apontamentos para uma Ética aristotélica-fernando pessoa

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  • Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/672

    lvaro de Campos

    APONTAMENTOS PARA UMA ESTTICANO-ARISTOTLICA

    APONTAMENTOS PARA UMA ESTTICA NO-ARISTOTLICA

    I

    Toda a gente sabe hoje, depois de o saber, que h geometrias chamadasno-euclidianas, isto , que partem de postulados diferentes dos de Euclides, echegam a concluses diferentes. Estas geometrias tm cada uma um desenvolvi-mento lgico: so sistemas interpretativos independentes, independentementeaplicveis realidade. Foi fecundo em matemtica e alm da matemtica (Eins-tein bastante lhe deve) este processo de multiplicar as geometrias verdadeiras,e fazer, por assim dizer, abstraces de vrios tipos na mesma realidade objec-tiva.

    Ora, assim como se podem formar, se formaram, e foi til que se formassem,geometrias no euclidianas, no sei que razo se poder invocar para que nopossam formar-se, no se formem, e no seja til que se formem, estticasno-aristotlicas .

    H muito tempo que, sem reparar que o fazia, formulei uma esttica noaristotlica. Quero deixar escritos estes apontamentos para ela, em paralelo, nosei se modesto, com a tese de Riemann sobre a geometria clssica.

    Chamo esttica aristotlica que pretende que o fim da arte a beleza, ou,dizendo melhor, a produo nos outros da mesma impresso que a que nasceda contemplao ou sensao das coisas belas. Para a arte clssica e as suasderivadas, a romntica, a decadente, e outras assim a beleza o fim; divergemapenas os caminhos para esse fim, exactamente como em matemtica se podemfazer diversas demonstraes do mesmo teorema. A arte clssica deu-nos obrasgrandes e sublimes, o que no quer dizer que a teoria da construo dessasobras seja certa, ou que seja a nica teoria certa. frequente, alis, e tantona vida terica como na prtica, chegar-se a um resultado certo por processosincertos ou mesmo errados.

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    Obra Aberta 2011-02-09 05:09

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    Creio poder formular uma esttica baseada, no na ideia de beleza, mas nade fora tomando, claro, a palavra fora no seu sentido abstracto e cientfico;porque se fosse no vulgar, tratar-se-ia, de certa maneira, apenas de uma formadisfarada de beleza. Esta nova esttica, ao mesmo tempo que admite comoboas grande nmero de obras clssicas admitindo-as porm por uma razodiferente da dos aristotlicos, que foi naturalmente tambm a dos seus autores estabelece uma possibilidade de construrem novas espcies de obras de arteque quem sustente a teoria aristotlica no poderia prever ou aceitar.

    A arte, para mim, , como toda a actividade, um indcio de fora, ou energia;mas, como a arte produzida por entes vivos, sendo pois um produto da vida,as formas da fora que se manifestam na arte so as formas da fora que semanifestam na vida. Ora a fora vital dupla, de integrao e de desintegrao anabolismo e catabolismo, como dizem os fisiologistas. Sem a coexistncia eequilbrio destas duas foras no h vida, pois a pura integrao a ausnciada vida e a pura desintegrao a morte. Como estas foras essencialmentese opem e se equilibram para haver, e enquanto h, vida, a vida uma acoacompanhada automtica e intrinsecamente da reaco correspondente. E noautomatismo da reaco que reside o fenmeno especfico da vida.

    O valor de uma vida, isto , a vitalidade de um organismo, reside pois naintensidade da sua fora de reaco. Como, porm, esta reaco automtica,e equilibra a aco que a provoca, igual, isto , igualmente grande, tem queser a fora de aco, isto , de desintegrao. Para haver intensidade ou valorvital (no conceito de vida no pode caber outro conceito de valor que no o deintensidade, isto , de grau de vida), ou vitalidade, foroso que essas duasforas sejam ambas intensas, mas iguais, pois, se o no forem, no s no hequilbrio mas tambm uma das foras pequena, pelo menos em relao outra. Assim o equilbrio vital , no um facto directo como querem paraa arte (no esqueamos o fim destes apontamentos) os aristotlicos mas oresultado abstracto do encontro de dois factos.

    Ora a arte, como feita por se sentir e para se sentir sem o que seriacincia ou propaganda baseia-se na sensibilidade. A sensibilidade pois avida da arte. Dentro da sensibilidade, portanto, que tem que haver a aco e areaco que fazem a arte viver, a desintegrao e integrao que, equilibrando-selhe do vida. Se a fora de integrao viesse, na arte, de fora da sensibilidade,viria de fora da vida; no se trataria de uma reaco automtica ou natural, masde uma reaco mecnica ou artificial.

    Como aplicaremos arte o princpio vital de integrao e desintegrao?

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    O problema no oferece dificuldades; como a maioria dos problemas, basta,para o resolver, ver bem que problema ele . Indo ao aspecto fundamental daintegrao e da desintegrao, isto , sua manifestao no mundo chamadoinorgnico, vemos a integrao manifestar-se como coeso, a desintegraocomo ruptibilidade, isto , tendncia a, por causas (neste nvel) quase todas ma-croscopicamente externas alis perpetuamente operantes, em grau menor oumaior o corpo se cindir, se quebrar, deixar de ser o corpo que . No mundochamado orgnico mantm-se, variando o nome porque a forma de manifesta-o, estas duas foras. Na sensibilidade o princpio de coeso vem do indivduo,que essa sensibilidade caracteriza, ou, antes, essa forma de sensibilidade, pois a forma-tomando este termo no sentido abstracto e completo-que define ocomposto individualizado. Na sensibilidade o princpio de ruptibilidade estem variadssimas foras, na sua maioria externas, que, porm se reflectemno indivduo fsico atravs da no-sensibilidade, isto , da inteligncia e davontade a primeira tendendo a desintegrar a sensibilidade perturbando-a,inserindo nela elementos (ideias) gerais e assim contrrios necessariamente aosindividuais, a tornar a sensibilidade humana em vez de pessoal; a segundatendendo a desintegrar a sensibilidade limitando-a, tirando-lhe todos aqueleselementos que no sirvam, ou, por excessivos, aco em si, ou, por suprfluos, aco rpida e perfeita, a tornar pois a sensibilidade centrfuga em vez decentrpeta.

    Contra estas tendncias disruptivas a sensibilidade reage, para coerir, e comotoda a vida, reage por uma forma especial de coeso, que a assimilao, isto, a converso dos elementos das foras estranhas em elementos prprios, emsubstncia sua.

    Assim, ao contrrio da esttica aristotlica, que exige que o indivduo gene-ralize ou humanize a sua sensibilidade, necessariamente particular e pessoal,nesta teoria o percurso indicado inverso: o geral que deve ser particularizado,o humano que se deve pessoalizar, o exterior que se deve tornar interior.

    Creio esta teoria mais lgica se que h lgica que a aristotlica; ecreio-o pela simples razo de que, nela, a arte fica o contrrio da cincia, o quena aristotlica no acontece. Na esttica aristotlica, como na cincia, parte-se,em arte, do particular para o geral; nesta teoria parte-se, em arte, do geralpara o particular, ao contrrio de na cincia, em que, com efeito e sem dvida, do particular para o geral que se parte. E como cincia e arte so, como intuitivo e axiomtico, actividades opostas, opostos devem ser os seus modosde manifestao, e mais provavelmente certa a teoria que d esses modos como

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    realmente opostos que aquela que os d como convergentes ou semelhantes.

    II

    Acima de tudo, a arte um fenmeno social. Ora no homem h duasqualidades directamente sociais, isto , dizendo directamente respeito suavida social: o esprito gregrio, que o faz sentir-se igual aos outros homens ouparecido com eles, e portanto aproximar-se deles; e o esprito individual ouseparativo, que o faz afastar-se deles, colocar-se em oposio a eles, ser seuconcorrente, seu inimigo, ou seu meio inimigo. Qualquer indivduo ao mesmotempo indivduo e humano: difere de todos os outros e parece-se com todos osoutros.

    Uma vida social s no indivduo resulta do equilbrio destes dois sentimen-tos: uma fraternidade agressiva define o homem social e so. Ora se a arte um fenmeno social, no ser social vai j o elemento gregrio; resta saber ondeest nela o elemento separativo. No o podemos buscar fora da arte, porqueento haveria na arte um elemento estranho a ela, e ela seria tanto menos arte;temos que o buscar dentro da arte isto , o elemento separativo tem que semanifestar na arte tambm, e como arte.

    Quer isto dizer que, na arte, que antes de tudo um fenmeno social, tantoo esprito gregrio como o separativo tm que assumir a forma social.

    Ora o esprito separativo, antigregrio, tem, claro, duas formas: o afasta-mento dos outros, e a imposio do indivduo aos outros, a sobreposio doindivduo aos outros o isolamento e o domnio. Destas duas formas a segunda que a forma social, pois isolar-se deixar de ser social. A arte, portanto, antes de tudo, um esforo para dominar os outros. H, evidentemente, vriasmaneiras de dominar ou procurar dominar os outros; a arte uma delas.

    Ora h dois processos de dominar ou vencer captar e subjugar. Captar o modo gregrio de dominar ou vencer; subjugar o modo antigregrio dedominar ou vencer.

    Ora em todas as actividades sociais superiores h estes dois processos,porque fatalmente no pode haver outros; e se me refiro distintamente sactividades sociais superiores que so estas, porque so superiores, as queenvolvem a ideia de domnio. So trs as actividades sociais superiores apoltica, a religio e a arte. Em cada um destes ramos da actividade socialsuperior h o processo de captao e o processo de subjugao.

    Na poltica h a democracia, que a poltica de captao, e a ditadura, que

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    a poltica de subjugao. democrtico todo o sistema que vive de agradar e decaptar seja a captao oligrquica ou plutocrtica da democracia moderna,que, no fundo, no capta seno certas minorias, que incluem ou excluem a mai-oria autntica; seja a captao mstica e representativa da monarquia medieval,nico sistema portanto verdadeiramente democrtico, pois s a monarquia, peloseu carcter essencialmente mstico, pode captar as maiorias e os conjuntos,organicamente msticos na sua profunda vida mental. ditatorial todo o sistemapoltico que vive de subordinar e de subjugar seja o despotismo artificial dotirano de fora fsica, inorgnico e irrepresentativo, como nos imprios decaden-tes e nas ditaduras polticas; seja o despotismo natural do tirano de fora mental,orgnico e representativo, enviado oculto, na ocasio da sua hora, dos destinossubconscientes de um povo.

    Na religio h a metafsica, que a religio de captao, porque tentainsinuar-se pelo raciocnio, e explicar ou provar querer captar; e h a religiopropriamente dita, que o sistema de subjugao, porque subjuga pelo dogmaimprovado e pelo ritual inexplicvel, agindo assim directa e superiormentesobre a confuso das almas.

    Assim como na poltica e na religio, assim na arte. H uma arte quedomina captando, outra que domina subjugando. A primeira a arte segundoAristteles, a segunda a arte como eu a entendo e defendo. A primeira baseia-senaturalmente na ideia de beleza, porque se baseia no que agrada; baseia-se nainteligncia, porque se baseia no que, por ser geral, compreensvel e por issoagradvel; baseia-se na unidade artificial, construda e inorgnica, e portantovisvel, como a de uma mquina, e por isso aprecivel e agradvel. A segundabaseia-se naturalmente na ideia de fora, porque se baseia no que subjuga; baseia--se na sensibilidade, porque a sensibilidade que particular e pessoal, e como que particular e pessoal em ns que dominamos, porque, se no fosse assim,dominar seria perder a personalidade, ou, em outras palavras, ser dominado; ebaseia-se na unidade espontnea e orgnica, natural, que pode ser sentida ouno sentida, mas que nunca pode ser vista ou visvel, porque no est ali parase ver.

    Toda a arte parte da sensibilidade e nela realmente se baseia. Mas, ao passoque o artista aristotlico subordina a sua sensibilidade sua inteligncia, parapoder tornar essa sensibilidade humana e universal, ou seja para a podertornar acessvel e agradvel, e assim poder captar os outros, o artista no--aristotlico subordina tudo sua sensibilidade, converte tudo em substnciade sensibilidade, para assim, tornando a sua sensibilidade abstracta como a

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    inteligncia (sem deixar de ser sensibilidade), emissora como a vontade (semque seja por isso vontade), se tornar um foco emissor abstracto sensvel que forceos outros, queiram eles ou no, a sentir o que ele sentiu, que os domine pelafora inexplicvel, como o atleta mais forte domina o mais fraco, como o ditadorespontneo subjuga o povo todo (porque ele todo sintetizado e por isso maisforte que ele todo somado), como o fundador de religies converte dogmtica eabsurdamente as almas alheias na substncia de uma doutrina que, no fundo,no seno ele prprio.

    O artista verdadeiro um foco dinamogneo; o artista falso, ou aristotlico, um mero aparelho transformador, destinado apenas a converter a correntecontnua da sua prpria sensibilidade na corrente alterna da inteligncia alheia.

    Ora entre os artistas clssicos, isto , aristotlicos, h verdadeiros e falsosartistas; e tambm nos no-aristotlicos h verdadeiros artistas e h simplessimuladores porque no a teoria que faz o artista, mas o ter nascido artista.O que porm entendo e defendo que todo o verdadeiro artista est dentro daminha teoria, julgue-se ele aristotlico ou no; e todo o falso artista est dentroda teoria aristotlica, mesmo que pretenda ser no-aristotlico. o que faltaexplicar e demonstrar.

    A minha teoria esttica baseia-se ao contrrio da aristotlica, que assentana ideia de beleza na ideia de fora. Ora a ideia de beleza pode ser uma fora.Quando a ideia de beleza seja uma ideia da sensibilidade, uma emooe no uma ideia, uma disposio sensvel do temperamento, essa ideia debeleza uma fora. S quando uma simples ideia intelectual de beleza queno uma fora.

    Assim a arte dos gregos grande mesmo no meu critrio, e sobretudo o no meu critrio. A beleza, a harmonia, a proporo no eram para os gregosconceitos da sua inteligncia, mas disposies ntimas da sua sensibilidade. por isso que eles eram um povo de estetas, procurando, exigindo a beleza todos,em tudo, sempre. por isso que com tal violncia emitiram a sua sensibilidadesobre o mundo futuro que ainda vivemos sbditos da opresso dela. A nossasensibilidade, porm, j to diferente de trabalhada que tem sido portantas e to prolongadas foras sociais que j no podemos receber essaemisso com a sensibilidade, mas apenas com a inteligncia. Consumou estenosso desastre esttico a circunstncia de que recebemos em geral essa emissoda sensibilidade grega atravs dos romanos e dos franceses. Os primeiros,embora prximos dos gregos no tempo, eram, e foram sempre, a tal pontoincapazes de sentimento esttico que tiveram que se valer da inteligncia para

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    receber a emisso da esttica grega. Os segundos, estreitos de sensibilidade epseudovivazes de inteligncia, capazes portanto de gosto mas no de emooesttica, deformaram a j deformada romanizao do helenismo, fotografaramelegantemente a pintura romana de uma esttua grega. J grande, para quemsouber medi-la, a distncia que vai da Ilada Eneida to grande quea no oculta mesmo uma traduo; a de um Pndaro a um Horcio pareceinfinita. Mas no menor a que separa mesmo um Homero bidimensionalcomo Verglio, ou um Pndaro em projeco de mercator como Horcio, dachateza morta dum Boileau, dum Corneille, dum Racine, de todo o insupervellixo esttico do classicismo francs, esse classicismo cuja retrica pstumaainda estrangula e desvirtua a admirvel sensibilidade emissora de Vtor Hugo.

    Mas, assim como para os clssicos, ou pseudoclssicos os aristotlicospropriamente ditos a beleza pode estar, no nas disposies da sua sensibili-dade, mas s nas preocupaes da sua razo, assim, para os no-aristotlicospostios, pode a fora ser uma ideia da inteligncia e no uma disposio dasensibilidade. E assim como a simples ideia intelectual de beleza no habilitaa criar beleza, porque s a sensibilidade verdadeiramente cria, porque verda-deiramente emite, assim tambm a simples ideia intelectual de fora, ou deno-beleza, no habilita a criar, mais que a outra, a fora ou a no-beleza quepretende criar. por isso que h e em que abundncia os h! simuladoresda arte da fora ou da no-beleza, que nem criam beleza nem no-beleza, por-que positivamente no podem criar nada; que nem fazem arte aristotlica falsa,porque a no querem fazer, nem arte aristotlica falsa, porque no pode haverarte no-aristotlica falsa. Mas em tudo isto fazem sem querer, e ainda que mal,arte aristotlica, porque fazem arte com a inteligncia, e no com a sensibilidade.A maioria, seno a totalidade, dos chamados realistas, naturalistas, simbolistas,futuristas, so simples simuladores, no direi sem talento, mas pelo menos, es alguns, s com o talento da simulao. O que escrevem, pintam ou esculpempode ter interesse, mas o interesse dos acrsticos, dos desenhos de um strao e de outras coisas assim. Logo que se lhe no chame arte, est bem.

    De resto, at hoje, data em que aparece pela primeira vez uma autnticadoutrina no aristotlica da arte, s houve trs verdadeiras manifestaes dearte no-aristotlica. A primeira est nos assombrosos poemas de Walt Whitman;a segunda est nos poemas mais que assombrosos do meu mestre Caeiro; aterceira est nas duas odes a Ode Triunfal e a Ode Martima que publiqueino Orpheu. No pergunto se isto imodstia. Afirrno que verdade.

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    LVARO DE CAMPOS

    1924

    Textos de Crtica e de Interveno . Fernando Pessoa. Lisboa: tica, 1980: 251.

    1 publ. in Athena, n 3 e 4. Lisboa: Dez.-Jan. 1924-25.

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