas, numa análise

sobre o trabalho de Ralph Linton , The study of man18, diz que “não só a produção cultural de uma

sociedade como também as inovações culturais podem partir tanto de um grupo de pessoas quanto de um

só membro. Assim, uma grande descoberta ou a invenção de determinado objeto feito por uma só pessoa,

mas que possa mudar o estilo de vida de uma sociedade, passará imediatamente a ser partilhada com os

demais membros da sociedade. Nesse sentido, passará também a ser parte integrante do seu universo

18 The Study of Man (Nova York, Appleton-Century Crofts, 1964)

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cultural, através da estreita e contínua convivência com a nova descoberta ou objeto produzido.”19Estava

formado o ciclo em que tecnologia e inovação gera novos produtos, que geram novas transformações e

demandas, e que por sua vez geram novas tecnologias e mais novos produtos, e assim por diante.

Os conceitos de “cultura de massa” e “indústria cultural” já foram amplamente difundidos e debatidos, tendo

sido objetos de muitos estudos exemplares, embora oriundos de correntes teóricas diferentes – e com

freqüência adversas. Aliás, vários autores consideram esses dois conceitos ligados a uma mesma idéia

genérica, enquanto outros, como Adorno e Horkheimer difundiram a idéia de que a indústria cultural se

“distingue radicalmente” do conceito de cultura de massa. Segundo Adorno, a expressão “cultura de massa”

foi abandonada para substituí-la por “indústria cultural”, a fim de excluir de antemão a interpretação de que

se trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas, em suma, da forma

contemporânea de arte popular (...). A indústria cultural, em todos os seus ramos faz, mais ou menos,

segundo um plano, produtos adaptados ao consumo das massas, que em grande medida determinam esse

consumo.”20

Barbara Freitag, numa análise enfocando a “Escola de Frankfurt” e mais uma vez os trabalhos de Theodor

Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural nos coloca que “os bens culturais, e são derrubados dos

seus pedestais, deixam de ser bens de luxo, destinados a uma elite burguesa, para se converterem em

bens de consumo de massa. Esse processo de dissolução da cultura é viabilizado pela revolução

tecnológica-industrial, que permitiu promover a reprodução em série da obra cultural ou de sua cópia

(imprensa, fotografia, cinema, disco, cassete, vídeo, etc.). (...) O produto cultural integrado à lógica do

mercado e das relações de troca deixa de ser “cultura” para tornar-se valor de troca. A falsa reconciliação

entre produção material e ideal de bens recebe o nome de “indústria cultural”.(...) Assim pode-se dizer que a

“indústria cultural” é a forma sui generis pela qual a produção artística e cultural é organizada no contexto

das relações capitalistas de produção, lançada no mercado e por este consumida.”21

Já para Edgar Morin, depois de um século de colonização política e geográfica, as potências industriais

teriam começado a colonizar “a grande reserva que é a alma humana”. Essa seria “a segunda

industrialização, que passa a ser a industrialização do espírito, e a segunda colonização que passa a dizer

respeito à alma”.22 Esses novos domínios seriam a inteligência, a vontade, o sentimento e a imaginação de

centenas de milhares de pessoas que vêem e ouvem televisão e cinema, ouvem rádio, lêem livros, revistas

e jornais. “A técnica feita indústria permitiu a consolidação de grandes complexos, produtores e

fornecedores de imagens, de palavras e de ritmos, que funcionam como um sistema entre mercantil e

cultural.”23

19 Waldenyr Caldas, A literatura da cultura de massa:uma análise sociológica, São Paulo, Lua Nova, 1987, pp23-2420 Adorno, Theodor, A indústria Cultural, in COHN, Gabriel (org). Comunicação e Indústria Cultural, São Paulo, EDUSP, 1971, pp28721 Barbara Freitag, A teoria Crítica ontem e hoje,, São Paulo, Brasiliense, 1986, pp70-7222 Edgar Morin, Culturas de Massas no Século XX, volume1, p.1323 Ecléa Bosi, Cultura de massa e cultura popular, p. 41

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Page 94: Apostila Criação para Criadores

FÁBIO CARDIA

Percebemos que o mundo, a sociedade e o ser humano mudaram definitivamente neste século. Fica

evidente que embora as diversas correntes teóricas que se manifestaram a respeito do fenômeno “massa”

divirjam em vários enfoques, todas nos apontam para profundas conseqüências e transformações sociais.

Quando se pensa no conceito de “massa” dentro de uma cultura capitalista, passamos a considerar com

mais seriedade a idéia de estratificação. Esta estratificação atinge os aspectos sociais, culturais e pessoais,

por um lado salientando as diferenças entre as classes, mas por outro criando a possibilidade (mesmo que

ilusória!24) de movimento – ascendência e descendência – entre e dentro delas. O professor e sociólogo

Waldenyr Caldas nos coloca que “assim, uma sociedade de classe, além de possuir a totalidade da sua

cultura, uma cultura determinada pelas transformações ocorridas no seu processo histórico, possui também

culturas específicas de classe social muito bem definidas em seus contornos, impedindo a participação

efetiva do indivíduo de outras classes. A cultura de massa, cujo objetivo é o lucro, vai destinar seu produto

aos diferentes níveis de gostos, estratificando o consumo cultural. Desse modo, a participação do indivíduo

na cultura da sua sociedade não é, claro, um caso eventual. Trata-se, precisamente, de uma questão que

envolve, entre outros aspectos, a sua condição de classe. Essa participação está inextricavelmente ligada

não só ao lugar – posição social- que o indivíduo ocupa na sociedade, mas também, evidentemente, ao

grau de instrução por ele anteriormente adquirido que lhe permita ou não, desfrutar de tal posição. A partir

dessas observações não podemos, então, deixar de lado o seguinte: a participação cultural de qualquer

indivíduo em sua sociedade não deve ser estudada apenas no que diz respeito à cultura dessa sociedade.

Devemos levar em conta, ainda, a cultura específica de sua classe, a sua cultura particular, pontos de

referência determinantes para identificarmos seu lugar nessa sociedade.”25

IDENTIDADE COMO OBJETIVO

A busca de uma identidade pessoal passou a se confundir com a busca de uma identidade social. A

psicologia gestáltica tem por premissa (e nisso se difere das outras correntes psicanalíticas) que a carência

afetiva humana não é resultante de um processo deficitário, mas que é intrínseca ao ser humano. Ela é tão

configurativa no ser humano como braços, pernas, sentidos. Por carência afetiva entendemos a

necessidade ou possibilidade de relacionamento (e as possibilidades de conceituações para a idéia

relacionamento serão consideradas) com o outro. A socialização, sob esse prisma, passa a ser não uma

conseqüência humana, mas a causa, e a não aceitação nessa ou dessa socialização uma disfunção. “Por

conta disso, os impasses existenciais decorrentes de perceber o mundo, o outro como figura e colocar-se

como fundo determinante dessa percepção, este auto-referenciamento compromete a existência humana.

Setoriza e maquiminiza o ser humano, levando-o à corrida desenfreada da manutenção, do querer alguma

coisa válida, aceita, reconhecida, considerada socialmente. Surgem os padrões, normas e modelos de

24 O comprometimento da cultura de massa com o poder, como forma de controle e planificação das consciências é uma das principais críticas ao fenômeno “cultura de massa”. Conforme nos coloca Umberto Eco em seu livro Apocalipticos e Integrados (pp42-43), os mass media “assumem os modos exteriores de uma cultura popular mas, ao invés de crescerem espontaneamente de baixo, são impostos de cima. Como controle das massas desenvolvem uma função que, em certas circunstâncias históricas, tem cabido às ideologias religiosas. Mascaram porém, essa sua função de classe, manifestando-se sob o aspecto positivo da cultura típica de uma sociedade de bem-estar onde todos têm as mesmas oportunidades de acesso a cultura, em condições de perfeita igualdade”25 Waldenyr Caldas, A literatura da cultura de massa: uma análise sociológica, São Paulo, Lua Nova, 1987, pp25

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comportamento: as metas. Empenhado nesta conquista o homem desumaniza-se, passa a ser

reconhecido pelo que representa: carros, roupa, vitória, fracassos, sucessos, insucessos, status.”26

A identidade do homem contemporâneo só pode ser entendida quando compreendemos que vivemos numa

sociedade de massa, cujo princípio é a homogeneização e a padronização. Dessa forma, para o homem

conseguir se localizar deve antes de tudo localizar-se e diferenciar-se perante o outro. Para conseguir essa

hierarquização relativa - eu em relação aos outros - deve haver um protocolo de valores. Esses valores, que

a partir desse momento servem de medida para que o homem consiga achar sua identidade, consistem em

padrões, normas e modelos culturais, sociais, comportamentais, econômicos, éticos, morais, religiosos e

por que não, até mesmo sexuais, demográficos e raciais.Adquirir e buscar esses valores dão sentido ao

homem capitalista em nosso tempo.

A busca desses valores gera necessidades. Todos nós precisamos comer e beber o suficiente para nos

mantermos vivos, de roupas para nos mantermos aquecidos e enxutos, e, dependendo das condições

climáticas, de abrigo contra as intempéries; com exceção das condições mais favoráveis, também

necessitamos de meios de transporte para nos deslocarmos de casa para o trabalho. Estes são exemplos

de necessidades materiais. As pessoas, contudo, não vivem isoladas. Também precisamos de amor, de

amizade e do reconhecimento de nossos semelhantes; precisamos pertencer a grupos, ter consciência

desse pertencimento e de nós mesmos como individualidades em relação aos grupos sociais circundantes.

São exemplos de necessidades sociais.

É difícil dizer quais são as necessidades mais importantes. Se as nossas necessidades materiais não forem

satisfeitas, morreremos de fome ou de frio; se não o forem as necessidades sociais, tenderemos a sofrer

problemas psicológicos. O ponto crucial é que, ao consumir bens, estamos satisfazendo ao mesmo tempo

necessidades materiais e sociais. Os vários grupos sociais identificam-se por suas atitudes, maneiras, jeito

de falar e hábitos de consumo – por exemplo, pelas roupas que vestem. Dessa forma, os objetos que

usamos e consumimos deixam de ser meros objetos de uso para se transformar em veículos de informação

sobre o tipo de pessoa que somos ou gostaríamos de ser.

Novamente, Edgar Morin nos coloca que “No plano essencial, a ação prática dos grandes temas

identificadores da cultura de massa (amor, felicidade, valores privados, individualismo) é mais intensiva na

mocidade, a idade plástica por excelência, que em qualquer idade. A cultura de massa acultura as novas

gerações à sociedade moderna. (...) Os modelos dominantes não são mais os da família ou da escola, mas

os da imprensa e cinema. Inversamente, porém, esses modelos são rejuvenescidos”27.

É a busca por nossa identidade pela busca de valores adquiridos através de produtos, que nos dão nossa

localização social, ou status social. Um produto é tudo aquilo capaz de satisfazer a um desejo, que provém

de uma necessidade. Segundo Kotler, “representa um sentimento de carência em uma pessoa que produz

um desconforto e um desejo de agir para aliviá-lo. O desejo coloca a pessoa num estado ativo e lhe dá

26 Vera de Almeida Campos, Psicologia Gestaltista,www.geocities.com/Athenas/8935/page1f.html27 Edgar Morin,Cultura de Massas do século XX: O Espírito do Tempo – Neurose, pp156-157

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direção. A pessoa perceberá certas coisas exteriores a si própria que poderiam satisfazer seu desejo e que

poderiam ser chamadas de produtos. Passam a ter valor para o indivíduo por causa de sua condição de

satisfazer aos seus desejos.”28

Um produto pode, então, ser um objeto, um serviço, até mesmo um conceito, desde que cumpra a função

de satisfazer à uma necessidade material, social ou emocional e seu valor será dado em conseqüência

dessa capacidade de satisfação, da intensidade do alívio proporcionado pela realização dessa necessidade

e da dificuldade em ser adquirido ou alcançado.

É preciso, porém, colocar que quando se fala em valor leva-se em consideração duas acepções diferentes

para o termo. A primeira é puramente estrutural, oriunda da significação pela diferença, em oposição a um

outro valor. A segunda diz respeito ao conceito de valência29, que propõe a existência de um segundo

“valor” sobre o valor. Esse “segundo valor” seria fornecido pelos fatores emocionais, míticos e psicológicos

envolvidos na atribuição e mensuração de um valor. Dessa forma, dois objetos de iguais valores financeiro,

estético, etc.(estrutura) poderiam representar diferentes valores emocional, religioso, etc.(valência), ou vice-

versa.

O produto passa a ter função de elo referencial para que o ser humano consiga achar sua identidade. O

homem passa a encarar o produto como elemento simbólico, ampliando assim suas funções. Em Motivation

in Advertising, Pierre Martineau diz que “... a não ser no caso de comportamentos meramente orgânicos,

todos os atos do comportamento humano são uma forma de auto-expressão; são uma representação

simbólica do eu interior. Uso produtos que vejo como símbolos capazes de satisfazer as minhas forças

motivadoras e que são coerentes com a idéia que tenho de mim mesmo”30.

PRODUTO, MITO E IMAGEM

A chave para a busca de uma identidade pessoal e social passa a ser a imagem. Noções de status, valores,

produtos, identidade e sociedade passam a ser regidas pela imagem que o homem faz de si mesmo, do

outro, da sociedade e do mundo em que vive, assim como a imagem que o homem projeta para si mesmo,

para o outro, para a sociedade e para o mundo em que vive. “O mundo das imagens se divide em dois

domínios. O primeiro é o domínio das imagens como representações visuais: desenhos, pinturas, gravuras,

fotografias e as imagens cinematográficas, televisivas, holo e infográficas pertencem a esse domínio.

Imagens, nesse sentido, são objetos materiais, signos que representam o nosso ambiente visual. O

28 Philip Kotler, Marketing, pp3129 O conceito de valência nos foi apresentado por Algirdas Greimas no decorrer do livro “A semiótica das Paixões”, uma abordagem semiótica das emoções humanas. Segundo Greimas “é uma espécie de “valor” do valor e, nesse sentido, poderia ser chamada de valência, na acepção química desse termo, como que designando o número de moléculas associadas na composição de um corpo. É assim, por exemplo, quando, no momento da troca, dois valores semanticamente são estimados comparáveis e trocáveis, fundando-se em sua (equi)valência. É o aspecto psicológico, emocional e individual que confere um novo valor- pessoal- à um valor pré determinado e estabelecido.30 Martineau, Pierre, 1957, Motivation in Advertising ,Nova York: McGraw Hill in Randazzo Sal, A criação de mitos na publicidade, pp44

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segundo é o domínio imaterial das imagens na nossa mente. Neste domínio, imagens aparecem como

visões, fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como representações mentais.”31E ainda

acrescenta: “É assim que a dimensão imaginária inaugura a subjetividade humana, sendo nossas relações

com os semelhantes moldadas pela repetição da imagem.(...)Na procura de si mesma, a consciência crê se

encontrar no espelho das criaturas e se perde no que não é ela. Tal situação é fundamentalmente mítica,

uma metáfora da condição humana que está sempre em busca de uma completude repetidamente lograda,

capturada incansavelmente em miragens que encenam um sentido onde o sentido está sempre em falta”32

Adquirir um produto ou marca (assim como criar, produzir ou vender) passa a ser um suporte para acessar

um sistema de comunicação. É a simbologia da abertura de canais para que o homem identifique a si

próprio através da comunicação com o meio em que vive, sua sociedade, sua cultura, a “massa”. Joseph

Campbell nos coloca que “a chave para se encontrar a sua própria mitologia é saber a que sociedade você

se filia. Toda mitologia cresceu numa certa sociedade, num campo delimitado(...)Há duas espécies

totalmente diferentes de mitologia. Há a mitologia que relaciona você com sua própria natureza e com o

mundo natural, de que você é parte. E há a mitologia estritamente sociológica. Que liga você a uma

sociedade em particular. Você não é apenas um homem natural, é membro de um grupo particular.”33

Se antes possuir uma imagem significava possuir o objeto, hoje possuir a imagem significa também possuir

o valor agregado a esse objeto. Possuir um carro significa possuir um veículo de transporte, mas também

um objeto de alto valor social, que gera status, além de alguns outros aspectos ligados à mitologia-poder, o

controle dos elementos. O objeto é a situação social, e ao mesmo tempo, o seu signo: conseqüentemente

não constitui apenas um fim concreto perseguível, mas o símbolo ritual, a imagem mítica em que se

condensam aspirações e desejos”.

O produto/marca em si não é um mito, mas carrega em si uma estrutura mitológica, um texto, um canal de

comunicação, que representa uma mensagem. Roland Barthes assim nos descreve esse processo: “Mas o

que se deve estabelecer solidamente desde o início é que o mito é um sistema de comunicação, é uma

mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito, ou uma idéia: ele é um modo de

significação, uma forma. O mito não se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como a

profere: o mito tem limites formais, mas não substanciais. A mitologia só pode ter fundamento histórico,

visto que o mito é uma fala escolhida pela história: não poderia de modo algum surgir da “natureza” das

coisas. Esta fala é uma mensagem. Pode, portanto, não ser oral; pode ser formada por escritas ou por

representações: o discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os

espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de suporte à fala mítica.”34

A busca de uma identidade sempre foi uma característica fundamental do homem social. Joseph Campbell,

uma das maiores autoridades do mundo em mitologia nos coloca que “...o homem, em todos os tempos,

31 Lucia Santaella, Imagem: Cognição, semiótica, mídia, pp1532 Apud, pp19033 Joseph Campbell, O poder do Mito pp23-2434 Roland Barthes, Mitologias, pp 131-132

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Page 98: Apostila Criação para Criadores

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sempre buscou uma identidade, sempre buscou fazer parte de alguma tribo.”35 Identidade é saber quem

somos, por que estamos aqui. E estas são questões fundamentais em todas as filosofias e na maior parte

das religiões. Buscamos o conforto do reconhecimento de nossos iguais, o sentimento de que pertencemos

a algum lugar e, portanto, temos uma função na vida. Qualquer elemento capaz de, mesmo que por um

breve instante, apaziguar essas angústias será aceito e acolhido. Campbell também faz uma análise da

função do mito afirmando que mitos “são os sonhos do mundo. São sonhos arquetípicos, e lidam com os

magnos problemas humanos...O mito fala sobre como reagir diante de certas crises de decepção,

maravilhamento, fracasso ou sucesso. Os mitos me dizem onde estou...Além disso, não precisamos correr

sozinhos o risco da aventura, pois os mitos de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é

conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas que seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos

encontrar algo abominável, encontraremos um Deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a

nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá,

onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo.”36.

A AMBIVALÊNCIA DO MITO CONTEMPORÂNEO

Produtos e Marcas são a imagem contemporânea de nossa busca por uma identidade e uma forma de

negar nossa mortalidade. Dessa forma, produtos e marcas ocupam nos dias de hoje o lugar e a função de

Mitos: apaziguar a angústia causada pela assimetria da morte frente à vida; proporcionar ao homem a

identidade que ele tanto almeja, localizando-o no tempo e no espaço e integrando-o em sua tribo, em sua

própria humanidade e ao ambiente natural e espiritual; aproximar o homem de sua própria natureza através

da identificação com a Criação, com a Imortalidade e com a quebra da assimetria.

A publicidade, através de suas peças publicitárias, usa as imagens de suas camadas de textos para

transmutar a realidade e viabilizar o acesso direto aos jogos e aos sonhos, como mídia, corpo e suporte das

mitologias contemporâneas. Da capacidade de transmutar a realidade para imagens de uma segunda

realidade e da capacidade de abrir o sonhar e todas as conseqüentes projeções futuras e retroprojeções

presentes e passadas surge sua força e sua ambivalência: a publicidade fascina e assusta, encanta e

horroriza, cria angústias tanto quanto se propõe a eliminá-las.

Produtos, Marcas e a Publicidade que os contém são produtos da ambivalência de nosso tempo. Tempos

modernos.

SÃO PAULO, 15 de JULHO DE 2004

BIBLIOGRAFIA do ARTIGO

35 Joseph Campbell, O poder do Mito36 Apud

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