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RDS VII (2015), 2, 297-324 Apontamentos sobre a desconsideração da personalidade jurídica no projeto de Código Comercial Brasileiro PROF. DOUTOR DIOGO COSTA GONÇALVES Sumário: § 1.º Enquadramento dogmático da desconsideração da personalidade jurídica no Código Civil 2002 e no Projeto de Código Comercial: 1. A pessoa jurídica como técnica de segregação patrimonial; 2. A verdadeira inovação do Código Civil 2002; 3. O Projeto de Código Comercial. § 2.º Apreciação crítica do regime proposto no Projeto de Código Comercial: 4. Sequência; disparidade de fontes e a necessidade de uma reconstrução dogmática unitária da desconsideração; 5. A superação da orientação objetivista da desconsideração: regresso ao subjetivismo dogmático? 6. A relação entre a des- consideração e o princípio da autonomia patrimonial; 7. A desconsideração como sucedâneo da responsabilidade civil dos administradores? § 3.º Sinopse. Em 02 de maio de 2013, pelo Ato do Presidente n.º 13, foi nomeada uma Comissão para a elaboração do Projeto de Código Comercial brasileiro. A comissão tomou posse a 07 de maio e, após consulta pública, em novembro do mesmo ano foi concluído o Projeto de Código Comercial (2013) 1 . De entre as várias inovações constantes do Projeto, o Relatório Final da Comissão apresenta como uma das mais significativas a disciplina da desconside- ração da personalidade jurídica das sociedades comerciais, prevista nos artigos 196.º a 199.º. A consagração legal da figura não é nova. Encontra-se, aliás, prevista em diversos diplomas como o Código de Defesa do Consumidor (artigo 28.º) 2 , a Lei 1 Projeto de Lei do Senado n.º 487/2013. Para um levantamento temático crítico do Projeto de Código Comercial, veja-se AA.VV., Reflexões sobre o Projeto de Código Comercial (Fábio Ulhoa Coelho/Tiago Asfor Rocha Lima/Marcelo Guedes Nunes), 2013. 2 Lei n.º 8078, de 11-set.-1990. Book Revista de Direito das Sociedades 2.indb 297 Book Revista de Direito das Sociedades 2.indb 297 14/10/15 11:27 14/10/15 11:27

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RDS VII (2015), 2, 297-324

Apontamentos sobre a desconsideração da personalidade jurídica no projeto de Código Comercial Brasileiro

PROF. DOUTOR DIOGO COSTA GONÇALVES

Sumário: § 1.º Enquadramento dogmático da desconsideração da personalidade jurídica no Código Civil 2002 e no Projeto de Código Comercial: 1. A pessoa jurídica como técnica de segregação patrimonial; 2. A verdadeira inovação do Código Civil 2002; 3. O Projeto de Código Comercial. § 2.º Apreciação crítica do regime proposto no Projeto de Código Comercial: 4. Sequência; disparidade de fontes e a necessidade de uma reconstrução dogmática unitária da desconsideração; 5. A superação da orientação objetivista da desconsideração: regresso ao subjetivismo dogmático? 6. A relação entre a des-consideração e o princípio da autonomia patrimonial; 7. A desconsideração como sucedâneo da responsabilidade civil dos administradores? § 3.º Sinopse.

Em 02 de maio de 2013, pelo Ato do Presidente n.º 13, foi nomeada uma Comissão para a elaboração do Projeto de Código Comercial brasileiro. A comissão tomou posse a 07 de maio e, após consulta pública, em novembro do mesmo ano foi concluído o Projeto de Código Comercial (2013)1.

De entre as várias inovações constantes do Projeto, o Relatório Final da Comissão apresenta como uma das mais signifi cativas a disciplina da desconside-ração da personalidade jurídica das sociedades comerciais, prevista nos artigos 196.º a 199.º.

A consagração legal da fi gura não é nova. Encontra-se, aliás, prevista em diversos diplomas como o Código de Defesa do Consumidor (artigo 28.º)2, a Lei

1 Projeto de Lei do Senado n.º 487/2013. Para um levantamento temático crítico do Projeto de Código Comercial, veja-se AA.VV., Refl exões sobre o Projeto de Código Comercial (Fábio Ulhoa Coelho/Tiago Asfor Rocha Lima/Marcelo Guedes Nunes), 2013.2 Lei n.º 8078, de 11-set.-1990.

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relativa a atividades lesivas ao meio ambiente (artigo 4.º)3 e a Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (artigo 34.º)4, por exemplo.

Em 2002, a codifi cação civil veio acolher a fi gura, no artigo 50.º. Mais recentemente, a lei de responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública (conhecida como Lei Anticorrupção5), veio igualmente ocupar-se do instituto (artigo 14.º) e o novo Código de Processo Civil (2015)6 veio prever, com desenvolvimento, o incidente de desconsideração da per-sonalidade jurídica (artigos 133.º a 137.º).

De acordo com o Relatório Final da Comissão, o regime da desconsi-deração preconizado no Projeto de Código Comercial representa um “veículo de ampliação do âmbito de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, relativamente ao art. 50.º do Código Civil”7, visando ainda corrigir algumas defi -ciências do regime comum.

No presente estudo, propomo-nos apresentar uma primeira refl exão sobre o regime da desconsideração constante do Projeto de Código Comercial, certos do interesse que a experiência de recodifi cação comercial brasileira suscita no espaço jurídico lusófono e confi ados nos frutos de um diálogo interatlântico sobre um aspeto nuclear da dogmática da personalidade coletiva.

§ 1.º Enquadramento dogmático da desconsideração da personalidade jurídica no Código Civil 2002 e no Projeto de Código Comercial

1. A pessoa jurídica como técnica de segregação patrimonial

I – Desde o último quartel do séc. XX que a natureza da pessoa jurí-dica tem vindo a ser debatida, na doutrina brasileira, a propósito do instituto da desconsideração, centrando-se a discussão em torno do escopo funcional da personifi cação e da (ilícita) utilização da pessoa jurídica fora desse escopo. O grupo de casos mais estudado corresponde às hipóteses de levantamento da limitação de responsabilidade8.

3 Lei n.º 9605, de 12-fev.-1998.4 Lei n.º 12529, de 20-nov.-2011, que revogou a Lei n.º 8884, de 11-jun.-1994 que, no seu artigo 18.º, consagrava igualmente a fi gura da desconsideração. 5 Lei n.º 12846, de 1-ago.-2013.6 Lei n.º 13105, de 16-mar.-2015 (com vacatio de um ano).7 Relatório Final, 20.8 Diogo Costa Gonçalves, Pessoa coletiva e sociedades comerciais – Dimensão problemática e coordenadas sistemáticas da personifi cação jurídico-privada, 2015, 977.

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Os juristas brasileiros têm sido, assim, convidados a tratar a pessoa jurídica partindo de um concreto universo de hipóteses de desconsideração e procu-rando uma dogmática integrada, que faça depender da natureza da pessoa jurí-dica a orientação funcional que subjaz ao instituto da desconsideração.

A natureza da pessoa jurídica surge, assim, como o fundamento último da admissibilidade da fi gura.

II – O circunstancialismo científi co a que aludimos determinou, se bem vemos, a consolidação de uma perspetiva funcional da pessoa jurídica.

Mais do que dizer o que é a pessoa jurídica (a ser possível tal predicação), a doutrina preocupa-se em descrever a sua operacionalidade no processo de reali-zação do Direito, para assim justifi car as hipóteses de desconsideração.

III – Esta perspetiva funcional corresponde, tanto quanto podemos ajuizar, à orientação dogmática mais recente na doutrina brasileira. Em traços tão bre-ves quanto imprecisos, poderíamos identifi car, no Brasil, quatro fases dogmáti-cas distintas da pessoa jurídica.

Numa primeira fase, a doutrina brasileira foi introduzida por Teixeira de Freitas no contexto científi co da terceira sistemática9. A pessoa com existência ideal, na proposta do autor10, revela ser uma síntese dogmaticamente inovadora entre a tradição romano-canónica da persona fi cta et repræsentata11 – herdada na tradição jurídica portuguesa12 – e as grandes orientações coevas da pandectística:

9 Fundamentalmente nas suas obras Consolidação das leis civis (1858) e no Projeto de Código Civil (1860-1865). Com referências, cfr., neste sentido, Haroldo Valladão, Infl uência do Direito alemão na codifi cação civil brasileira (1857-1922), 1973, 3-5. A mesma obra foi publicada em língua alemã, com o título Der Einfl uss des deutschen Rechts auf das brasilianische Zivilgesetzbuch (1857/1922).10 Assumimos, como proposta terminológica, a constante do Projeto Teixeira de Freitas (1860-1865), elaborado em ordem à aprovação do primeiro Código Civil brasileiro. No entanto, o pró-prio Teixeira de Freitas hesitou na terminologia a adotar. Na primeira edição da Consolidação das leis civis (1858) afi rma que “as pessoas são singulares ou collectivas” (artigo 40.º), no Projeto propõe a designação pessoas de existência ideal e na 3.ª edição da Consolidação, afi rma em nota ao artigo 40.º: “pessoas collectivas: foi qualifi cação minha que agora substituo pela de universais”. 11 Cfr. o nosso Pessoa coletiva e sociedades comerciais cit.177 e ss.12 Em 1822, vigorava no Brasil Imperial o Direito pátrio português e as disposições de Direito especial de colónia, correspondentes às cartas de doação, forais e regimentos dos governadores outorga-dos antes da independência (cfr. Haroldo Valladão, História do Direito especialmente do Direito brasileiro, I, 2.ª ed., 1974, 71). O domínio holandês sentido no nordeste não deixou marca nas ins-tituições jurídicas do império (cfr. Inácio de Carvalho Neto, “História da codifi cação civil brasileira”, Novo Código Civil – Questões controvertidas (Mário Luiz Delgado/Jones Figueirêdo Alves), 6, 2007, 17-41, 19).

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“Existencia ideal: expressão também nova, e com a exactidão de que carecem as admi-tidas até hoje para signifi car esta classe de pessoa. A de pessoas moraes, correspondente á usual do mundo moral por oposição ao mundo physico, patentêa por si impropriedade do epitheto, pois que o elemento moral não absorve todo o elemento intelectual; e por isso a tem rejeitado Savigny, mesmo porque ella dá a entender que não ha moralidade na outra classe de pessoas. A de pessoas juridicas, que aliás Savigny adopta, porque é necessaria para designar uma das especies de pessoas de existencia ideal. A de pessoas collectivas, também é inexata pela razão já acima exposta, visto que ha pessoas de existencia ideal que não são pessoas coletivas. E recuso também a de pessoas civis, porque as outras pessoas tambem são civis; e a de pessoas fi ctícias porque é falso que haja fi cção alguma, e nem em outro qualquer caso o direito carece de fi cções.”13.

De sublinhar a rejeição da doutrina savignyana da fi cção, que talvez não se esperasse do “Savigny americano”. Este é, aliás, um marco original da doutrina brasileira: a doutrina da fi cção não penetrou na segunda metade do séc. XIX brasileiro.

IV – Numa segunda fase, dominaram as correntes que vimos designando por prima via do realismo14, em particular o organicismo de von Gierke. Esta é a orientação dogmática que subjaz ao Código Civil 1916 e que domina os primeiros lustros do séc. XX.

Aliás, na preparação do Código Civil 1916, é possível documentar uma acesa disputa na comissão revisora que é bem reveladora do estado da dogmá-tica da pessoa jurídica, ao tempo da elaboração do código. Trata-se da discussão havida entre Coelho Rodrigues e Clóvis Beviláqua acerca da capacidade das pessoas jurídicas e do princípio da equiparação, preconizado no Projeto15.

De acordo com Coelho Rodrigues o Projeto de Código Civil em discussão não promovia qualquer distinção entre a capacidade jurídica das pessoas naturais e das pessoas jurídicas. Daí resultava uma equiparação juridicamente inaceitável

O princípio da continuidade da ordem jurídica – consagrado na Lei de 20-out.-1823 – assegurou tam-bém a continuidade dogmática e científi ca entre a tradição jurídica portuguesa, secular, e a então nascente cultura jurídica brasileira (cfr. Haroldo Valladão, História do Direito especialmente do Direito brasileiro, II, 1973, 35). O Direito brasileiro encontra assim as suas raízes na longa tradição do Direito continental, não sendo possível reconhecê-lo sem remontar à tradição do jus romanum, às elaborações do período intermédio e à própria identidade da cultura jurídica portuguesa.13 Teixeira de Freitas, Codigo Civil – Esboço, 1860, 19.14 Diogo Costa Gonçalves, Pessoa coletiva e sociedades comerciais cit., 278 e ss.15 A discussão encontra-se documentada in A. Ferreira Coelho, Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil, V, 1923, 30-39.

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entre pessoas naturais e jurídicas, que o autor rejeitava invocando, sobretudo, a condição inumana da pessoa jurídica e a exclusão que daí decorre dos direitos e obrigações inseparáveis da personalidade natural.

Clóvis Beviláqua contesta. A posição de Coelho Rodrigues é tida como uma adesão à doutrina savignyana da fi cção, há muito abandonada na ciência jurídica. Para o autor, as pessoas jurídicas são realidades vivas que se impõem ao Direito e que o Estado reconhece; são corpos sociais dotados de vida e interes-ses próprios, e não meras fi cções jurídicas:

“A verdade é que o reconhecimento das pessoas juridicas por parte do Estado não é acto de creação, mas sim apenas de confi rmação, e, sob este ponto de vista, não são as pessoas juridicas tratadas de modo diverso das pessoas naturaes.”

E continua, citando Endemann:

“(...) com a associação se origina um corpo social dotado de interesses juridicos proprios, o qual, do mesmo modo que o indivíduo, deve ser juridicamente reconhecido como existindo realmente e agindo, e não simplesmente como um ser fi cticio.”16

O princípio da equiparação presente no Código Civil 1916 decorre, para Cló-vis Beviláqua, da rejeição da doutrina da fi cção: se as pessoas naturais e jurídicas têm uma existência própria e autónoma, que o Direito se limita a “confi rmar”, não há razão para que não sejam plenamente equiparadas.

E a fazer fé na afi rmação do autor, segundo a qual “este modo de ver [vai] conquistando, dia a dia, maior numero de ahdesões”17, é de supor ter sido essa a orientação dominante em inícios do séc. XX, no espaço jurídico brasileiro.

V – Numa terceira fase, domina a secunda via do realismo, mormente na versão divulgada pela escola italiana do realismo jurídico18, conhecida no Brasil por realismo técnico.

O realismo técnico foi acolhido por autores como João Franzen de Lima, por exemplo. Depois da acostumada exposição das diversas orientações dogmá-ticas, o autor coloca-se a questão “qual o sistema preferível?”19. Afastando limi-

16 Apud A. Ferreira Coelho, Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil, V, cit., 37 e 38-39, respetivamente.17 Apud A. Ferreira Coelho, Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil, V, cit., 39. 18 Com desenvolvimento, cfr. o nosso Pessoa coletiva e sociedades comerciais cit., 373 e ss.19 João Franzen de Lima, Curso de Direito civil brasileiro, I (Introdução e Parte Geral), 7.ª ed., 1977, 174 (a 1.ª ed. é de 1952).

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narmente as correntes negativas, Franzen de Lima afronta a questão de que realidade, a da pessoa jurídica, e conclui no sentido da pura realidade jurídica, aderindo ao que qualifi ca de realismo técnico:

“(...) as pessoas jurídicas não são organismo reais da vida sensível, de maneira que as possamos equiparar, na realidade das coisas, às pessoas naturais. São organismos reais da vida jurídica, são realidades jurídicas, são realidades técnicas.

É na vida jurídica que encontramos tais pessoas; é na actividade jurídica que elas se movem, excluídas daqueles direitos que não são inerentes à pessoa humana.

Daí a razão por que deve ser preferida a denominação pessoa jurídica para caracterizar esses entes reais da vida do direito.”20

Os pressupostos científi cos do realismo italiano encontram-se marca-damente presentes. O realismo técnico é ainda perfi lhado por autores como Roberto Senise Lisboa21, Carlos Roberto Gonçalves22 e Suzy Cavalcante Koury23, et alia.

VI – A melhor síntese do ambiente juscientífi co próprio da secunda via do realismo encontra-se, porém, em Pontes de Miranda.

Com efeito, em fi nais do séc. XIX e inícios do séc. XX, foram surgindo fortes críticas à Theorie der realen Verbandspersönlichkeit e à Organtheorie de von Gierke24.

As críticas então aduzidas podiam reconduzir-se a uma único mote: a supe-ração da doutrina de fi cção levou von Gierke a uma nova fi cção. A insistência na realidade das Verbandspersonen conduziu o discurso do autor a um novo irrealismo que reclamava uma nova síntese.

Karsten Schmidt sintetiza esta crítica de forma elucidativa:

“Von Gierke pretendeu substituir a fi cção pelo que ele julgava ser a realidade; mas o que fez foi substituir uma construção jurídica pela fi cção de uma existência real.”25

20 João Franzen de Lima, Curso de Direito civil brasileiro, I, cit., 178.21 Roberto Senise Lisboa, Teoria Geral do Direito Civil, 5.ª ed., 2008, 234.22 Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, I (Parte Geral), 7.ª ed., 2009, 184, pese embora o autor confundir a teoria da realidade técnica com o institucionalismo de matriz francesa.23 Suzy Cavalcante Koury, A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os gru-pos de empresas, 2.ª ed., 2002, 15-16, se bem lemos.24 Com desenvolvimento e referências, veja-se o nosso Pessoa coletiva e sociedades comerciais cit., 294 e ss.25 Karsten Schmidt, Einhundert Jahre Verbandstheorie im Privatrecht, 1987, 17.

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Independentemente da razão que se possa reconhecer às críticas apontadas quando consideradas isoladamente, numa visão de conjunto, parece não ser possível afastar a sombra que pairava sobre a construção de Von Gierke: em que medida muito da realidade que o autor reclama para a pessoa coletiva mais não é que uma construção intelectual? Não seria afi nal a existência real e autónoma de corporações, também ela, uma fi cção? Não teria o autor, ao rejeitar a zweite Fiktion de Savigny26, por exemplo, acabado por criar uma neue Fiktion, merece-dora das mesmas críticas que o próprio aduz à tese savignyana?

VII – O mote crítico sumariamente enunciado levou à discussão de qual a realidade da pessoa jurídica e de que realidade podemos falar em Direito.

É justamente ao núcleo central desta discussão que Pontes de Miranda con-duz a doutrina brasileira acerca da natureza da pessoa jurídica:

“A discussão sôbre serem reais, ou não, as pessoas jurídicas é em tôrno de falsa questão: a realidade, em tal sentido, é conceito do mundo fáctico; a pessoa jurídica é conceito do mundo jurídico.”

E continua:

“O que importa é assentar-se que o direito não as cria ex nihilo; traz, para as criar, algo do mundo fáctico. Se há realidades espirituais, ou se não as há, constitui problema que se há de ter resolvido, ou dado como resolvido, antes de se entrar no mundo jurídico. As teorias sobre a pessoa jurídica aí se situam; são perspectivas do mundo fáctico, que apanham parte do mundo jurídico, mas sòmente porque o conceito de pessoa jurídica é conceito do mundo jurídico.”27

O autor não rejeita liminarmente o realismo orgânico, pelo qual nutre simpatia28. O suporte fáctico que reclama para a pessoa jurídica está próximo das

26 Com desenvolvimento, cfr. o nosso nosso Pessoa coletiva e sociedades comerciais cit., 287 e ss. Com efeito, a construção de Savigny assentava fundamentalmente na ideia de que à fi cção da existên-cia de uma pessoa jurídica se seguia uma segunda fi cção (zweite Fiktion) relativa à imputação de uma vontade e ação juridicamente relevantes à pessoa fi ccionada (Pessoa coletiva e sociedades comer-ciais cit., 253 e ss.).27 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado – Parte Geral, I (Introdução. Pessoas físicas e jurí-dicas), 1954, 280.28 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado – Parte Geral, I, cit., 282.

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considerações da pessoa jurídica como uma realidade tão vivente como a pessoa física29.

Todavia, Pontes de Miranda parte de um pressuposto juscientífi co que marca a rutura com o realismo da prima via (e com o ambiente dogmático que subjaz à codifi cação de 1916): a realidade da pessoa em causa é uma reali-dade exclusivamente jurídica. Quer isto dizer: a pessoa jurídica existe, é, de facto; porém o seu esse pertence apenas ao Direito; não é, portanto, uma realidade social ou natural (ainda que tal dimensão fáctica lhe possa servir de suporte).

Em outras palavras: a pessoa jurídica é uma res juridica, a sua existência joga--se no plano da juridicidade.

VIII – Chegamos, por fi m, à contemporaneidade dogmática e, com ela, à identifi cação da pessoa jurídica a uma técnica de segregação de patrimónios.

Nesta proposta, a segregação ou autonomização patrimonial corresponde à quidditas da personifi cação como assinala, em tom desalentador, Rodrigo Xavier Leonardo:

“A pessoa jurídica, portanto, perdeu a sua centralidade e convive com diversos outros suportes para se alcançar o efeito da autonomia das esferas jurídicas e da separação patri-monial.”30

A melhor representação desta orientação dogmática pode, contudo, ser encontrada em Fábio Ulhoa Coelho, para quem a separação patrimonial se identifi ca com a própria pessoa jurídica:

“O instituto da pessoa jurídica é uma técnica de separação patrimonial. Os membros dela não são os titulares dos direitos e obrigações imputados à pessoa jurídica. Tais direitos e obrigações formam um patrimônio distinto do correspondente aos direitos e obrigações impu-tados a cada membro da pessoa jurídica.

A pessoa jurídica é uma técnica de separação patrimonial em que se atribui personalidade própria ao patrimônio segregado. Nenhuma outra das técnicas desenvolvidas pelo direito apresenta esse traço.”31

29 Afi rma, aliás, o autor: “A pessoa jurídica é tão oriunda de fáctico quanto a pessoa física. (...) A pessoa jurídica é tão real quanto a pessoa física.” – Tratado de Direito Privado – Parte Geral, I, cit., 281 e 282, respetivamente.30 Rodrigo Xavier Leonardo, “O percurso e os percalços da teoria da pessoa jurídica na UFPR: da desconsideração da pessoa jurídica à pessoa jurídica desconsiderada”, Direito Civil – Inventário teórico de um século, 2012, 75-96 (93).31 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Civil, I (Parte Geral), 4.ª ed., 2010, 247.

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Com este enquadramento, a personifi cação é assumida como técnica jurí-dica que concretiza um princípio da autonomia patrimonial que, segundo o autor, tem três concretizações básicas: (i) as pessoas jurídicas não se confundem com os sujeitos que as integram; (ii) a pessoa jurídica é ela mesmo parte nos negócios jurídicos; e (iii) a pessoa jurídica pode demandar e ser demandada32.

2. A verdadeira inovação do Código Civil 2002

I – Com o Código Civil 2002, o regime das pessoa jurídicas33 não sofreu uma alteração substantiva. As modifi cações mais signifi cativas dizem funda-mentalmente respeito a três aspetos normativos34: (i) à distinção entre pessoas jurídicas de fi ns não económicos (associações e fundações) e fi ns económicos (socie-dade simples e sociedade empresária); (ii) à revisão do regime das associações e fundações; e (iii) à revisão das disposições referentes a pessoas jurídicas de Direito público interno.

Se relevantes em ordem a obter um regime das pessoas jurídicas menos “lacunoso e vacilante” 35, as alterações introduzidas pelo Código Civil 2002 não trazem implicações para a construção dogmática da fi gura. O regime funda-mental da pessoa jurídica é o herdado do Código Civil 1916. E se, ao tempo, o articulado era visto como uma emanação da teoria do realismo orgânico, os mesmos preceitos legais são hoje tidos por alguns autores como consagrando a doutrina do realismo técnico36.

II – A verdadeira novidade do Código Civil 2002 reside, outrossim, na consagração legal da fi gura da desconsideração da personalidade jurídica em sede de Direito comum.

Com efeito, o interesse pela doutrina da desconsideração desenvolveu-se, no Brasil, com especial intensidade no último quartel do séc. XX. Na sua divul-gação, foi pioneiro Rubens Requião que, ainda na década de 60, proferiu a

32 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Civil, I (Parte Geral), 4.ª ed., cit., 248-249.33 O regime foi também modifi cado pela Lei n.º 10.825, de 22-dez.-2003, pela Lei n.º 11.107, de 06-abr.-2005, pela Lei n.º 11.127, de 28-jun.-2005 e pela Lei n.º 12. 441, de 11-jul.-2011.34 Enunciados, aliás, na apresentação do Projeto. Cfr. Miguel Reale, O Projeto do Novo Código Civil, 2.ª ed., 1999, 65. 35 Miguel Reale, O Projeto do Novo Código Civil, 2.ª ed., cit., 65. 36 Neste sentido, Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, I, 7.ª ed., cit., 186, por exemplo.

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célebre conferência na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná – Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine) 37.

Com abordagens dogmáticas diversas e ponderações sistemáticas distintas, a partir do Direito civil e do Direito comercial, o tema da desconsideração foi penetrando na doutrina brasileira e ocupando autores de nomeada38.

Um especial destaque merece a obra de Lamartine Corrêa de Oliveira39, que marcou profundamente os juristas no espaço lusófono40.

III – Nos fi nais da década de 80 e até inícios do séc. XX, intensifi cam-se os estudos sobre a matéria. Destacam-se nomes como Fábio Ulhoa Coelho41, Marçal Justen Filho42, Suzy Cavalgante Koury43, Leandro Martins Zanitelli44, Luciano Dequech45, Silva Pereira46, Rodrigo Xavier Leonardo47 et alia.

Estava preparado o terreno para a consagração legal da fi gura na codifi cação civil48, o que veio a ocorrer com o novo Código Civil 2002:

Art. 50.Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de fi nalidade, ou

pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

37 Publicada, com esse título, na obra do autor, Aspetos modernos de Direito Comercial, 1977, 67 e ss. e já antes, em 1969, na Revista dos Tribunais.38 Veja-se a resenha bibliográfi ca apresentada por Caio Mário da Silva Pereira, Direito Civil – Alguns aspetos da sua evolução, 2001, 62-63.39 Lamartine Corrêa de Oliveira, A dupla crise da pessoa jurídica, 1979.40 Entre nós, foi especialmente ponderada por José de Oliveira Ascensão, Direito civil – Teoria geral, I, 2.ª ed., 2000, 218, por exemplo.41 Fábio Ulhoa Coelho, Desconsideração da personalidade jurídica, 1989.42 Marçal Justen Filho, Desconsideração da personalidade societária no Direito brasileiro, 1987. 43 Suzy Cavalgante Koury, A desconsideração da personalidade jurídica cit.44 Leandro Martins Zanitelli, “Abuso da pessoa jurídica e desconsideração”, A reconstrução do Direito privado ( Judith Martins-Costa), 2002, 715-729. 45 Luciano Dequech, “A desconsideração da personalidade jurídica”, Novo Código Civil – Questões controvertidas (Mário Luiz Delgado/Jones Figueirêdo Alves), VI, 2007, 252-270. 46 Caio Mário da Silva Pereira, Direito Civil – Alguns aspetos da sua evolução, cit., 57 e ss.47 Rodrigo Xavier Leonardo, “O percurso e os percalços da teoria da pessoa jurídica na UFPR …”, cit. 48 Antecedida da consagração em outros diplomas legais como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei relativa a atividades lesivas ao meio ambiente e a Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, como supra se disse.

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IV – O interesse científi co suscitado em torno da desconsideração da per-sonalidade jurídica e da sua progressiva consagração legal tornou o instituto no areópago moderno da discussão em torno da natureza da pessoa jurídica.

Mantém-se, em muitos autores, o entendimento da pessoa jurídica como realidade técnica. Assim sucede com Silva Pereira, que sustenta esta orientação herdada de décadas anteriores, já em vigência do novo código49.

Arnoldo Wald parece continuar a reconduzir o problema aos quadros dog-máticos da prima via do realismo50. A necessidade de uma reconstrução dogmá-tica do instituto é anunciada por outros autores como um verdadeiro desafi o à ciência jurídica do séc. XXI51.

V – Contudo, a consagração legal do instituto da desconsideração no novo Código Civil não foi dogmaticamente neutra. De acordo com o artigo 50.º, há lugar a desconsideração nos casos de abuso de personalidade jurídica que o legislador caracteriza em duas hipóteses: desvio de fi nalidade e confusão patrimonial.

O abuso de personalidade por desvio de fi nalidade vs. confusão patrimonial pressupõe, na doutrina brasileira, uma perspetiva funcional da pessoa jurídica, tal como proposta por Fábio Ulhoa Coelho: há lugar a desconsideração sempre que houver abuso de segregação patrimonial.

A perspetiva funcional da pessoa jurídica é, na verdade, o pano de fundo dog-mático que subjaz ao Código Civil 2002.

3. O Projeto de Código Comercial

I – O enquadramento dogmático subjacente ao artigo 50.º Código Civil encontra-se especialmente reforçado no Projeto de Código Comercial.

Retenha-se, desde logo, que no artigo 11.º do Projeto vem consagrado o princípio da autonomia patrimonial52, do modo que segue:

49 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, I (Introdução ao Direito civil. Teoria Geral do Direito Civil), 2005, 310. Com interesse, veja-se ainda a adesão do autor ao princípio da especia-lidade (310-315), embora com uma leitura muito mitigada dos efeitos limitadores da capacidade.50 Arnoldo Wald, Direito Civil, I, 12.ª ed., 2010, 187-188. 51 Rodrigo Xavier Leonardo, “O percurso e os percalços da teoria da pessoa jurídica na UFPR …”, cit., 93-94.52 Sobre enunciação de princípios no Projeto, veja-se a refl exão de Fábio Ulhoa Coelho, “Os princípios do Direito comercial no Projeto de Código Comercial”, Refl exões sobre o Projeto de Código Comercial (Fábio Ulhoa Coelho/Tiago Asfor Rocha Lima/Marcelo Guedes Nunes), 2013, 101-116.

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Art. 11.º Pelo princípio da autonomia patrimonial, a sociedade é sujeito de direito diverso de seus sócios e, em consequência, estes respondem apenas pelas obrigações que este Código ou a lei expressamente lhes atribui.

Parágrafo único. Quando a lei atribui a sócio responsabilidade por obrigação da sociedade, esta tem sempre caráter subsidiário, pressupondo que o patrimônio social está prévia e com-pletamente exaurido, e não podendo ultrapassar os limites previstos neste Código ou na lei.

A fundamentação da personifi cação das sociedades comerciais está assim associada à autonomia patrimonial: as sociedades são pessoas jurídicas por serem (e para serem) esferas patrimoniais autónomas.

II – O mesmo pode ser dito quanto ao regime proposto para a desconside-ração da personalidade jurídica das sociedades comerciais:

Art. 196. Em caso de confusão patrimonial, desvio de fi nalidade, abuso da forma socie-tária ou de fraude perpetrada por meio da autonomia patrimonial da sociedade, o juiz pode desconsiderar a personalidade jurídica própria desta, mediante requerimento da parte interes-sada ou do Ministério Público, quando intervier no feito, para imputar a responsabilidade ao sócio ou administrador.

§ 1.º. Será imputada responsabilidade exclusivamente ao sócio ou administrador que tiver praticado a irregularidade que deu ensejo à desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

§ 2.º. Em caso de atuação conjunta na realização da irregularidade que deu ensejo à desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, a responsabilidade dos envolvidos será solidária.

§ 3.º. Na hipótese do parágrafo anterior, cada um dos responsabilizados responderá, em regresso, proporcionalmente à respectiva participação na irregularidade que deu ensejo à desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

Art. 197. A simples insufi ciência de bens no patrimônio da sociedade para a satisfação de direito de credor não autoriza a desconsideração de sua personalidade jurídica.

Art. 198. A imputação de responsabilidade ao sócio ou administrador, ou a outra socie-dade, em decorrência da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, só pode ser determinada pelo juiz, para qualquer fi m, em ação ou incidente próprio, depois de assegurado o direito à ampla defesa e ao contraditório.

Art. 199. Decretada a desconsideração da personalidade jurídica, deve ser incluído no processo o nome do sócio, administrador ou da pessoa, natural ou jurídica, a quem se imputar responsabilidade.

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Apontamentos sobre a desconsideração da personalidade jurídica… 309

Se bem atendermos, todo o instituto está construído sobre o princípio da autonomia patrimonial, apresentado como fundante da pessoa jurídica.

§ 2.º Apreciação crítica do regime proposto no Projeto de Código Comercial

4. Sequência; disparidade de fontes e a necessidade de uma reconstrução dogmá-tica unitária da desconsideração

I – Pese embora o legislador se propor emendar, no Projeto de Código Comer-cial, a opção normativa consagrada no Código Civil, a verdade é que o instituto da desconsideração surge, no sistema brasileiro, revelado numa pluralidade de fontes com conteúdos normativos muito díspares.

– Código de Defesa do Consumidor (1990):

Art. 28.ºO juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detri-

mento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

(...)§5.º. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade

for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

– Lei relativa a atividades lesivas ao meio ambiente (1998):

Art. 4.ºPoderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo

ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente53.

53 Esta disposição merece ser cotejada com o artigo 24.º do mesmo diploma, com a seguinte reda-ção: “A pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fi m de permitir, facilitar ou ocul-tar a prática de crime defi nido nesta Lei terá decretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento do crime e como tal perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional.”

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– Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (2011)54:

Art. 34.ºA personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser

desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.

Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

– Lei Anticorrupção (2013):

Art. 14.ºA personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do

direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.

II – Também não é possível ignorar a densifi cação jurisprudencial do ins-tituto, sobretudo aos diversos enunciados aprovados nas jornadas do Conselho de Justiça Federal55.

Assim, por exemplo, na I Jornada de Direito Civil, destacam-se os seguintes enunciados:

– Enunciado 7, determinando que “só se aplica a desconsideração da persona-lidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido”.

– Enunciado 51, pronunciando-se sobre a articulação do Código Civil com os demais diplomas que consagram a desconsideração: “a teoria da desconsi-deração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fi ca positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema.”

54 A redação corresponde ao artigo 18.º da Lei n.º 8884, de 11-jun.-1994.55 Disponíveis in http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej

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Na III Jornada de Direito Civil:

– Enunciado 146, determinando que “nas relações civis, interpretam-se restritiva-mente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50.º (desvio de fi nalidade social ou confusão patrimonial).”.

– Enunciado 229, segundo o qual “a responsabilidade ilimitada dos sócios pelas deliberações infringentes da lei ou do contrato torna desnecessária a desconsideração da personalidade jurídica, por não constituir a autonomia patrimonial da pessoa jurídica escudo para a responsabilização pessoal e direta.”.

Na IV Jornada de Direito Civil:

– Enunciado 281, de acordo com o qual a aplicação da teoria da desconsi-deração, prevista no artigo 50.º Código Civil, prescinde da demonstração de insolvência da pessoa jurídica.

– Enunciado 282, que esclarece que o “encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso da personalidade jurídica”.

– Enunciado 283, reconhecendo a fi gura da desconsideração inversa “para alcan-çar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pes-soais, com prejuízo a terceiros”.

– Enunciado 284, que estende o desconsideração às pessoas jurídicas de direito privado sem fi ns lucrativos ou de fi ns não-económicos.

– Enunciado 285, reconhecendo que a desconsideração pode ser invocada pela própria pessoa jurídica, em seu favor.

Na V Jornada de Direito Civil:

– Enunciado 406, esclarecendo que “a desconsideração da personalidade jurídica alcança os grupos de sociedade quando estiverem presentes os pressupostos do art. 50 do Código Civil e houver prejuízo para os credores até o limite transferido entre as sociedades.”

– Enunciado 470, fi xando que “o patrimônio da empresa individual de responsa-bilidade limitada responderá pelas dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.”

Por fi m, na I Jornada de Direito Comercial:

– Enunciado 9, fi xando que o artigo 50.º do Código Civil não pode ser interpretado analogamente ao artigo 28.º, § 5.º, do Código de Defesa do Consumidor, quando em causa estejam relações jurídicas empresariais.

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– Enunciado 48, esclarecendo que “a apuração da responsabilidade pessoal dos sócios, controladores e administradores feita independentemente da realização do ativo e da prova da sua insufi ciência para cobrir o passivo, prevista no art. 82.º da Lei n. 11.101/2005, não se refere aos casos de desconsideração da personalidade jurídica.”

III – É este o pano de fundo sobre o qual se tece a proposta do Projeto. Está marcado por uma acentuada falta de harmonia normativa que vai desde a maior abertura aplicativa do instituto (sempre que a personalidade jurídica seja obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores), até à res-trição associada a comportamentos abusivos e lesivos da boa fé, passando pela parca clareza quanto ao âmbito objetivo/subjetivo de aplicação (como alguns enunciados aprovados nas jornadas do Conselho de Justiça Federal evidenciam) e quanto à sua articulação com outros institutos, maxime com a própria respon-sabilidade civil.

Estas irregularidades do sistema externo têm consequências a nível de sis-tema interno56, tornando especialmente árduo qualquer esforço de construção dogmática, verdadeiramente sistematizador e teorético57.

Todavia o instituto da desconsideração não sobrevive em nenhum sistema sem uma dogmática sólida e integrada.

5. A superação da orientação objetivista da desconsideração: regresso ao sub-jetivismo dogmático?

I – De acordo com o Relatório Final que acompanha o Projeto, o regime da desconsideração preconizado no novo Código Comercial representa um “veículo de ampliação do âmbito de aplicação da teoria da desconsideração da persona-lidade jurídica, relativamente ao art. 50.º do Código Civil, de inspiração sabidamente objetivista” 58.

56 Em geral, sobre as relações de mútua interdependência entre sistema externo e sistema interno, veja-se Franz Bydlinski, “Zum Verhältnis von äußerem und innerem System im Privatrecht”, FS Claus Wilhelm Canaris 70. Geburtstag, II, 2007, 1017-1040.57 Com referências, cfr. o nosso Pessoa coletiva e sociedades comerciais cit., 59 e ss.58 Relatório Final, 20.

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Comparemos as redações:

Código Civil (2002)

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de fi nalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz deci-dir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens parti-culares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Projeto de Código Comercial (2013)

Art. 196. Em caso de confusão patrimonial, desvio de fi nalidade, abuso da forma societária ou de fraude perpetrada por meio da autonomia patrimonial da sociedade, o juiz pode descon-siderar a personalidade jurídica própria desta, mediante requerimento da parte interessada ou do Ministério Público, quando intervier no fei-to, para imputar a responsabilidade ao sócio ou administrador.

De acordo com o artigo 50.º Código Civil, há lugar a desconsideração nos casos de abuso de personalidade jurídica, que o legislador caracteriza, como vimos, em duas hipóteses: (i) desvio de fi nalidade e (ii) confusão patrimonial.

O Projeto admite a aplicação do instituto em caso de:

– confusão patrimonial;– desvio de fi nalidade;– abuso de forma societária; e– fraude perpetrada por meio da autonomia patrimonial da sociedade.

II – De acordo com a Comissão, o desvio de fi nalidade e confusão patrimo-nial representariam uma orientação objetivista, por oposição ao abuso de forma e fraude que representariam uma orientação subjetivista: aquela que se visa reforçar.

Desta sorte, o Projeto teria obtido uma superação das limitações objetivistas do Código Civil, alargando assim o âmbito de aplicação do instituto.

III – Este enquadramento não se nos afi gura exatamente correto. Con-funde, por um lado, o que são as hipóteses de desconsideração com a sua pos-sível recondução dogmática; e, por outro, parece apostar numa subjetiviza-ção da boa-fé, contra a tendência observada nas últimas décadas na dogmática continental.

IV – A origem do instituto da desconsideração – quer no espaço anglo--saxónico quer no espaço continental – é marcadamente casuística e jurispru-dencial, o que condicionou naturalmente o tratamento dogmático da fi gura59.

59 Karsten Schmidt, Gesellschaftsrecht, 4.ª ed., 2002, 219 e ss.

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As reconduções dogmáticas ensaiadas na doutrina foram sempre precedidas ou acompanhadas de uma identifi cação de grupos de casos em que a desconsideração tem lugar60.

Sem prejuízo das variações oferecidas pelos diversos autores, há dois grupos de casos que adquirem especial consenso – a confusão de esferas (Sphärenver-mischung ou Vermögensvermischung) e as hipóteses de subcapitalização (Unterka-pitalisierung) – e que são invariavelmente enunciados nas principais obras de referência (com prevalência para esta última hipótese)61.

Para além destes dois grupos, é difícil encontrar nos autores uma unidade de critério. Em algumas obras surge ainda mencionada a hipótese autónoma de destruição de ativos62. Multiplicam-se, depois, as ilustrações casuísticas associadas, em especial, à violação de escopos normativos e contratuais63, acabando os autores por reduzir a variedade possível à menção geral de andere Fälle64.

Com outro critério, surge ainda a referência a levantamento da imputação (Zurechnungsdurchgriff )65 e a levantamento de responsabilidade (Haftungsdurchgriff )66.

60 Sobre a construção dos grupos de casos (Fallgruppenbildung), cfr. Wolfram Günter Will-burger, Der Durchgriff auf die Gesellschafter wegen ausgeübter Herrschaftsmacht im Haftungssystem der GmbH, 1994, 5-6. O autor chama a atenção para o facto de a adoção dos critérios em função dos quais se identifi cam os grupos de casos envolver sempre alguma arbitrariedade e estar ao serviço dos fi ns que a investigação se propõe (5). Com efeito, a formação dos grupos de casos é ela já uma construção dogmática, pois à ordenação da casuística presidem, necessariamente, um conjunto de critérios que são, eles próprios, uma confi guração da realidade de acordo com uma pré-com-preensão juscientífi ca.61 Cfr., por exemplo, Willburger, Der Durchgriff cit., 5; Karsten Schmidt, 4.ª ed., cit., 234 e ss. e 240 e ss.; Thomas Raiser/Rüdiger Veil, Recht der Kapitalgesellschaften, 5.ª ed., 2010, 405 e ss.; Barbara Grunewald, Gesellschaftsrecht, 8.ª ed., 2011, 214-217; Carsten Schäfer, Gesellschafts-recht, 2.ª ed., 2011, 162-163; Ingo Saenger, Gesellschaftsrecht, 2010, 239; Johann Kindl, Gesells-chaftsrecht, 2011, 337-340; Götz Hueck/Christine Windbichler, Gesellschaftsrecht, 21.ª ed., 2008, 260 e ss. e Jan Wilhelm, Kapitalgesellschaftsrecht, 3.ª ed., 2008, 188 e ss. 62 Por exemplo, Willburger, Der Durchgriff cit., 5, referindo-se a Vermögensverluste; e Thomas Raiser/Rüdiger Veil, Recht der Kapitalgesellschaften, 5.ª ed., cit., 405, que utiliza a expressão Exis-tenzvernichtung, tal como Jan Wilhelm, Kapitalgesellschaftsrecht, 3.ª ed., cit., 195.63 Götz Hueck/Christine Windbichler, Gesellschaftsrecht, 21.ª ed., cit., 261-262.64 Thomas Raiser/Rüdiger Veil, Recht der Kapitalgesellschaften, 5.ª ed., cit., 412-413.65 Por exemplo, Friedrich Kübler/Heinz-Dieter Assmann, Gesellschaftsrecht, 6.ª ed., 2006, 369. Veja-se ainda, Johann Kindl, Gesellschaftsrecht cit., 341.66 Com abundantes referências, Hans Christoph Grigoleit, Gesellschafterhaftung für interne Ein-fl ussnahme im Recht der GmbH, 2006, 221 e ss. Os autores utilizam também o conceito Durch-griff shaftung. A expressão levantamento de responsabilidade não expressa bem o conceito. Em causa está “penetrar na responsabilidade”, ou seja: superar a limitação da responsabilidade granjeada pela personalidade coletiva.

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Em causa, porém, não estão grupos de casos em que se admite o instituto mas sim efeitos da sua aplicação67.

V – O carácter casuístico do instituto não foi ignorado pelos autores nacio-

nais. A progressiva penetração do instituto na cultura jurídica portuguesa segue acompanhada de uma referência mais ou menos clara a grupos de casos68, num esforço de sistematização crescente.

Com Menezes Cordeiro, dá-se uma certa estabilização dos grupos de casos típicos em três hipóteses: (i) confusão de esferas jurídicas; (ii) subcapitalização; (iii) atentado a terceiros e abuso de personalidade69, com largo acolhimento na jurisprudência, sobretudo na do início deste século70.

VI – A partir da identifi cação dos grupos de casos, a ciência jurídica procu-rou formular teorias explicativas da desconsideração, que densifi quem os veto-res materiais do instituto.

A primeira orientação que podemos identifi car71, é a denominada teoria subjetiva. Está associada à ideia geral de abuso de personalidade, mas põe a tónica

67 Cfr., por exemplo, Maria de Fátima Ribeiro, A tutela dos credores da sociedade por quotas e a “desconsideração” da personalidade jurídica, 2009, 304 e ss. e Raul Ventura/Brito Correia, Apon-tamentos para a reforma das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, 1969, 96 e ss. 68 Assim, por exemplo, Oliveira Ascensão, Direito Comercial, IV, 1993, 57 e ss. oferece um conjunto de hipóteses de desconsideração a cuja ordenação corresponde um critério plural que conjuga alguns casos típicos, a classifi cação de efeitos e reconduções dogmáticas de base. Cou-tinho de Abreu, sistematiza o instituto com base em dois grupos de casos, correspondentes ao Zurechnungsdurchgriff e Haftungsdurchgriff : os casos de imputação e os casos de responsabilidade. Cfr. Da Empresarialidade (Das empresas no Direito), 1996, 208 e CSC em comentário, I, 2010, 5.º, 100 e ss. Na ilustração dos casos, acaba por estar presente a confusão de esferas, a subcapitalização, etc. 69 Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I (Parte Geral), 3.ª ed., 2011, 429. A classifi cação sofre uma revisão, já presente in O levantamento da personalidade coletiva no Direito civil e comercial, 2000, 115 e ss., quanto à sistematização presente in Da responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, 1997, 324 e ss. 70 Por exemplo, RPt 16-abr.-2012 (Fernanda Soares), Proc. n.º 229/08.3TTBGC.P1, RGm 17-nov.-2011 (Manuel Bargado), Proc. n.º 798/08.8TBEPS.G1, RPt 25-mar.-2010 (Teles de Menezes), Proc. n.º 3980/07.1TBPRD.P1, STJ 19-mar.-2009 (Pinto Hespanhol), Proc. n.º 08S3259.71 Seguindo aqui a classifi cação de Karsten Schmidt, Gesellschaftsrecht, 4.ª ed., cit., 222-224. Atenda-se ainda à classifi cação proposta por Alexandre Mota Pinto, Do contrato de suprimentos – O fi nanciamento da sociedade entre o capital social próprio e o capital alheio, 2002, 109 e ss. e secundada por Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, 3.ª ed., cit., 437.

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nos elementos subjetivos: a vontade ou consciência do sujeito de, com aquela conduta, invocar de modo juridicamente reprovável a personalidade coletiva72.

A orientação subjetivista estava, contudo, destinada a ser uma dogmática de transição: pretendia carregar as tintas da desconformidade com sistema dos abu-sos de personalidade, mas abria o fl anco a inevitáveis críticas.

Com efeito, como recordaria Karsten Schmidt, à relevância jurídica do abuso de personalidade basta a desconformidade objetiva com o escopo de utilização da pessoa coletiva (objektiv-zweckwidrige Verwendung der juristischen Person)73.

A jurisprudência encarregar-se-ia de corrigir a derivação subjetivista de Serick e obter uma sistemática integrada: o levantamento sofreria uma objeti-vação paralela à conhecida pelos institutos que gravitam em torno da boa-fé74.

Fruto desta correção jurisprudencial surgiu a denominada teoria institucio-nalista (ou objetiva75), segundo a qual há lugar ao levantamento quando “a segregação entre a corporação e os seus membros contradiz a ordem jurídica”76, indepen-dentemente das disposições internas dos sujeitos77.

72 É esta, desde logo, a orientação de Serick, Rechtsform und Realität, 1955, 203 e ss., que coloca sempre a tónica no carácter censurável das disposições do sujeito, orientação esta acolhida por Philipp Möhring, na recensão que faz à obra do autor, in NJW 9 (1956), 48, 1971. No mesmo sentido parece seguir Otfried Lieberknecht, “Die Enteigung deutscher Mitglieds-chaftsrechte an ausländischen Gesellschaften mit in Deutschland belegenem Vermögen (ii)”, NJW 9 (1956), 25, 931-936. 73 Karsten Schmidt, Gesellschaftsrecht, 4.ª ed., cit., 222, com referências à jurisprudência.74 Surge frequentemente citada – por Karsten Schmidt, Gesellschaftsrecht, 4.ª ed., cit., 222 (18), Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, 3.ª ed., cit., 439, et alia – a decisão do BGH 30-jan-1956 (BGHZ 20 (1956), 4-15), na qual o Tribunal expressamente afi rma a inexigibilidade da verifi cação de uma intenção abusiva: “A jurisprudência não subordina o levantamento da pessoa jurídica a um abuso intencional da personalidade coletiva.”75 Alexandre Mota Pinto, Do contrato de suprimentos cit., 110 e ss. e Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, 3.ª ed., cit., 437.76 Karsten Schmidt, Gesellschaftsrecht, 4.ª ed., cit., 222.77 Sufragaram esta orientação autores como Eckard Rehbinder, Konzernaußenrecht und allge-meines Privatrecht – Eine rechtsvergleichende Untersuchung nach deutschem und amerikanischem Recht, 1969, 119 e ss.; Ottmar Kuhn, Strohmanngründung bei Kapitalgesellschaften, 1964, 119 e ss. (com uma exposição sugestiva da evolução dogmática) e Knut H. Franzmann, Die sogenannten Dur-chgriff statbestände im Privatrecht als Problem einer interessengerechten Risikoverteilung, 1984, passim. O autor conclui: “A necessidade geral de segurança jurídica reclama uma solução institucional, garantida por um Tatbestand objetivo” (171).

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VII – Oferecendo-se como alternativa ao subjetivismo de Serick, surgiu logo em 1957, a teoria do escopo das normas, protagonizada por Müller-Freienfels78.

Esta orientação dogmática deriva, também ela, de uma leitura atenta de Serick. O autor inicia, aliás, o seu estudo sublinhando os méritos da obra Recht-sform und Realität …79. Desloca, porém, o eixo dogmático do Durchgriff do abuso de personalidade para o campo da própria aplicação das normas jurídi-cas: o Direito, quando escorreitamente aplicado, determinaria, nas hipóteses de levantamento, a obliteração das disposições referentes à personalidade coletiva.

Encontra-se presente, esta orientação, em autores como Teubner80, Von-nemann81 e Rudolph Wiethölter82, por exemplo.

VIII – Em Portugal, encontramos eco destas derivações83. Prevalece um apelo insistente, sobretudo na jurisprudência, ao controlo, pela boa fé (na ver-tente abuso de direito84), da justiça material do caso; invoca-se a relativização da personalidade coletiva e um entendimento “substancialista” da mesma85; ape-la-se a uma “limitação funcional intrínseca” da personifi cação86.

Reconhece-se, sobretudo, a difi culdade de uma recondução dogmática unitária, que pode ser confrontada em duas construções distintas.

Coutinho de Abreu, oferece-nos um edifício aplicativo: na base estaria uma conceção substancialista da pessoa coletiva, os pilares seriam o abuso de direito e o escopo das normas, envolvidos num método de realização do Direito que

78 Wolfram Müller-Freienfels, “Zur Lehre vom sogenannten Durchgriff bei juristischen Per-sonen in Privatrecht”, AcP 156 (1957) 522-543.79 Müller-Freienfels, “Zur Lehre vom sogenannten ...” cit., 522.80 Gunther Teubner, “Unitas Multiplex – Das Konzernrecht in der neuen Dezentralität der Unternehmensgruppen”, ZGR 1991, 189-217 (207 e ss.), a propósito do levantamento em sede de grupos.81 Wolfgang Vonnemann, Haftung der GmbH-Gesellschafter bei materieller Unterkapitalisierung, 1989, 77 e ss., onde a questão da subcapitalização é em parte equacionada sob a égide do escopo das normas.82 Na recensão à obra de Otto Wilser, Der Durchgriff bei Kapitalgesellschaften im Steuerrecht (1960), publicada in ZHR 125 (1963), 324-326. 83 Rita Terrível, “O levantamento da personalidade coletiva nos grupos de sociedades”, RDS IV (2012) 4, 935-1007.84 Em crítica, cfr. Manuel Carneiro da Frada, Teoria da confi ança e responsabilidade civil, 2004, 169 (121).85 Sublinhando este aspeto, Coutinho de Abreu, Do abuso de Direito – Ensaio de um critério em direito civil e nas deliberações sociais, 2006, 105 e ss; Curso de Direito Comercial, II (Das sociedades), 4.ª ed., 2011 (reimp. 2013), 176 e ss. e CSC em comentário, I, cit., 5.º, 100.86 Oliveira Ascensão, Direito Comercial, IV, cit., 70-71.

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distingue os casos de imputação (Zurechnungsdurchgriff ) dos casos de responsabi-lidade (Haftungsdurchgriff )87.

Já Menezes Cordeiro socorre-se da noção de instituto de enquadramento capaz, no fundo, de dotar de unidade compreensiva e aplicativa um conjunto variado de manifestações de exigências do sistema interno88.

IX – Ora, se bem atendermos, as reconduções dogmáticas identifi cadas como objetivismo e subjetivismo não afetam os grupos de casos em que ocorre a desconsideração. Procuram, outrossim, uma justifi cação dogmática que enquadre a aplicação normativa em causa.

É, portanto, uma falácia procurar alargar ou restringir a aplicação prática do instituto em razão da orientação dogmática consagrada. Reitere-se: uma coisa são os casos de desconsideração, outra, distinta, a sua recondução dogmática.

X – Para alargar o âmbito de aplicação do instituto – cuja contração não se justifi ca a nível das fontes – o legislador brasileiro propõe-se consagrar no Pro-jeto uma orientação subjetivista (expressa nas hipóteses abuso de forma e fraude).

Fica a dúvida, contudo, se o resultado fi nal não virá a ser uma subjetivação dogmática da boa-fé, contra o que se observa nos sistemas continentais, e a con-sequente hipoteca da operatividade do instituto no próprio sistema jurídico brasileiro.

XI – Temos, também, muitas reservas quanto à densifi cação normativa de hipóteses de desconsideração. Sem prejuízo de observações críticas que possam ser feitas, o artigo 50.º Código Civil é uma cláusula aberta de desconsideração. Em última instância, tão aberta quanto o próprio abuso de direito. É, por isso, suscetível de enquadrar as mais variadas hipóteses de desconsideração.

À redação proposta para o artigo 196.º parece presidir uma certa intenção de taxatividade: o legislador, para alargar o âmbito aplicativo do instituto, acaba por tentar prever todas as hipóteses de desconsideração.

Esta opção tem, todavia, a exata consequência oposta à pretendida pelo legislador. Toda a concretização é excludente. Quanto maior a densifi cação normativa de hipóteses de desconsideração, menor o número de casos que podem ser (em abstrato) reconduzidos ao instituto.

Se a isto somarmos a restante multiplicidade de “microssistemas legais”89 em que o instituto surge previsto, a situação descrita agudiza-se.

87 CSC em comentário, I, cit., 5.º, 100.88 Menezes Cordeiro, Direito das sociedades, I, 3.ª ed., cit., 446-450.89 Na expressão do Enunciado 51 da I Jornada de Direito Civil.

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6. A relação entre a desconsideração e o princípio da autonomia patrimonial

I – Um outro aspeto problemático do regime proposto no Projeto é a rela-ção da desconsideração com o princípio da autonomia patrimonial, previsto no artigo 11.º:

Art. 11. Pelo princípio da autonomia patrimonial, a sociedade é sujeito de direito diverso de seus sócios e, em consequência, estes respondem apenas pelas obrigações que este Código ou a lei expressamente lhes atribui.

Parágrafo único. Quando a lei atribui a sócio responsabilidade por obrigação da sociedade, esta tem sempre caráter subsidiário, pressupondo que o patrimônio social está prévia e completamente exaurido, e não podendo ultrapassar os limites previstos neste Código ou na lei.

A normatividade atinente à desconsideração surge, no Relatório Final, como um instrumento de aperfeiçoamento do princípio da autonomia patrimonial. Com efeito, pode ler-se no referido Relatório:

“(…) a teoria da desconsideração da personalidade jurídica visa o aperfeiçoamento do instituto da autonomia patrimonial. Os sócios e administradores das pessoas jurídicas – entre as quais, as sociedades empresárias (comerciais) – devem responder por obrigações destas quando manipulam fraudulentamente a separação patrimonial, frustrando a aplicação da lei ou lesando direitos de credores.”90

E com efeito, o regime previsto nos artigos 196.º a 199.º do Projeto, tem por única hipótese de aplicação a possibilidade de os sócios e administradores responderem pelas obrigações da sociedade.

Por outras palavras: o instituto da desconsideração da personalidade jurí-dica serve, no novo Código Comercial, exclusivamente para obter o alarga-mento da garantia geral das obrigações sociais ao património dos sócios e/ou administradores.

Em causa está, uma vez mais, a perspetiva funcional da pessoa jurídica como técnica normativa de segregação de patrimónios.

II – Este enquadramento da desconsideração é redutor: nem todas as hipóteses de desconsideração se baseiam na violação do princípio da autonomia patrimonial e nem todos os efeitos da desconsideração redundam num levantamento de tal autonomia.

90 Relatório Final, 19.

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Na experiência jurídica portuguesa, podemos documentar pelo menos dois outros grupos de efeitos da desconsideração diversos da superação da auto-nomia patrimonial: (i) o levantamento da imputação e (ii) o levantamento da organização91.

III – Existe uma constelação de hipóteses de desconsideração cujo efeito se consubstancia num imputação diversa da que resulta da personifi cação (Zure-chnungsdurchgriff ). Os efeitos jurídicos imputados à pessoa jurídica, por efeito da desconsideração, são-no agora a outros sujeitos. O inverso não é de afastar: a imputação à pessoa coletiva de situações jurídicas tituladas por outros sujeitos92.

Vejamos alguns exemplos da jurisprudência nacional:

– RPt 13-mai.-1993: o Tribunal anulou o trespasse de estabelecimento comercial celebrado entre os pais e uma sociedade comercial constituída por alguns dos seus fi lhos, sem o consentimento dos outros, por violação do disposto no artigo 877.º CC, o que implicou a imputação da venda diretamente aos fi lhos e não à sociedade por eles constituída93.

– STJ 12-jun.-1997: duas pessoas singulares encontram-se vinculadas a uma obrigação de não concorrência, que tentam contornar constituindo uma sociedade para o exercício da atividade concorrente. O Tribunal invoca o levantamento para entender violado tal dever94. A decisão implica a imputação do dever de não concorrência dos sócios à sociedade (ou, em alternativa, a imputação jurídica da atividade social aos sócios).

– Lx 30-jun.-2011: é peticionada a imputação do contrato de trabalho aos sócios da sociedade, na qualidade de empregadores. Não se aplicou o instituto95.

– RGm 30-jun.-2011: em contencioso de divórcio, é invocado o levanta-mento para permitir a imputação de uma situação jurídica de propriedade diretamente aos sócios cônjuges, e não à sociedade por eles constituída, de modo a permitir a inclusão do bem em causa no património conjugal96.

– RPt 16-abr.-2012: duas sociedades que, no entender do Tribunal, corres-pondiam a uma mesma realidade económica, celebraram sucessivamente um contrato de trabalho a termo com o mesmo trabalhador. Foi provado que a sucessão de contratos visava apenas afastar as regras laborais limi-

91 Diogo Costa Gonçalves, Pessoa coletiva e sociedades comerciais cit., 976 e ss.92 STJ 12-jun.-1997 (Sá Couto), Proc. n.º 97B268.93 RPt 13-mai.-1993 (Fernandes Magalhães), CJ XVIII (1995), 3, 199-201.94 STJ 12-jun.-1997 (Sá Couto), Proc. n.º 97B268.95 RLx 30-jun.-2011 (Albertina Pereira), Proc. 1410/06.96 RGm 30-jun.-2011 (Maria da Conceição Saavedra), Proc. n.º 599/10.

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tativas da contratação a termo. O tribunal, aplicando o levantamento, considerou o primeiro contrato celebrado por tempo indeterminado97. Houve, em bom rigor, um levantamento de imputação: a segunda rela-ção jurídica laboral foi imputada à primeira sociedade, determinando as consequências jurídicas daí decorrentes.

IV – Existe ainda uma outra constelação de hipóteses, de mais difícil docu-mentação, em que os efeitos da desconsideração estão associados a aspetos estruturantes da Handlungsorganisation.

Dois exemplos paradigmáticos podem ser apontados na jurisprudência portuguesa:

– STJ 16-nov.-2004: o inquérito judicial previsto no artigo 67.º foi reque-rido contra o gerente da sociedade que se defendeu invocando ilegiti-midade passiva, já que alguma jurisprudência havia consagrado o enten-dimento segundo o qual o inquérito judicial devia ser requerido contra a sociedade. O STJ entendeu que a legitimidade do gerente resulta do próprio CSC, mas admitiu que por via do levantamento sempre se pode-ria chegar à mesma conclusão98. O levantamento permitiria assim assumir como posições jurídicas próprias dos membros dos órgãos sociais as recor-tadas para os respetivos órgãos.

– STJ 09-dez.-2006: nos autos, surge alegada uma simulação, invocando-se conluio entre o administrador da sociedade e a contraparte no contrato, em prejuízo da própria sociedade. O levantamento da personalidade serve, in casu, para afastar a atuação orgânica do administrador e entender que este agiu ao abrigo de uma situação geral de representação, sendo, portanto, a sociedade um terceiro99.

O último acórdão é especialmente ilustrativo. A confi guração clássica da Organtheorie é afastada pelo levantamento, fazendo ressurgir no processo aplica-tivo do Direito o instituto geral da representação.

V – Para além do levantamento de imputação e do levantamento de organização, é possível identifi car um outro universo de hipóteses em que a consideração da materialidade da pessoa jurídica surge como critério de decisão e cujo efeito da

97 RPt 16-abr.-2012 (Fernanda Soares), Proc. n.º 229/08.98 STJ 16-nov.-2004 (Pinto Monteiro), Proc. 04A3002.99 STJ 09-dez.-2006 (Pinto Monteiro), Proc. 04A3087.

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desconsideração é muito diversifi cado (mas distinto da superação da autonomia patrimonial).

Por exemplo:

– STJ 18-mai.-2006: na compra e venda de um imóvel, verifi ca-se que determinada pessoa singular é sócio de ambas as sociedades (compradora e vendedora). Invoca-se o levantamento – em concreto: a situação de propriedade indireta – na discussão acerca do impedimento do direito de voto na assembleia da sociedade que delibera a alienação. O Tribunal decide pelo não levantamento100.

– STJ 26-jun.-2007: o levantamento é invocado para permitir a qualifi ca-ção de uma transmissão de participações sociais como trespasse, aplicando o regime deste último. O Tribunal decide pelo não levantamento101.

III – Nenhum destes casos parece encontrar previsão no Projeto. Pergunta-se: não estando a coberto da previsão normativa do novo Código

Comercial, terá ainda assim aplicação o artigo 50.º do Código Civil? A ser positiva a resposta, existirá uma necessária relação de especialidade

entre o regime da desconsideração do Código Civil e o que vier a resultar da aprovação do Código Comercial. Mas, a ser assim, não estaremos perante uma autonomização substancial da desconsideração jus-societária? Com que efeitos a nível de sistema interno?

7. A desconsideração como sucedâneo da responsabilidade civil dos administra-dores?

I – Nos termos do § 1 do artigo 196.º do Projeto, “será imputada responsabi-lidade exclusivamente ao sócio ou administrador que tiver praticado a irregularidade que deu ensejo à desconsideração da personalidade jurídica da sociedade”.

O termo “exclusivamente” consagra um escopo limitador: não são todos os sócio nem todos os administradores que serão afetados pela desconsideração, mas apenas alguns deles. Quais? Os que hajam “praticado a irregularidade que deu ensejo à desconsideração”.

A necessidade de identifi car uma irregularidade e proceder à sua imputação a determinado sujeito (sócio ou administrador) parece deslocar a desconsideração para o universo clássico da responsabilidade civil. Se tivermos em conta que

100 STJ 18-mai.-2006 (Sebastião Póvoas), Proc. 06A1106.101 STJ 26-jun.-2007 (Afonso Correia) Proc. 07A1274.

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a única utilidade do instituto é a responsabilização patrimonial de alguém, a desconsideração parece surgir, assim, como a imputação de um dano à esfera jurídica do sócio ou administrador.

II – Isto é especialmente verdade quando em causa está a responsabilização do administrador. Recorde-se que o princípio da autonomia patrimonial tem que ver com o privilégio da responsabilidade limitada. Desconsiderar tal autonomia patrimonial seria, por princípio, levantar o privilégio, operando uma forma de responsabilidade ilimitada (afetando assim o universo dos sócios).

Ora, a imputação de responsabilidade direta aos administradores importa reconhecer a um credor uma pretensão autónoma contra o administrador pela prática de um facto ilícito e culposo.

Como articular o regime da desconsideração com a própria responsabilidade civil dos administradores, prevista, por exemplo, no artigo 254.º do Projeto?

Art. 254. Aquele que, no exercício do cargo de administrador, praticar ato violador das disposições da lei ou do contrato social, responde pessoalmente pelas consequências do ato praticado e pelos danos que causar à sociedade, aos sócios e a terceiros.

Esta parece-nos ser uma questão que merecerá a melhor atenção, com ine-gáveis consequências dogmáticas na aplicação prática das fi guras.

§ 3.º Sinopse

I – A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto rebelde à positivação. O sucesso da fi gura depende, em larga medida, da sua plasticidade. A multiplicação de previsões normativas – como sucede na ordem jurídica bra-sileira – tende a conferir ao instituto a exata nota inversa, enfeudando-o numa malha aplicativa que lhe restringe a capacidade heurística.

II – Tendo em conta o que fi ca dito, o alargamento das hipóteses de des-consideração não parece que deva ser obtido por via legislativa: é tarefa que cabe à doutrina e à jurisprudência, sobretudo se pensarmos na génese casuística do instituto.

Por outro lado, se bem avaliamos o atual momento, o tempo é de recons-trução e redefi nição dogmática da pessoa jurídica no espaço jurídico brasileiro e, em consequência, de uma reelaboração unitária e integrada do instituto da desconsideração.

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Não parece, por isso, oportuna a difusão de novas fontes normativas, sobre-tudo em codifi cações de ramos do Direito privado.

III – A consagração da desconsideração no Projeto de Código Comercial parece conduzir a uma subjetivação da boa fé, contra a orientação dominante. Ilude ainda outros casos de desconsideração que, no seu intuito de pretender alargar o âmbito de aplicação da fi gura, acaba por excluir.

IV – Pese embora as reservas formuladas o Projeto não deixa de representar um importante repto à ciência jurídica lusófona.

E, por mais que não fosse, só este facto bastaria para que se intensifi casse o diálogo interatlântico sobre um aspeto nuclear da dogmática jurídica: o devir da pessoa coletiva/jurídica na complexidade do comércio jurídico hodierno.

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